Voto Celso Mello Adpf 187 Conheicmento

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ARGIO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 187 DISTRITO FEDERAL

V O T O (s/ preliminar de no conhecimento) O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): A eminente Senhora Procuradora-Geral da Repblica, em exerccio, ao ajuizar a presente argio de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em considerao a essencialidade dos postulados que amparam e

protegem a liberdade de reunio e a liberdade de manifestao do pensamento, assim justificou a admissibilidade dessa especial ao constitucional, examinando-a, quer em face dos requisitos que lhe so inerentes, quer luz do postulado da subsidiariedade (fls. 07/09):

13. A arguio de descumprimento de preceito fundamental - ADPF - prevista no art. 102, 1, da Constituio Federal, regulamentada pela Lei n 9.882/99, volta-se contra atos comissivos ou omissivos dos Poderes Pblicos que importem em leso ou ameaa de leso aos princpios e regras mais relevantes da ordem constitucional. 14. A doutrina reconhece a existncia de duas modalidades diferentes de ADPF: a autnoma, que representa uma tpica modalidade de jurisdio constitucional abstrata, desvinculada de qualquer caso concreto; e a incidental, que pressupe a existncia de uma determinada lide intersubjetiva, na qual tenha surgido uma controvrsia constitucional relevante. 15. A presente ADPF de natureza autnoma. Para o seu cabimento, necessrio que estejam presentes os seguintes requisitos: (a) exista leso ou ameaa a preceito fundamental, (b) causada por atos comissivos ou omissivos dos Poderes Pblicos, e (c) no haja

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nenhum outro instrumento apto a sanar esta leso ou ameaa. Estes trs requisitos esto plenamente configurados, conforme se demonstrar a seguir. (a) Da Leso a Preceito Fundamental: A Afronta s Liberdades de Expresso e de Reunio 16. A tese central desta ADPF a de que a interpretao impugnada do art. 287 do Cdigo Penal incompatvel com as liberdades de expresso e de reunio, que so direitos fundamentais positivados, respectivamente, nos arts. 5, incisos IV, IX e 220 da CF e no art. 5, inciso XVI, da Carta de 88. 17. Os direitos fundamentais, em razo do seu protagonismo no sistema constitucional vigente, configuram, indiscutivelmente, preceitos fundamentais, tanto que se qualificam como clusulas ptreas (art. 60, 4, inciso IV, CF). (b) Ato do Poder Pblico 18. O ato do Poder Pblico impugnado nesta ao a interpretao que alguns juzes e tribunais vm adotando do art. 287 do Cdigo Penal. (c) Da Inexistncia de Outro Meio para Sanar a Lesividade 19. O art. 4, 1, da Lei 9.882/99 instituiu o chamado princpio da subsidiariedade da ADPF. H controvrsia sobre como deve ser compreendido o princpio da subsidiariedade nas argies incidentais. Contudo, quando se trata de ADPF autnoma, parece fora de dvida de que o juzo sobre o atendimento do princpio em questo deve ter em vista a existncia de outros processos objetivos de fiscalizao de constitucionalidade, que possam corrigir de maneira adequada a leso a preceito fundamental. 20. No caso, este requisito est plenamente satisfeito, uma vez que o objetivo pretendido na ao, de reconhecimento de invalidade de ato normativo anterior Constituio, no pode ser obtido atravs da propositura de ao direta de inconstitucionalidade, tendo em vista a orientao reiterada do STF, no sentido de que a no-recepo envolve hiptese de revogao, e no de inconstitucionalidade superveniente. 21. Alis, existe expressa previso na Lei n 9.882/99 sobre o cabimento da impugnao de

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normas anteriores Constituio (art. 1, pargrafo nico, I). (grifei)

I. Admissibilidade, no descumprimento de preceito fundamental

caso,

da

argio

de

Entendo, Senhor Presidente, que se acham atendidos, na espcie, os requisitos que, inerentes estrutura constitucional da argio de descumprimento, permitem reconhecer-lhe a admissibilidade, eis que se trata, no caso, de argio autnoma (desvinculada de qualquer situao concreta especfica) que objetiva inibir dano

efetivo ou potencial a determinados preceitos fundamentais de nosso ordenamento constitucional (o direito de reunio e o direito livre expresso de idias), cuja integridade se v transgredida (ou

ameaada de transgresso) por atos do Poder Pblico consubstanciados em decises judiciais que, interpretando o art. 287 do Cdigo Penal, culminam por restringir, indevidamente, o alcance e o exerccio de tais prerrogativas a fundamentais, represso que expondo, aqueles que pretendem em

exerc-las,

injusta estatais

governamental por

materializada de

comportamentos

provocam,

efeito

interveno

policial, a forada dissoluo de passeatas, marchas ou caminhadas, realizadas, de lesivas modo pacfico, para em espaos pblicos, com graves e o exerccio da liberdade de

conseqncias

manifestao do pensamento e da livre circulao de idias em torno

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de tema impregnado de inquestionvel relevo poltico-social e de inegvel repercusso na vida da coletividade e das pessoas em geral, e sobre o qual todo e e qualquer sem cidado desta tem Repblica, o sem

excluso,

sem

restrio

discriminao,

inalienvel

direito de se pronunciar abertamente, plenamente, livremente!

II. Observncia do postulado da subsidiariedade

De

outro

lado,

Senhor

Presidente,

tambm

se

revela

admissvel, na espcie, a utilizao da argio de descumprimento de preceito fundamental em face do que prescreve o art. 4, 1, da Lei n 9.882/99, que assim dispe:

No ser admitida argio de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. (grifei) O diploma legislativo em questo tal como tem sido reconhecido por esta Suprema Corte (RTJ 189/395-397, v.g.)

consagra o princpio da subsidiariedade, que rege a instaurao do processo objetivo de argio o de descumprimento dessa de preceito ao de

fundamental,

condicionando,

ajuizamento

especial

ndole constitucional, ausncia de qualquer outro meio processual

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apto a sanar, de modo eficaz, a situao de lesividade indicada pelo autor: - O ajuizamento da ao constitucional de argio de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo princpio da subsidiariedade (Lei n 9.882/99, art. 4, 1), a significar que no ser ela admitida, sempre que houver qualquer outro meio juridicamente idneo apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade emergente do ato impugnado. Precedentes: ADPF 3/CE, ADPF 12/DF e ADPF 13/SP. A mera possibilidade de utilizao de outros meios processuais, contudo, no basta, s por si, para justificar a invocao do princpio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir - impedindo, desse modo, o acesso imediato argio de descumprimento de preceito fundamental revela-se essencial que os instrumentos disponveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situao de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional. A norma inscrita no art. 4, 1 da Lei n 9.882/99 - que consagra o postulado da subsidiariedade estabeleceu, validamente, sem qualquer ofensa ao texto da Constituio, pressuposto de admissibilidade da argio de negativo descumprimento de preceito fundamental, pois condicionou, legitimamente, o ajuizamento dessa especial ao de ndole constitucional, observncia de um inafastvel requisito de procedibilidade, consistente na ausncia de qualquer outro meio processual revestido de aptido para fazer cessar, prontamente, a situao de lesividade (ou de potencialidade danosa) decorrente do ato impugnado. (RTJ 184/373-374, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

O

exame

do

precedente

que

venho

de

referir

(RTJ 184/373-374, Rel. Min. CELSO DE MELLO) revela que o princpio da subsidiariedade no pode - nem deve - ser invocado para impedir o

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exerccio da ao constitucional de argio de descumprimento de preceito fundamental, eis que esse instrumento est vocacionado a viabilizar, jurisdicional preceitos Repblica. numa de dimenso direitos estritamente bsicos, de no objetiva, valores texto da a realizao e de da

essenciais

fundamentais

contemplados

Constituio

Se assim no se entendesse, a indevida aplicao do princpio da subsidiariedade poderia afetar a utilizao dessa

relevantssima ao de ndole constitucional, o que representaria, em ltima anlise, a inaceitvel frustrao do sistema de proteo que a Carta Poltica instituiu em favor de preceitos fundamentais, de valores essenciais e de direitos bsicos, com grave

comprometimento prpria efetividade da Constituio.

Da a prudncia com que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a regra inscrita no art. 4, 1, da Lei n 9.882/99, em ordem a permitir que a utilizao dessa nova ao constitucional possa efetivamente prevenir ou reparar leso a preceito fundamental causada por ato do Poder Pblico.

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No

por

outra

razo

que

esta

Suprema

Corte

vem

entendendo que a invocao do princpio da subsidiariedade, para no conflitar com o carter objetivo de que se reveste a argio de descumprimento de preceito fundamental, supe a impossibilidade de utilizao, em cada caso, dos demais instrumentos de controle

normativo abstrato:

(...) 6. Cabimento de argio de descumprimento de preceito fundamental para solver controvrsia sobre legitimidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anterior Constituio (norma pr-constitucional) (...). 9. ADPF configura modalidade de integrao entre os modelos de perfil difuso e concentrado no Supremo Tribunal Federal. 10. Revogao da lei ou ato normativo no impede o exame da matria em sede de ADPF, porque o que se postula nessa ao a declarao de ilegitimidade ou de no-recepo da norma pela ordem constitucional superveniente (...). 13. Princpio da subsidiariedade (art. 4, 1, da Lei n 9.882/99): inexistncia de outro meio eficaz de sanar a leso, compreendido no contexto da ordem constitucional global, como aquele apto a solver a controvrsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. 14. A existncia de processos ordinrios e recursos extraordinrios no deve excluir, a priori, a utilizao da argio de descumprimento de preceito fundamental, em virtude da feio marcadamente objetiva dessa ao (...). (ADPF 33/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES grifei)

A pretenso ora deduzida nesta sede processual - que tem por objeto preceito normativo que antecedeu a promulgao da vigente

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Constituio, tratando-se, portanto, de norma pr-constitucional (CP, art. 287), exatamente por revelar-se insuscetvel de conhecimento em sede de ao direta de inconstitucionalidade (RTJ 145/339, Rel. Min. CELSO DE MELLO RTJ 169/763, Rel. Min. PAULO BROSSARD ADI 129/SP, Rel. p/ o acrdo Min. CELSO DE MELLO, v.g.) - no encontra obstculo na regra inscrita no art. 4, 1, da Lei n 9.882/99, o que permite, satisfeita a exigncia imposta pelo postulado da

subsidiariedade, a instaurao deste processo objetivo de controle normativo concentrado.

Cabe registrar, ainda, por oportuno, que o Plenrio do Supremo Tribunal Federal, tem admitido a possibilidade de

ajuizamento da argio de descumprimento de preceito fundamental contra diploma normativo pr-constitucional (ADPF 33/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES - ADPF 130/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO ADPF 153/DF, Rel. Min. EROS GRAU).

Reconheo admissvel, pois, no caso, sob a perspectiva do postulado da subsidiariedade, a utilizao do instrumento

processual da argio de descumprimento de preceito fundamental.

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III. Admissibilidade interpretao judicial

do

ajuizamento

da

ADPF

contra

Nem se diga, de outro lado, que a presente argio de descumprimento, por incidir sobre a interpretao dada, por alguns juzes e Tribunais, ao art. 287 do Cdigo Penal, no se mostraria vivel.

Entendo,

Senhor

Presidente,

na

linha

de

orientao

jurisprudencial firmada por esta Suprema Corte (ADPF 33/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES), que a controvrsia constitucional ora suscitada pela ilustre Procuradora-Geral da Repblica, em exerccio, mostra-se passvel de veiculao em sede preceito fundamental, mesmo de argio de o litgio descumprimento tenha de por de

que

objeto

interpretaes fundamentais,

judiciais como a

alegadamente de

violadoras e o

preceitos livre

liberdade

reunio

direito

manifestao do pensamento, cuja suposta transgresso decorreria de decises emanadas de rgos diversos do Poder Judicirio.

Essa compreenso da matria, que sustenta a viabilidade da utilizao de da que argio possa em de descumprimento leso a contra preceito interpretao fundamental, do de eminente Preceito

judicial encontra Ministro

resultar

apoio GILMAR

valioso

magistrio de

doutrinrio Descumprimento

MENDES

(Argio

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Fundamental:

comentrios

Lei

n.

9.882,

de

3.12.1999,

p.

72,

item n. 6, 2007, Saraiva):

Pode ocorrer leso a preceito fundamental fundada em simples interpretao judicial do texto constitucional. Nesses casos, a controvrsia no tem por base a legitimidade ou no de uma lei ou de um ato normativo, mas se assenta simplesmente na legitimidade ou no de uma dada interpretao constitucional. No mbito do recurso extraordinrio essa situao apresenta-se como um caso de deciso judicial que contraria diretamente a Constituio (art. 102, III, a). No parece haver dvida de que, diante dos termos amplos do art. 1 da Lei n. 9.882/99, essa hiptese poder ser objeto de argio de descumprimento leso a preceito fundamental resultante de ato do Poder Pblico -, at porque se cuida de uma situao trivial no mbito de controle de constitucionalidade difuso. Assim, o ato judicial de interpretao direta de um preceito fundamental poder conter uma violao da norma constitucional. Nessa hiptese, caber a propositura da argio de descumprimento para afastar a leso a preceito fundamental resultante desse ato judicial do Poder Pblico, nos termos do art. 1 da Lei n. 9.882/99. (grifei)

Cabe rememorar, no ponto, que esta Suprema Corte, em alguns precedentes, j reconheceu a admissibilidade da argio de descumprimento que tenha por objeto decises judiciais veiculadoras de comandos, resolues ou determinaes que possam afetar a integridade de preceitos fundamentais.

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Refiro-me, p. ex., ao julgamento plenrio da ADPF 33/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES, e da ADPF 144/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO:

(...) 5. Cabimento da argio de descumprimento de preceito fundamental (sob o prisma do art. 3, V, da Lei n 9.882/99) em virtude da existncia de inmeras decises do Tribunal de Justia do Par em sentido manifestamente oposto jurisprudncia pacificada desta Corte quanto vinculao de salrios a mltiplos do salrio mnimo. (...). (ADPF 33/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES grifei) (...) ARGIO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (...) ADMISSIBILIDADE DO AJUIZAMENTO DE ADPF CONTRA INTERPRETAO JUDICIAL DE QUE POSSA RESULTAR LESO A PRECEITO FUNDAMENTAL EXISTNCIA DE CONTROVRSIA RELEVANTE NA ESPCIE, AINDA QUE NECESSRIA SUA DEMONSTRAO APENAS NAS ARGIES DE DESCUMPRIMENTO DE CARTER INCIDENTAL. (...). (ADPF 144/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

IV. A admissibilidade da ADPF como viabilizador da interpretao conforme Constituio

instrumento

Cumpre analisar, agora, a preliminar de no conhecimento da presente argio Senhor de descumprimento da de preceito e fundamental, eminente

suscitada

pelo

Presidente

Repblica

pelo

Advogado-Geral da Unio, consistente na alegao de que a norma objeto da presente argio de descumprimento de preceito fundamental no ensejaria mltiplas possibilidades interpretativas, o que afastaria a pretenso de utilizao, na espcie, da tcnica da interpretao conforme Constituio.

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A douta Procuradoria-Geral da Repblica, ao pronunciar-se pela rejeio da preliminar em causa, assim fundamentou o seu

pronunciamento (fls. 691/694): 4. A primeira objeo que se faz contra essa concluso diz respeito pretendida univocidade de sentido do art. 287 do CP. 5. Primeiro, pela polissemia de toda e qualquer expresso. Wittgenstein um dos primeiros a dizer que as palavras no se apresentam tais quais etiquetas que se colam s coisas. De resto, esto todos suficientemente de acordo em que a presena de significado claro atesta a hegemonia, por assim dizer, de uma interpretao especfica, no a ausncia ou superfluidade da interpretao como tal. 6. Segundo, porque no h razoabilidade alguma em definir-se o sentido da norma a partir de sua estrita positividade/literalidade. Para o pensamento posterior a Kelsen, o problema da interpretao passou a ser o centro da prpria concepo do Direito: a chamada virada hermenutica da teoria jurdica. Rompe-se a dualidade direito/sociedade, texto/contexto: o direito texto como contexto social. Em cada ato interpretativo est presente o contexto com base no qual o intrprete faz os significados significarem. 7. Da por que hoje curial a convico de que o sentido de uma norma jamais est dado em definitivo e em absoluto. Toda regra, seja moral ou tica, se deposita na temporalidade e na experincia, o que requer o exerccio permanente do estabelecimento de seu sentido. 8. E, terceiro, porque, pragmaticamente, o dispositivo vem sendo acionado, ora para proibir, ora para permitir manifestaes pblicas em defesa da legalizao de drogas. A prpria inicial transcreve parte de deciso proferida pelo Juiz do IV Juizado Especial Criminal da Comarca do Rio de Janeiro, em favor da manifestao. H, portanto, desacordo judicial sobre o sentido do art. 287 do CP, razo mais do que suficiente a justificar a pretenso deduzida na presente ao.

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9. Mas h outra dificuldade adicional na posio assumida pelo Presidente da Repblica e decorre daquilo que a doutrina aponta como a fora invasiva e vinculante da principiologia constitucional. No primeiro caso, porque as Constituies modernas, atentas a que se destinam a sociedades plurais, com uma mirade de valores muitas das vezes conflitantes entre si, disciplinam numerosos aspectos substantivos, de tal modo que difcil encontrar um problema jurdico medianamente srio que carea de alguma relevncia constitucional. No segundo, porque esses princpios passam a ser vistos como autnticas normas jurdicas de eficcia direta e imediata, e no mais como valores programticos. 10. Em outras palavras, introduz-se uma dimenso substancial nas condies de validez das normas: a sua relao com a Constituio no apenas de natureza formal, mas tambm de contedo, fortemente marcado pela realizao dos direitos fundamentais. (...). ................................................... 11. De modo que no h dispositivo legal livre de ser confrontado com a Constituio e de ter o seu sentido estabelecido a partir dela. ................................................... 13. E, em relao interpretao conforme, sustentou que ela est longe de significar usurpao da atividade legislativa, uma vez que interpretao conforme modalidade de declarao de inconstitucionalidade sem reduo de texto; portanto, o caso de sentena ablativa e no aditiva. 14. Gilmar Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gonet Branco, em obra doutrinria, sequer veem dificuldade em que a Corte Constitucional profira deciso interpretativa com eficcia aditiva. Lembram, de resto, que h vrias decises desse Supremo Tribunal adotando a tcnica da declarao de inconstitucionalidade sem reduo de texto. 15. O caso presente em nada difere desses outros tantos, em que se explicita que um significado normativo inconstitucional sem que a expresso literal sofra qualquer alterao. 16. As consideraes at agora expendidas aplicam-se tambm, com suficincia, ao argumento da AGU, de que o art. 287 do CP apenas admite uma nica interpretao:

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quando o agente exalta a prtica de crime j ocorrido ou seu autor. 17. Acrescente-se ainda que, sob tal perspectiva, a discusso de todo desnecessria, na medida em que juzes vm invocando esse dispositivo para impedir a chamada marcha da maconha. Portanto, do a ele sentido diverso daquele sustentado pela AGU. (grifei)

Entendo assistir plena razo douta Procuradoria-Geral da Repblica, eis que o preceito normativo ora questionado tem

efetivamente merecido mltiplas interpretaes, revestindo-se, por tal razo, do necessrio contedo polissmico, consoante o

evidenciam as decises a que alude a eminente Procuradora-Geral da Repblica, em exerccio, em sua petio inicial, nas quais alguns magistrados e Tribunais, interpretando o art. 287 do Cdigo Penal, proibiram a realizao da denominada marcha da maconha, no

obstante tambm existam pronunciamentos judiciais que, favorveis, entendem que tal manifestao popular no transgride o preceito

legal referido.

Os unidades da

sucessivos como

episdios aqueles

registrados recentemente

em

diversas no

Federao,

ocorridos

Estado de So Paulo, constituem veemente atestao do quadro de graves conseqncias que as vrias abordagens hermenuticas do art. 287 do Cdigo Penal podem ocasionar, com srias e lesivas projees

sobre o natural exerccio dos direitos fundamentais de reunio e

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de

livre

manifestao por atos

do

pensamento, dos

cuja

incolumidade estatais

se

v no

atingida

repressivos

agentes

atuando

cumprimento e implementao de ordens emanadas do Poder Judicirio.

Esse quadro, bastante expressivo, mostra-se altamente revelador das dvidas e perplexidades causadas por interpretaes judiciais que se antagonizam em torno do alcance que se deve dar, luz dos grandes postulados constitucionais, ao art. 287 do Cdigo Penal, considerada, a prpria para tanto, de a constelao direitos axiolgica pela que Lei

qualifica

declarao

proclamada

Fundamental da Repblica.

movimentam os

nesse cidados

cenrio

de

incertezas em

exegticas de modo

que

se

preocupados

externar,

livre,

responsvel e conseqente, as convices que professam e que desejam transmitir coletividade, visando, com a pacfica utilizao dos espaos pblicos a todos acessveis, como as ruas, as praas e as avenidas, conquistar, pelo poder das idias, pela fora da persuaso e pela seduo das palavras, coraes e mentes, em ordem a promover atos de proselitismo para uma causa que se pretende legtima,

especialmente se se considerar que o regime democrtico, longe de impor uniformidade ao pensamento, estimula, numa perspectiva

pluralstica, a diversidade de opinies e assegura, a todos, sem

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distino de carter poltico, filosfico ou confessional, o direito de livremente externar suas posies, ainda que em franca oposio vontade de grupos majoritrios.

V-se, torno do art. 287

da, do

que

as

diversidades tornam

interpretativas a existncia

em de em

Cdigo

Penal

real

controvrsia relevante sobre o mencionado preceito legal.

texto normativo

que se contm

certo que, tratando-se de argio de descumprimento de preceito fundamental, o diploma legislativo que a rege somente torna exigvel a demonstrao da existncia de efetiva e relevante controvrsia de ordem jurdica (Lei n 9.882/99, art. 3, inciso V), quando se cuidar de ao de argio incidental a que se refere o pargrafo nico do art. 1 da Lei n 9.882/99.

Ainda que se tenha por imprescindvel, na argio de descumprimento, a necessria comprovao de controvrsia

constitucional relevante sobre o desrespeito a determinado preceito fundamental, como sustenta GILMAR FERREIRA MENDES, notadamente em relao quela de perfil incidental... (Argio de

Descumprimento de Preceito Fundamental, p. 105, item n. 1.1, 2007, Saraiva), o fato irrecusvel, no caso, que existe, como claramente

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resulta do prprio dissenso judicial a propsito da questo em exame, situao de litigiosidade que afeta e gravemente compromete a integridade das liberdades fundamentais de reunio e de expresso do pensamento, tudo a permitir que se reconhea a plena admissibilidade da ao constitucional ora ajuizada pela Procuradoria-Geral da

Repblica.

O fato de que a controvrsia constitucional relevante deriva das mltiplas expresses semiolgicas propiciadas pela regra legal em questo e comprovadas pelas diversas decises judiciais

conflitantes a propsito do art. 287 do Cdigo Penal permite reconhecer que se mostra plenamente adequado o emprego, ora preconizado pela douta Procuradoria-Geral da Repblica, da tcnica de deciso e de controle de constitucionalidade Constituio. fundada no mtodo da interpretao conforme

claro que a utilizao desse mtodo, para legitimar-se, supe que o ato estatal - porque revestido de contedo abrangente admita, como sucede na espcie, mltiplas interpretaes, algumas compatveis e outras inconciliveis com o texto da Constituio.

A objetivando

jurisprudncia que o

do ato

Supremo estatal,

Tribunal considerado

Federal, em sua

impedir

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literalidade, venha a ser afetado, quer pela concesso de medida cautelar, quer pela declarao de inconstitucionalidade, tem

utilizado o mtodo da interpretao conforme Constituio.

Trata-se, na realidade, de uma tcnica de deciso, que, sem implicar reduo do texto normativo quando este se revele

impregnado de contedo polissmico e plurissignificativo -, inibe e exclui interpretaes, que, por desconformes Constituio, conduzem a uma exegese divorciada do sentido autorizado pela Lei Fundamental.

Esse mtodo, portanto, preserva a interpretao que se revele compatvel com a Constituio, suspendendo, em conseqncia, variaes interpretativas conflitantes com a ordem constitucional.

V-se, conforme

desse -

modo,

que

o

mtodo em

da

interpretao de medida

Constituio

tambm

aplicvel

sede

cautelar nas aes diretas (RTJ 137/90, Rel. Min. MOREIRA ALVES RTJ 164/548, Rel. Min. SEPLVEDA PERTENCE RTJ 173/447-448, Rel. Min. CARLOS VELLOSO RTJ 173/778-779, Rel. Min. ILMAR GALVO ADI 1.556-MC/PE, Rel. Min. MOREIRA ALVES - ADI 1.668-MC/DF, Rel. Min. MARCO AURLIO - ADI 1.586-MC/PA, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, v.g.) -, mais do que fundamento doutrinrio para um do qualificado prprio processo de

exegtico,

traduz

elemento

viabilizador

controle

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constitucionalidade,

inclusive

na

esfera

mesma

da

fiscalizao

normativa abstrata (RTJ 126/48, Rel. Min. MOREIRA ALVES), ensejando a preservao da eficcia de atos estatais cujo contedo normativo, revestindo-se de sentido polissmico, admita, por isso mesmo,

mltiplas significaes que se revelem, algumas, compatveis com a Carta Poltica (sendo vlidas, portanto) e, outras, conflitantes com o que dispe a Lei Fundamental do Estado.

A utilizao da interpretao conforme Constituio, em sede de fiscalizao abstrata, vem sendo amplamente reconhecida pela doutrina (GILMAR FERREIRA MENDES, Jurisdio Constitucional, p. 316/326, item n. III, 4 ed., 2004, Saraiva; KARL LARENZ,

Metodologia da Cincia do Direito, p. 410/414, 2 ed., trad. de Jos Lamego, Fundao Calouste Gulbenkian; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II/232, item n. 57, 2 ed., 1988,

Coimbra Editora; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 235, 5 ed., 1991, Livraria Almedina, Coimbra; CELSO RIBEIRO

BASTOS, Curso de Direito Constitucional, p. 101/102, 11 ed., 1989, Saraiva; OSWALDO LUIZ PALU, Controle de Constitucionalidade:

Conceito, Sistemas e Efeitos, p. 188/189, item n. 9.8, 2 ed., 2001, RT; ZENO VELOSO, Controle Jurisdicional de Constitucionalidade, p. 169/175, itens ns. 189-198, 3 ed./2 tir., 2003, Del Rey; GUILHERME PEA DE MORAES, Direito Constitucional Teoria da Constituio,

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p. 122/123, item n. 3.3, 3 ed., 2006, Lumen Juris; CLMERSON MERLIN CLVE, A Fiscalizao Abstrata de Constitucionalidade no Direito

Brasileiro, p. 262/270, item n. 3.2.9, 2 ed., 2000, RT; NELSON NERY JUNIOR/ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, Constituio Federal Comentada e Legislao Constitucional, p. 560/563, 2006, RT, v.g.), valendo

referir, no ponto, no que concerne a um dos pressupostos bsicos dessa tcnica de deciso, as consideraes feitas por WALBER DE MOURA AGRA (Curso de Direito Constitucional, p. 569, item n. 28.17, 2 ed., 2007, Forense): Como condio para a interpretao conforme Constituio, deve existir mais de uma interpretao cabvel para a norma, compatvel com os dispositivos da Lei Maior. A opo escolhida ser aquela que permita uma sincronia mais intensa com as normas constitucionais. (grifei) Cabe ressaltar, por oportuno, a compreenso que UADI LAMMGO BULOS expe sobre a interpretao conforme Constituio (Curso de Direito Constitucional, p. 349/350, item n. 13, 2007, Saraiva), nela destacando ao lado de sua configurao como tcnica de controle de constitucionalidade a sua identificao como

critrio de exegese constitucional: Como critrio de exegese, a interpretao conforme visa preservar a norma, e no decretar a sua inconstitucionalidade, permitindo ao intrprete: - Realizar a vontade da Constituio. (...). - Escolher o melhor significado das leis ou atos normativos, em meio a tantos outros que eles

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possam apresentar. Assim, no equacionamento de problemas jurdico-constitucionais, resta ao intrprete recorrer teoria da divisibilidade da norma. (...) Evidente que isso s pode ser feito em preceitos que abriguem mltiplos significados (normas polissmicas), aceitando vrias interpretaes. Caso a norma tenha sentido unvoco, no h opes de escolha. Resultado: ou ela totalmente constitucional, ou inconstitucional. (...). - Harmonizar as leis ou os atos normativos Constituio, elegendo uma linha interpretativa que melhor se amolde a ela. (...). Excluir exegeses que contrariem a Constituio, chegando a um nico sentido interpretativo, o qual legitima determinada leitura da norma legal. (...). Buscar o sentido profundo das normas constitucionais, eliminando interpretaes superficiais, resultantes de leituras apressadas e sem reflexo mais demorada. Ao determinar qual das possveis exegeses de uma lei se mostra compatvel com a Carta Maior, a interpretao conforme evita que se declare a inconstitucionalidade normativa. Em vez de nulificar o ato supostamente inconstitucional, procura salv-lo, mediante a descoberta de uma alternativa que legitime o contedo da norma, reputada, num exame alijeirado, contrria Constituio. Por isso, a grande importncia do instituto est em discernir a zona limtrofe da inconstitucionalidade. Muitas vezes, a fora conformadora da interpretao o bastante para eliminar situaes aparentemente inconstitucionais. Da a justificativa da interpretao conforme: extrair, ao mximo, as potencialidades das leis e atos normativos, prestigiando, assim, os princpios da economia processual, da supremacia da Constituio, da unidade do ordenamento jurdico e da presuno de constitucionalidade das leis. (grifei) Esse entendimento importante acentuar nada mais reflete seno a prpria orientao jurisprudencial que esta Suprema

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Corte firmou no tema ora em exame, como reconhecido em precedente consubstanciado, no ponto, em acrdo assim ementado: (...) - Impossibilidade, na espcie, de se dar interpretao conforme a Constituio, pois essa tcnica s utilizvel quando a norma impugnada admite, dentre as vrias interpretaes possveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e no quando o sentido da norma unvoco, como sucede no caso presente. (...). (ADI 1.344-MC/ES, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno grifei)

Em conforme

suma:

no no

custa pode

advertir resultar

que de

a mero

interpretao arbtrio do

Constituio

Supremo Tribunal Federal, pois a utilizao dessa tcnica de deciso pressupe, sempre, a existncia de pluralidades interpretativas

ensejadas pelo ato estatal, de tal modo que se impe, como requisito imprescindvel utilizao a dessa de tcnica mltiplas de controle de da

constitucionalidade,

ocorrncia

interpretaes

norma objeto da argio de descumprimento.

Sendo assim, e em face das razes expostas, rejeito a questo preliminar suscitada nesta causa e conheo, em conseqncia, da presente argio de descumprimento de preceito fundamental.

o meu voto.

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