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1.O problema e a abordagem O estudo do pensamento e da linguagem é uma das áreas da psicologia em que é particularmente importante ter-se uma clara compreensão das relações interfuncionais. Enquanto não compreendermos a inter-relação de pensamento e palavra, não poderemos responder, e nem mesmo colocar corretamente, qualquer uma das questões mais específicas desta área. Por es- tranho que pareça, a psicologia nunca investigou essa relação de maneira sistemática e detalhada. As relações interfuncionais em geral não receberam, até agora, a atenção que merecem. Os métodos de análise atomísticos e funcionais, predominantes na última década, trataram os processos psíquicos isoladamente. Métodos de pesquisa foram desenvolvidos e aperfeiçoados com a finalidade de estudar funções isoladas, enquanto sua interde- pendência e sua organização na estrutura da consciência como um todo permaneceram fora do campo de investigação. A unidade da consciência e a inter-relação de todas as fun- ções psicológicas tiveram, na verdade, aceitação unânime; admi- tia-se que as funções unitárias operavam inseparavelmente, em conexão ininterrupta uma com a outra. Mas, na psicologia an- tiga, a premissa incontestável da unidade combinava-se com uma série de pressupostos tácitos que a invalidavam para todos os propósitos de ordem prática. Era ponto pacífico que a rela-

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1.O problema e a abordagem

O estudo do pensamento e da linguagem é uma das áreasda psicologia em que é particularmente importante ter-se umaclara compreensão das relações interfuncionais. Enquanto nãocompreendermos a inter-relação de pensamento e palavra, nãopoderemos responder, e nem mesmo colocar corretamente,qualquer uma das questões mais específicas desta área. Por es-tranho que pareça, a psicologia nunca investigou essa relaçãode maneira sistemática e detalhada. As relações interfuncionaisem geral não receberam, até agora, a atenção que merecem. Osmétodos de análise atomísticos e funcionais, predominantes naúltima década, trataram os processos psíquicos isoladamente.Métodos de pesquisa foram desenvolvidos e aperfeiçoados coma finalidade de estudar funções isoladas, enquanto sua interde-pendência e sua organização na estrutura da consciência comoum todo permaneceram fora do campo de investigação.

A unidade da consciência e a inter-relação de todas as fun-ções psicológicas tiveram, na verdade, aceitação unânime; admi-tia-se que as funções unitárias operavam inseparavelmente, emconexão ininterrupta uma com a outra. Mas, na psicologia an-tiga, a premissa incontestável da unidade combinava-se comuma série de pressupostos tácitos que a invalidavam para todosos propósitos de ordem prática. Era ponto pacífico que a rela-

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ção entre duas funções determinadas nunca variava; que a per-cepção, por exemplo, estava sempre ligada de maneira idênticaà atenção, a memória à percepção, o pensamento à memória.Como constantes, essas relações podiam ser, e eram, reduzidasa um fator comum e ignoradas no estudo das funções isoladas.Uma vez que essas relações continuavam a não ter importância,considerava-se o desenvolvimento da consciência como sendodeterminado pelo desenvolvimento autônomo das funções iso-ladas. No entanto, tudo o que se sabe sobre o desenvolvimentopsíquico indica que a sua essência mesma está nas mudançasque ocorrem na estrutura interfuncional da consciência. A psi-cologia deve fazer dessas relações e de suas variações ao longodo desenvolvimento o problema central, o foco de estudo, emvez de simplesmente postular a inter-relação geral de todas asfunções. Essa mudança de abordagem torna-se imperativa parao estudo produtivo da linguagem e do pensamento.

O exame dos resultados das investigações anteriores sobreo pensamento e a linguagem mostrará que, desde a Antigüida-de até hoje, todas as teorias oscilam entre a identificação, oufusão, do pensamento e da fala, por um lado, e sua disjunção esegregação igualmente absolutas, quase metafísicas, por ou-tro. Seja expressando um desses extremos em sua forma pura,seja combinando-os, isto é, assumindo uma posição interme-diária - mas sempre em algum ponto ao longo do eixo que uneos dois pólos - todas as diferentes teorias sobre o pensamentoe a linguagem ficam restritas a esse círculo.

Podemos rastrear a idéia de identidade entre pensamento efala desde as especulações dos psicolingüistas, no sentido deque o pensamento é "fala menos som", até as teorias dos mo-dernos psicólogos e reflexologistas norte-americanos, que con-sideram o pensamento como um reflexo inibido em seu ele-mento motor. Em todas essas teorias a questão da relação entrepensamento e fala perde o significado. Se são uma única emesma coisa, nenhuma relação pode haver entre eles. Aquelesque identificam o pensamento com a fala, simplesmente vol-

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tam as costas ao problema. À primeira vista, os partidários daopinião oposta parecem estar em melhor posição. Ao conside-rarem a fala como a manifestação externa, o mero invólucro,do pensamento, e ao tentarem (como faz a escola de Würz-burg) libertar o pensamento de todos os componentes senso-riais, inclusive as palavras, não apenas colocam o problema darelação entre as duas funções, mas também, a seu modo, ten-tam resolvê-lo. Na verdade, entretanto, são incapazes de colo-cá-lo de uma maneira que permita uma solução real. Conside-rando o pensamento e a fala independentes e "puros", e estu-dando cada um separadamente, são forçados a ver a relaçãoentre ambos como uma mera conexão mecânica e externa en-tre dois processos distintos. A análise do pensamento verbal emdois elementos separados e basicamente diferentes impedequalquer estudo das relações intrínsecas entre a linguagem e opensamento.

Assim, o erro está nos métodos de análise adotados pelospesquisadores anteriores. Para uma abordagem bem-sucedidado problema das relações entre o pensamento e a linguagem,devemos, antes de tudo, perguntar a nós mesmos qual método deanálise apresenta maior probabilidade de assegurar sua solução.

Dois métodos de análise essencialmente diferentes são pos-síveis no estudo das estruturas psicológicas. Parece-nos que umdeles é responsável por todos os fracassos dos primeiros pesqui-sadores que investigaram o velho problema, do qual trataremosa seguir, e que o outro é o único modo correto de abordá-lo.

O primeiro método analisa os todos psicológicos comple-xos em elementos componentes. Pode-se compará-lo à análisequímica da água em hidrogênio e oxigênio, sendo que nenhumdeles apresenta as propriedades do todo, e cada um tem pro-priedades que não estão presentes no todo. O estudante queutilizar este método para tentar explicar alguma propriedadeda água - por que ela apaga o fogo, por exemplo - descobrirá,com surpresa, que o hidrogênio queima e que o oxigênio ali-menta o fogo. Essas descobertas não o ajudarão muito a solu-

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cionar o problema. A psicologia encontra-se no mesmo becosem saída quando analisa o pensamento verbal em seus com-ponentes, o pensamento e a palavra, e os estuda isoladamente.No decorrer da análise, as propriedades originais do pensa-mento verbal desaparecem. Ao pesquisador resta apenas tentardescobrir a interação mecânica dos dois elementos, na espe-rança de reconstruir, de modo puramente especulativo, as pro-priedades desaparecidas do todo.

Esse tipo de análise desloca o problema para um nívelmais geral; não proporciona uma base adequada para o estudodas relações concretas e multiformes entre o pensamento e alinguagem, surgidas no decorrer do desenvolvimento e do fun-cionamento do pensamento verbal em seus diversos aspectos.Em vez de nos proporcionar condições para examinar e expli-car exemplos e fases específicas, e determinar regularidadesconcretas no decorrer dos acontecimentos, esse método leva ageneralidades relativas a toda fala e todo pensamento. Além domais, faz-nos incorrer em sérios erros, na medida em que igno-ramos a natureza unitária do processo em estudo. A união vivade som e significado a que chamamos palavra é fragmentadaem duas partes que, supostamente, mantêm-se unidas apenaspelas conexões associativas mecânicas.

O ponto de vista de que som e significado, nas palavras,são elementos separados e com vidas separadas, tem sido mui-to prejudicial para o estudo tanto dos aspectos fonéticos quantodos aspectos semânticos da linguagem. O estudo mais abran-gente dos sons de fala apenas como sons, desvinculados de suaconexão com o pensamento, tem pouco a ver com sua funçãode fala humana, uma vez que não aborda as propriedades físi-cas e psicológicas peculiares à fala, mas somente as proprieda-des comuns a todos os sons existentes na natureza. Do mesmomodo, o significado dissociado dos sons da fala só pode serestudado como um ato puro de pensamento, transformando-see desenvolvendo-se independentemente de seu veículo mate-rial. Essa separação entre o som e o significado é responsável,

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em grande parte, pela esterilidade da fonética e da semânticaclássicas. Da mesma forma, na psicologia infantil, os aspectosfonético e semântico do desenvolvimento da fala têm sidoestudados separadamente. Embora o desenvolvimento fonéti-co esteja sendo estudado de modo muito detalhado, todos osdados acumulados pouco contribuem para a nossa compreen-são do desenvolvimento lingüístico como tal, e permanecemessencialmente desvinculados das descobertas relativas aodesenvolvimento do pensamento.

Em nossa opinião, o caminho é usar o outro tipo de análi-se, que pode ser chamado de análise em unidades.

Com o termo unidade queremos nos referir a um produtode análise que, ao contrário dos elementos, conserva todas aspropriedades básicas do todo, não podendo ser dividido semque as perca. A chave para a compreensão das propriedades daágua são as suas moléculas e seu comportamento, e não seuselementos químicos. A verdadeira unidade da análise biológi-ca é a célula viva, que possui as propriedades básicas do orga-nismo vivo.

Qual é a unidade do pensamento verbal que satisfaz essesrequisitos? Acreditamos poder encontrá-la no aspecto intrínse-co da palavra, no significado da palavra. Até o momento, pou-cas pesquisas sobre esse aspecto intrínseco da fala foram reali-zadas, e a psicologia tem pouco a nos dizer sobre o significadoda palavra que não se aplique, do mesmo modo, a outras ima-gens e atos do pensamento. A natureza do significado como talnão é clara. No entanto, é no significado da palavra que o pen-samento e a fala se unem em pensamento verbal. É no signifi-cado, então, que podemos encontrar as respostas às nossasquestões sobre a relação entre o pensamento e a fala.

A nossa pesquisa experimental, assim como a análise teó-rica, sugere que tanto a Gestalt quanto a psicologia associacio-nista vêm seguindo direções erradas na sua busca da naturezaintrínseca do significado da palavra. Uma palavra não se referea um objeto isolado, mas a um grupo ou classe de objetos; por-

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tanto, cada palavra já é uma generalização. A generalização éum ato verbal do pensamento e reflete a realidade de modobem diverso daquele da sensação e da percepção. Essa diferen-ça está implícita na proposição segundo a qual há um salto dia-lético não apenas entre a total ausência da consciência (namatéria inanimada) e a sensação, mas também entre a sensaçãoe o pensamento. Tudo leva a crer que a distinção qualitativaentre a sensação e o pensamento seja a presença, nesse último,de um reflexo generalizado da realidade, que é também a es-sência do significado da palavra; e, conseqüentemente, que osignificado é um ato de pensamento, no sentido pleno dotermo. Mas, ao mesmo tempo, o significado é parte inalienávelda palavra como tal, e dessa forma pertence tanto ao domínioda linguagem quanto ao domínio do pensamento. Uma palavrasem significado é um som vazio, que não mais faz parte da falahumana. Uma vez que o significado da palavra é simultanea-mente pensamento e fala, é nele que encontramos a unidade dopensamento verbal que procuramos. Então, fica claro que o mé-todo a seguir em nossa exploração da natureza do pensamentoverbal é a análise semântica - o estudo do desenvolvimento, dofuncionamento e da estrutura dessas unidades, em que pensa-mento e fala estão inter-relacionados.

Esse método combina as vantagens da análise e da síntese,e permite o estudo adequado dos todos complexos. A título deilustração, consideremos ainda um outro aspecto de nossoobjeto de estudo, que também foi amplamente negligenciadono passado. A função primordial da fala é a comunicação, ointercâmbio social. Quando o estudo da linguagem se baseavana análise em elementos, também essa função foi dissociadada função intelectual da fala. Ambas foram tratadas como fun-ções separadas, até mesmo paralelas, sem se considerar a inter-relação de sua estrutura e desenvolvimento. No entanto, o sig-nificado da palavra é uma unidade de ambas as funções dafala. O fato de que o entendimento entre as mentes é impossí-vel sem alguma expressão mediadora, é um axioma da psicolo-

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gia científica. Na ausência de um sistema de signos, lingüísti-cos ou não, somente o tipo de comunicação mais primitivo elimitado torna-se possível. A comunicação por meio de movi-mentos expressivos, observada principalmente entre os animais,é mais uma efusão afetiva do que comunicação. Um ganso ame-drontado, pressentindo subitamente algum perigo, ao alertar obando inteiro com seus gritos não está informando aos outrosaquilo que viu, mas antes contagiando-os com seu medo.

A transmissão racional e intencional de experiência e pen-samento a outros requer um sistema mediador, cujo protótipo éa fala humana, oriunda da necessidade de intercâmbio durante otrabalho. De acordo com a tendência dominante, até recentemen-te a psicologia tratou o assunto de um modo demasiadamentesimplificado. Partiu-se da hipótese de que o meio de comunica-ção era o signo (a palavra ou o som); que, por meio de uma ocor-rência simultânea, um som podia associar-se ao conteúdo dequalquer experiência, servindo então para transmitir o mesmoconteúdo a outros seres humanos.

No entanto, um estudo mais profundo do desenvolvimen-to da compreensão e da comunicação na infância levou à con-clusão de que a verdadeira comunicação requer significado -isto é, generalização -, tanto quanto signos. De acordo com adescrição perspicaz de Edward Sapir, o mundo da experiênciaprecisa ser extremamente simplificado e generalizado antesque possa ser traduzido em símbolos. Somente assim a comu-nicação torna-se, de fato, possível, pois a experiência do indi-víduo encontra-se apenas em sua própria consciência e é, estri-tamente falando, não comunicável. Para se tornar comunicá-vel, deve ser incluída numa determinada categoria que, porconvenção tácita, a sociedade humana considera uma unidade.

Assim, a verdadeira comunicação humana pressupõe umaatitude generalizante, que constitui um estágio avançado dodesenvolvimento do significado da palavra. As formas maiselevadas da comunicação humana somente são possíveis por-que o pensamento do homem reflete uma realidade conceitua-

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lizada. É por isso que certos pensamentos não podem sercomunicados às crianças, mesmo que elas estejam familiariza-das com as palavras necessárias. Pode ainda estar faltando oconceito adequadamente generalizado que, por si só, assegurao pleno entendimento. Em seus trabalhos sobre educação, Tols-toi afirma que a dificuldade que as crianças freqüentementeapresentam de aprender uma palavra nova é devida ao conceitoa que a palavra se refere, e não ao seu som. Uma vez que o con-ceito esteja amadurecido, haverá quase sempre uma palavradisponível.

A concepção do significado da palavra como uma unidadetanto do pensamento generalizante quanto do intercâmbiosocial é de valor inestimável para o estudo do pensamento e dalinguagem, pois permite uma verdadeira análise genético-cau-sal, o estudo sistemático das relações entre o desenvolvimento dacapacidade de pensar da criança e o seu desenvolvimento so-cial. A inter-relação da generalização e da comunicação pode serconsiderada um foco secundário do nosso estudo.

Talvez seja conveniente mencionar aqui alguns dos pro-blemas da área da linguagem que não foram especificamenteexplorados em nossos estudos. O mais importante de todos é arelação entre o aspecto fonético da fala e o significado. Acre-ditamos que os últimos e importantes avanços na área da lin-güística devem-se, em grande parte, às alterações no métodode análise empregado no estudo da fala. A lingüística tradicio-nal, que considera o som como um elemento independente dafala, usava o som isolado como unidade de análise. Conseqüen-temente, centrava-se na fisiologia e na acústica, mais do que napsicologia da fala. A lingüística moderna utiliza o fonema, amenor unidade fonética indivisível que afeta o significado,característica, portanto, da fala humana, enquanto distinta deoutros sons. Sua introdução como unidade de análise trouxebenefícios tanto para a psicologia quanto para a lingüística. Asvantagens concretas obtidas pela aplicação desse método pro-vam decisivamente o seu valor. Esse método é essencialmente

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idêntico ao método de análise utilizado em nossa própria in-vestigação, que se baseia em unidades, enquanto distintas doselementos.

A fertilidade de nosso método pode ser demonstrada tam-bém em outras questões concernentes às relações entre as fun-ções, ou entre a consciência como um todo e suas partes. Umabreve referência a pelo menos uma dessas questões indicará adireção que nossos estudos futuros poderão tomar, e demons-trará a importância do presente estudo. Referimo-nos à relaçãoentre intelecto e afeto. A sua separação enquanto objetos deestudo é uma das principais deficiências da psicologia tradi-cional, uma vez que esta apresenta o processo de pensamentocomo um fluxo autônomo de "pensamentos que pensam a sipróprios", dissociado da plenitude da vida, das necessidades edos interesses pessoais, das inclinações e dos impulsos daque-le que pensa. Esse pensamento dissociado deve ser considera-do tanto um epifenômeno sem significado, incapaz de modifi-car qualquer coisa na vida ou na conduta de uma pessoa, comoalguma espécie de força primeva a exercer influência sobre avida pessoal, de um modo misterioso e inexplicável. Assim,fecham-se as portas à questão da causa e origem de nossospensamentos, uma vez que a análise determinista exigiria oesclarecimento das forças motrizes que dirigem o pensamentopara esse ou aquele canal. Justamente por isso, a antiga abor-dagem impede qualquer estudo fecundo do processo inverso,ou seja, a influência do pensamento sobre o afeto e a volição.

A análise em unidades indica o caminho para a soluçãodesses problemas de importância vital. Demonstra a existênciade um sistema dinâmico de significados em que o afetivo e ointelectual se unem. Mostra que cada idéia contém uma atitudeafetiva transmutada com relação ao fragmento de realidade aoqual se refere. Permite-nos ainda seguir a trajetória que vai dasnecessidades e impulsos de uma pessoa até a direção específi-ca tomada por seus pensamentos, e o caminho inverso, a partirde seus pensamentos até o seu comportamento e a sua ativida-

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de. Esse exemplo deveria ser suficiente para mostrar que ométodo utilizado neste estudo do pensamento e da linguagem étambém um instrumento promissor para investigar a relaçãodo pensamento verbal com a consciência como um todo e comas suas outras funções essenciais.

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2. A teoria de Piaget sobre a linguageme o pensamento das crianças1

I

A psicologia deve muito a Jean Piaget. Não é exagero afir-mar que ele revolucionou o estudo da linguagem e do pensa-mento das crianças. Piaget desenvolveu o método clínico deinvestigação das idéias infantis, que vem sendo amplamenteutilizado desde a sua criação. Foi o primeiro pesquisador a estu-dar sistematicamente a percepção e a lógica infantis; além domais, trouxe para o seu objeto de estudo uma nova abordagem,de amplitude e ousadia incomuns. Em vez de enumerar as defi-ciências do raciocínio infantil, em comparação com o dos adul-tos, Piaget concentrou-se nas características distintivas do pen-samento das crianças, naquilo que elas têm, e não naquilo quelhes falta. Por meio dessa abordagem positiva, demonstrou quea diferença entre o pensamento infantil e o pensamento adultoera mais qualitativa do que quantitativa.

7. Este capítulo é uma versão abreviada do prefácio escrito por Vi-gotski para a edição russa dos dois primeiros livros de Piaget (Gosizdat,Moscou, 1932). A crítica de Vigotski, baseada nas primeiras obras de Piaget,pouco se aplica às formulações posteriores de Piaget no que diz respeito àssuas teorias. (Nota da edição inglesa.)

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Como muitas outras grandes descobertas, a idéia de Pia-get é tão simples que parece óbvia. Já havia sido expressa naspalavras de Rousseau, citadas pelo próprio Piaget, no sentidode que uma criança não é um adulto em miniatura, assim comoa sua mente não é a mente de um adulto em escala menor. Portrás dessa verdade, para a qual Piaget forneceu provas experi-mentais, encontra-se outra idéia, também simples - a idéia deevolução, que projeta um brilho incomum sobre todos os estu-dos de Piaget.

No entanto, a despeito de toda a sua grandeza, a obra dePiaget sofre da dualidade comum a todas as obras pioneiras dapsicologia contemporânea. Essa cisão coincide com a crise quea psicologia está atravessando, à medida que se transformanuma ciência, no verdadeiro sentido da palavra. A crise é de-corrente da aguda contradição entre a matéria factual da ciên-cia e suas premissas metodológicas e teóricas, que há muitosão objeto de disputa entre as concepções materialista e idea-lista do mundo. A luta é talvez mais acirrada na psicologia doque em qualquer outra disciplina.

Enquanto não dispusermos de um sistema unanimementeaceito, que incorpore todo o conhecimento psicológico existen-te, qualquer descoberta factual importante levará à criação deuma nova teoria que se ajuste aos fatos recentemente observa-dos. Tanto Freud quanto Levy-Bruhl e Blondel criaram os seuspróprios sistemas individuais de psicologia. A dualidade predo-minante reflete-se na incompatibilidade entre essas estruturasteóricas, com seus tons metafísicos e idealistas, e as bases empí-ricas sobre as quais se edificaram. A cada dia, grandes descober-tas são feitas na psicologia moderna, mas logo acabam sendoencobertas por teorias ad hoc pré-científicas e semimetafísicas.

Piaget tenta escapar dessa dualidade inevitável atendo-seaos fatos. Evita deliberadamente as generalizações, mesmo emseu próprio campo, e toma um cuidado especial para não res-valar para os domínios correlatos da lógica, da teoria do co-nhecimento ou da história da filosofia. O empirismo puro

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parece ser, para ele, o único terreno seguro. O seu livro, eleescreve, é

antes de mais nada, e acima de tudo, uma compilação de fatos edocumentos. Os elos que unem os vários capítulos são aqueles queum método único pode propiciar a diversas descobertas - de ma-neira nenhuma os de uma exposição sistemática [29, p. 11].

Na verdade, o seu ponto forte é revelar fatos novos, anali-sá-los exaustivamente e classificá-los - a capacidade de escu-tar a mensagem deles, no dizer de Claparède. Das páginas dePiaget, cai sobre a psicologia infantil uma avalanche de fatosgrandes e pequenos, que desvendam novas perspectivas ouvêm somar-se ao conhecimento anterior. Seu método clínicorevela-se um instrumento realmente valioso para o estudo dostodos estruturais complexos do pensamento infantil em suastransformações evolutivas. Esse método unifica as suas diver-sas investigações e nos proporciona um quadro vivo, coerentee pormenorizado do pensamento infantil.

Os novos fatos e o novo método conduzem a muitos pro-blemas, alguns dos quais totalmente novos para a psicologiacientífica, ao passo que outros surgem sob uma nova luz. Osproblemas deram origem a teorias, apesar da determinação dePiaget em evitá-las, ao limitar-se estritamente aos fatos experi-mentais e ao excluir, de momento, a possibilidade de que ashipóteses influenciassem a própria escolha das experiências.Mas os fatos são sempre examinados à luz de alguma teoria, enão podem, portanto, ser totalmente desvinculados da filoso-fia. Isso é particularmente verdadeiro para os fatos relativos aopensamento. Para encontrar a chave do rico depósito de dadosde Piaget, temos primeiro que explorar a filosofia que está portrás de sua busca dos fatos - e por trás da sua interpretação,que só é apresentada no final de seu segundo livro [30], numresumo de seu conteúdo.

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Ao abordar essa tarefa, Piaget levanta a questão da inter-relação objetiva de todos os traços característicos do pensa-mento infantil por ele observados. Serão esses traços fortuitose independentes, ou constituem um todo ordenado, com umalógica própria, ao redor de um fato unificador central? Piagetacredita na segunda hipótese. Ao responder à questão, elepassa dos fatos à teoria, e incidentalmente mostra o quanto asua análise dos fatos foi influenciada pela teoria, muito embo-ra, em sua apresentação, a teoria viesse depois dos fatos.

Segundo Piaget, o elo de ligação de todas as característi-cas específicas da lógica das crianças é o egocentrismo do pen-samento infantil. A esse traço central relaciona todos os outrosque descobriu, tais como o realismo intelectual, o sincretismoe a dificuldade de compreender as relações. Ele descreve oegocentrismo como ocupando uma posição genética, estrutu-ral e funcionalmente intermediária entre o pensamento autísti-co e o pensamento dirigido.

A idéia de polaridade do pensamento dirigido e não-dirigi-do é tomada de empréstimo à teoria psicanalítica. Diz Piaget:

O pensamento dirigido é consciente, isto é, persegue objeti-vos que estão presentes na mente daquele que pensa. É inteligen-te, isto é, encontra-se adaptado à realidade e luta para influenciá-la. É suscetível de verdade e erro (...) e pode ser comunicado pormeio da linguagem. O pensamento autístico é subconsciente, istoé, os objetivos que persegue e os problemas que coloca a simesmo não estão presentes na consciência. Não está adaptado àrealidade externa, mas cria para si mesmo uma realidade de ima-ginação ou de sonhos. Tende a gratificar desejos, e não a estabele-cer verdades, e permanece estritamente individual e incomunicá-vel como tal por meio da linguagem, uma vez que opera basica-mente em imagens e, para ser comunicado, precisa recorrer amétodos indiretos, evocando, por meio de símbolos e de mitos, ossentimentos que o guiam [29, pp. 59-60].

O pensamento dirigido é social. À medida que se desen-volve, vai sendo cada vez mais influenciado pelas leis da expe-

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riência e da lógica propriamente dita. O pensamento autístico,ao contrário, é individualista e obedece a um conjunto de leispróprias especiais.

Entre essas duas formas contrastantes de pensamento

há muitas variedades quanto ao seu grau de comunicabilidade.Essas variedades intermediárias devem obedecer a uma lógicaespecial, intermediária também entre a lógica do autismo e a ló-gica da inteligência. Propomos dar o nome de pensamento ego-cêntrico à principal dessas formas intermediárias [29, p. 62].

Embora a sua função principal continue sendo a satisfaçãodas necessidades pessoais, já inclui algumas adaptações men-tais, um pouco da orientação para a realidade característica dopensamento dos adultos. O pensamento egocêntrico da criança"fica a meio caminho entre o autismo, no sentido estrito dapalavra, e o pensamento socializado" [30, p. 276].

É importante observar que, ao longo de toda sua obra,Piaget enfatiza mais os traços comuns entre o pensamento ego-cêntrico e o autismo, do que os traços que os distinguem. Noresumo ao final de seu livro, afirma enfaticamente: "Acima detudo, o brinquedo é a lei suprema do pensamento egocêntrico"[30, p. 323]. Essa mesma tendência é especialmente marcantequando ele aborda o sincretismo, embora observe que o meca-nismo do pensamento sincrético representa uma transição dalógica dos sonhos para a lógica do pensamento.

Piaget afirma que o egocentrismo situa-se entre o autismoextremo e a lógica da razão, tanto cronologicamente como es-trutural e funcionalmente. Sua concepção do desenvolvimentodo pensamento baseia-se na premissa, extraída da psicanálise,de que o pensamento infantil é original e naturalmente autísti-co, só se transformando em pensamento realista sob uma longae persistente pressão social. Piaget afirma que isso não desva-loriza a inteligência da criança. "A atividade lógica não é tudoo que existe para a inteligência" [30, p. 267]. A imaginação é

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importante para se descobrir a solução de problemas, mas nãose preocupa com a verificação e a comprovação que a busca daverdade pressupõe. A necessidade de verificar nosso pensa-mento - isto é, a necessidade de atividade lógica - surge maistarde. Essa demora é de se esperar, diz Piaget, uma vez que opensamento serve primeiro à satisfação imediata, muito antesde procurar a verdade; a forma mais espontânea de pensamen-to é o brinquedo ou imaginação mágica, que faz com que odesejável pareça possível de ser obtido. Até os sete ou oitoanos, o brinquedo predomina de forma tão absoluta no pensa-mento infantil, que se torna muito difícil separar a invençãodeliberada da fantasia que a criança acredita ser verdadeira.

Em resumo, o autismo é visto como a forma original e maisprimitiva do pensamento; a lógica aparece relativamente maistarde, e o pensamento egocêntrico é o elo genético entre ambos.

Embora Piaget nunca tenha apresentado essa concepçãode uma forma coerente e sistemática, ela é a pedra angular detodo o seu edifício teórico. Ele afirma mais de uma vez que opressuposto da natureza intermediária do pensamento infantilé hipotético, mas também diz que essa hipótese está tão próxi-ma do bom senso, que lhe parece pouco menos discutível doque o próprio fato do egocentrismo infantil. Segue a evoluçãodo egocentrismo até a natureza da atividade prática da criançae o desenvolvimento posterior das atitudes sociais.

É claro que, do ponto de vista genético, deve-se partir da ativi-dade da criança para compreender o seu pensamento; e essa ati-vidade é indiscutivelmente egocêntrica e egotista. O instintosocial, em sua forma bem definida, só se desenvolve mais tarde.O primeiro período crítico a este respeito ocorre por volta dossete ou oito anos de idade [30, p. 176].

Antes dessa idade, Piaget tende a ver o egocentrismo comouma caraterística totalmente dominante. Considera direta ou in-diretamente egocêntricos todos os fenômenos da lógica infantil,

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em sua pródiga variedade. A respeito do sincretismo, umaimportante expressão do egocentrismo, diz claramente que per-meia todo o pensamento da criança, tanto na esfera verbal quan-to na perceptual. Depois dos sete ou oito anos, quando o pensa-mento socializado começa a tomar forma, as características ego-cêntricas não desaparecem repentinamente. Desaparecem dasoperações perceptuais da criança, mas continuam cristalizadasna área mais abstrata do pensamento puramente verbal.

A sua concepção do predomínio do egocentrismo na in-fância leva-o a concluir que o egocentrismo do pensamentoestá tão intimamente relacionado com a natureza psíquica dacriança, que é impenetrável à experiência. As influências àsquais os adultos submetem a criança

não ficam gravadas na mente desta como se se tratasse de umachapa fotográfica: são "assimiladas", isto é, deformadas pelo servivo a elas submetido, e fixam-se em sua própria substância. Éessa substância psicológica da criança, ou, em outras palavras, aestrutura e o funcionamento peculiares ao pensamento infantil,que tentamos descrever e, em certa medida, explicar [50, p. 338].

Esse trecho sintetiza a natureza dos pressupostos básicosde Piaget e leva-nos à questão geral das uniformidades sociaise biológicas do desenvolvimento psíquico, à qual voltaremosna Seção III. Em primeiro lugar, examinenos a solidez da con-cepção de Piaget sobre o egocentrismo infantil à luz dos fatosem que se baseia.

II

Uma vez que a concepção de Piaget sobre o egocentrismoda criança é de importância fundamental em sua teoria, temosque examinar quais fatos o levaram não apenas a aceitá-la comohipótese, mas também a depositar nela tanta confiança. Em

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seguida, colocaremos esses fatos à prova, comparando-os comos resultados obtidos em nossas próprias experiências [46,47].

A base factual da crença de Piaget é fornecida pelas pes-quisas que realizou quanto ao uso da linguagem pelas crianças.Suas observações sistemáticas levaram-no à conclusão de quetodas as conversas das crianças podem ser divididas e classifi-cadas em dois grupos: o egocêntrico e o socializado. A dife-rença entre ambos decorre basicamente de suas funções. Nafala egocêntrica, a criança fala apenas de si própria, sem inte-resse pelo seu interlocutor; não tenta comunicar-se, não esperaresposta e, freqüentemente, nem sequer se preocupa em saberse alguém a ouve. É uma fala semelhante a um monólogo emuma peça de teatro: a criança está pensando em voz alta, fazen-do um comentário simultâneo ao que quer que esteja fazendo.Na fala socializada, ela tenta estabelecer uma espécie decomunicação com os outros - pede, ordena, ameaça, transmiteinformações, faz perguntas.

As experiências de Piaget mostraram que a maior partedas conversas de crianças em idade pré-escolar é egocêntrica.Ele chegou à conclusão de que 44 a 47 por cento do númerototal das conversas de crianças de sete anos era de naturezaegocêntrica. No caso das crianças mais novas, diz Piaget, essenúmero deve ser consideravelmente mais elevado. Investiga-ções posteriores, com crianças de seis e sete anos, comprova-ram que, nessa idade, nem mesmo a fala socializada está total-mente livre de pensamento egocêntrico. E mais, além dos pen-samentos que expressa, a criança guarda para si muitos outrospensamentos. Alguns desses pensamentos, segundo Piaget,não são expressos exatamente por serem egocêntricos, isto é,incomunicáveis. Para transmiti-los aos outros, a criança preci-saria ser capaz de adotar os seus pontos de vista. "Poder-se-iadizer que um adulto pensa socialmente mesmo quando está só,enquanto uma criança com menos de sete anos pensa e falaegocentricamente mesmo quando está em companhia de ou-tras pessoas" [29, p. 56]. Desse modo, o coeficiente de pensa-

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mento egocêntrico deve ser muito mais elevado do que o coefi-ciente de fala egocêntrica. Mas são os dados sobre a fala - quepode ser medida - que nos fornecem a prova documental sobrea qual Piaget fundamenta a sua concepção de egocentrismoinfantil. Suas explicações da fala egocêntrica e do egocentris-mo infantil em geral são idênticas.

Em primeiro lugar, as crianças com menos de sete ou oitoanos não mantêm uma vida social estável; em segundo lugar, averdadeira linguagem social da criança, isto é, a linguagem queela utiliza em sua atividade fundamental - o brinquedo -, é umalinguagem de gestos, movimentos e mímica, tanto quanto depalavras [29, p. 56].

Quando, aos sete ou oito anos, manifesta-se na criança odesejo de trabalhar com os outros, a fala egocêntrica desaparece.

Em sua descrição da fala egocêntrica e de seu desenvolvi-mento inevitável, Piaget enfatiza que ela não cumpre nenhumafunção verdadeiramente útil no comportamento da criança, eque simplesmente se atrofia à medida que a criança se aproxi-ma da idade escolar. As experiências que realizamos sugeremuma interpretação diferente. Acreditamos que a fala egocêntri-ca assume, desde muito cedo, um papel muito definido e im-portante na atividade da criança.

A fim de determinar as causas da fala egocêntrica e as cir-cunstâncias que a provocam, organizamos as atividades das crian-ças de um modo muito semelhante ao de Piaget, mas acrescenta-mos uma série de frustrações e dificuldades. Por exemplo, quan-do uma criança estava se preparando para desenhar, descobriasubitamente que não havia papel, ou nenhum lápis da cor que elanecessitava. Em outras palavras, ao impedi-la de agir livremen-te, nós a forçávamos a enfrentar problemas.

Descobrimos que nessas situações difíceis o coeficientede fala egocêntrica quase duplicava, em comparação com o nú-mero normal observado por Piaget para crianças na mesma

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idade, e também em comparação com o nosso próprio número,para crianças que não tinham que se deparar com esses proble-mas. A criança tentaria dominar e remediar a situação, falandoconsigo mesma: "Onde está o lápis? Preciso de um lápis azul.Não faz mal, vou desenhar com o vermelho, e vou umedecê-locom água; assim, vai ficar mais escuro, parecendo azul."

Nas mesmas atividades sem obstáculos, o coeficiente defala egocêntrica era até mesmo inferior àquele observado porPiaget. Portanto, é legítimo pressupor que as interrupções nofluxo regular da atividade constituem um estímulo importantepara a fala egocêntrica. Essa descoberta se ajusta às duas pre-missas a que Piaget se refere várias vezes em seu livro. Umadelas é a chamada lei da consciência, segundo a qual um obstá-culo ou uma perturbação em uma atividade automática desper-tam, naquele que a pratica, a consciência dessa atividade. Aoutra premissa é de que a fala é uma expressão desse processode conscientização.

Nossas descobertas indicam que a fala egocêntrica nãopermanece por muito tempo como um mero acompanhamentoda atividade da criança. Além de ser um meio de expressão ede liberação da tensão, torna-se logo um instrumento do pen-samento, no sentido próprio do termo - a busca e o planeja-mento da solução de um problema. Um acidente ocorridodurante uma de nossas experiências ilustra bem a forma comoa fala egocêntrica pode alterar o curso de uma atividade: umacriança de cinco anos e meio estava desenhando um bonde,quando a ponta de seu lápis quebrou. Ela tentou, mesmo assim,completar o círculo de uma das rodas, pressionando fortemen-te o lápis sobre o papel, mas nada surgiu, a não ser uma linhafunda e incolor. A criança murmurou para si mesma: "Estáquebrado"; pôs o lápis de lado, pegou a aquarela e começou adesenhar um bonde quebrado em algum acidente; vez poroutra, conversava consigo mesma a respeito da alteração emseu desenho. A expressão vocal egocêntrica da criança, provo-cada acidentalmente, afetou tão visivelmente a sua atividade,

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que é impossível considerá-la, erradamente, um mero subprodu-to, um acompanhamento que não interfere na melodia. Nossasexperiências demonstraram alterações extremamente complexasna inter-relação da atividade com a fala egocêntrica. Observamoscomo a fala egocêntrica marcou, a princípio, o resultado final ouum momento crítico em uma atividade, deslocando-se em segui-da, gradualmente, para o meio e, finalmente, para o início da ati-vidade, assumindo uma função diretiva e estratégica e elevando aatividade da criança ao nível de um comportamento intencional.O que acontece nesse caso é semelhante à conhecida seqüênciaevolutiva por meio da qual a criança dá nomes aos seus desenhos.Uma criança pequena primeiro desenha, e só depois decide o queé que desenhou; uma criança um pouco mais velha dá nome aoseu desenho quando este está quase pronto e, por fim, decide deantemão o que pretende desenhar.

A concepção revista da função da fala egocêntrica devetambém influenciar a nossa concepção de seu destino poste-rior, e terá que ser evocada no que diz respeito à questão do seudesaparecimento na idade escolar. As experiências podem nosdar um testemunho indireto quanto às causas desse desapareci-mento, mas nenhuma resposta definitiva. Não obstante, osdados obtidos sugerem fortemente a hipótese de que a falaegocêntrica é um estágio transitório na evolução da fala oralpara a fala interior. Nas nossas experiências, as crianças maisvelhas, quando se deparavam com obstáculos, comportavam-se de maneira diferente das mais novas. Freqüentemente, exa-minavam a situação em silêncio e, em seguida, encontravamuma solução. Quando se perguntava a uma criança sobre o queela estava pensando, as respostas eram muito semelhantes aopensamento em voz alta na fase pré-escolar. Isso indicaria queas mesmas operações mentais realizadas pela criança em idadepré-escolar por meio da fala egocêntrica já estão, na criançaem idade escolar, relegadas à fala interior silenciosa.

É claro que em Piaget não há nada no mesmo sentido, umavez que, segundo ele, a fala egocêntrica simplesmente desapa-

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rece. Em seus estudos, Piaget não elucida satisfatoriamente aquestão do desenvolvimento da fala interior na criança. Mascomo a fala interior e a fala egocêntrica sonora preenchem amesma função, isso implicaria que, se a fala egocêntrica, comoafirma Piaget, precede a fala socializada, então a fala interiortambém deve preceder a fala socializada - um pressupostoinsustentável do ponto de vista genético.

A fala interior do adulto representa o "pensar para si pró-prio", muito mais do que adaptação social, isto é, desempenha amesma função da fala egocêntrica nas crianças. Tem, também,as mesmas caraterísticas estruturais: fora de contexto, seriaincompreensível para os outros, uma vez que omite "mencio-nar" o que é óbvio para o "locutor". Essas semelhanças levam-nos a admitir que, ao desaparecer de vista, a fala egocêntrica nãose atrofia simplesmente, mas "se esconde", isto é, transforma-seem fala interior. Nossa observação de que, na idade em queocorre essa modificação, as crianças que estão passando porsituações difíceis recorrem ora à fala egocêntrica, ora à reflexãosilenciosa, indica que ambas podem ser funcionalmente equiva-lentes. É nossa a hipótese de que os processos da fala interior sedesenvolvem e se estabilizam aproximadamente no início daidade escolar, e que isso provoca a súbita diminuição da falaegocêntrica observada naquele estágio.

Como nossas hipóteses são de âmbito limitado, acredita-mos que nos ajudarão a ver, a partir de uma perspectiva nova emais abrangente, a direção geral do desenvolvimento da fala edo pensamento. Segundo Piaget, as duas funções seguem umamesma trajetória, da fala autística à fala socializada, da fanta-sia subjetiva à lógica das relações. No curso dessa transforma-ção, a influência dos adultos é deformada pelos processos psí-quicos das crianças, mas acaba sendo vitoriosa. Para Piaget, odesenvolvimento do pensamento é a história da socializaçãogradual dos estados mentais autísticos, profundamente íntimose pessoais. Até mesmo a fala social é representada como sendosubseqüente, e não anterior, à fala egocêntrica.

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A hipótese que propomos inverte esse percurso. Observe-mos a direção do desenvolvimento do pensamento por um bre-ve intervalo de tempo, desde o surgimento da fala egocêntricaaté o seu desaparecimento, sob o ponto de vista do desenvolvi-mento da linguagem como um todo.

Consideramos que o desenvolvimento total evolui da se-guinte forma: a função primordial da fala, tanto nas criançasquanto nos adultos, é a comunicação, o contato social. A falamais primitiva da criança é, portanto, essencialmente social. Aprincípio, é global e multifuncional; posteriormente, suas fun-ções tornam-se diferenciadas. Numa certa idade, a fala socialda criança divide-se muito nitidamente em fala egocêntrica efala comunicativa. (Preferimos utilizar o termo comunicativapara o tipo de fala que Piaget chama de socializada, como setivesse sido outra coisa antes de se tornar social. Do nossoponto de vista, as duas formas, a comunicativa e a egocêntrica,são sociais, embora suas funções sejam diferentes.) A fala ego-cêntrica emerge quando a criança transfere formas sociais ecooperativas de comportamento para a esfera das funções psí-quicas interiores e pessoais. A tendência da criança a transferirpara os seus processos interiores os padrões de comportamen-to que inicialmente eram sociais é bastante conhecida por Piaget.Em outro contexto, ele descreve como as discussões entrecrianças originam as primeiras manifestações da reflexão lógi-ca. Acreditamos que algo semelhante acontece quando a crian-ça começa a conversar consigo mesma da mesma forma queconversa com os outros. Quando as circunstâncias obrigam-naa parar e pensar, o mais provável é que ela pense em voz alta. Afala egocêntrica, dissociada da fala social geral, leva, com otempo, à fala interior, que serve tanto ao pensamento autísticoquanto ao pensamento lógico.

A fala egocêntrica, enquanto uma forma lingüística sepa-rada, é o elo genético de extrema importância na transição dafala oral para a fala interior, um estágio intermediário entre adiferenciação das funções da fala oral e a transformação final

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de uma parte da fala oral em fala interior. É esse papel de tran-sição da fala egocêntrica que lhe empresta um interesse teóricotão grande. Toda a concepção do desenvolvimento da fala va-ria profundamente, de acordo com a interpretação que for dadaao papel da fala egocêntrica. Desse modo, o nosso esquema dedesenvolvimento - primeiro fala social, depois egocêntrica, eentão interior - diverge tanto do esquema behaviorista - falaoral, sussurro, fala interior - quanto da seqüência de Piaget -que parte do pensamento autístico não-verbal à fala socializa-da e ao pensamento lógico, através do pensamento e da falaegocêntricos. Segundo a nossa concepção, o verdadeiro cursodo desenvolvimento do pensamento não vai do individual parao socializado, mas do social para o individual.

III

Dentro dos limites do presente estudo não é possível ava-liar todos os aspectos da teoria de Piaget sobre o desenvolvi-mento intelectual; concentramos nosso interesse na sua con-cepção do papel do egocentrismo na relação evolutiva entre alinguagem e o pensamento. Vamos, no entanto, indicar resumi-damente, dentre os seus pressupostos teóricos e metodológicosbásicos, aqueles que consideramos errôneos, bem como osfatos que ele deixa de examinar em sua caracterização do pen-samento infantil.

A psicologia moderna, em geral, e a psicologia infantil,em particular, revelam uma tendência para combinar questõespsicológicas e filosóficas. Um paciente do psicólogo alemãoAch resumiu muito bem essa tendência ao observar, ao térmi-no de uma sessão: "Mas isso é filosofia experimental!" E, defato, muitas das questões do complexo campo do pensamentoinfantil beiram a teoria do conhecimento, a lógica teórica eoutros ramos da filosofia. Muitas vezes, Piaget aproxima-seinadvertidamente de uma ou de outra, mas, com notável coe-rência, corrige-se e se detém. Todavia, a despeito de sua inten-

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ção expressa de evitar teorizações, sua obra acaba extrapolan-do os limites da ciência factual pura. A recusa deliberada dafilosofia já é, em si mesma, uma filosofia - e uma filosofiaque pode envolver os seus proponentes em muitas contradi-ções. Como exemplo, podemos citar a concepção de Piagetquanto ao papel ocupado pela explicação causal na ciência.

Ao apresentar suas descobertas, Piaget tenta abster-se deconsiderar as causas. Agindo assim, aproxima-se perigosa-mente daquilo que, na criança, ele chama de "pré-causalidade",embora possa ver sua abstenção como um sofisticado estágio"supracausal" em que o conceito de causalidade teria sido aban-donado. Ele propõe que se substitua a explicação dos fenôme-nos em termos de causa e efeito por uma análise genética emtermos de uma seqüência temporal, e pela aplicação de umafórmula, matematicamente concebida, da interdependênciafuncional dos fenômenos. No caso de dois fenômenos interde-pendentes, A e B, A pode ser considerado uma função de B, ouB uma função de A. O pesquisador reserva-se o direito deorganizar sua descrição dos dados da forma que seja mais con-veniente para os seus objetivos no momento, embora geral-mente possa colocar os fenômenos de desenvolvimento maisprimitivos em uma posição vantajosa, por serem mais explica-tivos do ponto de vista genético.

Essa substituição da interpretação funcional pela interpre-tação causal priva o conceito de desenvolvimento de qualquerconteúdo real. Muito embora Piaget reconheça que, ao discutiros fatores biológicos e sociais, o estudioso do desenvolvimen-to mental tem o dever de explicar a relação entre eles, semnegligenciar qualquer um. Sua solução é a seguinte:

Mas, para começar, é necessário escolher um dos idiomasem prejuízo do outro. Escolhemos o idioma sociológico, masenfatizamos que nada há de exclusivo nisto - reservamo-nos odireito de voltar à explicação biológica do pensamento infantil etraduzir, em seus termos, a descrição que tentamos empreenderaqui [30, p. 266],

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Isso na verdade reduz toda a abordagem de Piaget a uma esco-lha puramente arbitrária.

A estrutura básica da teoria de Piaget apóia-se no pressu-posto de uma seqüência genética de duas formas opostas de in-telecção, as quais, segundo a teoria psicanalítica, servem aoprincípio do prazer e ao princípio da realidade. Do nosso pontode vista, o impulso para a satisfação das necessidades e o im-pulso para a adaptação à realidade não podem ser consideradoscomo coisas separadas entre si e mutuamente opostas. Umanecessidade só pode ser verdadeiramente satisfeita medianteuma certa adaptação à realidade. Além do mais, não há nadaque se possa chamar de adaptação pela adaptação; esta é sem-pre dirigida pelas necessidades. Trata-se de um truísmo inex-plicavelmente negligenciado por Piaget.

Piaget compartilha com Freud não só a concepção insus-tentável de um princípio do prazer anterior a um princípio darealidade, mas também a abordagem metafísica que eleva odesejo do prazer de seu verdadeiro status, o de fator secundáriobiologicamente importante, ao de uma força vital independen-te, força motriz primeira do desenvolvimento psíquico. Tendoseparado a necessidade e o prazer da adaptação à realidade,Piaget é forçado pela lógica a apresentar o pensamento realistacomo algo dissociado das necessidades, interesses e desejosconcretos, como "pensamento puro", cuja única função é abusca da verdade pela verdade.

O pensamento autístico-originalmente oposto ao pensa-mento realista, segundo o esquema proposto por Piaget - é, emnossa opinião, um desenvolvimento tardio, um resultado dopensamento realista e do seu corolário, o pensamento concei-tuai, que leva a um certo grau de autonomia da realidade, per-mitindo assim a satisfação, na fantasia, das necessidades frus-tradas durante a vida. Essa concepção do autismo é compatívelcom a de Bleuler [3]. O autismo é um dos efeitos da diferencia-ção e polarização das diversas funções do pensamento.

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As nossas experiências trouxeram a primeiro plano outroaspecto importante, até então despercebido: o papel da atividadeda criança na evolução de seus processos mentais. Vimos que afala egocêntrica não paira no vazio, mas tem uma relação diretacom o modo como a criança lida com o mundo real. Vimos queisso é parte integrante do processo de atividade racional, adqui-rindo inteligência, por assim dizer, a partir das ações intencio-nais da criança, que ainda são incipientes; e que a fala egocêntri-ca vai, progressivamente, tornando-se apropriada para planejar eresolver problemas, à medida que as atividades da criança tor-nam-se mais complexas. Esse processo é desencadeado pelasações da criança; os objetos com os quais ela lida representam arealidade e dão forma aos seus processos mentais.

À luz desses fatos, as conclusões de Piaget requerem al-guns esclarecimentos relativos a dois aspectos importantes.Em primeiro lugar, as peculiaridades do pensamento infantildiscutidas por Piaget, tal como o sincretismo, não abrangemuma área tão extensa quanto ele imagina. Somos levados a su-por (e nossas experiências nos autorizam a isso) que a criançapensa de forma sincrética sobre assuntos de que não temconhecimento ou experiência, mas não recorre ao sincretismocom relação às coisas familiares ou que sejam de fácil compro-vação prática - e o número dessas coisas depende do métodode educação. Do mesmo modo, no âmbito do sincretismo pro-priamente dito, é de se esperar que encontremos alguns ele-mentos precursores das futuras concepções causais que o pró-prio Piaget menciona de passagem. Os próprios esquemas sin-créticos, a despeito de suas flutuações, levam gradualmente acriança a uma adaptação; sua utilidade não deve ser subestima-da. Mais cedo ou mais tarde, por meio de uma rigorosa sele-ção, redução e adaptação mútua, serão transformados em exce-lentes instrumentos de investigação, nas áreas em que as hipó-teses são passíveis de aplicação.

O segundo aspecto que precisa ser reavaliado e delimitadoé a aplicabilidade das descobertas de Piaget às crianças em

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geral. Suas experiências levaram-no a acreditar que a criança éimpermeável às experiências. Piaget faz uma analogia que con-sideramos reveladora: o homem primitivo, diz ele, aprende apartir da experiência apenas em alguns poucos casos especiaise limitados de atividade prática - e cita a agricultura, a caça e amanufatura de objetos como exemplos desses casos raros.

Mas esse contato efêmero e parcial com a realidade nãoafeta em nada o fluxo geral de seu pensamento. O mesmo seaplica, com mais verdade ainda, às crianças [30, pp. 268-269].

No caso do homem primitivo, não chamaríamos a agricul-tura e a caça de contatos desprezíveis com a realidade, poisessas atividades constituem praticamente toda a sua existência.A concepção de Piaget pode ser válida para o grupo específicode crianças que estudou, mas não tem alcance universal. Elepróprio nos relata a causa da qualidade especial de pensamentoque observou em suas crianças:

A criança nunca estabelece um contato real e verdadeirocom as coisas, porque não trabalha. Ela brinca com as coisas, ouas aceita sem questioná-las [30, p. 269].

As uniformidades de desenvolvimento estabelecidas porPiaget aplicam-se ao meio dado, nas condições em que Piagetrealizou seu estudo. Não são leis da natureza, mas sim leis his-tórica e socialmente determinadas. Piaget já foi criticado porStern por não ter dado a devida importância à situação social eao meio. O fato de a fala ser mais egocêntrica ou mais socialdepende não só da idade da criança, mas também das condi-ções que a cercam. Piaget observou crianças brincando juntasnum determinado jardim de infância, e seus coeficientes sãoválidos apenas para esse meio infantil específico. Quando aatividade das crianças limita-se exclusivamente aos brinque-dos, é acompanhada por um elevado grau de solilóquios. Stern

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mostra que nos jardins de infância alemães, onde havia maisatividade em grupo, o coeficiente de egocentrismo era umtanto menor, e que em casa a fala das crianças tende a ser pre-dominantemente social desde muito cedo. Se isso é verdade,no que diz respeito às crianças alemãs, a diferença entre ascrianças soviéticas e as crianças que Piaget estudou no jardimde infância de Genebra deve ser ainda maior. No prefácio queescreveu para a edição russa de seu livro, Piaget admite que énecessário comparar o comportamento de crianças com forma-ção social diferente, para que possamos separar o aspecto so-cial do individual, em seu pensamento. Por essa razão, aceitacom prazer a colaboração dos psicólogos soviéticos. De nossaparte, estamos convencidos de que o estudo do desenvolvi-mento do pensamento em crianças de um meio social diferen-te, e em especial de crianças que, ao contrário das estudadaspor Piaget, trabalham, levará com certeza a resultados que nospermitirão formular leis com uma esfera de aplicação muitomais ampla.

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3. A teoria de Stern sobre odesenvolvimento da linguagem

A parte mais conhecida do sistema de William Stern, eque vem ganhando terreno com o passar dos anos, é a sua con-cepção intelectualista do desenvolvimento da fala na criança.No entanto, é exatamente essa concepção que revela, de formamais evidente, as limitações e incoerências do personalismofilosófico e psicológico de Stern, os seus fundamentos idealis-tas e a sua falta de validade científica.

O próprio Stern descreve o seu ponto de vista como "ge-nético-personalista". Discutiremos o princípio personalista maisadiante. Vejamos, primeiro, como Stern aborda o aspecto ge-nético. Afirmaremos, já de início, que a teoria dele, a exemplode todas as teorias intelectualistas, é antidesenvolvimentistapor sua própria natureza.

Stern distingue três raízes da fala: a tendência expressiva,a social e a "intencional". Enquanto as duas primeiras consti-tuem também a base dos rudimentos de fala observados entreos animais, a terceira é especificamente humana. Stern defineintencionalidade, nesse sentido, como uma meta voltada paraum determinado conteúdo ou significado. "Em um determina-do estágio de seu desenvolvimento psíquico", diz ele, "o ho-mem adquire a capacidade de referir-se a algo objetivo pormeio da emissão de sons" [38, p. 126]. Essencialmente, esses

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atos intencionais já são atos de pensamento; seu aparecimentodenota uma intelectualização e uma objetivação da fala.

Do mesmo modo que alguns autores representativos danova psicologia do pensamento - embora em menor grau doque alguns deles -, Stern enfatiza a importância do fator lógicono desenvolvimento da linguagem.

Nada temos contra a afirmação de que a fala humana de-senvolvida possui um significado objetivo, pressupondo, as-sim, um certo nível no desenvolvimento do pensamento, e con-cordamos que é necessário levar em conta a íntima relaçãoexistente entre a linguagem e o pensamento lógico. O proble-ma é que Stern considera a intencionalidade - um traço carac-terístico da fala desenvolvida que, convenientemente, exige umaexplicação genética (isto é, como surgiu no processo evoluti-vo) - como uma das raízes do desenvolvimento da fala, umaforça motriz, uma tendência inata, quase um impulso, de qual-quer modo algo primordial, geneticamente equiparado às ten-dências expressiva e comunicativa - que de fato já podem serencontradas nos primórdios da fala. Ao ver a intencionalidadedessa forma ("die 'intentionale' Triebfeder des Sprachdran-ges"), substituiu uma explicação genética por uma explicaçãointelectualista.

Esse método de "explicar" uma coisa pela própria coisaque precisa ser explicada é a falha básica de todas as teoriasintelectualistas e, em particular, da teoria de Stern - daí o seuvazio geral e o seu caráter antigenético (traços caraterísticos dafala desenvolvida são relegados aos seus primórdios). Sternresponde à pergunta de como e por que a fala adquire signifi-cado afirmando que isso acontece por causa de sua tendênciaintencional, isto é, a tendência ao significado. Isso nos fazlembrar do médico de Molière, que explicou o efeito soporífe-ro do ópio pelas suas propriedades soporíferas.

A partir da famosa descrição de Stern sobre a grande des-coberta feita pela criança de um ano e meio ou dois, podemosverificar a que exageros a ênfase excessiva sobre os aspectos

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lógicos pode levar. Nessa idade, a criança percebe, pela pri-meira vez, que cada objeto tem o seu símbolo permanente, umpadrão sonoro que o identifica - isto é, que cada coisa tem umnome. Stern acredita que uma criança de dois anos de idadepode conscientizar-se dos símbolos e da necessidade destes, econsidera essa descoberta já como um processo de pensamen-to no sentido próprio do termo:

A compreensão da relação entre signo e significado quecomeça a manifestar-se na criança nessa idade é algo diferente,em princípio, da mera utilização de imagens sonoras, imagensde objetos e suas associações. E a exigência de que cada objeto,seja qual for, tenha um nome, pode ser considerada uma verda-deira generalização feita pela criança - possivelmente a primei-ra [40, pp. 109-110].

Existirá algum fundamento factual ou teórico para se admi-tir que uma criança de um ano e meio ou dois tenha uma per-cepção da função simbólica da linguagem e uma consciênciade uma regra geral, de um conceito geral? Todos os estudos rea-lizados sobre esse problema, nos últimos vinte anos, sugeremuma resposta negativa.

Tudo o que sabemos sobre a mentalidade da criança de umano e meio ou dois choca-se com a idéia de que ela possa sercapaz de realizar operações intelectuais tão complexas. Tanto aobservação quanto os estudos experimentais indicam que sómuito mais tarde a criança apreende a relação entre o signo e osignificado, ou o uso funcional dos signos; isso está muito alémdo alcance de uma criança de dois anos. Além do mais, investi-gações experimentais sistemáticas demonstraram que a apreen-são da relação entre signo e significado, e a transição para afase em que a criança começa a operar com os signos, nuncaresultam de uma descoberta ou invenção instantânea por parteda criança. Stern acredita que a criança descobre o significado dalinguagem de uma vez por todas. Na verdade, trata-se de um

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processo extremamente complexo, que tem sua "história natu-ral" (isto é, os seus primórdios e formas de transição nos níveismais primitivos de desenvolvimento), assim como sua "histó-ria cultural" (também com as suas séries de fases próprias e asua própria evolução quantitativa, qualitativa e funcional, suaspróprias leis e dinâmica).

Stern praticamente ignora todos os caminhos intrincadosque levam ao amadurecimento da função do signo; sua con-cepção do desenvolvimento lingüístico é extremamente sim-plificada. A criança de repente descobre que a fala tem signifi-cado: essa explicação de como a fala adquire significado me-rece, de fato, ser agrupada com a teoria da invenção deliberadada linguagem, a teoria racionalista do contrato social, e outrasteorias intelectualistas famosas. Todas elas negligenciam as rea-lidades genéticas e não explicam nada realmente.

Factualmente, também, a teoria de Stern não se sustenta.Wallon, Koffka, Piaget, Delacroix e muitos outros, nos seus es-tudos de crianças normais, e K. Buehler, em seu estudo de crian-ças surdas-mudas, constataram: (1) que a descoberta da criançaquanto à ligação entre palavra e objeto não leva imediatamente auma clara percepção da relação simbólica entre signo e referen-te, caraterística do pensamento bem desenvolvido; que, por mui-to tempo, a criança considera a palavra como um atributo oupropriedade do objeto, e não um mero signo; e que a criançaapreende a estrutura externa objeto-palavra antes que consi-ga apreender a relação interna entre o signo e o referente; e (2)que a descoberta feita pela criança não é, na verdade, repentina,da qual se possa precisar o instante exato em que ocorre. Umasérie de longas e complexas transformações "moleculares" con-duzem àquele momento crítico do desenvolvimento da fala.

Ao longo dos vinte anos decorridos desde a publicação doestudo de Stern, firmou-se a convicção de que a sua observa-ção básica era correta, ou seja, há, de fato, um momento dedescoberta que, para uma observação mais grosseira, parecerepentino. O momento crítico decisivo no desenvolvimento

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lingüístico, cultural e intelectual da criança, descoberto porStern, realmente existe - embora ele estivesse errado ao dar-lhe uma interpretação intelectualista. Stern aponta dois sinto-mas objetivos da ocorrência dessa transformação crítica: oaparecimento de perguntas sobre os nomes dos objetos e oconseqüente aumento, acentuado e aos saltos, do vocabulárioda criança, ambos de importância fundamental para o desen-volvimento da fala.

A busca ativa de palavras por parte da criança, que nãotem similar no desenvolvimento da "fala" em animais, indicauma nova fase em sua evolução lingüística. E por essa épocaque o "grandioso sistema de sinais da fala" (no dizer de Pavlov)surge para a criança, a partir da profusão de todos os outrossinais, e assume uma função específica no comportamento.Uma das grandes realizações de Stern foi ter estabelecido essefato sobre uma sólida base de sintomas objetivos, razão por quea falha de sua explicação torna-se ainda mais surpreendente.

Ao contrário das outras duas raízes da linguagem, a ex-pressiva e a comunicativa, cujo desenvolvimento tem sido tra-çado desde os animais de organização social mais inferior atéos antropóides e o homem, a "tendência intencional" surge donada: não tem história nem raízes. De acordo com Stern, é bá-sica, primordial; brota espontaneamente e "de uma vez por to-das". É essa a propensão que possibilita à criança descobrir afunção da fala por meio de uma operação puramente lógica.

Na verdade, Stern não diz isso em tantas palavras assim.Ele envolveu-se em polêmicas não apenas com os proponentesdas teorias antiintelectualistas, que situam as origens da falanas crianças exclusivamente nos processos afetiyos-conativos,mas também com aqueles psicólogos que superestimam acapacidade de pensamento lógico das crianças. Stern não repe-te esse erro, mas comete outro ainda mais grave, à medida queatribui ao intelecto uma posição de primazia, quase metafísica,de origem e causa primeira, não-analisável, da fala com signi-ficado.

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De forma paradoxal, esse tipo de intelectualismo mostra-se particularmente inadequado para o estudo dos processosintelectuais, que à primeira vista pareceriam constituir a suaesfera de aplicação legítima. Poderíamos esperar que o fato deo significado da linguagem ser visto como resultado de umaoperação intelectual em muito contribuísse para esclarecer arelação entre a fala e o pensamento. Na verdade, tal aborda-gem, ao estabelecer (como o faz) um intelecto já formado, blo-queia uma investigação das interações dialéticas entre o pensa-mento e a fala. O tratamento dado por Stern a esse aspecto fun-damental do problema da linguagem é cheio de incoerências, eé a parte mais vulnerável de seu livro [38].

Tópicos tão importantes como a fala interior, seu surgi-mento e sua conexão com o pensamento são apenas menciona-dos por Stern. Ele só revê os resultados das investigações dePiaget sobre a fala egocêntrica ao discutir as conversas entrecrianças, ignorando as funções, a estrutura e o significado evo-lutivo desse tipo de fala. De modo geral, Stern não conseguerelacionar as complexas transformações funcionais e estrutu-rais do pensamento ao desenvolvimento da fala.

Mesmo quando Stern faz uma caracterização correta de umfenômeno evolutivo, sua estrutura teórica impede-o de tirar asconclusões óbvias a partir de suas próprias observações. Essefato torna-se ainda mais evidente na sua incapacidade para perce-ber as implicações de sua própria "tradução" das primeiras pala-vras da criança para a linguagem dos adultos. A interpretação da-da às primeiras palavras da criança é a pedra de toque de todas asteorias da fala infantil; é o ponto de convergência onde todasas principais tendências das modernas teorias da fala se encon-tram e se cruzam. Poder-se-ia dizer, sem exagero, que toda aestrutura de uma teoria é determinada pela tradução das primei-ras palavras da criança.

Stern acredita que essas palavras não devem ser interpre-tadas nem do ponto de vista puramente intelectualista, nem doponto de vista puramente afetivo-conativo. Reconhece o gran-

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de mérito de Meumann ao opor-se à teoria intelectualista, se-gundo a qual as primeiras palavras de uma criança designam,na verdade, os objetos como tais [28]. No entanto, não compar-tilha o pressuposto de Meumann, de que as primeiras palavrasnada mais são que a expressão das emoções e dos desejos dacriança. Analisando as situações em que elas aparecem, eleprova conclusivamente que essas palavras contém, ainda, umadeterminada orientação em direção a um objeto, e que essa"referência objetiva", ou função designativa, em geral "predo-mina sobre o tom moderadamente emocional" [38, p. 183].

Eis como Stern traduz as primeiras palavras:

O termo infantil mamã, traduzido para a fala desenvolvida,não significa "mãe", mas sim uma frase como "Mamã, vem cá",ou "Mamã, me dá", ou "Mama, me põe na cadeira", ou "Mamã.,me ajuda" [38, p. 180].

No entanto, quando observamos a criança em ação, ficabastante claro que não é somente a palavramamã que signifi-ca, digamos, "Mamãe, me põe na cadeira", mas o comporta-mento todo da criança naquele momento (seus movimentos emdireção à cadeira, tentando agarrar-se a ela etc). Aqui, a orien-tação "afetivo-conativa" em direção a um objeto (nas palavrasde Meumann) é ainda inseparável da "tendência intencional"da fala: ambas constituem ainda um todo homogêneo, e aúnica tradução correta demamã, ou de qualquer uma das pri-meiras palavras, é o gesto de apontar. De início, a palavra é umsubstituto convencional do gesto; aparece muito antes da cru-cial "descoberta da linguagem" por parte da criança, e antesque ela seja capaz de operações lógicas. O próprio Stern admi-te o papel mediador dos gestos, especialmente o de apontar, noestabelecimento do significado das primeiras palavras. A con-clusão inevitável seria que o gesto de apontar é, de fato, umprecursor da "tendência intencional". No entanto, Stern recu-sa-se a traçar a história genética dessa tendência. Para ele, esta

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não se desenvolve a partir de uma orientação afetiva em rela-ção ao objeto que se aponta (gesto ou primeiras palavras) -aparece do nada e determina o surgimento do significado.

A mesma abordagem antigenética também caracteriza otratamento que Stern dispensa a todas as outras questões im-portantes discutidas em seu livro, tais como o desenvolvimen-to dos conceitos e os estágios principais do desenvolvimentoda fala e do pensamento. Nem poderia ser de outra forma: essaabordagem é uma conseqüência direta das premissas filosófi-cas do personalismo, que é o sistema desenvolvido por Stern.

Stern tenta ir além dos extremos do empirismo e do nati-vismo. Contrapõe sua visão pessoal do desenvolvimento da fala,por um lado, à visão de Wundt, segundo a qual a fala infantil éum produto do meio ambiente - enquanto a própria participa-ção da criança é essencialmente passiva -; por outro, à visãodaqueles psicólogos para quem a fala primitiva (as onomato-péias e a chamada "tatebitate" dos bebês) é uma invenção deincontáveis gerações de crianças. Stern tem o cuidado de nãonegligenciar o papel da imitação no desenvolvimento da fala,ou o papel da atividade espontânea da criança, ao aplicar aessas questões o seu conceito de "convergência": a conquistada fala pela criança ocorre por meio de uma interação constan-te de disposições internas, que levam a criança à fala, e condi-ções externas - isto é, a fala das pessoas ao seu redor -, quepropiciam o estímulo e o material para a realização dessas dis-posições.

Para Stern, a convergência é um princípio geral a ser apli-cado à explicação de todo o comportamento humano. Trata-se,certamente, de mais um dos exemplos em que podemos dizer,com Goethe: "As palavras da ciência ocultam a sua substân-cia." A sonora palavra convergência, denotando aqui um prin-cípio metodológico perfeitamente incontestável (isto é, que odesenvolvimento deveria ser estudado como um processodeterminado pela interação do organismo e do meio ambien-te), na verdade exime o autor da obrigação de analisar os fato-

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res sociais e ambientais no desenvolvimento da fala. Sternafirma enfaticamente que o meio ambiente social é o principalfator no desenvolvimento da fala, mas na realidade ele restrin-ge o seu papel apenas à aceleração ou ao retardamento dodesenvolvimento, que obedece às suas próprias leis imanentes.Como tentamos mostrar, ao utilizar como exemplo sua expli-cação da origem do significado na fala, Stern superestimou osfatores orgânicos internos.

Essa tendência é um resultado direto da estrutura persona-lista de referência. Para Stern, a "pessoa" é uma entidade psi-cofisicamente neutra que, "apesar da multiplicidade de suasfunções parciais, manifesta uma atividade unitária, voltadapara um objetivo" [39, p. 16]. Essa concepção idealista, mona-dista, da pessoa individual, leva naturalmente a uma teoria quevê a linguagem como algo enraizado na teleologia pessoal -daí o intelectualismo e a tendência antigenética da abordagemde Stern aos problemas do desenvolvimento lingüístico. O per-sonalismo de Stern, aplicado ao mecanismo eminentementesocial do comportamento da fala, ignorando, como faz, o as-pecto social da personalidade, leva a absurdos evidentes. Suaconcepção metafísica da personalidade, que deriva todos osprocessos evolutivos de uma teleologia pessoal, inverte radical-mente as relações genéticas reais entre a personalidade e a lin-guagem: em vez de uma história evolutiva da personalidade emsi, em que a linguagem desempenha um papel que está muitolonge de ser secundário, temos a teoria metafísica, segundo aqual a personalidade gera a linguagem a partir da busca deobjetivos, característica de sua própria natureza essencial.

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4. As raízes genéticas do pensamentoe da linguagem

O fato mais importante revelado pelo estudo genético dopensamento e da fala é que a relação entre ambos passa porvárias mudanças. O progresso da fala não é paralelo ao pro-gresso do pensamento. As curvas de crescimento de amboscruzam-se muitas vezes; podem atingir o mesmo ponto e cor-rer lado a lado, e até mesmo fundir-se por algum tempo, masacabam se separando novamente. Isso se aplica tanto à filoge-nia como à ontogenia.

Nos animais, a fala e o pensamento têm origens diferentese seguem cursos diferentes no seu desenvolvimento. Este fatoé confirmado por estudos recentes que Koehler, Yerkes e ou-tros realizaram com macacos antropóides. As experiências deKoehler provaram que o aparecimento de um intelecto embrio-nário nos animais - isto é, do pensamento no sentido própriodo termo - não está, de forma alguma, relacionado com a fala.As "invenções" desses macacos, ao fazerem e utilizarem ins-trumentos, ou ao encontrarem formas alternativas para a solu-ção de problemas, apesar de serem, sem dúvida, um pensa-mento rudimentar, pertencem a uma fase pré-lingüística daevolução do pensamento.

I

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Na opinião de Koehler, suas investigações provam que ochimpanzé apresenta os rudimentos de um comportamento in-telectual semelhante ao do homem. São a ausência da fala, "esseinstrumento técnico auxiliar infinitamente valioso", e a pobre-za de imagens, "o material intelectual mais importante", queexplicam a enorme diferença entre os antropóides e o homemmais primitivo, e chegam até mesmo "a tornar impossível qual-quer esboço de um desenvolvimento cultural no chimpanzé"[18, pp. 191-192].

Há considerável discordância entre psicólogos de diferen-tes escolas no que diz respeito à interpretação teórica das des-cobertas de Koehler. Grande parte da literatura crítica que seusestudos originaram apresenta uma considerável variedade depontos de vista. É muito significativo que ninguém questioneos fatos de Koehler ou a dedução que nos interessa em particu-lar: a independência entre as ações do chimpanzé e a fala. Issoé totalmente aceito, mesmo pelos psicólogos (como, por exem-plo, Thorndike e Borovskij) que nada vêem nas ações do chim-panzé além da mecânica do instinto e da aprendizagem por"tentativa e erro" - "absolutamente nada exceto o processo jáconhecido da formação de hábitos" [4, p. 179] -, e pelos intros-peccionistas, que se recusam a rebaixar o intelecto ao nível atémesmo dos primatas mais avançados. Buehler diz, acertada-mente, que as ações dos chimpanzés são totalmente dissocia-das da fala, e que, no homem, o pensamento gerado pelo usode instrumentos {Werkzeugdenken) também está muito menosligado à fala e aos conceitos do que outras formas de pensa-mento.

A questão seria bem simples se os macacos não tivessemqualquer rudimento de linguagem, ou nada que se assemelhas-se à fala. Mas no chimpanzé encontramos, de fato, uma "lin-guagem" relativamente bem desenvolvida em alguns aspectos- principalmente em termos fonéticos -, não muito diferenteda fala humana. Uma característica notável dessa linguagem éo fato de ela funcionar separadamente de seu intelecto. Koehler,

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que estudou os chimpanzés durante muitos anos na CanaryIsland Anthropoide Station, afirma que suas expressões fonéti-cas denotam apenas desejos e estados subjetivos; expressamafetos, mas nunca um sinal de algo "objetivo" [19, p. 27]. Masas fonéticas da linguagem do homem e dos chimpanzés têmtantos elementos em comum, que podemos supor, com segu-rança, que a ausência de uma fala semelhante à humana não sedeve a nenhuma causa periférica.

O chimpanzé é um animal extremamente gregário e reageenergicamente à presença de outros de sua espécie. Koehler des-creve formas altamente diversificadas de "comunicação lin-güística" entre os chimpanzés. Em primeiro plano está o seuvasto repertório de manifestações afetivas: expressões faciais,gestos, vocalização. Em seguida vêm os movimentos que ex-pressam as emoções sociais: gestos amistosos etc. Os macacossão capazes de "entender" os gestos uns dos outros e de "ex-pressar", por meio deles, desejos que envolvem outros ani-mais. Geralmente, um chimpanzé dará início a um movimentoou ação que deseja que outro animal execute ou compartilhecom ele - por exemplo, irá empurrá-lo e executar os movimen-tos iniciais de caminhar para "convidar" o outro a segui-lo, oufará o gesto de agarrar o ar para que o outro lhe ofereça umabanana. Todos esses gestos estão diretamente relacionados àprópria ação. Koehler menciona que o experimentador acabautilizando formas de comunicação elementares basicamentesemelhantes, para mostrar aos macacos o que se espera deles.

Em geral, essas observações confirmam as opiniões deWundt, segundo o qual os gestos de apontar (o primeiro estágiodo desenvolvimento da fala humana) ainda não aparecem nosanimais, mas alguns gestos dos macacos constituem uma formade transição entre os atos de agarrar e de apontar [56, p. 219].Consideramos esse gesto de transição um passo muito impor-tante da expressão afetiva pura em direção à linguagem objetiva.

No entanto, não há provas de que os animais tenham atin-gido o estágio de representação objetiva em qualquer uma das

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suas atividades. Os chimpanzés de Koehler brincavam combarro colorido, "pintando" primeiro com os lábios e a língua, edepois com pincéis de verdade; mas esses animais - que nor-malmente transferem para as brincadeiras o uso de instrumen-tos e outras formas de comportamento aprendidas "seriamen-te" (isto é, em experiências) e que, inversamente, transferemseu comportamento brincalhão para a "vida real" - nunca de-monstraram a menor intenção de representar o que quer quefosse em seus desenhos, nem o mais leve indício de atribuirqualquer significado objetivo aos seus produtos. Buehler afirma:

Alguns fatos nos alertam sobre o perigo de se superestimaras ações dos chimpanzés. Sabemos que nenhum viajante jamaisconfundiu um gorila ou um chimpanzé com um homem, e queninguém jamais observou entre eles qualquer dos instrumentosou métodos tradicionais que, entre os homens, variam de tribopara tribo, mas que indicam a transmissão, de geração para ge-ração, das descobertas feitas; nenhum rabisco sobre arenito ouargila que pudesse ser tomado por desenho representando algo,nem mesmo enfeites criados durante as brincadeiras; nenhumaforma de linguagem de representação, isto é, nenhum som equi-valente a nomes. Todos esses fatos devem ter algumas causasintrínsecas [7, p. 20].

Entre todos os estudiosos modernos dos macacos antro-póides, Yerkes parece ser o único capaz de explicar a ausênciade fala sem atribuí-las às "causas intrínsecas". Sua pesquisasobre o intelecto dos orangotangos forneceu dados muito se-melhantes aos de Koehler; mas ele vai além em suas conclu-sões: admite uma "ideação mais elevada" nos orangotangos -ao nível, é verdade, de uma criança de três anos de idade, nomáximo [57, p. 132].

Yerkes deduziu a existência dessa ideação a partir apenasdas semelhanças superficiais entre o comportamento dos sereshumanos e o dos antropóides; não nos apresenta nenhuma pro-va objetiva de que os orangotangos resolvam problemas recor-

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rendo à ideação, isto é, a imagens ou estímulos residuais. Noestudo dos animais superiores, a analogia pode ser útil quandousada dentro dos limites da objetividade. Entretanto, basearuma hipótese na analogia é um procedimento pouco científico.

Koehler, por outro lado, foi além do mero uso da analogiaao explorar a natureza dos processos intelectuais do chimpan-zé. Demonstrou, por meio da análise experimental precisa, queo êxito das ações dos animais dependia do fato de poderemver, ao mesmo tempo, todos os elementos da situação - esseera um fator decisivo no seu comportamento. Se, especialmen-te durante as primeiras experiências, a vara que usavam paraalcançar a fruta atrás das barras fosse movimentada lentamen-te, de modo que o instrumento (a vara) e o objetivo (a fruta) nãopudessem ser vistos num só relance, a solução do problema setornava muito difícil, e muitas vezes impossível. Os macacoshaviam aprendido a fazer um instrumento mais comprido en-fiando uma vara na abertura de outra. Se as duas varas se cru-zassem por acaso em suas mãos, formando um x, não pode-riam executar a operação conhecida, muito praticada, de alon-gar a vara. Muitos outros exemplos semelhantes, baseados nosexperimentos de Koehler, poderiam ser citados.

Koehler considera que a presença visual real de uma situa-ção suficientemente simples é uma condição indispensável emqualquer investigação do intelecto dos chimpanzés, condiçãosem a qual seu intelecto não poderia funcionar; conclui que aslimitações inerentes ao processo de criação de imagens (ou"ideação") são uma característica básica do comportamentointelectual do chimpanzé. Se aceitamos a tese de Koehler, en-tão a hipótese de Yerkes parece ser mais do que controversa.

Juntamente com seus recentes estudos experimentais esuas observações do intelecto e da linguagem dos chimpanzés,Yerkes apresenta um novo material sobre seu desenvolvimentolingüístico e uma nova e engenhosa teoria para explicar a au-sência, neles, de uma fala real. "As reações vocais", diz ele,"são muito freqüentes e variadas nos chimpanzés jovens, mas a

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fala no sentido humano não existe" [55, p. 53]. Seu aparelhofonador é tão desenvolvido e funciona tão bem quanto o dohomem. O que lhes falta é a tendência para imitar sons. A suamímica depende quase que totalmente de estímulos visuais;copiam ações, mas não sons. São incapazes de fazer o que opapagaio faz com tanto êxito.

Se a tendência a imitar que o papagaio apresenta fosse com-binada com a dimensão do intelecto do chimpanzé, este últimocertamente seria dotado de fala, já que tem um aparelho fonadorcomparável ao do homem, assim como um intelecto de tipo enível que o capacita a utilizar sons para produzir uma fala real[58,p.53].

Em seus experimentos, Yerkes utilizou quatro métodospara ensinar os chimpanzés a falar. Nenhum deles obteve êxi-to. É claro que, em princípio, esses fracassos nunca resolvemum problema. Nesse caso, ainda não sabemos se é ou não pos-sível ensinar os chimpanzés a falar. Muitas vezes a falha é dopróprio experimentador. Koehler diz que, se os primeiros estu-dos acerca do intelecto do chimpanzé falharam em demonstrarque ele tinha algum tipo de intelecto, isto não ocorreu devidoao fato de os chimpanzés realmente não o possuírem, mas de-vido a métodos inadequados, ao desconhecimento dos limites dedificuldade dentro dos quais o intelecto do chimpanzé pode semanifestar, e ao desconhecimento de sua dependência de umasituação visual abrangente. "As investigações acerca da capaci-dade intelectual", dizia Koehler, "necessariamente testam tantoo pesquisador quanto o sujeito experimental" [18, p. 191 ].

Sem que esclarecessem a questão em princípio, os experi-mentos de Yerkes mostraram, mais uma vez, que os antropói-des não possuem nada que se assemelhe à fala humana, nemmesmo em estado embrionário. Se relacionarmos isso com oque sabemos de outras fontes, poderemos supor que os maca-cos antropóides são provavelmente incapazes de produzir umafala real.

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Por que razão são incapazes de falar, já que têm o aparelhofonador e a gama de sons necessários? Yerkes atribui isso à in-capacidade ou dificuldade de imitar sons. É muito provávelque esta seja a causa imediata dos resultados negativos dosseus experimentos, mas talvez Yerkes esteja errado ao conside-rá-la como a causa principal da ausência de fala nos macacos.Embora apresente essa última tese como algo já estabelecido,ela é desmentida por tudo o que sabemos acerca do intelecto dochimpanzé.

Yerkes tinha à sua disposição um excelente meio para com-provar sua tese, o qual, por alguma razão, não usou, e ficaría-mos satisfeitos em aplicá-lo, se tivéssemos condições mate-riais para isso. Deveríamos excluir o fator auditivo ao treinaros animais em uma habilidade lingüística. A linguagem nãodepende necessariamente do som. Há, por exemplo, a lingua-gem dos surdos-mudos e a leitura dos lábios, que é tambéminterpretação de movimentos. Na linguagem dos povos primi-tivos, os gestos têm um papel importante e são usados junta-mente com o som. Em princípio, a linguagem não depende danatureza do material que utiliza. Se é verdade que os chimpan-zés possuem o intelecto necessário para aprender algo análogoà linguagem humana, e que todo o problema reside na incapa-cidade de imitar sons, então eles deveriam ser capazes de do-minar, em experimentos, alguns gestos convencionais, cuja fun-ção psicológica seria exatamente a mesma dos sons convencio-nais. Como o próprio Yerkes conjetura, os chimpanzés pode-riam ser treinados, por exemplo, para se expressar por meio degestos com as mãos, ao invés de sons. Não importa qual omeio, mas sim o uso funcional dos signos, de quaisquer signosque pudessem exercer um papel correspondente ao da fala noshomens.

Esse método ainda não foi testado, e não podemos ter cer-teza dos resultados a que poderia levar; mas tudo o que sabe-mos acerca do comportamento dos chimpanzés, inclusive osdados de Yerkes, não nos leva a crer que pudessem aprender a

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fala funcional. Nunca se teve qualquer indício de que eles usemsignos. A única coisa que sabemos com certeza objetiva é quenão possuem "ideação", mas, sob certas condições, são capa-zes de fazer instrumentos muito simples e de recorrer a "artifí-cios", desde que essas condições incluam uma situação perfei-tamente visível e clara. Em todos os problemas que não envol-vem estruturas visuais imediatamente perceptíveis, mas que seconcentram em algum outro tipo de estrutura - mecânica, porexemplo - os chimpanzés passaram de um comportamento detipo intuitivo para o método puro e simples de tentativa e erro.

As condições exigidas para o funcionamento intelectualefetivo dos macacos antropóides são também as condiçõesnecessárias para se descobrir a fala ou o uso funcional dos sig-nos? Definitivamente não. A descoberta da fala não pode, emnenhuma situação, depender de uma estruturação óptica. Exi-ge uma operação mental de outro tipo. Não há nenhuma indi-cação, qualquer que seja, de que tal operação possa estar ao al-cance dos chimpanzés, e a maioria dos investigadores admiteque eles não possuem essa habilidade. A ausência dessa capa-cidade pode ser a principal diferença entre o intelecto humanoe o intelecto do chimpanzé.

Koehler introduziu o termo insight (Einsicht) para as ope-rações intelectuais acessíveis aos chimpanzés. A escolha dotermo não é acidental. Kafka salientou que Koehler, ao empre-gá-lo, parece se referir essencialmente ao ato de ver, no sentidoliteral, e, somente por extensão, ao ato de "ver" as relações emgeral, ou à compreensão em oposição à ação cega [17, p. 130].

Deve-se acrescentar que Koehler nunca define insight,nem esclarece a sua teoria. Na ausência de interpretação teóri-ca, o termo é empregado de uma forma um tanto ambígua: àsvezes denota as caraterísticas específicas da própria operação,a estrutura das ações dos chimpanzés; outras vezes, indica oprocesso psicológico que precede e prepara essas ações, um"plano de operações" interno, por assim dizer. Koehler nãoantecipa qualquer hipótese sobre o mecanismo da reação inte-

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lectual, mas é claro que, qualquer que seja o seu funcionamen-to e onde quer que localizemos o intelecto - nas próprias açõesdo chimpanzé ou em algum processo preparatório interno(cerebral ou neuromuscular) -, permanece válida a tese de queessa reação não é determinada por vestígios de memória, maspelo modo como a ação se configura visualmente. Mesmo omelhor instrumento para a solução de dado problema não seráutilizado pelo chimpanzé se ele não puder vê-lo ao mesmotempo, ou quase ao mesmo tempo, que o objetivo8. Portanto, ofato de levarmos em consideração o insight não altera a nossaconclusão de que o chimpanzé, ainda que apresentasse os donsdo papagaio, seria com certeza incapaz de falar.

No entanto, como já dissemos, o chimpanzé possui umalinguagem própria bastante rica. O colaborador de Yerkes,Learned, compilou um dicionário de 32 elementos, ou "vocá-bulos", que não só se assemelham à fala humana, em termosfonéticos, mas também têm um certo significado, no sentidode que derivam de determinadas situações ou objetos relacio-nados com o prazer ou o desprazer, ou que inspirem desejo,ressentimento, medo etc. [58, p. 54]. Esses "vocábulos" foramregistrados enquanto os macacos estavam esperando que osalimentassem, ou durante as refeições, na presença de huma-nos e quando dois chimpanzés estavam sozinhos. São reaçõesvocais afetivas mais ou menos diferenciadas - e, até certoponto, relacionadas -, à semelhança de um reflexo condiciona-do, com os estímulos ligados à alimentação ou outras situaçõesvitais: uma linguagem estritamente emocional.

Em relação a essa descrição da fala dos macacos antropói-des, gostaríamos de salientar três pontos: primeiro, a coinci-

8. Por "percepção quase simultânea" Koehler refere-se aos exemplosem que o instrumento e o objetivo foram vistos em conjunto um momentoantes, ou quando foram tantas vezes usados em conjunto, em uma situaçãoidêntica, que são, para todos os propósitos, percebidos psicologicamente aomesmo tempo [18, p. 39].

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dência da produção sonora com os gestos afetivos, observadosprincipalmente quando os chimpanzés estão muito excitados,não se limita aos antropóides - ao contrário, é muito comumentre animais dotados de voz. A fala humana certamente origi-nou-se do mesmo tipo de reações vocais expressivas. Segundo,os estados afetivos que produzem muitas reações vocais noschimpanzés são desfavoráveis ao funcionamento do intelecto.Koehler menciona repetidamente que, nos chimpanzés, as rea-ções emocionais, especialmente as muito intensas, excluemuma operação intelectual simultânea. Terceiro, deve-se salien-tar mais uma vez que a descarga emocional não é a única fun-ção da fala entre os macacos antropóides. Como em outros ani-mais, e no próprio homem, também é um meio de contato psi-cológico com outros de sua espécie. Tanto nos chimpanzés deYerkes e Learned, como nos macacos observados por Koehler,essa função da fala é óbvia. Não está, no entanto, relacionadacom reações intelectuais, isto é, com o pensamento. Ela se ori-gina da emoção e é claramente uma parte da síndrome emocio-nal total, mas uma parte que exerce uma função específica,tanto biológica quanto psicologicamente. Está longe de seruma tentativa intencional e consciente de influenciar ou infor-mar os outros. Em essência, é uma reação instintiva ou algoextremamente semelhante.

Dificilmente se pode questionar o fato de que, em termosbiológicos, essa função da fala é uma das mais primitivas eestá geneticamente relacionada com os sinais visuais e vocaisemitidos pelos chefes dos grupos de animais. Num estudo re-centemente publicado acerca da linguagem das abelhas, K.von Frisch descreve formas de comportamento muito interes-santes e teoricamente importantes, que servem para o inter-câmbio ou contato [10] e que, sem dúvida, se originam do ins-tinto. Apesar das diferenças fenotípicas, essas manifestaçõesde comportamento são basicamente semelhantes ao intercâm-bio lingüístico dos chimpanzés. Essa semelhança reforça umavez mais a independência das "comunicações" dos chimpan-zés em relação a qualquer atividade intelectual.

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Realizamos essa análise de vários estudos sobre a lingua-gem e o intelecto dos macacos antropóides para elucidar a re-lação entre o pensamento e a fala no desenvolvimento filoge-nético dessas funções. Podemos agora resumir nossas conclusões,que serão úteis na análise posterior do problema:

1.O pensamento e a fala têm raízes genéticas diferentes.2. As duas funções se desenvolvem ao longo de trajetórias

diferentes e independentes.3. Não há qualquer relação clara e constante entre elas.4. Os antropóides apresentam um intelecto um tanto pare-

cido com o do homem, em certos aspectos (o uso embrionáriode instrumentos), e uma linguagem bastante semelhante à dohomem, em aspectos totalmente diferentes (o aspecto fonéticoda sua fala, sua função de descarga emocional, o início de umafunção social).

5. A estreita correspondência entre o pensamento e a fala,caraterística do homem, não existe nos antropóides.

6. Na filogenia do pensamento e da fala, pode-se distinguirclaramente uma fase pré-lingüística no desenvolvimento do pen-samento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da fala.

II

Ontogeneticamente, a relação entre o desenvolvimento dopensamento e o da fala é muito mais complexa e obscura; mastambém aqui podemos distinguir duas linhas separadas, deri-vadas de duas raízes genéticas diferentes.

A existência de uma fase pré-verbal na evolução do pensa-mento durante a infância só recentemente foi corroborada porprovas objetivas. As experiências de Koehler com chimpanzés,adequadamente modificadas, foram realizadas com criançasque ainda não haviam aprendido a falar. Ocasionalmente, opróprio Koehler desenvolveu alguns experimentos com crian-ças, com o objetivo de estabelecer comparações, e Buehler rea-

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lizou, nas mesmas bases, um estudo sistemático de uma crian-ça. As descobertas foram semelhantes para as crianças e paraos macacos antropóides.

As ações das crianças, diz Buehler,

eram exatamente como a dos chimpanzés, de forma que essafase da vida da criança poderia ser chamada, com maior preci-são, de idade chimpanzóide; na criança que observamos corres-pondia ao 10º, 11º e 12º meses... Na idade chimpanzóide ocor-rem as primeiras invenções da criança - muito primitivas, éclaro, mas extremamente importantes para o seu desenvolvi-mento mental [7, p. 46].

O que é teoricamente mais importante nesses experimen-tos, assim como nos dos chimpanzés, é a descoberta da inde-pendência das reações intelectuais rudimentares em relação àfala. Observando isso, Buehler comenta:

Costumava-se dizer que a fala era o princípio da hominiza-ção (Menschwerden); talvez sim, mas antes da fala há o pensa-mento associado à utilização de instrumentos, isto é, a com-preensão das relações mecânicas, e a criação de meios mecâni-cos para fins mecânicos; ou, em resumo, antes do aparecimentoda fala a ação se torna subjetivamente significativa - em outraspalavras, conscientemente intencional [7, p. 48].

As raízes pré-intelectuais da fala no desenvolvimento dacriança são há muito conhecidas. O balbucio e o choro da crian-ça, mesmo suas primeiras palavras, são claramente estágios dodesenvolvimento da fala que não têm nenhuma relação com aevolução do pensamento. Essas manifestações geralmente têmsido consideradas uma forma de comportamento predominan-temente emocional. Entretanto, nem todas se limitam à funçãode descarga emocional. Pesquisas recentes acerca das primei-ras formas de comportamento da criança e das suas primeirasreações à voz humana (realizadas por Charlotte Buehler e seu

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grupo) mostraram que a função social da fala já é aparentedurante o primeiro ano, isto é, na fase pré-intelectual do desen-volvimento da fala. Reações bastante definidas à voz humanaforam observadas já no início da terceira semana de vida, e a pri-meira reação especificamente social à voz, durante o segundomês [5, p. 124]. Essas investigações também demonstraram queas risadas, os sons inarticulados, os movimentos etc. são meiosde contato social a partir dos primeiros meses de vida da criança.

Assim, as duas funções da fala que observamos no desen-volvimento filogenético aparecem, e são evidentes, antes mes-mo do primeiro ano de vida.

Mas a descoberta mais importante é que, num certomomento, mais ou menos aos dois anos de idade, as curvas daevolução do pensamento e da fala, até então separadas, encon-tram-se e unem-se para iniciar uma nova forma de comporta-mento. O relato de Stern sobre esse importante evento foi oprimeiro e o melhor. Ele mostrou como a vontade de dominar alinguagem se segue à primeira percepção difusa do propósitoda fala, quando a criança "faz a maior descoberta de sua vida",a de que "cada coisa tem seu nome" [40, p. 108].

Esse instante crucial, em que a fala começa a servir aointelecto, e os pensamentos começam a ser verbalizados, é indi-cado por dois sintomas objetivos inconfundíveis: (1) a curiosi-dade ativa e repentina da criança pelas palavras, suas perguntassobre cada coisa nova ("O que é isto?"); e (2) a conseqüenteampliação de seu vocabulário, que ocorre de forma rápida e aossaltos.

Antes desse momento crítico, a criança - como algunsanimais - reconhece de fato um pequeno número de palavrasque, como ocorre no condicionamento, substituem objetos,pessoas, ações, estados ou desejos. Nessa idade, a criança co-nhece apenas as palavras que aprende com outras pessoas.Agora a situação muda: a criança sente a necessidade das pala-vras e, ao fazer perguntas, tenta ativamente aprender os signosvinculados aos objetos. Ela parece ter descoberto a função

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simbólica das palavras. A fala, que na primeira fase era afeti-vo-conativa, agora passa para a fase intelectual. As linhas dodesenvolvimento da fala e do pensamento se encontram.

Nesse ponto ata-se o nó do problema do pensamento e dalinguagem. Vamos parar por um momento e examinar o queacontece, exatamente, quando a criança faz "a sua maior des-coberta", e verificar se a interpretação de Stern está correta.

Buehler e Koffka comparam essa descoberta às invençõesdos chimpanzés. Segundo Koffka, uma vez descoberto pelacriança, o nome passa a fazer parte da estrutura do objeto, damesma maneira que a vara torna-se parte da situação de quererpegar a fruta [20, p. 243].

Discutiremos a validade dessa analogia mais tarde, aoexaminar as relações funcionais e estruturais entre o pensa-mento e a fala. Por ora, nos limitaremos a observar que "amaior descoberta da criança" só é possível quando já se atingiuum nível relativamente elevado do desenvolvimento do pensa-mento e da fala. Em outras palavras, a fala não pode ser "des-coberta" sem o pensamento.

Em resumo, devemos concluir que:1. No seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e

a fala têm raízes diferentes.2. Podemos, com certeza, estabelecer, no desenvolvimen-

to da fala da criança, um estágio pré-intelectual; e no desenvol-vimento de seu pensamento, um estágio pré-lingüístico.

3. A uma certa altura, essas linhas se encontram; conse-qüentemente, o pensamento torna-se verbal e a fala racional.

III

Qualquer que seja a abordagem adotada para o controver-so problema da relação entre o pensamento e a fala, teremosque fazer um extenso estudo da fala interior. Sua importânciapara o nosso pensamento é tão grande, que muitos psicólogos,

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inclusive Watson, chegam até mesmo a identificá-la com opensamento - que consideram uma fala inibida e silenciosa.Mas a psicologia ainda não sabe como se dá a passagem dafala aberta para a fala interior, nem em que idade, por qual pro-cesso e por que ocorre.

Watson diz que não sabemos em que ponto de sua organi-zação da fala as crianças passam da fala aberta para o sussurroe, depois, para a fala interior, pois o problema só foi estudadode forma casual. Nossas próprias pesquisas levam-nos a crerque Watson coloca o problema incorretamente. Não há qual-quer razão válida para se supor que a fala interior se desenvol-ve de alguma forma mecânica, por meio de uma diminuiçãogradual na audibilidade da fala (sussurros).

É verdade que Watson menciona outra possibilidade: "Tal-vez", diz ele, "todas as três formas se desenvolvam simulta-neamente" [54, p. 322]. Essa hipótese parece-nos tão infunda-da do ponto de vista genético quanto a seqüência: fala em vozalta, sussurro, fala interior. Nenhum dado objetivo reforça essetalvez. Contra ele testemunham as profundas diferenças entre afala exterior e a fala interior, reconhecidas por todos os psicó-logos, inclusive Watson. Não há razão para se supor que osdois processos, tão diferentes em termos funcionais (adapta-ção social em oposição à individual) e estruturais (a economiaextrema, elíptica, da fala interior, que altera o padrão da fala aponto de torná-la quase irreconhecível), possam ser genetica-mente paralelos e simultâneos. Nem nos parece plausível (paravoltar à tese principal de Watson) que sejam interligados pelafala sussurrada, a qual não pode ser considerada - seja em ter-mos de função ou de estrutura - uma fase de transição entre afala exterior e a interior. Ela se situa entre as duas apenas feno-tipicamente, e não genotipicamente.

Nossos estudos acerca do sussurro em crianças pequenascomprovam plenamente esse fato. Descobrimos que, no tocan-te à estrutura, quase não há diferença entre sussurrar e falaralto; quanto à função, o sussurro difere profundamente da fala

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interior e nem mesmo manifesta uma tendência para assumiras caraterísticas típicas desta última. Além disso, não se desen-volve espontaneamente até a idade escolar, embora possa serinduzido muito cedo: sob pressão social, uma criança de trêsanos pode, por períodos curtos e com muito esforço, abaixar avoz ou sussurrar. Esse é o único ponto que parece confirmar aopinião de Watson.

Embora discordemos da tese de Watson, acreditamos queele acertou quanto à abordagem metodológica: para solucionaro problema, precisamos procurar o elo intermediário entre afala aberta e a fala interior.

Estamos inclinados a ver esse elo na fala egocêntrica dacriança, descrita por Piaget, a qual, além de seu papel de acom-panhar a atividade da criança e de sua função de descarga emo-cional, rapidamente assume uma função planejadora, isto é,transforma-se, de maneira fácil e natural, no pensamento pro-priamente dito.

Se a nossa hipótese estiver realmente correta, devemosconcluir que a fala é interiorizada psicologicamente antes deser interiorizada fisicamente. A fala egocêntrica é, quanto a suasfunções, a fala interior; é a fala em sua trajetória para a interio-rização; intimamente ligada à organização do comportamentoda criança, já parcialmente incompreensível para outras pes-soas, embora explícita em sua forma e sem apresentar nenhu-ma tendência para se transformar em sussurro ou qualqueroutra forma de fala a meio tom.

Deveríamos então explicar, também, por que a fala se in-terioriza. Interioriza-se porque sua função muda. Seu desen-volvimento ainda deveria ter três fases - não as encontradaspor Watson, mas as seguintes: fala exterior, fala egocêntrica,fala interior. Deveríamos também ter à nossa disposição ummétodo excelente para estudar a fala interior "ao vivo", porassim dizer, enquanto suas peculiaridades funcionais e estrutu-rais estivessem sendo moldadas; seria um método objetivo,pois essas peculiaridades aparecem quando a fala ainda é audí-vel, isto é, acessível à observação e à mensuração.

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Nossas investigações mostram que o desenvolvimento dafala segue o mesmo curso e obedece às mesmas leis que o de-senvolvimento de todas as outras operações mentais que envol-vem o uso de signos, tais como o ato de contar ou a memoriza-ção mnemônica. Descobrimos que essas operações geralmentese desenvolvem em quatro estágios. O primeiro é o estágionatural ou primitivo, correspondendo à fala pré-intelectual eao pensamento pré-verbal, quando estas operações aparecemem sua forma original, tal como evoluíram na fase primitiva docomportamento.

Em seguida vem o estágio que podemos chamar de "psi-cologia ingênua", por analogia com a chamada "física ingênua"- a experiência da criança com as propriedades físicas do seupróprio corpo e dos objetos à sua volta, e a aplicação dessa ex-periência ao uso de instrumentos: o primeiro exercício da inte-ligência prática que está brotando na criança.

Essa fase está muito claramente definida no desenvolvi-mento da fala da criança. Manifesta-se pelo uso correto das for-mas e estruturas gramaticais antes que a criança tenha entendidoas operações lógicas que representam. A criança pode operarcom orações subordinadas, com palavras como porque, se,quando e mas, muito antes de aprender realmente as relaçõescausais, condicionais e temporais. Domina a sintaxe da fala an-tes da sintaxe do pensamento. Os estudos de Piaget provaramque a gramática se desenvolve antes da lógica, e que a criançaaprende relativamente tarde as operações mentais que corres-pondem às formas verbais que vem usando há muito tempo.

Com a acumulação gradual da experiência psicológica in-gênua, a criança passa para o terceiro estágio, que se caracteri-za por signos exteriores, operações externas que são usadascomo auxiliares na solução de problemas internos. É o estágioem que a criança conta com os dedos, recorre a auxiliares mne-mônicos etc. No desenvolvimento da fala, esse estágio se ca-racteriza pela fala egocêntrica.

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O quarto estágio é denominado estágio de "crescimentointerior". As operações externas se interiorizam e passam poruma profunda mudança no processo. A criança começa a con-tar mentalmente, a usar a "memória lógica", isto é, a operarcom relações intrínsecas e signos interiores. No desenvolvi-mento da fala, este é o estágio final da fala interior, silenciosa.Continua a existir uma interação constante entre as operaçõesexternas e internas, uma forma se transformando na outra semesforço e com freqüência, e vice-versa. Quanto à forma, a falainterior pode se aproximar muito da fala exterior, ou mesmotornar-se exatamente igual a esta última, quando serve de pre-paração para a fala exterior - por exemplo, quando se repassamentalmente uma conferência a ser dada. Não existe nenhumadivisão clara entre o comportamento interno e externo, e uminfluencia o outro.

Ao considerar a função da fala interior nos adultos, depoisque o desenvolvimento se completou, devemos questionar se,no caso deles, o pensamento e os processos lingüísticos estãonecessariamente ligados, e se ambos podem ser igualados. Maisuma vez, como no caso dos animais e das crianças, a respostadeve ser "não".

Esquematicamente, podemos imaginar o pensamento e afala como dois círculos que se cruzam. Nas partes que coinci-dem, o pensamento e a fala se unem para produzir o que sechama de pensamento verbal. O pensamento verbal, entretan-to, não abrange de modo algum todas as formas de pensamen-to ou de fala. Há uma vasta área do pensamento que não man-tém relação direta com a fala. O pensamento manifestado nouso de instrumentos pertence a essa área, da mesma forma queo intelecto prático em geral. Além disso, as investigações fei-tas pelos psicólogos da escola de Würzburg demonstraram queo pensamento pode funcionar sem quaisquer imagens verbaisou movimentos de fala detectáveis pela auto-observação. Osexperimentos mais recentes também mostram que não há ne-nhuma correspondência direta entre a fala interior e os movi-mentos da língua ou da laringe do indivíduo observado.

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Também não há qualquer razão psicológica para se consi-derar que todas as formas de atividade verbal sejam derivadasdo pensamento. Não pode existir nenhum processo de pensa-mento quando um indivíduo recita silenciosamente um poemaaprendido de cor ou repete mentalmente uma frase que lhe foiensinada para fins experimentais - apesar das idéias de Watson.Finalmente, há a fala "lírica", compelida pela emoção. Emboratenha todas as caraterísticas da fala, dificilmente pode ser clas-sificada como atividade intelectual, no verdadeiro sentido dapalavra.

Somos, portanto, forçados a concluir que a fusão de pensa-mento e fala, tanto nos adultos como nas crianças, é um fenô-meno limitado a uma área circunscrita. O pensamento não-ver-bal e a fala não-intelectual não participam dessa fusão e só indi-retamente são afetados pelos processos do pensamento verbal.

IV

Podemos agora resumir os resultados da nossa análise.Começamos tentando traçar a genealogia do pensamento e dafala, usando os dados da psicologia comparativa. Esses dadossão insuficientes para se delinear, com qualquer grau de certe-za, a evolução do pensamento e da fala pré-humanos. A ques-tão básica, ou seja, se os antropóides possuem o mesmo tipo deintelecto que o homem, ainda gera controvérsias. Koehler res-ponde afirmativamente, outros negativamente. Mas, emboraesse problema possa ser solucionado por investigações futuras,um fato já é claro: no mundo animal, o caminho em direção aum intelecto semelhante ao humano não é o mesmo em dire-ção a uma fala semelhante à humana; pensamento e fala nãoderivam de uma mesma raiz.

Mesmo aqueles que negam a existência de um intelectonos chimpanzés não podem negar que os macacos antropóidesapresentam algo que se aproxima do intelecto, e que o tipo

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mais elevado de formação de hábitos que manifestam é umintelecto em estado embrionário. A maneira como usam osinstrumentos prefigura o comportamento humano. Para osmarxistas, as descobertas de Koehler não constituem nenhumasurpresa. Marx [27] disse, há muito tempo, que o uso e a cria-ção de ferramentas de trabalho, embora presentes, de formaembrionária, em algumas espécies de animais, são uma carate-rística específica do processo de trabalho humano. A tese deque as raízes do intelecto humano podem ser encontradas noreino animal já foi há muito aceita pelo marxismo; encontra-mos sua elaboração em Plekhanov [34, p. 138]. Engels [9]escreveu que o homem e os animais têm as mesmas formas deatividade intelectual, e que somente o seu grau de desenvolvi-mento difere: os animais são capazes de raciocinar num nívelelementar, de analisar (quebrar uma noz é um início de análi-se), de experimentar quando se deparam com um problema ousituação difícil. Alguns animais, como o papagaio, por exem-plo, podem não só aprender a falar, como também utilizarpalavras cheias de significado, num sentido restrito: quandoquiser algo, usará as palavras com as quais será recompensadocom um petisco; quando importunado, soltará as invectivasmais fortes de seu vocabulário.

É desnecessário dizer que Engels não atribui aos animaisa capacidade de pensar e falar ao nível humano, mas não preci-samos, a esta altura, nos deter no significado exato de sua afir-mação. Pretendemos apenas provar que não há qualquer razãoreal para se negar nos animais a existência, em estado embrio-nário, de um pensamento e uma linguagem semelhantes aos dohomem e que, assim como neste último, se desenvolvem aolongo de caminhos distintos. A capacidade de expressão oralde um animal não dá nenhuma indicação de seu desenvolvi-mento mental.

Vamos agora resumir os dados relevantes obtidos em estu-dos recentes acerca das crianças. Descobrimos que também nacriança as raízes e o curso do desenvolvimento do intelecto

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diferem dos da fala - inicialmente, o pensamento é não-verbale a fala, não-intelectual. Stern afirma que as duas linhas dedesenvolvimento encontram-se num determinado ponto; a falatorna-se racional e o pensamento, verbal. A criança "descobre"que "cada coisa tem seu nome" e começa a perguntar como sechama cada objeto.

Alguns psicólogos [8] não concordam com Stern que essaprimeira "idade das perguntas" seja comum a todas as criançase seja, necessariamente, um sintoma de qualquer descobertarepentina. Koffka assume uma posição intermediária entreStern e seus opositores. Como Buehler, enfatiza a analogiaentre a invenção de instrumentos pelos chimpanzés e a desco-berta, pela criança, da função nominativa da linguagem, mas oâmbito dessa descoberta, segundo ele, não é tão amplo quantoStern presume. Para Koffka, a palavra torna-se parte da estru-tura do objeto, tendo o mesmo valor que as outras partes. Porum certo tempo é, para a criança, não um signo, mas apenasuma das propriedades do objeto, que precisa ser fornecida paracompletar sua estrutura. Como Buehler salientou, cada objetonovo apresenta para a criança uma situação problemática, e elaresolve o problema uniformemente, nomeando o objeto. Quan-do não conhece a palavra para designar o objeto novo, pergun-ta aos adultos [7, p. 54].

Acreditamos que essa visão é a que mais se aproxima daverdade. Os dados sobre a linguagem infantil (confirmadospelos dados antropológicos) sugerem firmemente que, por umlongo tempo, a palavra é para a criança uma propriedade doobjeto, mais do que um símbolo deste; que a criança capta a es-trutura externa palavra-objeto mais cedo do que a estruturasimbólica interna. Escolhemos essa hipótese "intermediária",dentre as várias oferecidas, porque achamos extremamente di-fícil acreditar, com base nos dados disponíveis, que uma crian-ça de dezoito meses a dois anos seja capaz de "descobrir" a fun-ção simbólica da fala. Isso ocorre mais tarde, e não de repente,mas de forma gradual, por meio de uma série de mudanças

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"moleculares". A hipótese que escolhemos está de acordo como padrão geral de desenvolvimento do domínio dos signos, queesboçamos na seção anterior. Mesmo numa criança em idadeescolar, o uso funcional de um novo signo é precedido por umperíodo de domínio da estrutura externa do signo. Da mesmaforma, somente ao operar com palavras que foram primeiroconcebidas como propriedades dos objetos, é que a criançadescobre e consolida a sua função como signos.

Assim, a tese da "descoberta" de Stern exige uma reava-liação e uma limitação. Seu princípio básico, entretanto, per-manece válido: é claro que, ontogeneticamente, o pensamentoe a fala se desenvolvem ao longo de linhas distintas e que, numcerto ponto, essas linhas se encontram. Esse fato importanteestá agora definitivamente estabelecido, seja qual for a conclu-são a que os estudos posteriores possam chegar quanto aosdetalhes sobre os quais os psicólogos ainda discordam: se esseencontro ocorre em um ponto ou em vários pontos; como umadescoberta realmente súbita, ou depois de uma longa prepara-ção através do uso prático e de uma lenta mudança funcional;se ocorre aos dois anos ou na idade escolar.

Resumiremos agora a nossa pesquisa sobre a fala interior.Aqui, também, consideramos várias hipóteses e chegamos àconclusão de que a fala interior se desenvolve mediante um len-to acúmulo de mudanças estruturais e funcionais; que se sepa-ra da fala exterior das crianças ao mesmo tempo que ocorre adiferenciação das funções social e egocêntrica da fala; e, final-mente, que as estruturas da fala dominadas pela criança tor-nam-se estruturas básicas de seu pensamento.

Isto nos leva a outro fato inquestionável e de grande im-portância: o desenvolvimento do pensamento é determinadopela linguagem, isto é, pelos instrumentos lingüísticos do pen-samento e pela experiência sócio-cultural da criança. Basica-mente, o desenvolvimento da fala interior depende de fatoresexternos: o desenvolvimento da lógica na criança, como os es-tudos de Piaget demonstraram, é uma função direta de sua fala

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socializada. O crescimento intelectual da criança depende deseu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é, da lin-guagem.

Podemos agora formular as principais conclusões a quechegamos a partir da nossa análise. Se compararmos o desen-volvimento inicial da fala e do intelecto - que, como vimos, sedesenvolvem ao longo de linhas diferentes tanto nos animaiscomo nas crianças muito novas - com o desenvolvimento dafala interior e do pensamento verbal, devemos concluir que oúltimo estágio não é uma simples continuação do primeiro. Anatureza do próprio desenvolvimento se transforma, do bioló-gico para o sócio-histórico. O pensamento verbal não é umaforma de comportamento natural e inata, mas é determinadopor um processo histórico-cultural e tem propriedades e leisespecíficas que não podem ser encontradas nas formas natu-rais de pensamento e fala. Uma vez admitido o caráter históri-co do pensamento verbal, devemos considerá-lo sujeito a todasas premissas do materialismo histórico, que são válidas paraqualquer fenômeno histórico na sociedade humana. Espera-seapenas que, neste nível, o desenvolvimento do comportamentoseja regido essencialmente pelas leis gerais da evolução histó-rica da sociedade humana.

O problema do pensamento e da linguagem estende-se,portanto, para além dos limites da ciência natural e torna-se oproblema central da psicologia humana histórica, isto é, da psi-cologia social. Conseqüentemente, deve ser colocado de outraforma. Esse segundo problema apresentado pelo estudo dopensamento e da fala será o tema de uma outra pesquisa.

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5. Um estudo experimentalda formação de conceitos

Até há pouco tempo, o estudioso da formação de conceitostinha sua tarefa dificultada pela falta de um método experimen-tal que lhe permitisse observar a dinâmica interna do processo.

Os métodos tradicionais de estudo dos conceitos dividem-se em dois grupos. O chamado método de definição, com suasvariantes, é típico do primeiro grupo. É utilizado para investi-gar os conceitos já formados na criança através da definiçãoverbal de seus conteúdos. Dois importantes inconvenientestornaram esse método inadequado para o estudo aprofundadodo processo. Em primeiro lugar, ele lida com o produto acabadoda formação de conceitos, negligenciando a dinâmica e o de-senvolvimento do processo em si. Ao invés de trazer à tona,por instigação, o pensamento da criança, esse método freqüen-temente suscita uma mera reprodução do conhecimento ver-bal, de definições já prontas, fornecidas a partir do exterior.Pode ser um teste do conhecimento e da experiência da crian-ça, ou de seu desenvolvimento lingüístico, em vez de um estudodo processo intelectual propriamente dito. Em segundo lugar,ao centrar-se na palavra, esse método deixa de levar em consi-deração a percepção e a elaboração mental do material senso-

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rial que dá origem ao conceito. O material sensorial e a palavrasão partes indispensáveis à formação de conceitos. O estudoisolado da palavra coloca o processo no plano puramente ver-bal, que não é característico do pensamento infantil. A relaçãoentre o conceito e a realidade continua inexplorada; aborda-seo significado de uma determinada palavra através de uma ou-tra, e o que quer que se descubra por meio dessa operação éantes um registro da relação, na mente da criança, entre famí-lias de palavras previamente formadas, do que um quadro dosconceitos da criança.

O segundo grupo abrange os métodos utilizados no estudoda abstração. Esses métodos dizem respeito aos processos psí-quicos que levam à formação de conceitos. Pede-se à criançaque descubra algum traço comum em uma série de impressõesdiscretas, abstraindo-o de todos os outros traços aos quais estáperceptualmente ligado. Os métodos desse grupo negligen-ciam o papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na for-mação dos conceitos; um quadro simplificado substitui a es-trutura complexa do processo total por um processo parcial.

Dessa forma, cada um desses dois métodos tradicionaissepara a palavra do material da percepção e opera ou com uma,ou com outro. Um grande passo a frente foi dado com a cria-ção de um novo método que permite a combinação de ambasas partes. Esse novo método introduz, na situação experimen-tal, palavras sem sentido, que a princípio não significam nadaao sujeito do experimento. Também introduz conceitos artifi-ciais, ligando cada palavra sem sentido a uma determinadacombinação de atributos dos objetos para os quais não existenenhum conceito ou palavra já prontos. Por exemplo, nosexperimentos de Ach [1], a palavra gatsun adquire gradual-mente o sentido de "grande e pesado"; a palavra fal, "pequenoe leve". Esse método pode ser aplicado tanto a crianças como aadultos, uma vez que a solução do problema não pressupõe umaexperiência ou conhecimento anteriores por parte do sujeitoobservado. Também leva em consideração que um conceito

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não é uma formação isolada, fossilizada e imutável, mas simuma parte ativa do processo intelectual, constantemente a ser-viço da comunicação, do entendimento e da solução de proble-mas. O novo método centra a sua investigação nas condiçõesfuncionais da formação de conceitos.

Rimat procedeu a um estudo cuidadosamente planejado naformação de conceitos em adolescentes, utilizando uma varian-te desse método. A principal conclusão a que chegou foi que averdadeira formação de conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e só tem início no final da puberdade. Ele escreve:

Estabelecemos, definitivamente, que só ao término do dé-cimo segundo ano manifesta-se um nítido aumento na capacida-de da criança de formar, sem ajuda, conceitos objetivos genera-lizados... O pensamento por conceitos, emancipado da percep-ção, faz exigências que excedem suas possibilidades mentaisantes dos doze anos de idade [55, p. 112].

As investigações de Ach e Rimat contestam a concepção deque a formação de conceitos se baseia em conexões associati-vas. Ach demonstrou que a existência de associações entre ossímbolos verbais e os objetos, embora sólidas e numerosas, nãoé por si só suficiente para a formação de conceitos. Suas desco-bertas experimentais não confirmaram a velha crença de que umconceito se desenvolve mediante o máximo fortalecimento dasconexões associativas que envolvem os atributos comuns a umgrupo de objetos, e o enfraquecimento das associações que en-volvem os atributos que distinguem esses objetos.

Os experimentos de Ach revelaram que a formação de con-ceitos é um processo criativo, e não um processo mecânico epassivo; que um conceito surge e se configura no curso de umaoperação complexa, voltada para a solução de algum proble-ma; e que só a presença de condições externas favoráveis auma ligação mecânica entre a palavra e o objeto não é sufi-ciente para a criação de um conceito. Em sua opinião, o fator

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decisivo para a formação de conceitos é a chamada tendênciadeterminante.

Antes de Ach, a psicologia postulava duas tendências bá-sicas que regiam o fluxo de nossas idéias: a reprodução pormeio da associação e a perseverança. A primeira traz de voltaaquelas imagens que, em experiências passadas, estiveram li-gadas à imagem que, no momento, nos ocupa a mente. A se-gunda é a tendência de cada imagem a voltar e a penetrar nova-mente o fluxo de imagens. Em suas primeiras investigações,Ach demonstrou que essas duas tendências falharam em expli-car os atos de pensamento intencionais e conscientemente diri-gidos. Ele presumiu, portanto, que esses pensamentos eram re-gulados por uma terceira tendência, a "tendência determinan-te", estabelecida pela imagem do objetivo. O estudo dos con-ceitos realizado por Ach mostrou que nenhum conceito novose formava sem o efeito regulador da tendência determinantecriada pela tarefa experimental.

De acordo com o esquema de Ach, a formação de conceitosnão segue o modelo de uma cadeia associativa, em que um elofaz surgir o seguinte; trata-se de um processo orientado para umobjetivo, uma série de operações que servem de passos em dire-ção a um objetivo final. A memorização de palavras e a suaassociação com os objetos não leva, por si só, à formação deconceitos; para que o processo se inicie, deve surgir um proble-ma que só possa ser resolvido pela formação de novos conceitos.

No entanto, essa caracterização do processo da formaçãode conceitos é ainda insuficiente. As crianças podem entendere realizar a tarefa experimental muito antes de completaremdoze anos de idade; no entanto, até completarem essa idade,são incapazes de formar novos conceitos. O próprio estudo deAch demonstrou que as crianças diferem dos adolescentes edos adultos não pelo modo como compreendem o objetivo,mas sim pelo modo como suas mentes trabalham para alcançá-lo. O minucioso estudo experimental realizado por D. Usnadze[44, 45] sobre a formação de conceitos em idade pré-escolar

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também mostrou que, nessa idade, uma criança aborda os pro-blemas exatamente da mesma maneira que o adulto faz ao ope-rar com conceitos, mas o modo de resolvê-los é completamen-te diferente. Só podemos concluir que os fatores responsáveispela diferença essencial entre o pensamento conceituai doadulto e as formas de pensamento características da criançapequena não são nem o objetivo a ser alcançado, nem a tendên-cia determinante, mas sim outros fatores ainda não examina-dos pelos pesquisadores.

Usnadze salienta que, enquanto os conceitos completa-mente formados aparecem relativamente tarde, as crianças co-meçam cedo a utilizar palavras e a estabelecer, com a ajudadestas, uma compreensão mútua com os adultos e entre elas pró-prias. A partir dessa constatação, ele conclui que as palavrasexercem a função de conceitos e podem servir como meio decomunicação muito antes de atingir o nível de conceitos carac-terístico do pensamento plenamente desenvolvido.

Deparamo-nos, então, com o seguinte estado de coisas:num estágio inicial de seu desenvolvimento, uma criança é ca-paz de compreender um problema e visualizar o objetivo colo-cado por esse problema; como as tarefas de compreender e co-municar-se são essencialmente as mesmas para o adulto e paraa criança, esta desenvolve equivalentes funcionais de conceitosnuma idade extremamente precoce, mas as formas de pensa-mento que ela utiliza ao lidar com essas tarefas diferem pro-fundamente das do adulto, em sua composição, estrutura e mo-do de operação. A questão principal quanto ao processo da for-mação de conceitos - ou quanto a qualquer atividade dirigidapara um objetivo - é a questão dos meios pelos quais essa ope-ração é realizada. Quando se afirma, por exemplo, que o traba-lho é induzido pelas necessidades humanas, esta explicaçãonão é suficiente. Devemos considerar também o uso de instru-mentos, a mobilização dos meios apropriados sem os quais otrabalho não poderia ser realizado. Para explicar as formasmais elevadas do comportamento humano, precisamos revelar

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os meios pelos quais o homem aprende a organizar e a dirigir oseu comportamento.

Todas as funções psíquicas superiores são processos me-diados, e os signos constituem o meio básico para dominá-las edirigi-las. O signo mediador é incorporado à sua estrutura comouma parte indispensável, na verdade a parte central do proces-so como um todo. Na formação de conceitos, esse signo é apalavra, que em princípio tem o papel de meio na formação deum conceito e, posteriormente, torna-se o seu símbolo. Emseus experimentos, Ach não dá atenção suficiente a esse papelda palavra. O seu estudo, embora tenha o mérito de desacredi-tar de uma vez por todas a concepção mecanicista da formaçãode conceitos, não foi capaz de revelar a verdadeira natureza doprocesso - genética, funcional ou estruturalmente. Seguiu ocaminho errado da interpretação puramente teleológica, que seresume na afirmação de que o próprio objetivo cria a atividadeadequada, por meio da tendência determinante - isto é, que oproblema traz em si a sua própria solução.

II

Para estudar o processo da formação de conceitos em suasvárias fases evolutivas, utilizamos o método desenvolvido porum de nossos colaboradores, L. S. Sakharov [36]. Esse métodopoderia ser descrito como o "método da dupla estimulação":dois conjuntos de estímulos são apresentados ao sujeito obser-vado; um como objetos da sua atividade, e outro como signosque podem servir para organizar essa atividade9.

9. Vigotski não descreve o teste detalhadamente. A descrição a seguirfoi extraída da obra Conceptual Thinking in Schizophrenia, de E. Hanfmanne J. Kasanin [16, pp. 9-10]. (Nota da edição inglesa.)

O material utilizado nos testes de formação de conceitos consiste em22 blocos de madeira, de cores, formas, alturas e larguras diferentes. Existem

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Em alguns aspectos importantes, esse procedimento éinverso aos experimentos de Ach sobre a formação de concei-tos. Ach começa por dar ao sujeito um período de aprendizadoou prática; ele pode manusear os objetos e ler as palavras semsentido que estão escritas em cada um, antes de saber qual seráa sua tarefa. Em nossos experimentos, o problema é apresenta-do ao sujeito logo de início e permanece o mesmo até o final,mas as chaves para a sua solução são introduzidas passo apasso, cada vez que um bloco é virado. Decidimo-nos por essa

cinco cores diferentes, seis formas diferentes, duas alturas (os blocos altos eos baixos) e duas larguras da superfície horizontal (larga e estreita). Na faceinferior de cada bloco, que não é vista pelo sujeito observado, está escrita umadas quatro palavras sem sentido: lag, bik, mur, cev. Sem considerar a cor ou aforma, lag está escrita em todos os blocos altos e largos, bik em todos os blo-cos baixos e largos, mur nos blocos altos e estreitos, e cev nos blocos baixos eestreitos. No início do experimento todos os blocos, bem misturados quantoàs cores, tamanhos e formas, estão espalhados sobre uma mesa à frente dosujeito... O examinador vira um dos blocos (a "amostra"), mostra-o e lê seunome para o sujeito e pede a ele que pegue todos os blocos que pareçam serdo mesmo tipo. Após o sujeito ter feito isso... o examinador vira um dos blo-cos "erradamente" selecionados, mostra que aquele bloco é de um tipo dife-rente e incentiva o sujeito a continuar tentado. Depois de cada nova tentativa,outro dos blocos erradamente retirados é virado. A medida que o número deblocos virados aumenta, o sujeito gradualmente adquire uma base para desco-brir a que características dos blocos as palavras sem sentido se referem.Assim que faz essa descoberta, as... palavras... passam a referir-se a tiposdefinidos de objetos (por exemplo, lag para os blocos e largos, bik para osbaixos e largos), e assim são criados novos conceitos para os quais a lingua-gem não dá nomes. O sujeito é então capaz de completar a tarefa de separar osquatro tipos de blocos indicados pelas palavras sem sentido. Dessa forma, ouso de conceitos tem um valor funcional definido para o desempenho exigidopor este teste. Se o sujeito realmente usa o pensamento conceituai ao tentarresolver o problema (...) é o que se pode deduzir a partir da natureza dos gru-pos que ele constrói e de seu procedimento ao construí-los: praticamente cadapasso de seu raciocínio reflete-se na sua manipulação dos blocos. A primeiraabordagem do problema, o manuseio da amostra, a resposta à correção, a des-coberta da solução - todos esses estágios do experimento fornecem dados quepodem servir de indicadores do nível de raciocínio do sujeito.

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seqüência porque acreditamos que, para se iniciar o processo, énecessário confrontar o sujeito com a tarefa. A introdução gra-dual dos meios para a solução permite-nos estudar o processototal da formação de conceitos em todas as suas fases dinâmi-cas. A formação dos conceitos é seguida por sua transferênciapara outros objetos: o sujeito é induzido a utilizar os novos ter-mos ao falar sobre outros objetos que não os blocos experimen-tais, e a definir o seu significado de uma forma generalizada.

III

Na série de investigações do processo da formação de con-ceitos iniciada em nosso laboratório por Sakharov, e completa-da por nós e por nossos colaboradores Kotelova e Pashkovskaja[48; 49, p. 70], mais de trezentas pessoas foram estudadas -crianças, adolescentes e adultos, inclusive alguns com distúr-bios patológicos das atividades intelectuais e lingüísticas.

As descobertas principais de nossos estudos podem serassim resumidas: o desenvolvimento dos processos que final-mente resultam na formação de conceitos começa na fase maisprecoce da infância, mas as funções intelectuais que, numacombinação específica, formam a base psicológica do proces-so da formação de conceitos amadurece, se configura e sedesenvolve somente na puberdade. Antes dessa idade, encon-tramos determinadas formações intelectuais que realizam fun-ções semelhantes àquelas dos conceitos verdadeiros, ainda porsurgir. No que diz respeito à composição, estrutura e operação,esses equivalentes funcionais dos conceitos têm, para com osconceitos verdadeiros, uma relação semelhante à do embriãocom o organismo plenamente desenvolvido. Equiparar os doissignifica ignorar o prolongado processo de desenvolvimentoentre o estágio mais inicial e o estágio final.

A formação de conceitos é o resultado de uma atividadecomplexa, em que todas as funções intelectuais básicas tomam

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parte. No entanto, o processo não pode ser reduzido à associa-ção, à atenção, à formação de imagens, à inferência ou às ten-dências determinantes. Todas são indispensáveis, porém insu-ficientes sem o uso do signo, ou palavra, como o meio peloqual conduzimos as nossas operações mentais, controlamos oseu curso e as canalizamos em direção à solução do problemaque enfrentamos.

A presença de um problema que exige a formação de con-ceitos não pode, por si só, ser considerada a causa do processo,muito embora as tarefas com que o jovem se depara ao ingres-sar no mundo cultural, profissional e cívico dos adultos sejam,sem dúvida, um fator importante para o surgimento do pensa-mento conceituai. Se o meio ambiente não apresenta nenhumadessas tarefas ao adolescente, não lhe faz novas exigências enão estimula o seu intelecto, proporcionando-lhe uma série denovos objetos, o seu raciocínio não conseguirá atingir os está-gios mais elevados, ou só os alcançará com grande atraso.

No entanto, a tarefa cultural, por si só, não explica o me-canismo de desenvolvimento em si, que resulta na formação deconceitos. O pesquisador deve ter como objetivo a compreen-são das relações intrínsecas entre as tarefas externas e a dinâ-mica do desenvolvimento, e deve considerar a formação de con-ceitos como uma função do crescimento social e cultural glo-bal do adolescente, que afeta não apenas o conteúdo, mas tam-bém o método de seu raciocínio. O novo e significativo uso dapalavra, a sua utilização como um meio para a formação deconceitos, é a causa psicológica imediata da transformaçãoradical por que passa o processo intelectual no limiar da ado-lescência.

Nessa idade não aparece nenhuma função elementar nova,essencialmente diferente daquelas já presentes, mas todas asfunções existentes são incorporadas a uma nova estrutura, for-mam uma nova síntese, tornam-se partes de um novo todocomplexo; as leis que regem esse todo também determinam odestino de cada uma das partes. Aprender a direcionar os pró-

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prios processos mentais com a ajuda de palavras ou signos éuma parte integrante do processo da formação de conceitos. Acapacidade para regular as próprias ações fazendo uso demeios auxiliares atinge o seu pleno desenvolvimento somentena adolescência.

IV

Nossas pesquisas demonstraram que a trajetória até a for-mação de conceitos passa por três fases básicas, cada uma, porsua vez, dividida em vários estágios. Nesta seção, e nas seguin-tes, descreveremos essas fases e suas subdivisões da formacomo aparecem quando estudadas pelo método da "dupla esti-mulação".

A criança pequena dá seu primeiro passo para a formaçãode conceitos quando agrupa alguns objetos numa agregaçãodesorganizada, ou "amontoado", para solucionar um problemaque nós, adultos, normalmente resolveríamos com a formaçãode um novo conceito. O amontoado, constituído por objetos de-siguais, agrupados sem qualquer fundamento, revela uma exten-são difusa e não-direcionada do significado do signo (palavraartificial) a objetos naturalmente não relacionados entre si eocasionalmente relacionados na percepção da criança.

Neste estágio, o significado das palavras denota, para acriança, nada mais do que um conglomerado vago e sincréticode objetos isolados que, de uma forma ou outra, aglutinaram-senuma imagem em sua mente. Devido à sua origem sincrética,essa imagem é extremamente instável.

Na percepção, no pensamento e na ação, a criança tende amisturar os mais diferentes elementos em uma imagem desar-ticulada, por força de alguma impressão ocasional. Claparèdedeu o nome de "sincretismo" a esse traço bem conhecido dopensamento infantil. Blonski chamou-o de "coerência incoe-rente" do raciocínio da criança. Descrevemos o fenômeno em

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outra oportunidade como o resultado de uma tendência a com-pensar, por uma superabundância de conexões subjetivas, ainsuficiência das relações objetivas bem apreendidas, e a con-fundir esses elos subjetivos com elos reais entre as coisas.Essas relações sincréticas e o acúmulo desordenado de objetosagrupados sob o significado de uma palavra também refletemelos objetivos na medida em que estes últimos coincidem comas relações entre as percepções ou impressões da criança.Muitas palavras, portanto, têm em parte o mesmo significadopara a criança e para o adulto, especialmente as que se referema objetos concretos do ambiente habitual da criança. Os signi-ficados dados a uma palavra por um adulto e por uma criançaem geral "coincidem", por assim dizer, no mesmo objeto con-creto, e isso é suficiente para garantir a compreensão mútua.

A primeira fase da formação de conceitos, que acabamosde esboçar, inclui três estágios distintos. Pudemos observá-lospormenorizadamente na estrutura do estudo experimental.

O primeiro estágio na formação dos amontoados sincréti-cos, que representam para a criança o significado de uma de-terminada palavra artificial, é uma manifestação do estágio detentativa e erro no desenvolvimento do pensamento. O grupo écriado ao acaso, e cada objeto acrescentado é uma mera supo-sição ou tentativa; um outro objeto o substitui quando se provaque a suposição estava errada, isto é, quando o experimentadorvira o objeto e mostra que ele tem um nome diferente.

Durante o estágio seguinte, a composição do grupo é emgrande parte determinada pela posição espacial dos objetos ex-perimentais, isto é, por uma organização do campo visual dacriança puramente sincrética. A imagem ou grupo sincréticosformam-se como resultado da contigüidade no tempo ou noespaço dos elementos isolados, ou pelo fato de serem inseridosem alguma outra relação mais complexa pela percepção ime-diata da criança.

Durante o terceiro estágio da primeira fase da formaçãode conceitos, a imagem sincrética assenta-se numa base mais

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complexa: compõe-se de elementos tirados de grupos ou amon-toados diferentes, que já foram formados pela criança da ma-neira descrita acima. Esses elementos recombinados não apre-sentam elos intrínsecos entre si, de modo que a nova formaçãotem a mesma "coerência incoerente" dos primeiros amontoa-dos. A única diferença é que, ao tentar dar significado a umanova palavra, a criança agora o faz por meio de uma operaçãoque se processa em duas etapas. Mas essa operação mais ela-borada permanece sincrética e não resulta em uma ordemmaior do que a simples agregação dos amontoados.

A segunda fase mais importante na trajetória para a for-mação de conceitos abrange muitas variações de um tipo depensamento que chamaremos de pensamento por complexos.Em um complexo, os objetos isolados associam-se na menteda criança não apenas devido às impressões subjetivas da crian-ça, mas também devido às relações que de fato existem entreesses objetos. Trata-se de uma nova aquisição, uma passagempara um nível muito mais elevado.

Quando a criança alcança esse nível, já superou parcial-mente o seu egocentrismo. Já não confunde as relações entreas suas próprias impressões com as relações entre as coisas -um passo decisivo para se afastar do sincretismo e caminharem direção ao pensamento objetivo. O pensamento por com-plexos já constitui um pensamento coerente e objetivo, emboranão reflita as relações objetivas do mesmo modo que o pensa-mento conceituai.

Na linguagem dos adultos persistem alguns resíduos dopensamento por complexos. Os nomes de família talvez sejamo melhor exemplo disso. Qualquer nome de família, digamos"Petrov", classifica os indivíduos de uma forma que se asse-melha em muito àquela dos complexos infantis. Nesse estágio

V

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de seu desenvolvimento, a criança pensa, por assim dizer, emtermos de nomes de famílias; o universo dos objetos isoladostorna-se organizado para ela pelo fato de tais objetos agrupa-rem-se em "famílias" separadas, mutuamente relacionadas.

Em um complexo, as ligações entre seus componentes sãoconcretas efactuais, e não abstratas e lógicas, da mesma formaque não classificamos uma pessoa como membro da famíliaPetrov por causa de qualquer relação lógica entre ela e os ou-tros portadores do mesmo nome. A questão nos é resolvida pelosfatos.

As ligações factuais subjacentes aos complexos são des-cobertas por meio da experiência direta. Portanto, um comple-xo é, antes de mais nada, um agrupamento concreto de objetosunidos por ligações factuais. Uma vez que um complexo não éformado no plano do pensamento lógico abstrato, as ligaçõesque o criam, assim como as que ele ajuda a criar, carecem deunidade lógica; podem ser de muitos tipos diferentes. Qual-quer conexão factualmente presente pode levar à inclusão deum determinado elemento em um complexo. É esta a diferençaprincipal entre um complexo e um conceito. Enquanto um con-ceito agrupa os objetos de acordo com um atributo, as ligaçõesque unem os elementos de um complexo ao todo, e entre si,podem ser tão diversas quanto os contatos e as relações que defato existem entre os elementos.

Em nossa investigação observamos cinco tipos básicos decomplexos, que se sucedem uns aos outros durante esse está-gio do desenvolvimento.

Chamamos o primeiro tipo de complexo de tipo associati-vo. Pode basear-se em qualquer relação percebida pela criançaentre o objeto de amostra e alguns outros biocos. Em nossoexperimento o objeto de amostra, isto é, o que foi apresentadoem primeiro lugar ao sujeito observado, com o seu nome visí-vel, constitui o núcleo do grupo a ser construído. Ao construirum complexo associativo, a criança pode acrescentar ao objetonuclear um bloco que tenha a mesma cor, um outro que se as-

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semelhe ao núcleo quanto à forma, ao tamanho ou a qualqueroutro atributo que eventualmente lhe chame a atenção. Qual-quer ligação entre o núcleo e um outro objeto é suficiente parafazer com que a criança inclua esse objeto no grupo e o desig-ne pelo "nome de família" comum. A ligação entre o núcleo eo outro objeto não precisa ser uma característica comum, co-mo por exemplo a mesma cor ou forma; a ligação pode tam-bém ser estabelecida por uma semelhança, um contraste, oupela proximidade no espaço.

Para a criança nesse estágio, a palavra deixa de ser o "no-me próprio" de um objeto isolado; torna-se o nome de famíliade um grupo de objetos relacionados entre si de muitas formas,exatamente como as relações dentro das famílias humanas sãomuitas e variadas.

VI

O pensamento por complexos do segundo tipo consiste nacombinação de objetos ou das impressões concretas que eles pro-vocam na criança, em grupos que em muito se assemelham acoleções. Os objetos são agrupados com base em alguma carac-terística que os torna diferentes e, conseqüentemente, comple-mentares entre si.

Em nossos experimentos a criança apanhava alguns obje-tos que se diferenciavam da amostra por sua cor, forma, tama-nho ou outra característica qualquer. Ela não os apanhava aoacaso; escolhia-os porque, além de contrastarem com o atribu-to da amostra que ela decidira considerar como a base do agru-pamento, eram-lhe também complementares. O resultado erauma coleção de cores ou formas presentes no material experi-mental, por exemplo, um grupo de blocos de cores diferentes.

A associação por contraste, e não pela semelhança, orien-ta a criança na montagem de uma coleção. Essa forma de pen-sar, no entanto, combina-se muitas vezes com a forma associa-

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tiva propriamente dita, anteriormente descrita, e resulta emuma coleção baseada em princípios mistos. Ao longo do pro-cesso, a criança deixa de aderir ao princípio que aceitou origi-nalmente como a base da coleção. Passa a considerar uma novacaracterística, de modo que o grupo resultante torna-se umacoleção mista, por exemplo, de cores e formas.

Esse estágio longo e persistente do desenvolvimento dopensamento infantil tem suas raízes na experiência prática dacriança, em que as coleções de coisas complementares freqüen-temente formam um conjunto ou um todo. A experiência ensinaà criança determinadas formas de agrupamento funcional: xíca-ra, pires e colher; um conjunto de faca, garfo, colher e prato; oconjunto de roupas que usa. Tudo isso constitui modelos de com-plexos de coleções naturais. Até mesmo os adultos, sempre quese referem a louças ou roupas, costumam pensar em conjuntosde objetos concretos, ao invés de conceitos generalizados.

Recapitulando, a imagem sincrética que leva à formação de"amontoados" baseia-se em conexões vagas e subjetivas, confun-didas com as conexões verdadeiras entre os objetos; o complexoassociativo apóia-se em semelhanças ou em outras conexõesnecessárias entre as coisas, ao nível da percepção; o complexo decoleções baseia-se nas relações entre os objetos observados naexperiência prática. Poderíamos afirmar que o complexo de cole-ções é um agrupamento de objetos com base em sua participa-ção na mesma operação prática - em sua cooperação funcional.

VII

Em seguida ao estágio de coleção, característico do pensa-mento por complexos, deve ser colocado o complexo em ca-deia - uma junção dinâmica e consecutiva de elos isolados nu-ma única corrente, com a transmissão de significado de um elopara o outro. Por exemplo, se a amostra experimental for umtriângulo amarelo, a criança poderia escolher alguns blocos

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triangulares até que sua atenção fosse atraída, digamos, pelacor azul de um bloco que tenha acabado de acrescentar ao con-junto; passa, então, a selecionar blocos azuis sem atentar para aforma - angulosos, circulares, semicirculares. Isso, por sua vez,é suficiente para que haja uma nova alteração do critério; es-quecida da cor, a criança começa a escolher blocos redondos. Oatributo decisivo continua variando ao longo de todo o proces-so. Não há coerência quanto ao tipo de conexão ou quanto aomodo pelo qual cada elo da cadeia articula-se com o que o pre-cede e com o que vem a seguir. A amostra original não tem umaimportância fundamental. Uma vez incluído em um complexoem cadeia, cada elo é tão importante quanto o primeiro e podetornar-se o ímã para uma série de outros objetos.

A formação em cadeia demonstra claramente a naturezafactual e perceptivamente concreta do pensamento por com-plexos. Um objeto que foi incluído devido a um de seus atribu-tos passa a fazer parte do complexo não como o portador desseatributo, mas como um elemento isolado, com todos os seus atri-butos. A criança não abstrai o traço isolado do restante, e nemlhe confere uma função especial, como ocorre com um concei-to. Nos complexos, a organização hierárquica está ausente:todos os atributos são funcionalmente iguais. A amostra podeser totalmente desprezada quando se estabelece uma conexãoentre dois outros objetos; estes podem também não ter nadaem comum com alguns dos outros elementos e, no entanto, fa-zer parte da mesma cadeia por compartilharem um atributo comoutro de seus elementos.

Portanto, o complexo em cadeia pode ser considerado co-mo a mais pura forma do pensamento por complexos. Ao con-trário do complexo associativo, cujos elementos são, afinal,interligados por um elemento - o núcleo do complexo -, o com-plexo em cadeia não possui núcleo; há relações entre elemen-tos isolados, e mais nada.

Um complexo não se eleva acima de seus elementos comoo faz um conceito; ele se funde com os objetos concretos que o

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compõem. Essa fusão do geral com o particular, do complexocom os seus elementos, esse amálgama psíquico, como Wernero denominou, é a característica distintiva de todo o pensamen-to por complexos e, em particular, do complexo em cadeia.

VIII

Por ser factualmente inseparável do grupo de objetos con-cretos que o constituem, o complexo em cadeia freqüentemen-te adquire uma qualidade vaga e flutuante. O tipo e a naturezados vínculos podem mudar, quase imperceptivelmente, de elopara elo. Muitas vezes uma semelhança muito remota já é sufi-ciente para estabelecer uma conexão entre dois elos. Às vezesos atributos são considerados semelhantes não por causa deuma semelhança real, mas devido a uma vaga impressão deque eles têm algo em comum. Isso leva ao quarto tipo de com-plexo observado em nossos experimentos, que poderíamos cha-mar de complexo difuso.

O complexo difuso é caracterizado pela fluidez do próprioatributo que une os seus elementos. Grupos de objetos ou ima-gens perceptualmente concretos são formados por meio deconexões difusas e indeterminadas. Por exemplo, para combi-nar com um triângulo amarelo, uma criança, em nossos experi-mentos, poderia escolher trapezóides e triângulos, por causa deseus vértices cortados. Os trapezóides poderiam levar a qua-drados, estes a hexágonos, que por sua vez levariam a semicír-culos e, finalmente, a círculos. Enquanto base para a seleção, acor é igualmente flutuante e variável. Os objetos amarelos cos-tumam ser seguidos por objetos verdes, que podem mudar parao azul, e deste para o negro.

Os complexos que resultam desse tipo de pensamento sãotão indefinidos que podem, na verdade, não ter limites. Do mes-mo modo que uma tribo bíblica cuja aspiração era multiplicar-se até que seus membros fossem mais numerosos que as estre-las do céu ou os grãos de areia do mar, um complexo difuso na

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mente da criança é também um tipo de família que tem poderesilimitados para expandir-se pelo acréscimo de mais e maisindivíduos ao grupo original.

As generalizações da criança nas áreas não-práticas e não-perceptuais de seu pensamento, que não podem ser facilmenteverificadas pela percepção ou ação prática, constituem os equi-valentes, na vida real, dos complexos difusos observados nosexperimentos. Sabe-se muito bem que a criança é capaz de tran-sições surpreendentes, e de associações e generalizações espan-tosas, quando o seu pensamento extrapola os limites do peque-no universo palpável de sua experiência. Fora dele, a criançafreqüentemente constrói complexos ilimitados, surpreenden-tes pela universalidade das ligações que abrangem.

No entanto, esses complexos ilimitados são construídosde acordo com os mesmos princípios dos complexos concretoscircunscritos. Em ambos, a criança permanece dentro dos limi-tes das conexões concretas entre as coisas, mas, na medida emque o primeiro tipo de complexo compreende objetos fora daesfera de seu conhecimento prático, essas conexões baseiam-se naturalmente em atributos vagos, irreais e instáveis.

IX

Para completar o quadro do pensamento por complexos, énecessário descrever mais um tipo de complexo - a ponte, porassim dizer, entre os complexos e o estágio final e mais eleva-do do desenvolvimento da formação de conceitos.

Chamamos esse tipo de complexo de pseudoconceito,porque a generalização formada na mente da criança, emborafenotipicamente semelhante ao conceito dos adultos, é psico-logicamente muito diferente do conceito propriamente dito; emsua essência, é ainda um complexo.

Na situação experimental a criança produz um pseudo-conceito cada vez que se vê às voltas com uma amostra deobjetos que poderiam muito bem ter sido agrupados com base

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em um conceito abstrato. Por exemplo, quando a amostra é umtriângulo amarelo e a criança pega todos os triângulos do mate-rial experimental, é possível que se tenha orientado pela idéiaou conceito geral de um triângulo. A análise experimental mos-tra, porém, que na realidade a criança se orienta pela semelhan-ça concreta visível, formando apenas um complexo associativorestrito a um determinado tipo de conexão perceptual. Emboraos resultados sejam idênticos, o processo pelo qual são obtidosnão é de forma alguma o mesmo que no pensamento concei-tuai10.

10. A seguinte elaboração das observações experimentais foi extraidado estudo de E. Hanfmann e J. Kasanin [16, pp. 30-31]:

Em muitos casos o grupo, ou grupos, criado pelo sujeito observado temquase o mesmo aspecto que teria numa classificação coerente, e a ausênciade um fundamento conceituai verdadeiro só se revela quando se pede aosujeito para colocar em ação as idéias subjacentes a esse agrupamento. Issose dá no momento da correção, quando o examinador vira um dos blocoserradamente selecionados e mostra que a palavra escrita nesse é diferentedaquela que se encontra no bloco de amostra, isto é, que não se trata da pala-vra mur. Esse é um dos pontos críticos do experimento...

Os sujeitos que abordaram a tarefa como um problema de classificaçãorespondem imediatamente à correção, e de uma forma perfeitamente específica.Essa resposta é adequadamente expressa na afirmação: "Ah! Então não se tratada cor" (ou da forma etc.)... O sujeito remove todos os blocos que havia juntadoao bloco de amostra, e começa a procurar uma outra classificação possível.

Por outro lado, o comportamento exterior do sujeito, ao se iniciar oexperimento, pode ter sido o de tentar uma classificação. Pode ter colocadotodos os blocos vermelhos junto à amostra, procedendo de forma bastantecoerente... e ter declarado que, na opinião dele, aqueles blocos vermelhossão os murs. Agora o examinador vira um dos blocos escolhidos e mostraque tem um nome diferente... O sujeito vê o bloco ser retirado, ou ele próprioo retira, obedientemente, mas isso é tudo o que faz: não tenta retirar os outrosblocos vermelhos de junto da amostra mur. Quando o examinador perguntase ainda pensa que aqueles blocos devem ficar juntos, e se são mur, ele res-ponde categoricamente: "Sim, ainda devem ficar juntos porque são verme-lhos." Essa resposta surpreendente denuncia uma atitude totalmente incom-patível com uma verdadeira abordagem classificatória, e prova que os gru-pos que o sujeito havia formado era, na verdade, pseudoclasses.

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É necessário considerar pormenorizadamente esse tipo decomplexo. Ele desempenha um papel predominante no pensa-mento da criança na vida real, e é importante como um elo detransição entre o pensamento por complexos e a verdadeira for-mação de conceitos.

Os pseudoconceitos predominam sobre todos os outroscomplexos no pensamento da criança em idade pré-escolar, pelasimples razão de que na vida real os complexos que correspon-dem ao significado das palavras não são desenvolvidos espon-taneamente pela criança: as linhas ao longo das quais um com-plexo se desenvolve são predeterminadas pelo significado queuma determinada palavra já possui na linguagem dos adultos.

Em nossos experimentos a criança, livre da influênciadiretiva das palavras familiares, foi capaz de desenvolver sig-nificados de palavras e formar complexos de acordo com assuas preferências pessoais. Só através dos experimentos pode-mos avaliar o tipo e a extensão de sua atividade espontâneapara dominar a linguagem dos adultos. A própria atividade dacriança para formar generalizações não é de forma alguma su-focada, embora em geral seja ocultada e direcionada para ca-nais complicados, devido à influência da fala dos adultos.

A linguagem do meio ambiente, com seus significadosestáveis e permanentes, indica o caminho que as generaliza-ções infantis seguirão. No entanto, constrangido como se en-contra, o pensamento da criança prossegue por esse caminhopredeterminado, de maneira peculiar ao seu nível de desenvol-vimento intelectual. O adulto não pode transmitir à criança oseu modo de pensar. Ele apenas lhe apresenta o significadoacabado de uma palavra, ao redor da qual a criança forma umcomplexo - com todas as peculiaridades estruturais, funcio-nais e genéticas do pensamento por complexos, mesmo que o

X

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produto de seu pensamento seja de fato idêntico, em seu con-teúdo, a uma generalização que poderia ter-se formado atravésdo pensamento conceituai. A semelhança externa entre o pseu-doconceito e o conceito real, que torna muito difícil "desmas-carar" esse tipo de complexo, é um dos maiores obstáculos paraa análise genética do pensamento.

A equivalência funcional entre o complexo e o conceito, acoincidência, em termos práticos, entre o significado de muitaspalavras para um adulto e para uma criança de três anos, a possi-bilidade de compreensão mútua e a semelhança aparente de seusprocessos de pensamento levaram à falsa suposição de que todasas formas de atividade intelectual do adulto já estão embriona-riamente presentes no pensamento infantil, e que nenhumatransformação radical ocorre na puberdade. É fácil compreendera origem dessa concepção errônea. A criança aprende muitocedo um grande número de palavras que significam para ela omesmo que significam para o adulto. A compreensão mútua en-tre o adulto e a criança cria a ilusão de que o ponto final dodesenvolvimento do significado das palavras coincide com oponto de partida, de que o conceito é fornecido pronto desde oprincípio, e de que não ocorre nenhum desenvolvimento.

A aquisição, por parte da criança, da linguagem dos adul-tos explica, de fato, a consonância entre os complexos dacriança e os conceitos dos adultos - em outras palavras, expli-ca o surgimento dos complexos conceituais ou pseudocomple-xos. Nossos experimentos, nos quais o significado das pala-vras não reprime o pensamento infantil, demonstram que, nãofosse o predomínio dos pseudoconceitos, os complexos dacriança seguiriam uma trajetória diferente daquela dos concei-tos dos adultos, o que tornaria impossível a comunicação ver-bal entre ambos.

O pseudoconceito serve de elo de ligação entre o pensa-mento por complexos e o pensamento por conceitos. É dualpor natureza: um complexo já carrega a semente que fará ger-minar um conceito. Desse modo, a comunicação verbal com os

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adultos torna-se um poderoso fator no desenvolvimento dosconceitos infantis. A transição do pensamento por complexospara o pensamento por conceitos não é percebida pela criançaporque os seus pseudoconceitos já coincidem, em conteúdo,com os conceitos do adulto. Assim, a criança começa a operarcom conceitos, a praticar o pensamento conceituai antes de teruma consciência clara da natureza dessas operações. Essa si-tuação genética peculiar não se limita à aquisição de conceitos;mais que uma exceção, é a regra no desenvolvimento intelec-tual da criança.

XI

Já examinamos, com a clareza que só a análise experimen-tal pode fornecer, os diferentes estágios e formas de pensa-mento por complexos. Essa análise nos permite revelar, demaneira esquemática, a essência mesma do processo genéticoda formação de conceitos, dando-nos assim a chave para acompreensão do processo tal como este se desenvolve na vidareal. Mas um processo de formação de conceitos experimen-talmente induzido nunca reflete o desenvolvimento genéticoexatamente como este ocorre na vida real. As formas básicasde pensamento concreto que enumeramos aparecem, na reali-dade, em estados mistos. A análise morfológica feita até agoradeve ser seguida por uma análise funcional e genética.

Devemos tentar relacionar as formas de pensamento porcomplexos descobertas experimentalmente com as formas depensamento observadas no desenvolvimento real da criança, econfrontar as duas séries de observações.

A partir de nossos experimentos concluímos que, no está-gio dos complexos, o significado das palavras, da forma comoé percebido pela criança, refere-se aos mesmos objetos que oadulto tem em mente - o que garante a compreensão entre acriança e o adulto -, e que, no entanto, a criança pensa a mesma

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coisa de um modo diferente, por meio de operações mentaisdiferentes. Tentemos averiguar a veracidade dessa proposição,comparando as nossas observações com os dados sobre as pe-culiaridades do pensamento infantil, e do pensamento primitivoem geral, anteriormente colhidos pela ciência psicológica.

Se observarmos que grupos de objetos a criança relacionaentre si ao transferir os significados de suas primeiras palavras, ecomo efetua essa operação, descobriremos uma mistura das duasformas que, nos nossos experimentos, denominamos complexoassociativo e imagem sincrética.

Tomemos emprestado um exemplo de Idelberger, citado porWerner [55, p. 206]. No 251º dia de sua vida, uma criança empre-ga a palavra au-au para se referir a uma estatueta de porcelanarepresentando uma jovem, que fica geralmente sobre um apara-dor e com a qual ela gosta de brincar. No 307? dia, ela chama deau-au um cachorro que late no quintal, as fotos de seus avós, umcachorro de brinquedo e um relógio. No 331? dia, refere-se damesma forma a um pedaço de pele com uma cabeça de animal,dirigindo sua atenção principalmente para os olhos de vidro, e auma estola de pele sem cabeça. No 334? dia, utiliza a mesmapalavra para uma boneca de borracha que grita quando a aper-tam, e no 396? dia, para se referir às abotoaduras de seu pai. No433º dia, ela pronuncia a mesma palavra ao ver os botões de péro-la de um vestido e um termômetro de banheiro.

Werner analisou esse exemplo e concluiu que as várias coi-sas chamadas de au-au podem ser assim catalogadas: primeiro,os cachorros de verdade e os de brinquedo e os pequenos obje-tos alongados que se assemelham à boneca de louça, como porexemplo a boneca de borracha e o termômetro; em segundolugar, as abotoaduras, os botões de pérola e pequenos objetossemelhantes. O atributo que serviu de critério foi uma formaalongada ou uma superfície brilhante parecida com olhos.

É evidente que a criança estabelece uma relação entreesses objetos concretos de acordo com o princípio de um com-plexo. Essas formações complexas espontâneas constituem to-

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do o primeiro capítulo da história do desenvolvimento daspalavras infantis.

Há um exemplo bem conhecido e freqüentemente citadodessas mudanças: o uso que uma criança faz da palavra quá,primeiro para designar um pato nadando em um lago, depoisqualquer espécie de líquido, inclusive o leite em sua mamadei-ra; quando por acaso vê uma moeda com o desenho de umaáguia, a moeda também é chamada de quá, e a partir de entãoqualquer objeto redondo semelhante a uma moeda. Esse é umtípico complexo em cadeia: cada novo objeto incluído tem al-gum atributo em comum com o outro elemento, mas os atribu-tos passam por infinitas alterações.

A formação por complexos também é responsável pelofato de o fenômeno peculiar de uma mesma palavra apresentar,em diferentes situações, significados diferentes ou até mesmoopostos, desde que haja algum elo associativo entre elas. Assim,uma criança pode dizer antes tanto para antes como para de-pois, ou amanhã para amanhã e ontem. Temos aqui uma analo-gia perfeita com algumas línguas antigas - o hebraico, o chinês,o latim -, em que uma palavra também indica, às vezes, o seuoposto. Os romanos, por exemplo, tinham uma só palavra paraalto e profundo. Essa união de significados opostos só é possí-vel como resultado do pensamento por complexos.

XII

Há uma outra característica muito interessante do pensa-mento primitivo, que nos mostra o pensamento por complexosem ação e salienta as diferenças entre os pseudoconceitos e osconceitos. Essa característica - que Levy-Bruhl foi o primeiroa perceber nos povos primitivos, Storch nos doentes mentais ePiaget nas crianças - é geralmente chamada de participação.O termo aplica-se à relação de identidade parcial ou estreitainterdependência estabelecida pelo pensamento primitivo en-

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tre dois objetos ou fenômenos que, na verdade, não têm nenhu-ma proximidade ou qualquer outra relação identificável.

Levy-Bruhl [26] cita Von den Steinen a propósito de umsurpreendente caso de participação observado entre os índiosbororos do Brasil, que se orgulham de serem papagaios verme-lhos. A princípio, Von den Steinen não sabia o que fazer comuma afirmação tão categórica, mas finalmente decidiu queeles queriam dizer exatamente aquilo. Não se tratava simples-mente de um nome do qual se houvessem apropriado, ou deuma relação familiar sobre a qual insistissem: referiam-se a umaidentidade de seres.

Parece-nos que o fenômeno da participação ainda não re-cebeu uma explicação psicológica suficientemente convincen-te, e isso por duas razões: em primeiro lugar, as investigaçõestenderam a pôr em evidência o conteúdo do fenômeno e aignorar as operações mentais nele envolvidas, isto é, a estudaro produto e não o processo; em segundo lugar, não foram feitasquaisquer tentativas adequadas de observar o fenômeno nocontexto de outros elos e relações formados pela mente primi-tiva. Com muita freqüência o extremo e o fantástico, como ofato de os bororos se considerarem papagaios vermelhos, é oque atrai o interesse das investigações, a expensas de fenôme-nos menos espetaculares. No entanto, uma análise mais acura-da mostra que mesmo as conexões que aparentemente não sechocam com a nossa lógica são formadas pela mente primitivacom base nos princípios do pensamento por complexos.

Uma vez que as crianças de determinada idade pensampor pseudoconceitos, e que para elas as palavras designam com-plexos de objetos concretos, seu pensamento terá como resul-tado a participação, isto é, conexões que são inaceitáveis pelalógica dos adultos. Uma determinada coisa pode ser incluídaem diferentes complexos por força de seus diferentes atributosconcretos, podendo, conseqüentemente, ter vários nomes; qualdesses nomes será utilizado vai depender do complexo ativadono momento. Em nossos experimentos, tivemos muitas vezes a

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oportunidade de observar exemplos desse tipo de participação,em que um objeto era simultaneamente incluído em dois oumais complexos. Longe de constituir uma exceção, a participa-ção é uma característica do pensamento por complexos.

Os povos primitivos também pensam por complexos e,conseqüentemente, em suas línguas a palavra não funciona co-mo o portador de um conceito, mas como um "nome de famí-lia" para grupos de objetos concretos, associados não logica-mente, mas factualmente. Storch demonstrou que o mesmotipo de pensamento é característico dos esquizofrênicos, queregridem do pensamento conceituai para um nível mais primi-tivo de intelecção, rico em imagens e símbolos. Ele considerao uso de imagens concretas, ao invés de conceitos abstratos,um dos traços mais distintivos do pensamento primitivo. Assim,por mais que os processos mentais da criança, do homem pri-mitivo e do doente mental sejam diferentes quanto a outrosaspectos importantes, todos eles manifestam o fenômeno daparticipação - um sintoma do pensamento primitivo por com-plexos e da função das palavras como nomes de família.

Portanto, acreditamos ser incorreta a forma como Levy-Bruhl interpreta a participação. Ele aborda a afirmação dosbororos - de que são papagaios vermelhos - do ponto de vistada nossa própria lógica, à medida que presume que para amente primitiva tal afirmação também significa uma identida-de de seres. Uma vez que para esses índios as palavras desig-nam grupos de objetos, e não conceitos, a afirmação deles temum significado diferente: a palavra que designa papagaio é amesma que designa um complexo que inclui os papagaios eeles próprios. Disso não se pode deduzir que haja qualqueridentidade, da mesma forma que o fato de duas pessoas apa-rentadas compartilharem o mesmo nome de família não signi-fica que sejam uma única e mesma pessoa.

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XIII

A história da linguagem mostra claramente que o pensa-mento por complexos, com todas as suas peculiaridades, é ofundamento real do desenvolvimento lingüístico.

A lingüística moderna estabelece uma distinção entre osignificado de uma palavra, ou expressão, e o seu referente, istoé, o objeto que designa. Pode haver um só significado e diver-sos referentes, ou significados diferentes e um único referente.Ao dizer "o vencedor de Jena" ou "o derrotado de Waterloo",estamos nos referindo à mesma pessoa, e no entanto o signifi-cado das duas expressões é diferente. Existe apenas uma cate-goria de palavras - os nomes próprios -, cuja única função é ada referência. Usando essa terminologia, poderíamos afirmarque as palavras da criança e do adulto coincidem quanto aosseus referentes, mas não quanto aos seus significados.

A identidade de referentes combinada com a divergênciade significados também pode ser encontrada na história daslínguas. Essa tese é confirmada por um grande número defatos. Os sinônimos existentes em cada idioma constituem umbom exemplo disso. A língua russa tem duas palavras paradesignar a Lua, às quais se chegou por meio de processos men-tais diferentes, que se refletem claramente na sua etimologia.Um dos termos deriva da palavra latina que conota "capricho,inconstância, fantasia". A intenção óbvia desse termo era enfa-tizar a forma mutável da lua, que a distingue dos outros corposcelestes. A origem do segundo termo, que significa "medidor",está, sem dúvida, no fato de se poder medir o tempo pelas fasesda Lua. O mesmo acontece entre as línguas. Por exemplo, apalavra russa para alfaiate deriva de uma antiga palavra usadapara designar um pedaço de pano; em francês e alemão, signi-fica "aquele que corta".

Se seguirmos a história de uma palavra em qualquer idio-ma, veremos, por mais surpreendente que possa parecer à pri-meira vista, que os seus significados se transformam, exata-mente como acontece com o pensamento infantil. No exemplo

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que demos, a palavra au-au aplicava-se a uma série de objetostotalmente discrepantes do ponto de vista dos adultos. No de-senvolvimento da linguagem, essas transferências de signifi-cado, indicativas do pensamento por complexos, constituem aregra, e não a exceção. O russo tem uma palavra para dia-e-noite: sutki. Originalmente, essa palavra significa costura, ajunção de dois pedaços de pano, algo entretecido; depois, pas-sou a significar qualquer tipo de junção, por exemplo, a deduas paredes de uma casa e, portanto, um canto; começou a serusada metaforicamente com o significado de crepúsculo, "quan-do o dia e a noite se encontram"; depois passou a significar operíodo entre um crepúsculo e outro, isto é, o sutki atual de 24 ho-ras. Coisas tão diferentes como uma costura, um canto, o cre-púsculo e 24 horas são agregadas num único complexo aolongo da evolução de uma palavra, da mesma forma que acriança incorpora coisas diferentes em um grupo com base naformação concreta de imagens.

Quais são as leis que regem a formação das famílias depalavras? Com maior freqüência, novos fenômenos ou objetossão designados em função de atributos que não lhes são essen-ciais, de modo que o nome não expressa a verdadeira naturezada coisa nomeada. Como um nome nunca é um conceito quan-do aparece pela primeira vez, em geral é, a um só tempo, muitolimitado e muito amplo. Por exemplo, a palavra russa quedesigna vaca significava, inicialmente, "que tem chifres", e apalavra para rato significava "ladrão". Mas uma vaca é muitomais do que chifres, assim como um rato não é apenas umladrão; assim, seus nomes são demasiado limitados. Por outrolado, são amplos demais, uma vez que os mesmos epítetospodem ser aplicados - como de fato são, em algumas outraslínguas - a um certo número de outras criaturas. O resultado éuma luta incessante, no âmbito da língua em desenvolvimento,entre o pensamento conceituai e o legado do pensamento pri-mitivo por complexos. O nome criado por um complexo, combase em um atributo, entra em conflito com o conceito quepassou a representar. Na luta entre o conceito e a imagem que

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deu origem ao nome, a imagem gradualmente desaparece;desaparece da consciência e da memória, e o significado origi-nal da palavra é finalmente obliterado. Anos atrás, toda tintade escrever era preta, e a palavra russa para tinta refere-se aessa cor. Mas isso não impede que atualmente falemos do"negro" vermelho, verde ou azul, sem perceber a incoerênciada combinação.

As transferências de nomes para novos objetos ocorrempor contigüidade ou semelhança, isto é, com base nos elosconcretos, típicos do pensamento por complexos. As palavrasque estão sendo formadas em nossa própria época constituemmuitos exemplos do processo pelo qual se agrupam coisas he-terogêneas. Quando falamos da "perna de uma mesa", do "co-tovelo de uma estrada", do "pescoço de uma garrafa" e de um"engarrafamento", estamos agrupando coisas de um modo se-melhante aos complexos. Nesses casos as semelhanças visuaise funcionais, mediadoras da transferência, são bastante claras.No entanto, a transferência pode ser determinada pelas maisvariadas associações, e se ela ocorreu num passado já muitodistante é impossível reconstruir as conexões sem conhecerexatamente o contexto histórico do acontecimento.

A palavra primitiva não é um símbolo direto de um con-ceito, mas sim uma imagem, uma figura, um esboço mental deum conceito, um breve relato dele - na verdade, uma pequenaobra de arte. Ao nomear um objeto por meio de um tal concei-to pictórico, o homem relaciona-o a um grupo que contém umcerto número de outros objetos. A esse respeito, o processo decriação da linguagem é análogo ao processo de formação doscomplexos no desenvolvimento intelectual da criança.

XIV

Pode-se aprender muitas coisas sobre o pensamento porcomplexos a partir da fala das crianças surdas-mudas, às quaisfalta o principal estímulo para a formação dos pseudoconcei-

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tos. Privadas da comunicação verbal com os adultos e livrespara determinar quais objetos devem ser agrupados sob um mes-mo nome, formam livremente os seus complexos, e as caracte-rísticas especiais do pensamento por complexos aparecem emsua forma pura e com contornos nítidos.

Na linguagem por meio de sinais dos surdos-mudos, o atode tocar um dente pode ter três significados diferentes: "bran-co", "pedra" e "dente". Todos os três pertencem a um comple-xo cuja elucidação mais pormenorizada requer um gesto adi-cional de apontar ou imitar, para se indicar a que objeto se fazreferência em cada caso. As duas funções de uma palavra são,por assim dizer, fisicamente separadas. Um surdo-mudo tocaum dente e, em seguida, apontando para a sua superfície oufazendo um gesto de arremesso, diz-nos a que objeto está sereferindo naquele caso.

Para testar e complementar os resultados de nossos experi-mentos, utilizamos alguns exemplos da formação de complexosextraídos do desenvolvimento lingüístico das crianças, do pen-samento dos povos primitivos e do desenvolvimento das lín-guas como tais. Deve-se notar, entretanto, que mesmo o adultonormal, capaz de formar e utilizar conceitos, não opera coeren-temente com conceitos ao pensar. À exceção dos processos pri-mitivos de pensamento dos sonhos, o adulto constantementedesvia-se do pensamento conceituai para o pensamento concre-to semelhante aos complexos. A forma de pensamento transitó-ria, por pseudoconceitos, não é exclusiva das crianças; nós tam-bém recorremos freqüentemente a ela em nossa vida cotidiana.

XV

Nossa investigação levou-nos a dividir o processo da for-mação de conceitos em três fases principais. Descrevemosduas delas, marcadas, respectivamente, pela predominância daimagem sincrética e do complexo, e chegamos agora à terceira

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fase. A exemplo da segunda, pode ser subdividida em váriosestágios.

Na realidade, as novas formações não aparecem, necessa-riamente, só depois que o pensamento por complexos comple-tou todo o curso de seu desenvolvimento. De forma rudimentar,podem ser observadas muito antes de a criança começar a pen-sar por pseudoconceitos. Essencialmente, entretanto, perten-cem à terceira divisão do nosso esquema da formação de con-ceitos. Se o pensamento por complexos é uma raiz da formaçãode conceitos, as formas que vamos agora descrever constituemuma segunda raiz, independente. No que diz respeito ao desen-volvimento mental da criança, possuem uma função genéticaespecífica, diferente daquela dos complexos.

A principal função dos complexos é estabelecer elos erelações. O pensamento por complexos dá início à unificaçãodas impressões desordenadas; ao organizar elementos discre-tos da experiência em grupos, cria uma base para generaliza-ções posteriores.

Mas o conceito desenvolvido pressupõe algo além da unifi-cação. Para formar esse conceito também é necessário abstrair,isolar elementos, e examinar os elementos abstratos separada-mente da totalidade da experiência concreta de que fazem parte.Na verdadeira formação de conceitos, é igualmente importanteunir e separar: a síntese deve combinar-se com a análise. O pen-samento por complexos não é capaz de realizar essas duas ope-rações. A sua essência mesma é o excesso, a superprodução deconexões e a debilidade da abstração. A função do processo quesó amadurece durante a terceira fase do desenvolvimento da for-mação de conceitos é a que preenche o segundo requisito, embo-ra sua fase inicial remonte a períodos bem anteriores.

Em nossos experimentos, o primeiro passo em direção àabstração deu-se quando a criança agrupou objetos com um graumáximo de semelhança; por exemplo, objetos que eram redon-dos e pequenos, ou vermelhos e achatados. Uma vez que o ma-terial usado nos testes não contém objetos idênticos, até mes-

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mo aqueles entre os quais existe um máximo de semelhançasão dessemelhantes sob certos aspectos. O que se conclui éque, ao apanhar essas "combinações máximas", a criança deveestar com sua atenção voltada mais para algumas característi-cas de um objeto do que para outras - dando-lhes, por assimdizer, um tratamento preferencial. Os atributos que, somados,fazem um objeto o mais semelhante possível à amostra, tor-nam-se o centro de atenção, sendo, portanto, em certo sentido,abstraídos dos atributos aos quais a criança presta menos aten-ção. Essa primeira tentativa de abstração não é óbvia como tal,porque a criança abstrai todo um conjunto de características,sem distingui-las claramente entre si; freqüentemente a abstra-ção de um tal grupo de atributos baseia-se apenas numa impres-são vaga e geral da semelhança entre os objetos.

Contudo, o caráter global da percepção da criança foi rom-pido. Os atributos de um objeto foram divididos em duas par-tes, a que se atribuiu uma importância desigual - um início deabstração positiva e negativa. Um objeto não mais entra em umcomplexo in toto, com todos os seus atributos; alguns têm suaadmissão recusada. Se dessa forma o objeto é empobrecido, osatributos que levaram à sua inclusão no complexo adquirem umrelevo de contornos mais nítidos no pensamento da criança.

XVI

Durante o estágio seguinte do desenvolvimento da abstra-ção, o agrupamento de objetos com base na máxima semelhan-ça possível é substituído pelo agrupamento com base em umúnico atributo: por exemplo, só objetos redondos ou só objetosachatados. Embora o produto seja indistinguível do produto deum conceito, essas formações, a exemplo dos pseudoconcei-tos, são simples precursores dos verdadeiros conceitos. Deacordo com o uso introduzido por Groos [14], chamaremosessas formações de conceitos potenciais.

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Os conceitos potenciais resultam de uma espécie de abstra-ção isolante de natureza tão primitiva, que está presente, emcerto grau, não apenas nas crianças muito novas, mas até mesmonos animais. As galinhas podem ser treinadas para responder aum atributo distinto em diferentes objetos, tais como a cor ou aforma, caso esse atributo indique alimento acessível; os chim-panzés de Koehler, uma vez tendo aprendido a usar uma varacomo instrumento, utilizavam outros objetos alongados sempreque precisavam de uma vara e não havia nenhuma disponível.

Mesmo nas crianças muito novas, os objetos ou situaçõesque apresentam alguns traços comuns evocam respostas seme-lhantes; no estágio pré-verbal mais precoce, as crianças espe-ram nitidamente que situações semelhantes levem a resultadosidênticos. Quando uma criança associa uma palavra a um obje-to, ela prontamente aplica essa palavra a um novo objeto que aimpressiona, por considerá-lo, sob certos aspectos, semelhanteao primeiro. Portanto, os conceitos potenciais podem ser for-mados tanto na esfera do pensamento perceptual como na esfe-ra do pensamento prático, voltado para a ação - com base emimpressões semelhantes, no primeiro caso, e em significadosfuncionais semelhantes, no segundo. Estes últimos constituemuma fonte importante de conceitos potenciais. É fato bem co-nhecido que até os primeiros anos da idade escolar os signifi-cados funcionais têm um papel muito importante no pensa-mento infantil. Quando se pede a uma criança que explique umapalavra, ela responde dizendo o que o objeto designado pelapalavra pode fazer, ou - mais freqüentemente - o que pode serfeito com ele. Mesmo os conceitos abstratos são em geral tradu-zidos para a linguagem da ação concreta: "sensato quer dizerque estou com calor mas não me exponho a uma corrente de ar".

Os conceitos potenciais já desempenham um papel nopensamento por complexos, considerando-se que a abstraçãotambém ocorre na formação dos complexos. Os complexosassociativos, por exemplo, pressupõem a "abstração" de umtraço comum em diferentes unidades. Mas enquanto o pensa-

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mento por complexos predomina, o traço abstraído é instável,não ocupa uma posição privilegiada e facilmente cede o seudomínio temporário a outros traços. Nos conceitos potenciaispropriamente ditos, um traço abstraído não se perde facilmenteentre os outros traços. A totalidade concreta dos traços foi des-truída pela sua abstração, criando-se a possibilidade de unifi-car os traços em uma base diferente. Somente o domínio daabstração, combinado com o pensamento por complexos emsua fase mais avançada, permite à criança progredir até a for-mação dos conceitos verdadeiros. Um conceito só aparecequando os traços abstraídos são sintetizados novamente, e a sín-tese abstrata daí resultante torna-se o principal instrumento dopensamento. Como ficou demonstrado em nossos experimen-tos, o papel decisivo nesse processo é desempenhado pela pala-vra, deliberadamente empregada para dirigir todos os processosparciais da fase mais avançada da formação de conceitos".

XVII

Em nosso estudo experimental dos processos intelectuaisdos adolescentes, observamos como as formas primitivas depensamento (sincréticas e por complexos) gradualmente desa-parecem, como os conceitos potenciais vão sendo usados cadavez menos, e começam a formar-se os verdadeiros conceitos -esporadicamente no início, e depois com freqüência cada vezmaior. No entanto, mesmo depois de ter aprendido a produzirconceitos, o adolescente não abandona as formas mais elemen-

11. Deve ficar claro, neste capítulo, que as palavras também desempe-nham uma importante função, ainda que diferente, nos vários estágios do pen-samento por complexos. Portanto, consideramos o pensamento por complexosum estágio do desenvolvimento do pensamento verbal, ao contrário de muitosoutros autores [21, 53, 55], que ampliam o teimo complexo para incluir o pen-samento pré-verbal e até mesmo a intelecção primitiva dos animais.

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tares; elas continuam a operar ainda por muito tempo, sendo naverdade predominantes em muitas áreas do seu pensamento. Aadolescência é menos um período de consumação do que decrise e transição.

O caráter transitório do pensamento adolescente torna-seespecialmente evidente quando observamos o funcionamentoreal dos conceitos recém-adquiridos. Os experimentos realiza-dos com o objetivo específico de estudar as operações que osadolescentes efetuam com os conceitos revelam, em primeirolugar, uma discrepância surpreendente entre a sua capacidadede formar conceitos e a sua capacidade de defini-los.

O adolescente formará e utilizará um conceito com muitapropriedade numa situação concreta, mas achará estranhamen-te difícil expressar esse conceito em palavras, e a definiçãoverbal será, na maioria dos casos, muito mais limitada do queseria de esperar a partir do modo como utilizou o conceito. Amesma discrepância também ocorre no pensamento dos adul-tos, mesmo em níveis muito avançados. Isso confirma o pres-suposto de que os conceitos evoluem de forma diferente daelaboração deliberada e consciente da experiência em termoslógicos. A análise da realidade com a ajuda de conceitos prece-de a análise dos próprios conceitos.

O adolescente depara-se com um outro obstáculo quandotenta aplicar um conceito que formou numa situação específi-ca a um novo conjunto de objetos ou circunstâncias, em que osatributos sintetizados no conceito aparecem em configuraçõesdiferentes da original. (Um exemplo seria a aplicação, aos obje-tos cotidianos, do novo conceito "pequeno e alto", desenvolvi-do no teste com os blocos.) Mesmo assim, o adolescente é ge-ralmente capaz de realizar essa transferência num estágio bas-tante precoce de seu desenvolvimento.

Bem mais difícil do que a transferência em si é a tarefa dedefinir um conceito quando este não mais se encontra enraiza-do na situação original, devendo ser formulado num plano pu-ramente abstrato, sem referência a quaisquer impressões ou

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situações concretas. Em nossos experimentos, a criança ou oadolescente que resolvia corretamente o problema da formaçãode conceitos descia, freqüentemente, a um nível mais primitivode pensamento ao dar uma definição verbal do conceito, e come-çava simplesmente a enumerar os diferentes objetos aos quais oconceito se aplicava em um determinado contexto. Nesse caso,operava com o nome como se fosse um conceito, mas definia-ocomo um complexo - uma forma de pensamento que oscila entreo conceito e o complexo, típica dessa idade de transição.

A maior dificuldade é a aplicação de um conceito, final-mente apreendido e formulado a um nível abstrato, a novassituações concretas que devem ser vistas nesses mesmos ter-mos abstratos - um tipo de transferência que em geral só édominado no final da adolescência. A transição do abstrato pa-ra o concreto mostra-se tão árdua para o jovem como a transi-ção primitiva do concreto para o abstrato. Nossos experimen-tos não deixam qualquer dúvida de que, nesse ponto, a descri-ção da formação de conceitos dada pela psicologia tradicional,que se limita a reproduzir o esquema da lógica formal, é total-mente desvinculada da realidade.

De acordo com a escola clássica, a formação de conceitosé alcançada por meio do mesmo processo do "retrato de famí-lia" nas fotografias compostas de Galton. Estas são feitas ti-rando-se fotos de membros diferentes de uma família namesma chapa, de modo que os "traços de família" comuns avárias pessoas aparecem com extraordinária nitidez, enquantoa sobreposição torna indistintos os traços pessoais que diferen-ciam os indivíduos. Supõe-se que, na formação de conceitos,ocorra uma intensificação semelhante dos traços comuns a umcerto número de objetos; segundo a teoria tradicional, a somadesses traços ê o conceito. Na realidade, como alguns psicólo-gos já notaram há muito, e os nossos experimentos confirmam,o caminho pelo qual os adolescentes chegam à formação deconceitos nunca corresponde a esse esquema lógico. Quandose examina o processo da formação de conceitos em toda a sua

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complexidade, este surge como um movimento do pensamentodentro da pirâmide de conceitos, constantemente oscilando en-tre duas direções, do particular para o geral e do geral para oparticular.

Nossa investigação mostrou que um conceito se formanão pela interação das associações, mas mediante uma opera-ção intelectual em que todas as funções mentais elementaresparticipam de uma combinação específica. Essa operação édirigida pelo uso das palavras como o meio para centrar ativa-mente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los esimbolizá-los por meio de um signo.

Os processos que levam à formação dos conceitos evo-luem ao longo de duas linhas principais. A primeira é a forma-ção dos complexos: a criança agrupa diversos objetos sob um"nome de família" comum; esse processo passa por vários es-tágios. A segunda linha de desenvolvimento é a formação de"conceitos potenciais", baseados no isolamento de certos atri-butos comuns. Em ambos os casos, o emprego da palavra éparte integrante dos processos de desenvolvimento, e a palavraconserva a sua função diretiva na formação dos conceitos ver-dadeiros, aos quais esses processos conduzem.

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6. O desenvolvimento dos conceitoscientíficos na infância

Para se criar métodos eficientes para a instrução das crian-ças em idade escolar no conhecimento sistemático, é necessá-rio entender o desenvolvimento dos conceitos científicos namente da criança. Não menos importante do que esse aspectoprático do problema é o seu significado teórico para a ciênciapsicológica. Entretanto, o nosso conhecimento global do as-sunto é surpreendentemente limitado.

O que acontece na mente da criança com os conceitoscientíficos que lhe são ensinados na escola? Qual é a relaçãoentre a assimilação da informação e o desenvolvimento internode um conceito científico na consciência da criança?

A psicologia infantil contemporânea tem duas respostaspara essas perguntas. Uma escola de pensamento acredita queos conhecimentos científicos não têm nenhuma história inter-na, isto é, não passam por nenhum processo de desenvolvi-mento, sendo absorvidos já prontos mediante um processo decompreensão e assimilação. A maior parte dos métodos e teo-rias educacionais ainda se baseia nessa concepção. No entanto,é uma concepção que não resiste a um exame mais aprofunda-do, tanto teoricamente quanto em termos de suas aplicações

I

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práticas. Como sabemos, a partir das investigações sobre oprocesso da formação de conceitos, um conceito é mais do quea soma de certas conexões associativas formadas pela memó-ria, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real ecomplexo de pensamento que não pode ser ensinado por meiode treinamento, só podendo ser realizado quando o própriodesenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nívelnecessário. Em qualquer idade, um conceito expresso por umapalavra representa um ato de generalização. Mas os significa-dos das palavras evoluem. Quando uma palavra nova é apren-dida pela criança, o seu desenvolvimento mal começou: a pala-vra é primeiramente uma generalização do tipo mais primitivo;à medida que o intelecto da criança se desenvolve, é substituí-da por generalizações de um tipo cada vez mais elevado - pro-cesso este que acaba por levar à formação dos verdadeiros con-ceitos. O desenvolvimento dos conceitos, ou dos significadosdas palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas funçõesintelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração,capacidade para comparar e diferenciar. Esses processos psi-cológicos complexos não podem ser dominados apenas atravésda aprendizagem inicial.

A experiência prática mostra também que o ensino diretode conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tentafazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto overbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, seme-lhante à de um papagaio, que simula um conhecimento dos con-ceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo.

Tolstoi, com sua profunda compreensão da natureza dapalavra e do significado, percebeu, mais claramente do que amaioria dos outros educadores, a impossibilidade de um con-ceito simplesmente ser transmitido pelo professor ao aluno.Ele narra suas tentativas de ensinar a linguagem literária acrianças camponesas, "traduzindo" primeiro o seu própriovocabulário para a linguagem dos contos folclóricos e, depois,traduzindo a linguagem dos contos para o russo literário.Descobriu que não se poderia ensinar às crianças a linguagem

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literária por meio de explicações artificiais, por memorizaçãocompulsiva e por repetição, do mesmo modo que se ensinauma língua estrangeira. Tolstoi escreve:

Temos que admitir que tentamos várias vezes... fazer isso,e que sempre nos deparamos com uma enorme aversão por par-te das crianças, o que mostra que estávamos no caminho errado.Esses experimentos me deixaram com a certeza de que é impos-sível explicar o significado de uma palavra... Quando se explicaqualquer palavra, a palavra "impressão", por exemplo, coloca-se em seu lugar outra palavra igualmente incompreensível, outoda uma série de palavras, sendo a conexão entre elas tão inin-teligível quanto a própria palavra.

O que a criança necessita, diz Tolstoi, é de uma oportuni-dade para adquirir novos conceitos e palavras a partir do con-texto lingüístico geral.

Quando ela ouve ou lê uma palavra desconhecida numa fra-se, de resto compreensível, e a lê novamente em outra frase,começa a ter uma idéia vaga do novo conceito: mais cedo ou maistarde ela... sentirá a necessidade de usar essa palavra - e uma vezque a tenha usado, a palavra e o conceito lhe pertencem... Mastransmitir deliberadamente novos conceitos ao aluno... é, estouconvencido, tão impossível e inútil quanto ensinar uma criança aandar apenas por meio das leis do equilíbrio [43, p. 143]

A segunda concepção da evolução dos conceitos científi-cos não nega a existência de um processo de desenvolvimentona mente da criança em idade escolar; no entanto, segundo talconcepção esse processo não difere, em nenhum aspecto, dodesenvolvimento dos conceitos formados pela criança em suaexperiência cotidiana, e é inútil considerar os dois processosisoladamente. Qual é o fundamento dessa concepção?

A literatura sobre esse campo mostra que, ao estudar aformação de conceitos na infância, a maioria dos investigado-

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res usou os conceitos cotidianos formados pela criança sem aajuda do aprendizado sistemático. Presume-se que as leis ba-seadas nesses dados se apliquem também aos conceitos cientí-ficos da criança, não se considerando necessária nenhumacomprovação dessa hipótese. Somente alguns dos mais perspi-cazes estudiosos modernos do pensamento infantil questionama validade dessa extensão. Piaget estabelece uma nítida fron-teira entre as idéias da criança acerca da realidade, desenvolvi-das principalmente mediante seus próprios esforços mentais, eaquelas que foram decisivamente influenciadas pelos adultos;ele denomina o primeiro grupo de espontâneas e o segundo denão-espontâneas, e admite que o último grupo pode mereceruma investigação independente. A esse respeito, vai além e maisfundo do que qualquer outro estudioso dos conceitos infantis.

Ao mesmo tempo, há erros no raciocínio de Piaget quedepreciam o valor de suas idéias. Embora defenda que, ao for-mar um conceito, a criança o marca com as características dasua própria mentalidade, Piaget tende a aplicar essa tese ape-nas aos conceitos espontâneos, e presume que somente estespodem nos elucidar as qualidades especiais do pensamento in-fantil; ele não consegue ver a interação entre os dois tipos deconceitos e os elos que os unem num sistema total de concei-tos, durante o desenvolvimento intelectual da criança. Esseserros conduzem-no a outro. É um dos princípios básicos dateoria de Piaget que a socialização progressiva do pensamentoé a própria essência do desenvolvimento mental da criança.Mas, se as suas idéias sobre a natureza dos conceitos não-es-pontâneos fossem corretas, seguir-se-ia que um fator tão im-portante na socialização do pensamento quanto a aprendiza-gem escolar não tem qualquer relação com os processos do de-senvolvimento interior. Essa incoerência é o ponto fraco dateoria de Piaget, tanto em termos teóricos quanto práticos.

Teoricamente, a socialização do pensamento é vista porPiaget como uma abolição mecânica das características dopróprio pensamento da criança, seu enfraquecimento gradual.

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Tudo o que é novo no desenvolvimento vem do exterior, substi-tuindo os próprios modos de pensamento da criança. Durantetoda a infância há um conflito incessante entre as duas formasde pensamento mutuamente antagônicas, com uma série deacomodações em cada nível de desenvolvimento sucessivo, atéque o pensamento adulto acabe por predominar. A próprianatureza da criança não desempenha nenhum papel construti-vo em seu progresso intelectual. Quando Piaget diz que nada émais importante para o aprendizado eficaz do que um conheci-mento completo do pensamento espontâneo da criança [33],ele está aparentemente sendo induzido pela idéia de que é pre-ciso conhecer o pensamento infantil tanto quanto se deve co-nhecer um inimigo, a fim de se combatê-lo com êxito.

Oporemos a essas premissas errôneas a premissa de que odesenvolvimento dos conceitos não-espontâneos tem que pos-suir todos os traços peculiares ao pensamento da criança emcada nível do desenvolvimento, porque esses conceitos não sãoaprendidos mecanicamente, mas evoluem com a ajuda de umavigorosa atividade mental por parte da própria criança. Acre-ditamos que os dois processos - o desenvolvimento dos con-ceitos espontâneos e dos conceitos não-espontâneos - se rela-cionam e se influenciam constantemente. Fazem parte de umúnico processo: o desenvolvimento da formação de conceitos,que é afetado por diferentes condições externas e internas, masque é essencialmente um processo unitário, e não um conflitoentre formas de intelecção antagônicas e mutuamente exclusi-vas. O aprendizado é uma das principais fontes de conceitos dacriança em idade escolar, e é também uma poderosa força quedireciona o seu desenvolvimento, determinando o destino detodo o seu desenvolvimento mental. Se assim é, os resultadosdo estudo psicológico dos conceitos infantis podem aplicar-seaos problemas do aprendizado de uma forma muito diferentedaquela imaginada por Piaget.

Antes de examinar essas premissas detalhadamente, que-remos apresentar as nossas próprias razões para diferenciar-

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mos os conceitos espontâneos dos não-espontâneos - em parti-cular, os científicos - e submetermos os últimos a um estudoespecial.

Em primeiro lugar, com base na simples observação, sabe-mos que os conceitos se formam e se desenvolvem sob condi-ções internas e externas totalmente diferentes, dependendo dofato de se originarem do aprendizado em sala de aula ou daexperiência pessoal da criança. Mesmo os motivos que indu-zem a criança a formar os dois tipos de conceitos não são osmesmos. A mente se defronta com problemas diferentes quan-do assimila os conceitos na escola e quando é entregue aos seuspróprios recursos. Quando transmitimos à criança um conheci-mento sistemático, ensinamos-lhe muitas coisas que ela nãopode ver ou vivenciar diretamente. Uma vez que os conceitoscientíficos e espontâneos diferem quanto à sua relação com aexperiência da criança, e quanto à atitude da criança para comos objetos, pode-se esperar que o seu desenvolvimento siga ca-minhos diferentes, desde o seu início até a sua forma final.

A escolha dos conceitos científicos como objeto de estudotem também um valor heurístico. Atualmente, a psicologia temapenas duas formas de estudar a formação de conceitos. Umalida com os conceitos reais da criança, mas emprega métodos -tais como a definição verbal - que não vão além da superfície;a outra permite uma análise psicológica incomparavelmentemais profunda, mas somente por meio do estudo da formaçãode conceitos criados artificialmente. Um problema metodoló-gico urgente com que nos deparamos é encontrar formas deestudar os conceitos reais em profundidade - encontrar ummétodo que utilize os resultados já obtidos pelos dois métodosempregados até o momento. A abordagem mais promissorapara o problema parece ser o estudo dos conceitos científicos,que são conceitos reais, embora se formem debaixo dos nossosolhos quase à maneira dos conceitos artificiais.

Finalmente, o estudo dos conceitos científicos como taistem importantes implicações para a educação e o aprendizado.

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Embora esses conceitos não sejam absorvidos já prontos, oensino e a aprendizagem desempenham um importante papelna sua aquisição. Descobrir a complexa relação entre o apren-dizado e o desenvolvimento dos conceitos científicos é umaimportante tarefa prática.

Essas foram as considerações que nos guiaram ao separar-mos os conceitos científicos dos conceitos cotidianos e ao sub-metê-los a um estudo comparativo. Para exemplificar o tipo depergunta a que tentamos responder, vamos tomar o conceito"irmão" - um conceito cotidiano típico, que Piaget utilizou tãohabilmente para estabelecer toda uma série de peculiaridadesdo pensamento infantil - e compará-lo com o conceito "explo-ração", que foi apresentado às crianças nas aulas de ciênciassociais. Será que o seu desenvolvimento é o mesmo, ou serádiferente? Será que "exploração" apenas repete o percurso dodesenvolvimento de "irmão", ou será, psicologicamente, umconceito diferente? Sugerimos que os dois conceitos provavel-mente diferem quanto ao seu desenvolvimento e funcionamen-to, e que essas duas variantes do processo de formação de con-ceitos devem influenciar-se mutuamente em sua evolução.

II

Para estudar a relação entre o desenvolvimento dos con-ceitos científicos e dos conceitos cotidianos, precisamos de umparâmetro para compará-los. Para elaborar um instrumento demedição, temos que conhecer as características típicas dos con-ceitos cotidianos na idade escolar, assim como a direção do seudesenvolvimento durante esse período.

Piaget demonstrou que os conceitos da criança em idadeescolar são caracterizados sobretudo por sua falta de percep-ção consciente das relações, embora as manipule corretamen-te, de uma forma irrefletida e espontânea. Piaget perguntou acrianças de sete a oito anos de idade o significado da palavra

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porque na frase "Amanhã não vou à escola porque estou doen-te". A maior parte das crianças respondeu: "Significa que eleestá doente." Outras disseram: "Significa que ele não irá àescola." Uma criança é incapaz de entender que a pergunta nãose refere aos fatos isolados da doença e da falta às aulas, massim à conexão entre eles. No entanto, ela certamente apreendeo significado da frase. Espontaneamente, usa a palavra porquede forma correta, mas não sabe empregá-la deliberadamente.Assim, não sabe completar a frase "O homem caiu da bicicletaporque..." com uma conclusão adequada. Muitas vezes a crian-ça substituirá a causa por uma conseqüência ("porque ele que-brou o braço"). O pensamento infantil é não-deliberado e in-consciente de si próprio. Então, como a criança finalmente atin-ge a consciência e o domínio dos seus próprios pensamentos?Para explicar o processo, Piaget cita duas leis da psicologia.

Uma é a lei da percepção, formulada por Claparède, queprovou, por meio de experimentos muito interessantes, que apercepção da diferença precede a percepção da semelhança. Acriança reage de forma bastante natural a objetos que sãosemelhantes, e não tem nenhuma necessidade de se conscienti-zar de suas formas de reação, ao passo que a dessemelhançacria um estado de inadaptação que conduz à percepção. A leide Claparède afirma que quanto mais facilmente usamos umarelação em ação, menos consciência temos dela; nós nos cons-cientizamos daquilo que estamos fazendo na proporção dadificuldade que vivenciamos para nos adaptar à situação.

Piaget utiliza a lei de Claparède para explicar o desenvol-vimento do pensamento que ocorre entre os sete e os doze anos.Durante esse período, as operações mentais da criança entramrepetidamente em conflito com o pensamento adulto. Ela sofrefracassos e derrotas por causa das deficiências de sua lógica, eessas experiências dolorosas criam a necessidade de tomarconsciência de seus conceitos.

Entendendo que essa necessidade não é uma explicaçãosuficiente para nenhuma mudança do desenvolvimento, Piaget

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complementa a lei de Claparède com a lei da transferência oudo deslocamento. Tornar-se consciente de uma operação men-tal significa transferi-la do plano da ação para o plano da lin-guagem, isto é, recriá-la na imaginação de modo que possa serexpressa em palavras. Essa transformação não é nem rápida,nem suave. A lei afirma que o domínio de uma operação noplano superior do pensamento verbal apresenta as mesmasdificuldades que o domínio anterior dessa operação no planoda ação. Isso explica o seu lento progresso.

Essas interpretações não parecem adequadas. As descober-tas de Claparède podem ter outra explicação. Nossos própriosestudos experimentais sugerem que a criança se conscientiza dasdiferenças mais cedo do que das semelhanças, não porque asdiferenças levam a um mau funcionamento, mas porque a percep-ção da semelhança exige uma estrutura de generalização e deconceitualização mais avançada do que a consciência da desse-melhança. Ao analisar o desenvolvimento dos conceitos de dife-rença e de semelhança, descobrimos que a consciência da seme-lhança pressupõe a formação de uma generalização, ou de umconceito, que abranja todos os objetos que são semelhantes, aopasso que a consciência da diferença não exige tal generalização- pode surgir de outras maneiras. O fato de a seqüência do desen-volvimento desses dois conceitos inverter a seqüência da anteriormanipulação comportamental da semelhança e da diferença nãoé único. Nossos experimentos estabeleceram, por exemplo, que acriança reage a uma ação representada graficamente mais cedodo que à representação de um objeto, mas se torna plenamenteconsciente do objeto antes de tomar consciência da ação12.

12. Desenhos idênticos foram mostrados a dois grupos de crianças emidade pré-escolar, com idades e nível de desenvolvimento semelhantes. Pediu-se a um grupo que representasse o desenho - o que indicaria o grau de apreen-são imediata do seu conteúdo; pediu se ao outro grupo que o descrevesse empalavras, uma tarefa que exige um grau de compreensão conceitualmentemediada. Descobriu-se que os "atores" representavam o sentido da situação daação representada, ao passo que os narradores enumeravam objetos separados.

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A lei da transferência é um exemplo da teoria genética,amplamente difundida, segundo a qual certos acontecimentosou modelos observados nos primeiros estágios de um processode desenvolvimento se repetirão nos seus estágios mais avan-çados. Os traços que realmente se repetem muitas vezes cegamo observador para as diferenças significativas originadas dofato de os processos posteriores ocorrerem num nível superiorde desenvolvimento. Podemos deixar de discutir o princípio darepetição enquanto tal, já que estamos apenas interessados emseu valor explicativo, no que diz respeito ao desenvolvimentoda consciência. A lei da transferência, assim como a lei daconsciência, pode no máximo responder por que a criança emidade escolar não é consciente dos seus conceitos, mas nãoconsegue explicar como se atinge essa consciência. Temos queprocurar outra hipótese para explicar esse acontecimento deci-sivo no desenvolvimento mental da criança.

Segundo Piaget, a ausência de consciência na criança emidade escolar é um resíduo do seu egocentrismo, que, emboraem vias de desaparecer, ainda mantém a sua influência na esfe-ra do pensamento verbal, que está começando a se formar exa-tamente nesse momento. A consciência é atingida quando opensamento socializado maduro expulsa o egocentrismo resi-dual do nível do pensamento verbal.

Essa explicação da natureza dos conceitos da criança emidade escolar, baseada essencialmente na sua incapacidadegeral de conscientizar-se plenamente de seus atos, não resisteao exame dos fatos. Vários estudos mostraram que é precisa-mente durante o início da idade escolar que as funções intelec-tuais superiores, cujas características principais são a cons-ciência reflexiva e o controle deliberado, adquirem um papelde destaque no processo de desenvolvimento. A atenção, queantes era involuntária, passa a ser voluntária e depende cadavez mais do próprio pensamento da criança; a memória mecâ-nica se transforma em memória lógica orientada pelo signifi-cado, podendo agora ser usada deliberadamente pela criança.

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Poder-se-ia dizer que tanto a atenção como a memória tomam-se "lógicas" e voluntárias, já que o controle de uma função é acontrapartida da consciência que se tem dela. Entretanto, nãose pode negar um fato demonstrado por Piaget: embora acriança em idade escolar adquira uma consciência e um domí-nio maiores e mais estáveis das suas operações conceituais,ainda não está consciente delas. Todas as funções mentais bá-sicas tornam-se conscientes e deliberadas durante a idade es-colar, exceto o próprio intelecto.

Para resolver esse paradoxo aparente, devemos nos voltarpara as leis fundamentais que regem o desenvolvimento psico-lógico. Uma delas afirma que a consciência e o controle apare-cem apenas num estágio tardio do desenvolvimento de umafunção, após esta ter sido utilizada e praticada inconsciente eespontaneamente. Para submeter uma função ao controle davolição e do intelecto, temos primeiro que nos apropriar dela.

O estágio das funções indiferenciadas na infância é segui-do pela diferenciação e pelo desenvolvimento da percepção noinício da infância, e pelo desenvolvimento da memória nacriança em idade pré-escolar, para mencionar apenas os aspec-tos mais importantes do desenvolvimento mental em cadaidade. A atenção, que corresponde à estruturação do que é per-cebido e lembrado, participa desse desenvolvimento. Conseqüen-temente, a criança que está para entrar na escola possui, de umaforma bastante madura, as funções que ela deve, em seguida,aprender a submeter ao controle consciente. Mas os conceitos- ou melhor, os pré-conceitos, como deveriam se chamar nessafase - mal começaram, nesse período, o seu processo de evolu-ção a partir dos complexos, e seria um verdadeiro milagre se acriança fosse capaz de se tornar consciente deles e dominá-losdurante esse mesmo período. Para que isso fosse possível, aconsciência não teria apenas que se apossar das suas funçõesisoladas: teria de criá-las.

Antes de prosseguir, queremos esclarecer o termo cons-ciência, no sentido em que o empregamos ao falar das funções

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não-conscientes "que se tornam conscientes". (Empregamos otermo não-consciente para distinguir o que ainda não é cons-ciente do "inconsciente" freudiano, resultante da repressão,que é um desenvolvimento posterior, um efeito de uma dife-renciação relativamente elevada da consciência.) A atividadeda consciência pode seguir rumos diferentes; pode explicarapenas alguns aspectos de um pensamento ou de um ato. Aca-bei de dar um nó - fiz isso conscientemente, mas não sei expli-car como o fiz, porque minha consciência estava concentradamais no nó do que nos meus próprios movimentos, o como deminha ação. Quando este último torna-se objeto de minha cons-ciência, já terei me tornado plenamente consciente. Utilizamosa palavra consciência para indicar a percepção da atividade damente - a consciência de estar consciente. Uma criança emidade pré-escolar que, em resposta à pergunta "Você sabe o seunome?", diz como se chama, não possui essa percepção auto-reflexiva; ela sabe o seu nome, mas não está consciente de quesabe.

Os estudos de Piaget mostraram que a introspecção come-ça a se desenvolver apenas durante o período escolar. Esse pro-cesso tem muitos pontos em comum com o desenvolvimentoda percepção exterior e da observação, na transição entre a pri-meira e a segunda infâncias, quando a criança passa de umapercepção primitiva e desprovida de palavras para uma percep-ção dos objetos orientada e expressa por palavras - percepçãoem termos de significado. Do mesmo modo, a criança em ida-de escolar passa da introspecção não-formulada para a intros-pecção verbalizada; percebe os seus próprios processos psíqui-cos como processos significativos. Mas a percepção em ter-mos de significado implica sempre um certo grau de generali-zação. Conseqüentemente, a transição para a auto-observaçãoverbalizada denota um processo incipiente de generalizaçãodas formas interiores de atividade. A passagem para um novotipo de percepção interior significa também a passagem paraum tipo mais elevado de atividade interior, uma vez que uma

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nova forma de ver as coisas cria novas possibilidades de mani-pulá-las. Os movimentos de um jogador de xadrez são deter-minados pelo que ele vê no tabuleiro; quando a sua percepçãodo jogo se modifica, sua estratégia também se modifica. Aoperceber alguns dos nossos próprios atos de uma forma gene-ralizante, nós os isolamos da nossa atividade mental total, eassim nos tornamos capazes de centrar a nossa atenção nesseprocesso como tal, estabelecendo uma nova relação com ele.Dessa forma, o fato de nos tornarmos conscientes de nossasoperações, concebendo-as como um processo de um determi-nado tipo - como, por exemplo, a lembrança ou a imaginação -,nos torna capazes de dominá-las.

O aprendizado escolar induz o tipo de percepção generali-zante, desempenhando assim um papel decisivo na conscienti-zação da criança dos seus próprios processos mentais. Os con-ceitos científicos, com o seu sistema hierárquico de inter-rela-ções, parecem constituir o meio no qual a consciência e o do-mínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outrosconceitos e a outras áreas do pensamento. A consciência refle-xiva chega à criança através dos portais dos conhecimentoscientíficos.

A caracterização que Piaget faz dos conceitos espontâneosda criança como sendo não-conscientes e assistemáticos tendea confirmar a nossa tese. A sugestão de que espontâneo, quan-do aplicado a conceitos, é sinônimo de não-consciente é óbviaem todos os seus trabalhos, e pode-se facilmente descobrir qualé a base em que isso se assenta. Ao operar com conceitos es-pontâneos, a criança não está consciente deles, pois a sua aten-ção está sempre centrada no objeto ao qual o conceito se refe-re, nunca no próprio ato do pensamento. A concepção de Pia-get de que os conceitos espontâneos existem para a criança forade qualquer conceito sistemático também é clara. Segundo ele,se quisermos descobrir e explorar as idéias espontâneas daprópria criança, ocultas por trás dos conceitos não-espontâ-neos que ela expressa, teremos que começar a libertá-las de

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todos os vínculos a um sistema. Essa abordagem resultou nostipos de respostas que expressam a atitude não-mediada dacriança em relação aos objetos, e que estão presentes em todosos livros de Piaget.

Parece-nos óbvio que um conceito possa submeter-se àconsciência e ao controle deliberado somente quando começaa fazer parte de um sistema. Se consciência significa generali-zação, a generalização, por sua vez, significa a formação deum conceito supra-ordenado que inclui o conceito dado comoum caso específico. Um conceito supra-ordenado implica aexistência de uma série de conceitos subordinados, e pressu-põe também uma hierarquia de conceitos de diferentes níveisde generalidade. Assim, o conceito dado é inserido em um sis-tema de relações de generalidade. O seguinte exemplo podeilustrar a função de diferentes graus de generalidade no apare-cimento de um sistema. Uma criança aprende a palavra flor, elogo depois a palavra rosa; durante muito tempo o conceito"flor", embora de aplicação mais ampla do que "rosa", nãopode ser considerado o mais geral para a criança. Não inclui enem subordina a si a palavra "rosa" - os dois são intercambiá-veis e justapostos. Quando "flor" se generaliza, a relação entre"flor" e "rosa", assim como entre "flor" e outros conceitos su-bordinados, também se modifica na mente da criança. Um sis-tema está se configurando.

Nos conceitos científicos que a criança adquire na escola,a relação com um objeto é mediada, desde o início, por algumoutro conceito. Assim, a própria noção de conceito científicoimplica uma certa posição em relação a outros conceitos, istoé, um lugar dentro de um sistema de conceitos. É nossa teseque os rudimentos de sistematização primeiro entram na men-te da criança, por meio do seu contato com os conceitos cientí-ficos, e são depois transferidos para os conceitos cotidianos,mudando a sua estrutura psicológica de cima para baixo.

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III

A inter-relação entre os conceitos científicos e os concei-tos espontâneos é um caso especial de um tema mais amplo: arelação entre o aprendizado escolar e o desenvolvimento men-tal da criança. Várias teorias sobre essa relação foram propos-tas no passado, e a questão é ainda hoje uma das principaispreocupações da psicologia soviética. Analisaremos três tenta-tivas para respondê-la, a fim de inserir o nosso estudo em umcontexto mais amplo.

A primeira teoria, que ainda é a mais amplamente aceita,considera o aprendizado e o desenvolvimento independentesentre si. O desenvolvimento é visto como um processo de ma-turação sujeito às leis naturais; e o aprendizado, como a utili-zação das oportunidades criadas pelo desenvolvimento. Umdos aspectos típicos dessa escola de pensamento são as suastentativas de separar, com muito cuidado, os produtos do de-senvolvimento dos produtos do aprendizado, supostamentecom o propósito de encontrá-los na sua forma pura. Nenhuminvestigador até hoje foi capaz de realizar isso. A culpa é geral-mente atribuída a métodos inadequados, e os fracassos são com-pensados redobrando-se as análises especulativas. Esses esfor-ços para dividir o aparato intelectual da criança em duas cate-gorias andam de mãos dadas com a idéia de que o desenvolvi-mento pode seguir o seu caminho normal e alcançar um nívelelevado sem nenhuma ajuda do aprendizado - que até mesmocrianças que nunca freqüentaram a escola são capazes de de-senvolver as formas mais elevadas de pensamento acessíveisaos seres humanos. Com mais freqüência, no entanto, essa teo-ria é modificada para levar em conta uma relação que obvia-mente existe entre o desenvolvimento e o aprendizado: o pri-meiro cria as potencialidades, o segundo as realiza. A educaçãoé vista como um tipo de superestrutura erigida sobre a matura-ção; ou, para mudarmos de metáfora, a educação se relacionacom o desenvolvimento da mesma forma que o consumo se

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relaciona com a produção. Admite-se, portanto, a existência deuma relação unilateral: a aprendizagem depende do desenvol-vimento, mas o curso do desenvolvimento não é afetado pelaaprendizagem.

Essa teoria se baseia na observação simples de que qual-quer aprendizado exige um certo grau de maturidade de deter-minadas funções: não se pode ensinar uma criança de um ano deidade a ler, ou uma criança de três anos a escrever. Desse modo,a análise da aprendizagem reduz-se à determinação do nível dedesenvolvimento que várias funções devem atingir para que aaprendizagem se torne possível. Quando a memória da criançajá progrediu o suficiente para capacitá-la a memorizar o alfabe-to, quando a sua atenção pode fixar-se numa tarefa maçante,quando o seu pensamento já amadureceu a ponto de permitir-lheentender a conexão entre signo e som - então pode-se começar aensinar a criança a escrever. De acordo com essa variante da pri-meira teoria, o aprendizado mal consegue acompanhar o desen-volvimento. O desenvolvimento tem que completar certos ciclosantes que o aprendizado possa começar.

A verdade dessa última afirmação é óbvia; existe, de fato,um nível mínimo necessário. Entretanto, essa visão unilateralresulta numa série de concepções erradas. Suponhamos que amemória, a atenção e o pensamento da criança já se desenvol-veram a ponto de capacitá-la a aprender a escrita e a aritméti-ca; será que o estudo da escrita e da aritmética tem algumainfluência sobre a sua memória, a sua atenção e o seu pensa-mento, ou não? A psicologia tradicional responde: sim, à me-dida que a criança exercita essas funções; mas o processo dedesenvolvimento como tal não se modifica; nada de novo acon-tece no desenvolvimento mental da criança; ela aprendeu aescrever - e nada mais. Essa concepção, característica da velhateoria educacional, também impregna os escritos de Piaget,que acredita que o pensamento da criança passa por certas fa-ses e estágios, independentemente de qualquer instrução queela possa receber; a instrução permanece um fator externo. O

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nível do desenvolvimento da criança não deve ser avaliado poraquilo que ela aprendeu através da instrução, mas sim pelo modocomo ela pensa sobre assuntos a respeito dos quais nada lhe foiensinado. Aqui, a separação - na verdade, a oposição - entre oaprendizado e o desenvolvimento é levada ao seu extremo.

A segunda teoria acerca do desenvolvimento e do aprendi-zado identifica os dois processos. Foi originalmente exposta porWilliam James, e baseia ambos os processos na associação ena formação de hábitos, transformando assim a instrução numsinônimo de desenvolvimento. Essa concepção passa, no pre-sente momento, por um processo de renascimento, tendo emThorndike o seu principal defensor. A reflexologia, que tradu-ziu o associacionismo para a linguagem da fisiologia, vê o de-senvolvimento intelectual da criança como uma acumulaçãogradual de reflexos condicionados; e a aprendizagem é vistaexatamente da mesma forma. Como o aprendizado e o desen-volvimento são idênticos, nem sequer se questiona a relaçãoconcreta entre eles.

A terceira escola de pensamento, representada pelo ges-taltismo, tenta reconciliar as duas teorias anteriores, evitandoas suas deficiências. Embora esse ecletismo resulte numa abor-dagem um tanto inconsistente, realiza uma certa síntese dasduas concepções opostas. Koffka afirma que todo desenvolvi-mento tem dois aspectos: a maturação e a aprendizagem. Em-bora isso signifique aceitar, de uma forma menos extrema, osdois pontos de vista antigos, a nova teoria representa um avan-ço em relação às outras duas, sob três pontos de vista.

Em primeiro lugar, Koffka admite uma certa interdepen-dência entre os dois aspectos do desenvolvimento. Com baseem alguns fatos, demonstra que a maturação de um órgão de-pende do seu funcionamento, que se aperfeiçoa por meio daaprendizagem e da prática. A maturação, por sua vez, cria no-vas oportunidades para a aprendizagem. Mas Koffka se limitaa postular uma influência mútua, sem examinar detalhadamen-te a sua natureza. Em segundo lugar, essa teoria introduz uma

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nova concepção do próprio processo educacional como a for-mação de novas estruturas e o aperfeiçoamento das antigas.Portanto, atribui-se ao aprendizado um papel estrutural signi-ficativo. Uma característica básica de qualquer estrutura é asua independência em relação à sua substância original - podeser transferida a outros meios. Uma vez que a criança já for-mou uma certa estrutura, ou aprendeu determinada operação,ela será capaz de empregá-la em outras áreas. Demos-lhe umcentavo de instrução, e ela ganhou uma pequena fortuna, emtermos de desenvolvimento. O terceiro ponto em que essa teo-ria se confronta vantajosamente com as anteriores é a sua con-cepção da relação temporal entre aprendizado e desenvolvi-mento. Já que a instrução dada em uma área pode transformare reorganizar outras áreas do pensamento infantil, pode nãoapenas seguir o amadurecimento, ou manter-se no mesmo ní-vel que ele, mas também precedê-lo e favorecer o seu progres-so. Admitir que diferentes seqüências temporais são igualmen-te possíveis e importantes é uma contribuição da teoria ecléticaque não deveria ser subestimada.

Essa teoria nos coloca face a face com um velho proble-ma, que reaparece de uma forma nova: a teoria quase esqueci-da da disciplina formal, geralmente associada a Herbart. Se-gundo essa teoria, o aprendizado de certas matérias desenvolveas faculdades mentais em geral, além de proporcionar o conhe-cimento da matéria e de habilidades específicas. Na prática,isso levou às mais reacionárias formas de educação, tais comoos "liceus clássicos" russos e alemães, que enfatizavam exces-sivamente a importância do grego e do latim como fontes de"disciplina formal". Esse sistema foi finalmente abandonadoporque não satisfazia às necessidades práticas da educaçãoburguesa moderna. Dentro da própria psicologia, Thorndike,numa série de investigações, fez o máximo para desacreditar omito da disciplina formal e provar que o aprendizado não tinhanenhum efeito considerável sobre o desenvolvimento. A suacrítica é convincente na medida em que se aplica aos exagerosridículos da disciplina formal, mas não toca a sua essência.

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No seu esforço para refutar a concepção de Herbart,Thorndike pesquisou as funções mais restritas, as mais espe-cializadas e as mais rudimentares. Do ponto de vista de umateoria que reduz toda aprendizagem à formação de elos asso-ciativos, a escolha da atividade faria pouca diferença. Em al-guns experimentos, ensinaram-se os sujeitos a distinguir os com-primentos relativos das linhas, e depois tentou-se verificar seessa prática aumentava ou não a sua habilidade para distinguiras dimensões dos ângulos. Naturalmente, descobriu-se que is-so não ocorria. A influência do aprendizado sobre o desenvol-vimento fora postulada pela teoria da disciplina formal somen-te em relação a matérias como a matemática ou as línguas, queenvolvem vastos complexos de funções psíquicas. Talvez a ca-pacidade para medir as linhas não afete a capacidade para dis-tinguir os ângulos, mas o estudo da língua materna - com a suaconseqüente sofisticação de conceitos - pode ainda ter algumainfluência sobre o estudo da aritmética. O trabalho de Thorn-dike faz parecer provável que existam dois tipos de aprendiza-do: o treinamento estritamente especializado em alguma habi-lidade, como, por exemplo, a datilografia, que envolve a for-mação de hábitos e exercícios e é encontrado mais freqüente-mente em escolas profissionalizantes para adultos; e o tipo deinstrução dada às crianças em idade escolar, que ativa vastasáreas da consciência. A idéia de disciplina formal pode ter pou-co a ver com o primeiro tipo, mas pode certamente mostrar-seválida para o segundo. Evidentemente, nos processos superio-res que surgem durante o desenvolvimento cultural da criança,a disciplina formal deve desempenhar um papel diferente da-quele que desempenha nos processos mais elementares: todasas funções superiores têm em comum a consciência, a abstra-ção e o controle. De acordo com as concepções teóricas deThorndike, as diferenças qualitativas entre as funções inferio-res e superiores são ignoradas nos seus estudos sobre a transfe-rência do treinamento.

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Para formular a nossa teoria experimental acerca das rela-ções entre aprendizado e desenvolvimento, partimos de quatroséries de investigações [2], cujo objetivo comum era desvendaressas inter-relações complexas em certas áreas definidas doaprendizado escolar: leitura e escrita, gramática, aritmética, ciên-cias sociais e ciências naturais. As pesquisas específicas quedesenvolvemos voltaram-se para temas como o domínio do sis-tema decimal em relação ao desenvolvimento do conceito denúmero; a consciência que a criança tem das suas operações aoresolver problemas matemáticos; os processos de elaborar e re-solver problemas por parte dos alunos de primeira série. Muitomaterial interessante veio à luz sobre o desenvolvimento da lin-guagem oral e escrita durante a idade escolar, os níveis consecu-tivos da compreensão do significado figurado, a influência dodomínio das estruturas gramaticais sobre o rumo do desenvolvi-mento mental, a compreensão das relações no estudo das ciên-cias sociais e naturais. As investigações concentraram-se nonível de maturidade das funções psíquicas no início da educaçãoescolar, e na influência da educação escolar sobre o seu desen-volvimento; na seqüência temporal do aprendizado e do desenvol-vimento; na função de "disciplina formal" das várias matériasescolares. Discutiremos essas questões a seguir, uma de cada vez.

1. Em nossa primeira série de estudos, examinamos onível de desenvolvimento das funções psíquicas necessáriaspara a aprendizagem das matérias escolares básicas - leitura eescrita, aritmética, ciências naturais. Descobrimos que, no iní-cio do aprendizado, essas funções não poderiam ser considera-das maduras, mesmo nas crianças que se mostravam capazesde dominar com êxito o currículo. A linguagem escrita é umbom exemplo. Por que razão a escrita torna-se difícil para acriança em idade escolar, a ponto de, em certos períodos, exis-tir uma defasagem de seis a oito anos entre a sua "idade lin-güística" na fala e na escrita? Esse fato é geralmente explicadopela novidade da escrita: como uma nova função, tem que re-

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petir os estágios do desenvolvimento da fala; portanto, a escri-ta de uma criança de oito anos assemelha-se à fala de uma crian-ça de dois anos. Esta explicação é obviamente insuficiente. Umacriança de dois anos usa poucas palavras e uma sintaxe sim-ples, porque o seu vocabulário é limitado e ela não tem nenhumconhecimento de estruturas sintáticas mais complexas; mas acriança em idade escolar possui o vocabulário e as formas gra-maticais necessárias para a escrita, já que são as mesmas utili-zadas na fala oral. As dificuldades para dominar a mecânica daescrita também não podem explicar o enorme abismo entre alinguagem escrita e a linguagem oral da criança.

Nossa investigação mostrou que o desenvolvimento daescrita não repete a história do desenvolvimento da fala. A es-crita é uma função lingüística distinta, que difere da fala oraltanto na estrutura como no funcionamento. Até mesmo o seumínimo desenvolvimento exige um alto nível de abstração. É afala em pensamento e imagens apenas, carecendo das qualida-des musicais, expressivas e de entoação da fala oral. Ao apren-der a escrever, a criança precisa se desligar do aspecto senso-rial da fala e substituir palavras por imagens de palavras. Umafala apenas imaginada, que exige a simbolização de imagemsonora por meio de signos escritos (isto é, um segundo grau derepresentação simbólica), deve ser naturalmente muito maisdifícil para a criança do que a fala oral, assim como a álgebra émais difícil do que a aritmética. Nossos estudos mostram que oprincipal obstáculo é a qualidade abstrata da escrita, e não osubdesenvolvimento de pequenos músculos ou quaisquer ou-tros obstáculos mecânicos.

A escrita também é uma fala sem interlocutor, dirigida auma pessoa ausente ou imaginária, ou a ninguém em especial -uma situação nova e estranha para a criança. Nossos estudosmostram que, quando começamos a ensinar uma criança a es-crever, deparamo-nos com uma fraca motivação por parte dela.Não sente nenhuma necessidade da escrita, e só tem uma vagaidéia de sua utilidade. Na conversação, todas as frases são im-

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pelidas por um motivo. O desejo ou a necessidade levam aospedidos, as perguntas conduzem às respostas, e a confusão àexplicação. Os motivos variáveis dos interlocutores determinama todo instante o curso da fala oral. Ela não tem que ser cons-cientemente dirigida - a situação dinâmica se encarrega disso.Os motivos para escrever são mais abstratos, mais intelectuali-zados, mais distantes das necessidades imediatas. Na escrita,somos obrigados a criar a situação, ou a representá-la para nósmesmos. Isso exige um distanciamento da situação real.

A escrita também exige uma ação analítica deliberada porparte da criança. Na fala, a criança mal tem consciência dossons que emite e está bastante inconsciente das operações men-tais que executa. Na escrita, ela tem que tomar conhecimentoda estrutura sonora de cada palavra, dissecá-la e reproduzi-laem símbolos alfabéticos, que devem ser estudados e memori-zados antes. Da mesma forma deliberada, tem que pôr as pala-vras em uma certa seqüência, para que possa formar uma frase.A escrita exige um trabalho consciente porque a sua relaçãocom a fala interior é diferente da relação com a fala oral. Estaúltima precede a fala interior no decorrer do desenvolvimento,ao passo que a escrita segue a fala interior e pressupõe a suaexistência (o ato de escrever implica uma tradução a partir dafala interior). Mas a gramática do pensamento não é igual nosdois casos. Poder-se-ia até mesmo dizer que a sintaxe da falainterior é exatamente oposta à sintaxe da escrita, permanecen-do a fala oral numa posição intermediária.

A fala interior é uma fala condensada e abreviada. A escri-ta é desenvolvida em toda a sua plenitude, é mais completa doque a fala oral. A fala interior é quase que inteiramente predi-cativa, porque a situação, o objeto do pensamento, é sempreconhecida por aquele que pensa. A escrita, ao contrário, temque explicar plenamente a situação para que se torne inteligí-vel. A passagem da fala interior, extremamente compacta, paraa fala oral, extremamente detalhada, exige o que se poderiachamar de semântica deliberada - a estruturação intencionalda teia do significado.

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Todos esses traços da linguagem escrita explicam por queo seu desenvolvimento na criança em idade escolar fica muitoatrás daquele da fala oral. A discrepância é causada pela profi-ciência da criança na atividade espontânea e inconsciente, epela sua falta de habilidade para a atividade abstrata, delibera-da. Como os nossos estudos mostraram, as funções psicológi-cas sobre as quais se baseia a escrita nem começaram a se de-senvolver de fato quando o ensino da escrita tem início, e estetem que se basear em processos rudimentares que mal começa-ram a surgir.

Resultados semelhantes foram obtidos no campo da arit-mética, da gramática e das ciências naturais. Em todos os ca-sos, as funções necessárias estão imaturas quando o aprendiza-do se inicia. Discutiremos brevemente a questão da gramática,que apresenta algumas características especiais.

A gramática é um assunto que parece ter pouca utilidadeprática. Ao contrário de outras matérias escolares, não ensinanovas habilidades à criança, pois esta já conjuga e declina an-tes de entrar na escola. Já se chegou até mesmo a dizer que oensino da gramática na escola poderia ser abolido. Podemosreplicar que a nossa análise mostrou claramente que o estudoda gramática é de grande importância para o desenvolvimentomental da criança.

A criança domina, de fato, a gramática da sua língua ma-terna muito antes de entrar na escola, mas esse domínio é in-consciente, adquirido de forma puramente estrutural, tal comoa composição fonética das palavras. Se pedirmos a uma criançapequena que produza uma combinação de sons, se por exem-plo, descobriremos que a articulação deliberada é extrema-mente difícil para ela; entretanto, dentro de uma estrutura,como, por exemplo, na palavra Moscou, ela pronuncia os mes-mos sons com facilidade. O mesmo é válido para a gramática.A criança usará o tempo verbal correto numa frase, mas nãosaberá declinar ou conjugar uma palavra quando isso lhe forpedido. Ela pode não adquirir novas formas gramaticais ou sin-

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táticas na escola, mas, graças ao aprendizado da gramática e daescrita, realmente torna-se consciente do que está fazendo eaprende a usar suas habilidades conscientemente. Assim comouma criança percebe pela primeira vez, ao aprender a escrever,que a palavra Moscou é formada pelos sons m-o-s-c-o-u, e apren-de a pronunciar cada um deles isoladamente, também aprendea construir frases, a fazer conscientemente o que já vinha fa-zendo inconscientemente ao falar. A gramática e a escrita aju-dam a criança a passar para um nível mais elevado do desen-volvimento da fala.

Assim, a nossa investigação mostra que o desenvolvimen-to das bases psicológicas para o aprendizado de matérias bási-cas não precede esse aprendizado, mas se desenvolve numainteração contínua com as suas contribuições.

2. Nossa segunda série de investigações centrou-se na rela-ção temporal entre os processos de aprendizado e o desenvolvi-mento das funções psicológicas correspondentes. Descobrimosque o aprendizado geralmente precede o desenvolvimento. Acriança adquire certos hábitos e habilidades numa área especí-fica, antes de aprender a aplicá-los consciente e deliberadamen-te. Nunca há um paralelismo completo entre o curso do apren-dizado e o desenvolvimento das funções correspondentes.

O aprendizado tem as suas próprias seqüências e sua pró-pria organização, segue um currículo e um horário, e não sepode esperar que as suas regras coincidam com as leis internasdos processos de desenvolvimento que desencadeia. Com baseem nossos estudos, tentamos delinear as curvas do progressodo aprendizado e das funções psicológicas que participam dele;essas curvas não eram coincidentes, ao contrário, indicavamuma relação extremamente complexa.

Por exemplo, as diferentes etapas na aprendizagem da arit-mética podem não ter o mesmo valor para o desenvolvimentomental. Muitas vezes três ou quatro etapas do aprendizadopouco acrescentam à compreensão da aritmética por parte da

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criança, e depois, na quinta etapa, algo surge repentinamente:a criança captou um princípio geral, e a curva do seu desenvol-vimento sobe acentuadamente. Para essa criança específica, aquinta operação foi decisiva, mas isso não pode ser considera-do uma regra geral. O momento crucial em que o princípio ge-ral se torna claro para a criança não pode ser antecipado pelocurrículo. A criança não aprende o sistema decimal como tal;aprende a escrever números, a somar e a multiplicar, a resolverproblemas; a partir disso, algum conceito geral sobre o sistemadecimal acaba por surgir.

Quando a criança aprende alguma operação aritmética oualgum conceito científico, o desenvolvimento dessa operação ouconceito apenas começou. O nosso estudo mostra que a curva dodesenvolvimento não coincide com a curva do aprendizado es-colar; em geral, o aprendizado precede o desenvolvimento.

3. Nossa terceira série de investigações assemelha-se aosestudos de Thorndike acerca da transferência do treinamento,exceto pelo fato de que nossos experimentos foram realizadoscom matérias escolares e com as funções superiores, ao invésdas elementares, isto é, com matérias e funções supostamenterelacionadas entre si de um modo significativo.

Descobrimos que o desenvolvimento intelectual, longe deseguir o modelo atomístico de Thorndike, não é compartimenta-do de acordo com os tópicos do aprendizado. O seu percurso émuito mais unitário, e as diferentes matérias escolares interagem,contribuindo com ele. Embora o processo de aprendizado siga asua própria ordem lógica, desperta e dirige, na mente da criança,um sistema de processos oculto à observação direta e sujeito àssuas próprias leis de desenvolvimento. Desvendar esses proces-sos de desenvolvimento estimulados pelo aprendizado é uma dastarefas básicas do estudo psicológico do aprendizado.

Especificamente, nossos experimentos trouxeram à tonaos seguintes fatos inter-relacionados: os pré-requisitos psico-lógicos para o aprendizado de diferentes matérias escolares

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são, em grande parte, os mesmos; o aprendizado de uma maté-ria influencia o desenvolvimento das funções superiores paraalém dos limites dessa matéria específica; as principais fun-ções psíquicas envolvidas no estudo de várias matérias sãointerdependentes - suas bases comuns são a consciência e odomínio deliberado, as contribuições principais dos anos esco-lares. A partir dessas descobertas, conclui-se que todas as ma-térias escolares básicas atuam como uma disciplina formal, cadauma facilitando o aprendizado das outras; as funções psicoló-gicas por elas estimuladas se desenvolvem ao longo de um pro-cesso complexo.

4. Em nossa quarta série de estudos, abordamos um pro-blema que não havia recebido atenção suficiente no passado,mas que consideramos de importância fundamental para oestudo do aprendizado e do desenvolvimento.

A maior parte das investigações psicológicas acerca doaprendizado escolar media o nível de desenvolvimento mentalda criança fazendo-a resolver certos problemas padronizados.Supunha-se que os problemas que ela conseguisse resolversozinha indicavam o nível do seu desenvolvimento mental nes-sa ocasião específica. Mas, desse modo, só é possível medir aetapa já concluída do desenvolvimento da criança, o que estálonge de representar a totalidade do processo. Tentamos umaabordagem diferente. Após termos descoberto que a idade men-tal de duas crianças era, digamos, oito anos, demos a cada umadelas problemas mais difíceis do que seriam capazes de resol-ver sozinhas, dando-lhes uma pequena assistência: o primeiropasso para uma solução, uma pergunta importante ou algumoutro tipo de ajuda. Descobrimos que uma das crianças podia,em cooperação, resolver problemas elaborados para uma crian-ça de doze anos, ao passo que a outra não conseguia ir alémdos problemas concebidos para crianças de nove anos. A dis-crepância entre a idade mental real de uma criança e o nívelque ela atinge ao resolver problemas com o auxílio de outra

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pessoa indicam a zona do seu desenvolvimento proximal; emnosso exemplo, essa zona é de quatro para a primeira criança ede um para a segunda. Podemos realmente afirmar que o seudesenvolvimento mental é o mesmo? A experiência nos mos-trou que a criança com a zona maior de desenvolvimento pro-ximal terá um aproveitamento muito melhor na escola. Essamedida dá-nos uma pista mais útil sobre a dinâmica do pro-gresso intelectual do que aquela que nos é fornecida pela idademental.

Atualmente os psicólogos não podem compartilhar a con-cepção dos leigos, segundo a qual a imitação é uma atividademecânica e que qualquer pessoa pode imitar quase tudo seensinarmos a ela como fazê-lo. Para imitar, é necessário pos-suir os meios para se passar de algo que já se conhece para algonovo. Com o auxílio de uma outra pessoa, toda criança podefazer mais do que faria sozinha - ainda que se restringindo aoslimites estabelecidos pelo grau de seu desenvolvimento. Koehlerdescobriu que um chimpanzé consegue imitar apenas os atosinteligentes de outros macacos que ele próprio seria capaz deexecutar. É verdade que o adestramento persistente pode indu-zi-lo a executar ações muito mais complicadas, mas estas sãorealizadas mecanicamente e têm todas as características dehábitos desprovidos de significado, ao invés de soluções intui-tivas. O mais inteligente dos animais é incapaz de se desenvol-ver intelectualmente por meio da imitação. Pode ser treinado aexecutar atos específicos, mas novos hábitos não resultam emnovas habilidades gerais. Nesse sentido, é possível afirmar queos animais não podem ser ensinados.

No desenvolvimento da criança, pelo contrário, a imitaçãoe o aprendizado desempenham um papel importante. Trazem àtona as qualidades especificamente humanas da mente e levama criança a novos níveis de desenvolvimento. Na aprendizagemda fala, assim como na aprendizagem das matérias escolares, aimitação é indispensável. O que a criança é capaz de fazer hojeem cooperação, será capaz de fazer sozinha amanhã. Portanto,

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o único tipo positivo de aprendizado é aquele que caminha àfrente do desenvolvimento, servindo-lhe de guia; deve voltar-se não tanto para as funções já maduras, mas principalmentepara as funções em amadurecimento. Continua sendo necessá-rio determinar o limiar mínimo em que, digamos, o aprendiza-do da aritmética possa ter início, uma vez que este exige umgrau mínimo de maturidade das funções. Mas devemos consi-derar, também, o limiar superior; o aprendizado deve ser orien-tado para o futuro, e não para o passado.

Por algum tempo, as nossas escolas favoreceram o sistema"complexo" de aprendizado que, segundo se acreditava, estariaadaptado às formas de pensamento da criança. Na medida emque oferecia à criança problemas que ela conseguia resolversozinha, esse método foi incapaz de utilizar a zona de desen-volvimento proximal e de dirigir a criança para aquilo que elaainda não era capaz de fazer. O aprendizado voltava-se para asdeficiências da criança, ao invés de se voltar para os seus pon-tos fortes, encoraj ando-a, assim, a permanecer no estágio pré-escolar do desenvolvimento.

Para cada matéria escolar há um período em que a suainfluência é mais produtiva porque a criança é mais receptiva aela. Montessori e outros educadores denominaram-no períodosensível. O termo também é empregado em biologia, para indi-car os períodos do desenvolvimento ontogenético em que oorganismo é particularmente sensível a certos tipos de influên-cias. Durante esse período, uma influência que, antes ou de-pois, teria um efeito reduzido, pode afetar radicalmente o cur-so do desenvolvimento. Mas a existência de um período ótimopara o aprendizado de uma determinada matéria não pode serexplicada em termos puramente biológicos, pelo menos não noque diz respeito a processos tão complexos como a escrita.Nossa pesquisa comprovou a natureza social e cultural dodesenvolvimento das funções superiores durante esses períodos,isto é, a sua dependência da cooperação com os adultos e doaprendizado. Os dados de Montessori, no entanto, não perde-

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ram a sua importância. Ela descobriu, por exemplo, que se en-sinarmos uma criança a escrever muito cedo, aos quatro anos emeio ou cinco anos de idade, a resposta dela será uma "escritaexplosiva", um uso abundante e imaginativo da escrita quenunca será repetido pelas crianças alguns anos mais velhas.Esse é um exemplo surpreendente da forte influência que oaprendizado pode ter quando as funções correspondentes ain-da não amadureceram plenamente. A existência de períodossensíveis para todas as matérias escolares é plenamente confir-mada pelos dados obtidos em nossos estudos. Os anos escola-res são, no todo, o período ótimo para o aprendizado de opera-ções que exigem consciência e controle deliberado; o aprendiza-do dessas operações favorece enormemente o desenvolvimentodas funções psicológicas superiores enquanto ainda estão emfase de amadurecimento. Isso se aplica também ao desenvolvi-mento dos conceitos científicos que o aprendizado escolarapresenta à criança.

IV

Sob nossa orientação, Zh. I. Shif conduziu uma investiga-ção sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos e coti-dianos durante a idade escolar [37]. O seu objetivo principalera testar experimentalmente as nossas hipóteses de trabalhoacerca do desenvolvimento dos conceitos científicos em com-paração com o dos conceitos cotidianos. Foram apresentados àcriança problemas estruturalmente semelhantes, que tratavamde material científicos ou "comum", e as suas soluções foramconfrontadas. Os experimentos incluíam a criação de histórias,a partir de séries de figuras que mostravam o começo, o meio eo fim de uma ação, e a atividade de completar fragmentos defrases terminadas com as palavras porque ou embora; essestestes eram complementados por análises clínicas. O materialde uma das séries de testes foi extraído dos cursos de ciências

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sociais para o segundo e quarto anos. A segunda série de testesutilizava situações simples da vida cotidiana, tais como: "Omenino foi ao cinema porque...", "A menina ainda não sabe ler,embora...", "Ele caiu da bicicleta porque..." Métodos suplemen-tares de estudo incluíam testes para verificar o alcance doconhecimento e da capacidade de observação da criança,durante aulas especialmente preparadas com esse propósito. Ascrianças que estudamos eram alunos de uma escola primária.

A análise dos dados comparados isoladamente para cadafaixa etária mostrou que, quando o currículo fornece o mate-rial necessário, o desenvolvimento dos conceitos científicos ul-trapassa o desenvolvimento dos conceitos espontâneos.

FRAGMENTOS DE FRASES COMPLETADAS CORRETAMENTE

Fragmentos terminados em porqueConceitos científicosConceitos espontâneos

Fragmentos terminados em emboraConceitos científicosConceitos espontâneos

Segundo Ano Quarto Ano*(porcentagem)

79,759,0

21,316,2

81,881,3

79,565,5

Como podemos explicar que a incidência de resoluçõescorretas para os problemas que envolvem conceitos científicosé maior do que para os problemas que envolvem conceitoscotidianos? Podemos abandonar de imediato a idéia de que acriança é auxiliada por informações factuais adquiridas na es-cola, e que seja inexperiente no que diz respeito às coisas docotidiano. Nossos testes, como os de Piaget, trabalharam total-

* No sistema escolar russo, as crianças do segundo e do quarto anosteriam, em média, oito e dez anos de idade. (Nota da edição inglesa.)

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mente com coisas e relações que eram familiares às crianças,sendo muitas vezes espontaneamente mencionadas por elasnas suas conversas. Ninguém imaginará que uma criança saibamenos de bicicletas, de crianças ou de escola do que da luta declasses, da exploração ou da Comuna de Paris. A vantagem dafamiliaridade está toda do lado dos conceitos cotidianos.

A criança provavelmente acha difícil solucionar proble-mas que envolvem situações da vida cotidiana, porque não temconsciência de seus conceitos e, portanto, não pode operar comeles à vontade, conforme a tarefa exige. Uma criança de oitoou nove anos utiliza corretamente a palavra porque em umaconversa espontânea; ela nunca diria que um menino caiu equebrou a perna porque foi levado ao hospital. Entretanto, éisso que ela faz em experimentos, até que o conceito de "por-que" se torne totalmente consciente. Por outro lado, ela con-clui corretamente frases relacionadas às ciências sociais: "Aeconomia planejada é possível na Rússia porque não há pro-priedade privada - toda a terra, as fábricas e as usinas perten-cem aos operários e camponeses." Por que, nesse caso, ela é ca-paz de executar a operação? Porque o professor, trabalhandocom o aluno, explicou, deu informações, questionou, corrigiuo aluno e o fez explicar. Os conceitos da criança se formaramno processo de aprendizado, em colaboração com o adulto. Aoconcluir a frase, ela utiliza os frutos dessa colaboração, dessavez independentemente. A ajuda do adulto, invisivelmente pre-sente, permite à criança resolver tais problemas mais cedo doque os problemas que dizem respeito à vida cotidiana.

Na mesma faixa etária (segundo ano), as frases com em-bora apresentam um quadro diferente: os conceitos científicosnão estão na dianteira dos conceitos cotidianos. Sabemos queas relações adversativas aparecem no pensamento espontâneoda criança mais tarde do que as relações causais. Uma criançadessa idade pode aprender a utilizar conscientemente a palavraporque pelo fato de, a essa altura, já ter dominado o seu usoespontâneo. Por não haver ainda dominado a palavra embora

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da mesma forma, não pode, naturalmente, utilizá-la de formadeliberada no seu pensamento "científico"; por essa razão, aporcentagem dos êxitos é igualmente baixa em ambas as sériesde testes.

Nossos dados mostram um rápido progresso na solução deproblemas que envolvem os conceitos cotidianos: no quartoano, os fragmentos com porque são completados corretamentecom igual freqüência para o material científico e cotidiano. Is-so vem confirmar a nossa hipótese de que o domínio de umnível mais elevado na esfera dos conceitos científicos tambémeleva o nível dos conceitos espontâneos. Uma vez que a crian-ça já atingiu a consciência e o controle de um tipo de conceitos,todos os conceitos anteriormente formados são reconstruídosda mesma forma.

A relação entre os conceitos científicos e os espontâneosna categoria adversativa apresenta, no quarto ano, um quadromuito semelhante àquele apresentado pela categoria causal nosegundo ano. A porcentagem de soluções corretas para as tare-fas que envolvem conceitos científicos ultrapassa a porcenta-gem daquelas que envolvem conceitos cotidianos. Se a dinâ-mica é a mesma para ambas as categorias, é de se esperar queos conceitos cotidianos aumentem acentuadamente no estágioseguinte do desenvolvimento, e que finalmente alcancem os con-ceitos científicos. Começando dois anos mais tarde, todo o pro-cesso do desenvolvimento do "embora" duplicaria o desenvol-vimento do "porque".

Acreditamos que nossos dados confirmam a hipótese deque, desde o início, os conceitos científicos e espontâneos dacriança - por exemplo, os conceitos de "exploração" e de "ir-mão" - se desenvolvem em direções contrárias: inicialmenteafastados, a sua evolução faz com que terminem por se encon-trar. Esse é o ponto fundamental da nossa hipótese.

A criança adquire consciência dos seus conceitos espontâ-neos relativamente tarde; a capacidade de defini-los por meiode palavras, de operar com eles à vontade, aparece muito tem-

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po depois de ter adquirido os conceitos. Ela possui o conceito(isto é, conhece o objeto ao qual o conceito se refere), mas nãoestá consciente do seu próprio ato de pensamento. O desenvol-vimento de um conceito científico, por outro lado, geralmentecomeça com sua definição verbal e com sua aplicação em ope-rações não-espontâneas - ao se operar com o próprio conceito,cuja existência na mente da criança tem início a um nível quesó posteriormente será atingido pelos conceitos espontâneos.

Um conceito cotidiano da criança, como por exemplo "ir-mão", é algo impregnado de experiência. No entanto, quandolhe pedimos para resolver um problema abstrato sobre o irmãode um irmão, como nos experimentos de Piaget, ela fica con-fusa. Por outro lado, embora consiga responder corretamente aquestões sobre "escravidão", "exploração" ou "guerra civil",esses conceitos são esquemáticos e carecem da riqueza de con-teúdo proveniente da experiência pessoal. Vão sendo gradual-mente expandidos no decorrer das leituras e dos trabalhos es-colares posteriores. Poder-se-ia dizer que o desenvolvimento dosconceitos espontâneos da criança é ascendente, enquanto odesenvolvimento dos seus conceitos científicos é descendente,para um nível mais elementar e concreto. Isso decorre das dife-rentes formas pelas quais os dois tipos de conceitos surgem.Pode-se remontar a origem de um conceito espontâneo a umconfronto com uma situação concreta, ao passo que um con-ceito científico envolve, desde o início, uma atitude "mediada"em relação a seu objeto.

Embora os conceitos científicos e espontâneos se desen-volvam em direções opostas, os dois processos estão intima-mente relacionados. É preciso que o desenvolvimento de umconceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que acriança possa absorver um conceito científico correlato. Porexemplo, os conceitos históricos só podem começar a se de-senvolver quando o conceito cotidiano que a criança tem do pas-sado estiver suficientemente diferenciado - quando a sua pró-pria vida e a vida dos que a cercam puder adaptar-se à generali-

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zação elementar "no passado e agora"; os seus conceitos geo-gráficos e sociológicos devem se desenvolver a partir do es-quema simples "aqui e em outro lugar". Ao forçar a sua lentatrajetória para cima, um conceito cotidiano abre o caminhopara um conceito científico e o seu desenvolvimento descen-dente. Cria uma série de estruturas necessárias para a evoluçãodos aspectos mais primitivos e elementares de um conceito,que lhe dão corpo e vitalidade. Os conceitos científicos, por suavez, fornecem estruturas para o desenvolvimento ascendentedos conceitos espontâneos da criança em relação à consciênciae ao uso deliberado. Os conceitos científicos desenvolvem-separa baixo por meio dos conceitos espontâneos; os conceitosespontâneos desenvolvem-se para cima por meio dos concei-tos científicos.

A influência dos conceitos científicos sobre o desenvolvi-mento mental da criança é análoga ao efeito da aprendizagem deuma língua estrangeira, um processo que é consciente e delibe-rado desde o início. Na língua materna, os aspectos primitivosda fala são adquiridos antes dos aspectos mais complexos. Estesúltimos pressupõem uma certa consciência das formas fonéti-cas, gramaticais e sintáticas. No caso de uma língua estrangeira,as formas mais elevadas se desenvolvem antes da fala fluente eespontânea. As teorias intelectualistas da linguagem, como a deStern, que enfatizam a relação entre signo e significado exata-mente no início do desenvolvimento lingüístico, têm um fundode verdade no que diz respeito a uma língua estrangeira. Os pon-tos fortes de uma criança em uma língua estrangeira são ospontos fracos em sua língua materna, e vice-versa. Na sua pró-pria língua, a criança conjuga e declina corretamente, mas semse dar conta disso; não sabe distinguir o gênero, o caso ou otempo da palavra que está empregando. Numa língua estrangei-ra, distingue entre os gêneros masculino e feminino e está cons-ciente das formas gramaticais desde o início.

O mesmo ocorre com a fonética. Apesar de não cometererros de pronúncia na sua língua materna, a criança não tem

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consciência dos sons que pronuncia, e, ao aprender a soletrar,tem muita dificuldade para dividir uma palavra nos sons que aconstituem. Numa língua estrangeira, ela faz isso com facili-dade, e a sua escrita não fica atrás da sua fala. É a pronúncia, a"fonética espontânea", que ela acha difícil dominar. A fala fluen-te e espontânea, com um domínio rápido e seguro das estrutu-ras gramaticais, surge para ela como o resultado positivo deum estudo demorado e árduo.

O êxito no aprendizado de uma língua estrangeira depen-de de um certo grau de maturidade na língua materna. A crian-ça pode transferir para a nova língua o sistema de significadosque já possui na sua própria. O oposto também é verdadeiro -uma língua estrangeira facilita o domínio das formas mais ele-vadas da língua materna. A criança aprende a ver a sua línguacomo um sistema específico entre muitos, a conceber os seusfenômenos à luz de categorias mais gerais, e isso leva à cons-ciência das suas operações lingüísticas. Goethe tinha razão aodizer que "aquele que não conhece nenhuma língua estrangeiranão conhece verdadeiramente a sua própria".

Não é de surpreender que exista uma analogia entre a inte-ração das línguas materna e estrangeira e a interação dos concei-tos científicos e espontâneos, já que ambos os processos perten-cem à esfera de desenvolvimento do pensamento verbal. En-tretanto, há diferenças essenciais entre eles. No estudo das lín-guas estrangeiras, a atenção centra-se nos aspectos externos,sonoros e físicos do pensamento verbal; no desenvolvimentodos conceitos científicos, centra-se em seu aspecto semântico.Os dois processos de desenvolvimento seguem trajetórias sepa-radas, embora semelhantes.

Não obstante, ambos sugerem uma única resposta à ques-tão de como se formam os novos sistemas que são estrutural-mente análogos aos mais antigos: escrita, língua estrangeira epensamento verbal em geral. As evidências experimentais obti-das pelos nossos estudos desmentem a teoria da transferênciaou do deslocamento, segundo a qual o estágio posterior repete

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a trajetória do anterior, inclusive com a recorrência de dificul-dades já superadas no plano inferior. Todas as nossas evidên-cias confirmam a hipótese de que sistemas análogos se desen-volvem em direções opostas, tanto no nível superior como noinferior, e que cada sistema influencia o outro e se beneficia deseus pontos fortes.

Podemos agora voltar-nos para a inter-relação dos concei-tos em um sistema - o problema central da nossa análise.

Os conceitos não ficam guardados na mente da criançacomo ervilhas em um saco, sem qualquer vínculo que os una. Seassim fosse, nenhuma operação intelectual que exigisse coorde-nação de pensamentos seria possível, assim como nenhuma con-cepção geral do mundo. Nem mesmo poderiam existir conceitosisolados enquanto tais; a sua própria natureza pressupõe um sis-tema.

O estudo dos conceitos da criança em cada faixa etáriamostra que o grau de generalidade (planta, flor, rosa) é a variá-vel psicológica básica segundo a qual podem ser significativa-mente ordenados. Se cada conceito é uma generalização, entãoa relação entre conceitos é uma relação de generalidade. Oaspecto lógico dessa relação já foi estudado de forma muitomais completa do que os seus aspectos genético e psicológico.Nosso estudo tenta preencher essa lacuna.

Comparamos o grau de generalidade dos conceitos reaisda criança com as fases e os estágios alcançados por ela na for-mação experimental de conceitos: sincretismo, complexos, pre-conceito e conceito. Nosso objetivo era descobrir se havia umarelação definida entre a estrutura de generalização tipificadapor essas fases e o grau de generalidade dos conceitos.

Conceitos com diferentes graus de generalidade podemocorrer numa mesma estrutura de generalização. Por exemplo,as idéias "flor" e "rosa" podem ambas estar presentes no está-gio do pensamento por complexos. Da mesma forma, concei-tos igualmente gerais podem aparecer em diferentes estruturasde generalização; por exemplo, "flor" pode aplicar-se a toda e

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qualquer flor no estágio do pensamento por complexos, assimcomo no pensamento conceituai. No entanto, descobrimos que,apesar dessa ausência de correspondência completa, cada faseou estrutura de generalização tem como contrapartida um ní-vel específico de generalidade, uma relação específica de con-ceitos supra-ordenados e subordinados, uma típica combina-ção do concreto e do abstrato. É verdade que o termo flor podeser tão geral no nível do complexo como no nível do conceito,mas somente em relação aos objetos aos quais se refere. Nessecaso, um grau equivalente de generalidade não implica a identi-dade de todos os processos psicológicos envolvidos no uso dessetermo. Assim, no pensamento por complexos, a relação entre"flor" e "rosa" não é uma relação de supra-ordenação; o conceitomais amplo e o mais restrito coexistem no mesmo plano.

Em nossos experimentos uma criança muda aprendeu,sem muita dificuldade, as palavras mesa, cadeira, escrivani-nha, sofá, estantes etc. O termo mobília, no entanto, mostrou-se difícil demais para ser aprendido. A mesma criança queaprendeu as palavras camisa, chapéu, casaco, calças etc, nãoconseguia ultrapassar o nível dessa série e aprender a palavraroupas. Descobrimos que, num certo nível de desenvolvimen-to, a criança é incapaz de passar "verticalmente" do significadode uma palavra para o de outra, isto é, de entender as suas rela-ções de generalidade. Todos os seus conceitos estão no mesmonível, referem-se diretamente a objetos e são delimitados entresi da mesma forma que os próprios objetos são delimitados. Opensamento verbal não é mais do que um componente secundá-rio do pensamento perceptual, determinado pelos objetos. Por-tanto, esse estágio deve ser considerado um estágio anterior,pré-sincrético do desenvolvimento do significado das palavras.O aparecimento do primeiro conceito generalizado, tal como"mobília" ou "roupas", é um sintoma de progresso tão impor-tante quanto a primeira palavra com significado.

Os níveis mais elevados no desenvolvimento do significa-do das palavras são regidos pela lei de equivalência de concei-

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tos, segundo a qual qualquer conceito pode ser formulado emtermos de outros conceitos de inúmeras formas. Ilustraremos oesquema que subjaz a essa lei por meio de uma analogia quenão é idealmente precisa, mas bastante adequada para atendera esse propósito.

Se imaginarmos a totalidade dos conceitos como distri-buídos pela superfície de um globo, a localização de cada con-ceito pode ser definida por meio de um sistema de coordena-das que correspondem, na geografia, à longitude e à latitude.Uma dessas coordenadas indicará a localização de um concei-to entre os extremos da conceituação abstrata extremamentegeneralizada e a apreensão sensorial imediata de um objeto -isto é, o seu grau de concretude e abstração. A segunda coorde-nada representará a referência objetiva do conceito, o aspectoda realidade ao qual se aplica. Dois conceitos que se aplicam adiferentes áreas de realidade, mas que são comparáveis emgrau de abstração - por exemplo, plantas e animais -, pode-riam ser concebidos como conceitos que variam em latitude,mas que têm a mesma longitude. A analogia geográfica apre-senta vários detalhes: o conceito mais generalizado, por exem-plo, aplica-se a uma área de conteúdo mais ampla, que poderiaser representada por uma linha, e não por um ponto. Mas servepara dar a idéia de que, para ser adequadamente caracterizado,cada conceito tem de ser inserido em dois contínuos - um querepresenta o conteúdo objetivo e o outro que representa atos depensamento que apreendem o conteúdo. A interseção dos doisdetermina todas as relações entre o conceito dado e os outros -seus conceitos coordenados, supra-ordenados e subordinados.Essa posição de um conceito no sistema total de conceitospode ser chamada de sua medida de generalidade.

As múltiplas relações entre os conceitos, sobre as quais sebaseia a lei de equivalência, são determinadas por suas respec-tivas medidas de generalidade. Tomemos dois exemplos extre-mos: as primeiras palavras da criança (pré-sincréticas), quenão têm nenhuma variação em grau de generalidade, e os con-

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ceitos dos números, desenvolvidos pelo estudo da aritmética.No primeiro caso, é óbvio que cada conceito só pode ser ex-presso por si próprio, nunca por outros conceitos. No segundocaso, qualquer número pode ser expresso de inúmeras formas,devido à infinidade de números e ao fato de o conceito de qual-quer número conter, também, todas as suas relações com todosos outros números. "Um", por exemplo, pode ser expressocomo "1000 menos 999" ou, em geral, como a diferença entredois números consecutivos, ou como qualquer número dividi-do por si próprio, e por meio de inúmeras outras formas. Esse éum exemplo puro de equivalência de conceitos. Na medida emque a equivalência depende das relações de generalidade entreos conceitos, e estes são específicos para cada estrutura degeneralização, esta última determina a equivalência de concei-tos possíveis na sua esfera.

A medida de generalidade determina não apenas a equiva-lência de conceitos, mas também todas as operações intelec-tuais possíveis com um determinado conceito. Todas as opera-ções intelectuais - comparações, julgamentos, conclusões - exi-gem um certo movimento dentro da rede de coordenadas queesboçamos. Mudanças no desenvolvimento da estrutura de ge-neralização também produzem mudanças nessas operações.Por exemplo, à medida que se atingem níveis mais elevados degeneralidade, fica mais fácil para a criança lembrar-se de pen-samentos, independentemente das palavras. Uma criança novaprecisa reproduzir as palavras exatas pelas quais um significa-do lhe foi transmitido. Uma criança em idade escolar já conse-gue reproduzir um significado relativamente complexo com assuas próprias palavras; dessa forma, sua liberdade intelectualaumenta. Em distúrbios patológicos do pensamento conceituai,a medida de generalidade dos conceitos é distorcida, o equilí-brio entre o abstrato e o concreto é perturbado, e a relação comoutros conceitos torna-se instável. O ato mental pelo qual tantoo objeto como a sua relação com o conceito são apreendidosperde a sua unidade, e o pensamento começa a seguir uma di-reção ilógica, cheia de caprichos e interrupções.

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Um dos objetivos do nosso estudo acerca dos conceitosreais da criança era encontrar índices confiáveis de sua estruturade generalização. Somente com a ajuda deles o esquema genéticoobtido por nossos estudos experimentais sobre os conceitos ar-tificiais poderia ser proveitosamente aplicado aos conceitosreais em desenvolvimento na criança. Esse índice foi finalmentedescoberto na medida de generalidade do conceito, que variasegundo os diferentes níveis de desenvolvimento, indo das for-mações sincréticas até os conceitos propriamente ditos. A análi-se dos conceitos reais da criança também nos ajudou a determi-nar de que maneira os conceitos diferem, nos vários níveis, emsua relação com o objeto e com o significado das palavras, bemcomo nas operações intelectuais que possibilitam.

Além disso, a investigação dos conceitos reais comple-mentou o estudo experimental, mostrando claramente que ca-da novo estágio do desenvolvimento da generalização se cons-trói sobre as generalizações do nível precedente; os produtosda atividade intelectual das fases anteriores não se perdem. Oelo interno entre as fases consecutivas não poderia ser desven-dado em nossos experimentos porque o sujeito tinha que des-cartar, depois de cada solução errada, as generalizações quehavia formado e recomeçar novamente. A natureza dos objetosexperimentais também não permitiu a sua conceitualização emníveis hierárquicos.

A investigação dos conceitos reais preencheu essas lacu-nas. Descobriu-se que as idéias da criança em idade pré-esco-lar (que possuem a estrutura de complexos) resultam da elabo-ração de generalizações que predominam durante uma faseanterior, e não do agrupamento de imagens de objetos isola-dos. Num nível mais elevado, descobrimos uma relação análo-ga entre as antigas e as novas formações, no que diz respeito aodesenvolvimento dos conceitos aritméticos e algébricos. Atransformação dos pré-conceitos (é o que geralmente são osconceitos aritméticos da criança em idade escolar) em concei-tos verdadeiros, tais como os conceitos algébricos dos adoles-

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centes, é alcançada por meio das generalizações do nível ante-rior. No estágio anterior, certos aspectos dos objetos haviamsido abstraídos e generalizados em idéias de números. Os con-ceitos algébricos representam abstrações e generalizações decertos aspectos dos números, e não dos objetos, indicandoassim uma nova tendência - um plano de pensamento novo emais elevado.

Os conceitos novos e mais elevados, por sua vez, transfor-mam o significado dos conceitos inferiores. O adolescente quedominou os conceitos algébricos atingiu um ponto favorável, apartir do qual vê os conceitos aritméticos sob uma perspectivamais ampla. Vimos isto nitidamente ao realizar experimentosem que a criança passava do sistema decimal para outros siste-mas numéricos. Se a criança opera com o sistema decimal semestar consciente dele enquanto tal, não se pode afirmar que elao domina; pelo contrário, está subordinada a ele. Quando elaconsegue ver o sistema decimal como um exemplo específicodo conceito mais amplo de uma escala de notação, pode operardeliberadamente com esse ou qualquer outro sistema numéri-co. A capacidade de passar, quando assim desejar, de um siste-ma para outro (por exemplo, "traduzir" do sistema decimalpara um outro sistema cuja base é o número cinco) é o critériodesse novo nível de consciência, já que indica a existência deum conceito geral de um sistema de numeração. Nesse, comonos outros casos da transição de um nível de significado para opróximo, a criança não tem que reestruturar separadamentetodos os seus conceitos anteriores, o que seria, na verdade, umtrabalho de Sísifo. Uma vez que já tenha sido incorporada aoseu pensamento - em geral por meio de conceitos recentemen-te adquiridos na escola -, a nova estrutura gradualmente seexpande para os conceitos mais antigos, à medida que estes seinserem nas operações intelectuais de tipo mais elevado.

Nossa investigação acerca dos conceitos reais da criançalança uma nova luz sobre outra questão importante da teoria dopensamento. A escola de Würzburg demonstrou que o curso

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do pensamento dirigido não é governado por conexões asso-ciativas, mas pouco fez para esclarecer os fatores específicosque realmente determinam a sua trajetória. A psicologia daGestalt substituiu o princípio de associação pelo de estrutura,mas não distinguiu o pensamento propriamente dito da percep-ção, da memória e de todas as outras funções sujeitas a leisestruturais; repetiu o modelo da teoria da associação ao reduzirtodas as funções a um único nível. Nossas investigações aju-dam a transcender esse modelo, mostrando que o pensamentode um nível mais elevado é regido pelas relações de generali-dade entre os conceitos - um sistema de relações ausente dapercepção e da memória. Wertheimer demonstrou que o pensa-mento produtivo depende da transferência do problema, da es-trutura em que foi apreendido pela primeira vez, para um con-texto ou estrutura totalmente diferente. Mas, para transferir umobjeto de pensamento da estrutura A para a estrutura B, é ne-cessário transcender os elos estruturais dados, e isso, como nos-sos estudos mostram, exige a passagem para um plano demaior generalidade, para um conceito que subjaz tanto a Aquanto a B, e rege ambos.

Podemos agora reafirmar, com uma sólida base fornecidapelos dados obtidos, que a ausência de um sistema é a diferen-ça psicológica principal que distingue os conceitos espontâ-neos dos conceitos científicos. Poder-se-ia mostrar que todasas peculiaridades do pensamento infantil descritas por Piaget(tais como o sincretismo, a justaposição, a insensibilidade à con-tradição) originam-se da ausência de um sistema nos conceitosespontâneos da criança - uma conseqüência de relações degeneralidade pouco desenvolvidas. Por exemplo, para que fosseperturbada por uma contradição, a criança teria que consideraras afirmações contraditórias à luz de algum princípio geral,isto é, dentro de um sistema. Mas, nos experimentos de Piaget,quando uma criança diz que um objeto se dissolveu na águaporque era pequeno, e que um outro se dissolveu por ser gran-de, ela está apenas fazendo afirmações empíricas acerca de

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fatos que seguem a lógica das percepções. Nenhuma generali-zação do tipo "as dimensões reduzidas levam à dissolução"está presente em sua mente; portanto, as duas afirmações nãosão sentidas pela criança como contraditórias. É essa ausênciade um certo distanciamento da experiência imediata - e não osincretismo visto como um meio-termo entre a lógica dos so-nhos e a realidade - que explica as peculiaridades do pensa-mento infantil. Portanto, essas peculiaridades não aparecemnos conceitos científicos da criança, os quais, desde o início,contêm relações de generalidade, isto é, alguns rudimentos deum sistema. A disciplina formal dos conceitos científicos trans-forma gradualmente a estrutura dos conceitos espontâneos dacriança e ajuda a organizá-los num sistema; isso promove aascensão da criança para níveis mais elevados de desenvolvi-mento.

Discordamos de Piaget num único ponto, mas um pontoimportante. Ele presume que o desenvolvimento e o aprendiza-do são processos totalmente separados e incomensuráveis, eque a função da instrução é apenas introduzir formas adultasde pensamento que entram em conflito com as formas de pen-samento da própria criança, superando-as, finalmente. Estudaro pensamento infantil separadamente da influência do aprendi-zado, como fez Piaget, exclui uma fonte muito importante detransformações e impede o pesquisador de levantar a questãoda interação do desenvolvimento e do aprendizado, peculiar acada faixa etária. Nossa abordagem se concentra nessa intera-ção. Após ter descoberto muitos vínculos internos complexosentre os conceitos espontâneos e científicos, esperamos que asfuturas investigações comparativas ajudem a esclarecer a suainterdependência, e antecipamos uma ampliação do estudo dodesenvolvimento e do aprendizado para as faixas etárias maisbaixas. Afinal de contas, o aprendizado não se inicia na escola.Um futuro pesquisador poderá muito bem descobrir que osconceitos espontâneos da criança são um produto do aprendi-zado pré-escolar, da mesma forma que os conceitos científicossão produto do aprendizado escolar.

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Independentemente de conclusões teóricas, nosso estudocomparativo dos conceitos científicos e cotidianos produziualguns resultados metodológicos importantes. Os métodos queelaboramos para serem usados nesse estudo permitem-nospreencher a lacuna entre as investigações dos conceitos reais edos conceitos experimentais. As informações que obtivemosacerca dos processos mentais da criança em idade escolar queestuda ciências sociais, por mais esquemáticas e rudimentaresque possam ser, sugeriram alguns possíveis aperfeiçoamentosno ensino dessa matéria.

Em retrospecto, estamos conscientes de algumas omissõese algumas falhas metodológicas, talvez inevitáveis ao se abor-dar pela primeira vez um novo campo de estudos. Não estuda-mos experimentalmente, e em detalhes, a natureza dos concei-tos cotidianos da criança em idade escolar. Isso nos priva dosdados necessários para descrever o curso global do desenvolvi-mento psicológico durante a idade escolar; portanto, nossa crí-tica às teses básicas de Piaget não está suficientemente apoiadaem fatos seguros, sistematicamente obtidos.

O estudo dos conceitos científicos foi realizado em umacategoria apenas - os conceitos das ciências sociais -, e osconceitos específicos selecionados para estudo não formam enem sugerem um sistema inerente à lógica do sujeito. Emboratenhamos aprendido muito acerca do desenvolvimento dosconceitos científicos, comparados com os conceitos espontâ-neos, pouco aprendemos sobre as regularidades específicas dodesenvolvimento dos conceitos sociológicos como tais. Osestudos futuros deveriam abranger conceitos de várias áreas doaprendizado escolar, e cada um deles deveria ser confrontadocom um conjunto de conceitos cotidianos extraídos de umaárea de experiência semelhante.

Por último, mas não menos importante, as estruturas con-ceituais que estudamos não eram suficientemente diferencia-

V

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das. Por exemplo, ao utilizar fragmentos de frases terminadosem porque, não separamos os vários tipos de relações causais(empíricas, psicológicas, lógicas), como Piaget fez em seusestudos. Se tivéssemos feito isso, talvez pudéssemos estabele-cer uma diferenciação mais sutil entre o desempenho dos alu-nos de diferentes idades.

No entanto, essas próprias falhas foram úteis para se deter-minar a direção a ser seguida pelas pesquisas futuras. O presen-te estudo é apenas um primeiro e modesto passo na exploraçãode uma área nova e extremamente promissora na psicologia dopensamento infantil.

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7. Pensamento e palavra

Esqueci a palavra que pretendia dizer, e meu pensamento,privado de sua substância, volta ao reino das sombras13.

I

Começamos o nosso estudo com uma tentativa de desco-brir a relação entre o pensamento e a fala nos estágios iniciaisdo desenvolvimento filogenético e ontogenético. Não encontra-mos nenhuma interdependência específica entre as raízes gené-ticas do pensamento e da palavra. Ficou evidente que a relaçãointrínseca que procurávamos não era uma condição prévia parao desenvolvimento histórico da consciência humana, mas antesum produto dele.

Nos animais, mesmo nos antropóides cuja fala é fonetica-mente semelhante à fala humana, e cujo intelecto se assemelhaao do homem, a fala e o pensamento não são inter-relacionados.Sem dúvida também existem, no desenvolvimento da criança,um período pré-lingüístico do pensamento e um período pré-intelectual da fala. O pensamento e a palavra não são ligadospor um elo primário. Ao longo da evolução do pensamento e dafala, tem início uma conexão entre ambos, que depois se modi-fica e se desenvolve.

13. De um poema de O. Mandelstam.

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No entanto, seria errado considerar o pensamento e a falacomo dois processos independentes, paralelos, que se cruzamem determinados momentos e influenciam mecanicamente umao outro. A ausência de um elo primário não significa que umaconexão entre eles só possa estabelecer-se de uma forma me-cânica. A ineficácia da maior parte das investigações anterio-res deveu-se, em grande parte, ao pressuposto de que o pensa-mento e a palavra são elementos isolados e independentes, eque o pensamento verbal resulta da união externa entre eles.

O método de análise baseado nessa concepção estava desti-nado a fracassar. Tentava explicar as propriedades do pensamen-to verbal fragmentando-as em seus elementos componentes, opensamento e a palavra, nenhum dos quais, considerados sepa-radamente, possui as propriedades do todo. Esse método nãoconstitui uma análise verdadeira, útil para a solução de proble-mas concretos; ao contrário, leva à generalização. Nós o compa-ramos à análise da água em hidrogênio e oxigênio - que só poderesultar em descobertas aplicáveis a toda a água existente nanatureza, de uma gota de água da chuva ao oceano Pacífico. Demodo semelhante, a afirmação de que o pensamento verbal secompõe de processos intelectuais e funções da fala propriamen-te ditas aplica-se a todo o pensamento verbal e a todas as suasmanifestações, não explicando nenhum dos problemas específi-cos com que se depara o estudioso do pensamento verbal.

Tentamos uma nova abordagem da questão, substituindo aanálise em elementos pela análise em unidades, cada uma dasquais retendo, de forma simples, todas as propriedades do todo.Encontramos essa unidade do pensamento verbal no significadodaspalavras.

O significado de uma palavra representa um amálgamatão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil di-zer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno dopensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; osignificado, portanto, é um critério da "palavra", seu compo-nente indispensável. Pareceria, então, que o significado pode-

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ria ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vistada psicologia, o significado de cada palavra é uma generaliza-ção ou um conceito. E como as generalizações e os conceitossão inegavelmente atos de pensamento, podemos considerar osignificado como um fenômeno do pensamento. Daí não decor-re, entretanto, que o significado pertença formalmente a duasesferas diferentes da vida psíquica. O significado das palavras éum fenômeno de pensamento apenas na medida em que o pen-samento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno dafala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo ilu-minada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou dafala significativa - uma união da palavra e do pensamento.

Nossas investigações experimentais confirmam plenamen-te essa tese básica. Não só provaram que o estudo concreto dodesenvolvimento do pensamento verbal é possível usando-se osignificado das palavras como unidade analítica, mas tambémlevaram a outra tese, que consideramos o resultado mais im-portante de nosso estudo, e que decorre diretamente da primei-ra: o significado das palavras evolui. A compreensão desse fatodeve substituir o postulado da imutabilidade do significado daspalavras.

Do ponto de vista das antigas escolas de psicologia, o eloentre a palavra e o significado é associativo, estabelecido pelareiterada percepção simultânea de um determinado som e deum determinado objeto. Em nossa mente, uma palavra evoca oseu conteúdo do mesmo modo que o casaco de um amigo nosfaz lembrar desse amigo, ou uma casa, de seus habitantes. Aassociação entre a palavra e o significado pode tornar-se maisforte ou mais fraca, enriquecer-se pela ligação com outros obje-tos de um tipo semelhante, expandir-se por um campo maisvasto ou tornar-se mais limitada, isto é, pode passar por alteraçõesquantitativas e externas mas não pode alterar a sua naturezapsicológica. Para isso, teria que deixar de ser uma associação.Desse ponto de vista, qualquer desenvolvimento do significa-do das palavras é inexplicável e impossível - uma conclusão

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que constitui um obstáculo tanto para a lingüística quanto paraa psicologia. Uma vez comprometida com a teoria da associa-ção, a semântica persistiu em tratar o significado das palavrascomo uma associação entre o som da palavra e o seu conteúdo.Todas as palavras, das mais concretas às mais abstratas, pare-ciam ser formadas do mesmo modo em termos do seu signifi-cado, não contendo nada de peculiar à fala como tal; uma pala-vra fazia-nos pensar em seu significado da mesma maneira quequalquer objeto nos faz lembrar de um outro. Pouco surpreen-de que a semântica sequer tenha colocado a questão mais am-pla do desenvolvimento do significado das palavras. O desen-volvimento foi reduzido às mudanças nas conexões associati-vas entre palavras e objetos isolados: uma palavra podia, a prin-cípio, denotar um objeto e, em seguida, associar-se a outro, domesmo modo que um casaco, tendo mudado de dono, nos farialembrar primeiro de uma pessoa e, depois, de outra. A lingüís-tica não percebeu que, na evolução histórica da linguagem, aprópria estrutura do significado e a sua natureza psicológicatambém mudam. A partir das generalizações primitivas, o pen-samento verbal eleva-se ao nível dos conceitos mais abstratos.Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera,mas o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida emuma palavra.

A teoria da associação é igualmente inadequada para expli-car o desenvolvimento do significado das palavras na infância.Nesse caso, também, ela só consegue explicar as mudançaspuramente externas e quantitativas dos elos que unem a palavraao significado, o seu enriquecimento e fortalecimento, mas nãoexplicam as mudanças estruturais e psicológicas fundamentaisque podem ocorrer - como de fato ocorrem - no desenvolvi-mento da linguagem nas crianças.

Curiosamente, o fato de que o associacionismo, em geral,foi abandonado por algum tempo não pareceu afetar a inter-pretação da palavra e do significado. A escola de Würzburg,cujo objetivo principal era provar a impossibilidade de reduzir

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o pensamento a um mero jogo de associações, e demonstrar aexistência de leis específicas que regem o fluxo do pensamen-to, não reviu a teoria associacionista da palavra e do significa-do, e nem mesmo reconheceu a necessidade de tal revisão. Oque fez foi libertar o pensamento dos grilhões da sensação e daformação de imagens e das leis da associação, transformando-onum ato puramente espiritual. Fazendo isso, regrediu para osconceitos pré-científicos de Santo Agostinho e Descartes, che-gando finalmente ao extremo idealismo subjetivo. A psicolo-gia do pensamento aproximava-se das idéias de Platão. Ao mes-mo tempo, a fala era deixada à mercê da associação. Mesmodepois do trabalho da escola de Würzburg, a ligação entre umapalavra e o seu significado continuou sendo considerada comoum simples elo associativo. A palavra era vista como o con-comitante externo ao pensamento, apenas um adereço, semqualquer influência sobre a sua vida interior. O pensamento e afala nunca estiveram tão separados como durante o períodoWürzburg. Na verdade, a eliminação da teoria associacionistano campo do pensamento aumentou a sua influência no campoda fala.

A obra de outros psicólogos deu um reforço adicional aessa tendência. Selz continuou a investigar o pensamento semlevar em consideração a sua relação com a fala, e chegou àconclusão de que o pensamento produtivo do homem e as ope-rações mentais dos chimpanzés eram de natureza idêntica -isso mostra que ele ignorava completamente a influência daspalavras sobre o pensamento.

Até mesmo Ach, que fez um estudo especial acerca dosignificado das palavras, e tentou superar o associacionismona sua teoria dos conceitos, não foi além de pressupor a pre-sença de "tendências determinantes" que, em conjunto com asassociações, atuam no processo da formação de conceitos. Con-seqüentemente, suas conclusões não alteraram a antiga com-preensão do significado das palavras. Ao identificar o conceitocom o significado, não levou em consideração o desenvolvi-

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mento e as transformações dos conceitos. Uma vez estabeleci-do, o significado de uma palavra estava determinado para sem-pre; o seu desenvolvimento estava completo. Os mesmos prin-cípios eram ensinados pelos próprios psicólogos que Ach ata-cava. Para ambas as facções, o ponto de partida constituía tam-bém o ponto final do desenvolvimento de um conceito; a di-vergência dizia respeito apenas ao modo como se iniciava aformação do significado das palavras.

Na psicologia da Gestalt, a situação não era muito diferen-te. Essa escola era mais coerente do que as outras, em sua ten-tativa de superar o princípio geral do associacionismo. Nãosatisfeita com uma solução parcial do problema, tentou libertaro pensamento e a fala do domínio da associação e submetê-losàs leis da formação das estruturas. Surpreendentemente, nemmesmo essa, que é uma das mais progressistas escolas moder-nas de psicologia, fez quaisquer progressos na teoria da fala edo pensamento.

Por um lado, manteve essas duas funções completamenteseparadas. A luz do gestaltismo, a relação entre o pensamentoe a palavra surge como uma simples analogia, uma redução deambos a um denominador estrutural comum. A formação dasprimeiras palavras com significado, por parte da criança, évista como algo semelhante às operações intelectuais dos chim-panzés nas experiências de Koehler. As palavras entram naestrutura das coisas e adquirem um determinado significadofuncional, do mesmo modo que a vara, para o chimpanzé, tor-na-se parte da estrutura de obtenção do fruto, adquirindo o sig-nificado funcional de instrumento. A conexão entre a palavra eo significado não mais é considerada como uma questão de sim-ples associação, mas como uma questão de estrutura. Pareceum avanço, mas, observando mais atentamente a nova aborda-gem fica fácil perceber que o avanço é ilusório e que na verda-de nenhum progresso foi feito. O princípio da estrutura é apli-cado a todas as relações entre as coisas, da mesma forma radicale não-diferenciada que o princípio da associação era anterior-

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mente aplicado. Continua impossível tratar das relações espe-cíficas entre a palavra e o significado, uma vez que, desde suaorigem, são admitidas como idênticas, em princípio, a todas equaisquer outras relações entre as coisas. Todos os gatos sãopardos tanto na penumbra do gestaltismo como na névoa pri-mitiva do associacionismo universal.

Enquanto Ach procurava superar o associacionismo com a"tendência determinante", a psicologia da Gestalt combatia-ocom o princípio da estrutura - mantendo, no entanto, os doiserros fundamentais da teoria mais antiga: o pressuposto danatureza idêntica de todas as conexões e o pressuposto de queos significados das palavras não se alteram. Tanto a antigaquanto a nova psicologia aceitam a hipótese de que o desenvol-vimento do significado de uma palavra termina assim que elase manifesta. As novas tendências em psicologia geraram pro-gressos em todos os ramos, exceto no estudo do pensamento eda fala. Nesse campo, os novos princípios assemelham-se aosantigos, como dois gêmeos.

Se a psicologia da Gestalt representa uma estagnação nocampo da fala, no campo do pensamento deu um grande passoatrás. A escola de Würzburg pelo menos reconheceu que o pen-samento tinha as suas próprias leis, cuja existência é negadapela Gestalt. Ao reduzir a um denominador estrutural comumas percepções das aves domésticas, as operações mentais doschimpanzés, as primeiras palavras com significado das criançase o pensamento conceituai do adulto, a Gestalt elimina toda equalquer distinção entre a percepção mais elementar e as for-mas mais elevadas de pensamento.

Essa avaliação crítica pode ser assim resumida: todas asescolas e tendências psicológicas não dão o devido apreço a umponto fundamental, isto é, que todo pensamento é uma genera-lização; todas estudam a palavra e o significado sem fazer qual-quer referência ao desenvolvimento. Enquanto essas duas con-dições persistirem nas tendências que se sucedem, não haverámuita diferença no tratamento dado à questão.

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II

A descoberta de que o significado das palavras evolui tirao estudo do pensamento e da fala de um beco sem saída. Ossignificados das palavras são formações dinâmicas, e não está-ticas. Modificam-se à medida que a criança se desenvolve; etambém de acordo com as várias formas pelas quais o pensa-mento funciona.

Se os significados das palavras se alteram em sua naturezaintrínseca, então a relação entre o pensamento e a palavra tam-bém se modifica. Para compreender a dinâmica dessa relação,precisamos complementar a abordagem genética de nosso es-tudo principal com a análise funcional, e examinar o papel dosignificado da palavra no processo de pensamento.

Consideremos o processo do pensamento verbal desde o pri-meiro impulso imperceptível de um pensamento até a sua formu-lação. O que pretendemos mostrar agora não é a maneira comoos significados se desenvolvem ao longo de grandes períodos detempo, mas o modo como funcionam no processo vivo do pensa-mento verbal. Com base nessa análise funcional, poderemostambém mostrar que cada estágio no desenvolvimento do signifi-cado das palavras tem sua própria relação particular entre o pen-samento e a fala. Uma vez que os problemas funcionais são maisfacilmente resolvidos mediante o exame das formas mais eleva-das de uma determinada atividade, deixaremos de lado, por ummomento, a questão do desenvolvimento e consideraremos asrelações entre o pensamento e a palavra na mente madura.

A idéia principal da discussão a seguir pode ser reduzida aesta fórmula: a relação entre o pensamento e a palavra não é umacoisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém dopensamento para a palavra, e vice-versa. Nesse processo, arelação entre o pensamento e a palavra passa por transforma-ções que, em si mesmas, podem ser consideradas um desenvol-vimento no sentido funcional. O pensamento não é simples-mente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a

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existir. Cada pensamento tende a relacionar alguma coisa comoutra, a estabelecer uma relação entre as coisas. Cada pensa-mento se move, amadurece e se desenvolve, desempenha umafunção, soluciona um problema. Esse fluxo de pensamentoocorre como um movimento interior através de uma série deplanos. Uma análise da interação do pensamento e da palavradeve começar com uma investigação das fases e dos planos di-ferentes que um pensamento percorre antes de ser expresso empalavras.

A primeira coisa que esse estudo revela é a necessidade dese fazer uma distinção entre os dois planos da fala. Tanto o as-pecto interior da fala - semântico e significativo - quanto o ex-terior - fonético -, embora formem uma verdadeira unidade,têm as suas próprias leis de movimento. A unidade da fala é umaunidade complexa, e não homogênea. Alguns fatos relativos aodesenvolvimento lingüístico da criança revelam a presença deum movimento independente nas esferas fonética e semântica.Indicaremos dois dos mais importantes dentre esses fatos.

Quando passa a dominar a fala exterior, a criança começapor uma palavra, passando em seguida a relacionar duas outrês palavras entre si; um pouco mais tarde, progride das frasessimples para as mais complexas, e finalmente chega à fala coe-rente, constituída por uma série dessas frases; em outras pala-vras, vai da parte para o todo. Por outro lado, quanto ao signifi-cado, a primeira palavra da criança é uma frase completa. Se-manticamente, a criança parte do todo, de um complexo signi-ficativo, e só mais tarde começa a dominar as unidades semân-ticas separadas, os significados das palavras, e a dividir o seupensamento, anteriormente indiferenciado, nessas unidades.Os aspectos semântico e externo da fala seguem direções opos-tas em seu desenvolvimento - um vai do particular para o geral,da palavra para a frase, e o outro vai do geral para o particular, dafrase para a palavra.

Isso, por si só, é suficiente para mostrar a importância dese estabelecer uma distinção entre os aspectos vocal e semânti-

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co da fala. Como ambos seguem direções opostas, o seu desen-volvimento não coincide, mas isso não significa que sejamindependentes entre si. Pelo contrário, a sua diferença é o pri-meiro estágio de uma estreita união. De fato, nosso exemplorevela sua ligação interior tão claramente quanto a sua diferen-ça. Exatamente por surgir como um todo indistinto e amorfo, opensamento da criança deve encontrar expressão em uma úni-ca palavra. À medida que o seu pensamento se torna mais dife-renciado, a criança perde a capacidade de expressá-lo em umaúnica palavra, passando a formar um todo composto. Inversa-mente, o avanço da fala em direção ao todo diferenciado de umafrase auxilia o pensamento da criança a progredir de um todohomogêneo para partes bem definidas. O pensamento e a pala-vra não provêm de um único modelo. Em certo sentido, entreambos existem mais diferenças do que semelhanças. A estru-tura da fala não é um mero reflexo da estrutura do pensamento;é por isso que não se podem vestir as palavras com o pensa-mento, como se este fosse uma peça de vestuário. O pensamentopassa por muitas transformações até transformar-se em fala.Não é só expressão que encontra na fala; encontra a sua reali-dade e a sua forma. Os processos de desenvolvimento semânti-co e fonético são essencialmente idênticos, exatamente porqueseguem direções contrárias.

O segundo fato, igualmente importante, surge num perío-do de desenvolvimento posterior. Piaget demonstrou que acriança utiliza orações subordinadas em que aparecem porque,embora etc. muito antes de aprender as estruturas de significa-do correspondentes a essas formas sintáticas. A gramática pre-cede a lógica. Aqui também, como em nossos exemplos ante-riores, a discrepância não exclui a união; na verdade, é neces-sária à união.

Nos adultos, a divergência entre os aspectos semântico efonético da fala é ainda mais surpreendente. A lingüística mo-derna que segue uma orientação psicológica está familiarizadacom esse fenômeno, especialmente no que diz respeito ao

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sujeito e ao predicado gramaticais e psicológicos. Por exem-plo, na frase "O relógio caiu", a ênfase e o significado podemmudar em diferentes situações. Suponhamos que eu percebaque o relógio parou e pergunte como isso aconteceu. A respos-ta é: "O relógio caiu." O sujeito gramatical e o sujeito psicoló-gico coincidem: "o relógio" é a primeira idéia em minha cons-ciência; "caiu" é o que se diz do relógio. Mas se ouço um baru-lho no quarto ao lado, pergunto o que aconteceu e obtenho amesma resposta, o sujeito e o predicado serão psicologicamen-te invertidos. Eu sabia que algo havia caído - era sobre issoque estávamos falando. "O relógio" completa a idéia. A frasepoderia ser assim modificada: "O que caiu foi o relógio"; en-tão, o sujeito gramatical e o sujeito psicológico coincidiriam.No prólogo de sua peça O duque Ernst von Schwaben, Uhlanddiz: "Cenas horríveis passar-se-ão diante de seus olhos." Psi-cologicamente, "passar-se-ão" é o sujeito. O espectador sabeque assistirá ao desenrolar de alguns acontecimentos; a idéiaadicional, o predicado, é "cenas horríveis". O que Uhland quisdizer foi: "O que se passará diante de seus olhos é uma tragé-dia." Qualquer parte de uma frase pode tornar-se o predicadopsicológico, a parte que carrega a ênfase temática; por outrolado, significados totalmente diferentes podem ocultar-se portrás de uma estrutura gramatical. A harmonia entre a organiza-ção sintática e a organização psicológica não é tão predomi-nante quanto se imagina - pelo contrário, é um requisito rara-mente encontrado. Não apenas sujeito e predicado têm os seusduplos psicológicos, mas também gênero, número, caso, grauetc. Um enunciado espontâneo, errado do ponto de vista gra-matical, pode ter seu encanto e valor estético. A correção abso-luta só é alcançada para além da linguagem natural, na mate-mática. Nossa fala cotidiana flutua constantemente entre osideais da matemática e da harmonia imaginativa.

Vamos ilustrar a interdependência dos aspectos semânti-cos e gramaticais da linguagem, citando dois exemplos quemostram que as alterações na estrutura formal podem provocarprofundas alterações no significado.

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Ao traduzir a fábula A cigarra e a formiga, Krylov substi-tuiu a cigarra de La Fontaine por uma libélula. Em francês,cigarra é uma palavra feminina, e portanto adequada para sim-bolizar uma atitude despreocupada e alegre. A nuança se perde-ria numa tradução literal, uma vez que em russo cigarra é mas-culino. Ao optar por libélula, que em russo é feminino, Krylovdescartou o significado literal em favor da forma gramaticalnecessária para transmitir o pensamento de La Fontaine.

Tjutchev procedeu da mesma forma ao traduzir o poemade Heine sobre um abeto e uma palmeira. Em alemão, abeto éuma palavra masculina, e palmeira, feminina, e o poema suge-re o amor de um homem por uma mulher. Em russo, ambas asárvores são designadas por palavras femininas. Para conservara mesma implicação, Tjutchev substituiu o abeto por um ce-dro, que em russo é masculino. Lermontov, em sua traduçãomais literal do mesmo poema, despojou-o dessas conotaçõespoéticas e deu-lhe um significado essencialmente diferente,mais abstrato e genérico. Um pormenor gramatical pode, àsvezes, modificar todo o teor do que se diz.

Por trás das palavras existe a gramática independente dopensamento, a sintaxe dos significados das palavras. O enun-ciado mais simples, longe de refletir uma correspondênciaconstante e rígida entre o som e o significado, é na verdade umprocesso. As expressões verbais não podem surgir plenamenteformadas; devem se desenvolver gradativamente. Esse com-plexo processo de transição do significado para o som deve,ele próprio, ser desenvolvido e aperfeiçoado. A criança deveaprender a distinguir entre a semântica e a fonética e com-preender a natureza dessa diferença. A princípio ela utiliza for-mas verbais e significados sem ter consciência de ambos comocoisas separadas. Para a criança, a palavra é parte integrante doobjeto que denota. Tal concepção parece ser característica daconsciência lingüística primitiva. Todos conhecemos a velhahistória do homem rústico que afirmou não ficar surpreso como fato de os sábios, munidos de todos os seus instrumentos,

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serem capazes de calcular o tamanho das estrelas e rastrear asua trajetória - o que o deixava admirado era como conse-guiam descobrir o nome delas. Experiências simples mostramque as crianças em idade pré-escolar "explicam" os nomes dosobjetos pelos seus atributos. De acordo com elas, um animalchama-se "vaca" porque tem chifres, "bezerro" porque os seuschifres ainda são pequenos, "cão" porque é pequeno e nãotem chifres; um objeto chama-se "carro" porque não é um ani-mal. Quando se pergunta a uma criança se seria possível trocaros nomes dos objetos - por exemplo, chamar uma vaca de"tinta", e a tinta de "vaca" -, elas respondem que não, "porquea tinta é usada para escrever e a vaca dá leite". Uma troca denomes significaria uma troca de traços característicos, de talmodo é inseparável a conexão entre eles na mente da criança.Num experimento foi dito às crianças que numa brincadeiraum cão seria chamado de "vaca". Eis uma amostra típica dasperguntas e respostas:

- Uma vaca tem chifres?-Tem.- Mas você não se lembra de que a vaca é na verdade um

cão? Vamos lá, um cão tem chifres?- É claro, se é uma vaca, se é chamado de vaca, então tem

chifres. Esse cão tem que ter chifres pequenos.Podemos ver como é difícil para as crianças separar o no-

me de um objeto de seus atributos, que se prendem ao nomequando este é transferido, do mesmo modo como as coisas quese possui acompanham o seu dono.

A fusão dos dois planos da fala, o semântico e o vocal, co-meça a declinar à medida que a criança cresce, e a distânciaentre ambos aumenta gradualmente. Cada estágio no desen-volvimento dos significados das palavras tem sua própriainter-relação específica dos dois planos. A capacidade que temuma criança de comunicar-se por meio da linguagem relacio-na-se diretamente com a diferenciação dos significados das pa-lavras na sua fala e na sua consciência.

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Para compreender isto, é preciso que nos lembremos deuma característica básica da estrutura dos significados das pa-lavras. Na estrutura semântica de uma palavra, fazemos umadistinção entre referente e significado; de modo corresponden-te, distinguimos o nominativo de uma palavra de sua funçãosignificativa. Quando comparamos essas relações estruturais efuncionais nos estágios primitivo, intermediário e avançado dodesenvolvimento, descobrimos a seguinte regularidade genéti-ca: a princípio só existe a função nominativa; e, semanticamen-te, só existe a referência objetiva; a significação independenteda nomeação e o significado independente da referência sur-gem posteriormente e se desenvolvem ao longo de trajetóriasque tentamos rastrear e descrever.

Só quando este desenvolvimento se completa é que acriança se torna de fato capaz de formular o seu próprio pensa-mento e de compreender a fala dos outros. Até então, a sua uti-lização das palavras coincide com a dos adultos em sua refe-rência objetiva, mas não em seu significado.

III

Precisamos aprofundar ainda mais nossa investigação eexplorar o plano da fala interior que se situa para além do planosemântico. Discutiremos aqui alguns dos dados que obtivemosa partir de uma investigação especial. A relação entre o pensa-mento e a palavra não pode ser compreendida em toda a suacomplexidade sem uma clara compreensão da natureza psicoló-gica da fala interior. No entanto, de todos os problemas ligadosao pensamento e à linguagem, esse talvez seja o mais comple-xo, cercado que está por mal-entendidos terminológicos e deoutra natureza.

O termo fala interior, ou endolasia, tem sido aplicado avários fenômenos, e a argumentação de muitos autores diz res-peito a coisas diferentes a que dão o mesmo nome. Original-

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mente, a fala interior parece ter sido entendida como memóriaverbal. Um exemplo disso seria o recitar silencioso de umpoema que se sabe de cor. Nesse caso, a fala interior só difereda fala oral do mesmo modo que a idéia ou imagem de umobjeto difere do objeto real. Era nesse sentido que a fala inte-rior era compreendida pelos autores franceses que tentaramdescobrir como as palavras eram reproduzidas na memória -se por meio de imagens auditivas, visuais, motoras ou sintéti-cas. Veremos que a palavra memória é, de fato, um dos ele-mentos constituintes da fala interior, mas não o único.

Numa segunda interpretação, a fala interior é vista comouma fala exterior truncada - como "fala sem som" (Müller) ou"fala subvocal" (Watson). Bekhterev definiu-a como um refle-xo da fala inibido em sua parte motora. Tal explicação não é deforma alguma suficiente. O "pronunciar" silencioso de pala-vras não equivale ao processo total da fala interior.

A terceira definição é, ao contrário, excessivamente am-pla. Para Goldstein [12,13], o termo abrange tudo o que ante-cede o ato motor de falar, incluindo os "motivos da fala" deWundt e a experiência de fala específica, indefinível, não-sen-sorial e não-motora - isto é, todo o aspecto interior de qualqueratividade de fala. É difícil aceitar a identificação da fala inte-rior com uma experiência interior não articulada, em que osplanos estruturais independentes e identificáveis desaparecemsem deixar vestígios. Essa experiência central é comum a todaatividade lingüística, e só por esse motivo a interpretação deGoldstein não se ajusta a essa função única e específica que,por si só, merece o nome de fala interior. Logicamente desen-volvida, a opinião de Goldstein deve nos levar à tese de que afala interior não é de forma alguma fala, mas antes uma ativi-dade intelectual e afetivo-volitiva, uma vez que inclui os moti-vos da fala e o pensamento expresso em palavras.

Para se obter um quadro real da fala interior, deve-se partirdo pressuposto de que se trata de uma formação específica,com suas leis próprias, que mantém relações complexas com

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as outras formas de atividade de fala. Antes que possamos es-tudar separadamente suas relações com o pensamento e a fala,devemos determinar as suas características e funções especiais.

A fala interior é a fala para si mesmo; a fala exterior é paraos outros. Seria na verdade surpreendente se uma diferençafuncional tão básica não afetasse a estrutura dos dois tipos defala. A ausência de vocalização, por si só, é apenas uma conse-qüência da natureza específica da fala interior, que não é nemum antecedente da fala exterior, nem a sua reprodução na me-mória, mas, em certo sentido, o contrário da fala exterior. Estaúltima consiste na tradução do pensamento em palavras, na suamaterialização e objetificação. Com a fala interior, inverte-se oprocesso: a fala interioriza-se em pensamento. Conseqüente-mente, as suas estruturas têm que divergir.

A área da fala interior é uma das mais difíceis de investi-gar. Manteve-se quase inacessível à experiência, até que fos-sem encontradas formas de se aplicar o método genético daexperimentação. Piaget foi o primeiro a prestar atenção à falaegocêntrica da criança e a constatar a sua importância teórica,mas permaneceu cego à característica mais importante da falaegocêntrica - a sua relação genética com a fala interior -, o queo levou a uma interpretação distorcida de sua função e estrutu-ra. Fizemos desta relação o problema central de nosso estudo,e pudemos assim investigar a natureza da fala interior comextraordinária inteireza. Algumas considerações e observa-ções levaram-nos à conclusão de que a fala egocêntrica é umestágio de desenvolvimento que precede a fala interior: ambaspreenchem funções intelectuais; suas estruturas são semelhan-tes; a fala egocêntrica desaparece na idade escolar, quando afala interior começa a se desenvolver. De tudo isto, inferimosque uma se transforma na outra.

Se essa transformação realmente ocorre, então a fala ego-cêntrica fornece-nos a chave para o estudo da fala interior. Umadas vantagens de se abordar a fala interior por meio da falaegocêntrica é o fato de ser acessível à experimentação e à

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observação. Além do mais, é uma fala vocalizada e audível,isto é, externa em seu modo de expressão, mas ao mesmotempo fala interior em função e estrutura. Para estudar um pro-cesso interno, é necessário exteriorizá-lo experimentalmente,relacionando-o com alguma outra atividade exterior. Só entãoa análise funcional objetiva torna-se possível. A fala egocêntri-ca é, na verdade, uma experiência natural desse tipo.

Esse método tem também uma outra grande vantagem:como a fala egocêntrica pode ser estudada no momento emque algumas de suas características estão chegando ao fim eoutras estão sendo formadas, podemos então avaliar quais tra-ços são essenciais para a fala interior e quais são apenas tem-porários; isso nos permite determinar o objetivo desse movi-mento que vai da fala egocêntrica para a fala interior - isto é, anatureza da fala interior.

Antes de apresentar os resultados obtidos por esse método,analisaremos rapidamente a natureza da fala egocêntrica, enfa-tizando as diferenças entre a teoria de Piaget e a nossa. Piagetargumenta que a fala egocêntrica da criança é uma expressãodireta do egocentrismo do seu pensamento, o qual, por sua vez,é um meio-termo entre o autismo primitivo do seu pensamentoe a sua socialização gradual. À medida que a criança cresce, oautismo desaparece e a socialização evolui, levando ao declíniodo egocentrismo no seu pensamento e na sua fala.

Segundo a concepção de Piaget, em sua fala egocêntrica acriança não se adapta ao pensamento dos adultos. O seu pensa-mento permanece totalmente egocêntrico, o que torna a suaconversa incompreensível para os outros. A fala egocêntricanão tem nenhuma função no pensamento ou na atividade rea-listas da criança - limita-se a acompanhá-los. E como é umaexpressão do pensamento egocêntrico, desaparece juntamentecom o egocentrismo da criança. A partir do seu ponto culmi-nante, no início do desenvolvimento da criança, a fala egocên-trica cai a zero, no limiar da idade escolar. Sua história diz res-peito mais à involução do que à evolução. Ela não tem futuro.

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Em nossa concepção, a fala egocêntrica é um fenômenode transição das funções interpsíquicas para as intrapsíquicas,isto é, da atividade social e coletiva da criança para a sua ativi-dade mais individualizada - um padrão de desenvolvimentocomum a todas as funções psicológicas superiores. A fala parasi mesmo origina-se da diferenciação da fala para os outros.Uma vez que o curso principal do desenvolvimento da criançacaracteriza-se por uma individualização gradual, essa tendên-cia reflete-se na função e na estrutura da sua fala.

Os resultados de nossos experimentos indicam que a fun-ção da fala egocêntrica é semelhante à da fala interior: não selimita a acompanhar a atividade da criança; está a serviço daorientação mental, da compreensão consciente; ajuda a superardificuldades; é uma fala para si mesmo, íntima e conveniente-mente relacionada com o pensamento da criança. O seu desti-no é muito diferente daquele que foi descrito por Piaget. A falaegocêntrica desenvolve-se ao longo de uma curva ascendente,e não descendente; segue uma evolução, não uma involução.Ao final, transforma-se em fala interior.

Nossa hipótese tem várias vantagens sobre a de Piaget:explica a função e o desenvolvimento da fala egocêntrica e, es-pecialmente, a sua súbita expansão, quando a criança se vê àsvoltas com dificuldades que exigem consciência e reflexãoum fato revelado pelas nossas experiências e que a teoria dePiaget não consegue explicar. Mas a maior vantagem de nossateoria é que ela dá uma resposta satisfatória a uma situaçãoparadoxal descrita pelo próprio Piaget. Para ele, a diminuiçãoquantitativa da fala egocêntrica, à medida que a criança cresce,significa o desaparecimento dessa forma de fala. Se assimfosse, seria de se esperar que as suas peculiaridades estruturaistambém declinassem; custa a crer que o processo só afetaria asua quantidade, e não a sua estrutura interna. O pensamento dacriança torna-se infinitamente menos egocêntrico no períodoque vai dos três aos sete anos. Se as características da fala ego-cêntrica que a fazem incompreensível para os outros têm, de

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fato, as suas raízes no egocentrismo, deveriam tornar-se menosaparentes à medida que esse tipo de fala torna-se menos fre-qüente; a fala egocêntrica deveria aproximar-se da fala social eser cada vez mais inteligível. No entanto, o que mostram osfatos? A conversa de uma criança de três anos será mais difícilde seguir do que a de uma criança de sete anos? Nossa investi-gação demonstrou que as características da fala egocêntricaque a tornam inescrutável estão no momento mais baixo de suaevolução aos três anos, atingindo o seu ponto culminante aossete anos. Desenvolvem-se em sentido inverso ao da freqüên-cia da fala egocêntrica. Enquanto a desta última continua a cairaté chegar ao ponto zero na idade escolar, as característicasestruturais acentuam-se cada vez mais.

Isso lança uma nova luz sobre o declínio quantitativo dafala egocêntrica, que é a pedra angular da tese de Piaget.

Que significa esse declínio? As peculiaridades estruturaisda fala para si mesmo e a sua diferenciação da fala exterioraumentam com a idade. Então, o que diminui? Apenas um deseus aspectos: a vocalização. Isso significa que a fala egocên-trica como um todo está prestes a desaparecer? Acreditamosque não, pois como poderíamos explicar, então, o desenvolvi-mento dos traços funcionais e estruturais da fala egocêntrica?Por outro lado, o seu desenvolvimento é perfeitamente compa-tível com o declínio da vocalização - na verdade, esclarece oseu significado. O seu rápido declínio e o igualmente rápidodesenvolvimento das outras características são contraditóriosapenas na aparência.

Para explicar isso, vamos partir de um fato inegável e ex-perimentalmente comprovado. As qualidades estruturais e fun-cionais da fala egocêntrica tornam-se mais marcantes à medi-da que a criança se desenvolve. Aos três anos, a diferença entreas falas egocêntrica e social é igual a zero; aos sete anos, temosuma forma de fala que, em função e estrutura, é totalmentediferente da fala social. Houve uma diferenciação das duasfunções da fala. Isto é um fato - e os fatos são notoriamentedifíceis de refutar.

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Uma vez que aceitemos isso, tudo o mais se encaixa emseus devidos lugares. Se as peculiaridades estruturais e funcio-nais, em desenvolvimento, da fala egocêntrica vão aos poucosafastando-a da fala exterior, então o seu aspecto vocal devedesaparecer gradualmente; e é exatamente o que acontece en-tre os três e os sete anos de idade. Com o isolamento progressi-vo da fala para si mesmo, sua vocalização torna-se desnecessá-ria e sem sentido; devido às suas peculiaridades estruturais emdesenvolvimento, torna-se também impossível. A fala para simesmo não encontra expressão na fala exterior. Quanto maisindependente e autônoma se tornar a fala egocêntrica, tantomais deficiente será o desenvolvimento de suas manifestaçõesexternas. No final, separa-se completamente da fala para osoutros, deixa de vocalizar-se e parece, assim, estar sumindo.

Mas isso não passa de uma ilusão. Interpretar o coeficien-te de declínio da fala egocêntrica como sinal de que esse tipode fala está prestes a desaparecer, equivale a afirmar que acriança deixa de contar quando pára de utilizar os dedos e co-meça a fazer cálculos mentalmente. Na realidade, por trás dossintomas de dissolução encontra-se um desenvolvimento pro-gressivo, o nascimento de uma nova forma de fala.

A decrescente vocalização da fala egocêntrica indica odesenvolvimento de uma abstração do som, a aquisição de umanova capacidade: a de "pensar as palavras", ao invés de pronun-ciá-las. É esse o significado positivo do coeficiente de declínioda fala egocêntrica. A curva decrescente indica que o desen-volvimento está se voltando para a fala interior.

Podemos ver que todos os fatos conhecidos sobre as carac-terísticas funcionais, estruturais e genéticas da fala egocêntricaindicam uma só coisa: que ela se desenvolve em direção à falainterior. Sua história evolutiva só pode ser compreendida comouma revelação gradual das características da fala interior.

Acreditamos que isso vem confirmar nossa hipótese sobrea origem e a natureza da fala egocêntrica. Para transformar nos-sa hipótese numa certeza, precisamos imaginar um experimen-

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to capaz de mostrar qual das duas interpretações é a correta.Quais são os dados para esse experimento crítico?

Vamos expor novamente as teorias entre as quais temosque nos decidir. Piaget acredita que a fala egocêntrica deriva dasocialização insuficiente da fala, e que só tem uma forma possí-vel de evolução: o declínio e a morte. A sua culminação ocorreno passado. A fala interior é algo de novo, trazido do exteriorjuntamente com a socialização. Acreditamos que a fala egocên-trica origina-se da individualização insuficiente da fala socialprimária. A sua culminação ocorre no futuro, e desenvolve-seno sentido da fala interior.

Para obter provas a favor de um ou outro ponto de vista,precisamos colocar a criança, alternadamente, em situações ex-perimentais que incentivem a fala social e em situações que adesestimulem, e verificar de que modo estas variações afetama fala egocêntrica. Isso é por nós considerado um experimen-tum crucis, pelas razões que vêm a seguir.

Se a fala egocêntrica da criança resulta do egocentrismodo seu pensamento e da sua socialização insuficiente, entãoqualquer enfraquecimento dos elementos sociais no quadroexperimental, qualquer fator que contribua para isolar a crian-ça do grupo, deve, por sua vez, levar a um aumento repentinoda fala egocêntrica. Mas se esta última resulta de uma diferen-ciação insuficiente entre a fala para si mesmo e a fala para osoutros, isso significa que as mesmas variações devem levar aoseu declímo.

Tomamos três observações do próprio Piaget como pontode partida para o nosso experimento: (1) A fala egocêntrica sóocorre em presença de outras crianças envolvidas na mesmaatividade, e não quando a criança está sozinha; isto é, trata-sede um monólogo coletivo. (2) A criança ilude-se, achando quea sua fala egocêntrica, dirigida a ninguém, é compreendida poraqueles que a cercam. (3) A fala egocêntrica tem o caráter defala exterior: não é inaudível, nem sussurrada. Essas peculiari-dades certamente não se devem ao acaso. Sob o ponto de vista

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da própria criança, a fala egocêntrica não está ainda separada dafala social; ocorre sob as condições subjetivas e objetivas da falasocial e pode ser considerada um correlato do isolamento insufi-ciente da consciência individual da criança do todo social.

Em nossa primeira série de experimentos [46, 47], tenta-mos destruir a ilusão das crianças de estarem sendo compreen-didas. Após medir o coeficiente de fala egocêntrica da criançanuma situação semelhante à das experiências de Piaget, nós asubmetemos a uma nova situação: com crianças surdas-mudasou com crianças que falavam um idioma estrangeiro. Em todosos outros aspectos, o quadro experimental permaneceu o mes-mo. O coeficiente da fala egocêntrica desceu a zero na maioriados casos, e no restante caiu, em média, para um oitavo donúmero anterior. Isso vem provar que a ilusão, por parte dacriança, de estar sendo compreendida não é um mero epifenô-meno da fala egocêntrica, mas está funcionalmente relaciona-da a ela. Os resultados que obtivemos devem parecer parado-xais do ponto de vista da teoria de Piaget: quanto mais fracofor o contato da criança com o grupo, menos a situação social aobriga a ajustar os seus pensamentos aos dos outros e a usar afala social, e tanto mais livremente deveria manifestar-se o ego-centrismo do seu pensamento e da sua fala. Mas do ponto devista da nossa hipótese, o significado dessas descobertas é claro:a fala egocêntrica, que deriva da falta de diferenciação entre afala para si mesmo e a fala para os outros, desaparece quando osentimento de ser compreendido, que é essencial para a falasocial, está ausente.

Na segunda série de experimentos, o fator variável era apossibilidade do monólogo coletivo. Após medir o coeficientede fala egocêntrica da criança em uma situação que permitia omonólogo coletivo, nós a colocamos numa situação que ex-cluía essa possibilidade - num grupo de crianças que lhe eramestranhas; sozinha numa mesa em um canto da sala; ou aindacompletamente só, sem a presença do próprio experimentador.Os resultados dessa série foram condizentes com os primeiros

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resultados. A exclusão da possibilidade do monólogo coletivoprovocou uma queda no coeficiente de fala egocêntrica, embo-ra não tão acentuada como no primeiro caso - raramente caiu azero, descendo em média para um sexto do número inicial. Osdiferentes métodos de evitar o monólogo coletivo não foramigualmente eficazes para a redução do coefiente de fala ego-cêntrica. No entanto, a tendência à redução foi nítida em todasas variantes do experimento. Em vez de dar plena liberdade àfala egocêntrica, a exclusão do fator coletivo serviu para inibi-la, o que veio mais uma vez confirmar a nossa hipótese.

Na terceira série de experimentos, o fator variável foi aqualidade vocal da fala egocêntrica. Do lado de fora do labora-tório onde se realizava o experimento, uma orquestra tocavatão alto, ou fazia-se tanto barulho, que todas as outras vozes,inclusive a da própria criança, foram abafadas: numa variantedessa situação experimental, a criança era expressamente proi-bida de falar alto, tendo permissão apenas para sussurrar. Maisuma vez o coeficiente de fala egocêntrica caiu, na razão de 5:1em relação ao número inicial. Mais uma vez, os diferentes mé-todos não foram igualmente eficazes, mas a tendência domi-nante esteve invariavelmente presente.

O objetivo de todas as três séries de experimentos foi eli-minar as características da fala egocêntrica que a aproximamda fala social. Concluímos que esse procedimento levou sem-pre a um declínio da fala egocêntrica. Portanto, é lógico pres-supor que a fala egocêntrica é uma forma que evoluiu a partirda fala social, não estando ainda separada desta no tocante asuas manifestações, embora já seja distinta quanto à sua fun-ção e sua estrutura.

A divergência entre nós e Piaget no que diz respeito a essaquestão será esclarecida com o seguinte exemplo: estou sentadoà minha escrivaninha, conversando com uma pessoa que estáatrás de mim, sendo-me impossível vê-la; essa pessoa sai dasala sem que eu perceba, e continuo a falar, na ilusão de aindaestar sendo ouvido e compreendido. Externamente, estou fa-

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lando comigo e para mim mesmo, mas psicologicamente aminha fala é social. Do ponto de vista de Piaget, acontece ocontrário com a criança: a sua fala egocêntrica é uma fala de sipara si mesma, só aparentemente é uma fala social, da mesmaforma que a minha fala dera a falsa impressão de ser egocêntri-ca. Do nosso ponto de vista, a situação toda é muito mais com-plicada: subjetivamente, a fala egocêntrica da criança já tem asua função específica - nesse aspecto é independente da falasocial; no entanto, a sua independência não é completa, porquenão é sentida como fala interior, e a criança não a distingue dafala para os outros. Em termos objetivos, também é diferenteda fala social, mas, de novo, não inteiramente, uma vez que sófunciona em situações sociais. Tanto subjetiva quanto objetiva-mente, a fala egocêntrica representa uma transição da fala paraos outros à fala para si mesmo. Já tem a função de fala interior,mas em sua expressão continua semelhante à fala social.

A investigação da fala egocêntrica preparou o terreno paraa compreensão da fala interior, que examinaremos a seguir.

IV

Nossos experimentos nos convenceram de que a fala inte-rior não deve ser vista como uma fala sem som, mas como umafunção de fala totalmente independente. Seu principal traçodistintivo é sua sintaxe especial. Comparada com a fala exte-rior, a fala interior parece desconexa e incompleta.

Essa observação não é nova. Todos os estudiosos da fala in-terior, mesmo aqueles que a abordaram do ponto de vista beha-viorista, perceberam essa característica. O método da análisegenética permite-nos ir além de uma mera descrição. Aplica-mos esse método e constatamos que, à medida que a fala ego-cêntrica se desenvolve, revela uma tendência para uma formade abreviação totalmente específica, isto é, omite o sujeito deuma frase e todas as palavras com ele relacionadas, enquanto

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mantém o predicado. Essa tendência para a predicação apareceem nossos experimentos com tal regularidade, que somos leva-dos a admitir que se trata da forma sintática fundamental dafala interior.

A evocação de certas situações em que a fala exteriorapresenta uma estrutura semelhante, poderá ajudar-nos a com-preender essa tendência. Há dois casos em que a predicaçãopura ocorre na fala exterior: quando se trata de uma resposta equando o sujeito da frase é conhecido de antemão por todos osparticipantes da conversa. A resposta à pergunta "Quer umaxícara de chá?" nunca é "Não, não quero uma xícara de chá",mas um simples "Não". Obviamente, essa frase só é possívelporque o seu sujeito é tacitamente conhecido por ambas as par-tes. À pergunta "O seu irmão leu este livro?", ninguém jamaisresponde "Sim, o meu irmão leu esse livro". A resposta limita-se a um breve "Sim", ou "Leu". Imaginemos agora que váriaspessoas estão esperando um ônibus. Ao ver o ônibus se aproxi-mar, ninguém dirá "O ônibus que estamos esperando está che-gando". O mais provável é que a frase seja assim abreviada:"Vem vindo", ou algo do gênero, porque a situação evidencia osujeito. Com muita freqüência, as frases abreviadas criam con-fusão. O ouvinte pode relacionar a frase a um sujeito que já es-teja em sua mente, e não ao sujeito a que se refere o emissor.Se os pensamentos das duas pessoas coincidirem, um perfeitoentendimento poderá ser obtido pelo simples uso de predica-dos, mas se estiverem pensando em coisas diferentes, o maisprovável é que não se entendam.

Nos romances de Tolstoi - que muitas vezes abordou o temada psicologia do entendimento - é possível encontrar exem-plos muito bons da condensação da fala exterior e da sua redu-ção a predicados: "Apenas Kitty percebeu o que ele dizia, poissó ela pensava a todo momento no que lhe poderia ser útil"[Ana Karenina, Parte V, Capítulo 18]. Poderíamos dizer que ospensamentos dela, ao seguir os pensamentos do agonizante,continham o sujeito a que suas palavras se referiam, e que não

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era compreendido por mais ninguém. Mas talvez o exemplomais surpreendente seja a declaração de amor entre Kitty eLiêvin por meio de letras iniciais:

- Há muito tempo desejava perguntar-lhe uma coisa.- Então pergunte.- Olhe - disse Liêvin, e escreveu a giz as iniciais seguintes:

Q, v, m, r. n, p, s, s, n, o, e. Aquelas letras queriam dizer:"Quando você me respondeu: Não pode ser, significava nuncaou então?"

Não havia probabilidade alguma de Kitty poder decifraressa frase complicada.

- Compreendi - disse por fim, corando.- Que palavra é esta? - perguntou ele, apontando n, a letra

que indicava "nunca".- Significa "nunca" - respondeu ela, - Mas não é verdade!Rapidamente Liêvin apagou o que estava escrito, entregou

o giz a Kitty e levantou-se. Ela escreveu: E, n,p, r, d, o, m.De súbito, o rosto de Liêvin resplandeceu. Compreendera.

Aquilo significava: "Então não pude responder de outra maneira."Kitty escreveu as iniciais seguintes: Q, v,p, e, e,p, o, q, a.

O significado era: "Que você possa esquecer e perdoar o queaconteceu."

Liêvin pegou no giz com os dedos rígidos e trêmulos e,partindo-o, logo em seguida escreveu as iniciais da seguintefrase: "Não tenho nada que perdoar nem que esquecer e nuncadeixaria de a amar."

- Compreendi - disse, num sussurro.Liêvin sentou-se e escreveu uma frase comprida. Kitty com-

preendeu-a toda e, sem perguntar-lhe se acertara, pegou no giz,por sua vez, e respondeu.

Por muito tempo Liêvin não conseguiu decifrar o que Kittyescrevera e de quando em quando fitava-a nos olhos. A felicida-de tinha-o feito perder o uso de suas faculdades. Não havia ma-neira de encontrar as palavras a que correspondiam as iniciais.Mas, pelos encantadores olhos da jovem, que resplandeciam defelicidade, percebeu tudo quanto precisava saber. Escreveu trêsletras. Ainda não acabara de o fazer já Kitty as lera, seguindo-

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lhe o movimento da mão; e foi ela quem terminou a frase e es-creveu a resposta: "Sim."

Tivera tempo de dizer tudo: Kitty amava-o e diria aos paisque no dia seguinte pela manhã Liêvin lhes iria falar. [Ana Ka-renina, Parte IV, Capítulo 13]

Esse exemplo tem um interesse psicológico extraordiná-rio, porque, como todo o episódio entre Kitty e Liêvin, Tolstoifoi buscá-lo em sua própria vida. Foi exatamente assim queTolstoi comunicou à sua futura esposa que a amava. Essesexemplos mostram claramente que, quando os pensamentosdos interlocutores são os mesmos, a função da fala se reduz aomínimo. Em outra parte, Tolstoi chama atenção para o fato deque, quando duas pessoas vivem em íntimo contato psicológi-co, essa comunicação por meio da fala abreviada constitui aregra, e não a exceção.

Liêvin habituara-se a exprimir ousadamente o seu pensamen-to, sem lhe dar uma forma concreta; sabia que nos momentos deperfeito entendimento a mulher o compreendia por meias pala-vras. E era esse o caso. [Ana Karenina, Parte VI, Capítulo 3]

Uma sintaxe simplificada, a condensação e um númeromuito reduzido de palavras caracterizam a tendência à predica-ção, que aparece na fala exterior quando os dois interlocutoresconhecem bem o assunto. As confusões engraçadas que resultamsempre que os pensamentos das pessoas seguem direções opos-tas contrastam totalmente com esse tipo de compreensão. A con-fusão a que isso pode levar fica bem clara neste pequeno poema:

Dois homens apresentam-se a um juiz, sendo surdos os três."Este aí roubou-me a vaca, diz um deles, e o segundo responde:"É mentira, senhor juiz; esta terra em questão sempre pertenceuao meu pai."E o juiz então decide: "Não briguem, são ambos inocentes, a cul-pada sem dúvida é a mulher."

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A conversa de Kitty com Liêvin e o julgamento do surdosão casos extremos; na verdade são os dois pólos da fala exte-rior. Um deles exemplifica o entendimento mútuo que pode serobtido por meio de uma fala completamente abreviada, quan-do duas mentes ocupam-se do mesmo sujeito; o outro exempli-fica a falta total de entendimento, mesmo com uma fala inte-gral, quando os pensamentos das pessoas seguem trajetóriasdiferentes. Não são apenas os surdos que não conseguem seentender, mas quaisquer pessoas que atribuem um significadodiferente à mesma palavra, ou que sustentam pontos de vistadiferentes. Como Tolstoi notou, aqueles que estão acostuma-dos ao pensamento solitário e independente não apreendemcom facilidade os pensamentos alheios, e são muito parciaisquanto aos seus próprios; mas as pessoas que mantêm um con-tato mais estreito apreendem os complexos significados quetransmitem uma à outra, por meio de uma comunicação "lacô-nica e clara", que faz uso de um mínimo de palavras.

Depois de ter examinado a abreviação na fala exterior,podemos voltar, agora mais enriquecidos, ao mesmo fenôme-no na fala interior, onde não é uma exceção, mas a regra. Seráelucidativo comparar a abreviação na fala oral e escrita e nafala interior. A comunicação por escrito baseia-se no significa-do formal das palavras e requer um número muito maior depalavras do que a fala oral, para transmitir a mesma idéia. Di-rige-se a um interlocutor ausente, que muito poucas vezes temem mente o mesmo assunto que o escritor. Portanto, deve sermuito mais desenvolvida; a diferenciação sintática deve chegarao seu ponto máximo, e devem-se usar expressões que soariamartificiais na conversação. A expressão de Griboedov "ele falacomo escreve" refere-se ao efeito cômico das construções ela-boradas, na fala cotidiana.

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V

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A natureza multifuncional da linguagem, que vem atrain-do uma atenção cada vez maior dos lingüistas, já foi examina-da por Humboldt em relação à poesia e à prosa - duas formasmuito diferentes quanto à função e aos meios que utilizam. Deacordo com Humboldt, a poesia é inseparável da música,enquanto a prosa depende inteiramente da linguagem e é do-minada pelo pensamento. Conseqüentemente, cada uma temdicção, gramática e sintaxe próprias. Essa concepção é de im-portância fundamental, embora nem Humboldt, nem os quemais tarde desenvolveram o seu pensamento tenham compreen-dido plenamente todas as suas implicações. Fizeram apenas adistinção entre poesia e prosa e, nesta última, entre a troca deidéias e a conversação comum, isto é, a mera troca de informa-ções ou o bate-papo convencional. Há outras distinções funcio-nais importantes na fala. Uma delas é a distinção entre o diálogoe o monólogo. A escrita e a fala interior representam o monólo-go; a fala oral, na maioria dos casos, representa o diálogo.

O diálogo sempre pressupõe que os interlocutores tenhamum conhecimento suficiente do assunto, para tornar possíveis afala abreviada e, em certas condições, as frases exclusivamentepredicativas. Também pressupõe que cada pessoa possa ver seusinterlocutores, suas expressões faciais e seus gestos, e ouvir otom de suas vozes. Já discutimos a abreviação; passaremos aconsiderar aqui apenas o seu aspecto auditivo, utilizando umexemplo clássico, extraído do Diário de um escritor, de Dos-toievski, para mostrar o quanto a entoação auxilia na compreen-são sutilmente diferenciada do significado de uma palavra.

Dostoievski relata uma conversa de bêbados, que consisteinteiramente numa palavra impublicável:

Numa noite de domingo, aproximei-me por acaso de umgrupo de seis jovens trabalhadores bêbados, dos quais fiquei amais ou menos quinze passos de distância. De repente, percebique todos os seus pensamentos, sentimentos e até mesmo todoum encadeamento de raciocínio podiam ser expressos por essa

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única palavra, que além do mais é extremamente pequena. Umdos jovens disse-a de modo rude e forçado, para expressar o seudesprezo absoluto por tudo o que estiveram a falar. Outro res-pondeu com a mesma palavra, mas num tom e num sentidocompletamente diferentes - duvidando que a atitude negativado primeiro pudesse ser de alguma forma justificada. Um ter-ceiro ficou subitamente irritado com o primeiro e intrometeu-sebruscamente na conversa, repetindo aos berros a mesma pala-vra, dessa vez como uma maldição e uma obscenidade. Nesseponto o segundo rapaz voltou a interferir, irritado com o tercei-ro, o agressor, fazendo-o calar-se de um jeito que significava:"Por que você tem que se intrometer? Estamos aqui calmamentediscutindo as coisas e lá vem você com palavrões." E externoutodo esse pensamento numa só palavra, a mesma venerável pa-lavra, com a única diferença que, ao fazê-lo, levantou a mão ecolocou-a no ombro do companheiro. Subitamente um quartobêbado, o mais jovem do grupo, que até então ficara quieto, eque talvez tivesse encontrado uma inesperada solução para adificuldade inicial que originara a discussão, levantou alegre-mente a mão e gritou... Heureca, vocês acham que é isto? Seráque descobri a solução? Não, nem é heureca, nem eu encontrei asolução; repetiu a mesma palavra impublicável, uma palavra,apenas uma, mas com êxtase, num grito de prazer - que talveztenha sido um tanto exagerado, porque o sexto rapaz, o maisvelho, um tipo carrancudo, não gostou nem um pouco daquilo ecortou de uma vez a alegria infantil do outro, dirigindo-se a elenum tom de voz gutural, mal-humorado e exortativo, e repetin-do... Sim, ainda a mesma palavra, proibida em presença de se-nhoras, mas que dessa vez significava claramente: "Por que vo-cês estão vociferando grosserias uns para os outros?" E assim,sem que pronunciassem mais uma única palavra, repetiramaquela palavra amada por seis vezes consecutivas, uma após aoutra, e entenderam-se perfeitamente. [Diário de um escritor,ano de 1873]

A inflexão revela o contexto psicológico dentro do qualuma palavra deve ser compreendida. Na história de Dostoievs-

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ki, tratava-se de negação desdenhosa num dos casos, dúvidaem outro, e irritação no terceiro. Quando o contexto é tão clarocomo nesse exemplo, fica realmente possível transmitir todosos pensamentos, sentimentos e até mesmo toda uma seqüênciade raciocínios em uma só palavra.

Na escrita, como o tom de voz e o conhecimento do assun-to são excluídos, somos obrigados a utilizar muito mais pala-vras, e com maior exatidão. A escrita é a forma de fala maiselaborada.

Alguns lingüistas consideram o diálogo como a forma na-tural da fala oral - em que a linguagem revela sua natureza - eo monólogo como sendo, em grande parte, artificial. A investi-gação psicológica não deixa dúvidas de que o monólogo é, naverdade, a forma mais elevada e complexa de desenvolvimentohistórico posterior. No momento, contudo, estamos interessa-dos em comparar as duas formas apenas no que diz respeito àtendência para a abreviação.

A velocidade da fala oral não favorece um processo deformulação complexo - não deixa tempo para a deliberação e aescolha. O diálogo implica o enunciado imediato, não-preme-ditado. Consiste em todos os tipos de respostas e réplicas; éuma cadeia de reações. Em comparação, o monólogo é umaformação complexa, que permite uma elaboração lingüísticalenta e consciente.

Na escrita, em que os suportes situacional e expressivoestão ausentes, a comunicação só pode ser obtida por meio daspalavras e suas combinações, exigindo que a atividade da falaassuma formas complexas - daí a necessidade dos rascunhos.A evolução do rascunho para a cópia final reflete nosso proces-so mental. O planejamento tem um papel importante na escri-ta, mesmo quando não fazemos um verdadeiro rascunho. Emgeral, dizemos a nós mesmos o que vamos escrever, o que jáconstitui um rascunho, embora apenas em pensamento. Comotentamos mostrar no capítulo anterior, esse rascunho mental éuma fala interior. Uma vez que esta funciona como rascunho

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não apenas na escrita, mas também na fala oral, procederemosagora a uma comparação dessas formas com a fala interior, notocante à tendência para a abreviação e a predicação.

Essa tendência, inexistente na escrita e só algumas vezesencontrada na fala oral, sempre aparece na fala interior. A pre-dicação é a forma natural da fala interior; psicologicamente, éconstituída apenas por predicados. Da mesma forma que aomissão do sujeito é um fato rigorosamente constatado na falainterior, pode-se afirmar que, para a escrita, a presença do su-jeito e do predicado constitui uma lei.

A chave desse fato experimentalmente comprovado é apresença invariável e inevitável, na fala interior, dos fatoresque facilitam a pura predicação: sabemos o que estamos pen-sando - isto é, sempre conhecemos o sujeito e a situação. Ocontato psicológico entre os interlocutores numa conversa podeestabelecer uma percepção mútua, que leva à compreensão dafala abreviada. Na fala interior, a percepção "mútua" está sem-pre presente, de forma absoluta; portanto, é uma regra geralque ocorra uma "comunicação" praticamente sem palavras, atémesmo no caso dos pensamentos mais complexos.

O predomínio da predicação é um produto do desenvolvi-mento. No início, a fala egocêntrica tem uma estrutura idênticaà da fala social, mas no processo de sua transformação em falainterior torna-se gradualmente menos completa e coerente, àmedida que passa a ser regida por uma sintaxe totalmente pre-dicativa. Os experimentos mostram claramente como e por quea nova sintaxe passa a predominar. A criança fala das coisasque vê, ouve ou faz em determinado momento. Como resulta-do, tende a deixar de lado o sujeito e todas as palavras com elerelacionadas, condensando cada vez mais sua fala, até que sórestem os predicados. Quanto mais diferenciada se torna a fun-ção específica da fala egocêntrica, mais pronunciadas são assuas peculiaridades sintáticas - a simplificação e a predicação.O declínio da vocalização ocorre simultaneamente a essa mo-dificação. Quando conversamos com nós mesmos, temos ain-

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da menos necessidade de palavras do que Kitty e Liêvin. A falainterior é uma fala quase sem palavras.

Com a sintaxe e o som reduzidos ao mínimo, o significadopassa cada vez mais para o primeiro plano. A fala interior operacom a semântica, e não com a fonética. A estrutura semânticaespecífica da fala interior também contribui para a abreviação.A sintaxe dos significados na fala interior não é menos originaldo que a sua sintaxe gramatical. Nossa investigação estabeleceutrês peculiaridades semânticas principais da fala interior.

A primeira, que é fundamental, é o predomínio do sentidode uma palavra sobre o seu significado - uma distinção quedevemos a Paulhan. Segundo ele, o sentido de uma palavra é asoma de todos os eventos psicológicos que a palavra despertaem nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico,que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado éapenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa.Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge;em contextos diferentes, altera o seu sentido. O significadopermanece estável ao longo de todas as alterações do sentido.O significado dicionarizado de uma palavra nada mais é doque uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma poten-cialidade que se realiza de formas diversas na fala.

As últimas palavras da já mencionada fábula de Krylov,A libélula e a formiga, ilustram bem a diferença entre sentido esignificado. As palavras "Vá dançar!" têm um significado de-finido e constante, mas no contexto da fábula adquirem umsentido intelectual e afetivo muito mais amplo. Significamtanto "Divirta-se" quanto "Morra". Esse enriquecimento daspalavras que o sentido lhes confere a partir do contexto é a leifundamental da dinâmica do significado das palavras. Depen-dendo do contexto, uma palavra pode significar mais ou menosdo que significaria se considerada isoladamente: mais, porqueadquire um novo conteúdo; menos, porque o contexto limita erestringe o seu significado. Segundo Paulhan, o sentido de umapalavra é um fenômeno complexo, móvel e variável; modifica-

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se de acordo com as situações e a mente que o utiliza, sendoquase ilimitado. Uma palavra deriva o seu sentido do parágra-fo; o parágrafo, do livro; o livro, do conjunto das obras do autor.

Paulhan prestou ainda mais um serviço à psicologia aoanalisar a relação entre a palavra e o sentido, mostrando queambos são muito mais independentes entre si do que a palavrae o significado. Há muito se sabe que as palavras podem mu-dar de sentido. Recentemente ficou demonstrado que o sentidopode modificar as palavras, ou melhor, que as idéias freqüen-temente mudam de nome. Da mesma forma que o sentido deuma palavra está relacionado com toda a palavra, e não comsons isolados, o sentido de uma frase está relacionado comtoda a frase, e não com palavras isoladas. Portanto, uma pala-vra pode às vezes ser substituída por outra sem que haja qual-quer alteração de sentido. As palavras e os sentidos são relati-vamente independentes entre si.

Na fala interior, o predomínio do sentido sobre o signifi-cado, da frase sobre a palavra e do contexto sobre a frase cons-titui a regra.

Isso nos leva às outras peculiaridades semânticas da falainterior. Ambas dizem respeito à combinação das palavras. Umadelas é muito semelhante à aglutinação - uma maneira de com-binar as palavras, bastante comum em algumas línguas e relati-vamente rara em outras. A língua alemã geralmente forma umsubstantivo a partir de várias palavras ou frases. Em algumaslínguas primitivas, essa aglutinação de palavras constitui umaregra. Quando diversas palavras fundem-se numa única, a novapalavra não expressa apenas uma idéia de certa complexidade,mas designa todos os elementos isolados contidos nessa idéia.Como a ênfase sempre recai no radical, ou idéia principal, essaslínguas são fáceis de entender. A fala egocêntrica da criançaapresenta alguns fenômenos semelhantes. À medida que a falaegocêntrica se aproxima da fala interior, a criança passa a utili-zar cada vez mais a aglutinação, como uma maneira de formarpalavras compostas para expressar idéias complexas.

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A terceira peculiaridade semântica fundamental da falainterior é o modo pelo qual os sentidos das palavras se combi-nam e se unificam - um processo regido por leis diferentesdaquelas que regem a combinação de significados. Quandoobservamos esse modo singular de unir palavras na fala ego-cêntrica, passamos a chamá-lo de "influxo de sentido". Os sen-tidos de diferentes palavras fluem um dentro do outro - literal-mente "influenciam-se" -, de modo que os primeiros estão con-tidos nos últimos, e os modificam. Assim, uma palavra queaparece muitas vezes num livro ou num poema às vezes absor-ve todas as variedades de sentido nela contidas, tornando-se,de certa forma, equivalente à própria obra. O título de umaobra literária exprime o seu conteúdo e completa o seu sentido,num grau muito superior do que o nome de uma pintura ou deuma peça musical. Títulos como Dom Quixote, Hamlet e AnaKarenina ilustram isso muito bem; todo o sentido de uma obraestá contido em um nome. Almas mortas, de Gogol, é outroexemplo excelente. Originalmente, o título referia-se a servosmortos, cujos nomes ainda constavam dos registros oficiais, eque podiam ser comprados e vendidos como se ainda estives-sem vivos. É nesse sentido que as palavras são usadas em todoo livro, que gira em torno desse tráfico com os mortos. Mas,devido à sua estreita relação com a obra como um todo, essasduas palavras adquirem uma nova importância, um sentidoinfinitamente mais amplo. Quando chegamos ao final do livro,"almas mortas" para nós significa não apenas os servos mor-tos, mas também todos os outros personagens da história, fisi-camente vivos mas espiritualmente mortos.

Na fala interior, o fenômeno atinge o seu ponto máximo.Uma única palavra está tão saturada de sentido, que seriamnecessárias muitas palavras para explicá-la na fala exterior.Não admira que a fala egocêntrica seja incompreensível paraos outros. Watson diz que a fala interior seria incompreensívelmesmo que pudesse ser gravada. Sua opacidade aumenta devi-do a um fenômeno correlato que, incidentalmente, Tolstoi per-

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cebeu na fala exterior: em sua obra Infância, adolescência ejuventude ele descreve como as palavras adquirem significa-dos especiais - compreendidos apenas pelos iniciados - entreas pessoas que mantêm um íntimo contato psicológico. Na falainterior, desenvolve-se o mesmo tipo de expressão - o tipo queé difícil traduzir para o idioma da fala exterior.

Com isso concluiremos nosso exame das peculiaridades dafala interior, que observamos pela primeira vez em nossa inves-tigação da fala egocêntrica. Ao procurar comparações na falaexterior, constatamos que esta última já contém, ao menospotencialmente, os traços característicos da fala interior; a pre-dicação, o declínio da vocalização, a predominância do sentidosobre o significado, a aglutinação etc. aparecem, sob certas con-dições, também na fala exterior. Acreditamos que esta seja amelhor confirmação da nossa hipótese de que a fala interior seorigina da diferenciação entre a fala egocêntrica e a fala socialprimária da criança.

Todas as nossas observações indicam que a fala interior éuma função de fala autônoma. Podemos sem dúvida considerá-la como um plano específico do pensamento verbal. É eviden-te que a transição da fala interior para a exterior não é umasimples tradução de uma linguagem para outra. Não pode serobtida pela mera vocalização da fala silenciosa. É um processocomplexo e dinâmico que envolve a transformação da estrutu-ra predicativa e idiomática da fala interior em fala sintatica-mente articulada, inteligível para os outros.

VI

Podemos agora voltar à definição da fala interior que pro-pusemos antes de apresentar nossa análise. A fala interior nãoé o aspecto interior da fala exterior - é uma função em si pró-pria. Continua a ser fala, isto é, pensamento ligado por pala-vras. Mas, enquanto na fala exterior o pensamento é expresso

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por palavras, na fala interior as palavras morrem à medida quegeram o pensamento. A fala interior é, em um grande parte,um pensamento que expressa significados puros. É algo dinâ-mico, instável e inconstante, que flutua entre a palavra e o pen-samento, os dois componentes mais ou menos estáveis, maisou menos solidamente delineados do pensamento verbal. Sópodemos entender a sua verdadeira natureza e o seu verdadeirolugar depois de examinar o plano seguinte do pensamento ver-bal, o plano ainda mais interiorizado do que a fala interior.

Esse plano é o próprio pensamento. Como dissemos, to-dos os pensamentos criam uma conexão, preenchem uma fun-ção, resolvem um problema. O fluxo do pensamento não é acom-panhado por uma manifestação simultânea da fala. Os doisprocessos não são idênticos, e não há nenhuma correspondên-cia rígida entre as unidades do pensamento e da fala. Isso éparticularmente claro quando um processo de pensamento nãoobtém o resultado desejado - quando, como diz Dostoievski,um pensamento "não penetrará as palavras". O pensamentotem a sua própria estrutura, e a transição dele para a fala não éuma coisa fácil. O teatro deparou com o problema do pensa-mento por trás das palavras antes que a psicologia o fizesse.Ao ensinar o seu sistema de representação, Stanislavsky exigiaque os atores descobrissem o "subtexto" das suas falas em umapeça. Na comédia de Griboedov, A infelicidade de ser inteli-gente, o herói, Chatsky, diz à heroína que afirma nunca o teresquecido: "Três vezes louvado aquele que acreditar. A fé nosaquece o coração." Stanislavsky interpretou essas frases como"Vamos acabar com esta conversa", mas também poderiam serinterpretadas como "Eu não acredito em você. Você só diz issopara me consolar", ou "Você não vê que está me atormentan-do? Gostaria de acreditar em você; seria a felicidade". Todas asfrases que dizemos na vida real possuem algum tipo de subtex-to, um pensamento oculto por trás delas. Nos exemplos que de-mos anteriormente da ausência de concordância entre o sujeitogramatical e psicológico e o predicado, não levamos a cabo

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nossa análise. Assim como uma frase pode expressar vários pen-samentos, um pensamento pode ser expresso por meio de váriasfrases. Por exemplo, a frase "O relógio caiu", em resposta à per-gunta "Por que o relógio parou?", poderia significar "Não éculpa minha se o relógio não está funcionando". O mesmo pen-samento, que é uma autojustificativa, poderia assumir a formada frase "Não tenho o hábito de mexer nas coisas de outras pes-soas. Estava apenas tirando o pó", ou muitas outras frases.

O pensamento, ao contrário da fala, não consiste em uni-dades separadas. Quando desejo comunicar o pensamento deque hoje vi um menino descalço, de camisa azul, correndo ruaabaixo, não vejo cada aspecto isoladamente: o menino, a cami-sa, a cor azul, a sua corrida, a ausência de sapatos. Concebotudo isso em um só pensamento, mas expresso-o em palavrasseparadas. Um interlocutor em geral leva vários minutos paramanifestar um pensamento. Em sua mente, o pensamento estápresente em sua totalidade e num só momento, mas na fala temque ser desenvolvido em uma seqüência. Um pensamento podeser comparado a uma nuvem descarregando uma chuva depalavras. Exatamente porque um pensamento não tem um equi-valente imediato em palavras, a transição do pensamento paraa palavra passa pelo significado. Na nossa fala há sempre opensamento oculto, o subtexto. Devido à impossibilidade deexistir uma transição direta do pensamento para a palavra,sempre houve quem se lamentasse acerca da inexpressibilida-de do pensamento:

Como poderá o coração exprimir-se?Como poderá um outro compreendê-lo?

[F. Tjutchev]

A comunicação direta entre duas mentes é impossível, nãosó fisicamente como também psicologicamente. A comunica-ção só pode ocorrer de uma forma indireta. O pensamento temque passar primeiro pelos significados e depois pelas palavras.

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Chegamos agora ao último passo de nossa análise do pen-samento verbal. O pensamento propriamente dito é geradopela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nos-sos interesses e emoções. Por trás de cada pensamento há umatendência afetivo-volitiva, que traz em si a resposta ao último"por que" de nossa análise do pensamento. Uma compreensãoplena e verdadeira do pensamento de outrem só é possível quan-do entendemos sua base afetivo-volitiva. Ilustraremos isso pormeio de um exemplo já utilizado: a interpretação dos papéis deuma peça. Nas suas instruções para os atores, Stanislavsky enu-merava os motivos que estão por trás das falas de seus persona-gens. Por exemplo:

Texto da Peça

SOFIA:Ah, Chatsky, mas que bom quevocê veio!

Motivos Paralelos

Tenta ocultar sua confusão.

CHATSKY:Também é muito bom vê-la as-sim contente.Poucas vezes vi alguém demons-trar tanta alegria.Mas, pensando bem, tenho a im-pressão de que a chuva que en-frentei com meu cavalo só a mimfez contente, e a mais ninguém.

LIZA:É verdade! Se o senhor tivesseestado aqui, junto a nós, há unscinco minutos, ou nem tanto, teriaouvido quantas vezes o seu nomefoi repetido.Diga-lhe, senhorita, diga-lhe quenão minto!

Tenta fazê-la sentir-se culpada,provocando-a. Você não está en-vergonhada? Tenta forçá-la a serfranca.

Tenta acalmá-lo. Tenta ajudar So-fia numa situação difícil.

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Texto da Peça

SOFIA:Foi assim mesmo, nem mais nemmenos.Não, e quanto a isso, tenho certe-za: não há por que me repreender.

CHATSKY:Bem... suponhamos que assimseja. Três vezes louvado aqueleque acreditar.A fé nos aquece o coração.

Para compreender a fala de outrem não basta entender assuas palavras - temos que compreender o seu pensamento. Masnem mesmo isso é suficiente - também é preciso que conheça-mos a sua motivação. Nenhuma análise psicológica de umenunciado estará completa antes de se ter atingido esse plano.

Chegamos ao fim da nossa análise; vamos examinar seusresultados. O pensamento verbal foi apresentado como umaentidade dinâmica e complexa, e a relação entre o pensamentoe a palavra, no seu interior, surgiu como um movimento aolongo de uma série de planos. Nossa análise seguiu o processodesde o plano mais externo até o plano mais interno. Na realida-de, o desenvolvimento do pensamento verbal segue o rumo opos-to: do motivo que gera um pensamento à configuração do pen-samento, primeiro na fala interior, depois nos significados daspalavras e, finalmente, nas palavras. Entretanto, seria um erroimaginar que esse é o único caminho do pensamento para apalavra. O desenvolvimento pode parar em qualquer ponto deseu complexo percurso; é possível uma variedade infinita de mo-vimentos progressivos e regressivos, de caminhos que ainda

Motivos Paralelos

Tenta tranqüilizar Chatsky. Nãotenho culpa de nada!

Vamos acabar com esta conversaetc.

[A. Griboedov, A infelicidade de ser inteligente, Ato I]

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desconhecemos. Um estudo dessas múltiplas variações ficaalém do objetivo de nossa presente tarefa.

Nossa investigação seguiu um rumo um tanto incomum.Queríamos estudar o funcionamento interno do pensamento eda linguagem, que está oculto à observação direta. O significa-do e todo o aspecto interior da linguagem - o aspecto voltadopara a pessoa, não para o mundo exterior - tem sido até agoraum território quase desconhecido. Sejam quais forem as inter-pretações que lhes tenham sido dadas, as relações entre o pen-samento e a palavra sempre foram consideradas como constan-tes e definitivamente estabelecidas. Nossa investigação mos-trou que, ao contrário, são relações frágeis e inconstantes entreprocessos, que surgem no decorrer do desenvolvimento dopensamento verbal. Não pretendemos, e nem poderíamos, es-gotar o assunto do pensamento verbal. Tentamos apenas dar umavisão geral da complexidade infinita dessa estrutura dinâmica- uma visão decorrente de fatos experimentalmente documen-tados.

Para a psicologia associacionista, o pensamento e a pala-vra estavam unidos por laços externos, semelhantes aos laçosentre duas sílabas sem sentido. A psicologia gestaltista intro-duziu o conceito de conexões estruturais, mas, tal como a anti-ga teoria, não elucidou as relações específicas entre pensa-mento e palavra. Todas as outras teorias se agrupavam ao redorde dois pólos - a visão behaviorista do pensamento como falamenos som, ou a visão idealista, defendida pela escola de Würz-burg e por Bergson, de que o pensamento poderia ser "puro",não-relacionado com a linguagem, e que seria distorcido pelaspalavras. A frase de Tjutchev, "Uma vez expresso, o pensamen-to é uma mentira", poderia muito bem servir de epígrafe para oúltimo grupo. Quer se inclinem para o naturalismo puro oupara o idealismo extremo, todas essas teorias têm uma caracte-rística em comum - sua tendência anti-histórica. Elas estudamo pensamento e a fala sem qualquer referência à história de seudesenvolvimento.

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Somente uma teoria histórica da fala interior pode lidarcom esse problema imenso e complexo. A relação entre o pen-samento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasceatravés das palavras. Uma palavra desprovida de pensamento éuma coisa morta, e um pensamento não expresso por palavraspermanece uma sombra. A relação entre eles não é, no entanto,algo já formado e constante; surge ao longo do desenvolvi-mento e também se modifica. À frase bíblica "No princípio erao Verbo", Goethe faz Fausto responder: "No princípio era aAção." O objetivo dessa frase é diminuir o valor das palavras,mas podemos aceitar essa versão se a enfatizarmos de outra for-ma: No princípio era a Ação. A palavra não foi o princípio - aação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvi-mento, o coroamento da ação.

Não podemos encerrar nosso estudo sem mencionar as pers-pectivas abertas pela nossa investigação. Estudamos os aspectosinternos da fala, que eram tão desconhecidos pela ciência quantoa outra face da Lua. Mostramos que a característica fundamentaldas palavras é uma reflexão generalizada da realidade. Esseaspecto da palavra leva-nos ao limiar de um tema mais amplo emais profundo - o problema geral da consciência. O pensamentoe a linguagem, que refletem a realidade de uma forma diferentedaquela da percepção, são a chave para a compreensão da nature-za da consciência humana. As palavras desempenham um papelcentral não só no desenvolvimento do pensamento, mas tambémna evolução histórica da consciência como um todo. Uma pala-vra é um microcosmo da consciência humana.

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