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Walter Benjamim e a Modernidade, Baudelaire.
Ana Beatriz Rodrigues de Britto1
Resumo: Este trabalho tem como objetivo, a partir do pensamento do filósofo alemão Walter
Benjamin demonstrar as transformações ocorridas na sociedade moderna decorrentes da
ruptura da tradição que constitui o conceito de queda da “experiência”. O ponto de partida de
Benjamin é o deslocamento do conceito de “experiência” onde o sentido da vida se
encontrava na tradição coletiva e na autoridade do passado para o conceito de “vivência” onde
o sentido da vida se encontra na individualidade. A perda de sentido na tradição coletiva dá
lugar a inúmeras “vivências” privadas. Tais mudanças ocorreram com o advento da sociedade
burguesa industrial. Os conceitos de Benjamin se aplicam à forma clássica da poesia lírica de
Charles Baudelaire e à pintura de Edgar Degas, desvelando em suas obras a ruptura da
tradição e o surgimento da modernidade, a crise do pensamento, a diferença entre o tempo
qualitativo da experiência e o tempo da ciência, a alienação da vida e o isolamento do
indivíduo na sociedade moderna. Benjamin estuda a experiência do “choque” característica
das massas urbanas que perdem a tranquilidade em meio ao sobressalto do movimento urbano
e a aceleração da vida moderna. A fragmentação dos estímulos e a busca de entretenimento
associados aos sentidos são consequências do rompimento da modernidade com a tradição; da
“ruptura da experiência”. O sentimento do tédio e melancolia se incorporam a vida do homem
moderno onde a técnica se sobrepõe ao homem, e é esse homem pobre em experiências
comunicáveis cujo trabalho industrial e repetitivo se sobrepõe ao trabalho humanizado das
corporações que se defronta com o declínio do patrimônio cultural coletivo.
1. Introdução
Este artigo tem como objetivo, a partir do pensamento do filósofo alemão Walter
Benjamin, demonstrar as transformações ocorridas na sociedade moderna decorrentes da
ruptura da tradição que constitui o conceito de queda da experiência. O ponto de partida de
1 Pós-Graduação em História Social da Cultura – PUC-Rio, Mestrado - CAPES/PROSUP. Orientador: Ronaldo
Brito Fernandes. E-mail: [email protected]
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Benjamin é o deslocamento do conceito de experiência onde o sentido da vida se encontrava
na tradição coletiva e na autoridade do passado para o conceito de vivência onde o sentido da
vida se encontra na individualidade. A perda de sentido da tradição coletiva cede lugar a
inúmeras vivências privadas. Sinais da crescente importância da individualidade e do declínio
do patrimônio coletivo. Tais mudanças ocorreram com o advento da sociedade burguesa
industrial. O homem dominado pela técnica é destituído da sensação de ter produzido o
produto final, participa tão somente de um fragmento da produção. Sintomas da evolução das
forças produtivas da burguesia ascendente.
Da passagem da narrativa oral para a forma escrita do romance na modernidade,
podemos concluir que a queda da experiência ou ruptura da tradição analisada nas obras de
Walter Benjamin nos permite pensar o surgimento de um mundo novo. Nessa passagem da
narrativa tradicional para o romance moderno, a sabedoria dá lugar ao novo, que predomina
sobre o que é antigo e exemplar e o passado coletivo se perde no individual. O que distingue
o romance da narrativa, sejam contos de fada, lendas ou novelas é que o romance não procede
da tradição oral, como a narrativa. O narrador retira da experiência sua narrativa e as coisas
narradas incorporam-se à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. O narrador
que detém sabedoria e autoridade cede lugar ao escritor solitário que relata sua própria
experiência. Um mundo no qual a rememoração, característica do romance se coloca no lugar
da memória; característica da narrativa. A sobriedade da narrativa cede lugar à análise
psicológica do romance. O surgimento do romance moderno é sintoma da busca de um novo
sentido da vida, tendo se tornado na modernidade a expressão literária predominante; a forma
de literatura burguesa. Com a evolução da técnica, o narrador vai desaparecendo e o homem é
incapaz de falar, de contar. A burguesia suprime as experiências contadas e compartilhadas
onde o passado coletivo e individual se entrelaçam e uma nova forma de vida se impõe e se
estabelece.
Os conceitos de Benjamin se aplicam à forma da poesia lírica de Charles Baudelaire
que desvela em seus poemas à ruptura da tradição e o surgimento da modernidade. A
modernidade traz uma consequente crise do pensamento, estabelece uma diferença entre o
tempo qualitativo da experiência e o tempo da ciência indiferente à nossa vontade, impõe a
alienação da vida e o isolamento do indivíduo na sociedade. Benjamin estuda a experiência do
choque característica das massas urbanas que subtrai a tranquilidade do homem em meio ao
sobressalto do movimento urbano. A aceleração da vida moderna associada à fragmentação
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dos estímulos e a busca de entretenimento ligada aos sentidos são consequências do
rompimento da modernidade com a tradição; da ruptura da experiência. O sentimento do
tédio e da melancolia se incorporam à vida do homem moderno na qual a técnica se sobrepõe
ao homem. Esse homem pobre em experiências comunicáveis, cujo trabalho industrial
repetitivo e alienante, sobrepõe-se ao trabalho humanizado das corporações irá se defrontar
com o declínio do patrimônio cultural coletivo.
2. Walter Benjamin, a Modernidade e Baudelaire
Nesta parte do trabalho, será apresentado um estudo de alguns poemas de Baudelaire
selecionados de As Flores do Mal, nos quais Walter Benjamin identificou grande parte dos
conceitos estudados por ele sobre a modernidade. Baudelaire escolhe a forma clássica da
poesia lírica e irá macular seus poemas com temas atuais de seu tempo, assumindo como
missão fazer a conexão do lirismo com a modernidade. O mundo mudou significativamente
no séc. XIX. A revolução industrial deflagrou uma série de novas situações dentro das
relações humanas e sociais trazendo grandes transformações e novos conceitos. A manufatura
deu lugar à produção em massa e o homem perdeu a conexão com seu trabalho, fazendo parte
apenas de uma linha de produção. Trabalho alienado. A técnica desmoralizou os contatos
humanos. Não havia mais espaço e tempo para a manufatura. O ofício antes compartilhado no
lar, sem distância entre trabalho e família, onde as tradições eram passadas de pai para filhos
sofre uma ruptura. O capital tinha pressa, as cidades cresciam e a importância do indivíduo
prevalece sobre à coletividade. Baudelaire traduziu em seus poemas a crise e os contrastes da
nova sociedade capitalista industrial. Baudelaire escreve para um público ingrato, que a
princípio não iria compreender seus poemas, no entanto através de seus inúmeros personagens
alcança inesperadamente seu leitor, seu igual.
Uma análise de alguns poemas de Baudelaire se segue e irá apresentar a relação
existente entre a obra do filósofo alemão Walter Benjamin e o poeta que escreveu sobre a
diferença fundamental da sua época em oposição à tradição. Baudelaire acreditava que a vida
parisiense é rica em temas poéticos e retratou a vida moderna da Paris do séc. XIX; as
multidões, o “flâneur”, as prostitutas, o sentimento do spleen, entre muitos outros temas.
Baudelaire considerava tarefa da arte reencontrar a eternidade passageira que a realidade
moderna podia conter. Foi o analista do isolamento, da alienação e do abismo dos prazeres
fugazes da vida moderna. As situações artificiais de vida apresentadas em seus poemas
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chamam a atenção para as fissuras das nossas percepções da vida cotidiana. A obra de
Baudelaire é uma análise devastadora dos tempos modernos. Baudelaire dizia: O pintor, o
verdadeiro pintor será aquele que sabe revelar o lado épico da vida presente, que nos faz
ver e agarrar, com a pintura ou com um desenho, como nós somos grandes e poéticos com
as nossas gravatas e as nossas botas de verniz.
A vida urbana nas grandes cidades surgiu sem centro fixo, sem organização,
transformando as cidades em um labirinto infinito. Grandes avenidas foram construídas,
mercados, teatros, galerias e a convivência entre as pessoas foi se transformando. Os
contrastes sociais foram evidenciados e o sujeito urbano passou a ser mais um na multidão.
Em muitos de seus poemas percebe-se a presença secreta da massa, sem necessariamente citá-
la. Em A Uma Passante, Baudelaire evidencia a multidão que se impõe entre um possível
contato entre as pessoas. O poema nos informa sobre a experiência do choque, sentimento
íntimo existente no homem que se refere ao seu isolamento e não identificação com as massas
urbanas. É importante notar que o conceito de massas urbanas não permite, nem mesmo falar
em classes sociais, mas em uma multidão de passantes. A Passante do poema é desconhecida,
como todos os passantes, e fascina o habitante da cidade. Mas, a vida desnaturada das massas
civilizadas impõe o isolamento e a distância. A experiência do choque sentida pelo transeunte
na multidão corresponde a vivência do operário com a máquina. Experiência empobrecida.
No poema de Baudelaire, possíveis amores, tão perto e ao mesmo tempo, infinitamente
distantes, amores à primeira e última vista. Despedida para sempre.
A Uma Passante
Charles Baudelaire
A rua em derredor era um ruído incomum.
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.
Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade
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O tempo também se transformou na modernidade. As notícias chegam de todas as
partes do mundo na maior velocidade e facilidade. Entretanto, somos pobres em histórias
surpreendentes; experiências que tenham a riqueza de permanecer em nossa memória. A razão
é que o que acontece no mundo não está a serviço da narrativa, de uma experiência coletiva
compartilhada, mas a serviço da informação. Na narrativa, o contexto psicológico não é
determinado ao leitor que é livre para interpretar em oposição ao que acontece com a
informação. Na modernidade o tempo cronológico da ciência se sobrepõe ao tempo da
experiência; os relógios se difundiram e impuseram um novo ritmo à vida moderna. O ritmo
do trabalho manual foi substituído pelo tempo interrompido e ditado pelo tempo das máquinas
de produção no capitalismo industrial. Os dias já não são medidos pelo amanhecer e anoitecer
ou pela duração de uma vela ou pelo óleo das lamparinas. O homem foi banido do calendário
e o relógio se torna o deus sinistro e hediondo a que o poema abaixo se refere. Os prazeres do
entretenimento do homem moderno que são baseados nos sentidos, fogem no horizonte. A
aceleração da vida moderna devora os melhores sabores...
O Relógio
Charles Baudelaire
Relógio! Deus sinistro, hediondo, indiferente,
Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda!
A Dor vibrante que a lama em pânico te acorda
Como num alvo há de encravar-se brevemente;
Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte
Como uma sílfide por trás dos bastidores;
Cada instante devora os melhores sabores
Que todo homem degusta antes que a morte o afronte.
Três mil seiscentas vezes por hora, o Segundo
Te murmura: Recorda! - E logo, sem demora,
Com voz de inseto, a Agora diz: Eu sou o Outrora,
E te suguei a vida com meu bulbo imundo!
Remenber! Souviens-toi! Esto memor! (Eu falo
Qualquer idioma em minha goela de metal.)
Cada minuto é como uma ganga, ó mortal,
E há que extrair todo o ouro até purificá-lo!
Recorda: O Tempo é sempre um jogador atento
Que ganha, sem furtar, cada jogada! Ë a lei.
O dia vai, a noite vem; recordar-te-ei!
Esgota-se a clepsidra; o abismo está sedento.
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Virá a hora em que o Acaso, onde quer que te aguarde,
Em que a augusta Virtude, esposa ainda intocada,
E até mesmo o Remorso (oh, a última pousada!)
Te dirão: Vais morrer, velho medroso! É tarde!”
No poema O Albatroz, Baudelaire mostra o isolamento e o exílio do albatroz e do
poeta, confusos fora de seu espaço natural. O albatroz na sua amargura, solidão e fadiga pode
ser comparado ao homem moderno quando vive a desintegração da aura na experiência do
choque. Em O Albatroz fica evidente a comparação com a incompatibilidade entre o poeta e o
mundo através da contraposição entre a majestade do pássaro durante o vôo e a situação
degradante ao descer para o convés do navio que ele acompanhava do alto. O poeta e o
albatroz; ambos estranhos à um novo espaço, sós e incompreendidos. Referência a um mundo
que não mais existe onde as experiências eram compartilhadas e o homem participava da
importância do patrimônio coletivo. Nesse mundo moderno, uma nova forma de vida se
estabelece e podemos afirmar que o sentimento do albatroz é o sentimento do homem
moderno; sentimento de exílio, inadequação e solidão. Experiência desmoralizante.
O Albatroz
Charles Baudelaire
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado ao chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
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O Cisne apresenta claramente a interseção da modernidade com a antiguidade através
da reconstrução de Paris e a melancolia que acompanha o poeta em sua viagem. Mais uma
vez, o exílio ficou registrado, assim como a transitoriedade da cidade moderna que já não
podia mais acolher os ícones do passado, com suas tradições históricas. O poeta, assim como
o cisne se sente exilado na sua própria cidade totalmente reformada pelo Barão Haussmann,
sem referências do passado. Como sinal da destruição das tradições históricas e da alienação
urbana, a imagem do exílio se insere no contexto da Paris moderna. Como representação
desse exílio, o cisne é a imagem da inadequação à cidade mostrando o seu isolamento e
abandono. A delicadeza do cisne contrasta com a agressividade urbana. Existem dois exilados
no poema: o cisne e o poeta. Exilados porque sua ambiência não pode mais acolhê-los.
O Cisne Charles Baudelaire
A Vitor Hugo
I
Andrômaca, só penso em ti! O curso de água,
Espelho pobre e triste onde já resplendeu,
De teu rosto de viúva a majestosa mágoa,
O Simoente falaz que ao teu pranto cresceu,
Agora fecundou minha fértil saudade,
Como eu atravessasse o novo Carrossel.
Morto é o velho Paris (a forma da cidade
Muda bem mais que o coração de uma infiel);
Só em pensamento vejo os campos de barracas,
Os fustes aos montões, as cornijas rachadas,
Os muros de um verniz verde, as ervas opacas,
O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas.
No outro tempo existiu neste ponto um aviário;
Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão
Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário
Manda ao ar silencioso obscuro furacão,
Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas
Dos seus pés atritando o pavimento iníquo,
Arrastava no chão as grandes plumas claras.
Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico
Suas asas banhou na poeira, num desmaio,
E dizia a sonhar com seu lago natal:
“Água, não choverás?” Não trovejarás, raio?”
Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,
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Às vezes para o céu, como um homem ovidiano,
Para o céu de um azul cruel e tão irônico,
Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano,
Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!
II
Paris mudou! Porem minha melancolia
É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que socos.
Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz,
Exilado que ele é, ridículo e sublime,
Roído de um desejo infindo! Como em vós
Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo,
Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno,
Junto a tumba vazia, em langor doloroso
Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno!
Vou pensando na negra a fanar cor de terra:
Busca de pés na lama e de olhar tão bravio
Ausentes coqueirais que sua África encerra
Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio;
Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba
Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor,
Onde soem mamar, como de boa loba,
Nos órfãos a mirrar mais secos de que a flor!
E na floresta, que meu pobre corpo trilha,
Soa como buzina uma velha lembrança.
Penso no marinheiro esquecido numa ilha...
Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!
O conceito de ruptura com o passado ou queda da experiência de Benjamin aparece
em Correspondências e em A Vida Anterior onde Baudelaire mostra que o homem moderno
não poderia ter mais as experiências do passado, considerando a velocidade das mudanças na
sociedade moderna. O autor deixa claro que o que ficou para trás se constitui apenas de uma
nostalgia de experiências acessíveis pela memória distante, apenas recordações de fatos
anteriores à nova realidade. As correspondências são os dados do rememorar, dados da pré–
história. É o reencontro com a vida anterior. Para Baudelaire, o significado das
Correspondências pode ser definido como a busca de uma experiência perdida que ele
procura resgatar. Amo a recordação daqueles tempos nus.
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Correspondências Charles Baudelaire
A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.
Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Amo a recordação daqueles tempos nus
Amo a recordação daqueles tempos nus
Quando Febo esculpia as estátuas na luz.
Ligeiros, Macho e fêmea, fiéis ao som da lira,
Ali brincavam sem angústia e sem mentira,
E, sob o meigo céu que lhes dourava a espinha,
Exibiam a origem de uma nobre linha.
Cibele , então fecunda em frutos generosos,
Nos filhos seus não via encargos onerosos:
Qual loba fértil em anônimas ternuras,
Aleitava o universo com as tetas duras.
Robusto e esbelto, tinha o homem por sua lei
Gabar-se das belezas que o sagravam rei,
Sementes puras e ainda virgens de feridas,
Cuja macia tez convidava às mordidas!
Quando se empenha o Poeta em conceber agora
Essas grandezas raras que ardiam outrora,
No palco em que a nudez humana luz sem brio
Sente ele n'alma um tenebroso calafrio
Ante esse horrendo quadro de bestiais ultrajes.
Ó quanto monstro a deplorar os próprios trajes!
Ó troncos cômicos, figuras de espantalhos!
Ó corpos magros, flácidos, inflados, falhos,
Que o deus utilitário, frio e sem cansaço,
Desde a infância cingiu em suas gases de aço!
E vós, mulheres, mais seráficas que os círios,
Que a orgia ceva e rói, vós, virgens como lírios,
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Que herdaram de Eva o vício da perpetuidade
E todos os horrores da fecundidade!
Possuímos, é verdade, impérios corrompidos,
Com velhos povos de esplendores esquecidos:
Semblantes roídos pelos cancros da emoção,
E por assim dizer belezas de evasão;
Tais inventos, porém, das musas mais tardias
Jamais impedirão que as gerações doentias
Rendam à juventude uma homenagem grave
- À juventude, de ar singelo e fronte suave,
De olhar translúcido como água de corrente,
E que se entorna sobre tudo, negligente,
Tal qual o azul do céu, os pássaros e as flores,
Seus perfumes, seus cantos, seus doces calores.
A Vida Anterior Charles Baudelaire
Muito tempo habitei sob átrios colossais
Que o sol marinho em labaredas envolvia,
E cuja colunata majestosa e esguia
À noite semelhava grutas abissais.
O mar, que do alto céu a imagem devolvia,
Fundia em místicos e hieráticos rituais
As vibrações de seus acordes orquestrais
À cor do poente que nos olhos meus ardia.
Ali foi que vivi entre volúpias calmas,
Em pleno azul, ao pé das vagas, dos fulgores
E dos escravos nus, impregnados de odores,
Que a fronte me abanavam com as suas palmas,
E cujo único intento era o de aprofundar
O oculto mal que me fazia definha
Walter Benjamin observa que o verdadeiro domicílio do flâneur era a rua, onde se
sente em casa, quando está entre casas, como os outros se sentem quando estão entre as suas
quatro paredes. O flâneur torna-se arquétipo da vida cultural parisiense caracterizado pela
forma de vestir, pelos modos, mas sobretudo por sua observação sempre presente. Ele se
apodera do cotidiano. Essa consciência citadina do flâneur e sua postura indiferente que
ostenta na rua é uma imagem da modernidade e da importância da individualidade. O
“flâneur” lida com suas múltiplas vivências privadas, com sua interioridade. Observa o
movimento urbano da vida parisiense; a multidão e seu tempo acelerado. Ele vive o exílio do
homem moderno que rompe com a tradição de um passado coletivo e compartilhado.
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Flanando sem destino testemunha novas cenas de uma vida urbana transformada e como no
poema Spleen , o flâneur tem mais recordações do que há em mil anos. Guarda segredos,
remorsos, presencia um turbilhão de modas que passam, arrasta-se pelos trôpegos dias, mas
ainda aspira o odor de um frasco destampado e de uma eternidade passageira. Baudelaire
está sempre pronto para capturar esse instante imprevisto que o flâneur procura. Os poemas
Spleen e Ao Leitor expressam a melancolia, a alienação, o isolamento e a perda de interesse
em relação ao mundo. Baudelaire se dirige a um público moderno e denuncia o vício, a
mesquinhez, mas sobretudo o tédio! O tédio habita nosso espírito, é o inferno do qual não
podemos nos libertar e o que nos sacia são nossos remorsos. A sordidez nos amordaça e
somos prisioneiros do que em nossos crânios sonhamos. Em vão podemos fugir do pecado e
do vício, a vontade nos faz prisioneiros e nas trevas caminhamos. Mas, de todos os
monstros: serpentes, chacais, hienas, escorpiões, abutres, existe um mais feio e mais
imundo; um que não grita, nem faz grandes gestos , mas é capaz de destruir toda emoção, é
o tédio!!!!!! O habitante dos grandes centros urbanos incorre nesse sentimento de melancolia.
Cada um é possuído pela sua paixão, desconfiança em relação ao parceiro, surdo desespero.
Indiferença brutal, isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados. A
busca de entretenimento nos prazeres dos sentidos leva ao tédio; spleen, segundo Baudelaire,
um monstro delicado. Monstro delicado que anula o interesse e receptividade.
Spleen Charles Baudelaire
Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
- Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
- Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
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Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas os raios do sol a se pôr.
Ao Leitor Charles Baudelaire
A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.
Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.
Na almofada do mal é Satã Trimegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma jóia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.
Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.
Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.
Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.
Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,
Um há mais feios, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;
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É o Tédio! - O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!
No poema A Beleza, o poeta dedica atenção em retratar o contraste da beleza com a
indiferença e a cor pálida da frieza da neve. O alvor do cisne que é tão belo é remetido a um
coração de neve, tão gelado e frio. A beleza invoca a pedra e provoca uma tensão que
inquieta. O poema compara a beleza a um sonho de pedra e o amor é mudo e eterno. A
figura é bela, porém individual e isolada, como uma esfinge que reina indecifrada. O artista se
apodera do isolamento e da indiferença e reforça a impressão de estarmos diante de uma
rigidez e vazio completo. É o lado da beleza que não fascina, mas mostra o tédio. Também é
importante enfatizar que a beleza carrega uma conotação de desejo que inibe-se diante do
confronto com tanta frieza. O silêncio, o horror ao movimento formam uma impressão que
revela fragmentos da vida moderna. Essa visão do poeta ultrapassa os limites do poema e nos
leva a refletir sobre as questões do mundo moderno. A Beleza revela conceitos de Walter
Benjamim sobre a vivência privada, o tédio e isolamento consequentes da crescente
importância da individualidade na modernidade em oposição a tradição. O tédio, a
indiferença, a desconexão, a falta de interesse pelas coisas comuns da vida refletem como a
ruptura da experiência distancia as relações humanas. É o passado coletivo perdido no
individual que os poemas de Baudelaire demonstram tão claramente. Cada individuo é isolado
insensivelmente em seu mundo privado. Baudelaire busca extrair o eterno do efêmero. Não
há choro nem sorriso, é a indiferença que reina no poema. Terminarão seus dias sob o pó da
ciência, a técnica a tudo domina e submissos, todos seguem. Para dóceis amantes o poeta
dispõe de um espelho que idealiza a realidade, pois a realidade na sua claridade, o olhar
apenas altera e alerta.
A Beleza Charles Baudelaire
Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vêm buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.
No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
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E nunca choro nem jamais sorrio a nada.
Os poetas, diante de meus gestos de eloqüência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;
Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade:
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!
3. Conclusão
O estudo de Walter Benjamin sobre a ruptura da tradição se relaciona com o interesse
de Baudelaire por temas da modernidade. A tradição tem um valor e autoridade e se transmite
enquanto a técnica se sobrepõe ao homem, que se torna fragilizado e isolado. Tudo é fugaz e
se perde em oposição ao que se compartilha e é mantido pela tradição. A imagem da vida
moderna retratada nos poemas de Baudelaire revela a indiferença que permeia as relações
humanas na modernidade. A pobreza da experiência leva o homem ao isolamento e esse
homem, pobre em experiências comunicáveis passa a experimentar um distanciamento das
relações humanas, consequência do crescente individualismo e da alienação da própria vida.
A questão para Walter Benjamin é evidenciar o valor e importância de nosso
patrimônio cultural e que a perda da experiência coletiva dessa tradição não mais vincula esse
patrimônio à experiência de toda a humanidade. Os novos valores culturais nos conduzem a
uma subtração de honradez que denuncia a nossa experiência de pobreza; perdemos o
patrimônio humano em troca do " atual". Qual poderia ser o valor de todo o nosso patrimônio
cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? Surge assim uma nova barbárie. Mas,
Walter Benjamin faz questão de sublinhar que no exílio do homem moderno surge um
conceito novo e positivo de barbárie onde não há somente perdas, mas novos significados.
Novos significados, que, Baudelaire demonstrou em seus poemas ao revelar o lado épico da
vida presente na modernidade de Paris do século XIX. Pois, o resultado da pobreza de
experiência impele o homem a partir para novos projetos. Possibilidades mais livres para a
criação estética que se apresentam para a construção de muitas obras. Entre os grandes
pensadores e artistas sempre existiram homens que ousaram partir de uma tábula rasa. A
característica desses homens é construir, mesmo partindo de uma desilusão com o momento
histórico em que vivem, mas acreditando sempre em um recomeço em o indivíduo possa dar
um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua também com humanidade.
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IV. Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume I: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. “Experiência e pobreza” e “O narrador”. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume III: Charles Baudelaire um lírico no auge do
capitalismo. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.