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Canção do destino, Kama Sywor Kmanda (poeta congolês) De 3 a 16 de Setembro de 2012 | Nº 12 | Ano 1 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 PATRIMÓNIO CULTURAL Pag. 14 - 15 FESTINETO Pag. 4 - 9 ECO DE ANGOLA Pag. 2 ARTES DIÁLOGOINTERCULTURAL Agostinho Neto formação e ideário de um intelectual orgânico africano Da Xicala à Mutamba: contrastes de Luanda Francisco Costa Alegre “Não somos puros, mas sim uma mestiça- gem muito complicada” Francisco Costa Alegre “Não somos puros, mas sim uma mestiça- gem muito complicada” Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua abolição “Em Agostinho Neto, qualidades pessoais como audácia, orgulho e auto-estima enquanto africano, a assunção do compro- misso político e as formulações teóricas sobre a libertação e o nacionalismo traduzem o culminar de um longo processo de formação.” Reabriu o Museu regional do Dundo Pag. 29 Pag. 24-25 Pag. 18-19

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Canção dodestino,

Kama SyworKmanda

(poeta congolês)

De 3 a 16 de Setembro de 2012 | Nº 12 | Ano 1 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00PATRIMÓNIO CULTURAL Pag. 14 - 15

FESTINETO Pag. 4 - 9

ECO DE ANGOLA Pag. 2 ARTES DIÁLOGO INTERCULTURAL

Agostinho Neto formação e

ideário de umintelectual orgânico africano

Da Xicala àMutamba:

contrastes deLuanda

FranciscoCosta Alegre“Não somos

puros, mas simuma mestiça-

gem muitocomplicada”

FranciscoCosta Alegre“Não somos

puros, mas simuma mestiça-

gem muitocomplicada”

Dia Internacionalda Memória do Tráfico de Escravos e dasua abolição

“Em Agostinho Neto, qualidades pessoaiscomo audácia, orgulho e auto-estima

enquanto africano, a assunção do compro-misso político e as formulações teóricassobre a libertação e o nacionalismo traduzem o culminar de um longo

processo de formação.”

Reabriu o Museu regional do Dundo

Pag. 29Pag. 24-25Pag. 18-19

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CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe | José Luís MendonçaEditor de Letras | Isaquiel CoriEstudos, Recensões e Resenhas |Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Assistente Editorial: | Berenice RochaFotografia | Paulino Damião (Cinquenta) e Arquivodo Jornal de AngolaArte e Paginação | Tomás Cruz, Sandu Kaleia,Ines Quingando e Alberto Bumba

COLABORAM NESTE NÚMERO:

Angola Emanuel Caboco, Filipe Zau, J.A.S. Lopito FeijóoK., João N’gola Trindade, Joaquim Aguiar, JohnnyKapela, Luís Kandjimbo, Nilton André, NorbertoCosta, Patrício Batsîkama, Simão Souindoula,XiminyaCabo Verde | Nuno RebochoBrasil | Antônio Moura, Salgado MaranhãoRepública Dominicana | Carlos Hernández Soto

FONTES DE INFORMAÇÃO:

AGULHARevista de cultura, São Paulo, BrasilCorreio da UNESCO, Paris, FrançaAFRICULTURES, Portal e revista de referênciadas culturas africanas, Les Pilles, FrançaMODO DE USAR & CO., revista de poesia sonora evisual, em vídeo, e também escrita. Editada por An-gélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ri-cardo Domenec, Rio de Janeiro, Brasil

3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura2 | ECO DE ANGOLA

Conselho de AdministraçãoAntónio José Ribeiro |presidenteAdministradores Executivos |Catarina Vieira Dias CunhaEduardo MinvuFilomeno ManaçasSara FialhoMateus Francisco João dos Santos JúniorJosé Alberto DomingosAdministradores Não Executivos |Victor SilvaMateus Morais de Brito Júnior

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CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

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Nº 12/Ano I/ de 3 a 16 de Setembro de 2012E-mail: [email protected] / Telefone e Fax: 222 01 82 84

Um jornal quinzenal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento.

NORMAS EDITORIAISO Jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais. Todos os autoresque apresentarem os seus artigos para publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Após aná-lise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serão comunicados aos autores.Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem, ainda, ser en-viados no formato em que foram elaborados e também num ficheiro separado.

Kama Sywor KAMANDA, poeta, escritor, contador de histórias, dramaturgo; nascido em Luebo, na República Democrática do Congo, em 11de Novembro de 1952. Diploma do Estado em Literatura, 1968; diploma em Jornalismo, Escola de Jornalismo, Kinshasa, Congo, 1969; diploma emCiências Políticas, Universidade de Kinshasa, Congo, 1973; licenciatura em Filosofia e Humanidades (menção), Universidade de Kinshasa, Congo,1975; estudos de Direito, Universidade de Liège, 1981. Conferencista convidado em várias universidades no mundo e autor de críticas culturais epolíticas. Traduzido para inglês, italiano, japonês e chinês, recebeu o reconhecimento internacional da Academia Francesa (Prémio Paul Verlainee Premio Théophile Gauthier), Grande Prémio Literário da África Negra, Prémio Melina Mercouri, Associação dos Poetas e Escritores Gregos, Poetado Milénio 2000, Academia Internacional dos Poetas, Índia, entre outros.

Canção do destino

Vou onde me leva o vento da esperançae sigo o astro das existências incompletas.A canção do destino oprime a humanidade com os choros dos crentes.Livro dos mortos, orações dos discípulos,o rio se afasta com a minha languidez. Oh palavra sagrada prolonga a tua liberdadeaté à raiz dos amores verdadeiros.O mestre bêbado, o comandante louco,a minha ilusão absoluta de imitar os deuses,te oferta, oh mulher,levada pelo arrebatamento dos sonhose a vertigem das delícias sensuais,a imortalidade condicional.Miragem de todos os tempos,mar onde se bebem todas as paixões,composição natural do belo,Ah! Como o sol de todas as vidase o sangue de todos os desejos,tu simbolisas os milagres dos dias!O teu prazer vencido, as tuas ambições reveladase a tua sombra penetrada, encontras refúgiona alquimia dos sonhos.Infelizmente, ocultei minhas lágrimas na pedraquando os teus olhos se abriramao pavor trágico do declínio de coisas.Os rios vastos da fé

inundam a minha alma afligida e tremulanteno fluxo e refluxo do sonhocomo uma foice de ourono fundo de uma queda de água.E sobre o meu corpo passam e repassamas águas da História.(in ‘Les Résignations’, tradução de José L. Mendonça)

Kama Sywor KAMANDA (poeta congolês)

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1O poema “O verde das palmeiras da minha mocidade”, es-crito na Cadeia de Caxias no dia 26 de Fevereiro de 1955por Agostinho Neto, transporta na sua tessitura verbal sig-nos representativos de múltiplos estados psicológicos revela-dos pelo sujeito poético, enquanto síntese do sentir colectivo.Neto afirma que partia da sua terra natal “afagando o dedo da in-segurança”, deixava para trás o seio materno da Mãe-África, noqual se acostumara a beber, na sua vivência de homem negro es-tigmatizado pelo colonialismo, o manancial da Cultura, que lheconferia a emancipação (embora condicionada aos átrios da al-ma) pela via do humanismo, porta de entrada da igualdade uni-versal. A abertura do poema desenha um quadro macabro bio-vegetal e psicológico de sujidade, podridão das águas do rioKwanza, transbordante de troncos e vísceras, onde paira o me-do. E o poeta “fugia do verde/ do verde-negro das palmeiras/ daminha mocidade.”Numa estrofe desse longo poema, na penúltima estrofe, Netodiz, agora já com entusiasmo e fé: “E nos gritos embrionáriosdos velhos mundos/ tudo revive/esta dramática mocidade dereencontro/tudo revive em peitos largos de ansiedade/ofegan-tes à força da verdade/alicerçados no imperecível.”A visão das palmeiras inserida no poema de A. Neto conduz oleitor a uma aproximação estético-futurista com os versos dopoeta Ernesto Lara Filho, que, como Neto, também constrói sig-nos de um ideário que franqueia as portas do individualismocriador para a alegoria do colectivo: «Nós iremos, nós também/Minha mãe/ pisando o capim queimado/ pisando a areia daspraias/ atravessando os desertos/ Caminhando pelas lavras/ ederrubando florestas: Nós iremos, nós também plantar man-gueiras na Lua.”2O “verde das palmeiras” é retomado aqui, em toda a suasimbologia de esperança, fé, juventude e força, mas tam-bém fruto e tempo de festa, em suma, a idiossincrasia detodo um povo que fez com que o poeta não se deixasse alienarpelos caminhos do exílio e retroalimentasse a chama da lutacom a soma da africanidade que lhe corria nas veias. A gesta glo-riosa que se seguiu a essa fuga “do verde das palmeiras” da mo-cidade foi de uma estatura gigantesca e única na História deÁfrica. Nas horas do sofrimento mais íntimo, encerrado entre asgrades da prisão, o poeta visionava a paisagem da sua terra e es-crevia: “O verde negro das palmeiras tem beleza!”3Passados que são 56 anos desde a partida de Neto parauma gesta que culminaria com o içar da bandeira no largo1º de Maio (hoje da Independência) no dia 11 de Novem-bro de 1975, nós, os poetas da Angola livre, recolhemos no ver-de-negro das palmeiras da nossa terra, aquela “estratégia épica,colectiva, para o povo angolano e um sentido pragmático da his-tória”, como bem referenciou o professor Pires Laranjeira.Eis-nos, pois, homens deste futuro poetizado em versos magní-ficos por aquele que partiu um dia “sorridente e triste/deixandoo espírito espezinhado nos currais abandonados”, eis-nos digni-ficados aqui e agora, com as mãos cheias dos signos que ele noslegou indo “para mais alto”, até à Lua, onde a alma do poeta con-seguiu plantar não só mangueiras, mas também “o verde-negrodas palmeiras”.

ECO DE ANGOLACanção do destino | Kama Sywor KAMANDA (poeta congolês) Plantar palmeiras na lua | José Luís Mendonça

FESTINETOAgostinho Neto: formação e ideário de um intelectual orgânico africano | Luís KandjimboDia do Herói Nacional - A marcha, a navalha de Agostinho Neto | Johnny Kapela

PATRIMÓNIO CULTURALDondo: uma vila que persiste ao tempo e à memória | Emanuel CabocoReabriu o Museu Regional do Dundo: a primeira e maior instituição museológicade Angola | Joaquim Aguiar

LETRASOs longos dias de resistência (a estreia de Kanda) | J.A.S. Lopito Feijóo K.Mbânza Kôngo entre 1491-1885 | Patrício Batsîkama

ARTESDa Xicala à Mutamba: contrastes de Luanda | fotografias de Paulino Damião (50)

GRAFITOS NA ALMAA introdução das línguas maternas angolanas no sistema de ensinoe a democratização da cultura | Norberto CostaSerá a religião um instrumento de dominação? | João N’gola Trindade

DIÁLOGO INTERCULTURALFrancisco Costa Alegre: “Não somos puros, mas sim uma mestiçagemmuito complicada” | Matadi MakolaJean-Joseph Rabearivelo (1901 - 1937). Arte longa, vida breve |Antônio MouraDia Internacional da Memória do Tráfico de Escravose da sua abolição |Carlos Hernández SotoO Amado do Brasil |Salgado MaranhãoElinga Teatro é chamariz - Mindelact: arranca no Mindelo durante 8 dias |Nuno Rebocho

BARRA DO KWANZAUm cinturão | conto de Graciliano Ramos

NAVEGAÇÕESKudilonga - O lápis da menina-professora | XiminyaMar de Margaridas | Filipe Zau

Sumário

Plantar palmeiras na lua

ECO DE ANGOLA | 3Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

José Luís Mendonça

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Introdução Três proeminentes intelectuais nige-rianos fazem alusões ao pensamentoe acção de Agostinho Neto, associan-do-lhe circunstâncias que convocama condição africana.Em 1960, falan-do da situação do escritor africano naConferência Afro-Escandinava de Es-critores, em Estocolmo, Wole Soyin-

ka toma como exemplo o escritor an-golano, quando se refere ao contextodesumanizante vivido no século XX.No seu horizonte estão certamenteas experiências de privação da liber-dade por que tinha passado Agosti-nho Neto cuja notoriedade públicasuscitara uma campanha internacio-nal apoiada por intelectuais de diver-sas origens.

Agostinho Neto: formação e ideáriode um intelectual orgânico africano

4 | 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

Luis Kandjimbo

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Em 1981, a revista Okike (An Afri-can Journal of New Writing), publica-da em Nsukka, Anambra State, su-doeste da Nigéria, sob a direcção edi-torial de Chinua Achebe, presta umahomenagem a Agostinho Neto, dedi-cando-lhe o seu número 18, em que sedestaca o poema escrito pelo eminen-te escritor nigeriano. Num texto consagrado à descoloni-zação da teoria e da crítica africana,publicado em 1990, na revista ameri-cana Research in African Literatures, oprofessor nigeriano Biodun Jeyifoconsiderava que os textos doutriná-rios de Agostinho Neto sobre a culturanacional e a literatura podiam perten-cer à categoria do «discurso literárionacionalista». Trata-se de textos dediscursos proferidos num contextoinstitucional, por ocasião da tomadade posse dos órgãos directivos daUnião dos Escritores Angolanos.Em Agostinho Neto, qualidades pes-soais como audácia, orgulho e auto-estima enquanto africano, a assunçãodo compromisso político e as formula-ções teóricas sobre a libertação e o na-cionalismo traduzem o culminar deum longo processo de formação. Aavaliação de tais qualidades exige umconhecimento da genealogia do seupensamento. O momento genealógicoinicial há-de situar-se na década de 40do século XX. Aos efeitos socializado-res dos meios de referência associa-seum programa que começa a concreti-zar-se a partir da publicação de doistextos de opinião em O Estandarte,jornal da Igreja Metodista, nomeada-mente A Nova Ordem Começa EmNossa Casa e A Paz Que Queremos,entre 1944 e 1945. Mas é com Instru-ção ao Nativo, publicado igualmenteem O Estandarte em 1945 e com Umacausa psicológica: A marcha para o ex-terior” e Uma necessidade, publica-dos no jornal O Farolim, em 1946, queo discurso nacionalista revela as mar-cas do nativismo angolano das primei-ras décadas do século XX. Justifica-se,por issso, o desenvolvimento de umaabordagem que privilegie a genealo-gia do pensamento, no quadro maisamplo da história intelectual de Ango-la. Angola nas primeiras décadas doséculo XX: o contexto político e so-cialDurante a primeira década do sé-culo XX registam-se factos políticos derelevo que produzem fortes impactosna sociedade colonial angolana. A im-plantação da República em Portugal,em 1910, e a aprovação do Acto Colo-nial, em 1930, no contexto político doEstado Novo em Portugal, darão lugara um conjunto de reformas políticas eadministrativas nos territórios colo-niais, incidindo particularmente so-bre o estatuto das colónias, a impren-sa e a educação.A institucionalização do ensinosecundário oficial ocorreu apenas em

1919 com a criação do Liceu SalvadorCorreia, em Luanda. Tal facto deve serassinalado. Representa um momentode viragem na formação das elites an-golanas, no âmbito de um processoque corresponderia às necessidadesde uma administração moderna, aoabrigo dos valores republicanos deque decorrem o exercício efectivo dedireitos e liberdades. O surgimento deuma camada social de angolanos quese pretende afirmar como uma eliteque toma consciência da situação dedominação colonial estará na origemdo desenvolvimento do jornalismo eda literatura nesse período.Portanto, o emprego e a ocupaçãode cargos no funcionalismo público, oassociativismo, a propriedade de jor-nais e a escrita (literária e jornalística)constituíam quatro dos mais impor-tantes instrumentos da defesa dos in-teresses angolenses que revelam bema recepção do republicanismo e dascorrentes estéticas e ideológicas quedominam os panoramas literáriosbrasileiros, portugueses e europeusem geral. Estes são os vectores em quese analisa o nativismo literário ango-lano.Em 1922, Catete, a sede da circuns-crição civil de Icolo e Bengo, tinha aca-bado de ser abalada por uma RevoltaNativista Camponesa que eclodira emFevereiro. O pastor e professor Agosti-nho Pedro Neto, seu pai e um catequis-ta Manuel André, ambos da Igreja Me-

todista, apoiando a revolta, eramsubscritores de um abaixo-assinado,datado de 10 de Fevereiro. O encarre-gado na Missão Americana em Mazo-zo, Sebastião Gaspar Domingos, en-volvido na colecta de dinheiro desti-nado ao advogado, fora alertado paraque se afastasse do turbilhão da revol-ta por ordem do bispo Robert Shields,bispo da Igreja Metodista e Directordas Missões Americanas.O mentor intelectual da Revolta Ca-tete era um advogado provisionário,jornalista, escritor e dirigente de asso-ciações nativistas. Por essa razão, foiindiciado como principal arguido deum dos mais célebres processos de in-vestigações policiais que tiveram lu-gar nas primeiras décadas do séculoXX. Trata-se de António de Assis Jú-nior. Por ocasião da vaga de prisões,buscas e apreensões, motivadas pelosAcontecimentos de Catete, António deAssis Júnior, com 44 anos de idade, eradirector do conhecido jornal O Ango-lense.Preso em Fevereiro de 1922, comoarguido do processo de averiguaçõesadministrativas nº 293, é mantido emprisão durante três meses, sem culpaformada. Quatro dias depois eram de-tidos os trabalhadores «indígenas» deCatete que se tinham deslocado aLuanda para apresentar reclamaçõesao Alto-comissário da República, as-sessorados por esse tribuno conheci-do como «advogado dos nativos».

Negando qualquer papel de instiga-dor e autoria de prelecções de propa-ganda contra o governo, António deAssis Júnior reconhecia que tinha sidocontactado para redigir uma exposi-ção, através da qual os operários agrí-colas «pretendiam que fossem ouvi-dos sobre os castigos corporais queem Catete lhes são aplicados, prisõesarbitrárias que sofrem, trabalho obri-gatório que executam por cinquenta edois dias em casas particulares, retri-buição de vinte centavos diários querecebem no Posto Algodoeiro, aboli-ção do pagamento de Imposto Indíge-na a crianças de dez e doze anos, etc.».Antes da deslocação dos referidoscamponeses a Luanda, António de As-sis Júnior, na qualidade de director dojornal O Angolense, tinha redigido epublicado um artigo acerca dessesacontecimentos. Sobre ele pesava en-tão a acusação da prática de um crimede tentativa de «revolta indígena». Pa-ra que não lhe fosse imputada qual-quer responsabilidade enquanto esti-vesse preso, apresentou dois requeri-mentos ao Alto-comissário de Portu-gal em Angola em que constrói argu-mentos de uma retórica de ilibação. As actividades desenvolvidas porAntónio de Assis Júnior, entre 1920 e1922, permitem concluir que era o lí-der de um grupo numeroso. As buscase apreensões de que tinha sido alvo, ti-nham permitido recolher documentosdiversos, arrumados em oito volumes.As autoridades coloniais identifica-vam aí a existência de uma causa re-mota. Na verdade, a causa era bemmais antiga do que parecia.A conclusão das averiguações ins-tauradas em 1922, apontavam para aiminência de uma rebelião fundadanuma doutrina e propaganda nativis-tas cujos focos de agitação se espalha-vam pelas cidades e regiões mais im-portantes do território, tais comoBenguela, Cabinda, Luanda, Malanje,Mossamedes, Ndala Tando. Com umarede impressionante de contactos queculminava com a publicação de jor-nais, entre os quais A Lunda, Angolen-se e A Verdade. Entre as figuras impli-cadas destacam-se: António de AssisJúnior (director de O Angolense), An-tónio Joaquim de Miranda (que se en-contrava desterrado em Cabinda, anti-go colaborador de A Lunda e Era Novade Malanje), A. Figueiredo, CustódioBento de Azevedo (Sassa, Alto Dan-de), Gervásio Ferreira Viana ( NdalaTando), João Pedro de Sousa (Ben-guela), José Carlos Oliveira ( Mossa-medes, ex-presidente da Liga Angola-na), Narciso Espírito Santo (santo-mense, director de A Verdade), padreManuel (Paço Episcopal em Luanda).Durante os anos 20, registam-serestrições e inibições ao exercício dasliberdades como resultado da implan-tação da ditadura com o Estado Novoem Portugal. É sobre este fundo mar-cado por um «longo silêncio» que An-tónio de Assis Júnior (1878-1960),após a publicação de Relato dos Acon-

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tecimentos de Dala Tando e Lucala(1917), uma narrativa e ao mesmotempo um testemunho sobre a repres-são de acções de reivindicação, a quese denominou revolta dos nativos, cu-jos actores constituíam um grupo daelite local de que ele próprio fazia par-te, dá à estampa em 1934 O Segredo daMorta, o romance inaugural angolano. Observados os traços estruturan-tes do pensamento e das ideias produ-zidas em Angola nesse período, da ge-ração de Assis Júnior não se transitadirectamente para a geração de Agos-tinho Neto. De resto, bastará notar adistância cronológica que separa asdatas de nascimento de ambos os au-tores. Há pelo menos uma geração in-termédia representada pelo ensaístaLourenço Mendes da Conceição. Natu-ral da vila da Muxima (Kakungu), nas-ceu em 29 de Dezembro de 1896, ten-do falecido em Luanda em 29 de Junhode 1970. Publicou: Três Mestres daMinha Predilecção (Lisboa, 1948);Porque se Escreve Luanda com “U”,(Luanda, O Apostolado, 1943). 1922-1930. De Kaxicane a Luan-

daAgostinho Neto nasceu às cinco ho-ras do dia 17 de Setembro de 1922 emKaxicane, localidade da circunscriçãocivil de Icolo e Bengo cuja sede se en-contrava situada em Catete. Nessa da-ta o pai era pastor da chanada «MissãoAmericana de Luanda», tendo sido or-denado presbítero em 1925. Em 1930a família fixa residência no BairroOperário, em Luanda, onde seu pai as-sumiria a responsabilidade de chefiaro colectivo local de pastores da IgrejaMetodista. Crónica da formação e morte do paiOs estudos primários e liceais de-correm entre 1931 e 1944. Com o jor-nal O Estandarte podemos elaboraruma crónica da sua formação em An-gola. Na edição de 3 de Fevereiro de1934, refere-se que tinham concluído«com brilho os seus estudos primá-rios nos exames efectuados na EscolaPrimária nº7 de Sousa Coutinho, osalunos da Escola Primária Evangélicadesta cidade, com as classificações se-guintes: Américo de Souza, 18 valores(distinto); António Agostinho Neto,18 valores (distinto). Já em Janeiro de1935, o mesmo jornal, dava conta deum outro facto. A transição para a 2ªclasse do Liceu desta cidade dos «me-ninos Alberto Marques e AntónioAgostinho Neto. A estes meninos queforam felizes nos seus estudos as nos-sas felicitações». Os referidos alunos aque se juntava o nome de Simão Toco,no ano lectivo de 1936, como testemu-nha O Estandarte de Março de 1936estavam matriculados na 2ª classe doLiceu. A década de 30 chegava ao fim,quando em Fevereiro de 1939 seanuncia a realização com sucesso doexame do 1º ciclo (3º ano) do Liceu domenino António Agostinho Neto com

a classificação de 13 valores.Conclui com 15 valores o Curso deCiências do 7º ano do Liceu nos exa-mes realizados em 1944, anuncia comorgulho O Estandarte de Fevereiro de1944, nº 95: «Nos exames do 3º ciclorealizados em Janeiro do corrente ano,concluiu o 7º ano de Ciências com 15valores, o nosso prezado irmão na fé,sr. António Agostinho Neto […]». A re-dacção de O Estandarte de Novembroe Dezembro de 1943 (nº92/93) desta-ca o nome de Agostinho Neto na gale-ria de colaboradores permanentes:«Desde a sua fundação-1933 até 1943teve os seguintes colaboradores: […]colaboradores permanentes […] An-tónio Victor de Carvalho, AntónioAgostinho Neto […] Domingos F. daSilva, Gaspar de Almeida». Setes me-ses antes da sua integração nos qua-dros do funcionalismo público dosserviços de saúde, o seu estado dedoença fora noticiada por O Estandar-te de Junho/Julho, 1944, (nº99/100):«Já se encontra felizmente melhor dosseus padecimentos o nosso prezadoirmão e colaborador, sr. António Agos-tinho Neto».Durante o ano de 1946, O Estandar-te relata igualmente a doença, a ago-nia e a morte do pai de Agostinho Ne-to, o Reverendo Agostinho Pedro Neto.O Estandarte de Maio, 1946, nº121 es-creve: «Há dois meses que o nossoprezado irmão Rev. Agostinho PedroNeto, pastor do circuito dos Dembos,jaz no leito gravemente doente. Os clí-nicos têm-no rodeado com os seus cui-dados, dispondo-lhe todos os recur-sos do seu saber; os crentes que estãoao facto do estado desse nosso queri-do irmão estão orando […]». Na ediçãonº 121 de Maio de 1946, lê-se: «Tive-mos o prazer de abraçar a este nossoprezado irmão e apreciado colabora-dor, vindo de Malange, a fim de visitar

o seu querido Pai, que se encontra bas-tante doente». Por fim a notícia damorte. O Estandarte de Junho, 1946,nº122, escreve: «Faleceu o Rev. Agos-tinho Pedro Neto. Depois de um sofri-mento de cerca de três meses, dormiuno Senhor, em 21 do corrente mês, nasua residência, Bairro Operário, o nos-so querido irmão Rev. Agostinho Pe-dro Neto, Pastor do Circuito dos Dem-bos». O reverendo Agostinho PedroNeto era natural de Kalomboloca. Foipastor evangélico e professor primá-rio em Kaxicane onde foi colocado em1918.Em 1925 foi ordenado Presbíte-ro. Do funcionalismo público à activi-dade tribuníciaEm 1944, O Estandarte, na sua edi-ção de Novembro/Dezembro, 1944,nº105, anunciava que Agostinho Netoiria ocupar o seu cargo no funcionalis-mo púbico para o qual tinha sido no-meado. E, no comboio do dia 3 de No-vembro, seguira para Malange, «o nos-so benquisto irmão, Sr. António A. Ne-to, cuja ausência sentimos, pois quealém de possuir elevados dotes, foitambém um assíduo colaborador donosso jornal. Esperamos que de Ma-lange, continue a honrar «O Estandar-te», com a mesma colaboração». Noano seguinte, na sua edição nº118 deDezembro de 1945, O Estandarte, da-va uma outra notícia: «Estando de li-cença disciplinar, veio passar o Natalao seio da família, vindo de Malange, onosso prezado irmão e amigo, AntónioAgostinho Neto, ilustre funcionário doQuadro de Saúde, a quem tivemos oprazer de abraçar». Meses antes seuirmão, Pedro Agostinho Neto tinha si-do colocado como amanuense nosServiços de Saúde e Higiene do Bié, co-mo se lê em O Estandarte, Setembro/

Outubro de 1944, na edição nº104.Por sua vez Agostinho Neto seriaigualmente transferido para o Bié, lo-go depois.Portanto, Agostinho Neto, perten-cendo à primeira geração pós-nativis-ta angolana, inscreve-se por direitopróprio na lista de legatários da tradi-ção nativista em que perfilam ilustrestribunos e publicistas angolanos. Con-tava então 23 anos de idade, quandoescreveu o seu primeiro texto de pen-dor pós-nativista. Nas décadas de 30 e40, frequenta os meios socializadoresprotestantes existentes em Luanda,designadamente, a escola da IgrejaMetodista e o jornal O Estandarte. Oseu percurso escolar é narrado no re-ferido jornal, como vimos, através denotícias a respeito dos seus êxitos es-colares e outros factos como a doençae a morte do pai, entre 1934 e 1946.Na primeira metade da década de 40,Agostinho Neto publica alguns poe-mas e artigos de inspiração religiosano jornal O Estandarte. Neste mesmojornal pontificava seu pai, publicandotextos como O Segredo da Paz em1936 e É preciso divertir a JuventudeEvangélica em 1944. Em 1940, publica O Segredo de Vi-ver e em 1943 publica As multidõesesperam em O Estandarte. De 1944 a1959, escreve e publica artigos mar-cantes no âmbito da história intelec-tual angolana, a saber:A Nova Ordem Começa Em Casa(1944);A Paz que Esperamos (1945); Instrução ao Nativo (O Estandarte,1945); Uma Causa Psicológica: a “Marcha pa-ra o Exterior” (1946); Uma Necessidade (1946);Da Vida Espiritual em Angola (1949,Meridiano)O Rumo da Literatura Negra (Centro

Agostinho Neto com os pais e irmãos (último em pé do lado direito)

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Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

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| 7de Estudos Africanos, 1951); A propósito de Keita Fodeba (Angola,Revista da Liga Africana, 1953);Introdução ao Colóquio sobre PoesiaAngolana (1959). O lugar de Malanje na consolidaçãodos ideaisDas gerações de nativistas já refe-ridas, Agostinho Neto recebe o teste-munho pela mão de vários dos seusprotagonistas, entre os quais merecereferência José Manuel da Silva Lamei-ra. Foi em Malanje que o jovem intelec-tual travou conhecimento com essalendária figura do movimento nativis-ta angolano, sucessivamente preso edesterrado para a Guiné-Bissau, Mo-çambique, Macau e Timor-leste, du-rante mais de uma década, de 1917 a1938.No seu livro de memórias, Recorda-ções Minhas, José Diogo Ventura contaque o «velho Lameira recebia na suaresidência da «Kapopa», junto à Rua15 de Agosto, muitas pessoas impor-tantes que gostavam de o ouvir […]Lembro-me também de uma outrapessoa porque, mais tarde, veio a ser oprimeiro Presidente da República Po-pular de Angola. Trata-se do Dr. Antó-nio Agostinho Neto, na sua passagempor Malanje, ainda como aspirantedos Serviços de Saúde e Higiene». Ostextos escritos provavelmente em Ma-lanje e enviados para publicação em

1946 no jornal O Farolim ecoam ideaistributárias de conversas com José Ma-nuel da Silva Lameira. É significativo otestemunho de Domingos Van-Du-nem, então secretário de redacçãodesse jornal, a respeito das circuns-tâncias em que recebe a visita deAgostinho Neto. Tal gesto exprimiauma reacção ao comentário sarcásticorelativamente às atitudes preconcei-tuosas dos funcionários públicos for-mados no Liceu. Agostinho Neto quefalava igualmente em nome de umamigo seu, Joffre Van-Dúnem, preten-diam «pedir explicações ao atrevidoescriba». Numa entrevista que concedeu aAugusta Conchiglia, Agostinho Netoobserva:«Também em Malanje vivi uma expe-riência magnífica. Fiz amizade comum grupo de pessoas que, em minhaopinião, não se interessavam nada porpolítica, enquanto para mim a situa-ção de Angola impunha essa preocu-pação. Mas entre em contacto com ostrabalhadores, com os contratados, efoi lá que eu senti verdadeiramente ecom força a violência dos reaccioná-rios portugueses. Os anos que vivi emMalanje com toda a certeza influírammuito na minha formação política».Actividade reflexiva e ideias recor-rentesMarcado pela formação cristã e

evangélica, Agostinho Neto manifestaclaramente os seus ideais, nos doisprimeiros textos publicados em O Es-tandarte, nomeadamente A Nova Or-dem Começa Em Nossa Casa e A PazQue Queremos, entre 1944 e 1945.Lança aí o seu programa intelectual edefine os contornos da sua personali-dade.É com Instrução ao Nativo, um outroartigo publicado em O Estandartetambém em 1945, Uma causa psicoló-gica: A marcha para o exterior” e Umanecessidade, estes publicados no jor-nal O Farolim, em 1946, que o nativis-mo da fase inicial se revela no pensa-mento deste autor. Se confrontarmosas ideias recorrentes dos dois textosanteriores, observa-se uma coerênciano plano da articulação.Uma das ideias nucleares em Ins-trução ao Nativo consiste na denúnciada injustiça, reivindicando para os na-tivos a qualidade de beneficiários,pois a instrução é necessária «ao povode rodas as regiões de Portugal».Agostinho Neto levantava aqui «o pro-blema do aumento do nível de instru-ção aos naturais». Em seu entender, évisível a discriminação cuja aboliçãodefende. Por essa razão, observa: «Àparte o desenvolvimento escolar quese vem notando nos grandes aglome-rados de população europeia e o inte-resse posto na educação da criançabranca, nada, no sentido de se instruiro natural tem sido feito».

Como exemplo de iniciativas quecontribuíam para a alteração desse es-tado de coisas, aponta o que faziam as«Missões Religiosas», particularmen-te as «Missões Evangélicas» de cujasescolas «têm saído muitos dos nativosque hoje exercem funções públicas,são professores, pastores de igreja euma boa parte da massa do operaria-do nativo, bem como alguns euro-peus».Diante dos exemplos das igrejasque entretanto se debatiam com pro-blemas de ordem financeira e a indife-rença das autoridades do chamado«Império colonial», Agostinho Netoentendia que mais poderiam estas es-tas fazer «desde que haja verdadeirointeresse em resolver-se, ou, pelo me-nos em aumentar o número de possi-bilidades de o nativo se instruir, con-tratar mais professores e abrir maisescolas». Continuando a revelar a sua quali-dade de membro da igreja evangélica,sublinha o papel que a sociedade me-todista podia desempenhar com ofundo projectado para beneficiar osnativos. Mas não fora consentido pelogoverno colonial.Os textos publicados em O Estan-darte, poderiam eventualmente ter si-do escritos pelo autor tendo exclusiva-mente como destinatários a comuni-dade metodista e evangélica, apesarde o seu teor ser de alcance mais geral.Uma Causa Psicológica: A ‘Marcha’

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3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura8 |para o Exterior marca a sua colabora-ção num jornal que, na década de 40,seguia ainda as tradições do séculoXIX. Trata-se de um artigo publicadono jornal O Farolim em 1946. Lido e si-tuado no seu contexto, é um texto re-velador de elevada maturidade. Comele Agostinho Neto dá consistência aideias anteriores. Mas evolui, na medi-da em que diagnostica a falta de uni-dade entre «os elementos da classenativa» que têm tendência para se iso-larem uns dos outros. Palpitando emsi um certo tipo de ideal, AgostinhoNeto constata o perigo que espreita:«É paradoxal a desunião entre nós, na-tivos, que, para não citar outros aspec-tos do interesse comum têm que lutarcoesos pela sua economia e pelo au-mento do seu nível cultural.»Do seu ponto de vista, a fraqueza daclasse nativa reside na «psicologia dis-torcida» que se manifesta no cego se-guidismo das modas entre os jovens.Mas tal facto não é fortuito, pois «a de-sunião entre os nativos não é poste-rior à fabricação em série do rapazmoderno». Por conseguinte, a desu-nião é simultânea. Ao mesmo tempoque «a mulher africana moderna assi-milando a inobjectividade da vida, dis-semelhando-se da avózinha pacata-mente crocheteante, adoptando a des-preocupação, o bâton, a sola de cortiçae a saia ascendente; deixou-se apenasarrastar pelo movimento geral quetransformou o homem, que (digamo-lo de passagem) é difícil ser- se rebel-de!».A distorção da psicologia colectiva ea desunião não ocorrem ao acaso. Tema sua causa fundamental na estruturado ensino ministrado. «Os nativos são educados como setivessem nascido e residissem na Eu-ropa. Antes de atingirem a idade emque são capazes de pensar sem esteio,não conhecem Angola. Olham a suaterra de fora para dentro e não ao in-vés, como seria óbvio. Estudam na es-cola, minuciosamente, a História eGeografia de Portugal, enquanto que,da Colónia, apenas folheiam em sinop-ses ou estudam levemente».E qual é a consequência disso?Agostinho Neto responde: «Os indi-víduos assim formados têm a cabeçasobre vértebras nativas, mas o seuconteúdo escora-se em vértebras es-tranhas, de modo que as ideias, as ex-pirações do espírito são estranhas àterra. Daí o olhar-se esta, a sua gente ehábitos, o mundo que os rodeia, comoestranhos a si – de fora (…)» «Produz-se no nativo uma distorçãona sua personalidade que se reflectena vida social, desequilibrando-a.»Semelhante atitude acaba por estarem consonância com o reducionismoocidental e eurocêntrico:Lá fora há o hábito de depreciar quan-to é nativo; e os moços nativos cujosespíritos derivaram para o exterior eem quem está atinente um quantumde vaidade (como em qualquer ser hu-mano) têm vergonha em considerar-

se incluídos naquela esfera deprecia-da e não somente não a auxiliam comoprocuram desprezar as iniciativas decarácter puramente nativo […]É de igual modo em Uma causa psi-cológica: a marcha para o exterior quelemos o seguinte trecho: A minha pouca experiência impediriaque a voz chegasse ao céu se eu desseconselhos. Acho, porém, que a mezi-nha apropriada para anular os efeitosperniciosos bastante do eurotropis-mo seria começar por ‘descobrir ’ An-gola aos novos, mostrá-la por meio deuma propaganda bem dirigida, paraque eles, conhecendo a sua terra, oshomens que a habitam, as suas possi-bilidades e necessidades, saibam oque é necessário fazer-se, para depoisquerer». Os textos escritos por AgostinhoNeto na segunda metade da décadade 50, designadamente, Rumo da Li-teratura Negra e Introdução ao Co-lóquio sobre poesia Angolana, repre-sentam o registo de um pensamentoenriquecido pela largura de horizon-tes que, superando os discursos tipi-camente nativistas, não são rigorosa-mente negritudinistas, como pareceser o entendimento de Pires Laran-jeira, numa eqívoca generalizaçãoacerca da existência da «negritudeafricana de língua portuguesa». EmIntrodução ao Colóquio sobre PoesiaAngolana, Agostinho Neto escreve:«Entre nós, digo, em Angola e na Me-trópole, defendeu-se e combateu-seeste conceito».Trata-se do conceitode negritude nos termos formulados

por Leopold Senghor. No discursoproferido na Universidade de Dar-Es-Salam,em 1974, retoma esse tópico,afirmando o seguinte: «O conceito literário de negritude,nascido das correntes filosófico-lite-rárias que fizeram a sua época, com oexistencialismo e o surrealismo, pôscom acerto o problema da conscien-cialização cultural do homem negrono mundo, independentemente daárea geográfica em que ele se disper-sou.Conjuntamente com a ideia do pana-fricanismo, o conceito de negritude,começou a um certo momento, a fal-sear o problema negro».Inscrição social de um intelectualorgânicoNo mês de Setembro de 1947,Agostinho Neto embarca para Lisboa.E no ano lectivo 1947-48, era estudan-te de Medicina, matriculado na Uni-versidade de Coimbra. Após a conclu-são do 3º ano do Curso, em 1950, vaiprosseguir os estudos em Lisboa. Énesta cidade que sofre em 1952 a pri-meira das sucessivas prisões por ra-zões de ordem política. Aos vinte e oi-to anos de idade, revelava uma perso-nalidade audaz e combativa, uma forteconsciência cívica e profunda fidelida-de aos valores africanos, inequivoca-mente comprometidos com as lutascontra o fascismo e o colonialismoportuguês. A maturidade política al-cançada vem coroar um longo proces-so de formação iniciado em Angola

que pode ser ilustrado por vários tes-temunhos. Um deles é o de Mário An-tónio. Recorrendo à memória, repor-ta-se a uma manifestação estudantilde 1945, na ressaca da II Guerra Mun-dial, que percorrera a zona da cidadealta em Luanda, contando com a pre-sença dois «ex-alunos» do Liceu Salva-dor Correia, «vestidos à adulta, comfatos azuis: um homem magro, já tra-balhando em repartição pública». EraAgostinho Neto. O outro «atlético esorridente». Era Américo Boavida.Em 1951, é criado o Departamen-to Cultural da Associação dos Naturaisde Angola. Segundo Mário António, «oque se fazia em Luanda naturalmenteganhava corpo intelectual com a parti-cipação de ausentes, entre eles, comose verá Mário Pinto de Andrade.» Con-firma-o a carta de António Jacinto aAgostinho Neto. No mesmo ano os es-tudantes africanos residentes em Lis-boa constituem um grupo de reflexãoa que designaram Centro de EstudosAfricanos de que fazem parte, entreoutros, Agostinho Neto, Amílcar Ca-bral e Mário Pinto de Andrade, o grupode pensamento mais politizado. A últi-ma sessão do Centro realizou-se em11 de Abril de 1954.Referindo-se à actividade de Agos-tinho Neto, na sessão de 23 de Dezem-bro de 1951, diz Mário Pinto de An-drade: «[…] Agostinho Neto, em asso-ciação com Humberto Machado, tinhatratado as Migrações dos negros afri-canos, compulsivas e não compulsi-vas, aculturação dos negros africa-nos». Mário Pinto de Andrade fazigualmente alusão a outros textos deAgostinho Neto, tais como Rumo daLiteratura Negra, uma crítica consa-grada ao romance Uanga de Óscar Ri-bas, em que se debruça sobre a noçãode ambaquista, além de traduções depoemas de Senghor.Quanto às influências desse grupo,Mário Pinto de Andrade destaca os es-critores negros americanos (CounteeCullen, Langston Hughes, RichardWright), poetas Antilhanos, Aimé Cé-saire, o cubano Nicolás Guillén, Ba-touala de René Maran . Entre as leitu-ras de referência há que reter o nomede Keita Fodéba cuja peça «Mestre-Es-cola» foi encenada pelo Centro de Es-tudos. E dele fala Agostinho Neto numartigo de 1953, publicado na revistaAngola da Liga Nacional Africana. No dizer de Mário Pinto de Andra-de, é «no Centro de Estudos Africanosque nasce a primeira ideia de criaçãode um grupo político baseado naque-les que estavam mais empenhados».Mais adiante, acrescenta: «[…] Éra-mos portanto Amílcar, Neto, Noémiade Sousa e Alda do Espírito Santo. Masesta organização tinha um nome par-ticular». Entretanto o Centro começa adesintegrar-se em 1953. Nesse anoparticipa no Festival Mundial da Ju-ventude Democrática e no III Congres-so Mundial dos Estudantes, realizadosem Bucareste e Varsóvia, respectiva-mente.

Agostinho Neto com os colégas da Casa dos Estudantes em Coimbra, Portugal

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Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 | 9A criação do Clube Marítimo Africa-no, em 1954, é uma iniciativa de estu-dantes e trabalhadores embarcadiçosafricanos, entre os quais se destacaAgostinho Neto que abandonaraCoimbra, passando a residir em Lis-boa como estudante da Faculdade deMedicina. As relações de sociabilidadecom as classes trabalhadoras estão nocentro das suas preocupações, tendofixado residência no bairro da Graça,onde habitavam os operários maríti-mos africanos.Até ao fim da década de 50, a trajec-tória biográfica de Agostinho Netopermitia já identificá-lo como um ho-mem de letras, irremediavelmentecomprometido com a luta anti-colo-nial e afirmação da cultura africana. Acategorização sociológica como inte-lectual orgânico decorre desse perfildominado pelas ideias, vinculando-o aactividades que desafiam directamen-te o poder colonial, tais como a partici-pação em redes de organizações polí-ticas portuguesas como o MUD-Juve-nil.O prestígio intelectual de AgostinhoNeto aumenta progressivamente.Noémia de Sousa, relata que após asua primeira prisão realizaram-semuitas reuniões, «uma série de gente»queria vê-lo, excepto o Francisco JoséTenreiro. O seu activismo político e asideias que o suportam permitem reco-nhecer que foi o primeiro intelectualorgânico e público da sua geração, ten-do sido alvo de sucessivas prisões dapolítica portuguesa, desde 1951. Em1955, viria a ser condenado a dezoitomeses de prisão pelo tribunal do Por-to. Cumprida a pena, em 1957, já em li-berdade, retoma os estudos. Obtém ograu de licenciado em Medicina pelaUniversidade de Lisboa em 1958. Re-gressa a Angola no ano seguinte, apósespecialização em Medicina Tropi-cal.Abre o consultório médico emLuanda e envolve-se na actividade po-lítica clandestina. Após a sua eleição,em 1960, como líder do MPLA, no inte-rior de Angola, volta a ser preso e de-portado para Cabo-Verde, em trânsitopor Bissau e Lisboa. Desencadeia-seuma campanha internacional para asua libertação na qual participam in-telectuais europeus como Jean-PaulSartre.Transferido para a cadeia doAljube em 1962, passa depois ao regi-me de residência fixa.Em 30 de Junhode 1962, concretiza-se a sua fuga dePortugal. Um ano depois, é eleito Pre-sidente do MPLA em Kinshasa.

O ideário da libertação nacional:entre o cultural e o políticoPara lá das dissensões políticasque abalaram o MPLA, na década de60 e 70, dando origem ao afastamentode Viriato da Cruz e Mário Pinto de An-drade, à Revolta Activa e à Revolta doLeste, Agostinho Neto não deixou decultivar a sua paixão pelas ideias, atri-buindo importantes tarefas aos inte-lectuais.Em concomitância com o

exercício da liderança política e en-quanto chefe de Estado, desenvolveuma importante actividade reflexivaque deve suscitar o interesse de qual-quer investigador da história contem-porânea de Angola. Os discursos proferidos nas Uni-versidades de Dar-Es-Salam (Tanzâ-nia), em 1974 e Lagos (Nigéria), em1977, a que se juntam outros proferi-dos na União dos Escritores Angola-nos constituem as principais referên-cias do discurso teórico sobre a liber-tação, o nacionalismo e a cultura. Lon-ge de qualquer ambiguidade, Agosti-nho Neto, na sua veste de Chefe de Es-tado, continuava a defender os ideaisde liberdade e dignidade do HomemAfricano, não perdendo de vista o lu-gar dos intelectuais nos processos demudança social.É por isso que o pro-fessor nigeriano Biodun Jeyifo consi-derava que os textos doutrinários deAgostinho Neto sobre a cultura nacio-nal e a literatura podiam pertencer àcategoria do «discurso literário nacio-nalista».Lamentavelmente, quando se pro-cede ao estudo do pensamento sobre alibertação nacional em África, é rarover o nome de Agostinho Neto inscritono elenco de autores. Semelhante si-tuação configura um caso de injustiçaintelectual que importa reparar. Talpretensão é manifestada pelo profes-sor nigeriano Olúfémi Táiwò no textodedicado à Filosofia Política Africanano Período Pós-Independência,publi-cado em A Companion to African Phi-losophy, editado pelo professor ga-nense Kwasi Wiredu. Olúfémi Táiwòinclui Agostinho Neto no elenco dosmarxistas africanos que se afirmamapós 1966.Com efeito, nas suas reflexões so-bre a libertação nacional, AgostinhoNeto introduz uma variante na abor-dagem do fenómeno. Em 1974, to-mando como referência o ponto de

vista de Amílcar Cabral , escreve: No fundo e como vários pensadorestêm afirmado, a luta de libertação na-cional é uma luta pela cultura. Mas eucreio que os laços culturais não evitamde modo algum a compartimentaçãopolítica». E acrescenta, mais adiante:«Este tem sido um ponto equívoco emmuitas manifestações ditas de liberta-ção nacional.Ao pretender estabelecer claramen-te as fronteiras entre o cultural e o po-lítico, Agostinho Neto reafirma a suaidentidade política com «a luta dospovos negros da América, lá onde seencontrem» e, ao mesmo tempo, con-sidera que tal solidariedade deve con-duzir à rejeição da «ideia de libertaçãonegra». Por isso, conclui: «sem con-fundir origens com compartimentospolíticos, a América é América, a Áfri-ca é África». Operando no quadro dopensamento panafricanista e no estri-to respeito pelas experiências vividaspelos africanos e diásporas africanas,Agostinho Neto evita a generalização.Sublinha a transversalidade da cultu-ra, mas considera que a sua dimensãopolítica valoriza a diferença dos con-textos em que tais experiências emer-gem.Apologia do debate e das ideias A apologia do debate e das ideias éuma eloquente expressão do modo co-mo Agostinho Neto interiorizava as ta-refas do intelectual, num país que aca-bava de alcançar a independência po-lítica. Por essa razão, entendia que «oescritor se deve situar na sua época eexercer a sua função de formador deconsciência, que seja agente activo deum aperfeiçoamento da humanida-de». Em 1979, sucessivamente, porocasião da tomada de posse dos cor-pos gerentes da União dos EscritoresAngolanos, realizada em Janeiro, e nasessão de encerramento da 6ª Confe-

rência dos Escritores Afro-Asiáticos,realizada em Julho, defendia o debatede idieas. E sustentava-o nos seguin-tes termos: Penso que é necessário o mais alar-gado possível debate de ideias, o maisamplo possível movimento de investi-gação, dinamização e apresentaçãopública de todas as formas culturaisexistentes no País, sem quaisquer pre-conceitos de crácter artístico ou lin-guístico.Reitera esse pensamento, quandofalava aos escritores africanos e asiáti-cos reunidos em Luanda, afirmando:Persistir na ideia do debate ésempre acertado, porquanto os ho-mens têm necessidade de se exprimir,para não assumir a mentalidade buro-crática que rapidamente se torna ca-duca e não é capaz de acompanhar odesenvolvimento da sociedade huma-na.Para Agostinho Neto o debate e asideias são absolutamente essenciais àvitalidade das dinâmicas sociais e àsexigências do conhecimento mais pro-fundo do mundo que nos circunda. Se-melhante necessidade pode ser senti-da apenas por aqueles que atribuemvalor à incessante indagação sobre aexistência humana, rompendo os con-dicionalismos do lugar onde se situa ohomem enquanto indivíduo.Sob os auspícios do «mais alarga-do possível debate de ideias» emergiua geração das incertezas, a geração li-terária de 80. Num ambiente pouco fe-cundo do ponto de vista intelectual, aBrigada Jovem de Literatura de Luan-da e outras Brigadas que lhe seguiramas pegadas em algumas províncias dopaís, nomeadamente, Huíla e Huambo,bem como grupos literários que seconstituem nessa década, procura-vam dinamizar as suas actividades li-terárias e reflexivas em torno dessaideia seminal.

Encontro de Agostinho Neto com as autoridades tradicionais de Angola

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3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura10 |

Uma vintena de encontros se-rá organizada pela Funda-ção António Agostinho Neto(FAAN), no país e no estran-geiro, de 10 a 17 de Setembro, no qua-dro da celebração, este ano, da Jornadado Nacionalista–Mor angolano e do 90ºaniversário do seu nascimento.Esta teia surgirá das sessões de lan-çamento, em Luanda, e de apresenta-ção, nas capitais de todas províncias dopaís, da impressionante obra em cincovolumes, intitulada “Agostinho Neto e aLibertação de Angola, 1949 – 1974, Ar-quivos da PIDE-DGS”.Este programa que mobilizará cercade quarenta historiadores e especialis-tas assimilados, serácompletado por váriasactividades de caráctersocial, educacional, ar-tístico, desportivo e re-creativo, cujo essencialterá lugar em Catete, vi-la natal do “Sekulo”.Assim, registar-se-ãoa oportunas e vitaiscampanhas de educa-ção rodoviária, aconse-lhamento e testagemvoluntária sobre o si-lencioso VIH Sida, aulasabertas, nas escolas pri-márias, à volta da obra de Maria Eugé-nia Neto, “A trepadeira que queria ver océu azul”, projeções de filmes documen-tários, exibição de pecas de teatro, ex-posição de artes plásticas, concursos defotografia e gastronomia tradicional. Assistir-se-á a vários torneios e pro-vas desportivos nas modalidades taiscomo as do basquetebol, ciclismo, fute-bol de salão, xadrez, demonstraçõesequestres e para-quedismo desportivo.Seguir-se-ão os inevitáveis espectá-culos de música e de dança, as passea-tas motorizadas e as marchas popula-res, uma das quais irá até ao Mausoléudo “Doutor”.QUÍNTUPLO MEMORIALTotalizando cerca de 5.000 páginas, oquíntuplo memorial, resultante de umaimpressão de grande qualidade e de umsólido fabrico, encontra-se repartidoem quadros cronológicos e é apresenta-do, em primus legitumus, por uma in-trodução geral da Presidente da FAAN,Maria Eugénia Neto. Numa metodologia abertamente pe-

dagógica, e que permite fazer leiturascircunstanciadas dos documentos daSecreta portuguesa, inseriu-se uma no-tável retrospetiva histórica de autoriade São Vicente, intitulado “AgostinhoNeto e a liderança da luta pela indepen-dência de Angola, 1945 -1975)”. Seguem, na senda desta dinâmica di-dática, uma generosa ilustração icono-gráfica com o desenho do “Kilamba” porAntónio Domingues e dezenas de foto-grafias. A contracapa da compilação re-produz a célebre tríptica foto-grafia, da Polícia Internacional(PIDE) do encarcerado, comcinco aprisionamentos e des-terro para a ilha de Santo An-tão, em CaboVerde. O mapea-mento da açãopolítica, diplomá-tica e militar do lí-der do Movimentodos Plebeus reforça adeclinação pedagógicada coletânea.Os comoventes do-cumentos de arquivosda Polícia secreta lusa,cedidos pelo ArquivoNacional da Torre doTombo, constituem oessencial da obra e permitem com-preender melhor, a partir de fontes pri-márias privilegiadas dos vinte cincoanos, a personalidade do “Mesene”, oseu inquebrantável sentimento nacio-nalista, as suas démarches de audácia,prudência e inteligência políticas, as-sim como de estratégia diplomática. Nota-se, entre as personalidades queapresentarão a compêndio, o historia-dor e perito da UNESCO, Simão Souin-doula, que o fará, com Pedro Capumba,no dia 12 de Setembro, em MbanzaKongo, na Província do Zaire. O mesmo será apresentado na Itáliapor Mbeto Traça e em Portugal (Lisboa,Porto e Coimbra), poro Paulo Vicente"Nzaji".Obra fundamental para a historio-grafia contemporânea de Angola, o mo-numental agrupamento arquivístico,ora editado, numa vontade absoluta detransparência histórica da Fundação do“Zambi Kilamba”, constitui, para o paísmais um suporte para um bom conheci-mento da ação corajosa, durante umquarto de século, do Pai da Indepen-dência.

Dia do Herói Nacional

A marcha, a navalha de Agostinho NetoJOHNNY KAPELA(INTERNATIONAL NETWORKING BANTULINK)

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PATRIMÓNIO CULTURAL | 11Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

Odesafio que nos foi colocadopara esta edição do Culturaremete-nos para a história,práticas e reflexões em torno de umdos já muito raros lugares-síntese, ca-paz de evocar o nosso passado, a nossahistória e que por alguma razão se cha-ma Dondo (Ndondu). A velha e histórica vila do Dondo,sede do município de Kambambe estásituada a cerca de 200 quilómetros dacapital do país, posicionando-se namargem direita do Kwanza e bem per-to do limite do curso navegável do rio.Reza a história que lá foi parar PauloDias de Novais por volta de 1583quando iniciava a sua caminhada atra-vés das águas do Kwanza, ao subir ru-mo à descoberta das lendárias minasde prata de Kambambe e de uma fa-mosa feira Dondo, que, na época, jáocupava um espaço vital para a econo-mia dos Mbundos assim como para aspopulações dos territórios vizinhos.A feira passa depois a ter, obvia-mente, interesse também para osportugueses e tomam seu controloimediatamente. Porém, a verdade éque o protagonismo dado às transac-ções comerciais que ali se operavam,tiveram origens bastante recuadasno tempo e, portanto,conclui-se

que a feira do Dondo já era tão oumais importante antes da presençacolonial portuguesa.À feira do Dondo iam parar váriosprodutos agro-pecuários vindos de ter-ras longínquas, ou seja, os sertões inte-riores, como Masanagnu, Kambambi,Kisama, Pungo-a-Ndongu, Kazengu,Ambaka, Kasanji, Viyé, Mbalundu, etc.Os produtos eram designadamen-te, a cera, o marfim, o sal-gema, o pei-xe seco e fumigado, o café, o óleo depalma, o algodão, os artefactos de me-tais e, inclusivamente, escravos trazi-dos por pequenas embarcações arte-sanais (as denominadas Chatas) e porcaravanas que, deixaram traçados notempo e no espaço, os rastos das suasrotas ou itinerários (comerciais).A antiga feira, ficava, curiosamente,no local do actual embarcadouro e éainda hoje, o local privilegiado para ocomércio de produtos diversos, so-bretudo do campo e o pescado, pelaspopulações actuais.As actividades portuárias e comer-ciais no Dondo passaram a ter um in-cremento excepcional paralelamente àocupação territorial

pelos comerciantes portugueses. Osnegócios proporcionaram lucros quefizeram, por conseguinte, emergir umaglomerado que teve e tem, inequivo-camente, as marcas do seu desenvol-vimento assente na actividade mer-cantil. Dondo que nasceu sob o signodo comércio tornar-se, numa dasmais belas estruturas urbanas em to-da Angola nos séculos XVIII e XIX. O casario, construído essencial-mente, de pedra, barro e cal, ficou en-tre seculares e frondosas árvores(acácias rubras), em passeios feitos delaje e as ruas e praças iluminadas porcandeeiros de cobre de belos efeitosescultóricos. Predominavam e aindasubsistem as típicas casas térreas esobrados com telhados de cerâmicaportuguesa (algumas substituídas porchapa de zinco onduladas). As portas e janelas eram, regra ge-ral, em arcos e as fachadas de linhasgraciosas embora ostentem na sua ge-neralidade simplicidade nos efeitosornamentais. Algumas, no entanto,com motivos decorativos imaginadosou criados pelos seus construtores. Asua urbanização ganhou o aspecto doquotidiano e dinâmica da sua popula-ção. A sua organização espacial é as-sente na criação de espaços públicos eprivados, sobressaindo umapraça pública com coreto paraas festas e actos oficiais e don-de convergem os principaisarruamentos da cidade.As ruas transversais,característico da ur-banização ortogo-nal, inspiradapelo modeloda Era Pom-balina

(Batalha, 2008:79). O cenário da vilatornar-se-á mais pitoresco ao juntar-se-lhe o seu ambiente vegetal tropical,no qual, convergem, nomeadamente,o cunho tradicional e espontâneo dassuas construções e a disposição da suaarborização. Podemos acrescentar-lhe, ainda, o panorama vislumbrantedo rio Kwanza. Tais elementos, nãopassam despercebidos ao visitante e,certamente, levam a considerar a ve-lhinha vila ribeirinha do Dondo, comoque um natural “fenómeno urbano”.O rio e a vegetação que enquadra a vi-la, passa a fazer parte integrante de umaimagem e qualidade ambiental específi-ca, tratando-se de uma perfeita harmo-nia entre o natural e o artificial numasimbiose que por vezes nos confunde.Batalha, um inusitado defensor davila (assim como o terão sido Emma-nuel Esteves e o autor deste artigo), ci-ta um relatório do secretário-geral deAngola data de 1869, no qual se faz re-ferência ao facto de uma boa parte dasmercadorias exportadas e registadaspelas Alfândegas em Luanda, tinhama sua proveniência do Dondo (Bata-lha, 2006:102).Os tratamentos de limpeza, ordeme embelezamento do aglomerado terásido garantido ou supervisionado poruma Comissão Municipal ad-hoc, cria-do ao abrigo de uma portaria do Go-verno-geral de 1857 (INPC, 1959: do-cumentos) e o desenvolvimento dasua urbe passa, no entanto, a ser com-parado à de Moçamedes (Namibe).O transporte de passageiros e car-gas, passa, a partir de 1868, a ser ga-rantido através da ligação com Luan-da passa a ser feita por dois barcos àvapor (Batalha, 2006:103) e de umapacata povoação passa à categoria devila em 1870, justamente porque, nes-sa altura, ela já era a principal povoa-ção no interior de Angola.

Emanuel Caboco

DONDOUma vila que persiste ao tempo e à memória

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12| PATRIMÓNIO CULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | CulturaJá no século XX, transformar-se-ánum pólo industrial de referência àeconomia da colónia e para Portugal.Nas extremidades são construídosnovos edifícios cujas formas e gaba-rito correspondem a dinâmica que avila teve.A construção do caminho-de-fer-ro e da estrada que liga Luanda e Ma-lanje, fizeram desaparecer o tráfegofluvial do Kwanza e Dondo perderátoda prosperidade que tinha comoporto natural onde desembocavamos vários caminhos e rotas (Amaral,

1972:70).Destacam-se do seu aglomerado oedifício da antiga Câmara Municipal,o Mercado Municipal, o emblemáti-co edifício do BPC, as ruínas do anti-go Hotel Kwanza, da Casa do leão, acorrenteza de casas típicas da Ruada Kapakala, a graciosa Estação doCaminho-de-ferro, o Cemitério àporta da vila, o sito de embarcação, oHospital, dentre tantos outros.

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património Cultural |13Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

Bibliografia Consultada

Amaral, Ilídio (1962). Ensaio de um estudo geográfi-

co da rede urbana de Angola. Lisboa

Amaral, Ilídio (1978). Contribuição para o conheci-

mento do fenómeno urbano em Angola. Separata de

Finisterra. Lisboa

Batalha, Fernando (2008). Povoações históricas de

Angola. Ed. Livros Horizonte, Lda. Lisboa

Batalha, Fernando (1959). Vila do Dondo. DSOPT.

Luanda

Batalha, Fernando (1963). Em defesa da vila do Don-

do. Luanda

Batalha, Fernando (2006). Angola: arquitectura e

história. Ed. Vega. Lisboa

B José (2005) Arquitectura e urbanismo na África

portuguesa, temas vários. Caleidoscópio. Lisboa

Fernandes, José; Fredeunthal, Aida; Janeiro, Maria

de Lurdes (2006). Angola no século XIX, cidades terri-

tório e arquitecturas. Lisboa

INPC, Arquivo Documental

Silva, Rosa C. (1996). Dondo: la ville marché avant et

après l’interference portugaise (comunicação apre-

sentada em Africa’s Urban Past). SOAS, Londres

UNESCO. Convenção 1972 sobre o Património Mun-

dial Cultural e Natural

UNESCO. Convenção de 2003 sobre o Património

Dondo de hojeDondo experimenta uma fase dedeclínio ocasionado construção, noséculo XVIII do ramal do caminho-de-ferro de Ambaca e Benguela, queacabou por ofuscar o protagonismo ea importância económica da vila. Es-te e outros factores muito fortes, co-mo a guerra civil no nosso País, mastambém, a falta de trabalhos perma-nentes de manutenção, sobretudodepois da Independência, provoca-ram alterações significativas no per-fil arquitectónico e urbano da cidade.As edificações, as infra-estruturastécnicas e a “própria vida”da vila co-nheceram uma degradação paulati-na e incessante.Por outro lado, subsistem, ainda,em nome da ignorância, práticas in-correctas, particularmente no res-tauro ou reabilitação dos imóveisque fazem parte do perímetro da zo-na de arquitectura histórica. Muitosdesses imóveis são submetidos a tra-tamentos de reparação superficiaisou quando profundas lhes fazemperdem irremediavelmente a sua in-tegridade e autenticidade. Conse-quentemente perde-se a esmeradaidentidade da cidade.Face à gradual mudança do para-digma mercantil da vila e os seus ha-bitantes passam a dedicar-se a ou-tros tipos de comércio, sobretudo ode taberna. Nos anos 50 do século

passado, a cidade estava muito de-gradada. Muitas das casas foramabandonadas pelos seus proprietá-rios, que terão ido para outras para-gens em busca de lucros nos seus ne-gócios (INPC, 1959:arquivos).Ao que consta nos arquivos do Ins-tituto Nacional do Património Cultu-ral, o Arquitecto Batalha nos anos 60,ao serviço da então Direcção Geraldos Transportes, Obras Públicas eMonumentos, empreendeu uma sé-rie de tentativas visando a preserva-ção da vila do Dondo, incidindo sobreo restauro dos imóveis com o fim devalorizar o aspecto patrimonial davila e da sua paisagem histórica e na-tural (INPC, 1960:arquivos).Depois da Independência (1979-1981), voltou o arquitecto batalha, atentar animar o projecto de valoriza-ção da vila e a sua possível reconver-são como atractivo turístico (emborajá o seja naturalmente), propondomediadas e acções institucionais desalvaguarda e planificação, desatina-das a remediar as manifestaçõesmais evidentes de degradação da vi-la. Porém, mais uma vez ficou subme-tida às questões conjunturais.Tem, efectivamente, a vila do Don-do, uma capital importância históri-ca e cultural, portadora de uma me-mória colectiva que nos remete paralá dos tempos das transacções co-merciais com a população lusitana.Tal factor, terá, certamente, moti-

vado o Ministério da Cultura e o Go-verno da Província do Kwanza-Nortea promover a realização de feiras pe-riódicas que, para além de propor-cionar o resgate ou a reconstituiçãohistórica de uma época em que astrocas comercias, terão gerado efei-tos significativos na vila das popula-ções daquela região e não só. A instituição da “Feira do Dondo” é,porventura, um ponto de partida pa-ra o estudo e reflexões profundas so-bre as fronteiras culturais, as formasde etnicidade dos povos naquela re-gião, a sua organização económica,as suas tecnologias artesanais, osfactores de interdependência entreos diferentes povos, a diversidadedas manifestações culturais; ou atémesmo experimentar a sensação deviver ou reviver o passado no pre-sente, favorecendo o diálogo renova-do entre as comunidades (Convenção2003:preâmbulo). Com a feira pode-se, também, pro-porcionar um circuito, viabilizando asensibilização das p+pessoas sobre ahistória daquele velho burgo e a ne-cessidade para a sua preservação.A nossa modesta opinião é de queé possível construir-se um plano deprotecção e de gestão da histórica vi-la do Dondo. O objectivo será garan-tir a preservação dos valores patri-moniais da cidade, melhorar a quali-dade de vida da sua população e desua atractividade turística.Sugeríamos, então, só nu-ma primeira fase, que seimpedisse que a degrada-

ção continue ou que continue ao rit-mo que tem sucedido.Será primordial, no entanto, quese evite a condenação da vila do Don-do, um dia, em vestígio de épocaspassadas e um testemunho da indife-rença das gerações actuais. É por is-so necessário, multiplicar actual-mente, os esforços para dar uma ou-tra imagem e dimensão àquela vilaque, possibilitaria remeter a vila aolugar que merece na história da ur-banização em Angola, pelo seu signi-ficativo valor histórico-cultural. Constitui um património edifica-do e paisagístico de grande impor-tância no contexto nacional. O pró-prio potencial que lhe advém pelofacto de fazer coincidir um equilí-brio e uma beleza significativas emtermos de paisagem edificada comum valor cénico muito grande da suaenvolvente pode ser responsávelpor uma atractividade aos seus visi-tantes e turistas.Constou-nos, porém, a falta daclassificação da vila (como “CidadeHistórica”, “Zona Histórica” e porquenão “Paisagem Urbana Histórica”?)que seria, em nosso entender, umaútil ferramenta de preservação. Pois,a vila passaria a ter um amparo jurí-dico e eventualmente ajudaria o Es-tado fazer face às iniciativas antagó-nicas à sua condição de um impor-tante “documento histórico”. Salien-tamos que ela é das mais antigas e,modéstia à parte, das mais bonitasdo País.

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REABRIU O MUSEU REGIONAL DO DUNDOA PRIMEIRA E A MAIOR INSTITUIÇÃOMUSEOLÓGICA DE ANGOLA

O museu regional do Dundo rea-briu as portas ao público, no passadodia 23 de Agosto, sete anos depois doseu encerramento para obras de rea-bilitação e modernização. A cerimó-nia de abertura foi marcada pela exi-bição do grupo cultural Akixi eTchianda, o mais representativo dofolclore da região, agora assumidopela nova geração, no quadro da revi-talização das “oficinas culturais” daaldeia museu, um centro de transmis-são dos usos e costumes da região.A reabilitação e modernização domuseu do Dundo, não contemplouapenas a renovação da exposição delonga duração, mas também incluiunovas estratégias de actuação e fun-cionalidade dos aspectos técnico-científicos e administrativos do pró-prio museu. O museu regional do Dundo passaagora a ter uma exposição de longa du-ração que compreende a sala síntese,sala da pré-história e arqueologia, salada organização social, sala da organi-zação política, sala da caça e activida-des domésticas, sala das actividadeseconómicas, sala das artes e activida-des lúdicas, sala intermédia de exibi-ção de filmes etnográficos, sala da reli-gião, iniciação masculina e medicinatradicional, duas salas da história mi-neira e a sala da colonização e resis-tência contra a ocupação colonial.A ministra da cultura, Rosa Cruz eSilva, que conjuntamente com o go-vernador provincial da Lunda Norte,Ernesto Muangala, cortaram a fita dereinauguração do museu regional do

Dundo, considerou que a ocasião éum “acto de nobreza, para celebrar avida, a cultura na sua expressão máxi-ma de um povo, porque os artefactos,as peças museológicas, a memóriadas comunidades das áreas sociocul-turais aqui representadas, reflectemo ser no mais profundo do seu íntimo,explicam a história e em suma a pró-pria cultura”.Rosa Cruz e Silva destacou o museuregional do Dundo como “a primeirae a maior instituição museológica deAngola” por ter revelado dinamismona investigação científica em várias

disciplinas, “desde a pré-história ouhistória mais antiga, onde se dedica-ram estudos das estações arqueológi-cas que trouxeram a superfície os ves-tígios dos tempos memoriais do pa-leolítico e não só”.Realçou, igualmente, a etnografia eantropologia enquanto vocação domuseu regional do Dundo, “para darnota ao modo de estar dos povos doleste de Angola, mas também, e so-bretudo do seu pendor artístico”.A mestria nas artes, dos povos doleste Angola, segundo a ministra RosaCruz e Silva, “galvanizou, impulsio-

nou e chamou os arqueólogos, os et-nólogos, os homens das ciências so-ciais, depois os biólogos, que tiveramque produzir e elaborar até a décadade 70 do século XX, uma vasta colec-ção de estudos sobre os tuchocwe, to-dos os seus vizinhos e aparentados”.A ministra considerou, no entanto,que o museu regional do Dundo, temcumprido a função mais representa-tiva da experiência museológica, queé a de investigação científica, que re-sulta da longa lista bibliográfica queconectou este museu com o resto domundo.“A história desta instituição foi fei-ta de muitas glórias, no domínio cien-tífico e da celebração da cultura dospovos que aqui se reportam, pois queforam criados mecanismos de organi-zação cultural, com a formação degrupos de dança e equipas de recolhado cancioneiro da música tradicio-nal”, enfatizou Rosa Cruz e Silva.O novo museuDepois da independência do país,em 1975, lembrou a ministra, assis-tiu-se a um decrescer de eventos emrazão da situação difícil que se viviana altura, assinalando, no entanto,que “ a museologia em Angola, pelamão dos próprios angolanos, começaa dar os primeiros passos, a partir domuseu do Dundo”. A ministra salientou que os passospara a reabilitação e renovação do mu-seu do Dundo, começam a ser dadosem 2007, com a elaboração de um pro-grama que previa não só a requalifica-ção da sua infra-estrutura, como tam-bém a construção do laboratório de

JOAQUIM AGUIAR | DundoTexto e fotos

14| PATRIMÓNIO CULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

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biologia, aldeia museu, a estação ar-queológica do Balabala, assim como arenovação da exposição permanente.Reiterou que “estão agora criadasas condições, para fluir a cultura e so-bretudo para que os novos investiga-dores angolanos, tenham larga a suacapacidade científica e se aumentemos conhecimentos sobre a cultura des-ta região, que nos seus particularis-mos ou na sua essência está muito lon-ge da maior dos angolanos”.A ministra não deixou de render ho-menagem algumas personalidades li-gadas a cultura, que não só tornaramviável o projecto de renovação do mu-seu regional do Dundo, como deramcontributo incomensurável no desen-volvimento da cultura nacional.Rosa Cruz e Silva lembrou a figurade Henriques Abranches, que a seumodo criou uma escola de museologia,que distribuiu as peças pelo país paracriar novos museus, escola essa, se-gundo a ministra, foi renovada, actuali-zada e melhorada os seus métodos. Foi igualmente prestada homena-gem a Felizardo Gourgel, que contri-buiu para a guarda e preservação doacervo do museu do Dundo, nos tem-pos mais difíceis e ao Francisco XavierYambo, o grande impulsionador da re-volução dos museus, que culminoucom o estatuto dos museus que foi re-centemente aprovado.A reabertura das portas do museuregional do Dundo, foi igualmentepossível com o “engajamento de umagrande equipa, desde a direcção dosmuseus, os membros da comissão,coordenação do projecto de renova-ção dos museus regional do Dundo esobretudo do executivo angolano.A reabilitação e renovação do mu-seu regional do Dundo custou aos co-fres do estado mais de quatro milhõesde dólares.Sítio de culto da cultura TchokweAna Clara Guerra Marques, investi-gadora da cultura Lunda Tchokwe hámais de vinte anos, disse que o museuregional do Dundo é e vai continuar aser “um sítio de culto da cultura LundaTchokwe”, numa perspectiva de desen-volvimento, preservação e estudo con-tínuo da riqueza cultural da região.Mostrou-se satisfeita com os inves-timentos feitos pelas autoridades, pa-ra que o museu se transformasse nu-ma verdadeira “casa pública” destina-da a guardar peças, reservas memo-riais, transmitir e divulgar a culturaregional, que, na sua óptica, é muitoforte e que até ultrapassa as fronteirasdo nosso país.A nível de investigação científica,Ana Clara Guerra Marques, disse espe-rar, com as condições que o museu ofe-rece, uma maior intervenção dos inte-lectuais angolanos no sentido de estu-dar e publicar artigos que possamcontribuir para a imortalização danossa cultura.“Da minha parte tenho esta nobre

missão de pegar nesta cultura e levá-lapara outros contextos, nomeadamen-te na dança africana ou seja para adança contemporânea. Vou investigar,recolher imagens e estar em contactocom a essência de forma que a culturase mantenha viva”, assegurou, AnaClara Guerra Marques.A investigadora, que é mestre emperformance artística, com a tese “So-bre os Akixi a Kuhangana entre osTchokwes de Angola”, comparou o mu-seu regional do Dundo a “uma jóiabastante preciosa” que carece cons-tantemente de lapidação, de forma amanter interesse e beleza inicial. “As pessoas não podem deixar queesta jóia se estrague, desapareça, de-vem tudo fazer para continuarem apromover a cultura, os hábitos e cos-tumes dessa região”, disse.Para Ana Clara Guerra Marques, oritual do mukanda “é uma coisa fan-tástica e os jovens, a partir de tenraidade devem saber sobre isso, sobre amáscara do mwana pwo, o muquíxi,portanto tudo precisa de mais vidamais divulgação e mais encontros,congressos, simpósios para que defacto se conheça a essência dos povosda região leste de Angola”.HistorialO museu do Dundo, foi criado em1936, pela então companhia de Dia-mantes de Angola (DIAMANG) e tinhacomo secções fundamentais a etno-grafia, pré-história, folclore e música. Faziam também parte do museu doDundo, o museu do Balabala, que sededicava ao estudo da arqueologia,um laboratório de biologia que ao lon-go dos anos apresentou ao mundocientífico a descoberta e o conheci-mento de novos mamíferos, peixes,batráquios, sáurios, aves e novas espé-cies ou géneros de insectos, além decontribuições para o estudo da faunada região da Lunda e da África Central.

Há a destacar, também, a “AldeiaMuseu” que abrigava os artistas quetrabalhavam regularmente em escul-tura, pintura e tecelagem de forma apermitir a revitalização de alguns pa-drões culturais em via de extinção.As primeiras colecções do museudo Dundo começaram a ser recolhidasem 1936, tendo sido obtidas em diver-sos pontos da região leste do país, massobretudo nas actuais províncias dasLundas Norte e Sul e Moxico. A iniciativa cabe ao etnógrafo por-tuguês José Redinha, colocado ao ser-viço da administração colonial, na en-tão vila de Portugália, que começoucom uma colecção privada de objectos

etnográficos, a qual evoluiu, com apronta intervenção da DIAMANG, pa-ra um museu, cujos trabalhos alcança-ram o mundo, tendo sido consideradona década de 1950, como um dosmaiores a sul do Sara.Até 1974 o museu do Dundo tinhaum acervo de mais de 20 mil peças.O museu do Dundo desenvolveu umimportante intercâmbio cultural ecientífico com organizações congéne-res de outros países, tendo participa-do em vários congressos. A par de dara conhecer ao mundo a cultura da re-gião leste de Angola, promoveu igual-mente exposições em vários países domundo.

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"Quando conheci Victoriano Fer-reira Nicolau, estava longe de meaperceber das qualidades de poetacarregado de incerteza, no emara-nhado terreno das letras. A chamadas suas aspirações assinalava o ru-mo que traçava, numa linguagem as-tral, que só os poetas facilmente en-tendem e o homem humilde se aper-cebe.(...)Apostado na simbologia decombate, no estilo que poetas consa-grados angolanos nos habituaramtem-se a percepção da mensagemque o autor transmite ao mundo livre,negando sofrimento e fome, mas car-regado de amor próprio."Inicio esta nótula fazendo jus aspalavras do nosso ancião e "Griot".Wanhenga Xitu. E quem melhor oumaior do que ele para homenageareste poeta da geração de 70, a chama-da "Geração Silenciada", que passa-das quatro décadas de imenso sofri-mento íntimo, vem, arroja-se e matri-cula-se neste clube sentimental emque se dialoga "numa linguagem as-tral, que só os poetas facilmente en-tendem e o homem humilde se aper-cebe».Falo-vos do Nicolau, natural deCambambe, antigo combatente e vá-rias vezes "ex" das nossas endiabra-das circunstâncias.Ex-preso político, ex-membro dogoverno, ex-deputado, ex-professoruniversitário, só para citar algunspoucos "ex" do autor.Economista especializado em con-tabilidade, agora reafirmando o seupseudo nome "Kanda" por via da pa-lavra poética. Esperamos jamais es-tar diante de mais um "ex" da sua in-tensa pessoalidade. Refiro-me ao ex-poeta. Pois saberá o poeta que “umavez poeta, poeta para sempre”, por-que como disse “o velho”, o autor alis-tou-se agora para um exército quecombate num campo de batalha car-regado de perigos vários e que exige osacrifício da própria vida em razão dadefesa dos interesses patrimoniais emorais daqueles que mesmo sabendo

falar não têm voz para expressar oque sentem. Passa doravante a ser uma das vo-zes daqueles que não têm voz. Doshumildes, dos escravos e sofredoresque tão bem estão retratados na ver-sificação em questão.Quanto "aos longos dias de resis-tência", devo dizer, trata-se de um tí-tulo graficamente espantoso, muitobem acabado e sociologicamente ex-travagante (no bom sentido, comonão podia deixar de ser...). É a todos os títulos um livro poéti-co ímpar. Contém uma detalhadíssi-ma autobiografia do autor que maisnão é senão uma útil ferramenta detrabalho para sociólogos, historiado-res e público leitor se emaranharemnos circunstantes contextos da luta,resistência e persistência, não fosse oautor dono de uma vivência, rica de«ensinamentos de berço» com ospais, irmãos, tios, primos e avós emlocalidades como Mulende, Katomede Baixo, Nza Ni Nvula, e Cassualalana província do Kwanza-Norte e Mu-xima, Kibala e Banga, na província doKwanza-Sul, Marçal, Zangado, Sambi-zanga, Cazenga, Bairro Popular, VilaClotilde e Maculusso em Luanda.«Em todos esses locais, foi reco-lhendo elementos que moldaram asua personalidade e atitude, adqui-rindo e transmitindo ensinamentosde bairro, uns bons, outros nem porisso, sempre observando e interagin-do com as comunidades, inclusive ascomunidades religiosas da Igreja Me-todista Unida de Angola, e estabele-

cendo relações distintas com os di-versos extractos sociais, raças e tri-bos do país».Assim, cotejamos esta telúricapoesia onde o fenómeno da chamadainterpenetração idiomática está pre-sente (no caso da língua kimbundopara a língua portuguesa), neste livroonde podemos ainda deleitar-noscom algumas históricas imagens docontexto sociopolítico e paisagísticode Angola.A tudo isto, acresce o autor, doisdocumentos socio-históricos comoprova dos crimes supostamente co-metidos no Estado de Angola da épo-ca colonial.O livro, com prefácio do Decanodos Escritores Angolanos, o escritorMendes de Carvalho, contém textosdo período pré-prisional e de váriosperíodos prisionais do autor, bem co-mo de outros períodos que vão de an-tes de 73 e 1980. E sabem melhor doque eu (os seus leitores...) quão tur-bulenta foi a vida dos Angolanos de73 a 80, já no período pós-indepen-dência."Trata-se, como se depreende fa-cilmente, de uma obra de poesia decombate, que traduz uma vivênciaapaixonadamente nacionalista, de al-guém que, como tantos outros, colo-cou a sua pedra no edifício do nacio-nalismo angolano, antes durante edepois da independência de Ango-la...". Por isso, o autor tem a mesmaresponsabilidade social que tiveramoutros confrades já consagrados quetambém apostaram na simbologia de

combate tal como os já falecidos poe-tas-guerrilheiros: Henrique Abran-ches, Ngudya Wuendel, FernandoCosta Andrade, Saidy Mingas, Pedrode Castro Loy e Simião Kafuxi ou mes-mo, Fonseca Wochai, Garcia Bires eBeto Van-Dúnen ainda vivos.A juventude é a melhor maneira deenganar-mo-nos a nós mesmo. Disse-me um dia um clássico autor da lite-ratura angolana em razão das ansie-dades das pressas e tropeças dos no-víssimos. No caso, o nosso jovem au-tor, Kanda, não teve pressa, soube es-perar e ei-lo presente depois de noano 2000 ter tomado a corajosa deci-são de reiniciar o processo de revisãoe compilação da sua obra de poesia,no livro que agora dá à estampa, sob otítulo "OS LONGOS DIAS DE RESIS-TÊNCIA", que encerra o Capítulo IV,com um POEMA INCOMPLETO, paracuja mensagem o autor convida o lei-tor a reflectir.Refira-se que o processo de compi-lação e de publicação desta obra, quevem finalmente à estampa decorri-dos cerca de 10 anos da segunda ten-tativa de publicação, sofreu várias in-terrupções, por força de constrangi-mentos e interferências várias, queprovocaram o adiamento sucessivoda sua edição. Penso que, tratando-se de umapoética de carácter marcadamentenacionalista, é o aspecto conteudísti-co que mais importa. Os valores éti-cos destacam-se ao longo da colectâ-nea, de uma forma suficientementeacentuada.

Os longos dias de resistência(a estreia de Kanda)

LOPITO FEIJO

3 a 16 de Setembro de 2012 |Cultura16 | KINDA DAS LETRAS

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Aevangelização começa no Kongo de for-ma oficial em 1491: em Abril é baptizadoMani Nsoyo Nsaku Ne Vûnda; em Maio ébaptizado o Ntotel’a Kongo Nzîng’a Nku-wu. Em Julho, a rainha e o príncipe Mvêmb’a Nzîngaserão baptizados conjuntamente das pessoas que osPortugueses pensavam ser nobres no Kôngo.Em 1506, morre o primeiro rei cristão João I,Ñzîng’a Nkûwu, sendo sucedido por seu filho, DomAfonso, Mvêmb’a Ñzînga que os constitucionalistaskôngo consideram anticonstitucional. Mas, graças àforça aliada dos portugueses, ele alcançou o trono. Éna sua época que a Igreja será instalada na sua capi-tal, doravante dividida em duas cidades: (i) cidade-aldeia, com os tradicionalistas em Madîmba; (ii) ci-dade europeizada, com os modernistas em Mbâzi’aKôngo.Dom Afonso morre em 1543. Nkâng’a Mvêmba,Dom Pedro I – tido como filho de Afonso I – irá suce-dê-lo em 1543, mas também será contestado pelosconstitucionalistas (tradicionalistas). Vencido pe-los seus rivais, em 1545, ele irá se refugiar na igrejaSão Salvador , escapando da morte (Cuvelier & Ja-din, 1953:19).Em 1545-1547, reina uma guerra civil que assolaa capital e Dom Diogo I (o novo rei) estabelece umtempo de tranquilidade, que irá durar até 1561. Naverdade, era um “tradicionalista” que, por razõespolíticas e económicas, aceitava cinicamente o cris-tianismo. Ele personalizava a ambiguidade entre os“tradicionalistas”, que nessa época serão tidos comoos verdadeiros cidadãos, e os “modernistas”, queeram assimilados aos “amigos dos estrangeiros”.Ambicionava uma diplomacia directa com o Vatica-no, sem ter Portugal como intermediário, no quenão teve êxito e, descontente com isto, expulsa to-dos os europeus, salvo alguns padres (no final de1555 e início de 1556). Em Novembro de 1561, DomDiogo I morre de forma trágica, e subirá ao tronoAfonso II, um modernista que será mais tarde mortopela insurreição dos tradicionalistas contra os “es-trangeiros” e seus aliados Kôngo.A necessidade do consenso levou Bernardo IÑzîng’a Mvêmba ao trono, que morre em 1567. Seusucessor, Henrique I, reinará alguns meses apenas,morrendo em 1568. Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba,que lhe sucede, reinará durante quase vinte anos,dispondo de uma diplomacia forte como plataformade estabilidade. É durante o seu tempo que os guer-reiros Yaka, os famosos Jagas, irão invadir MbânzaKôngo (Vansina, 1966:421-429). Nesse período dainvasão jaga, várias igrejas foram arruinadas, tal co-mo se pode ler em Pigafetta. A de São Salvador será(re)construída e elevada ao estatuto de catedral, em1596, e vários padres serão enviados para essa cida-de. O rei Álvaro I enviará Dom António Manuel (Nsa-ku Ne Vunda), como seu embaixador junto do Papa,onde – depois da sua captura pelos piratas portu-gueses e espanhóis – chegará doente a Roma, mor-rendo no dia seguinte.Da morte de Álvaro I, sucede Álvaro II, mas, entre

1613 e 1641, os monarcas kôngo são “fabricados”pelos modernistas ou tradicionalistas: uns são de-masiado jovens (Dom Garcia I, 1624-1626) para asituação do reino; outros são de facto crianças (DomÁlvaro IV, 1631-1636). Nessa época, há presença deholandeses, franceses e outros europeus, que se in-teressam pelo comércio com Kôngo. Os holandeseschegarão a guerrear com os portugueses, na tentati-va de expulsá-los do Kôngo (e Angola), logo no fimdesse período. Rainha Nzîng’a Mbandi interviu.Dom António I, Vit’a Nkânga, será coroado rei em1661, depois de muitos monarcas serem assassina-dos. Por sinal, ele é um tradicionalista, cuja candida-tura os padres europeus não aconselhavam, chegan-do alguns a orquestrar contra a mesma. Tudo issoporque ele intencionava expulsar do seu reino todosos europeus, tal como o fez Dom Diogo I (ver acima).Dom António I convoca todos Kôngo do país a lutarcontra a opressão portuguesa. Todo Kôngo foi sensi-bilizado porque pensava assim terminar com a colo-nização portuguesa. A luta entre os modernistas eos tradicionalistas, favorece vitoriosamente os pri-meiros, na grande batalha de Ambwîla. Mas são asconsequências que nos interessam: (i) os tradicio-nalistas, que saem da sua “cidade-aldeia”, irão pilhara “cidade europeizada”, destruindo igrejas. Algumasdesapareceram, sobrevivendo a Catedral de São Sal-vador, que tinha os “seus murros ainda de pé” (Cuve-lier, 1953:57-62); (ii) a cidade europeizada “trans-formou-se numa floresta… não habitada… e aban-donada aos animais selvagens” (Balandier,2009:67). Nem tradicionalistas nem modernistaspretendiam lá viver jamais; (iii) o país contará, do-ravante, com três capitais: (a) de Mbânza Kôngo,que ainda permanecia no imaginário de todos; (b)abriu-se uma capital, a Kibângu; (c) uma terceira ca-pital estava instalada em Kôngo dya Lêmba. O Papachegou a reconhecer a capital de Kôngo dya Lêmba(através de uma Bula). Com as duas outras capitais,Mbânza-Kôngo ficou sem povoação. O “corpo reli-gioso” e “corpo diplomático” sairão, então, de SãoSalvador, para a capital reconhecida por bula papal.

No princípio do século XVIII, surge um movimen-to “antonista” liderado por Chimpa Vita (geralmen-te conhecida por Kimpa Vita). Dos seus objectivos,conseguimos sintetizar os seguintes: (i) criar plata-forma de negociação entre os tradicionalistas e osmodernistas ; (ii) mobilizar as populações a reco-nhecer Mbânz’a Kôngo como capital e destituir osdois reis; (iii) preparar novas eleições. Infelizmente,em 1706, a líder deste movimento é capturada pelospadres Bernardo da Gallo e Lorenzo da Lucca paraser queimada viva (Batsîkama, [1969] 1999:31). Ospoucos habitantes que já ocupavam Mbânz’a Kôngoirão fugir e se distanciar da “cidade europeizada”:Mbânz’a Kôngo ficava despovoada pela terceira vez.Sua nova povoação passou a ser efectiva algunsanos antes (entre 1842-1884) e depois da Conferên-cia de Berlim. Nessa altura, Mbânz’a Kôngo era umaparte de Angola, colónia portuguesa e sua povoaçãoobedeceu a uma política colonial portuguesa de po-voar as cidades. Primeiro, porque lá se encontravamalgumas infra-estruturas a serem aproveitadas e,segundo, porque se construiu outras novas.Durante essa época, as velhas cidades perdidasforam descobertas, inclusive os muros chamadosKulumbîmbi. A sua descoberta criou: (i) felicidade,porque existia apenas na oralidade com hesitaçõesde localização, de modo a convergir as versões exis-tentes; (ii) lembrança da união entre as populações,o que incentivou a povoação das próprias popula-ções; (iii) responsabilidade acrescida da adminis-tração colonial em conservar a memória local. Mastudo indica que a memória colectiva loca tem difi-culdades em separar as duas cidades, porque ambascidades pré-existem no comportamento psicosso-cial como “um todo”, assim como, quando os Kôngoevocam sua origem comum (Kôngo dya Ntôtila ouKôngo dya Ngûnga ou ainda Ñkûmb’a Wungûdi…),reconhecem a pluralidade como base da sua união.Esta é atribuída a uma Mãe ancestral, Ngûndu ouMazînga. Eis a razão pela qual os nativos de Mbânz’aKôngo defendem que Deus terá construído Kûlum-bîmbi.

Mbânza Kôngo entre 1491-1885

PATRÍCIO BATSÎKAMA

Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 LETRAS |17

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18 | ARTES 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

Oolho atento de Paulino Damião (50) lança,por detrás da câmara fotográfica, uma lágri-ma sobre os velhos muros de Luanda, emcontraste com a tendência renovadora e moderniza-dora que faz a cidade capital voar alto, até à luminosaindiferença das nuvens. E aí temos estas imagens,captadas com o amor de um kaluanda habituado acalcorrear as vielas das ruas mais antigas, estreitas,

onde só passam persistentes saudosistas da velhaLuanda e peões habituados a encurtar caminhos on-de noctívagos cidadãos vão despir o seu destino, deum kaluanda que também se deixa encantar pela na-tureza imponente do veloz betão forrado a alumínio,ou pela imensa avenida 4 de Fevereiro, atapetada deum verde promissor, onde as palmeiras junto aomurmurar da baía deixam no ar uma aura de evasão.

Paulino Damião (50)Da Xicala à Mutamba:contrastes de Luanda

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ARTES | 19Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012Paulino Damião (mais conhecido por Cinquenta), nasceu em Nambuangongo, província do Bengo. Com 36 anos de

carreira, todos feitos ao serviço do Jornal de Angola foi galardoado, em 2010, com o Prémio Nacional de Jornalismo, catego-ria de fotojornalismo. “Aos 14 anos oi capturado pela tropa colonial e, dada a idade, “ficava entre os militares que ele chamade artistas – músicos, pintores, redactores, fotógrafos. Ironicamente, foi no campo de guerra que descobriu sua paixão. Nuncamais parou de fotografar. Em 80 foi enviado a Moscovo para cobrir a olimpíada. Era o único fotógrafo negro credenciado pa-ra os jogos olímpicos. Conhece quase toda a África subsaariana. O cognome “50” ganhou no começo da carreira. Cobria jogosde futebol apenas com uma lente de 50 mm, pois era a única que possuía, quando os outros fotógrafos, já nesta época, usavamlongas teleobjectivas. “O fotógrafo da 50”, assim se referiam a ele aqueles que não sabiam seu nome. Assim ficou.” (extractosdo artigo postado por Greg, no sítio internet ‘Casa de Luanda’)

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20 | ARTES 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

Do disfarçado silêncio da foto, ogrito de contexto e de protesto.Ambos por África. Somente daÁfrica com sede de África. Os maisatentos e perspicazes poderãoachar que, em muitos sentidos desi, África é jóia de valor de oferen-da de núpcias cujo brilho é depen-dente da perspectiva da dimen-são de nós. Não fabricável e sã. Dafotografia à palavra, estamos nósalgures por aí. Talvez dentro docontexto, o texto ajude a procurarinterrogações nas picadas, este-pes e crateras do nosso ser. Afinalo que é África, quando tudo nos le-va distante da mútua aproxima-ção às coisas da terra, da nature-za, dos bichos, seus mais repletossinónimos?! Para muitos, aquelaÁfrica, berço habitat dos bichosmais estranhos e de formatos ex-travagantes; submersa na adjecti-

vação de exótica; é uma mera qui-mera, incluindo alguns rebentosque nasceram e nunca saíram de-la mas que, a priori, a sua vivênciajamais sabe ao sabor deste “cultoà natureza” a que chamaram deÁfrica, e se agarram às alturas dosprédios como cativeiro da imagi-nação, ou, na ironia, casuais intér-pretes de Ícaro. Qual é a diferença? Qual é a pia-da de dizer que sou de África? Cla-ro que responder só sim seria difí-cil e, caso assim acontecesse, umepíteto antónimo de verdadeiroseria o caso raro de uma visita de-sejada a escassos minutos da horada refeição, seguido de um escru-pulosamente sincero “bom apeti-te” livre da exaustiva proeza deesconder nas grades das feiçõesfaciais o mínimo sinal de discor-dância aturável.Assim, numa próspera e, cultu-ralmente, dialogante viagem à Na-míbia, José Carlos de Almeida,nosso conterrâneo e homem decultura, autor do livro “Ensaboa-do e Enxaguado”, nos propõe,mais do que uma saudável invejadele por ser o protagonista (o quearrancaria uma doce dose de or-gulho para qualquer amante deÁfrica e de tudo que é seu), umafuga ao monopólio do barulho dosautomóveis, ao estaladiço dos vi-dros das janelas dos altos prédios;ao alucinante (às vezes, e com al-guma sorte) som do salto-alto nasescadas e elevadores; ao vício dooxigénio da máquina que se apos-sa dos nossos sentidos diaria-mente; da nossa condição de des-tinatário obrigatório das esque-bras das pontas do barulhento ku-duro no táxi; e nos desafia silen-ciosamente, na delícia das suas fo-tografias de viagem, para queabramos atalhos que nos condu-zam às reservas naturais, ou me-lhor, às reservas de nós, trazendoà mistura a crítica escancarada doabsurdo de ser que é parte do ha-bitat de maravilhas da natureza epassa a existência sem se oferecerà oportunidade de diferenciar oroncar de um automóvel e o bra-mido de um elefante, talvez tam-bém por isso digno de ser chama-do de “despercebido de si”.

Matadi Makola

“Namíbia, gostei imenso de te conhecer.

Até já tomei a liberdade de te tratar por «tu».

Namíbia, estás na minha mente”José Carlos de Almeida:

“Namíbia, estás na minha mente”

José Carlos de Almeida

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Norberto Costa

A introdução das línguas maternasangolanas no sistema de ensinoe a democratização da cultura(à memória do meu colega de bancade redacção, Emílio Té)Há mais de uma década que aUNESCO instituiu o Dia daLíngua Materna, acautelandoassim os interesses dascrianças e adultos que não têm acessoao sistema de educação formal, porvia da língua familiar do seu meio so-cial de origem - a família.É um dado adquirido para quem tempreocupações sócios culturais: a lín-gua materna é a língua primeira dosfalantes de uma determinada comuni-dade étnica, sendo que a língua even-tualmente apreendida a posterior pelofalante seja a língua segunda, emboracasos há em que o mesmo desaprendea primeira e passe a ter maior com-petência linguística numa outra. Nestaúltima língua o falante faz apelo parase fazer entender e ser reconhecidocomo indivíduo pertencente a deter-minado agrupamento humano, sendoum importante factor de identidadesocial e cultural. É, involuntariamente,regra geral, nesta língua que ele pensae racionaliza o mundo, embora, nal-guns casos, com resquícios da ante-rior. O drama sociocultural e psicológico ésaliente: os empréstimos linguísticosdas línguas africanas impregnadas navariante da língua portuguesa em An-gola, em virtude do esquema de mobi-

lidade social dos membros dos distin-tos grupos étnico-linguísticos, sociaise rácico-culturais. E mesmo os “ruí-dos” que se ouvem, por exemplo, emmuitos dos falantes do português emLuanda, o exemplo é sintomático, con-ferindo à variante angolana do portu-guês (angolano) outros ingredientes esabores, em determinados contextos,longe do “meio socialmente elabo-rado” (no dizer de W. Labor), ou seja,com “status” social privilegiado, quemais se aproxima da língua original,ou seja do português vernáculo culti-vado pelo poeta dos Lusíadas. Maisdramático ainda é o caso das criançasque abandonaram compulsivamenteou não as suas aldeias e chegadas àscidades, sobretudo no litoral, e maisparticularmente em Luanda, foramforçadas a mudar de língua no seuprocesso de socialização, onde a lín-gua mais falada é o português, tendosido “assimiladas” à língua europeia eesquecido a sua primeira língua ma-terna. Nesta circunstância, a línguamaterna passa a ser o português, emvirtude da aculturação a que foram su-jeitos, como “os olhos linda da filha dosoba/ que se perderam em Luanda”,como cantou o poeta.Nestes termos, é um lugar comumdizer-se que o indivíduo só pensa

numa língua. Isso é tão interessanteque a língua materna é a utensilagematravés da qual nós exprimimos anossa cosmovisão; como concebemoso mundo, rimos e brincamos às es-condidas o jogo da cabra cega da vida“que estamos com ela”, em que muitovigarista se faz passar por gentegrande “batendo nganga”; e é tão dra-mático ainda, porquanto é na línguamaternal em que nós amamos, sofre-mos e até choramos a morte dos nos-sos ente queridos.

GRAFITOS NA ALMA | 21Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

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Vem de molde assinalar que muitodo insucesso escolar que se regista naaprendizagem da língua portuguesanos dias que correm (e podemos alar-gar mais a nossa perspectiva analíti-ca a outras disciplinas), bem como natransmissão de outras matérias di-dácticas tem a ver a com a crise deidentidade que enfrenta a criançaque abandona a família, o seu primei-ro mundo, e encara, em termos demobilidade social, um novo mundo -a escola, entrando em conflito de per-sonalidade, pois a sua língua maternaaí não tem espaço, para dar livre cur-so ás suas potencialidades cognitivase lúdicas, apreendidas no seio do seumeio de origem social, que no caso daaldeia encontra expressão cultural nadança, tradição oral e cânticos tradi-cionais, jogos dramáticos e lúdicos,repositório transmitido de geraçãoem geração, no jango ou no dique, poraltura em que se juntam para acarre-tar agua, ou ainda nas caçadas oumais ainda no retiro na fase de cir-cuncisão a sangue frio, o que não dei-xa(va) de ser horrendo, relevandouma certa contingência bárbara, quede tão retrógrada merece ser aban-donada a favor da anestesia prévia. Nestes termos, todo este patrimó-nio cultural a criança não poderá par-tilhar ou intercambiar com os colegasque só falam português, as mais dasvezes, por bloqueamentos sociocul-turais, linguísticos e psicológicos ter-ríveis, onde sobreleva a língua diver-sa da falada na escola, num meio es-tranho: seja urbano, semi-urbano emesmo semi-rural. Assim sendo, oconflito sociocultural vivido pelacriança em crise de identidade comuma aprendizagem numa linga se-gunda, é agravado, bem como os seuscolegas perdem uma rica oportuni-dade para tomarem contacto, pelomenos potencialmente, com o imagi-nário oral daquele falante de línguamaternal de origem africana, veicu-lando a sua experiência na ruralidadena língua do seu meio de origem - al-deia -, que a instituição escolar, “in li-mini”, não reconhece como canal decomunicação padronizado, pelo me-nos do ponto de vista da metodologiadidáctica que visa, entre outros ob-jectivos pedagógicos, afastar o ruídona comunicação entre o professor e oaluno (e já agora também entre os co-legas).Haja em vista assinalar que a crian-ça que não tem o português como lín-gua materna e dada que a sua não éleccionada na escola, parte numa si-tuação de desigualdade social, a prio-ri, com os condiscípulos, o que requerque seja alterado este “círculo vicio-so”, criando-se um “círculo virtuoso”que abrande o peso e o impacto dapesada herança do assimilacionismocolonial e valorize as línguas mater-nas angolanas no sistema escolar. Jáque a exclusão desse sistema linguís-

tico de matriz africana no ensino, co-mo sugeria o poeta da Sagrada Espe-rança”, “não resolve os nossos pro-blemas”, pelo que havia que ponderardesde já a sua inclusão(2). Os passosdados neste sentido pelo MED co-lhem a todos os títulos, ainda que se-rôdios. Antes tarde do que nunca - láreza o provérbio português

apreendidas e adaptadas, com a devi-da actualização metodológica e mo-dernização pedagógica, em “tour hori-zon”, sem desprimor pela experiên-cias africanas e não só no domínio, pe-los Ministérios da Educação e Cultura,bem como da Comunicação Social, pa-ra levar a bom porto uma tal políticaeducacional, cultural e linguística, quecoloque as nossas distintas línguasmaternas angolanas na crista da ondado acesso ao saber científico e do de-senvolvimento, vencendo-se, assim,decididamente a batalha conta o anal-fabetismo, cujas bases foram lançadasdesde os primórdios da nossa inde-pendência e ensaiadas ainda no ma-quis debaixo das árvores e os alunossentados nas pedras, ainda que esteconhecimento rudimentar fossetransmitido entre os maquisards nalíngua do colonizador, que de domi-nante passou a dominada, na configu-ração mental de uma franja significati-va dos antigos colonizados, que a têmcomo língua materna e mesmo segun-da, compaginando o ambiente de di-glossia no país, em que a língua neo-la-tina convive com as de raiz bantu emAngola e, quiçá, nos distintos PALOP,com as especificidades que se conhe-cem, em virtude dos contextos locais,onde existem dois crioulos, como emCabo-Verde e Guiné-Bissau, por exem-plo) e demais línguas africanas.________________________________________Notas1) Ainda na década de90, em entrevista ao sema-nário “Correio da Semana”,o falecido deputado LanvuEmamnuel Norman haviaproposto, num particularrasgo de lucidez e de ma-gistral visão estratégica,que as línguas nacionais,pelo menos as mais faladasno país, fossem usadas pa-ra traduzir as distintassessões parlamentares,que são de todo interessedo eleitor, que elege osseus representantes, e dopovo, em geral, que, comoficou visto, a maior partedele não fala o português,senão arranha o pejorati-vamente designado “pre-toguês”2)esta peça já estava es-crita quando a foi anuncia-da a inclusão para brevedas línguas nacionais nosistema de ensino no Moxi-co, pela voz do ministro daEducação. A ver vamos.Partamos para mais umnovo “grande desfio” so-nhado e jogado pelo poetado Kiaposse.

Crise de identidade

Estratégias de trabalhoAs balizas de uma tal estratégia de trabalho há muito foram ensaiadas e lan-çadas, como a aprovação da grafia de pelo menos 6 línguas nacionais, em 1976.A experiência-piloto em ordem à sua adopção no sistema de ensino poderia serarticulada para já com a elaboração de manuais e demais material didáctico. Re-sumidamente, se é certo que as demais línguas, além das seis que já têm grafiaoficial, poderiam aguardar por melhor oportunidade, dada que uma empreita-da de tal envergadura carece de investimentos vultuosos que não se esgotam naocupação de pesquisadores para fixação da sua padronização, mas implicamtambém a formação de professores que vão leccionar as e nas línguas em causa,antecedida, sobretudo, de uma prévia formação de formadores de e em línguasnacionais.As experiências neste domínio existem ao nível por exemplo das igrejas des-de longa data (com realce para a protestante perseguida e acusada de desportu-galização dos nativos no passado pelas autoridades coloniais, devido ao magis-tério exercido pelas missões nas línguas locais, a par da tradução da bíblia naslínguas maternas angolanas), bem como, mais recentemente, ao nível, porexemplo, do CEFOJOR, que ministra cursos em várias línguas nacionais, e o daAlliance Française que ministra cursos em kimbundu; lições que poderiam

22| DIÁLOGO INTERCULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

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Será a religião um instrumento de dominação?Há geralmente um credo po-pular segundo o qual a re-ligião seria o “ópio do po-vo”. Devo admitir que aHistória apresenta as grandes reli-giões como suporte do comportamen-to das massas, e logo vem a mente acuriosidade de saber se os crentes nãoestariam apenas obedecer as vonta-des humanas dos seus líderes. Daí aminha pergunta inicial: será a religiãoum instrumento de dominação?Apraz-me aqui reflectir um pouco emtorno dessa questão.

Contextohistórico-filosóficoNos diálogos platónicos da Repúbli-ca, Sócrates defende que os jovens de-vem ser programados pela “razão”para que a sua integridade na socie-dade seja coerente. Ora, a religiãoprograma pela “fé” a integridade doHomem em geral. Busca-se a verda-de pela razão e a fé é auxiliada pelaimaginação.Na época medieval euro-ociden-tal, (séc. V-XV), a Igreja Católica afir-mou-se e buscou no modelo religio-so as ferramentas políticas para a“Cidade” romana. Nasce o catolicis-mo romano (Dave Hunt, pgs 231-233), do qual somos herdeiros. Razãopela qual Estado e religião mantêmsuas relações inelutáveis e proporcio-nou uma leitura dicotómica: os in-fiéis/desordeiros; os fiéis/ordeiros;católicos/cidadãos e não-católicos/indígenas, etc.A predominância da religião sobreo Estado manifestou-se de várias ma-neiras: no monopólio do ensino, naentronização e excomunhão de mo-narcas pela Igreja, etc., etc. A visão teo-cêntrica permitiu a Igreja legitimar arelação desigual senhor-servo e exer-cer o controlo sobre o pensamento dohomem medieval em todos os níveis,inclusive no domínio intelectual. Noséculo XVI o Catolicismo foi perturba-do com o surgimento da Reforma: omonopólio da interpretação dos tex-tos bíblicos passou ao alcance do cren-te. O pluralismo interpretativo pro-porcionou o liberalismo; este supor-tou a democratização e o fim da supe-rioridade do dogmatismo católico(Jostein Gaarder e outros, pp. 204-220). Ainda assim, a Igreja dispunhade muito poder: (i) acumulou riquezados reinos sob seu controle; (ii) afir-mou-se como potência diplomáticaentre os reinos adversários; (iii) deti-nha ainda milhares de fiéis a sacrificaras suas “vidas” em nome da fé católica.Com a descoberta das Américas, aEuropa projecta a “caça à riqueza”. Osolo americano, promissor, necessita-va de mão-de-obra. Esta será encon-

trada em África, sobretudo. Mas para osucesso disso dependeu da religião(católica romana e protestante). JomoKenyatta resumiria bem isso com assuas palavras, que cito (traduzo):“Eles tinham a Bíblia e nós as terras;eles ensinaram-nos a rezar com osolhos fechados. E quando abrimos osolhos (ao dizer ámen), eles tinham asterras, e nós a Bíblia”. Durante mais detrês séculos, os Africanos foram coisi-ficados, despersonalizados e vendi-dos como mercadorias. Os Estados-nação que surgiram na Europa oci-dental precisavam fazer fortuna e bus

caram na religião uma ferramentadecisiva para dominar.Em Angola, a religião contribui devárias formas (Schubert, 2000): naeducação, na pacificação, depois dosconflitos que tivemos, enquadrar/in-tegrar jovens/sociedade. Se a coloni-zação de Angola foi auxiliada pela reli-gião, e atendendo que a escravaturaterá sido potencialmente auxiliada pe-la “fé”, importa salientar que a desco-lonização da mesma contou com a re-ligião (Henderson, 2000). Eduardodos Santos (1969: 97-110; 201-213)aborda, na sua obra, o auxílio que asrevoltas de 1960-1961 em Angola ti-veram na mainmise da religião mes-siânica.Voltemos a nossa pergunta inicialque, acho eu, é o que nos interessa. Doque foi dito atrás, percebe-se que a re-ligião é, de facto, um instrumento deorganização social e pode, de modoigual, servir de suporte de estabilida-de na personalidade do indivíduo.Nesse pressuposto, vamos questionardois aspectos da religião perante o ho-mem: (i) medo; (ii) salvação.O medo da fraqueza que implantouo pecado original, o medo da “noiteprimitiva” e o medo do destino huma-no são os três pontos que, de certa for-

ma, dão poder a religião no ser huma-no. Se castigamos quem infringe a nor-ma/lei, como se castigará o “Homemimaterial” (alma?) pelos inúmeros pe-cados cometidos? Ou ainda, o queacontece depois da morte? Se os mitosexpõem um Inferno castigador, a cu-riosidade humana tem medo peranteo seu “destino”. A incerteza de não sa-ber se a morte do corpo significaria amorte do “espírito” que vivifica o cor-po, inquieta continuamente a curiosi-dade humana e a ciência ainda não es-clareceu esta “noite primitiva”.Da mesma forma que o homem bus-ca, continuamente, os meios da suasalvação, buscando na fé o suportepluridimensional, o homem constróias suas convicções e verdades comoforma de ter resposta às curiosidadesexistenciais. Existem duas salvaçõesno homem: (i) salvação material; (ii)salvação imaterial. Se a religião podeproporcionar riquezas (Weber,1964[2010]) aos indivíduos ou as ins-tituições, ela pode em mesma propor-ção, promover riquezas imateriais.

Perante o pecado adâmico (no suor dorosto comerás o seu pão, Bíblia: Géne-sis, 3:19), essa salvação apraz ao Ho-mem, perante o pecado humano (ul-tra-egoísmo do Homem explorar ou-tro homem) que busca um humanis-mo consigo mesmo.ConclusãoO termo religião, deriva do latim re-ligare/religere: (i) organizar; orde-nar; estruturar; (ii) submeter-se asnormas naturais/divinas; cumprircom o ordenamento tal como prescri-to/pré-estabelecido; etc. Eis a razãopela qual religião significa: temor aDeus, pratica de cultos, conjunto de ri-tos/cerimónias, veneração as coisassagradas, etc.Com essa definição, e de acordocom o que nós prescrevemos anterior-mente, fica claro perceber que a reli-gião seja um instrumento potente. Po-de dominar (como também libertar)indivíduos, instituições, países e con-tinentes.

João N’gola Trindade

GRAFITOS NA ALMA | 23Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

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24 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

Francisco Costa Alegre“Não somos puros, mas sim uma mestiçagem muito complicada”

Socialmente vestido de conselheiro da embaixada de SãoTomé e Príncipe em Angola, Francisco Fonseca CostaAlegre é um escritor que passaria despercebido numaesquina qualquer das nossas ruas sem que muitos (fa-lando aqui das consequências da carência de intercambio entreescritores dos PALOP) dessem conta do vulto literário santo-mense que passa ao lado. Sorte a nossa que, ainda numa daque-las sempre preguiçosas e frias manhãs de cacimbo, tivemos a au-dácia inexplicável até agora de nos esbarrarmos com ele e habil-mente, depois de um gradual golpe de vista, termos marcadouma conversa quente. Nascido no dia 2 de Fevereiro na cidade de São Tomé, São To-mé e Príncipe, fez os estudos secundários em sua cidade natal eestudos superiores de Francês em Besançon, França, e de Comu-nicação Social em Nova Iorque, Estados Unidos da América. Poeta, crítico e ensaísta, vem colaborando regularmente emjornais e revistas santomenses e estrangeiras. Da sua produçãosoam títulos como: “Madala”, poesia (1991), “Cinzas do Madala”,poesia (1992), “Mussandá”, prosa (1994), “Muteté”, prosa(1998), “Brasas de Mutété”, Prosa, Estudo da Literatura Santo-mense (1998), “Mussungú, poesia (2002), “Crónicas de Magodi-nho”, prosa (2003), “Kissanga-Kiando”, Crítica Literária (2004)Santomensidade, prosa (2006),“Latitude 63”, prosa (2008).

MAYOMBE (Ao Pepetela)Mayombe é terra de zumbidosAli aprende-se a teoria,Às vezes ergue-se, às vezes se sucumbeNo pólipo da sabedoria;Aprende-se a ser narradorFaz-se um animismo realistaSó e só do Mayombe real e animadorRenovador chamado universalista;Mayombe será sempre MayombeDiferente e sempre MayombeTransformar e ser sempre MayombeNo pólipo da sabedoria;Tocar-se-ão batucadas da Mucanda,E a cabindando a vida do povo andaAndará crioula e genuína no MayombeNo Polípo da sabedoria;Corta-se uma árvore.Corta-se o crescer duma sabedoria,Nascerão outras centenas de árvores E o saber multiplicar-se-á na geração que criaO pólipo da sabedoria;Luandando a gente se preocupaPreocupa-se com MayombeSer-se só Mayombe ou também luandandoNo realismo realista de toda árvoreNo pólipo da sabedoria.Francisco Costa Alegre in Mussungú

Carregado de franqueza e sensatez, virtudes que um bom escritornão dispensa, consciente da sua inquietante palpitação artística aoassumir a sua indefinição, que para os mais atentos pode ser visto

como claro sinal de solidez da sua intangível missão de criador, com pala-vras e modéstias que só a idade bem conseguida dá, Costa alegre deixa sem-pre à conversa o carimbo do africano que sabe bem ser santomense:

Cultura - Como define a literatura santomense de hoje?Francisco Costa Alegre - A literatura santomense de hoje está marca-da por realidades que os próprios protagonistas e operadores do tecer li-terário têm manifestado para fazerem o corpus dessa realidade literáriacontemporânea que ainda é incipiente. Envolvida na história de São To-mé, esta literatura divide-se em dois espaços: o período antigo e o períodorecente. O primeiro acaba em 1975 e o segundo até aos dias actuais, esteque é o período de passagem de testemunho onde se destacam nomes co-mo o contista e romancista Albertino Bragança, a poetisa Conceição deDeus Lima, o contista Jerónimo Salvaterra e muitos outros que vão tra-zendo novas auras à literatura santomense.C - Que sentido se pode ter da miscigenação santomense?F.C.A - Eu, por exemplo, me sinto dividido entre a descendência mo-çambicana e a portuguesa, e no meio estou sempre a me perguntar quem

sou. E é na ideia imediata de espaço onde me apego para afirmar que sousantomense.Isto já espelha que a república de São Tomé e Príncipe é determinante-mente um espaço sui generis onde há um pouco de todos. Nós temos des-cendências de angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, portugueses.Esta mescla de vários povos de diferentes lugares é que dá o sentido dacrioulização da literatura santomense. Todo corpus da literatura santo-mense contemporânea é uma desenvoltura desta mestiçagem.C - Em “História da Literatura Santomense” questiona: seremos verda-deiramente Bantu? Será a identidade deSão Tomé e Príncipe uma missãoainda por se cumprir? F.C.A - Com certeza que anossa definição como santo-menses é algo ainda por se des-cobrir. Em São Tomé existe aconsciência de um povo: o po-vo Bantu, que é originário dacosta africana e que de algumaforma não podemos estar de foradevido a nossa constituição como

Matadi Makola

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povo. E sempre que esta questão se coloca perguntamo-nos: será que o povosantomense é verdadeiramente Bantu? Porque quando se chega à questãoos santomenses questionam-se a si mesmo procurando definir uma identi-dade homogénea, e isto leva-nos à conclusão de que não somos puros, massim uma mestiçagem muito complicada. Ou, na procura de possibilidadesde nós, pode ser que aceitemos a mestiçagem como pureza/base para nosconstruirmos e daí advir uma pura definição de nós, porque São Tomé éuma mistura de muito sangue. E é sobretudo na prescrição sanguínea quenós nos afirmamos Bantu, embora conscientes de que não somos um povoBantu puro. C - Que reminiscências santomenses se pode ver do futuro africano ante orealismo? F.C.A - É uma questão bastante complicada. O futuro de África será cons-truído à medida que o tempo vai surgindo e como nós recebemos a estafetadas realidades dos antepassados e saibamos transpô-las às gerações daposterioridade. No conceito africano, seria a realidade da construção daidentidade santomense que eu, em alguns casos, chamo de santomensida-de. C - Acredita no risco do conceito e realidade africana ser um mito para aposterioridade ante os actuais níveis de aculturação? F.C.A - Todo o mito é uma referência de algo que se passou. Pode ser que,em consequência do realismo, o passado e conceito de África pura para o fu-turismo venha a ser um mito. Mas o mito como referência longínqua que asociedade mantém perene e que se conserve nas mentes a realidade africa-na. C - Do Poema Mayombe do livro “Mussungú” lêem-se apelos à sabedoriaafricana. O que fica por detrás do poema? F.C.A - Foi depois de ter lido o livro “Mayombe” de Pepetela que me veio ainspiração de escrever este poema. De facto, os velhos são apanágio de sabe-doria e a morte de cada velho é a morte de um dicionário, e muitas vezesuma biblioteca. Outra referência é o mito de que quando se corta uma árvo-re do Mayombe imediatamente nasce outra. Este poema é um apelo às bibliotecas vivas e da própria realidade em si,isto também pensando em invocar elementos culturais PALOP. C - Em “Madala” tem uma visão infinita e melancólica. Que acontecimen-tos externos o levaram a prescrever obra? F.C.A - Eu sou descendente de uma família de escritores, e essa minha pri-meira obra ainda é incipiente. Foi o meu primeiro passo na literatura. Eu es-crevi o livro inspirado nesta palavra que é originária de Moçambique, e queem São Tomé perdeu o sentido de ser velho e passou a ser talismã. C - Para quem acha que é o dever de realizar o sonho africano?F.C.A - O sonho de reavivar África é um desafio que nós todos encontra-mos. Já Alda do Espírito Santo dizia num dos seus poemas: “ A liberdade é apátria dos homens”. Isto querendo dizer que os homens enquanto não fo-rem livres de preconceito e ostentarem uma vida social estável eles não se-rão livres. Serão sempre oprimidos de uma ou de outra forma. Isso competeaos africanos, principalmente aos operadores literários a missão de trazeraos povos africanos uma mensagem de construção de um futuro e identida-de que nós podemos almejar. O africano não pode voltar as costas às ideiasdo desenvolvimento ou repudiar o melhor do ocidente. É preciso assentarnum adágio que explica que “o vinho é inimigo do homem, mas voltar as cos-tas ao inimigo é a maior cobardia”. Nós não podemos virar contra o ocidente,mas devemos enfrenta-lo encarnando os nossos valores culturais. C - Depois de uma vasta produção literária, como observa a missão de es-critor?F.C.A - De muitos sonhos. A nossa missão de escritores e sonhadores fazcom que muita gente afirme que os escritores vivem no espaço. Isso é verda-de. Mas os escritores não podem inteiramente viver no espaço. Eles vivemno espaço com a perspectiva de alterar o solo firme.C - Que dificuldades encontra o escritor santomense de hoje?F.C.A - O nível de aceitação de tendências do ocidente em São Tomé tam-bém é muito grande em relação às coisas puramente africanas. Não tantoaqui em Angola porque o processo torna-se mais fácil para os músicos e es-critores. Mas em São Tomé um dos grandes problemas é a falta de gráficas.Todas as minhas obras são publicadas em Portugal. Somente “Madala” é quefoi artesanal. E muitas vezes os revisores portugueses cortam a seu favorparte de alguns textos. Embora exista a liberdade de imprensa, eles só pu-blicam o que acham que não lhes afecta. Diferente seria se nós tivéssemos asnossas gráficas, ou uma sustentabilidade para o efeito. C - A que conclusão chega sobre o acto de escrever? F.C.A - Para mim, o acto de escrever é uma manifestação artística, um de-sabafo, uma maneira de divulgar a realidade do meu país, uma vontade fir-me de construir e de aprender. Eu quero ser um escritor santomense. Euainda não sou escritor. Tudo aquilo que eu faço dá-me alguma sustentabili-dade para me considerar um operador literário com ambições. Mas eu gos-

taria de aprender muito mais para poder escrever também, porque cada vezque eu escrevo eu noto em mim, quando me volto para trás, que tive pro-gresso pelas coisas que fui aprendendo sempre. Escrever é uma forma deme melhorar. C - Há uma definição justa para si?F.C.A - Eu sou escritor sem rosto. Ainda não tenho um rosto bem definido.Eu não posso dizer que sou um poeta, romancista ou crítico literário. Masposso dizer que sou um indivíduo que investiga e depois tenta compô-lo empoesia ou conto. Eu sou contista, e não um romancista.C - Com “Latitude 63”, “Rosas do Vento”, “A Cidade de São Tomé”, “Brasasde Mutété”e “Kissa-Kianda”, fruição intelectual e letargia académica podemjustificar a sua intervenção além da Literatura?F.C.A - A travessia que faço da Literatura à Sociologia e, embora um poucomenos, à Historia é necessidade minha como cidadão em contribuir para oregisto de factos históricos do meu povo. Um exemplo muito vivo é o caso dohino nacional de São Tomé e Príncipe ser produto de um texto crioulo queanda desaparecido e que até hoje ninguém consegue recuperar. Este textoera o hino de luta em combate. Hoje ninguém sabe como encontrá-lo. C - Pode afirmar-se como um crítico de critérios africanos?F.C.A – Confesso que ainda sou produto do ocidente. Mas não sou radical.Eu faço a crítica a partir de parâmetros ocidentais mas atendendo sempre arealidade africana e santomense. Na “Teorização da Literatura Santomen-se” tentei criar a teoria da literatura santomense como parte inseparável dahistória. À medida que se dá passos na história, a literatura também obede-ce aos critérios de mudança.

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 25Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

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Jean-Joseph Rabearivelo (1901 - 1937)Arte longa, vida breveAntônio Moura

minavam, durante todo o século ante-rior, os valores tradicionais da ilha, agrande Ilha Vermelha.Filho natural de uma jovem protes-tante de sobrenome Rabozivelo edescendente de uma casta real empo-brecida, a dos Zanadra Lambo, Jean-Casimir Rabe, seu nome verdadeiro,teve o apoio financeiro de um tio ca-tólico, que proporcionou-lhe os estu-dos. Sua vida acadêmica, porém, foicurta: iniciou seus estudos nos Ir-mãos das Escolas Cristãs, passandoem seguida ao Colégio Saint-Michel,de orientação Jesuíta, do qual é expul-so aos treze anos, finalizando sua tra-jetória escolar num liceu público, on-de passa apenas alguns meses. A par-

tir daí, converte-se em um jovem au-todidata com sede de erudição emcontra-posição ao ambiente miserá-vel que o cerca. Mas é preciso ganharo sustento e, para isso, o futuro poetatrabalha, sucessivamente, como se-cretário, escrevente e bibliotecário.Começa então a publicar seus primei-ros ensaios em revistas e periódicos,sob pseudônimos de aura romântica,como Almace Valmond ou Jean Osmé.O ano de 1923 tem para Rabearive-lo uma importância vital, por trêsmotivos princiais:Porque passa a trabalhar na Impri-merie de Imerina, de onde sairá amaioria dos seus livros e da qual ex-

trairá o necessário para a sua subsis-tência até a sua morte. Porque passa aser conhecido na Europa através deum artigo, em francês, sobre a poesiamalgache, publicada pela revista aus-tríaca missionária Anthropos.Porque conhece a Pierre Camo,que, de certa forma, será para ele oque o professor Georges Izambard foipara Rimbaud, incentivando-o, am-parando-o, introduzindo-o nos sa-lões artísticos e atualizando-o em re-lação ao que se havia feito e se estavafazendo na França.A partir desta época aparece a pri-meira parte de sua obra, mais preci-samente de 1924 a 1930, com La cou-Madagascar, na época donascimento de Jean-Jo-seph Rabearivelo, nomeartístico posteriormen-te adotado, é uma colônia francesae as classes dominantes, arruina-das, subsistem em convivência comos poderes estrangeiros, que já do-

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pe de cendre (1924), Silves (1927), Volumes (1928)e L´interference, uma novela sobre a sociedade co-lonial, publicada apenas postumamente, em 1988.Quanto aos poemas, no entender de Juan Abeleira,são ainda estilisticamente concebidos sob a influên-cia insidiosa da escola parnasiana, mas onde já sepode rastrear ao menos duas das maiores preocu-pações essenciais de Rabearivelo: o culto dos ante-passados e a exaltação da legendária Larivo.Obras que, na interpretação de H. Mariol, tradu-zem a luta interior do homem de letras ocidental emque Rabearivelo tinha se tornado e do indonésioque mantinha preservada a herança de seus ances-trais. 1924 é também o ano em que começa a escre-ver os Calepins Bleus (Cadernos Azuis), célebre diá-rio escrito até mesmo o dia da sua morte. Rabearive-lo casa-se em 1926 com Mary Razafitrimo, uma desuas alunas particulares, que, posteriormente, lhedará um filho e quatro filhas. Ainda que até nós te-nha chegado a imagem de um Rabearivelo muito ca-rinhoso com a sua progênie, parece que a relaçãoentre o poeta e sua mulher não foi o que se possa

chamar de harmoniosa. E, possivelmente, o princi-pal motivo disso tenha sido a crescente adesão deRabearivelo ao ópio. Droga a que recorreu mais co-mo um bálsamo às sua dores de corpo e de alma doque como fonte de inspiração, ainda que este fizesseparte de um suposto projeto poético e espiritualpróximo ao da vidência rimbaudiana.Então, a partir de 1929/30 sua vida vai decaindosem parar, ao passo que, paradoxalmente, sua obravai se elevando. O tema do mais-além, para citar ain-da uma vez mais Juan Abeleira, torna-se, aos pou-cos, uma obsessão que resultará fatal, somando-seum interesse real, não apenas literário, por astrolo-gia e ocultismo e todo o tipo de excessos que aca-bam por minar-lhe a saúde, já originariamente pre-cária, pois era asmático. Uma série de acontecimen-tos trágicos começam então a acumularse ao seu re-dor, até que a morte de sua filha Voahangy, em 1933,provavelmente causada por negligência de um mé-dico, transtorna-lhe profundamente.Para Jean-Joseph Rabearivelo, 1937, o seu últimoano de vida na terra, é uma sucessão de desilusões e

amarguras: sua saúde declina a cada dia, assim co-mo fica também cada vez mais difícil conciliar-secom a vida cotidiana no ambiente castrador da colô-nia; o governo nega-lhe, às vésperas, uma viagemprevista à Exposição Universal em Paris, onde umbailarino, Serge Lifar, iria interpretar sua cantataImaitsoalana; as dívidas acumulam-se e os credoreso levam aos tribunais, onde é declarado culpado.Diante deste quadro, tenta, num recurso deses-perado, acrescentar mais dinheiro aos seus rendi-mentos solicitando um posto de funcionário públi-co, mas a administração o recusa, por não possuirnenhum título oficial. Dois dias após a esta tentativafrustrada, no dia 22 de julho, o poeta escreve a últi-ma página do seu diário e suicida-se, ingerindo dezgramas de cianureto.DOIS POEMASDE JEAN-JOSEPHRABEARIVELO

O boi brancoEsta constelação em forma de cruz,é ela o Cruzeiro do Sul?Eu prefiro chamá-la Boi-branco,como os Árabes.Ele vem de um parque que se estendeàs margens da noitee se enfurna entre duas Vias Lácteas.O rio de luz não tem aplacado sua sede,e ei-lo que bebe avidamente do golfodas nebulosas.Sendo um efebo cego nas regiões do dia,ele nada tem podido acariciar com seuscornos;mas, agora que as flores nascemnas pradarias da noitee que a lua brota de um salto comoum touro,seus olhos recobram a visão, e eleparece mais forte que os bois azuise os bois selvagens que dormemem nossos desertos.LerNão faças ruído, não fales:vão explorar uma floresta os olhos,o coraçãoo espírito, os sonhos...Floresta secreta, porém palpável:floresta.Floresta de rumoroso silêncio,floresta onde se refugiou o pássaroque se prende à laço,o pássaro que se prende à laço,que faremos cantarou que faremos chorar.Que faremos cantar, que faremos choraro lugar de seu nascimento.Floresta. Pássaro.Floresta secreta, pássaro ocultoem vossas mãos.

Antônio Moura nasceu em Belém do Pará, em 1963, onde ainda re-side e trabalha. Poeta, letrista, roteirista de cinema e vídeo. Publicousas coletâneas Dez (1997), Hong Kong & Outros Poemas (1999) e RioSilêncio (2004).

EM TRADUÇÃO DE ANTÔNIO MOURA

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Rabearivelo,obras literáriascompletas, tomo II

País do autor: Madagáscar Autor: Jean-Joseph Rabearivelo

Edição: CNRS EditionsPaís de Edição: França

ISBN: 978-2-271-07390-7Género: estudos literários, críticas

Números de páginas: 1792Aparição: 07 Junho 2012Imaginemos, no início deste vigésimo sécu-lo, no coração de uma ilha ainda submetidaà França, um jovem de cor que descobre odom da expressão, associado ao amor pelasletras e pela língua francesa! Consciente de serum génio, Jean-Joseph Rabiearivelo, nascido em1903, trabalha então para se tornar no primeiro“intelectual” da sua nação. Poeta, jornalista e críti-co, romancista e dramaturgo, historiador e tradu-tor, ele esforçar-se-á para manter o equilíbrio en-tre o inato e a abertura de espírito que lhe foi per-mitida por um médio estrangeiro prestigioso.Ele que se diz “filho de reis de uma época lon-gínqua” mas vive em condições duras no seu es-tatuto de bastardo, será a luz brilhante da sua“raça”. Isto passará pelo domínio da língua doconquistador e pelo excelente destaque que elemostrará no campo literário de uma das mais an-tigas civilizações da Europa. Além disso, ele nãose esquece e não esquecerá nunca a língua e a ci-vilização malgaches. A sua perspectiva intelec-tual, literária, estética e crítica está traçada e oseu sonho mais querido é de por em contacto efazer passar uma cultura dentro da outra, ou se-ja, as duas culturas que são as suas: a europeia (afrancesa mais particularmente) e a malgache.A sua admirável criatividade não se contentaem explorar os modelos em vigor, e o domínio dalíngua francesa não significa submissão intelec-tual e moral ao conquistador. Esta língua vindade outros pontos, imposta primeiramente pelaforça das armas, mas amada apaixonadamente,pode tornar-se uma ferramenta de abertura aomundo e à universidade da literatura enquantoexpressão da dignidade humana.Este segundo tomo das suas obras completascompreende, em primeiro, a obra essencial, isto é,a obra de criatividade – a poesia, as narrações, aspeças de teatro – em seguida, a obra do eminentetransmissor de cultura e de civilizações que ele foidurante toda a sua fulgurante carreira – as tradu-ções de poemas malgaches tradicionais e contem-porâneos para o francês – e finalmente a contri-buição do intelectual engajado e criativo – os arti-gos críticos e os ensaios de história.

Edição crítica coordenadapor S. Metinger, L. Ink, L. amarosoa, C. Riffard

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DIÁLOGO INTERCULTURAL | 29Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012Dia Internacional da Memóriado Tráfico de Escravos e da sua abolição

Carlos Hernández Sot

A 23 de Agosto de cada ano, o mundo celebra o Dia Internacional da Memó-ria do Tráfico de Escravos e da sua abolição. O tráfico de escravos, praticado inicialmente por países europeus e logo a se-guir pela América colonial, teve a cumplicidade dos chefes africanos e duroudesde o século XV ao XIX. Era caracterizado pela captura, venda, transporte eexploração de mais de 15 milhões de pessoas e seus descendentes ao longo dequatro séculos (Curtin, 1969).Para não esquecermos este trágico processo, a UNESCO criou em 1994 o Pro-jecto “Rota do Escravo” e em 23 de Agosto de cada ano é prestada homenagemaos homens e mulheres que lutaram contra esta opressão.O comércio de escravos resultou na acumulação de capital nas grandes po-tências europeias e dos Estados Unidos da América e na base económica quepermitiu a industrialização da Europa e da América, enquanto a África ficoudespojada da sua riqueza, população e sua força de trabalho jovem. A acumula-ção primitiva do capital europeu e norte-americano é, portanto, amassado como sangue dos negros africanos.O tráfico negreiro foi também uma tragédia humana e um desastre cultural.Como parte da tragédia humana, famílias foram separadas e desunidas na Áfri-ca e negros escravizados na América, onde foram tratados como animais, sen-do-lhes negada a possibilidade de formação de famílias estáveis, e despojadosdas suas antigas culturas e suas línguas nativas.Os africanos escravizados foram proibidos de seguir as suas crenças e práti-cas religiosas e, consequentemente, foram doutrinados, embora superficial-mente, na religião católica. Mas na viagem transatlântica dos navios negreiros,os africanos também viajaram com os seus deuses, especialmente o aquáticos(mães de água), como Kalunga, a deusa do mar e da morte da bacia do Congo-Angola. Desembarcaram com eles em solo americano. A reunião e confronto deculturas deu origem a religiões sincréticas nascidos em terras do Novo Mundo:voodoo em suas diferentes versões, Santeria, Candomblé, algumas formas decatolicismo popular americano e outras expressões religiosas híbridas.Quando não foi possível a manutenção económica das colónias, ocorreu gra-dualmente, nos Estados Unidos, a abolição da escravatura, que nasceu disfarça-da como "acto misericordioso e compassivo", mas na realidade foi principal-mente devido a fortes razões económicas.Hoje, a luta contra a escravidão continua principalmente contra dois dosefeitos da história da escravidão: o racismo e a discriminação. Também conti-nua na luta pelo reconhecimento do pluralismo cultural na construção de no-vas identidades e a criação de uma ideia renovadade cidadania.No Dia Internacional da Memória doTráfico de Escravos e da sua Aboli-ção, o Dr. Simão Souindoula, histo-riador angolano, membro do Co-mité Científico Internacionalda UNESCO - Projecto Rota doEscravo, apresentou uma pa-lestra subordinada ao tema“¡KALUNGA EH ! LOS CON-GOS DEVILLA MELLA–Pa-trimónio Intangível da Hu-manidade”.Na sede da companhia deTeatro Laa-Roi teve lugar aterceira sessão do projectoAfidika nzo yeto, bukisi beto,com a projecção do filme“AMISTAD”, de Steven Spiel-berg. Costa de Cuba, 1839. Deze-nas de escravizados negros liber-tam-se das correntes e assumem ocomando do navio negreiro La Amis-tad. Eles sonham retornar para a África,mas desconhecem navegação e vêem-se obriga-dos a confiar em dois tripulantes sobreviventes, que os enga-nam e fazem com que, após dois meses, sejam capturados por um navio ameri-cano, quando desordenadamente navegaram até à costa de Connecticut.

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30 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura

Aexuberante presença do romancista Jorge Amado no panorama da li-teratura brasileira do sec. XX, trouxe um enorme contributo ao âmbi-to da linguagem e do debate de questões raciais até então sublimadas.O arejamento instaurado a partir da Semana de Arte Moderna, em1922, encheu o Brasil de entusiasmo criativo, especialmente o Nordeste, queelencaria na década seguinte, a mais importante linhagem de ficcionistas brasi-leiros. Surgia, quase na mesma geração, José Américo de Almeida, Raquel deQueirós, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Adonias Filho – e o próprio JorgeAmado.Porém, à parte as distinções de estilo, os demais romancistas do ciclo nordesti-no, mantêm uma certa coerência na temática e no manejo da linguagem, que seajustam à maneira de falar de toda uma região. Em cada um desses autores, é oNordeste em sua vasta cultura que se faz representar, com pouca diferença de umestado para o outro.Ao contrário disso, Jorge Amado é o Romancista da Bahia, aquele que é univer-sal, justamente, por contar a sua aldeia, como queria Dostoiévski.Nenhum escritor reinventou a Bahia como ele, nem mesmo os cientistas so-ciais da sua geração ou da anterior, que se esmeraram na busca da exatidão de fa-tos históricos e culturais. A Bahia de Jorge Amado é mítica, queimada pelo sol daraça negra, que deu ginga, amor e humor a uma terra que congrega seus litorâ-neos para a mística e para a vida mansa. Numa edônica atmosfera de luxúria tro-pical, aporta em sua prosa uma enorme legião de tipos humanos, que não repre-senta apenas o lado social periférico que a elite rejeita, mais que isso, Jorge ostransforma em figuras sedutoras e até mesmo apaixonantes em suas autênticascontradições.Durante décadas, em sua longeva trajetória de sucesso, nenhum outro escritorbrasileiro o alcançou. Traduzido para mais de trinta línguas, conheceu em vida oque todos almejavam. Por isso, também, teve que enfrentar duras críticas ao seuestilo e à sua abordagem na questão da negritude. Do estilo, criticaram-lhe a ver-ve redundante e as recorrências ao mesmo tema; da negritude, acusaram-no deexacerbar em suas obras, particularmente, a sexualidade da mulher negra, ge-rando um estereótipo degradante. Este, inclusive, é o aspecto de maior rejeição àsua obra, nos dias de hoje, na comunidade afrodescendente. E pode ter sido a cau-sa do ostracismo aos seus livros de pelo menos uma década sem novas edições.Seja como for, é impossível negar a enorme presença desse autor no imaginá-rio do povo brasileiro. Sua hábil construção de personagens só é comparável aosgrandes do passado, como Machado de Assis e Lima Barreto. Além disso, as críti-cas que lhe são desferidas, se por um lado se ancoram em algum fundamento, poroutro, não são de todo justas, porque, dá lição de moral não é papel do ficcionista. Como cidadão, Jorge Amado foi um homem ajustado à sua época e às suas de-mandas. Comunista de primeira hora, aliou-se às causas mais urgentes do seutempo, sujeitando-se(juntamente com a sua amada de vida inteira, a também es-critora Zélia Gattai)a exílios e restrições diversas em prol dos seus princípios. Ex-tremamente afetivo, fez jus ao sobrenome Amado: mimou e foi mimado pelosamigos e pelo povo da Bahia e do Brasil, sua famosa generosidade abriu cami-nhos para muitos que se iniciaram no incerto mundo das letras(inclusive,a únicacoletânea do poeta Agostinho Neto, lançada no Brasil,tem prefácio seu).De modo que, as comemorações que se levantam no centenário do seu nasci-mento, são o justo prêmio a um extraordinário escritor que amou a literatura e oseu país mais do que tudo.

Salgado Maranhão

O Amado do Brasil Quarenta espetáculos teatrais vão encher a cidade do Mindelo,na ilha de S. Vicente, Cabo Verde, de 7 a 15 de Setembro próxi-mos, durante o grande festival cénico que costuma ser o Minde-lact. Criado em 1995, por iniciativa do português João Branco, que se fi-xou naquela ilha, o certame confrontou-se este ano com algumas dificul-dades, sobretudo as resultantes da grave crise económica internacional,a qual acabou por afetar este muito significativo festival da melhor dra-maturgia.Vencendo com denodo as dificuldades, o Mindelact sobe aos diversospalcos mindelenses, desde o Centro Cultural até à Academia Jota Monte.Este ano, suscita muita expetativa a Teatrolândia, isto é, uma iniciativaparalela ao Festival que funciona como um seu segmento dedicado aopúblico juvenil.Grupos cénicos de sete países vão atuar neste Mindelact, com desta-que para Angola (cujo Elinga Teatro será uma das grandes atrações).Mas além de Angola, vão estar presentes companhias vindas do Brasil,de Marrocos, de França, Itália, de Portugal e, obviamente, de Cabo Verde.Durante os oito dias de representações, realizam-se cursos de forma-ção que servem para garantir a continuidade da qualidade das apresen-tações, criando novos e mais protagonistas da cena cabo-verdiana.O teatro de rua, concorrendo com o que se mostra nos palcos, dá enor-me projeção pública ao Mindelact que, nesses dias, se converte na capi-tal, por excelência, da dramaturgia em Cabo Verde. No entanto, o esforçodesta Associação não se restringe ao Mindelo, propagando-se dele a to-do o arquipélago.

Nuno Rebocho

Mindelactarranca

no Mindelodurante 8 dias

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BARRA DO KWANZA |31Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012

As minhas primeiras relações com a justiçaforam dolorosas e deixaram-me funda im-pressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos,por aí, e figurei na qualidade de réu. Certa-mente já me haviam feito representar esse papel, masninguém me dera a entender que se tratava de julga-mento. Batiam-me porque podiam bater-me, e istoera natural. Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, pu-ramente físicos, desapareciam quando findava a dor.Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda no-dosa que me pintou as costas de manchas sangrentas.Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distin-guia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deita-ram-me, enrolaram-me em panos molhados comágua de sal – e houve uma discussão na família. Minhaavó, que nos visitava, condenou o procedimento da fi-lha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem que-rer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó.Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado me-nor estrago. E estaria esquecida. A história do cintu-rão, que veio pouco depois, avivou-a.Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme.Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afas-tadas, rede infinita, os armadores longe, e meu paiacordando, levantando-se de mau humor, batendocom os chinelos no chão, a cara enferrujada. Natural-mente não me lembro da ferrugem, das rugas, da vozáspera, do tempo que ele consumiu rosnando umaexigência. Sei que estava bastante zangado, e isto metrouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se aminha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não le-vavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessaesperança frágil. A força de meu pai encontraria re-sistência e gastar-se-ia em palavras. Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa,fui encolher-me num canto, para lá dos caixões ver-des. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela docorredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nis-so, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minhamãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissemde repente, me livrassem daquele perigo. Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado esem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali vio-lentamente, reclamando um cinturão. Onde estava ocinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me:atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinarcom o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos,atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos designificação. Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando va-gas lembranças dela a fatos que se deram depois, ima-gino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minhatremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O as-sombro gelava-me o sangue, escancarava-me osolhos.Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ain-da que tivesse escondido o infame objeto, emudece-ria, tão apavorado me achava. Situações deste gêneroconstituíram as maiores torturas da minha infância, eas consequências delas me acompanharam.O homem não me perguntava se eu tinha guardadoa miserável correia: ordenava que a entregasse ime-diatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça,nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira. Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir umapessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima,como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece,uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro.

A horrível sensação de que me furam os tímpanoscom pontas de ferro. Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo. A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgos-to. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, mo-vendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silencio-sos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sa-la, talvez as pancadas se transferissem. O moleque eos cachorros eram inocentes, mas não se tratava dis-to. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me es-queceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beirado açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro,sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazen-da abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a gi-rar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todosos cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zun-zum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estavao cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre domartírio. Havia uma neblina, e não percebi direito os movi-mentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno epegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arras-tou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eudevia saber que gogos e adulações exasperavam o al-goz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era umpobre-diabo. Achava-me num deserto. A casa escura, triste; aspessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recor-do-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas.Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pen-diam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha ir-mãzinha engatinhava, começava a aprendizagem do-lorosa. Junto de mim, um homem furioso, segurando-meum braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas nãofossem muito fortes: comparadas ao que senti depois,quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco.Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas pararodopiar na sala como carrapeta eram menos um si-nal de dor que a explosão do medo reprimido. Estive-ra sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava ospulmões, movia-me num desespero. O suplício durou bastante, mas, por muito prolon-gado que tenha sido, não igualava a mortificação dafase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, osgestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma in-terrogação incompreensível. Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar aspisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vimeu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, omaldito cinturão, a que desprendera a fivela quandose deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Ti-ve a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, acara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procu-raram o refúgio onde me abatia, aniquilado. Pareceu-me que a figura imponente minguava – e aminha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse che-gado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que apresença dele sempre me deu. Não se aproximou:conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois seafastou. Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espu-mando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão in-significante e miúdo como as aranhas que trabalha-vam na telha negra. Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.

Um cinturãoCONTO de Graciliano Ramos

Graciliano Ramos considerado um dosmais importantes escritores do moderno ro-mance brasileiro, nasceu no dia 27 de outu-bro de 1892, na cidade de Quebrangulo, ser-tão de Alagoas, filho primogénito dos dezas-seis que teriam seus pais, Sebastião Ramos deOliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu asua infância nas cidades de Viçosa, Palmeirados Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regimedas secas e das surras que lhe eram aplicadaspor seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo,a ideia de que todas as relações humanas sãoregidas pela violência. Em seu livro autobio-gráfico "Infância", assim se referia a seuspais: "Um homem sério, de testa larga (...),dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; umasenhora enfezada, agressiva, ranzinza (...),olhos maus que em momentos de cólera se in-flamavam com um brilho de loucura".

Em 1894, a família muda-se para Buíque(PE), onde o escritor tem contacto com as pri-meiras letras.

Em janeiro de 1953, é internado na Casa deSaúde e Maternidade S. Vitor, onde vem a fa-lecer. É publicado o livro "Memórias do cárce-re", que Graciliano não chegou a concluir, ten-do ficado sem o capítulo final.

Bibliografia:- Caetés - romance- São Bernardo - romance- Angústia - romance- Vidas secas - romance- Infância - memórias- Dois dedos - contos- Insônia - contos- Memórias do cárcere - memórias- Viagem - impressões sobre a Tcheco-Eslová-

quia e a URSS.- Linhas tortas - crônicas- Viventes das Alagoas - crônicas- Alexandre e outros irmãos (Histórias de

Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pe-quena história da República).- Cartas - correspondência pessoal.

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32 | NAVEgAçõEs 3 a 16 de Setembro de 2012 |Cultura

2012 Ano Internacional das Cooperativas | Ano Internacional da Energia Sustentável para Todos 2003 – 2012Década da Nações Unidas para a Literacia – Educação para Todos2005 - 2012Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável | Segunda Década Internacional

dos Povos Indígenas do Mundo 2005 – 2015Década Internacional para a acção, “Água para a Vida” 2008 - 2017Segunda Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza 2010 - 2020Década das Nações Unidas para os Desertos e a Luta contra a Desertificação.

Efemérides

Em meados dos anos 70 o bairrinhopobre vivia tempos conturbados comotodos os outros bairros e regiões dopaís. As mudanças radicais que se

anunciavam vinham alterar convicções e cer-tezas. Os mais velhos perdiam as marcas dumpassado recente, adquiridas em detrimento desuas próprias identidades, e desconheciam ofuturo que lhes parecia incerto. Viam, assusta-dos, seus filhos, generosos, abraçarem “novostempos e novas vontades”. A menina do bairrinho pobre, agora adolescente,identificava-se com estes novos tempos. Esqueceutemporariamente a Faculdade e voltou à escolaprimária do seu bairrinho para ensinar a ler e aescrever aos operários, empregadas domésticas,lavadeiras e outros trabalhadores que não tinhamtido acesso à escola. Gostava de ensinar e aperce-beu-se, admirada, que preparava as lições de alfa-betização dos seus alunos com o mesmo afincoque preparara as suas aulas na escola e no liceu.Duas barreiras se lhe deparavam e, na sua idade einexperiência, pareciam-lhe gigantescas: o fossoda idade entre ela e os adultos que afalbetizava ea dificuldade da luta contra o analfabetismo. Todaa sua educação fora baseada no respeito pelosmais velhos que tinham sempre razão mesmoquando não a tivessem. Como iriam eles agoraaceitar que ela lhes ditasse regras? Começou a sua primeira lição de pedagogia, noterreno. Aqueles mais velhos não sabiam ler maspossuíam sabedorias que ela ignorava e que eleslhe foram transmitindo enquanto ela lhes revelavao novo mundo das letras e dos números. E nessatroca de saberes, enriqueceram-se mutuamente,cada um se apoiando na sua experiência e compe-tência. Afinal não fora necessário “ditar regras”mas procurar em si palavras e gestos simples paratransmitir uma técnica que os adultos analfabetos

desconheciam. Com espanto, a menina-professoraconstatou que o lápis que ela manipulava distrai-damente e com ligeireza se transformava num ins-trumento cortante que os alunos adultos,receosamente, ostentavam entre os dedos hirtos etensos, tal um punhal trespassando as páginas docaderno. A letra “a” ondulante, maleável, o “b” es-belto que se esticava vaidoso e que ela tão bemsabia desenhar, desafiavam os alfabetizados adul-tos que, após um dia de trabalho, se dirigiam co-rajosamente à escola, a mesma para onde tinhammandado estudar os filhos, hoje seus professores! A jovem do bairrinho pobre entendeu a complexi-dade da arte de ensinar. Teve sempre uma empa-tia com os seus alunos e deles recebeu asprimeiras lições empíricas de pedagogia que va-liam certamente muitas aulas na Faculdade! Masisso a jovem do bairrinho pobre só descobriu

muito mais tarde quando defendeu a sua tese depedagogia na Faculdade, já no estrangeiro, no seuexílio voluntário. Paris, 05 de Janeiro de 2012

Ximinya

O lápis da menina-professoraKudilonga

Mar de MargaridasDoces olhos aguadosde marfitando o áridodos meus olhos secosnum mar de margaridasbebi água do teu olhare sorri

Flormulherpétalas de melno olhar magoadosal na doçurae eu

Eume saceiona frescurado teu seio

Filipe Zau

Do livro “Encanto de um Mar que eu Canto” (1996)