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DESINFORMAÇÃO, PROPAGANDA E AS VAPOROSAS RELAÇÕES ENTRE INTERESSES CORPORATIVOS E POLÍTICOS: UM ESTUDO DE CASO
SOBRE A CANNABIS.1
Aryovaldo de CastroAZEVEDO JUNIOR2
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PRKennedy Baccarin da SILVA FILHO3
Fernanda Santos FERDINANDI4
Missouri StateUniversity
RESUMOHá muito tempo os interesses econômicos pautam diretrizes políticas de modo a influenciar no comportamento social com a implementação de legislações que tendem a beneficiar o status quo de grupos que detém o poder em detrimento de interesses da sociedade. Esta relação comensalista, na qual os detentores do poder se beneficiam sem que haja prejuízo explicito à sociedade, é retratada neste artigo que estuda a relação entre interesses corporativos e a implementação de políticas proibicionistas relacionadas à cannabis, com o uso intensivo de desinformação e propaganda para a construção de uma imagem nociva com forte preconceito social.
PALAVRAS-CHAVE:Propaganda; Oligopólios; Legislação; Maconha; Consumo.
IntroduçãoNão é necessário remontarmos a Aristóteles a fim de compreendermos o aspecto
político da natureza humana. O outro, e a necessidade social de comunicar-se a outro,
parece estar além de temas de discussões filosóficas, pois é também ferramenta do
desenrolar evolutivo, nós, eu e você, nos comunicamos a todo instante, inclusive agora,
seja enquanto escrevo, seja enquanto você leitor, lê. A ordenação de elementos
discursivos com objetivos persuasivos ou a organização de ideias de modo a convencer
o outro a determinado tipo de comportamento é uma das principais características
humanas e deriva daí a percepção de que informação e desinformação seriam os dois
lados da moeda da comunicação persuasiva que, em última instância, caracteriza o
discurso da propaganda.
1 Trabalho apresentado no XPró-Pesq PP – Encontro de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda. De 22 a 24/05/2019 no CRP/ECA/USP.2Professor Doutor do Curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Paraná,[email protected] em Comunicaçãopela Missouri StateUniversity, [email protected] em Comunicação pela Missouri StateUniversity,[email protected]
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O termo “propaganda”, balizado pela Igreja Católica, surgiu, justamente para se referir à
dogmatização das crenças daquele grupo. Assim sendo, a propaganda está relacionada
com a formação de comportamentos, embasando-se diretamente no posicionamento
ideológico das pessoas. A propaganda, derivada do latim propagare, que significa
plantar. No caso, plantar uma ideia e fazer florescer comportamentos influenciados pelo
emissor da informação (AZEVEDO e PANKE, UFG, 2017).
Conforme Sant’anna (2002), “propaganda compreende a ideia de implantar, de incluir
uma ideia, uma crença na mente alheia” (Sant’Anna, 2002, p. 75). Crenças e reflexos
que amiúde modificam o comportamento, o psiquismo e mesmo as convicções
religiosas, políticas ou filosóficas, que dialoga contemporaneamente com técnicas
publicitárias que visam ajustar-se aos interesses do público por meio de mensurações
variadas e, assim, garantir sua adesão (Sant’Anna et al. 2009, p. 335). Althusser (1974),
ao teorizar sobre os Aparelhos Ideológicos do Estado, sinalizava que entre os mais
poderosos estão justamente os que não possuem aparência repressora como escolas,
igrejas, associações e família. Para formular o conceito de ideologia, o autor formula
três hipóteses: a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais
condições de existência; a ideologia tem uma existência porque existe sempre num
aparelho e na sua prática ou suas práticas; a ideologia interpela indivíduos como
sujeitos.
Para Barthes (2003) toda a ideologia é linguagem, é discurso. E a ideosfera é um
sistema discursivo tão forte que um grande número de pessoas pode imitar, falar, sem
saber. Assim, para forjar comportamentos, deve-se influenciar o posicionamento
ideológico das pessoas e, para tal, incutir interpretações que organizam a superestrutura
das ideias de modo a naturalizar percepções (RAMOS, 2015). No contexto
contemporâneo e, como foco deste artigo, consideramos a propaganda como base de
sustentação ubíqua ao funcionamento do capitalismo e propomos um estudo de caso
sobre a o uso da (des)informação de modo a identificar a rede de interesses entre
corporações, mídia e política na criminalização da cannabis no decorrer do século XX
Propaganda e Negócios
Uma vez que evocamos essa instância primordial antropológica (a comunicação), é
necessário contextualizar a questão, afinal de contas o assunto deste artigo, a integração
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entre informação e desinformação na construção da percepção social da realidade,
fenômeno que remete a essa longa discussão sobre a comunicação entre pares na
sociedade, não obstante, uma vez que consideramos o contexto histórico, com foco nos
desdobramentos na área da comunicação mercadológica e suas consequências políticas,
aqui ao falarmos de propaganda estamos considerando estruturas macro sociais,
dinâmica composta por várias camadas e consequências práticas, nas quais buscamos
compreender o viés mercadológico no qual ações de informação e / ou desinformação,
usadas de modo orquestrado, geram repercussões sociais com, no caso, objetivos
comerciais influenciados por corporações.
A maior parte dos produtos culturais, como filmes, programas de televisão, música,
livros, revistas, jornais, publicidade, além da posse de sistemas de transmissão por cabo
ou satélite, está restrita a grandes empresas de comunicação e entretenimento, que
oligopolizam o sistema e têm, assim a capacidade de influenciar em comportamentos
sociais através de plataformas midiáticas (McChesney 1997). Assim, o constante fluxo
de estímulos influenciadores induz à padronização comportamental, levando à
massificação de atitudes e perpetuação de valores consumistas. Este é o campo da
indústria cultural: diversas formas de manutenção ou adequação de comportamentos
sociais aos interesses dos oligopólios ou, a representação ideológica de sustentação dos
oligopólios através da comunicação de massa (ADORNO apud COHN, 1986).
Por exemplo, o americanwayoflife espalhou-se pelos quatro cantos do mundo no século
XX, tornando-se seminal no processo de globalização cultural contemporâneo. Os
filmes hollywoodianos possibilitaram a apresentação do modo norte-americano de se
viver a vida, sua maneira de encarar problemas, suas soluções para eles, seu modo
particular de alcançar a felicidade e o próprio conceito de felicidade (AZEVEDO e
GONÇALVES, 2016). As informações sobre esse modo norte-americano de estar no
mundo nos eram dadas tanto no roteiro dos filmes, nas falas dos personagens, em suas
atitudes, como também na própria organização da imagem exibida, nos
enquadramentos, na montagem, na mise-en-scène.
O cinema americano propagandeia o estilo de vida e fomenta novos mercados que acabam por se verem associados a esta cultura. O presidente Herbert Hoover (1929/33) notava que “onde quer que o filme americano penetre, nós vendemos mais automóveis, mais bonés e mais vitrolas americanas”. (...) o conceito de americanwayoflife
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procura legitimar o sistema econômico e social dos EUA (...) (PEREIRA, 2012, p.220).
Nas décadas de 1930 e 1940, durante a gestão do democrata Franklin D. Roosevelt, os
EUAusaram a indústria cinematográfica como forma de propagar a Política de Boa
Vizinhançana América Latina, construindo uma identidade pan-americana como parte
do esforço de guerra (2a Guerra Mundial). Carmen Miranda e Zé Carioca são exemplos
desta dinâmica da propaganda no continente americano (ZAGNI, 2008).
(Des)Informação, corporações e maconha
A maconha tem sido presente na sociedade humana há pelo menos 7 mil anos, como
indicam relatos sobre seu uso medicinal na China, Grécia e Oriente Médio
(BUGIERMAN, 2011). A planta era também importantíssima na economia mundial, já
que durante centenas de anos o cânhamo era a principal matéria-prima de tecidos e
papéis, tendo sido empregado nas telas dos pintores da Renascença, nas velas dos
barcos das Grandes Navegações e até mesmo no papel da Declaração de Direitos que
fundou os Estados Unidos (BUGIERMAN, 2011, Posição 840/9). Desta relação
simbiótica, a maconha passou a ser criminalizada no início do século XX,
coincidentemente num período em que a indústria petrolífera crescia de importância e
os tecidos sintéticos começavam a ganhar mercado e tinham no cânhamo um forte
concorrente. Premissa válida também para a indústria farmacêutica, com o florescente
patenteamento de remédios tradicionais, geralmente derivados de plantas usadas há
séculos por seu valor medicinal, e que tinham seu princípio ativo isolado em
laboratórios, posteriormente registrados e patenteados para, posteriormente serem
comercializados com altas margens de lucro (BUGIERMAN, 2014, Posição 929)
Neste contexto concorrencial, em que indústrias floresciam e buscavam uma expansão
consistente, a desinformação tornou-se uma importante ferramenta para consolidar
reservas de mercado que buscavam eliminar um concorrente que estava entranhado na
sociedade humana, passando a fomentar a produção de conteúdos científicos,
jornalísticos e de entretenimento que pudessem criminalizar a maconha e, por
consequência, eliminar sua concorrência em importantes setores da economia. A relação
entre a criminalização da cannabis sativa com ações de propaganda obliterou a
percepção social a ponto de criminalizar internacionalmente uma planta fortemente
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presente na sociedade humana desde suas origens. Para tanto, normalmente estudos
científicos que mostraram seus benefícios não recebiam a divulgação adequada,
enquanto críticas eram supervalorizadas em coberturas jornalísticas enviesadas e em
produções culturais que vinculavam a maconha à criminalidade. Este tipo de ação
orquestrada ainda é presente no contexto contemporâneo, como demonstram
documentários como The TrueCost5, sobre a indústria da moda; Cowspiracy6, sobre a
indústria alimentícia; e Noam Chomsky And The Media: Manufacturing Consent7sobre a
indústria da propaganda. Todos corroboram a importância da (des)informação como
ferramenta de dominação. Como afirma o próprio Chomsky (1992) “A propaganda está
para a democracia assim como a violência está para a ditadura”.
Voltando à questão da maconha, por exemplo, a primeira legislação em nível federal
nos Estados Unidos a proibir a cannabis para usos terapêuticos, industriais e recreativos
intitulada Marijuana TaxAct8 foi proposta ao Congresso americano em 1937 por Harry
J. Anslinger, então diretor da FBN (Federal Bureau ofNarcotics), órgão governamental
responsável pelo controle de substâncias narcóticas na época. A medida basicamente
estipulava tarifas e procedimentos burocráticos impraticáveis para o uso comum da
cannabis como remédio, resultando em sua retirada da farmacopeia americana alguns
anos mais tarde. Como argumento de sua proposta, Anslinger utilizou do relato de
supostos especialistas para mistificar aspectos nefastos da droga (DOLCE, 2016, p 20).
Embora organizações como a AMA (American Medical Association) tenham atestado
“não conhecer nenhuma evidência de que a marijuana era uma droga perigosa” e que
por isso se posicionavam contra a legislação restritiva proposta por Anslinger, tais
argumentos foram ignorados e os congressistas passaram a proposta de lei no
Congresso, emagosto de 1937, corroborando a ação de alguns estados americanos que já
haviam imposto leis contrárias ao uso da cannabis motivados pelo medo das ondas de
imigrantes mexicanos, que eram associados ao submundo, violência e comportamento
antissocial por conta do consumo da marijuana, oportunamente renomeada para
potencializar o vínculo com a comunidade latina. Essa corrente migratória de mexicanos
assustava grande parte da população norte americana e, somada aos interesses de 5https://www.netflix.com/br/title/800456676 https://www.netflix.com/br/title/800337727https://www.youtube.com/watch?time_continue=10&v=dDLEJS8cERc8 http://www.druglibrary.org/schaffer/hemp/taxact/mjtaxact.htm
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indústrias de bebidas alcoólicas, recentemente liberadas para o consumo legal, após
anos de proibição pela Lei Seca9, permitiu que a FBN, após a aprovação de leis como a
Marijuana Act, ampliasse suas técnicas de ação contra as drogas nos EUA se valendo de
um contexto que mesclava o medo da população aos interesses de lucro de algumas
corporações que, associados a parte da imprensa, conseguiam influenciar a opinião
pública e, consequentemente, os congressistas.
Em 1937 o diretor da FBN escreveu e publicou em jornais e revistas sob controle de
William Randolph Hearst10, milionário da época que comandava os principais jornais de
cobertura nacional no território americano, o artigo Marihuana: AssassinofYouth11no
qual argumentava que o uso da erva, ainda pouco conhecida pela população, era
indutora de comportamentos “imorais” como a relação sexual interracial, assassinatos e
insanidades variadas.
A FBN, na mesma linha polemista, financiou a produção de filmes educativos sobre a
maconha, com roteiros cinematográficos que retratavam acannabis como capaz de levar
pessoas a cometer os mais diversos tipos de crimes. Um dos títulos mais marcantes
desse contexto foi o ReeferMadness12que mostra jovens sobre o efeito da erva se
divertindo de forma promíscua.Essa hiperbólica e alarmista campanha de
propagandaencabeçada pela FBN foi a primeira responsável pela disseminação de
informações equivocadas sobre a cannabis, com influência na construção da opinião
pública norte americana, justificando diversas movimentações políticas contrárias a
cannabis que aconteceram no decorrer dos anos em que Anslinger comandava a guerra
às drogas. O ápice de seu trabalho político foi a Single
ConventiononNarcoticDrugs(United Nations, 1961), que classificava as diversas drogas
existentes em diferentes categorias de risco, sendo acannabis classificada na categoria
mais perigosa, ao lado da heroína (!). Esta Convenção estipulava regras de combate e de
penalização de usuários e traficantes em escala internacional, de acordo com a estrutura
inicial construída na América e focada em algumas drogas notadamente estrangeiras,
9 https://super.abril.com.br/historia/o-que-foi-a-lei-seca/10 https://expresso.pt/blogues/opiniao_daniel_oliveira_antes_pelo_contrario/ascensao-e-queda-de-william-randolph-hearst=f729368#gs.4xa7es11https://origins.osu.edu/article/2437/images12https://bostonhassle.com/event/thc-double-feature-reefer-madness-marihuana
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como a marijuana, cocaína e heroína, ignorando desde o início o tabaco e o álcool,
drogas consolidadas e largamente comercializadas nos EUA.
Nixon, hippies e a cannabis
Anos mais tarde outro político norte americano, desta vez o então presidente
republicano Richard Nixon, viria a ignorar a ciência mais uma vez em prol de
umadogmática visão unilateral contrária a maconha, fortemente inspirada pelo legado
deAnslinger. Nixon praticou uma política de restrição às liberdades individuais
referentes ao uso de drogas, sem restrições ao orçamento no combate ao tráfico de
entorpecentes, especialmente os vindos dos países latino americanos. Em busca de
argumentos para justificar sua empreitada, o então presidente montou a
NationalCommisionon Marijuana andDrug Abuse encabeçada pelo governador
republicano da Pennsylvania Raymond P. Shafer, em busca de desenvolver um relatório
favorável ao combate à cannabis (DOLCE, 2016, p 27). O objetivo de Nixon era claro:
conseguir apoio da ciência para justificar uma ofensiva agressiva contra as drogas,
especialmente contra a cannabis. Intitulado Marihuana: a SignalofMisunderstanding, o
trabalho da Comissão tratava de vários dos aspectos legais, medicinais, psicológicos e
culturais da cannabis e propunha uma política de desencorajamento do uso de maconha
(UNCDAM, 1972).
A Comissão estruturada por Nixon chegou à conclusão de que o Estado deveria
concentrar esforços em impedir o tráfico internacional e de grandes traficantes, mas não
deveria penalizar com encarceramento usuários e o comércio casual de maconha entre
amigos. Esse resultado, oposto ao esperado, desagradou a Richard Nixon e o levou a
desmantelar a Comissão. O então presidente desconsiderou todos os ajustes de lei
propostos pelo grupo e todos os argumentos apresentados, mantendo a cannabis e todos
os seus produtos, inclusive o CBD13, que já era reconhecido pelo seu potencial
medicinal, na lista I de substâncias controladas, ao lado da heroína. Seu posicionamento
deu início a uma nova era de desinformação acerca da cannabis com a propagação de
dados e informações sem fundamentação científica, mas que serviam de suporte a ações
de governos aliados aos EUA ao redor do mundo.
13O canabidiol (CBD) é uma das 113 substâncias químicas canabinoides encontradas na Cannabis sativa,não produz euforia nem intoxicação, agindo em outros sistemas de sinalização cerebral, com potenciais efeitos terapêuticos.
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O processo pós-Nixon
Alguns anos depois de Nixon, o democrata Jimmy Carter se posicionou de forma mais
favorável à flexibilização das leis contra a cannabis nos EUA, tendo inclusive
anunciado que pretendia promover uma política de não apreensão de pessoas que
carregassem até 28 gramas de maconha consigo, seguindo as sugestões da pesquisa
patrocinada (e ignorada) por Nixon. No entanto, este posicionamento foi abalado
politicamente quando seu conselheiro de política sobre drogas, Dr. Peter Bourne, foi
flagrado inalando cocaína em uma comemoração de Natal da NationalOrganization for
theReformof Marijuana Law (NORML) em 1977 (DOLCE, 2016). Embora Bourne
tenha negado, a pressão midiática obrigou Carter a desistir do seu programa de
flexibilização de política sobre drogas. Esse fato abriu espaço para que o próximo
presidente, o republicano Ronald Reagan, fosse eleito posicionando-se com firmeza
sobre o tema, chegando a declarar que as drogas eram o problema número um da
América. Ele reviveu a guerra às drogas de Nixon e transferiu bilhões de dólares que
iam para programas decombate às drogas. Em um ano de governo Reagan, os empregos
relacionados ao combate ao crime e ao sistema carcerário norte americano aumentaram
36% e 86%, respectivamente (DOLCE, 2016). Sua administração também aumentou
consideravelmente as penas com relação ao cultivo, posse e venda de cannabis e lançou
satélites para vistoriar áreas da América do Sul e Central a fim de erradicar plantações
de coca e maconha em vários dos países vizinhos. Ronald Reagan junto de sua esposa
Nancytambém lançou uma das primeiras e mais icônicas campanhas antidrogas,
intituladaJust Say No14.
A campanha era parte do programa criado pela administração Reagan chamado DARE
(Drug Abuse ResistanceEducation) e Nancy foi sua porta-voz. Pela primeira vez,
policiais começaram a ir até as escolas falar diretamente com os jovens americanos e
descrever as drogas como algo perigoso do qual eles deveriam se afastar por questões
morais. O usuário fora pintado nessa época como uma pessoa “imoral” e aceitar o uso
de drogas foi descrito como um comportamento repreensível pela sociedade.
Campanhas como a Just Say Noprosperaram e foram exportadas para países parceiros,
como o Brasil, onde foi intitulada como Programa Educacional de Resistência às
14https://medium.com/@drcarlhart/below-is-my-interview-with-the-takeaway-about-nancy-reagan-s- infamous-campaign-ad6c214f46c1
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Drogas e à Violência (PROERD) e desde 1993 está presente em todos os estados
brasileiros seguindo as mesmas bases da estrutura criada nos EUA, sendo ministrado
pela Polícia Militar15, que visita escolas levando mensagens antidrogas para crianças de
várias idades.
Além deste tipo de ação, o governo norte americano ficou mais criativo na propagação
de mensagens antidrogas na administração do democrata Bill Clinton, quando o
ONDCP (Office ofNationalDrugControlPolicy) investiu cerca de 25 milhões de dólares
por ano nas cinco maiores empresas de televisão norte-americanas para editar roteiros
dos principais programas televisivos da época como The Beverly Hills, 90210; Sabrina,
theTeenageWitch; The Drew Carey Show; The Practice; Boy Meets World; 7th Heaven;
General Hospital; entre outros, com o uso de merchandiding editorial com mensagens
antidrogas em suas tramas. (DOLCE,2016, p 37). O discurso promovido era
basicamente retratar usuários e traficantes de forma negativa, reforçando a mensagem
de imoralidade iniciada anos atrás pelos governos anteriores de forma mais incisiva e
subliminar.
A nova era da maconha
Durante a administração do democrata Barack Obama se criou um ambiente favorável à
flexibilização das leis quanto ao uso recreativo e medicinal da maconha nos Estados
Unidos. Atualmente, a maconha se tornou legalizada para uso recreativo (também
chamado de uso adulto) em 10 dos 50 estados norte-americanos. Existem também 33
estados que já permitem o uso medicinal da cannabis (BERKE & GOULD, 2019). A
Califórnia, um dos estados mais importantes para a economia americana, regulamentou
totalmente o uso da cannabis recreativa em 2016 através da Proposição 6416, permitindo
a criação de uma indústria bilionária na região. As projeções para o mercado da
cannabis nos EUA para os próximos anos é de aproximadamente US$150 bilhões em
2025, segundo dados da empresa de pesquisa de mercado Grand ViewResearch (2018),
considerando os investimentos crescentes associados à legalização nos EUA e Canadá
e o desenvolvimento de novos produtos e serviços para atender à crescente demanda.
Em 2016, Obama declarou que “acreditava que a cannabis deveria ser tratada como um
problema de saúde pública, similar ao tabaco e o álcool” (WENNER, 2016). O intuito
15 http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/index.php/proerd-2/16https://www.drugpolicy.org/sites/default/files/documents/AUMA_Prop%2064_Frequently_Asked_Questions.pdf
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de Obama era de fato descriminalizar a maconha a nível nacional, mas fora impedido
por questões políticas de se posicionar de forma mais direta sobre o assunto o que
impediu avanços do tema a nível federal (INGRAHAM, 2016; ADAMS, 2017).
Agora, na administração do republicano DonaldTrump,opresidente emite sinais
contraditórios sobre o tema. Se Trump já afirmou que o assunto deve ser deixado para
as jurisdições estaduais; logo no início de seu mandato nomeou Jeff Sessions,
conhecido pelo seu posicionamento contrário a cannabis, como seu procurador geral
(SIEMASZKO, 2018; LYNCH, 2018). No entanto, o mesmo Sessions acabou sendo
exonerado por Trump (FORDE, HASLETT & LEVINE, 2018) e pouco tempo antes de
deixar o Departamento de Justiça afirmou que a indústria relacionada à cannabisestava
livre para prosseguir, desde que estivessem dentro das normais legais de cada estado
(ANGELL, 2017). Nesta linha mais neoliberal, Trump também deu outro passo
importante em favor do setor, legalizando o cânhamo em nível federal, através da Farm
Bill de 2018 (CARREL, 2018). Cânhamo é a variedade de maconha que contém menos
de 0,3% de THC, substância considerada mais psicoativa da maconha. Dessa forma, ele
não é capaz de agir de forma psicotrópica, mas pode ser utilizado para a produção de
diversos produtos à base de cannabise também serve para a produção de CBD,
cannabinoide conhecido pelo seu potencial terapêutico, abrindo diversas possibilidades
para a indústria da maconha medicinal crescer.
O impacto no posicionamento global da cannabis
Conforme os EUAavançam rumo à legalização da cannabis, após um século de
desinformação e perseguição promovido por variadas administrações federais, outros
países também tomam medidas na mesma direção. O Uruguai foi a primeira nação a
legalizar completamente a cannabis, sob a administração progressista de José Mujicaem
2012. Em 2018 o Canadá se tornou o segundo país a legalizar completamente a
maconha em nível federal. Nações como África do Sul, Peru, México, Israel e a União
Europeia como um todo também adotaram medidas que descriminalizaram o uso,
legalizaram a produção medicinal ou regulamentaram o cânhamo e o CBD nesses
últimos anos.Em 2011, um grupo importante de líderes mundiais divulgou um relatório
através da Comissão Global de Políticas Sobre Drogas17 em que se posicionava de
17http://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/uploads/2017/10/GCDP_WaronDrugs_PT.pdf
10
forma contrária a atual política global de guerra às drogas, argumentando que ela havia
falhado em seus objetivos. Entre os apoiadores do projeto estavam o ex-presidente do
Brasil Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ex-presidente do México Ernesto Zedillo,
ex-presidente da Colômbia César Gaviria, além de lideranças da União Europeia e de
instituições internacionais relacionadas a saúde e aos direitos humanos.
Após décadas do tratado internacional de drogas e do endosso de políticas que
promoviam a guerra às drogas em todo o mundo, a ONU, sob comando do secretário
geralAntónio Manuel de Oliveira Guterres, começou vagarosamente a se posicionar de
forma mais flexível (SOMERSET, 2018). O atual secretário fora responsável pela
descriminalização de todas as drogas em Portugal quando era primeiro ministro e deve
espelhar sua bem-sucedida política doméstica no novo cargo. Em 2018 Organização
Mundial da Saúde (OMS), órgão da ONU, pela primeira vez em décadas, organizou um
encontro para discutir os efeitos danosos e terapêuticos da cannabis à saúde e, em
fevereiro de 2019, a instituição divulgou um parecer em que sugere uma classificação
mais branda da maconha em tratados internacionais posicionando a planta e todos os
seus derivados na Schedule I, ao lado de outra substâncias menos nocivas e com
potencial terapêutico (ÉPOCA NEGÓCIOS, 2019). A OMS também sugeriu que
extratos puros de cannabis ricos em CBD e com menos de 0,2% não sejam classificados
como perigosos na convenção em vigor, já que não apresentam riscos graves à saúde.
Esse novo posicionamento da ONU aponta para mudanças nas leis internacionais nos
próximos anos. Em 2019 está marcado para acontecer a próxima Sessão Especial da
Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o problema global de droga no âmbito da
United Nations Office onDrugsand Crime(UNODC18), reunião que em 1998 deu origem
ao tratado internacional que prometia “eliminar as drogas” em 10 anos e em 2009
ratificou a mesma posição, mesmo diante dos evidentes resultados negativos. Relatório da Comissão de Políticas sobre Drogas de 2011
18https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/drogas/marco-legal.html
11
Fonte: http://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/uploads/2017/10/GCDP_WaronDrugs_PT.pdf
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mudanças estruturais realizadas por nações como Uruguai, Canadá e EUA quanto a
forma de lidar com a cannabis, a repercussão de ações realizadas pela ONU quanto a
descriminalização e o aumento da difusão de informação científica desmistificando
aspectos prejudiciais associados ao CDB e ao THC estabelecem um novo cenário
internacional, no qual variadas empresas veem o potencial econômico relacionado à
exploração comercial da maconha e seus derivados.
Se no início do século XX interesses corporativos foram catalisadores da
implementação de políticas proibicionistas, no século XXI o caminho oposto tem tudo
para ser trilhado, com a pressão corporativa servindo para a descriminalização e para a
regulamentação das atividades relacionadas à exploração comercial da maconha.
Matérias jornalísticas variadas indicam a consolidação deste mercado e a atenção que
grandes corporações têm dedicado para analisar a maconha como um investimento com
alto potencial de retorno, enquanto pressupomos que ações de Relações Públicas tendem
a acelerar atualizações em legislações nacionais de modo a possibilitar que o mercado
da maconha se globalize como forma não só de diminuir a violência infrutífera dos anos
de políticas de criminalização e guerra às drogas, mas principalmente por novas
oportunidades de negócios em mercados estagnados, como os da indústria do tabaco e
das bebidas alcoólicas (SOMERSET, 2018; PACHECO, 2018; SANDOVAL, 2018).
Some-se a isto o potencial terapêutico do CBD, o potencial lúdico do THC, as diversas
formas de produtos e serviços associados à maconha e concluímos que o mercado da
maconha tende a se consolidar e a percepção da sociedade quanto a esta planta tende a
ser cada vez mais desmistificada com a difusão de informações científicas difundidas
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por coberturas jornalísticas idôneas, muitas vezes sustentadas por publicidade de marcas
variadas interessadas na ampliação de mercados cannabicos, e que também fomentam
o desenvolvimento de produtos culturais variados que tratem a maconha sob uma ótima
progressista, na qual a criminalização soará antiquada e reacionária. Esta nova indústria
tem potencialpara fazer uma forte intervenção informacional na sociedade, a ponto de
torná-la mais crítica e racional quanto aos malefícios e benefícios derivados da
cannabis sativa, reduzindo os estereótipos e preconceitos associados a ela durante o
século XX, decorrentes de ações orquestradas entre corporações e políticos.
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