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1Seria a felicidade o maior clichê existente na humanidade? Era essa a pergunta
cretina e filosófica que se instalava com fervor na mente de Clara. Não conseguia
manter suas teorias, pois era óbvio que algo atrapalhava seus pensamentos. Era o som,
lógico que era.
Quando necessitava raciocinar algo que para ela era importante, a música ou
qualquer ruído que se intrometesse distorcia completamente seu raciocínio. Sem nem
pestanejar desligou o som abruptamente, diminuiu a velocidade e estacionou o carro
numa rua desconhecida. Respirou fundo e retornou aos seus pensamentos nada
coerentes.
Os olhos fundos e sem brilho de seu pai naquele dia deixaram Clara
absurdamente doente de dor, uma queimação desesperada subia e descia percorrendo
seu estômago. Ele repetiu a ela várias vezes que estava bem, porém ele nunca soube
mentir, e nem precisaria, as suas olheiras profundas, a tremedeira nas mãos e seu sorriso
sem cor o denunciavam friamente.
Clara levantou a cabeça levemente, e vislumbrou a rua ao seu redor. Olhou para
os lados e observou um senhor moreno sentado, ou melhor, esparramado na calçada ao
lado de uma minúscula padaria. Uma garrafa térmica vermelha e uma pequena mochila
jaziam ao seu lado. O olhar cansado e triste estava fixado na mochila, como se ela o
estivesse transportando a algum lugar muito distante e expressivo. Duas senhoras idosas
passaram por ele sem ao menos sequer notá-lo. Um menino andava de bicicleta ao redor
gritando algo a um amigo já distante.
Por um momento Clara sentiu o olhar exausto do homem pousar sobre ela,
vislumbrando-a com curiosidade, e imaginou até ter visto brotando dele um esboço de
algo que parecia ser um sorriso. Um doloroso, porém sincero sorriso. E ela o retribuiu,
da melhor maneira que podia naquele tortuoso momento.
Então respirou fundo novamente, ligou o carro e partiu, retomando o caminho
para casa. Durante o trajeto não se permitiu pensar em nada, fechou sua mente num
labirinto silencioso de escuridão, tinha experiência nisso, sabia exatamente como fazer.
Não sabe quanto tempo levou para finalmente estar em casa, não queria refletir
nem raciocinar sobre nada até estar pronta. E dirigiu, em meio àquele infernal trânsito
caótico, totalmente imune a sensação sufocante que se passava.
Assim que retirou os sapatos, largando-os sob a cama, entrou no chuveiro com
roupa e tudo, pois era necessário. Suas roupas, seu corpo e sua alma precisavam ser
limpos urgentemente. Iluminou sua escuridão interior e enquanto a água percorria
purificando, sua mente voltou a clarear com somente uma vaga imagem na mente, a de
seu pai. E foi assim, lentamente, que ela voltou a si.
Depois de esquentar no micro-ondas uma insossa comida congelada e de
alimentar seus peixes, Clara esparramou-se em seu sofá e fez outra vez aquela estranha
viagem ao passado. Fechou os olhos para novamente visualizar aquela maldita tarde, o
dia em que tudo mudou.
Era um dia bonito, não havia nuvens nem tempestade, o sol brilhava forte e o
calor inundava toda a caótica cidade de São Paulo. Lembrava-se como se fosse hoje da
sua aula na escola naquele dia, da professora de desenho pedindo que cada um retratasse
sua família e explicasse um pouco sobre ela.
Apesar de nunca ter tido talento nato para o desenho, naquele garrancho era
visível as três figuras caminhando de mãos dadas. Ela, no meio, com seus cachos
dourados e seu inseparável vestido azul e seu pai e sua mãe. No desenho era nítida a
proximidade com o pai, seu corpo estava levemente virado na direção dele, o olhando e
sorrindo docemente. No desenho, ele retribuía o carinho enquanto a mãe apenas seguia
de mãos dadas entre o trio.
Divertiu-se muito na escola, tomou lanche no intervalo e conversou
animadamente com as coleguinhas de classe. No final da tarde, quando soou o sinal
anunciando o término das aulas, Clara estava ansiosa para ver seus pais e entregar-lhes
sua obra prima em forma de desenho. Um vento gelado eriçava seus pêlos, porém não
havia vento nem frio naquele dia, era como se a friagem viesse apenas para ela, focasse
toda sua força em derrubá-la.
Não saberia dizer se estava ansiosa demais ou se realmente havia demora. Os
minutos foram se passando, e um a um os seus colegas iam embora, deixando-a no final
ali sozinha, aguardando sentada e impaciente no degrau da escada da escola.
Lembra-se até hoje da expressão amável e angustiada de dona Delfina, a
servente e faz tudo do colégio. Ali, naquele imenso pátio, no final restavam apenas as
duas, a espera. Delfina perguntou se havia algum problema devido ao atraso, porém
Clara apenas mexeu a cabeça em tom de dúvida. Ela também não sabia a resposta.
Aquilo nunca havia acontecido antes. Mas o forte vento que a invadia parecia lhe
sussurrar que a partir daquele dia nada mais seria como antes. Que toda sua vida até
aquele momento seria surrupiada com toda força e jogada as traças, sobrando apenas pó,
lançado ao vento.
Quando já estava com vontade de chorar e gritar, percebeu uma silhueta magra e
velha se arrastando pela rua. Era nítido quem era, sua avó paterna, Adelaide. Ela seguia
com os ombros curvados e a cabeça baixa, num tom vagaroso, mas ao mesmo tempo
febril. Era como se ela quisesse chegar, mas algo fincasse seus pés com força no chão, a
impedindo de seguir em frente.
Quando finalmente ela adentrou pelos portões do colégio e levantou a cabeça,
deu de cara com Clara, que a olhava com olhos desconfiados e levemente irritados.
-Olá princesa! –disse com a voz embargada.
Parecia ter tido de engolir o mundo inteiro para conseguir pronunciar aquelas
míseras palavras sem desabar.
-Oi vó!
Nunca, em todos esses anos a avó viera buscá-la na escola, era quase sempre seu
pai, e ocasionalmente a mãe.
-O que aconteceu vó? Porque está aqui?
-Vim...ver...mi-nha...ga-ro...tinha. –gaguejou sorrindo as palavras.
-Onde está meu pai? Porque ele não veio?
-Ele não pôde vir Clara.
-Estou esperando faz tempo! Quero ir para casa!
-Lógico querida. Dê-me sua mão.
Num só pulo Clara se levantou e atirou-se sobre a avó num caloroso abraço, e
saiu assim, de mãos entrelaçadas, rumo a sua casa. Sua avó parecia naquele momento,
muitos anos mais velha, era como se todo o resto de juventude que lhe restara houvesse
sido roubada ali, naquele instante. Não ousou perguntar nada, porque lá no fundo sentia
que algo estava errado, e sabia muito bem que pessoas adultas não gostam de dar
explicações a crianças sobre coisas erradas. Andaram assim em silêncio, durante pelo
menos dois quarteirões. Até que Adelaide quebrou o irritante silêncio.
-Que folha é essa querida?
-Meu desenho vó. –respondeu o estendendo a ela.
Durante muito tempo, até realmente entender, Clara imaginou que seu desenho
estivesse realmente muito ruim, afinal sua avó parecia ter sido atingida por uma faca no
peito no momento que o viu. Segurou-se com força na grade de uma casa, deixando cair
no chão a sua obra de arte.
-Vó! O que a senhora tem? Está doente?
Demoraram-se uns intermináveis segundos até que Adelaide respondesse.
-Está tudo bem querida.
Na esquina onde deveriam virar a direita para seguirem ao apartamento onde
Clara morava com os pais, a senhora Adelaide não se absteve e seguiu em frente, sem
nem ao menos olhar para os lados.
-Não vamos para casa? –indagou a cada vez mais confusa Clara.
-Não, vamos até a casa da vovó.
-Por quê? Eu quero ir para minha casa! –retrucou irritada. Aquele mistério todo
já estava passando dos limites, pensou.
-Seu avô quer ver você.
Apesar de não acreditar nem um pouco, Clara manteve-se quieta e concordou.
Seguiram então adiante, para quatro quarteirões a frente, onde ficava a simples casa de
seus avós. No caminho o sol continuava a brilhar fortemente no céu, porém a sensação
de Clara era de que ele não existia mais, uma nuvem negra a seguia, sombreando a rua,
as pessoas, os carros e as residências. Nos olhos de Clara toda a cena se passava em
câmera lenta, e assim se fixou àquela imagem, ecoando anos e anos em sua cabeça.
-Tio Jonas! –exclamou alegremente ao ver o tio sentado no sofá da casa.
Jonas Aguilar era solteirão convicto, e o melhor tio que uma criança poderia ter.
Sempre disposto, brincalhão, animado e suas histórias eram simplesmente as melhores
de todas. Entretanto, naquele dia, Jonas não sorria, na verdade mal se mexia. Assim que
ela o abraçou carinhosamente, ele apenas balbuciou o espectro de algo que parecia ser
um olá.
-Onde está papai? E minha mãe? –indagou a todos.
Porém, pelo jeito, Clara fez uma pergunta inaudível, pois ninguém sequer
pareceu ouvir, a ignoraram por completo. Os olhos imersos em um ponto da casa, fixos
num horizonte inexistente. Num ímpeto, Jonas levantou-se, dirigiu-se a Clara e
docilmente respondeu:
-Seu pai está resolvendo uns problemas, princesa. Você deve estar faminta,
vamos a cozinha com o tio tomar um chocolate quente! –e sorriu, mas dessa vez um
sorriso sincero.
Saltitando, e imaginando por um breve momento que as coisas estavam
retornando a normalidade, Clara partiu em direção a cozinha. Mas parou no meio do
caminho, assim que escutou o tio balbuciando algo na sala.
-Eu conto a ela, e contarei tudo. –sussurou.
-Não! –gritou Adelaide.
-Ela é muito menina, não vai entender, será sofrimento demais para uma
garotinha. –disse a voz rouca do avô Laércio.
-Pai, ela irá ficar sabendo, de uma forma ou de outra. Prefiro que seja por nós do
que pelos outros.
-Mas ela é apenas uma garotinha! –rebateu histericamente a avó.
-Mãe, as pessoas não irão perdoar, vão extinguir dela até a última gota de
dignidade e pureza existente. A maldade não distingue uma garotinha de um sábio
ancião.
Um silêncio aterrorizante invadiu a sala, levando definitivamente o brilho e a luz
embora, vultos negros iam e vinham.
-Prefiro que ela saiba toda a história por nós. E será agora, antes que eu perca a
pouca iniciativa que me resta!
Na vida todos nós passamos por fases amargas e outras doces. Nossas atitudes e
escolhas nos levam a rumos distintos, caminhando às cegas pela vida. São tristezas e
alegrias que constroem o que somos e de certo modo, para onde vamos.
Porém, dizem que durante nossa jornada, há algo mais marcante, algo que
modifica drasticamente o rumo durante algum momento da viagem, é uma ruptura. O
momento crucial em que tudo é modificado, transcende em novo, podendo ser ruim ou
bom. É aquilo que nos faz respirar todo dia, e que gruda de tal forma em nossa mente,
que não há controle de quando aquele momento retornará, triunfal em nossa memória.
E foi exatamente ali, naquela cozinha simples e aconchegante da avó,
emoldurada por azulejos coloridos e entre goladas de chocolate quente, que ocorreu a
ruptura da vida de Clara. Com dez anos de idade, ela acabava de saber que sua mãe
havia falecido.
-Ela... está no céu agora. –repetia tio Jonas com um sorriso amargo.
Contudo, ele continuava formando desenhos invisíveis com os dedos na mesa da
cozinha e parecia engolir em seco os seus pensamentos. Isso tinha um significado, e
Clara sabia bem o que era. Tio Jonas não havia despejado toda a notícia maligna, ainda
havia mais. E o pior, certamente ainda estava por vir.
-Quero que me prometa que vai acreditar em apenas o que nós aqui de casa te
contarmos. Terá de ser forte Clara!
E ela apenas segurava o copo de achocolatado em mãos, sem ousar nem respirar,
de tanto medo e dor que a invadiam. Com um aceno de cabeça, respondeu que sim ao
tio.
Nunca mais iria se esquecer daquelas malditas palavras, por muito tempo as
culpou por tudo aquilo, foram elas, que surgiram nos lábios do tio Jonas trazendo
consigo aquela tremenda maldição. E como numa forte rajada de vento, ele as despejou
de uma só vez.
-Clara, sua mãe foi assassinada. Seu pai a matou!