WILL, S. Vigiar, Punir, Educar e Matar.75DPI

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - DOUTORADO SHARON VARJÃO WILL Vigiar, Punir, Educar e Matar: Discursos de disciplinamento, controle e extermínio da população preta e pobre do Rio de Janeiro Niterói - RJ 2015

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Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito final para obtenção do grau de Doutor em Educação.ResumoPartindo principalmente dos pensamentos de Michel Foucault, Gilles Deleuze, FélixGuattari e Loïc Wacquant, esse trabalho buscou perceber como se deu o processo de produçãode subjetividade pela mídia impressa carioca, tomando como documentos de análise asmatérias publicadas no jornal O Globo sobre os discursos de segurança pública do governoSérgio Cabral e a implantação da chamada política de pacificação, durante seu primeiromandato como governador do estado do Rio de Janeiro (2007 a 2010). Junto à análise dosdiscursos da mídia, para enriquecer a pesquisa, realizamos dez entrevistas com moradores doCantagalo, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde a autora trabalhoucomo psicóloga em uma ONG (Organização Não Governamental), durante quatro anos. Opropósito desta pesquisa foi analisar as características dos discursos e suas funcionalidadesinstitucionais e sociais; passando pelos discursos dominantes, maciçamente divulgados namídia; e necessariamente, também, pela escuta e pelo diálogo com aqueles que mais sofremos seus impactos – os grupos silenciados. Discursos eficazes na produção de diversos modosde sentir, pensar, perceber e agir, atingindo grande parcela da população. Foram eles: aprodução do sentimento de que estamos em uma guerra; a construção do seu oposto, a culturada paz; a atribuição aos jovens das favelas cariocas de uma inclinação para a criminalidade; eo disciplinamento e controle desses sujeitos, por meio de projetos socioeducacionais.Percebemos que, com a produção maciça desses sentidos, toda uma política foi construída,junto com os seus sujeitos e práticas. A partir da pesquisa e análise desses blocos de produçãode sentidos, buscamos demonstrar como; por que; para quem; e por quem; esses discursosforam desenvolvidos.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO - DOUTORADO

    SHARON VARJO WILL

    Vigiar, Punir, Educar e Matar:

    Discursos de disciplinamento, controle e extermnio da populao

    preta e pobre do Rio de Janeiro

    Niteri - RJ

    2015

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO - DOUTORADO

    SHARON VARJO WILL

    Vigiar, Punir, Educar e Matar:

    Discursos de disciplinamento, controle e extermnio da populao

    preta e pobre do Rio de Janeiro

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal Fluminense, como requisito final para obteno do grau de Doutor em Educao.

    Orientadora: Prof. Dra. Maria de Ftima Costa de Paula

    Niteri RJ

    2015

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    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    W689 Will, Sharon Varjo. Vigiar, punir, educar e matar : discursos de disciplinamento, controle e extermnio da populao preta e pobre do Rio de Janeiro / Sharon Varjo Will. 2015.

    245 f. Orientadora: Maria de Ftima Costa de Paula. Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Faculdade de

    Educao, 2015. Bibliografia: f. 229-242. 1. Segurana pblica. 2. Educao. 3. Favela. 4. Subjetividade.

    5. Juventude. 6. Pobreza. 7. Preto. I. Paula, Maria de Ftima Costa de. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 363.2098153

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO - DOUTORADO

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________ Professora Dra. Maria de Ftima Costa de Paula Orientadora - UFF

    ___________________________________________________ Professora Dra. Ceclia Maria Bouas Coimbra UFF

    ___________________________________________________ Professora Dra. Maria Helena Rodrigues Navas Zamora PUC Rio.

    ___________________________________________________ Professor Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho UFRJ

    ___________________________________________________ Professor Dr. Elionaldo Fernandes Julio UFF

    SUPLENTES:

    ___________________________________________________ Professora Dra. Marlia Etienne Arreguy UFF

    ___________________________________________________ Professora Dra. Janaina Abdalla Faculdade Gama e Souza - RJ

    Niteri RJ

    2015

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    DEDICATRIA

    Dedico esse trabalho memria de todos

    os jovens pretos e pobres assassinados

    durante as ocupaes de pacificao nas

    favelas do Rio de Janeiro.

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    AGRADECIMENTOS Agradeo Deus e aos Orixs, pela proteo e caminhos abertos. ALAFIA! professora Doutora Maria de Ftima Costa de Paula, pela pacincia, comprometimento e firmeza na orientao desta tese. CAPES pelo suporte financeiro. s trs Cecilias da minha vida: minha filha, Cecilia Will, meu maior tesouro e sentido da minha existncia; minha amada me, Yara Cecilia, guerreira de todas as horas e apoio incondicional; e minha querida professora Ceclia Coimbra que, mesmo de longe, vem inspirando minha trajetria acadmica, desde a graduao, com generosidade e potncia sem limites. Aos professores da minha banca, Maria Helena Zamora, Pedro Paulo Bicalho e Elionaldo Julio, por aceitarem o convite e me honrarem com as consideraes. s professoras Marlia Etienne Arreguy e Janaina Abdalla, por se disporem a ler este trabalho e ficarem no banco de reserva como professoras suplentes na minha banca, mas no menos importantes por isso. Aos professores Cludio Ulpiano e Clauze de Abreu (in memorian), os quais tive o prazer de conhecer e ouvir, por me despertarem o encanto pela Filosofia. Ao babalawo Ivanir dos Santos, por cuidar de mim e de minha famlia. s amigas Andria Gomes, Mnica Houri, Mariza Alves Braga e Virgnia Louzada, pela parceria e incomensurvel contribuio durante toda essa jornada. Aos moradores do Cantagalo que participaram das entrevistas, pela confiana, experincias e sentimentos compartilhados. Ao meu marido, Vespa Luz, pelo amor intenso, pelo incentivo e pacincia nas minhas angstias de doutoranda, e pela rica ajuda na leitura e reviso deste trabalho. Ao meu pai, Bodo Will e minha madrinha Yvete Sgarbi (in memorian), que morreram sem ter visto essa etapa da minha vida concluda, mas que devem estar orgulhosos de mim l no cu.

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    RESUMO

    Partindo principalmente dos pensamentos de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Flix

    Guattari e Loc Wacquant, esse trabalho buscou perceber como se deu o processo de produo de subjetividade pela mdia impressa carioca, tomando como documentos de anlise as matrias publicadas no jornal O Globo sobre os discursos de segurana pblica do governo

    Srgio Cabral e a implantao da chamada poltica de pacificao, durante seu primeiro

    mandato como governador do estado do Rio de Janeiro (2007 a 2010). Junto anlise dos

    discursos da mdia, para enriquecer a pesquisa, realizamos dez entrevistas com moradores do

    Cantagalo, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde a autora trabalhou

    como psicloga em uma ONG (Organizao No Governamental), durante quatro anos. O

    propsito desta pesquisa foi analisar as caractersticas dos discursos e suas funcionalidades

    institucionais e sociais; passando pelos discursos dominantes, maciamente divulgados na

    mdia; e necessariamente, tambm, pela escuta e pelo dilogo com aqueles que mais sofrem

    os seus impactos os grupos silenciados. Discursos eficazes na produo de diversos modos de sentir, pensar, perceber e agir, atingindo grande parcela da populao. Foram eles: a produo do sentimento de que estamos em uma guerra; a construo do seu oposto, a cultura

    da paz; a atribuio aos jovens das favelas cariocas de uma inclinao para a criminalidade; e

    o disciplinamento e controle desses sujeitos, por meio de projetos socioeducacionais. Percebemos que, com a produo macia desses sentidos, toda uma poltica foi construda,

    junto com os seus sujeitos e prticas. A partir da pesquisa e anlise desses blocos de produo

    de sentidos, buscamos demonstrar como; por que; para quem; e por quem; esses discursos

    foram desenvolvidos.

    Palavras-Chave: Segurana Pblica, Educao, Favela, Produo de Subjetividade, Jovens pobres e pretos

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    ABSTRACT

    Starting from, mainly, the thoughts of Michel Foucault, Gilles Deleuze, Flix Guattari

    and Loc Wacquant, this study aimed to realize how the process of subjectivity took place

    through the print media of the city of Rio de Janeiro, taking as analysis documents the

    material published on O Globo newspaper concerning the speeches on public safety at Srgio

    Cabrals Government, and the implementation of the peace policy during his first term as

    governor of the state of Rio de Janeiro (2007 a 2010). To enrich the research, together with

    media discourse analysis, we conducted ten interviews with residents of Cantagalo

    shantytown in Rio de Janeiro, where the author worked as a psychologist in an NGO (Non

    Governmental Organization) for four years. The goal of this study was to analyze the

    characteristics of the speeches and their institutional and social features, permeating the

    dominant speeches massively disseminated in the media, as well as, necessarily, the listening

    and dialogue with those who suffer most from their impacts - the silenced groups. Effective

    speeches in producing diverse ways of feeling, thinking, perceiving and acting reaching a

    large portion of the population. They were: the production of the feeling that we are in a war;

    the construction of its opposite, the culture of peace; the attribution of youth in Rio's slums of

    an inclination to crime; and the discipline and control of these individuals through social and

    educational projects. We realize that with the mass production of these senses, an entire

    policy was built, along with their subjects and practices. From the research and analysis of

    sense production blocks, we demonstrate how; how come; to whom; and by whom; these

    discourses were developed.

    Keywords: public safety, education, slums, subjectivity production, black and poor youth

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    LISTA DE ABREVIAES

    ALERJ Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro

    ANJ Associao Nacional de Jornais

    BOPE Batalho de Operaes Policiais Especiais

    BPM Batalho da Polcia Militar

    CCDC Centro Comunitrio de Defesa da Cidadania

    CIC Companhia Independente de Ces

    CRPRJ Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro

    CRAS Centro de Referncia de Assistncia Social

    CRJ Centro de Referncia da Juventude

    CIE Centro de Informaes do Exrcito

    CIEP Centro Integrado de Educao Pblica

    CORE Coordenadoria de Recursos Especiais

    FAB Fora Area Brasileira

    FSN Fora de Segurana Nacional

    IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    IFP Instituto Flix Pacheco

    IURD Igreja Universal de Reino e Deus

    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    ONG Organizao no Governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PAC Programa de Acelerao do Crescimento

    PADEM Plano de Apoio ao Desenvolvimento dos Municpios

    PM Polcia Militar

    PRONASCI Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania

    SBT Sistema Brasileiro de Televiso

    UFA Unidade de Fornecimento de Alvio

    UOP Unidade de Ordem Pblica

    UPA Unidade de Pronto Atendimento

    UPP Unidade de Polcia Pacificadora

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    LISTA DE IMAGENS

    1. TRINDADE, Rafael. Deleuze: Rizoma. In: Razo Inadequada. Uma postura

    inadequada a nossa maneira de viver uma cultura da adequao. Blog, 21/09/2013.

    Disponvel em:

    Acesso em: 07/08/20014.

    2. O Globo, 01/01/2007, capa.

    3. O Globo, 21/01.2007, p. 14.

    4. O Globo, 14/01/2007, capa.

    5. O Globo, 17/01/2007, capa.

    6. O Globo, 17/01/2007, capa.

    7. O Globo, 25/01/2007, capa.

    8. O Globo, 06/02/2007, capa.

    9. O Globo, 14/02/2007, capa.

    10. O Globo, 16/03/2007, capa.

    11. O Globo, 10/04/2007, capa.

    12. O Globo, 09/05/2007, p. 16.

    13. O Globo, 27/05/2007, p. 30.

    14. O Globo, 12/06/2007, capa.

    15. O Globo, 12/06/2007, capa.

    16. O Globo, 14/06/2007, capa.

    17. O Globo, 15/06/2007, capa.

    18. O Globo, 16/06/2007, capa.

    19. O Globo, 28/06/2007, capa.

    20. O Globo, 28/06/2007, p. 13.

    21. O Globo, 28/06/2007, p. 13.

    22. O Globo, 10/07/2007, p. 19.

    23. UOL Pan 2007. No centro do Rio, protesto contra o Pan antecipa abertura.

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    em:

    Acesso em: 08/09/2014.

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    25. REDE DE COMUNIDADES E MOVIMENTOS CONTRA A VIOLNCIA. Rede

    prepara atividade lembrando um ano da perseguio poltica nos protestos contra o Pan

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    Acesso em: 08/09/2014.

    26. O Globo, 01/01/2008, capa.

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    28. O Globo, 16/04/2008, p. 26.

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    32. O Globo, 02/10/2008, p. 9.

    33. GLOBO>COM. Crivella sobe cinco pontos e lidera com 28% para prefeito do Rio,

    diz IBOPE. 15/08/2008. Disponvel em:

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    38. O Globo, 19/10/1992, capa.

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    40. O Globo, Rio, 17/01/2008, p. 17.

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    42. O Globo, 12/02/2007, capa.

    43. R7 NOTCIAS, Assassinos do ndio Galdino tiveram tratamento diferenciado, diz

    promotora. 10/04/2012. Disponvel em:> Acesso

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    44. O Globo, 03/12/2008, capa.

    45. O Globo, 04/12/2008, p. 12.

    46. O Globo, 25/12/2008, capa.

    47. O Globo, 01/01/2009, capa.

    48. O Globo, 09/08/2009, capa.

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    49. O Globo, 09/08/2009, p.16.

    50. O Globo, 09/08/2009, p.16.

    51. O Globo, 22/08/2009, p. 19.

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    53. O Globo, Rio Show, 09/10/2009, capa.

    54. O Globo, 18/10/2009, capa.

    55. O Globo 01/12/2009, capa.

    56. O Globo 01/12/2009, p. 16.

    57. O Globo, 02/12/2009, capa.

    58. O Globo, 05/12/2009, capa.

    59. O Globo 06/12/2009, p 16.

    60. O Globo, 01/01/2010, capa.

    61. O Globo, 01/01/2010, capa.

    62. O Globo, 21/02/2010, p. 14.

    63. O Globo, 23/03/2010, capa.

    64. O Globo, 26/03/2010, p. 17.

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    67. O Globo, 31/07/2010, capa.

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    69. FOLHA DE S. PAULO. Grfico das despesas do governo do Rio de Janeiro com

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    72. GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. Portal do Governo do estado do Rio de

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    Acesso em: 08/08/2014.

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    Acesso em: 08/08/2014.

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    Acontece. Disponvel em: Acesso em:

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    Acesso em:

    30/12/2014.

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    Acesso em: 30/12/2014.

    84. O Globo, 16/10/2010, capa.

    85. O Globo, 25/11/2010, capa.

    86. O Globo, 25/11/2010, capa.

    87. O Globo, 25/11/2010, capa.

    88. O Globo, 28/11/2010, capa.

    89. O Globo, 30/11/2010, capa.

    90. O Globo, 01/12/2010, p. 18.

    91. O Globo, 20/12/2010, capa.

    92. O Globo, 01/01/2011, capa.

    93. O Globo, 01/01/2011, capa.

    94. O Globo, 04/04/2014, p. 11.

    95. FOUCAULT, 1999a, s/d.

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    96. FOUCAULT, 1999a, s/d.

    97. O Globo, 28/03/2007, capa.

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    Acontece. Senac oferece curso de gastronomia para moradores da cidade de Deus,

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    Acontece. SESI Cidadania chega a 1 milho de atendimentos em comunidades.

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  • xv

    118. GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP Unidade de Polcia Pacificadora.

    Acontece. Babilnia/Chapu-Mangueira abre oficina de percusso, 30/10/2013.

    Disponvel em: > Acesso em:

    22/10/2014.

    119. Ilustrao da autora.

    120. O GLOBO, Zona Norte, 30/08/2009, capa.

  • xvi

    SUMRIO Pgina INTRODUO

    01

    CAPTULO 1 A PESQUISA: fundamentos terico- metodolgicos

    10

    1.1 A pesquisa como experincia 10 1.2 Arqueologia, genealogia e anlise do discurso 13 1.3 Um pouco dos meus afetos

    19

    CAPTULO 2 A PEDAGOGIA DO MEDO: o discurso da guerra

    23

    2.1 Mdia e produo de subjetividades 23 2.2 O discurso da guerra contra o trfico, as megaoperaes e a ocupao das favelas do Rio de Janeiro pelas Foras Armadas e a Polcia Militar

    27

    2.3 Complexo do Alemo: o Pandemnio 41 2.4 Complexo do Alemo: SBPM no fica nenhum mosquito em p

    71

    2.5 Complexo do Alemo: o Alemo da Paz ou do Paes?

    79

    CAPTULO 3 JUVENTUDE DA FAVELA: o discurso da tendncia criminalidade dos jovens pretos e pobres

    87

    3.1 O jovem preto, pobre, favelado e perigoso dos jornais

    87

    3.2 O Caso Joo Hlio 94 3.3 Discurso jurdico: medidas socioeducativas e idade penal

    101

    3.4 Os pitboys

    107

    CAPTULO 4 O DISCURSO DA PAZ E A IMPLANTAO DAS UPPS

    110

    4.1 O Morro Dona Marta: favela vitrine 111 4.2 Quem o dono do morro? Democracia e cidadania nas favelas

    121

    4.3 Ocupao do Cantagalo / Pavo / Pavozinho: a imposio da paz.

    134

    4.4 Complexo do Alemo: cidadela do trfico 148 4.5 A UPP como marca do governo do estado do Rio de Janeiro, as alianas polticas e a reeleio de Srgio Cabral

    152

    4.6 Complexo do Alemo: o Dia D 170 4.7 A renncia de Cabral em 2014

    177

    CAPTULO 5 VIGIAR, PUNIR E EDUCAR

    182

  • xvii

    5.1 O discurso da educao como estratgia de controle 188 5.2 O policial professor 191 5.3 Lucrativa mercadoria: marketing e responsabilidade social

    203

    5.4 Sorria voc pode estar sendo filmado ou prises cu aberto

    213

    5.5 As resistncias e os possveis encontros

    221

    CONSIDERAES

    226

    REFERNCIAS

    230

    APNDICES Roteiro de entrevistas

    243

    ANEXO Lista de verbetes de comunicao / jornalismo

    243

  • 1

    INTRODUO

    Esse trabalho buscou perceber como se deu o processo de produo de subjetividade pela mdia impressa carioca, analisando os atravessamentos entre os discursos produzidos pelas manchetes e reportagens publicadas pelo jornal O Globo sobre a poltica de segurana pblica do governo de Srgio Cabral, na cidade do Rio de Janeiro, e os discursos de disciplinamento e controle, propostos pelos projetos socioeducacionais destinados aos moradores das favelas cariocas.

    Ao iniciar o doutorado, a autora ainda trabalhava em uma ONG na favela do Cantagalo,

    no Rio de Janeiro, e se propunha pensar as relaes entre os discursos de segurana pblica e

    os discursos educacionais, por meio da anlise de mdia, durante o governo de Srgio Cabral e

    a implantao das UPPs, tomando como objeto da pesquisa de campo a ONG onde

    trabalhava, propondo, inclusive, realizar entrevistas com participantes, tcnicos e gestores do

    projeto.

    Durante o processo de elaborao do projeto dessa pesquisa, desconstrumos algumas

    ideias cristalizadas sobre a forma de se pesquisar. Essa foi a maior dificuldade que a autora

    encontrou, inclusive sinalizada por sua orientadora e pela banca de qualificao. O trabalho

    estava muito amplo, havia um prazo e era preciso fazer escolhas.

    A partir da pesquisa bibliogrfica e do estudo dos autores que fundamentaram a tese,

    como Foucault, Deleuze, Guattari e Wacquant, alm dos textos de alguns professores que

    foram importantes, didticos e inspiradores, como Accio Augusto, Vera Malaguti, Ceclia

    Coimbra, Maria Lvia do Nascimento, Maria Helena Zamora, entre outros, que constam da

    bibliografia, tomamos conceitos importantes como: disciplina, controle, poder, sujeito,

    subjetividade. Todos eles ajudaram a pensar. Foi fundamental, tambm, a pesquisa e a leitura

    de dissertaes e teses que trataram do tema. importante saber que podemos estar

    espalhados, mas no estamos sozinhos.

    Naquele momento inicial da pesquisa pairavam, ainda, algumas questes:

    a) identificar ou no a ONG?

  • 2

    Decidimos por no. Na medida em que ela era apenas mais uma pea da engrenagem

    que queramos estudar como um todo, como um processo, e no focando em parte dele. No

    era a nossa proposta fazer anlise de algum projeto especfico. As polticas e as prticas

    sociais destinadas a moradores de favelas funcionam como programas que podem ser

    aplicados, modificados, redimensionados e atualizados segundo demandas especficas, mas

    que se produzem, legitimam e atualizam a partir de discursos dominantes reproduzidos pela

    mdia sobre as polticas e seus projetos, esses, sim, analisados.

    As primeiras decises foram ento tomadas: a autora pediu demisso da ONG onde

    trabalhava, no citaria nomes na tese, nem trataria de nenhum projeto socioeducativo

    especfico.

    b) que anlise da mdia? Que meio/veculo utilizar? Em que perodo?

    Ainda sem um objeto ou um campo de pesquisa definido, comeamos a leitura das

    capas de O Globo durante o primeiro mandato do governo Srgio Cabral, entre 2007 e 2010.

    O recorte foi proposital. Optamos pelo jornal O Globo1 por ser a ferramenta impressa da mais

    poderosa instituio de comunicao, rede de multiplicao e produo de subjetividades do

    Brasil e, em particular, do Rio de Janeiro: as Organizaes Globo. Sabemos que esse tipo de

    imprensa se direciona, em especial, s classes dominantes e mdias urbanas, mas ao

    priorizarmos as capas (que representam a sntese de todo o contedo do jornal), ampliamos

    esse pblico, pois as capas so expostas em bancas de jornal, onde um nmero muito maior de

    leitores, de diversas classes sociais, tem acesso. Utilizamos, para tal, o acervo de O Globo,

    site que permite o acesso verso digitalizada de todas as pginas do jornal, desde sua

    primeira edio, em julho de 1925.

    No ignoramos, entretanto, as produes dos demais meios de comunicao de massa,

    como a televiso e a internet, porque a mdia (conjunto de meios de comunicao) um

    dispositivo de funcionamento em rede, com atravessamentos, desdobramentos e

    complementos das mesmas notcias, entendendo que as construes dos discursos so

    coletivas e rizomticas2, como na imagem a seguir.

    1 Segundo a Associao Nacional de Jornais, durante todo o perodo da pesquisa (2007 a 2010), O Globo foi o jornal com a maior tiragem no estado do Rio de Janeiro. Teve, por exemplo, em 2007, a tiragem de 280.329 mil exemplares, e em 2010, de 262.435 mil exemplares, de segunda a domingo. (ANJ, s/d) 2 Deleuze e Guattari criam o conceito / metfora de rizoma para propor um pensamento que se efetuasse atravs do mltiplo e no a partir de uma lgica binria ou de uma contradio. O rizoma se espalha, se alastra onde encontra espao, cria um emaranhado por todas as direes. (DELEUZE e GUATARRI, 1995)

  • 3

    Imagem 1

    Acreditamos que a hegemonia conservadora produz subjetividades. Ela elege e difunde

    discursos como mecanismos indutores e justificadores de polticas autoritrias. Indo neste

    sentido, entendemos que os discursos emergem, em dado momento, e atravessam vrios

    setores de nossa sociedade, das mais variadas formas, promovendo e produzindo modos de

    perceber e encarar a realidade, alcanando uma maioria de pessoas, como sendo um ideal de

    vida, um padro de bem-estar social.

    A mdia um dos mais importantes dispositivos sociais desse processo, ou seja, esse

    equipamento no nos indica somente o que pensar, o que sentir, como agir, mas

    principalmente nos orienta sobre o que pensar, sobre o que sentir. (COIMBRA, 2001, p. 29)

    Ainda sobre o papel fundamental dos meios de comunicao de massa como dispositivo de

    produo de subjetividades e controle, nos explica Ceclia Coimbra, em entrevista para o

    jornal do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), edio de

    setembro/outubro de 2009: Felix Guattari dizia que, hoje, uma das coisas mais importantes no sentido de dominar o outro, povos, populaes mais importante do que fazer uma guerra produzir subjetividades, produzir modos de viver e existir. Para dominar o outro preciso control-lo. como Deleuze (o filsofo Gilles Deleuze) fala: ns vivemos na sociedade do controle, tudo supercontrolado. Ento, Guattari vai dizer o seguinte: hoje, na sociedade contempornea, talvez um dos dispositivos mais importantes de se produzir modos de viver, subjetividades, so os meios de comunicao de massa. Eles produzem modos de viver, de estar, de sentir, modos de existir no mundo. Os meios de comunicao de massa emergem, no capitalismo, como um brao defensor das subjetividades capitalsticas. (COIMBRA, 2009, s/p)

    Levando isso em conta, que a mdia funciona em rede, que as subjetividades atravessam

    e so produzidas por diversos equipamentos sociais, tais como a TV e a internet, para

    enriquecer a pesquisa assistimos a vdeos de propaganda governamental; peas de campanhas

  • 4

    polticas; pesquisamos, tambm, em sites da internet, principalmente: a do Governo do Estado

    do Rio de Janeiro (http://www.rj.gov.br/), a da UPP (Unidade de Polcia Pacificadora)

    (http://www.upprj.com/), a pessoal do Governador Srgio Cabral

    (http://www.sergiocabral.com.br) e a da Prole3 (www.prole.com.br).

    Sem saber, ainda, o que era importante arquivar, salvar mais uma vez, escolher foi

    a parte mais difcil montamos um arquivo de publicaes, com cpia das capas do jornal O

    Globo e de algumas pginas internas. Partimos das manchetes e imagens da capa, arquivando

    aquelas que falavam sobre segurana pblica e educao.

    Nomeamos cada arquivo de imagem com o ttulo inteiro ou parte da manchete,

    utilizando a data invertida (ano.ms.dia), para que a lista dos arquivos, na pasta eletrnica,

    ficasse em ordem cronolgica de publicao.

    Com esse mapa, percebemos, enxergamos, a construo dos discursos dominantes

    referentes ao tema Segurana/Educao, produzidos por O Globo, de uma forma bastante

    ampla, mas que, por si s, contavam a histria, a partir de um determinado olhar sobre o

    momento e produziam sujeitos.

    Sem nos prender a um campo especfico de conhecimento, mas entendendo como um

    trabalho que buscou articular os discursos das polticas pblicas de Segurana e de Educao,

    observamos os atravessamentos desses discursos; as relaes entre a mdia e os definidores

    das polticas pblicas: governos e sociedade civil.

    Partindo dessa cartografia, percebemos que alguns discursos e sentidos dominaram o

    debate: 1) a produo do sentimento de que estamos em uma guerra; 2) a construo do seu

    oposto, a cultura da paz; 3) a inclinao para a criminalidade atribuda aos jovens, pretos e

    pobres das favelas cariocas; 4) os discursos de disciplinamento e controle desses sujeitos, por

    meio de projetos socioeducacionais. Foi ento que deixando a experincia da pesquisa nos

    guiar, como devir, escolhemos aprofundar a pesquisa sobre esses blocos de discursos.

    Percebemos que, com a produo macia desses sentidos, toda uma poltica foi

    construda, junto com os seus sujeitos e prticas. A partir da pesquisa e anlise desses blocos

    de produo de sentidos, buscamos demonstrar como; por que; para quem; e por quem; esses

    discursos foram desenvolvidos.

    3 A Prole uma das agncias de comunicao responsveis pela publicidade institucional do Governo do Rio de Janeiro e da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, durante o perodo da pesquisa. Foi criada em 2005, no Rio de Janeiro e, hoje, tem escritrios em So Paulo e Washington. Em sua carteira possuiu clientes privados, pblicos e do terceiro setor. (PROLE, s/d)

  • 5

    Alguns acontecimentos tambm foram destacados como potentes dispositivos analisadores nessa pesquisa. Foram eles: o assassinato do menino Joo Hlio e sua repercusso no debate acerca do controle, penalizao e criminalizao do jovem pobre; as incurses da PM (Polcia Militar), com a ajuda do Exrcito e da FSN (Fora de Segurana Nacional) que culminaram em diversas chacinas no Complexo do Alemo; e a implantao das UPPs (Unidades de Polcia Pacificadora).

    Com isso tudo, restava uma dvida fundamental:

    c) ainda caberia espao para entrevistas?

    Ao desistirmos de atender a uma certa regra acadmica, presa a discursos do

    empirismo e que entende as entrevistas como coleta de dados, percebemos essa pesquisa

    como uma experincia, como um movimento de resistncia, passando a fazer sentido, para a

    autora, voltar ao Cantagalo e realizar as entrevistas. No como uma ida ao campo, mas

    como uma visita, um encontro, uma conversa. Foi timo rever algumas pessoas, foi

    emocionante subir de novo o morro, onde tive encontros inspiradores de pensamentos e

    vontade de escrever. No sobre eles, nem por eles, mas com eles. Um texto que foi

    pensado e escrito a muitas mos, pelos encontros e conversas.

    O propsito desta pesquisa foi analisar as caractersticas dos discursos e suas

    funcionalidades institucionais e sociais; passando pelos discursos dominantes, maciamente

    divulgados na mdia; e necessariamente, tambm, pela escuta e pelo dilogo com aqueles que

    mais sofrem os seus impactos os grupos silenciados.

    Assim, junto anlise dos discursos da mdia, para enriquecer a pesquisa, realizamos

    dez entrevistas com moradores do Cantagalo, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio

    de Janeiro, onde a autora trabalhou como psicloga em uma ONG (Organizao No

    Governamental), durante quatro anos.

    Alm da familiaridade com o local, por termos trabalhado l, escolhemos o Cantagalo

    por se tratar de um territrio ocupado por uma UPP durante o perodo pesquisado, e por ter

    presente, em seu territrio, diversas instituies como: o Projeto Criana Esperana, o Grupo

    Cultural AfroReggae, a Clnica de Sade da Famlia Pavo/Pavozinho/Cantagalo, o Centro

    Comunitrio de Defesa da Cidadania (CCDC), a Fundao Leo XIII, o Museu de Favela

    (MUF), o Centro de Referncia de Assistncia Social (CRAS), o Centro de Referncia da

    Juventude (CRJ), o Projeto Harmonicamente Msica e Cidadania, o projeto Danando pra no

    Danar, alm de associao de moradores, creches e escolas, sendo uma delas um CIEP

    (Centro Integrado de Educao Pblica). Uma multiplicidade de instituies.

    A experincia de retornar ao Cantagalo, para realizar as entrevistas, foi muito potente.

  • 6

    Foi fundamental para o presente trabalho voltar l, depois de mais de dois anos afastada, e

    poder conversar com vrias pessoas sobre como elas percebiam o processo da implantao

    das UPPs, como se sentiam e como percebiam os projetos educativos realizados pelos

    policiais e por ONGs.

    Realizamos dez entrevistas. Uma das pessoas entrevistadas, por ter medo de represlia

    da polcia e/ou do trfico, inicialmente no concordou que a entrevista fosse gravada. Por fim,

    depois de algumas tentativas frustradas de marcar o encontro, acabamos s conversando por

    telefone. Esse medo, esse no dito, entretanto, j nos disse muito. As outras nove entrevistas

    realizadas, foram gravadas e transcritas. Priorizamos buscar pessoas que tivessem participado,

    trabalhado, ou fossem responsveis por crianas que participaram de algum projeto

    socioeducacional realizado na favela. Dentre as caractersticas dos entrevistados, podemos

    dizer que tinham entre 16 e 48 anos e viveram, a vida inteira, no Cantagalo (exceto um, que

    se mudou para l quando ainda era adolescente). Com exceo de dois adolescentes de 16

    anos, todos os outros entrevistados eram responsveis por crianas que participaram dos

    projetos da UPP.

    O processo de escolha dos entrevistados aconteceu gradualmente. A autora foi na casa

    de uma pessoa que conheceu na poca em que trabalhou na favela, essa moradora tinha dois

    filhos que haviam participado da escolinha de futebol da UPP. Explicou-se a pesquisa

    reforando o anonimato dos entrevistados. Depois de concordar e gravar a entrevista, a

    moradora indicou outras pessoas para serem entrevistadas, acompanhando at as respectivas

    casas. Apesar de ter trabalhado l, a autora no conhece bem as ruas e vielas, e se sentiu mais

    segura sendo acompanhada.

    Reportagens de jornal foram mostradas, com fotos de crianas participando dos projetos

    realizados pela UPP a algumas pessoas entrevistadas, que reconheceram as crianas das fotos

    e indicaram onde moravam. Ento, a pesquisadora conversou com os responsveis dessas

    crianas. Muito mais do que entrevistas, foram encontros, conversas que ajudaram a construir

    as anlises dessa pesquisa.

    Pensamos ser importante assumir que, apesar da nossa proposta metodolgica incluir

    entrevistas, no acreditamos que o pensamento de cada um, na sua totalidade, possa ser

    capturado na coleta de dados. Tambm, em hiptese alguma, pretendemos falar por eles,

    ou para eles. Apesar de no vivermos o dia-a-dia da favela, termos trabalhado l por quatro

    anos nos fez vivenciar e compartilhar a revolta e a indignao com o extermnio das pessoas

    pobres, pretas e faveladas. Dessa forma, escrevemos, falamos e pesquisamos com eles.

  • 7

    Definidas as questes, observamos, partindo da histria contada pelas manchetes e

    matrias de O Globo, no uma subservincia entre o jornal e o governo, mas uma relao

    recproca favorvel a uma viso dominante de mundo que produz e dissemina o senso comum

    acerca da necessidade de controle dos territrios nas favelas cariocas, contra o trfico de

    drogas, como soluo violncia urbana, dirigida no s aos moradores das favelas, mas

    tambm aos moradores do asfalto, constantemente ameaados em sua paz.

    s matrias sobre violncia, assaltos e poder do trfico, se intercalaram aquelas que se

    referiram s polticas de segurana, megaoperaes, choques de ordem, ocupaes das

    favelas, guerra contra o trfico.

    Como resultado da lgica punitiva, policialesca e de controle, pontuamos as diversas

    chacinas ocorridas durante o perodo pesquisado, que atingiram os moradores das favelas, em

    sua maioria jovens, pretos e pobres. Chacinas que foram legitimadas e aplaudidas pelas

    maioria dos homens de bem e potenciais vtimas da violncia causada pelo inimigo

    pblico.

    Com a implantao das UPPs, observamos que as matrias de O Globo, em sua maioria,

    elogiaram e apoiaram a iniciativa do governo. Muitas delas reforadas pelas declaraes de

    fontes do Estado, como o governador, o secretrio de Segurana, policiais e especialistas.

    Assim, O Globo apresentou a poltica de pacificao como positiva e consolidada,

    responsvel por trazer benefcios e segurana aos moradores das favelas e de seu entorno.

    Foram raros os depoimentos ou reportagens que questionaram a instalao das Unidades ou a

    conduta dos policiais.

    As pautas das matrias publicadas no jornal refletiram e influenciaram diretamente as

    iniciativas dos governos e os resultados das eleies, mas, tambm, o governo influenciou no

    que foi publicado, no importando o lugar nessa relao. Sem nenhuma regulao da mdia,

    essa produo de subjetividades tem atendido a um grupo dominante, que a utiliza com fins

    polticos, legitimando modos de pensar e prticas excludentes.

    O discurso da educao como estratgia de combate ao crime, a ideia de que jovens de

    favelas necessitam de intervenes disciplinares e de controle, pois so potenciais criminosos,

    justificaram diversas aes. Tornouse dominante o pensamento de que os projetos

    socioeducacionais nas favelas, realizados pelas ONGs, pelas empresas e pelos policiais das

    UPPs, oferecem oportunidades, sejam elas de insero no mercado de trabalho, no mundo

    do esporte, das artes ou da msica.

    Ficou claro que esses projetos fazem parte do canto da sereia neoliberal. sabido que

    esse trabalho socioeducativo com jovens das favelas no capaz de equalizlos e equipar

  • 8

    los aos jovens da elite. Nem de longe se igualam as oportunidades. Ao contrrio, os jovens

    da favela so desqualificados socialmente. Assim como a priso, conforme nos mostrou

    Foucault (1990a), os projetos socioeducativos nas favelas tm a sua positividade: sua

    seletividade. Esses projetos diferenciam os jovens: o cidado participativo do delinquente. Se

    o jovem no est na escola, ou em um projeto socioeducacional, porque est no crime,

    inimigo e pode ser exterminado.

    Desse modo, a nossa pesquisa foi datada e localmente situada. Referiu-se aos anos de

    2007 a 2010. Foi a tentativa de fazer um retrato do presente, tendo como fundo as favelas da

    cidade do Rio de Janeiro. Um recorte especfico, mas que mostra a onda punitiva e

    policialesca que o neoliberalismo tem produzido e espalhado em uma escala global.

    (WACQUANT, 2013) Onda de criminalizao, localizada por condio econmica, cor e

    local de moradia.

    Tomamos como perspectivas terico/metodolgicas a genealogia e a anlise do discurso

    e consideramos o material da pesquisa, que foram as reportagens do jornal, imagens,

    fotografias, vdeos, transcrio de entrevistas etc., como documento, arquivo, forjado pea por

    pea. O documento como efeito de selees, recortes e disputas. Ou seja, quando

    selecionamos as manchetes, os textos e as imagem do jornal, quando citamos a fala de algum

    que foi entrevistado ou quando relatamos alguma experincia vivida no processo da pesquisa,

    o sentido que nos despertou foi o que mais importou. Partimos da concepo de que o

    processo de pesquisa, de anlise e escrita um processo criativo, influenciado pelo afeto,

    posio, crenas, experincias e vivncias de quem escreve.

    Para a anlise genealgica, importa a histria poltica das prticas e das lutas, ela se interessa pelas batalhas. No h um objeto sobre o qual o pesquisador aplica conceitos, mas um conjunto de foras que atuam segundo tticas e estratgias mveis que se enfrentam, justapem-se e se mesclam, atraindo tambm o pesquisador para o interior de inesperadas batalhas. (AUGUSTO, 2013, p. 88)

    Este trabalho se localizou no desafio de conceber pesquisador e campo de pesquisa,

    sujeito e objeto se constituindo no mesmo momento, no mesmo processo. Tivemos como

    proposta romper com as dicotomias sujeito-objeto, o que implica na pesquisa como

    constituio de planos, de processos criativos, de possibilidades de pensamento.

  • 9

    Apostamos na desconstruo dos discursos hegemnicos, mostrando o carter de

    controle e conteno que eles comportam, produzidos para naturalizar prticas de excluso e

    extermnio da massa empobrecida e para tratar de pblicos especficos, entendidos como

    demandantes de intervenes, sem a contextualizao dos processos histricos e sociais de

    construo das identidades atribudas a esses pblicos. Discursos que culpabilizam e

    criminalizam a juventude preta4 e pobre, indicando, como alternativa priso e morte,

    formas mais sutis de controle social, que se materializam, nessa anlise, por meio dos projetos

    socioeducacionais.

    4 A polmica sobre a forma correta de se classificar a populao pela cor e raa (preto ou negro) ainda alimenta muitos debates. Ao longo de mais de 140 anos, foram feitas mudanas na nomenclatura oficial utilizada (Censo IBGE), mas ainda no h consenso. Consideramos a classificao negro como uma construo social, que leva em conta o pertencimento a um povo, excludo e escravizado, muito mais que a cor da pele, uma viso poltica. Tambm levamos em conta que, quanto mais escura for a cor da pele, maior a discriminao. Aqui, optamos por usar o termo preto por ser a nomenclatura oficial, utilizada atualmente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica).

  • 10

    CAPTULO 1 A PESQUISA: FUNDAMENTOS TERICO-METODOLGICOS 1.1 A pesquisa como experincia

    Ainda hoje, as metodologias que se enquadram nos pressupostos da racionalidade

    cientfica so a forma dominante no cenrio acadmico. Pesquisas conduzidas nessa lgica

    enfatizam a dissociao da produo de conhecimento com a realidade; a separao entre

    sujeito e objeto; negam a complexidade da subjetividade; e se definem pertencentes a campos

    epistemolgicos especficos.

    Pesquisamos autores de diversas reas, como a psicologia, a filosofia, a educao, o

    direito, a sociologia e a histria, como apoio na organizao das experincias da pesquisa e

    para termos contato com as diferentes interpretaes referentes s questes pertinentes ao

    nosso trabalho. Avanamos, em nossas formulaes, apostando em uma transdisciplinaridade

    radical, desconstruindo e colocando em anlise disciplinas que vm marcando fronteiras,

    muitas vezes, rgidas na definio de seus objetos de pesquisa e/ou interesse.

    exatamente a estabilidade desta relao que, contemporaneamente, criticamos. Podemos chamar esta atitude crtica de transdisciplinaridade, j que os limites entre as disciplinas perturbado quando se coloca em questo as identidades do sujeito que conhece e do objeto conhecido. A noo de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentao dos campos epistemolgicos, graas ao efeito de desestabilizao tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 76)

    Os conceitos dos diversos autores pesquisados, mais do que uma fundamentao

    terico-metodolgica ou um atravessamento por campos epistemolgicos distintos, so

    entendidos como disparadores do pensamento. O nosso ponto de partida o desafio de pensar

    a noo de plano e a ideia de intercessor, conceitos deleuzianos que nos tm apoiado

    nessa forma de pesquisar. Quando falamos em plano de imanncia ou plano de

    composies, no estamos tomando essas expresses partindo do sentido comum, como

    habitualmente nos referimos ao campo de saber ou ao campo de uma prtica. A noo, que

    aqui tomamos, reequaciona a relao sujeito-objeto, redireciona a relao teoria-prtica e a

    ideia de identidade-unidade, deslocando o sentido habitual de campo.

  • 11

    Para que possamos romper com essas dicotomias apontadas, precisamos constituir um

    plano, onde o que vem primeiro a relao, esta sim, constituidora dos termos. Tomando

    cuidado para no tornar esta noo equivalente a um espao de articulao entre identidades

    de saberes, pensamos em um plano de constituies ou de emergncias, a partir do qual

    podemos criar pensamentos.

    Deleuze, em Diferena e Repetio (1988), deixa claro que no se trata mais de pensar

    sobre a forma, nem sobre os fundamentos, trata-se de pensar a instaurao do plano de

    imanncia. Como o plano, o problema, se instaura? Como se torna uma necessidade criativa?

    O que Deleuze chama de plano de imanncia o solo, o horizonte da produo conceitual.

    Sem ele, os conceitos ficariam perdidos no vazio. nesse sentido que o pensamento vem

    junto com a vida, que a produo de conhecimento entendida como criao, que o conceito

    vem junto com o plano de imanncia, como devir, como ao, que se move pelo criar, porque

    a vida criao.

    Um conceito/intercessor no existe isolado. Ele precisa estar, necessariamente,

    articulado a outros de seu tempo, para que, assim, ele possa efetivamente ter existncia, se

    tornar um intercessor.

    Entendemos a ideia de intercessor como uma ferramenta, um conceito cheio de fora

    crtica, que produz crise e desestabiliza. necessrio diferenciarmos as noes de interseo e

    intercesso. Na primeira, temos dois domnios que constituem um terceiro; na segunda, a

    relao que se estabelece entre os termos de interferncia, de interveno, atravs do

    atravessamento que desestabiliza um domnio sobre o outro. No se d a gnese de outra

    identidade, mas, sim, um processo de diferenciao.

    importante ressaltarmos aqui, que estamos tomando o conceito de intercessor criado

    por Deleuze e Guattari em O que a Filosofia? (1992) como sendo algo que institui um

    reaprendizado do vivido, uma ressignificao. Um conceito se torna um intercessor quando

    produz tal tipo de efeito: de fazer variar um certo domnio por interferncia de um outro. Ou

    seja, uma relao de perturbao e no de troca, algo que institui um reaprendizado do vivido,

    uma ressignificao.

  • 12

    Assim, o conceito no deve ser procurado, pois no est a para ser encontrado. O conceito no uma entidade metafsica, ou um operador lgico, ou uma representao mental. O conceito um dispositivo, uma ferramenta, algo que inventado, criado, produzido, a partir das condies dadas e que opera no mbito mesmo destas condies. O conceito um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo, pensar. O que significa dizer que o conceito no indica, no aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrrio, o conceito justamente aquilo que nos pe a pensar. Se o conceito produto, ele tambm produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que o conceito que recorta o acontecimento, que o torna possvel. (GALLO, 2005, p. 43)

    Afirmamos, ento, uma postura tico-metodolgica, pensando os conceitos-

    intercessores como referncia para uma atitude de abertura e de crtica ao que vai se

    produzindo, no processo da pesquisa. Os intercessores representam um auxlio na manuteno

    de certa relao com o campo problemtico da pesquisa. Menos que um conjunto de regras a

    serem seguidas, a filosofia e os conceitos no so para serem aplicados, mas experimentados.

    Conforme nos indicaram Coimbra, Scheivar, Ayres e Nascimento (2005, p. 132):

    Entendemos a pesquisa como um processo permanente de experimentao, de criao e de ruptura, como um campo de possibilidades que pode promover conexes em mltiplas direes e sentidos. Ou seja, uma interveno em ns, no mundo e, nessa medida, no objeto pesquisado.

    Entendemos a empreitada da pesquisa e da escrita como uma experincia. Onde o que

    se transforma mltiplo: o que pensamos, a relao que temos com o que pensamos, o que

    sabemos, a relao que temos com o que sabemos, o que somos, a relao que temos com o

    que somos. (KOHAN, 2005, p. 14)

    A experincia e a verdade habitam espaos diferentes e possuem uma relao complexa. Uma experincia intensa, importante, desejvel, supe um compromisso com uma certa verdade acadmica, histrica, que a antecede... No estamos dispostos a depreciar ou a renunciar a uma tal verdade. No obstante, a experincia da escrita a transcende, a esquiva, a evita e, em seu sentido mais importante, a coloca em questo, a ameaa, modifica nossa relao com essa verdade e dessa forma, transforma aquilo que somos. Este o valor principal de uma experincia de escrita; no contribuir para constatar uma pressuposta verdade, mas sim transformar a relao que mantemos com uma verdade na qual estvamos comodamente instalados antes de comear a escrever. (Ibid., p. 16)

  • 13

    1.2 Arqueologia, genealogia e anlise do discurso

    Partiremos de alguns aspectos do pensamento de Michel Foucault, no que se refere ao

    seu projeto de investigao sobre a relao entre poder-saber, verdade e produo de

    subjetividades na modernidade.

    Num primeiro momento, Foucault, a partir do mtodo chamado arqueolgico, descreve

    os diferentes modos de investigao que procuram aceder ao estatuto de cincia e que

    produzem, como efeito, a objetivao do sujeito. Ou seja, investiga os saberes que embasam a

    cultura ocidental.

    Num segundo momento, Foucault faz a articulao entre saberes e poderes, a partir de

    uma genealogia do poder, ou seja, investiga as instituies desenvolvidas para controlar os

    corpos dos indivduos, tais como a priso, a escola e o manicmio. E por fim, Foucault vai

    pensar a subjetivao a partir das tcnicas de si e da governamentalidade, ou seja, do governo

    de si e dos outros.

    Foucault, em sua obra Vigiar e punir (1999a), efetuando uma anlise genealgica das

    prticas punitivas, se afasta de uma concepo clssica de sujeito de conhecimento e de

    domnios de saber previamente dados. Considera-os como efeitos de condies de

    possibilidades externas ao conhecimento, a saber, condies polticas e sociais.

    De fato, as anlises de Foucault, efetuadas em Vigiar e punir, so precedidas por suas

    conferncias sobre A verdade e as formas jurdicas (1999b), onde destaca o papel de

    Nietzsche no afastamento do pensamento filosfico clssico, o qual situava o sujeito como

    ncleo central de todo o conhecimento, tomando explicitamente o pensamento daquele autor,

    como referncia para a sua pesquisa de

    [...] como se pode formar no sculo XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das prticas sociais do controle e da vigilncia. E como este saber no se imps a um sujeito de conhecimento, no se props a ele, nem se imprimiu nele, mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conhecimento. (FOUCAULT, 1999b, p. 10)

    Em seu curso no Collge de France A vontade de saber (FOUCAULT, 1997a)

    Foucault toma e cita o pensamento de Nietzsche sobre o conhecimento, explcito no texto

    Sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral.

  • 14

    Em algum remoto rinco do universo cintilante que se derrama em um sem nmero de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da histria universal, mas tambm foi somente um minuto. Passados poucos flegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer (...). (NIETZSCHE, 1983. p. 45)

    Nietzsche identifica a emergncia do conhecimento como sendo da ordem da inveno,

    do confronto entre os instintos, da vontade de apropriao, do interesse, se desviando do

    pensamento clssico.

    A palavra inveno, do alemo erfindung, vem se opor palavra origem, do alemo

    ursprung. Erfinder significa achar, inventar, enquanto o termo ursprung est relacionado a

    uma busca de origem em seu sentido metafsico, ou seja, um fundamento originrio, a forma

    platnica, imvel e anterior a qualquer acidentalidade.

    Assim, o historiador tradicional, nos termos da ursprung, busca a origem, enquanto na

    perspectiva genealgica a atitude outra; pela genealogia, visa-se voltar ao passado para

    libertar o presente, questiona-se o valor dos valores, as coisas institudas, concebidas como

    naturais ou dadas; o que se destaca no uma essncia dada na histria, mas sim uma

    construo ao acaso, enfim, o que se denominaria em alemo uma herkunft, o tronco de uma

    raa, uma provenincia. A provenincia no funda, no aponta para uma continuidade.

    Perguntar pela provenincia de algo no descobrir as suas caractersticas genricas, nem

    encontrar o que a fundou, mas, sim, buscar as marcas diferenciais, os acidentes de percurso,

    apontar heterogeneidades naquilo que parecia em conformidade a si mesmo.

    Citamos Foucault: a provenincia permite tambm reencontrar sob o aspecto nico de

    um carter ou de um conceito a proliferao dos acontecimentos atravs dos quais (graas aos

    quais, contra os quais) eles se formaram. (FOUCAULT, 1990, p. 20) A provenincia diz

    respeito ao corpo: o corpo: superfcie de inscrio dos acontecimentos (...) lugar de

    dissociao do eu (...) volume em perptua pulverizao. (Ibid, p. 22)

    Outra palavra usada por Nietzsche entestehung, emergncia, que no deve ser

    confundida com o termo final de um processo, mas, sim, constitui o princpio e a lei singular

    de um aparecimento. A entestehung se produz, sempre, em um determinado estado de foras,

    em um combate. Enquanto a provenincia se refere qualidade dos instintos, a emergncia

    diz respeito ao campo de foras em ao. Entretanto, no se deve confundir este campo como

    um plano fechado e, sim, tom-lo como um plano onde a desigualdade das foras em luta

    predominante.

  • 15

    Voltemos citao de Nietzsche sobre o conhecimento. Nietzsche aponta, ao dizer que

    o conhecimento foi inventado, para o fato de que ele no tem uma origem, no tem uma

    ursprung. Significa dizer que ele tem uma emergncia. O conhecimento o efeito dos

    instintos, como um lance de sorte, ou como o resultado de um longo compromisso. Ele

    ainda, diz Nietzsche, como uma centelha entre duas espadas, mas que no do mesmo ferro

    que as duas espadas. (FOUCAULT, 1999b, p. 17)

    No h um conhecimento inscrito na natureza humana, no h um germe do

    conhecimento no sujeito. Poderamos dizer que os instintos humanos seriam as espadas, o

    campo de luta, onde emerge o conhecimento, fruto da batalha dos instintos. Chegamos ento

    palavra instinto.

    Vejamos o aforismo 333 de Gaia Cincia: O que significa conhecer? Non ridere, non

    lugere, neque detestari, sed intelligere! [No rir, no lamentar nem detestar, mas

    compreender!] diz Spinoza. (NIETZSCHE, 2004, p. 220) Neste aforismo, Nietzsche se

    ope a Spinoza, ao dizer que no atravs do apaziguamento das foras presentes no rir,

    detestar e lamentar que conhecemos algo, mas sim justamente na existncia destes instintos

    em luta que emerge o conhecimento: a centelha entre as espadas.

    Diz Foucault:

    Este modelo de um conhecimento fundamentalmente interessado, produzido como acontecimento do querer e determinando, por meio de falsificao, o efeito de verdade, encontra-se, sem sombra de dvida, o mais longe possvel dos postulados da metafsica clssica. (FOUCAULT, 1997a, p. 15)

    Foucault deixa de considerar o sujeito de conhecimento como o fundamento a priori, o

    ponto de origem j dado do conhecimento e do aparecimento da verdade. Ele passa a ser

    considerado como um sujeito que se constitui no interior da histria, um efeito produzido

    atravs da relao poder-saber.

    Foucault legitima uma concepo renovada de pesquisa, onde no se busca reconstituir

    o real, j que ele sempre uma fabricao, uma inveno (nas palavras de Nietzsche), um

    efeito de sentido criado pelos discursos. Foucault elabora uma teoria do discurso que prope

    um novo sentido para o sujeito e para a histria.

  • 16

    O novo arquivista anuncia que s vai se ocupar com os enunciados. Ele no vai tratar daquilo que era, de mil maneiras, a preocupao dos arquivistas anteriores: as proposies e as frases. Ele vai negligenciar a hierarquia vertical das proposies, que se dispem umas sobre as outras, e tambm a lateralidade das frases, onde cada uma parece responder a outra. Mvel, ele se instalar numa espcie de diagonal, que tornar legvel o que no podia ser apreendido de nenhum outro lugar, precisamente os enunciados. Uma lgica atonal? normal que sintamos uma certa inquietude. Pois o arquivista, de propsito, no d exemplos. (DELEUZE, 1988, p. 13)

    Nos aproximamos da anlise de discurso de linha francesa, inaugurada por Michel

    Pcheux, com a qual Foucault dialoga, e a multiplicidade dos conceitos do pensamento

    nietzschiano, tomados por Foucault e constitudos como genealogia.

    Tendo percebido a necessidade de uma abertura no corpus, Pcheux prope que a anlise do discurso trabalhe com as materialidades discursivas implicadas em rituais ideolgicos, nos discursos filosficos, em enunciados polticos, nas formas culturais e estticas, atravs de suas relaes com o cotidiano. Constitui-se, portanto, mais um lugar que podemos observar a confluncia do seu pensamento com as propostas foucaultianas, j que ao adotar esse ponto de vista, Pcheux aponta na direo arqueogenealgica desenvolvida por Foucault, que desde o incio dos anos 70, estava interessado em estudar as polulaes dos saberes que constituem a histria do presente. (GREGOLIN, 2006, p. 176)

    O processo de anlise discursiva no uma metodologia, especificamente. Ele se funda

    na interseco de epistemologias distintas, e se constri a partir da definio dos seus

    principais objetos: o discurso; o enunciado; e o saber. Tem a pretenso de interrogar os

    sentidos estabelecidos em diversas formas de produo, que podem ser verbais ou no-

    verbais, bastando que a sua materialidade produza sentidos para interpretao.

    [...] gostaria de mostrar que o discurso no uma estreita superfcie de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma lngua, o intrincamento entre um lxico e uma experincia; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os prprios discursos, vemos se desfazerem os laos aparentemente to fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, prprias da prtica discursiva. (...) no mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a contedos ou a representaes), mas como prticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos so feitos de signos; mas o que fazem mais que utilizar esses signos para designar coisas. esse mais que os tornam irredutveis lngua e ao ato da fala. esse mais que preciso fazer aparecer e que preciso descrever. (FOUCAULT, 2007, p. 56)

  • 17

    A anlise do discurso no trabalha com o contedo, mas com o sentido que produzido

    nas mais diversas formas. Essa uma diferena importante, a nosso ver, entre a anlise de

    contedo e a anlise do discurso. Partimos da concepo de que o processo de pesquisa, de

    anlise e interpretao um processo criativo. O analista faz uma leitura tambm discursiva,

    influenciada pelo seu afeto, sua posio, suas crenas, suas experincias e vivncias, portanto,

    a interpretao nunca ser absoluta e nica, mas sim um efeito de sentido.

    Como descreve Ragusa em A arqueologia do saber e a histria: Pois ao contrrio da histria tradicional, a arqueologia procura apanhar o sentido do discurso em sua dimenso de acontecimento, ou seja, por mais que sejam semelhantes, cada texto, cada fala, cada palavra por mais que se aproximem e se paream de outras palavras e textos, nunca so idnticos aos que o precedem, da a singularidade dos acontecimentos discursivos na histria. A arqueologia torna possvel compreender a emergncia dos acontecimentos discursivos, investigando as condies sociais e histricas que contextualizaram e possibilitaram sua existncia material. Assim investiga-se porque determinado enunciado foi enunciado, e nenhum outro em seu lugar. (RAGUSA, 2011) (Grifo do autor).

    Nesta forma de fazer histria, aquilo que as pessoas disseram e dizem instaura uma

    realidade discursiva, elevando o dito ao estatuto de acontecimento. Nessa lgica, os sujeitos e

    os objetos no existem a priori, so construdos discursivamente sobre o que falam e o que se

    fala deles.

    Foucault trabalhou com pergaminhos embaralhados, com documentos empoeirados,

    laudos, pronturios e arquivos de instituies. A genealogia cinza; ela meticulosa e

    pacientemente documentria. (FOUCAULT, 1990, p. 15)

    Este trabalho a experincia de uma genealogia, no mais to cinza, porm ainda

    meticulosa. Utilizamos o arquivo digital de O Globo, onde na tela colorida do computador,

    pudemos ter acesso a todas as pginas de O Globo nos anos pesquisados, digitalizadas, limpas

    e iluminadas eletronicamente.

    O que analisamos nas entrevistas, notcias, reportagens e fotografias foram os discursos

    que operaram e os assujeitamentos que foram produzidos em meio aos jogos de saber/poder,

    que atravessaram a constituio dos discursos da poltica de pacificao do governo de Srgio

    Cabral, no Rio de Janeiro.

    Focamos as anlises nessas produes miditicas, mais especificamente, nas capas do

    jornal, por considerarmos que as capas apresentam os acontecimentos e as notcias

    consideradas pelos editores como as mais importantes ou com mais potencial para aguar a

    curiosidade do leitor, levando-o a comprar um exemplar do jornal. Alm do mais, as capas

  • 18

    expostas nas bancas de jornal so lidas, mesmo que apressadamente, por um nmero maior de

    leitores, independente do perfil socioeconmico. Isso no se restringe s bancas de jornais,

    onde as capas ficam expostas, valendo tambm para as casas, as reparties, os rgos do

    governo, o transporte pblico.

    Os textos das reportagens, editoriais, ou cartas de leitores, que se localizam nas pginas

    internas do jornal, muitas vezes, so assinados por jornalistas, especialistas ou leitores. J nas

    capas, isso no acontece. Quem define a manchete e o texto da chamada na capa do jornal

    nem sempre o jornalista que a escreveu. Nas capas no aparece essa referncia. Existe,

    inclusive, a profisso de mancheteiro, porque uma boa manchete pode vender muito mais

    exemplares do jornal.

    Consideramos que o tamanho da letra, a posio de destaque no jornal e a presena ou

    no na capa indicam a importncia que o jornal est atribuindo a determinados assuntos e

    interferem, profundamente, na produo de sentidos sobre determinado acontecimento.

    Indo neste caminho, nos apropriando do pensamento de Michel Foucault, o que nos

    interessou, na anlise, foi explicitar os discursos que se atravessaram, as lutas que estiveram

    em jogo. Desconstruir a unidade que aparece na reportagem, na entrevista, ou na fotografia,

    como testemunha de uma verdade a ser revelada e divulgada, como um vestgio da verdade e

    entend-la como discurso produzido e produtor de verdades e subjetividades. nesta

    perspectiva, que pensamos os documentos da nossa pesquisa. Buscando as prescries, as

    finalidades, as produes que esto em jogo, onde determinados discursos so legitimados e

    outros, apagados e silenciados, desde a desqualificao at o seu no aparecimento.

    Para Foucault, a anlise do discurso permite entender as dimenses sociais e polticas

    presentes nele que, por sua vez, integram formaes discursivas mais amplas. Ou seja, o

    discurso considerado como produto e produtor da realidade social a qual pertence. Segundo Foucault, para analisar os diferentes modos de subjetivao preciso determinar e descrever a proliferao dos acontecimentos discursivos atravs dos quais, graas aos quais e contra os quais se formaram as noes, os conceitos, os topoi que atravessam e constituem os objetos e engendram os discursos que falam sobre eles. (GREGOLIN, 2006, p. 59)

  • 19

    1.3 Um pouco dos meus afetos

    As questes iniciais dessa pesquisa surgiram a partir da experincia de seis anos

    trabalhando como psicloga de uma ONG que oferece oficinas, atividades educacionais e

    culturais para crianas e jovens, em favelas do Rio de Janeiro. E que atua, tambm,

    encaminhando egressos do sistema penal, ou do trfico de drogas, para o mercado de trabalho.

    Durante os quatro primeiros anos, participei de uma equipe formada por duas

    psiclogas, duas assistentes sociais e uma pedagoga. O projeto se localizava na favela do

    Cantagalo e oferecia atividades sociais e educacionais para crianas e jovens moradores da

    comunidade.

    Tnhamos como atribuies: recepo, orientao e inscrio de pessoas interessadas

    em cursar as oficinas; realizao de rodas de conversa com crianas e adolescentes;

    acompanhamento das famlias dos alunos participantes, com reunies de pais e visitas

    domiciliares; elaborao de relatrios mensais; planilhas de quantitativos de participantes;

    relatrios de eventos; planejamento e execuo de eventos e aes sociais dentro e fora da

    favela; articulao e contato com instituies presentes na comunidade e na rede pblica, tais

    como: escolas, postos de sade, empresas, outras ONGs e projetos governamentais.

    Quando comecei a trabalhar nessa ONG, o Complexo do Cantagalo/Pavo/Pavozinho

    ainda estava sob o comando do trfico de drogas, mais especificamente da faco do

    Comando Vermelho. Em janeiro de 2010, aconteceu a ocupao do BOPE5 e a implantao

    da UPP6, que ocupa a favela desde ento. Acompanhei, pessoalmente, esse processo.

    Aps quatro anos, fui transferida para outro projeto da mesma ONG, na Lapa, bairro da

    cidade do Rio de Janeiro, onde recebia, cadastrava e entrevistava egressos do sistema

    penitencirio e os encaminhava para vagas de trabalho. Nesse processo, visitvamos presdios

    para falar sobre o projeto e acompanhvamos os testemunhos dos casos de sucesso.7

    5 Batalho de Operaes Policiais Especiais, fora de interveno da polcia militar do estado do Rio de Janeiro. Fundado em 1978, possui atualmente um total de 400 policiais efetivos, especializados em operaes de combate ao crime em reas de alto risco e resgate de refns. (BOPEOFICIAL, s/d.) 6 Implantado pela Secretaria de Segurana do Rio de Janeiro, no fim de 2008, o Programa das UPPs (Unidades de Polcia Pacificadora) planejado e coordenado pela Subsecretaria de Planejamento e Integrao Operacional. Segundo afirmam, esse programa foi elaborado com os princpios da polcia de proximidade, um conceito que vai alm da polcia comunitria e tem sua estratgia fundamentada na parceria entre a populao e as instituies da rea de Segurana Pblica. O Programa engloba parcerias entre os governos municipal, estadual e federal e diferentes atores da sociedade civil organizada e tem como objetivo a retomada permanente de comunidades dominadas pelo trfico, assim como a garantia da proximidade do estado com a populao. (GOVERNO DO RIO DE JANEIRO, s/d) 7 Pessoas que j haviam sido do primeiro escalo do crime, ou presas, contratadas pela ONG, que tinham como principal funo dar testemunhos sobre superao e mudana de vida.

  • 20

    Apesar desta pesquisa no tratar, especificamente, dessa experincia de trabalho ou

    dessa ONG, foi a partir dessa experincia que surgiram as questes iniciais que a motivaram.

    Subir o morro, quase que diariamente, durante quatro anos, andar pelas vielas, conversar com

    pessoas, entrar nas suas casas e fazer amigos; dividir a angstia e o sofrimento de pessoas que

    perderam algum parente ou amigo assassinado pela polcia ou por traficantes, e que diante da

    dor, choravam, implorando para que o corpo fosse devolvido, para que pudessem enterrar seu

    parente. Estar no meio de um tiroteio e no saber o que fazer, se jogar no cho e passar a ter

    medo de helicptero (qualquer barulho de helicptero, hoje, me deixa sobressaltada) no

    algo, assim, que se apague facilmente.

    Entrar em um presdio e testemunhar as condies de existncia dos presos e seus

    familiares; ouvir o desespero de uma me que teve o filho preso, sem saber sequer como

    descobrir em que presdio ele estava, se que ele ainda estava vivo; no uma experincia

    que passa pela vida de algum de forma despercebida. Ningum passivo diante dos

    acontecimentos.

    Com o andamento da pesquisa o dilogo com minha orientadora e os professores da

    minha banca e as inquietaes que a qualificao me causou tornou-se invivel continuar

    trabalhando na ONG. Por mais que fosse, para mim, um espao de mltiplos afetos, no dia

    seguinte da qualificao do projeto dessa pesquisa, em agosto de 2013, pedi demisso da

    ONG. Precisei fazer uma escolha, pois continuar l iria de encontro a princpios ticos e

    polticos dos quais eu no poderia mais abrir mo. Fui testemunha e participei de situaes

    que, hoje, eticamente eu critico. Independente disso, penso que todos ns, de alguma maneira,

    estamos envolvidos nos processos.

    Essas experincias vividas, morar no Rio de Janeiro e trabalhar com jovens pretos e

    pobres, me afetaram e despertaram em mim o desejo de escrever, de gritar sobre o que vem

    acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro. No posso compactuar com o extermnio de

    jovens pretos. No posso me calar diante dessa nova onda neoliberal que controla e assassina

    pobres, a cu aberto e em presdios. No posso ser conivente com a barbrie e ficar calada.

    Omitir-me, fingir que nada est acontecendo, uma forma de compactuar. Por isso, precisei

    pesquisar e escrever sobre esse assunto, sobre esse novo Leviat, ferozmente

    intervencionista, autoritrio e caro (WACQUANT, 2012, p. 33).

  • 21

    assim que o Estado lida com a turbulncia social, ocupando e controlando os espaos

    das favelas como campos de concentrao a cu aberto e lotando os presdios. Com as

    tecnologias disciplinares enfraquecidas e impraticveis nas prises superlotadas, o

    adestramento subjetivo. Ser que essa sujeio mais humana que um simples

    armazenamento? J compactuei e participei de tudo isso. Dei aula sobre cidadania para

    jovens pobres e pretos, tambm entrei em prises, com crach de psicloga para conversar

    com os presos.

    Sob a gide do moralismo, tambm produzimos, todos os dias, os microfascismos e as

    naturalizaes. Afinal, o caminho correto to sedutor quanto a prpria ordem. To

    confortvel, que difcil parar e se perguntar: qual a demanda por ordem que se apresenta?

    difcil perceber que, muitas vezes, nos tornamos polcia, muitas vezes nos tornamos

    pastores. Todo cuidado pouco, porque o cho muito molhado e, a qualquer distrao,

    escorregamos. Ento, colocar em anlise as nossas implicaes8 fundamental. Afinal, o

    maior inimigo est dentro de ns, ou nas palavras de Guattari: Somos todos grupelhos.

    O inimigo se infiltrou por toda parte, ele decretou uma imensa interzona pequeno-burguesa para atenuar o quanto for possvel os contornos de classe. A prpria classe operria est profundamente infiltrada. No apenas por meio dos sindicatos pelegos, dos partidos traidores, social-democratas ou revisionistas... Mas infiltrada tambm por sua participao material e inconsciente nos sistemas dominantes do capitalismo monopolista de estado e do socialismo burocrtico. Primeiro, participao material em escala planetria: as classes operrias dos pases economicamente desenvolvidos esto implicadas objetivamente, mesmo que seja s pela diferena crescente de nveis de vida relativos, na explorao internacional dos antigos pases coloniais. Depois, participao inconsciente e de tudo quanto jeito: os trabalhadores reendossam mais ou menos passivamente os modelos sociais dominantes, as atitudes e os sistemas de valor mistificadores da burguesia maldio do roubo, da preguia, da doena, etc. (GUATTARI, 1985, p. 12)

    8 A proposta de analisar nossas implicaes uma forma de pensar, cotidianamente, como vm se dando nossas diferentes intervenes. Dentro de uma viso positivista que afirma a objetividade e a neutralidade do pesquisador/profissional, as propostas da Anlise Institucional tornam-se, efetivamente, um escndalo, uma subverso. Colocar em anlise o lugar que ocupamos, nossas prticas de saber-poder enquanto produtoras de verdades - consideradas absolutas, universais e eternas - seus efeitos, o que elas pem em funcionamento, com o que elas se agenciam romper com a lgica racionalista ainda to fortemente presente no pensamento ocidental (...) Implicado sempre se est, quer se queira ou no, visto no ser a implicao uma questo de vontade, de deciso consciente, de ato voluntrio. Ela est no mundo, pois uma relao que sempre estabelecemos com as diferentes instituies com as quais nos encontramos, que nos constituem e nos atravessam. (COIMBRA e NASCIMENTO, s/d)

  • 22

    Friso, ento, que o meu envolvimento com a pesquisa de ordem afetiva e poltica. No h nenhuma verdade. A experincia de cada um singular. Quando relatamos algo que vivemos, quando pensamos e repensamos as nossas prticas, quando fazemos anlises, encaramos como atos de resistncia. Efeito de experincias pessoais, atravessamentos, leituras, aulas e encontros. As noes de sujeito, objeto, pesquisador e campo de pesquisa se atravessam.

  • 23

    CAPTULO 2: A PEDAGOGIA DO MEDO: O DISCURSO DA GUERRA 2.1 - Mdia e produo de subjetividades

    A partir do referencial conceitual de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Flix Guattari,

    compreendemos os discursos como produzidos e produtores de subjetividades que

    desembocam em prticas, saberes e relaes de poder.

    Assim, o trabalho est marcado por uma compreenso do sujeito contrria a toda uma

    tradio da filosofia e das cincias humanas que, desde Descartes, entende esse sujeito como

    algo do domnio de uma suposta natureza humana. Ns o entendemos como uma produo

    scio-histrica que se materializa por meio das prticas disciplinares e de poder.

    Nesse enfoque, histrico-genealgico, o indivduo entendido, ento, no mais como

    natural ou como uma essncia, mas como, apenas, um dos modos de subjetivao possveis. A

    subjetividade no passvel de totalizao ou de centralizao no indivduo. Ela fabricada e

    modelada no registro do social, constituda por atravessamentos de foras.

    Tudo o que produzido pela subjetivao capitalstica tudo o que nos chega pela linguagem, pela famlia e pelos equipamentos que nos rodeiam no apenas uma questo de ideia, no apenas uma transmisso de significaes por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a polos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexo direta entre as grandes mquinas produtivas, as grandes mquinas de controle social e as instncias psquicas que definem a maneira de perceber o mundo. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 27)

    A subjetividade essencialmente fabricada como parte do processo de produo do

    sistema capitalstico produo esta que interfere na maneira como os indivduos percebem o

    mundo, se articulam com ele, com a ordem social, sustentando as foras produtivas. Guattari e

    Rolnik consideram a sinonmia indivduo/subjetividade como empobrecedora, no sentido de

    que atribui ao sujeito uma identidade determinada e limitada, reduzindo as mltiplas

    possibilidades de se experimentar relaes com a vida.

    Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivduo e de subjetividade. Para mim, os indivduos so o resultado de uma produo de massa. O indivduo serializado, registrado, modelado... A subjetividade no passvel de totalizao no indivduo. Uma coisa a individuao do corpo. Outra a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivao: a subjetividade essencialmente fabricada, modelada no social. (Ibid., p. 31)

    A grande mdia tem um papel fundamental nessa produo de modos de pensar e sentir.

    Ceclia Coimbra nos diz:

  • 24

    Partimos do pressuposto de que a mdia atualmente um dos mais importantes equipamentos sociais no sentido de produzir esquemas dominantes de significao e interpretao do mundo e que os meios de comunicao, portanto, falam pelos e para os indivduos (COIMBRA, 2001, p. 29)

    As notcias publicadas nos jornais so construdas a partir de selees e interpretaes.

    O que leva seleo de uma notcia e no de outra? O jornal, como qualquer outra

    mercadoria, precisa atrair o pblico para consumi-lo. Como uma indstria de notcias, precisa

    prover o mercado. As notcias so selecionadas de modo a atender aos interesses dos

    consumidores do jornal.

    No entanto, para alm de uma mercadoria, o jornal um instrumento de controle, de

    produo de modos de subjetivao, bem como, de verdades. A mdia no apenas seleciona o

    que dito, mas tambm interpreta os fatos para o pblico, processando a informao. O

    conceito de enquadramento, muito utilizado no jornalismo, bastante rico para a

    compreenso desse processo. Ele diz respeito forma como determinada situao

    construda, apresentada e interpretada.

    O jornalismo como prtica institucionalizada, os constrangimentos organizacionais da derivados, a viso dos jornalistas sobre o que notcia resultado da perspectiva que eles tm sobre a prpria profisso e a tendncia que as notcias tm de privilegiar posies ideolgicas hegemnicas, reforando a manuteno do status quo, dentre outros fatores, so fundamentais para uma compreenso dos modos como so promovidos os enquadramentos. (CARVALHO, s/d)

    Partindo de uma suposta objetividade e imparcialidade, a mdia oferece aos leitores

    uma interpretao dos fatos, uma verso do acontecimento, que vendida como verdade nica.

    Os jornais se afirmam como imparciais, tratando a notcia como fato, como verdade, e no

    como verso.

    sabido que algumas poucas famlias controlam a TV9, a mdia impressa e radiofnica

    no Brasil10. Percebemos que, como empresas, elas defendem seus prprios interesses e, nisso,

    9 Marinho (Rede Globo), Saad (Rede Bandeirantes) e Abravanel (SBT). Em plano regional, as famlias Sirotsky (RBS, no Sul), Daou (TV Amazonas, no norte), Jereissati (TV Verdes Mares, no Nordeste), Zahran (TV Centroeste, em Mato Grosso), Cmara (TV Anhanguera). Alm de importantes polticos em seus estados natais, como os Sarney no Maranho (Rede Mirante-TV Globo), os Collor em Alagoas (TV Gazeta-Globo), os Franco em Sergipe (TV Sergipe Globo e TV Atalaia- Record), os Magalhes na Bahia (TV Bahia Globo). (BRASILQUEVAI, 2011) 10 Organizaes Globo famlia Marinho, Rede Record Edir Macedo e Bispos da IURD, Sistema Bandeirantes de Comunicao famlia Saad, Sistema Brasileiro de Televiso famlia Abravanel, Rede TV - Amilcare Dallevo e Marcelo de Carvalho. (PRODUTORAS E TVS, 2010)

  • 25

    inclui-se a poltica. A centimetragem de coluna (que como se mede os espaos nos jornais)

    distribuda de forma desigual entre parceiros e desafetos polticos, ao mesmo tempo em que

    aos parceiros sobram elogios, aos desafetos, a opinio sempre crtica e implacvel.

    Quatro famlias detm a parte do leo da imprensa escrita no Brasil. So elas a famlia Frias, a famlia Marinho, a famlia Mesquita e a famlia Civita, controladoras, respectivamente, dos jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Estado de S.Paulo e da revista Veja. Durante dcadas, essa gente influenciou a sociedade brasileira. Na maior parte do tempo, de forma extremamente nefasta. S para se ter uma idia do mal que essas famlias e seus patriarcas j fizeram ao Brasil, basta lembrar que foram responsveis, por exemplo, por atir-lo numa ditadura militar que durou duas dcadas, e por sustent-la durante a maior parte desse tempo. (...) Foi graas imprensa escrita, por exemplo, que a maioria da sociedade viu Lula como um "perigo" durante longos treze anos. (GUIMARES, 13/03/2007, s/p)

    Deste modo, a mdia produz, em grande escala, subjetividades submissas aos interesses

    do capital globalizado. Como nos diz Coimbra (2001): Este monoplio dos meios de comunicao aps anos de ditadura militar e de concesses escandalosas e praticamente ilegais , sobretudo em certas regies do Brasil, tem sido preocupante (...) intervm abertamente em questes as mais diversas, orientando-as com a aprovao da opinio pblica para os caminhos e desfechos que interessam ao que dominante. (COIMBRA, 2001, p. 33)

    Milton Santos chama esse processo de tirania da informao. uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em ideias que aparecem como centrais prpria ideia da democracia liberdade de opinio, de imprensa, tolerncia utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que o mundo, do que so os pases, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informao, que, associada tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo. (SANTOS, 2007, p. 38)

    O mercado das notcias lucra com as vendas de jornal e a publicidade nele contida, mas

    a sua lucratividade vem, tambm, da produo de processos de subjetivao, da produo de

    verdades. Considerando que o poder poltico, advindo do controle dos meios de comunicao,

    e a riqueza so duas faces de uma mesma moeda. Para Guattari e Rolnik, a subjetividade a

    matria-prima fundamental da produo capitalstica.

  • 26

    O lucro capitalista , fundamentalmente, produo de saber subjetivo, isso no implica uma viso idealista da realidade social: a subjetividade no se situa no campo individual, o seu campo o de todos os processos de produo social e material. O que se poderia dizer, usando a linguagem da informtica, que, evidentemente, um indivduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posio de consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representao, de sensibilidade, etc. sistemas que no tem nada haver com categorias naturais universais. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 32)

    Entendemos que os discursos da mdia atravessam os vrios setores de nossa sociedade

    (a poltica governamental, as empresas, as ONGs, os movimentos sociais) das mais variadas

    formas, promovendo e produzindo subjetividades, modos de perceber e encarar a realidade,

    alcanando a maioria da populao, como um ideal de vida, uma gradativa escala que

    promove um padro de bem-estar social.

    As participaes diferenciadas no processo produtivo impem uma vivncia, tambm,

    diferenciada dos grupos sociais. No entanto, o comportamento de certos grupos encarado de

    forma negativa, a partir de categorizaes do saber oficial e da viso de mundo de uma

    minoria dominante, como forma de controle social. Essa maneira de perceber o mundo vista

    como modelo para a sociedade, como se dos diversos grupos no emergissem diferenciados

    interesses.

    A interpretao dos fatos, vendida como verdade, fabrica consensos sobre certas

    prticas e tipifica os heris e os viles das histrias. A inteno aqui apontar para o carter

    efetivamente construdo desses sujeitos. Pensando as estratgias e os mecanismos pelos quais

    os dispositivos da mdia, da educao, do controle e do poder se atualizam na linguagem.

    Pretendemos destacar que tanto a criminalidade, quanto o sujeito-criminoso, o sujeito-

    educador ou o sujeito-policial so efeitos de discursos e de contingncias sociais, culturais e

    econmicas especficas (e no aspectos de uma natureza ou essncia). Buscamos compreender

    as condies de produo destes discursos e dos sujeitos que os envolvem.

    Segundo Batista (2003): A grande poltica social da contemporaneidade neoliberal a poltica penal. A qualquer diminuio do seu poder os meios de comunicao de massa se encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a populao e aproveitam para se reequipar para os novos tempos. Os meios de comunicao de massa, principalmente a televiso, so hoje fundamentais para o exerccio do poder de todo o sistema penal, seja atravs dos novos seriados, seja atravs da fabricao de realidade para a produo de indignao moral, seja pela fabricao de esteretipo de criminoso. (BATISTA, 2003. p. 33)

  • 27

    Nesta pesquisa, buscamos compreender como essa grande corporao miditica, a Rede

    Globo, cobriu e apoiou a implantao da poltica de pacificao do governo Srgio Cabral,

    por meio de seu jornal impresso. A nossa principal questo foi: que processos de subjetivao,

    que sentidos foram produzidos, corroborando a produo do medo e da insegurana, que

    levaram a populao, mais que aceitar, a aplaudir uma poltica de disciplinamento, controle e

    extermnio das populaes pobres do Rio de Janeiro?

    2.2 O discurso da guerra contra o trfico, as megaoperaes e a ocupao das favelas

    do Rio de Janeiro pelas Foras Armadas e a Polcia Militar

    As estratgias implementadas na poltica de segurana pblica pelo governo do Srgio

    Cabral no estado do Rio de Janeiro no foram novidades, j vinham sendo adotadas nos

    governos anteriores. No entanto, esse modelo repressor voltado para as populaes pobres

    atualizado na forma de megaoperaes, onde um grande nmero de agentes, com o apoio

    das foras armadas e da Fora Nacional11, passam a fazer incurses com ampla divulgao

    dos meios de comunicao.

    Nos dois primeiros anos do mandato do Governador Srgio Cabral, nos anos de 2007 e

    2008, as palavras de ordem que, quase diariamente, apareceram nas capas dos jornais foram:

    guerra e terrorismo. Essa construo macia da imagem de uma guerra civil, de uma guerra

    nas ruas, produz efeitos potentes nas concepes sobre a segurana pblica.

    Na histria da humanidade, o mito da guerra civil sempre esteve presente justificando o

    domnio de certos grupos sobre outros. Na histria oficial do Brasil, esses estados de guerra

    so descritos e denominados como: revoluo, traio, revolta, rebelio, motim e insurreio.

    Alguns exemplos so: Palmares, Inconfidncia Mineira, Revolta dos Males, Canudos,

    Contestado, Caldeiro.

    A expresso estado de guerra tambm justificou medidas de exceo durante a

    ditadura militar: