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    A teoria das formas de governo em Montesquieu e Rousseau: algumas comparações

    Renato Moscateli* 

    Igualmente um grande admirador e um crítico perspicaz da obra de Montesquieu, Rousseau

    nutriu um proveitoso diálogo com o autor d’O Espírito das Leis ao longo dos anos em sua extensa produção intelectual. No Contrato Social, onde existem várias referências a Montesquieu, tanto

     positivas quanto negativas, há algumas páginas que, em princípio, parecem ser um tributo ao

     pensamento do escritor francês. Trata-se do oitavo capítulo do livro III, no qual Rousseau afirma: “A

    liberdade, não sendo um fruto de todos os climas, não está ao alcance de todos os povos. Quanto

    mais se medita sobre esse princípio estabelecido por Montesquieu, mais se sente sua verdade; quanto

    mais é contestado, mais se oferecem ocasiões para estabelecê-lo por novas provas.” (ROUSSEAU,

    2003, p. 414) Entretanto, essa impressão que surge à primeira vista não resiste totalmente na medidaem que se confronta o restante do texto com as idéias do próprio Montesquieu. O que se vê, na

    verdade, é que Rousseau as reinterpretou à luz de seus próprios princípios, aplicando-as de acordo

    com as especificidades de sua teoria das formas de governo, teoria que destoa significativamente

    daquela formulada em O Espírito das Leis. Assim, para compreender as diferenças entre as

    tipologias políticas de Montesquieu e Rousseau, bem como algumas das conseqüências que derivam

    delas, faz-se necessário cotejar seus pontos fundamentais, o que é o objetivo da presente

    comunicação.Montesquieu começa sua taxonomia política definindo o que ele chama de natureza dos

    governos, isto é, aquilo que os faz ser como eles são, ou ainda, aquilo que constitui sua estrutura

     particular. Segundo esse critério, existem três espécies de governo: o republicano – que engloba as

    democracias e as aristocracias –, no qual o poder soberano cabe ao povo como um todo ou a somente

    uma parcela dele; o monárquico, no qual um só indivíduo governa de acordo com leis fixas e

    estabelecidas; e, por fim, o despótico, no qual uma só pessoa governa guiando-se não por leis e

    regras, mas apenas por sua vontade e seus caprichos1. Outra característica essencial dos governos

    ressaltada por Montesquieu reside nos princípios relacionados a cada um deles. Tais princípios são as

    molas que fazem os governos agirem, ou seja, as paixões humanas que os movimentam. Nas

    repúblicas democráticas, o princípio é a virtude2, e nas aristocráticas, é a moderação, enquanto que

    na monarquia e no despotismo são a honra3 e o medo, respectivamente4.

    * Doutorando em Filosofia (UNICAMP). Bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected] O Espírito das Leis, livro II, capítulo I.2  É importante lembrar que Montesquieu considerava nesse caso a virtude de um ponto de vista político e nãosimplesmente moral ou religioso, fato que alguns de seus críticos não perceberam. Nesse sentido, a virtude política própria dos governos republicanos baseia-se em sentimentos como “o amor pelas leis e pela pátria”, “a renúncia de simesmo”, “a orientação para o bem geral” e, acima de tudo, “o amor à igualdade”.3  Em O Espírito das Leis, livro III, capítulo VI, Montesquieu fala da honra nos governos monárquicos como “o preconceito de cada pessoa e de cada condição” que se manifesta na busca de preferências e distinções sociais.

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    A classificação proposta pelo autor leva em consideração duas qualidades básicas: por um

    lado, quem governa, o que diferencia a república dos outros governos, e, por outro lado, como se

    governa, predicado que separa a monarquia do despotismo. Além disso, Montesquieu não recorre,

     pelo menos de início, à oposição entre as formas boas e as degeneradas de governo, mas inclui o

    despotismo ao lado da república e da monarquia, apesar dele corresponder, na teoria clássica, a umadas formas ditas más ou corrompidas.

    Rousseau, por sua vez, faz uso de uma tipologia política mais tradicional no tocante às três

    formas de governo que ela contém. A primeira delas é a democracia, em que o governo é confiado

     pelo soberano a todo o povo ou à maior parte dele; a segunda é a aristocracia, em que o governo é

    entregue a um pequeno número de pessoas; e a terceira, por fim, é a monarquia, em que o governo é

    concentrado nas mãos de um único magistrado5. Mesmo se assemelhando à tipologia clássica

    empregada desde a Antiguidade6, contudo, as categorias conceituais de Rousseau possuem

    especificidades que as singularizam na história da filosofia política. De fato, uma das inovações

    teóricas centrais de Rousseau é sua distinção entre soberano e governo. Pelo nome de soberano7, o

    autor identifica o corpo político formado pela totalidade dos indivíduos que realizam o pacto social,

    na medida em que esse ser coletivo age enunciando sua vontade, e constitui assim o poder

    legislativo. Rousseau também chama esse corpo político por dois outros nomes: um é o de república,

    e o outro é o de Estado. O governo, por outro lado, é restrito ao poder executivo, e define-se como

    um corpo intermediário8 estabelecido entre os súditos e o soberano. No pensamento rousseauniano,

     portanto, o governo configura-se como uma entidade subordinada, cabendo aos magistrados que o

    compõem aplicar, em casos particulares, as leis gerais emitidas pelo soberano.

    Ao se fazer a comparação entre as tipologias de Montesquieu e Rousseau, o que chama a

    atenção logo de início são os significados dados ao termo república pelos dois autores. Para o

     primeiro, a república é caracterizada pela soberania investida em uma coletividade: na democracia o

    4  Segundo Norberto Bobbio, a tese de que certos princípios deveriam animar o funcionamento dos vários tipos degoverno não é nova: “[ela] lembra a tipologia platônica, que se fundamenta em parte nas diversas ‘paixões’ queimprimem um caráter específico às diversas classes dirigentes, representadas pelo homem timocrático, o oligárquico, etc.Usando o termo ‘princípio’, como Montesquieu, podemos dizer que, para Platão, o princípio da timocracia é a honra, o daoligarquia a riqueza, o da democracia a liberdade, o da tirania a violência.” (BOBBIO, 1997, p. 133) Para maioresdetalhes, ver os livros VIII e IX de A República de Platão.5 Contrato Social, livro III, capítulo III.6  Na  História escrita por Heródoto no século V a.C., por exemplo, há o relato da discussão entre Dário, Otanes eMegabizo a respeito da forma de governo a ser estabelecida na Pérsia. No debate, a monarquia, a oligarquia e ademocracia foram os tipos políticos considerados. Na Política de Aristóteles, do séc. IV a.C., vê-se uma classificaçãosemelhante: “As palavras constituição e governo têm o mesmo significado, e o governo, que é a autoridade suprema nosEstados, deve estar nas mãos de um, de poucos ou de muitos. As verdadeiras formas de governo, portanto, são aquelasnas quais um, poucos ou muitos governam tendo em vista o interesse comum (...). Das formas de governo nas quais umcomanda, nós chamamos aquela que observa os interesses comuns de monarquia ou realeza; aquela na qual mais do queum, mas não muitos, comandam, de aristocracia; e ela é chamada assim porque os governantes são os melhores homens,ou porque eles têm no coração os melhores interesses do Estado e dos cidadãos. Mas quando os cidadãos em geraladministram o Estado para o interesse comum, o governo é chamado pelo nome genérico – uma constituição.”(ARISTÓTELES, 1999, p. 61)7 Contrato Social, livro I, capítulo VI.8 Contrato Social, livro III, capítulo I.

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     povo é, sob alguns aspectos, o monarca, e sob outros, o súdito9, isto porque nela a vontade popular,

    expressa por meio de seus sufrágios, é o próprio soberano. Para Rousseau, tal duplicidade nos papéis

    desempenhados pelo povo está presente em qualquer Estado. De acordo com ele, a república não é

    uma espécie de governo, mas “todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que

     possa estar: pois somente então o interesse público governa, e a coisa pública é alguma coisa.”(ROUSSEAU, 2003, p. 379-380) Assim sendo, todo governo legítimo é republicano, podendo-se

    falar, a partir desse quadro conceitual, tanto de repúblicas democráticas e aristocráticas, como faz

    Montesquieu, quanto de repúblicas monárquicas, desde que se tenha em mente que nestas últimas o

     poder soberano é, como sempre deve ser, um atributo do povo e não do governante10. É nessas

    condições que, segundo o Contrato Social, os cidadãos desfrutam da liberdade política ao viver sob

    uma forma de associação que defende e protege a pessoa e os bens de cada associado com toda a

    força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo11.

    Uma outra distinção importante a ser notada é concernente à descrição da monarquia.

    Montesquieu faz questão de contrastá-la com o despotismo para enfatizar o quão decisiva é a

    existência de leis fixas e estabelecidas em um Estado a fim de que a liberdade possa ser garantida a

    seus cidadãos. Sem essas leis, a vontade arbitrária e momentânea do governante submete todos a uma

    vida de escravidão e temor. Nas monarquias, entretanto, há limites à ação do soberano, seja nas leis à

    quais ele também está sujeito e que não pode alterar por simples caprichos, seja na honra que reina

    igualmente sobre o príncipe e o povo12, seja, enfim, nos poderes intermediários13  por onde flui a

    autoridade real, como a nobreza e os parlamentos, verdadeiros repositórios das leis.

    Rousseau, por seu turno, admite que, em teoria, o governo de um só possa servir à soberania

     popular, e que esse tipo de administração seja exigido pelas características de certos Estados, mas

    seus comentários sobre a monarquia no Contrato Social acabam apontando uma íntima ligação entre

    ela e o despotismo. Suas críticas induzem os leitores à conclusão de que é praticamente impossível

    9 O Espírito das Leis, livro II, capítulo II.10 Surge daí a crítica feita a Montesquieu no Contrato Social (livro III, capítulo IV), na qual Rousseau o acusa de falta de justeza e de clareza por não ter percebido que, sendo a autoridade soberana a mesma em todos os lugares, o princípio davirtude deve vigorar em todos os Estados bem constituídos, e não somente nas repúblicas tais como ele as concebe. Ora,Hilail Gildin comenta que esse argumento pode ser difícil de se seguir dado o emprego do vocabulário peculiar deRousseau: “Na classificação tradicional, a forma de governo depende de quem exerce a autoridade suprema nele. ParaRousseau (...), apenas ao povo em pessoa pode legitimamente ser dada essa autoridade. Se fosse estabelecido nos termostradicionais, o ensinamento de Rousseau teria de ser expresso como a visão de que a democracia é a única forma legítimade governo. Suas concepções a respeito das condições sob as quais uma democracia sadia no sentido usual é possível nãosão, em absoluto, tão diferentes das de Montesquieu, não mais do que a afirmação de Rousseau de que a virtude deve sero princípio de todo governo legítimo, isto é, democrático. Usando a palavra ‘governo’ em um sentido mais incomum,Rousseau acha possível afirmar em discurso que a monarquia e a aristocracia não são formas de governo menos legítimasdo que a democracia. Sua concordância com Montesquieu a respeito da democracia é muito maior de fato do que pareceser em discurso. Rousseau pode dizer que a virtude deve ser o princípio de todo Estado bem constituído, e não apenas dademocracia, porque por um Estado bem constituído ele entende um no qual o povo é soberano, ou o que Montesquieuchamaria de uma democracia. (...) Com algumas modificações, a democracia é, no sentido de Montesquieu, a únicaordem política legítima de acordo com Rousseau.” (GILDIN, 1983, p. 104-105)11 Contrato Social, livro I, capítulo VI.12 O Espírito das Leis, livro III, capítulo X.13 O Espírito das Leis, livro II, capítulo IV.

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    que os monarcas contentem-se em administrar a república sem usurpar a autoridade popular. Os reis

    querem ter poderes absolutos, diz Rousseau, e os melhores entre eles desejam ser maus, caso lhes

    agrade, sem deixar de ser senhores, de modo que o seu interesse principal será tornar o povo fraco e

    miserável para que nunca lhes oponha resistência14.

    O caráter antagônico das idéias de Montesquieu e de Rousseau acerca da monarquia ficaainda mais evidente quando se lê o capítulo VIII do livro III do Contrato Social, onde Rousseau

    escreve que há muitas diferenças entre os Estados livres e os monárquicos, pois, “nos primeiros, tudo

    se emprega na utilidade comum; nos outros, as forças públicas e particulares são recíprocas, e uma

    cresce pelo enfraquecimento da outra: enfim, em lugar de governar os súditos para torná-los felizes,

    o despotismo os torna miseráveis para governá-los.” (ROUSSEAU, 2003, p. 415)15  Se era nas

    monarquias que Montesquieu enxergava possibilidades concretas para o estabelecimento de Estados

    moderados, para Rousseau elas representavam um caminho conduzindo inevitavelmente ao

    despotismo. As conseqüências disto manifestam-se na série de relações delineadas por Rousseau

    entre as várias formas de governo e um conjunto de elementos circunstanciais que marcam a

    existência dos povos, tais como o clima em que vivem, a fertilidade e a extensão do território que

    habitam, ou ainda o número de cidadãos que os compõem. Na medida em que Montesquieu havia

    descrito relações dessa mesma espécie, a comparação entre suas idéias é bastante proveitosa.

    A extensão territorial é um primeiro aspecto a ser considerado. Em O Espírito das Leis, diz o

    autor, é preciso que os Estados mantenham limites condizentes com a sua natureza16. As repúblicas

    devem vigorar em territórios pequenos, a fim de que as riquezas individuais não se tornem

    desmedidas, e para que o bem comum seja melhor conhecido17. As monarquias cabem aos Estados

    14 No capítulo XV das Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau dá a entender que as monarquias européiasde seu tempo eram governadas de acordo com os caprichos e as vontades momentâneas dos personagens ligados ao poder, e não por princípios fixos, uma descrição que se aproxima daquela feita por Montesquieu dos Estados despóticos.Para Rousseau, as potências cristãs “não conhecem outros laços além dos de seu interesse. Quando acharem que devemcumprir seus compromissos, elas os cumprirão; quando acharem que devem rompê-los, elas os romperão: daria nomesmo não os ter assumido. Se, ao menos, esse interesse fosse sempre verdadeiro, o conhecimento do que lhes convémfazer poderia fazer prever o que elas farão. Porém, não é quase nunca a razão de Estado que as guia: é o interessemomentâneo de um ministro, de uma jovem, de um favorito; é o motivo que nenhuma sabedoria humana pôde prever,que os determina ora a favor, ora contra seus verdadeiros interesses. De que se pode ter certeza com pessoas que não têmnenhum sistema fixo, e que só se conduzem por impulsos fortuitos? Nada é mais frívolo que a ciência política das cortes.Como ela não tem nenhum princípio seguro, não se pode tirar dela nenhuma conseqüência certa; e toda essa bela doutrinados interesses dos príncipes é um jogo de crianças que faz rir os homens sensatos.” (ROUSSEAU, 2003, p. 1037-1038)15  Comparar com o  Discurso sobre a economia política: “Ao estabelecer a vontade geral como primeiro princípio daeconomia pública e regra fundamental do governo, eu não acreditei necessário examinar seriamente se os magistrados pertencem ao povo ou o povo aos magistrados, e se nos assuntos públicos deve-se consultar o bem do Estado ou o doschefes. Desde muito tempo essa questão foi decidida de uma maneira pela prática, e de outra pela razão, e, em geral, seriauma grande loucura esperar que os que são os mestres de fato preferirão outro interesse ao seu. Portanto, seria preciso, a propósito, dividir ainda a economia pública em popular e tirânica. A primeira é aquela de todo Estado no qual reina entreo povo e os chefes uma unidade de interesse e de vontade; a outra existirá necessariamente em todo lugar em que ogoverno e o povo tiverem interesses diferentes e, por conseqüência, vontades opostas.” (ROUSSEAU, 2003, p. 247) Vertambém o capítulo X das Considerações sobre o governo da Polônia: “Na França, observa-se como uma máxima deEstado o fechar os olhos em relação a muitas coisas; é a que o despotismo obriga sempre.” (ROUSSEAU, 2003, p. 1002)16 O Espírito das Leis, livro VIII, capítulo XX.17 O Espírito das Leis, livro VIII, capítulo XVI.

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    de tamanho medíocre: caso seu território fosse pequeno, elas tenderiam a se transformar em

    repúblicas; caso fosse muito grande, o perigo seria o abuso de poder por membros do governo que

    tentariam desobedecer às ordens do soberano valendo-se das dificuldades que este teria para vigiá-los

    e puni-los18. O despotismo, por fim, só pode ser natural aos grandes impérios, porque neles se requer

     presteza nas resoluções para suprir as distâncias, bem como o uso do medo para impedir anegligência das autoridades colocadas nas regiões mais longínquas19.

    O raciocínio de Rousseau quanto à questão do tamanho dos Estados e os governos busca fixar

    uma proporção matemática entre eles. De acordo com o autor, o número de magistrados superiores,

    isto é, com aqueles com poder decisório, tem de estar em uma razão inversa à do número de

    cidadãos20, uma vez que isto garante que o governo disponha da força necessária para fazer cumprir a

    lei. Decorre dessa regra que as democracias convêm aos Estados pequenos, as aristocracias aos

    médios e as monarquias aos grandes. Quando se analisa mais de perto tais relações, percebe-se

    melhor como Rousseau reconfigura os argumentos de Montesquieu para adequá-los a seus

     propósitos. A pequenez do território, diz Rousseau, permite que nas democracias haja mais

     proximidade entre os cidadãos e suas opiniões acerca do bem público, além de promover a igualdade

    das classes e das fortunas21. Nas aristocracias, é fundamental que o território não seja grande; caso

    contrário, os chefes, devendo ser distribuídos para administrá-lo, poderiam se fazer passar pelo

    soberano em suas respectivas jurisdições, usurpando sua autoridade22. As características dos grandes

    Estados, por exigirem um governo bastante concentrado, impõem a monarquia e junto com ela uma

    série de inconvenientes, como a implantação de ordens intermediárias para suprir a distância entre o

     príncipe e os súditos23.

    Recapitulando, Rousseau recomenda a administração aristocrática aos Estados medianos,

    enquanto que Montesquieu acreditava que neles a monarquia era mais apropriada. Essa divergência é

    muito significativa, pois revela uma diferença fundamental de opinião acerca da melhor forma de

    governo. Ao longo das páginas d’O Espírito das Leis, a preferência de Montesquieu pelas

    monarquias manifesta-se claramente24. Comparadas às repúblicas, as monarquias têm mais presteza

    18 O Espírito das Leis, livro VIII, capítulo XVII.19 O Espírito das Leis, livro VIII, capítulo XIX.20 Contrato Social, livro III, capítulo III.21 Contrato Social, livro III, capítulo IV. Comparar com O Espírito das Leis, livro V, capítulo VI, no qual Montesquieuafirma que a igualdade das riquezas e a frugalidade mantêm-se reciprocamente, e que, embora diferentes, elas não podemsubsistir uma sem a outra; sendo desse modo, se uma desaparece da democracia, a outra sempre a acompanha.22 Contrato Social, livro III, capítulo V. Pode-se ver a influência da obra de Montesquieu sobre Rousseau também nadescrição do espírito que deve animar os cidadãos nas aristocracias. Em O Espírito das Leis, lê-se que a moderação baseada na virtude é a alma dos governos aristocráticos, pois ela torna os nobres iguais entre si. Rousseau diz que aaristocracia exige menos virtudes do que as democracias, mas requer a moderação entre os ricos o contentamento entre os pobres. Para Robert Derathé, em seus comentários à edição da Pléiade do Contrato Social, foi para render homenagem aMontesquieu que Rousseau fez da moderação a virtude apropriada às aristocracias.23 Contrato Social, livro III, capítulo VI.24 No livro XI, capítulo VIII, por exemplo, Montesquieu traça as origens das monarquias modernas a partir dos costumesdas nações germânicas que invadiram o Império Romano. Avaliando as transformações pelas quais, ao longo dos séculos,

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    na condução dos negócios públicos, mas isto não significa que haja precipitação, dado que as leis e

    seus guardiões moderam a rapidez que as decisões do governante único poderiam ter 25. Quanto às

    vantagens sobre o despotismo, o autor explica que a existência de ordens intermediárias sob a

    dependência do príncipe, característica que deriva da natureza das monarquias, faz com que o Estado

    seja mais estável, a constituição mais sólida, e a pessoa dos que governam mais garantida

    26

    .Montesquieu reconhecia que a maioria dos reinos europeus de sua época não correspondia totalmente

    a esse modelo, e vislumbrou na constituição da Inglaterra o caso ímpar de um Estado cujo objetivo

    direto era a liberdade promovida pela distribuição dos poderes em diversas entidades políticas27.

    Contudo, ele pensava que os povos que não viviam sob uma constituição como a inglesa não

    deveriam se sentir mortificados por possuírem uma liberdade limitada, pois, na política como em

    todas as coisas, vale a máxima de que o meio-termo geralmente é a melhor condição para os

    homens28.

    A superioridade da mediania também está na base da opção de Rousseau pela aristocracia

    como melhor forma de governo29. Por um lado, há todo um conjunto de exigências extremamente

    difíceis de se preencher para que a democracia possa existir 30. Por outro, a monarquia é sujeita a uma

    série de inconvenientes que fazem dela um mal necessário dos grandes Estados31. Quanto à

    aristocracia, Rousseau distingue suas três modalidades, a saber, a natural, a eletiva e a hereditária, e

    afirma que “a primeira só convém a povos simples; a terceira é o pior de todos os governos. A

    segunda é o melhor; é a aristocracia propriamente dita.” (ROUSSEAU, 2003, p. 406) Entre as razões

     passaram as práticas políticas dessas nações, o autor conclui dizendo que “é admirável que a corrupção do governo de um povo conquistador tenha formado a melhor forma de governo que os homens puderam imaginar.” (MONTESQUIEU,1989, p. 409)25 Para Judith N. Shklar, Montesquieu buscou demonstrar que, na modernidade, a monarquia era a forma de governo maisadequada porque a república “era coisa do passado. (...) O Estado moderno era grande, sua cultura difusa, enquanto que aantiga república tinha que ser pequena e governada por um etos cívico compartilhado.” (SHKLAR, 1998, p. 245-246)26 O Espírito das Leis, livro V, capítulo XI.27 O Espírito das Leis, livro XI, capítulo VI.28 Montesquieu também aceita que a maioria dos reinos europeus era de governos moderados, não no mesmo grau que aInglaterra, mas ainda assim merecedores desse título, já que neles o príncipe tinha em suas mãos os poderes legislativo eexecutivo, mas deixava a seus súditos o exercício do poder o judiciário. No livro XI, capítulo VI, o autor fornece umcontraponto com um Estado asiático para reforçar sua opinião: “Entre os turcos, onde esses três poderes estão reunidos na pessoa do sultão, reina um despotismo horroroso.” (MONTESQUIEU, 1989, p. 397)29 Ver a sexta das Cartas escritas da montanha: “As diversas formas das quais o governo é suscetível reduzem-se a três principais. Depois de tê-las comparado por suas vantagens e por seus inconvenientes, eu dou a preferência àquela que éintermediária entre os dois extremos e que leva o nome de aristocracia.” (ROUSSEAU, 2003, p. 808)30 Contrato Social, livro III, capítulo IV: “Em primeiro lugar, um Estado muito pequeno, no qual seja fácil reunir o povoe onde cada cidadão possa sem esforço conhecer todos os demais; segundo, uma grande simplicidade de costumes, queevite a acumulação de questões e as discussões espinhosas; depois, bastante igualdade de fortunas, sem o que a igualdadenão poderia subsistir por muito tempo nos direitos e na autoridade; por fim, pouco ou nada de luxo – pois o luxo ou é oefeito de riquezas ou as torna desnecessárias; corrompe ao mesmo tempo o rico e o pobre, um pela posse e outro pelacobiça; entrega a pátria à frouxidão e à vaidade; subtrai do Estado todos os cidadãos para subjugá-los uns aos outros, etodos à opinião.” (ROUSSEAU, 2003, p. 405)31 Além da incompetência dos auxiliares do monarca e da ambição do próprio governante, há também o grave problemada sucessão no trono. Nas coroas eletivas, ocorrem intervalos perigosos entre um governo e outro, bem como a possibilidade de que se introduza a venalidade no processo de escolha. Nas coroas hereditárias não existem malesmenores do que esse, uma vez que “substituindo o inconveniente das eleições pelo das regências, preferiu-se umatranqüilidade aparente a uma administração sábia, e mais se desejou o risco de aceitar como chefes crianças e imbecis ater de discutir a escolha de bons reis.” (ROUSSEAU, 2003, p. 411)

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    da excelência da aristocracia eletiva, o autor indica o fato de que a escolha de um pequeno número de

    magistrados permite que requisitos como a honestidade, o conhecimento e a experiência sejam

    levados em conta no processo de seleção dos governantes, e não somente a fortuna pessoal. Ademais,

    a facilidade para reunir as assembléias e a presteza com que se executam os negócios públicos

    também são vantagens essenciais. Segundo Rousseau, trata-se do sistema de administração que usada maneira mais racional os recursos humanos do Estado32.

    Entre as circunstâncias geográficas abordadas pelos dois autores, o clima e a qualidade da

    terra, por influenciarem de modo decisivo a vida de seus habitantes, também foram discutidos por

    suas repercussões de ordem política.

    De acordo com a teoria dos climas desenvolvida por Montesquieu33, os comportamentos dos

    homens divergem de uma região para outra devido à ação que as diferentes temperaturas exercem

    sobre seus corpos e mentes; assim, o calor excessivo diminui a força e a coragem dos indivíduos,

    enquanto que o frio produz uma força física e espiritual que os torna capazes de ações duradouras,

     penosas, grandes e ousadas34. Essas considerações servem de referência para uma comparação entre

    as realidades políticas da Ásia e da Europa. Após proceder a uma análise da distribuição dos climas

    nos dois continentes35, Montesquieu afirma que o asiático não está propriamente na zona temperada

    do globo, de modo que nele há territórios muito frios que fazem fronteira com outros muito quentes;

     já no europeu, a zona temperada é bastante extensa, ocorrendo uma gradação na temperatura

     proporcional à latitude quando se vai do norte ao sul. Tudo isto faz com que, na Ásia, as nações se

    defrontem com grande desigualdade de forças; é preciso que umas sejam conquistadas e outras

    conquistadoras. Na Europa, ao contrário, as nações se defrontam com forças semelhantes e com

    quase a mesma coragem. Recuperando-se a tipologia política do autor, tem-se, portanto, uma

    tendência para os governos despóticos nas regiões quentes, e outra para as monarquias e repúblicas

    nas regiões frias e temperadas.

    A natureza dos solos, pelas espécies de cultivo que exigem, leva igualmente a certas relações

    com a liberdade dos povos. Montesquieu diz que os governos de um só geralmente ocorrem nos

     países férteis, enquanto que as repúblicas ocupam as terras de menor fertilidade36. Isto se verifica

     porque “a esterilidade das terras torna os homens industriosos, sóbrios, endurecidos pelo trabalho,

    corajosos, próprios para a guerra; é necessário que eles obtenham o que a terra lhes recusa. A

    fertilidade de um país dá, com a abastança, a indolência e um certo amor pela conservação da vida.”

    32 Contrato Social, livro III, capítulo V.33 Ver O Espírito das Leis, livro XIV.34 O Espírito das Leis, livro XVII, capítulo II.35 O Espírito das Leis, livro XVII, capítulo III.36 O Espírito das Leis, livro XVIII, capítulo I.

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    (MONTESQUIEU, 1989, p. 533) 37 Desse modo, as regiões que somente se tornaram habitáveis pelo

    labor humano, e que demandam trabalhos constantes para serem mantidas assim, atraem os

    governos moderados38.

    A abordagem de Montesquieu sobre a influência desses aspectos da geografia sobre a política

     busca contemplar os dois tipos básicos de reação humana ao meio-ambiente

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    , isto é, a reação primária do organismo nos níveis fisiológico e psicológico, e a reação secundária que ocorre por

    meio das atividades necessárias à sobrevivência. Quando Rousseau lida com tais circunstâncias no

    Contrato Social, ele se preocupa essencialmente com a reação secundária. Neste sentido, para que os

    homens possam constituir um corpo político num determinado território, é preciso que o solo tenha

    fertilidade o bastante para gerar excedentes ao ser cultivado40. As regiões em que o excedente

     produzido é muito pequeno convêm aos povos livres, enquanto que as caracterizadas por uma grande

    fertilidade são adequadas aos governos monárquicos. Nos Estados livres é suficiente que o trabalho

    dos cidadãos dê-lhes somente um pouco mais do que o necessário; isto garante a mediocridade das

    fortunas e impede que o governo ambicione uma arrecadação exagerada. A manutenção das

    monarquias, entretanto, requer um grande excedente, e Rousseau acredita que é melhor que o fausto

    do príncipe e de sua corte consuma a maior parte do supérfluo produzido, do que todo o excedente

    ser dissipado pelos particulares. Não é sem razão, pois, que Rousseau pensava que a monarquia só

    condiz com as nações opulentas, que a democracia é conveniente aos Estados pequenos e pobres, e a

    aristocracia, aos Estados medianos em riqueza e em tamanho41.

    As considerações de Rousseau sobre o clima complementam as referentes ao solo. Em

     princípio, ele parece reafirmar com veemência as proposições de Montesquieu sobre o assunto:

    “quando todo o sul estivesse coberto de repúblicas, e todo o norte de Estados despóticos, não seria

    menos verdadeiro que, pelo efeito do clima, o despotismo convém aos países quentes, a barbárie aos

     países frios, e a boa ordem política às regiões intermediárias.” (ROUSSEAU, 2003, p. 416) Na

    verdade, porém, a perspectiva de Rousseau é diferente daquela expressa em O Espírito das Leis.

    Rousseau via o clima em conjunção com a qualidade do solo no quadro mais amplo das diversas

    regiões no que concerne à satisfação das necessidades humanas. Se os climas frios são adequados aos

     povos bárbaros, é pela dificuldade que se tem neles para extrair da terra qualquer produção além do

    mínimo exigido para a sobrevivência de seus habitantes. O mesmo raciocínio embasa a ligação entre

    37 O Espírito das Leis, livro XVIII, capítulo IV. Comparar com o capítulo anterior: “O países não são cultivados em razãode sua fertilidade, mas de sua liberdade; e se dividirmos a terra pelo pensamento, ficaremos admirados de ver na maior parte das vezes desertos em suas regiões mais férteis, e grandes povos naquelas onde o terreno parece recusartudo.” (MONTESQUIEU, 1989, p. 532)38 O Espírito das Leis, livro XVIII, capítulo VI.39 Sobre essa questão, ver o texto de John Plamenatz: “Montesquieu considera dois tipos de reação humana ao clima:como os homens reagem a ele fisiologicamente e psicologicamente, o que poderia ser chamado de reação  primária; ecomo eles adaptam seu ambiente a ele – as casas que fazem para se proteger dele, os costumes e hábitos que adquirem por causa dele –, o que poderia ser chamado de reação secundária.” (PLAMENATZ, 1993, p. 7)40 Contrato Social, livro III, capítulo VIII.41 Contrato Social, livro III, capítulo VIII.

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