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23 CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM ESTUDO SOBRE O BRINCAR RESUMO O presente trabalho aborda a problemática da inclusão de crianças com necessidades educativas especiais (NEE) no contexto da Educação Infantil. Trata-se de uma tentativa de contribuir para as reflexões a respeito da qualidade de experiências vivenciadas por esses sujeitos na escola. Ancorado em proposições da teoria histórico- cultural sobre o desenvolvimento humano e, de modo específico, sobre os casos de deficiência, o presente estudo focalizou a atividade de brincar, como espaço de criação de possibilidades para ampliar a imaginação e a sociabilidade, que sustentam também o refinamento da cognição. O objetivo foi analisar os modos como os pares e as professoras interagem com os alunos especiais nas situações de brincadeira previstas na rotina da instituição. A pesquisa foi realizada em uma escola de Educação Infantil de um município de porte médio do interior do Estado de São Paulo. Os procedimentos abrangeram a observação dos sujeitos durante a atividade de brincar e a realização de entrevistas com suas professoras. As observações foram registradas em diário de campo e as anotações foram feitas com o objetivo de permitir uma análise microgenética.A análise dos dados sugere que a instituição escolar subestima o valor desta atividade para o desenvolvimento infantil e que a atenção dada às crianças com NEE demonstra o despreparo da escola para atuar junto ao aluno especial, que, sem colaboração para transpor seus próprios recursos, não é desafiado a avançar tanto na esfera da sociabilidade como na da imaginação. A melhoria das ações pedagógicas junto a alunos incluídos na Educação Infantil depende da participação regular de profissionais que contribuam para orientar o trabalho das professoras bem como da criação de espaços de colaboração dentro da própria escola, de maneira a ampliar o conhecimento sobre as necessidades dessas crianças. Palavras- chaves: Desenvolvimento humano, necessidades educativas especiais, brincadeira. INTRODUÇÃO Sabe-se que a Inclusão Escolar é um tema recorrente nas pesquisas atuais, que vêm mostrando limites e possibilidades do que tem sido feito e defendido em nome de uma Educação Inclusiva. Entretanto, considerando que a proposta inclusiva abrange todos os níveis, nota-se uma atenção bem menor à investigação no âmbito da Educação Infantil. Os poucos trabalhos encontrados sobre o tema geralmente estão voltados para alguma deficiência em particular, focalizando as interações sociais ou a visão de professores (por ex., CARNEIRO, 2010; FRANÇA, 2008; MELO e FERREIRA, 2009). Com o intuito de contribuir para a área, este trabalho busca analisar a experiência escolar de crianças com necessidades especiais e toma como referência as XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.004393 Beatriz Aparecida Dos Reis Turetta

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23 CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:

UM ESTUDO SOBRE O BRINCAR

RESUMO

O presente trabalho aborda a problemática da inclusão de crianças com necessidades educativas especiais (NEE) no contexto da Educação Infantil. Trata-se de uma tentativa de contribuir para as reflexões a respeito da qualidade de experiências vivenciadas por esses sujeitos na escola. Ancorado em proposições da teoria histórico-cultural sobre o desenvolvimento humano e, de modo específico, sobre os casos de deficiência, o presente estudo focalizou a atividade de brincar, como espaço de criação de possibilidades para ampliar a imaginação e a sociabilidade, que sustentam também o refinamento da cognição. O objetivo foi analisar os modos como os pares e as professoras interagem com os alunos especiais nas situações de brincadeira previstas na rotina da instituição. A pesquisa foi realizada em uma escola de Educação Infantil de um município de porte médio do interior do Estado de São Paulo. Os procedimentos abrangeram a observação dos sujeitos durante a atividade de brincar e a realização de entrevistas com suas professoras. As observações foram registradas em diário de campo e as anotações foram feitas com o objetivo de permitir uma análise microgenética.A análise dos dados sugere que a instituição escolar subestima o valor desta atividade para o desenvolvimento infantil e que a atenção dada às crianças com NEE demonstra o despreparo da escola para atuar junto ao aluno especial, que, sem colaboração para transpor seus próprios recursos, não é desafiado a avançar tanto na esfera da sociabilidade como na da imaginação. A melhoria das ações pedagógicas junto a alunos incluídos na Educação Infantil depende da participação regular de profissionais que contribuam para orientar o trabalho das professoras bem como da criação de espaços de colaboração dentro da própria escola, de maneira a ampliar o conhecimento sobre as necessidades dessas crianças. Palavras- chaves: Desenvolvimento humano, necessidades educativas especiais, brincadeira.

INTRODUÇÃO

Sabe-se que a Inclusão Escolar é um tema recorrente nas pesquisas atuais, que

vêm mostrando limites e possibilidades do que tem sido feito e defendido em nome de

uma Educação Inclusiva. Entretanto, considerando que a proposta inclusiva abrange

todos os níveis, nota-se uma atenção bem menor à investigação no âmbito da Educação

Infantil. Os poucos trabalhos encontrados sobre o tema geralmente estão voltados para

alguma deficiência em particular, focalizando as interações sociais ou a visão de

professores (por ex., CARNEIRO, 2010; FRANÇA, 2008; MELO e FERREIRA, 2009).

Com o intuito de contribuir para a área, este trabalho busca analisar a

experiência escolar de crianças com necessidades especiais e toma como referência as

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proposições da teoria histórico-cultural sobre o desenvolvimento e a educação desses

sujeitos.

Na discussão sobre o desenvolvimento em casos de deficiência, Vigotski (1997)

parte da idéia de que, a depender das condições oferecidas pelo grupo social, a

plasticidade do funcionamento humano permite à criança a compensação das

conseqüências da insuficiência biológica. Muitas das dificuldades e comportamentos

apresentados pelo sujeito não estão ligados ao comprometimento orgânico em si, mas às

suas conseqüências sociais (preconceitos, baixa expectativa, isolamento, etc.). O autor

reconhece que a deficiência tem de ser considerada, mas entende que a formação

insuficiente de funções superiores deve-se menos a complicações decorrentes do

comprometimento existente e mais às complicações secundárias ou derivadas, que

“dependem pouco da herança e, por conseguinte, dependem de determinadas condições

da educação, do ambiente social” (VIGOTSKI, 1997, p. 146). Assim, para superar os

problemas que a deficiência acarreta, é indispensável afastar as ações educativas

empobrecidas e pessimistas, que são focadas no déficit e se orientam pelas

impossibilidades, e investir num processo educativo de qualidade, que explore as

possibilidades existentes na criança, coloque desafios para seu desenvolvimento e

priorize sua participação na vida coletiva.

Além de apoiar-se nesses pressupostos, a presente pesquisa tomou como eixo do

trabalho de campo a atividade de brincar, a partir das interpretações de teóricos da

abordagem histórico-cultural, que consideram essa esfera fundamental para o

desenvolvimento infantil (ELKONIN, 1984; VYGOTSKY, 1984; LEONTIEV, 1986).

Nessa abordagem, a razão para a brincadeira ser vista como a atividade principal

da infância não está na quantidade de tempo em que a criança brinca, mas no fato de

que nessa esfera ocorrem as mais importantes mudanças do desenvolvimento psíquico

da criança, que preparam a transição de um padrão de pensamento menos elaborado

para um mais elevado, qualitativamente novo (LEONTIEV, 1986).

Na discussão sobre o brincar, Vygotsky (1984) privilegia os jogos infantis que

envolvem o plano imaginativo como o faz de conta e o jogo de papéis. Para o autor, no

início da infância, motivação e percepção estão, de certa forma, superpostas, pois a ação

da criança é geralmente motivada pelas características perceptuais dos objetos. É com a

emergência do faz-de-conta que se opera uma separação desses processos, quando uma

coisa é usada para significar outra, em ações simuladas, e o percebido subordina-se ao

significado atribuído. Esse aspecto do desenvolvimento é muito importante porque

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permite refinar o processo de significação, visto que, ao empregar um objeto como se

fosse outro, a criança realiza ações guiadas pelo significado atribuído, o que implica

uma relativa independência do perceptual-imediato, fundamental para a elevação dos

modos de pensamento.

Assim, os jogos de imaginação permitem à criança desprender-se do real, testar

possibilidades além de seu nível de desenvolvimento e ocupar espaços que lhe seriam

vetados na vida real. Por outro lado, é preciso ressaltar que esse tipo de brincadeira não

exclui o atendimento a regras do real, visto que as situações são construídas com base

nas vivências cotidianas, na re-produção de modos de agir com as coisas e de encadear

acontecimentos. Ou seja, aquilo que compõe a situação imaginada tem um necessário

vínculo com as condições de vida da criança – com o que faz, observa ou conhece em

sua experiência concreta na cultura.

Segundo Rocha (2005), essas interpretações indicam que o brincar compõe-se de

uma dupla tendência – de adesão ao real e de transgressão do real –, tanto por implicar

necessariamente o apoio nas vivências cotidianas como por propiciar que a lógica nelas

contida seja subvertida, resultando na libertação do perceptual-sensível.

Assumindo esse conjunto de proposições e entendendo que a investigação sobre

a esfera do brincar pode fornecer indícios importantes da qualidade da experiência

escolar que as instituições de Educação Infantil vêm oferecendo a alunos com

necessidades especiais, realizamos uma pesquisa de campo com o objetivo de analisar

os modos como os pares e as professoras interagem com elas nas situações de

brincadeira previstas na rotina da instituição. O interesse está mais especificamente em

configurar as possibilidades que os sujeitos têm tido para desenvolver o funcionamento

imaginativo e a sociabilidade, que sustentam também o refinamento da cognição.

CARACTERIZAÇÃO DO ESTUDO

A pesquisa foi realizada em uma escola de Educação Infantil de um município

de porte médio do interior do Estado de São Paulo. O critério de escolha dessa escola

relaciona-se ao fato de ser a que estava atendendo ao maior número de alunos com

necessidades educativas especiais (quatro) no município em 2010.

Os sujeitos foram observados durante atividades de brincadeira livre ou dirigida

em diversos locais da escola - sala de aula, pátio, solário, parque e espaços livres.

Também foram realizadas entrevistas com as professoras com o propósito de

complementar os dados da observação.

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As observações foram registradas em diário de campo e as anotações foram

feitas com o objetivo de permitir uma análise microgenética. Esse tipo de análise requer

atenção a detalhes dos acontecimentos interativos e dos diálogos estabelecidos (GÓES,

2000).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados indicam que, independente da rotina estabelecida pelas diferentes

professoras, as crianças têm um tempo diário destinado a brincadeiras que varia de trinta

minutos a mais de uma hora, o que é bastante razoável considerando que muitas dos

alunos permanecem na escola apenas por quatro horas. Por outro lado, o investimento

nas atividades de brincar é limitado, as condições oferecidas são precárias em termos de

recursos materiais e humanos, as circunstâncias não propiciam qualidade de interações,

além de serem poucas as possibilidades de envolvimento em jogos imaginativos.

Nos diferentes espaços da escola, as professoras são atentas às crianças no que

se refere aos cuidados com o corpo (risco de acidentes), às regras de convivência e aos

combinados com a classe como não correr, não passar em frente ao balanço, não jogar

areia no amigo, não brigar etc. De modo geral elas escolhem o local e os materiais

necessários para a brincadeira, mas não se envolvem na atividade.

As crianças brincam sozinhas de acordo com suas possibilidades e raramente são

encorajadas a experimentar situações novas. Os alunos especiais, por sua vez, além de

enfrentar as dificuldades relacionadas ao tipo de deficiência (sensorial, motora,

intelectual), precisam lidar com as diferentes formas de relação que os parceiros

estabelecem com eles, em atitudes de acolhimento, proteção, rejeição ou dominação

hostil.

A seguir são expostos os dados relativos às quatro crianças. Visto que o relato

deve ser sucinto, apenas a apresentação do primeiro sujeito inclui um episódio de

brincadeira, de maneira a ilustrar a forma de análise que deu base para os comentários

analíticos sobre cada sujeito.

Leandro

Tem 6 anos de idade e diagnóstico de cegueira. É aluno do jardim II (com 25 crianças,

de 5 a 6 anos), período da tarde.

Em dois dias da semana Leandro recebe acompanhamento na sala de recursos do

Núcleo de Educação Especial do município e tem sessão de equoterapia. Frequenta a

escola nos outros três dias, mas permanece por um tempo menor que as demais crianças

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(até as 15:00h aproximadamente) devido à falta de uma auxiliar para dividir com a

professora o acompanhamento e o cuidado de que ele necessita.

Leandro é um menino que procura e é procurado por diferentes parceiros, embora

naturalmente tenha suas preferências. A professora mostra-se muito cuidadosa com ele e

tem um constante receio de que aconteça algum acidente. Porém ela age direcionada

para a condição da cegueira e tende a ressaltar os aspectos visuais daquilo que está

envolvido nas atividades. As crianças, espelhando o comportamento da professora,

estão sempre ao redor do menino, acolhendo-o, dirigindo-o para diferentes locais e

comentando sobre o que ele não pode ver.

As brincadeiras de Leandro são ora dirigidas à percepção tátil, ora direcionadas por sua

curiosidade pelas características visuais das coisas, especialmente as cores. Essa

curiosidade é na verdade encorajada e sustentada por outros, que sempre enfatizam os

aspectos visuais dos objetos que ele toca. Mesmo quando Leandro consegue sair do

campo perceptual e dirigir a atividade para o plano imaginativo, alguém (colegas ou

professora) acaba redirecionando a brincadeira para o que lhe falta, para o perceptual,

para a falta de visão. O episódio abaixo é representativo dessa marca da experiência

escolar desse sujeito.

Leandro e o celular

Contextualização: Na sala de aula, as crianças inicialmente são colocadas em grupos para brincar. A professora chama os grupos individualmente para que escolham os brinquedos na prateleira. Leandro fica em seu grupo, mas pede um avião, que a professora traz até ele. Depois de manusear o avião e alguns outros brinquedos de seus amigos, ele recebe um celular da mão de Júlia. Júlia explica: É um celular de brinquedo. Tá vendo, os números, tem que atender

(colocando a mão de Leandro nos botões de números do celular). Leandro pega o celular de brinquedo. Júlia utiliza a própria mão para fazer de conta que também está com um celular. Júlia: Alô. Leandro: Alô.

Júlia: Quem fala?

Leandro: Quem fala? Minha mãe ta aí? Eu quero a minha mãe.

Está muito barulho na sala. Ele segura o celular com uma mão em um dos ouvidos e com a outra mão tapa o outro ouvido. Leandro: Oi mãe, tô na creche agora. Tô no telefone. Júlia diz algo não audível. Leandro passa a tatear o celular e pergunta: Esse celular é novo? Júlia fala algo bem baixinho para Leandro e pega o celular. Os dois riem. Leandro: Paula, olha aqui pra mim (chamando a atenção da professora). Esse celular é

da Vivo? Profa.: É da Vivo.

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Leandro: Ele fala?

Profa.: Não. Ele é de mentira.

Leandro: Que cor ele é? Profa.: Amarelo e branco.

Leandro: Onde é branco?

A professora se aproxima e coloca a mão de Leandro na parte que é branca e diz: Aqui é

branco. Coloca a mão de Leandro na parte que é amarela e diz: Aqui é amarelo. Coloca a mão dele em outra parte e diz: Aqui é azul.

Júlia, que permanecia observando o diálogo de Leandro com a professora, acrescenta: O

botão é rosa.

Júlia e Leandro continuam conversando sobre o telefone. Leandro volta a tatear o celular e bate com o dedo nele para escutar os sons que produz. Leandro: Aqui é branco? (mostrando uma parte do celular com o dedo). Júlia: Aqui é branco e aqui é amarelo (Júlia explica colocando a mão de Leandro nos locais referentes às cores citadas). Leandro continua brincando com o telefone.

Esse segmento interativo mostra a atenção e o acolhimento dispensados a esse

aluno. A brincadeira transcorre de forma agradável, porém a situação de faz de conta

com o telefone não tem continuidade, pois ele passa a considerar os aspectos funcionais

e visuais do brinquedo (Ele fala? - Que cor ele é?). Como indicado, essa orientação era

privilegiada em muitos momentos por colegas e professora, e parece ter sido

incorporado pelo menino, que, nesse episódio, efetua ele próprio o redirecionamento.

O conjunto das observações mostra que Leandro apresenta ganhos no plano da

sociabilidade, é querido pela turma, procura e é procurado para estabelecer parcerias.

No entanto, as possibilidades de ações imaginativas são restringidas pelo predomínio de

atenção ao perceptual, o que tende a empobrecer as brincadeiras. Parece que nessas

situações a atuação dos outros e o agir da própria criança se pautam pela suposição de

que a imaginação é menos importante que a percepção para o desenvolvimento

cognitivo.

Cristiane

Tem 4 anos de idade e diagnóstico de acondroplasia (nanismo) e macrocefalia.

É aluna do maternal II (classe de 17 crianças de 3 a 4 anos) e dos sujeitos focais ela é a

única que freqüenta a escola em tempo integral. A classe é atendida por duas

professoras, uma em cada período. Durante o semestre letivo do estudo de campo, a

professora da tarde (Paula) permaneceu regularmente, mas na parte da manhã passaram

pela sala quatro professoras, o que atrapalhou a rotina da turma.

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Uma vez por semana Cristiane recebe atendimento de fisioterapia, fonoaudiologia e

terapia ocupacional numa instituição especializada. Freqüenta a escola nos demais dias.

Devido a sua estatura menor que a dos colegas, várias pessoas a tratam como um bebê e

a chamam por seu nome no diminutivo, numa atitude que tende a subestimar sua

potencialidade. Apesar disso, ela se comporta de modo não correspondente a essa

imagem diminuída. Com a ajuda da professora Paula, que insiste em desfazer essa

imagem, Cristiane age de acordo com o esperado para sua idade e parece não se

aproveitar dos cuidados e privilégios que geralmente os outros querem conceder-lhe.

Por conta de sua estatura, certas brincadeiras no parque que lhe são vetadas pelos

adultos, que muitas vezes manifestam um cuidado restritivo demais. Quando

ocasionalmente tem oportunidade, ela demonstra que, com pouca ajuda, é capaz de

utilizar alguns brinquedos. De fato ela enfrenta dificuldades no que diz respeito aos

aspectos físicos da escola, mas algumas das barreiras poderiam ser eliminadas com

pequenos ajustes (por exemplo, o mero conserto de um brinquedo que tem escada

faltando um degrau). Assim sendo, podemos concluir que suas limitações estão mais

relacionadas a imagem que as pessoas criaram a seu respeito do que propriamente

ligadas a sua deficiência.

Na classe ela é uma criança bem situada no grupo, se envolve e é envolvida em

brincadeiras com as mais variadas crianças. Pareceu adaptar-se bem à passagem de

diversas professoras (que por vezes atrapalhou a rotina da classe). Dentre os sujeitos, ela

é a que mais se realiza jogos no plano imaginativo. Na maioria das vezes recria

situações de seu próprio cotidiano, revivendo e ressignificando as possibilidades de ser

filha, mãe, aniversariante, bicho papão etc.

Com relação a Cristiane, embora ela participe com mais frequência de jogos

imaginários não significa que a mesma tem sido contemplada com todas as

possibilidades que teria se houvesse por parte dos profissionais da escola um maior

investimento neste tipo de atividade.

Gabriel

Tem 4 de idade e diagnóstico de Síndrome de Down. É aluno do Jardim I do período da

tarde (classe com 22 crianças, de 4 a 5 anos) .

Gabriel recebe atendimentos de terapia ocupacional e fonoaudiologia em uma

Instituição Especializada no período oposto ao da sala de aula. Mesmo com essa

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compatibilidade de horário, ele esteve ausente em 67 dos 110 dias letivos do primeiro

semestre, por motivos nem sempre informados a escola.

Esse aluno enfrenta problemas de relacionamento com crianças e adultos no espaço

escolar. Tenta estabelecer parcerias com outros alunos ou ganhar a atenção da

professora, mas nem sempre consegue, por falta de disposição dos demais e talvez

também por falta de condições dele mesmo, pois possivelmente sua história de vida não

lhe permitiu construir modos de interação mais favoráveis e estratégias para o

envolvimento do outro.

A imagem que a professora faz dele é de uma criança desobediente e dependente para

tudo, o que parece impedi-la de perceber que muitas vezes Gabriel deseja simplesmente

acolhimento e/ou sua companhia, considerando que quase nunca consegue a atenção das

demais crianças. Nos momentos de brincadeira em sala ou nos demais locais da escola,

Gabriel fica perambulando em busca de algo para fazer ou de alguém com quem possa

interagir. Poucas vezes acaba conseguindo uma parceria ou encontrando um brinquedo

que lhe provoque seu interesse.

Considerando que Gabriel raramente se envolve com os brinquedos ou com as pessoas,

podemos avaliar quão raras são as oportunidades de realizar ações imaginativas.

Algumas situações observadas mostram que, apesar das relações problemáticas vividas

na classe e da falta de incentivo e crédito da professora, ele consegue adentrar o campo

da imaginação e criar momentos de faz de conta, embora as situações nem sempre se

sustentem por falta de parcerias disponíveis.

Como ocorre com outras crianças com Síndrome de Down em sua idade, Gabriel não

tinha ainda controle total dos esfíncteres; conseguia ir ao banheiro sozinho para urinar,

mas ainda não controlava as fezes. A professora, sem contar com auxiliar, tinha que

cuidar da higiene do aluno (dar banho, por vezes) e sempre externava sua irritação para

toda a classe, o que alimentava a tendência das crianças a desprezar e fazer chacota de

Gabriel.

Assim, a maioria das dificuldades enfrentadas por esse aluno não está relacionada às

características da síndrome que apresenta, mas decorre das experiências desagradáveis

que ele vivencia na escola e que têm afetado negativamente sua formação.

Ana

Tem 4 anos de idade e diagnóstico de Síndrome de Down. É aluna do Jardim I do

período da manhã (classe com 22 crianças, de 4 a 5 anos).

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Recebe atendimentos de terapia ocupacional, psicologia, pedagogia, fonoaudiologia e

hidroterapia em uma instituição especializada em horários não coincidentes com as aula.

Como ocorreu com Gabriel, ela faltou muito - 64 dias letivos. A ausência era atribuída a

problemas de saúde, geralmente respiratórios.

Nas brincadeiras Ana se envolve constantemente com jogos de faz de conta, mas não

tem liberdade para fazer escolhas. Em muitas das situações observadas, principalmente

no parque, os colegas impõem-lhe o que deve fazer – correr, subir no gira-gira ou no

balanço. Por vezes, ela reclama, chora ou até cai. Essa imposição também acontece em

relação aos papéis assumidos em situação de faz de conta; ela é sempre a bebê que

precisa ser cuidada, repreendida e corrigida pela mamãe ou por outros personagens. Em

geral não tem oportunidade de participar de ações imaginativas interessantes e

agradáveis.

Sua professora não está atenta a muitas dessas ocorrências e quase nunca interfere por

acreditar que a menina deve ser tratada como as demais crianças e agir com autonomia

para ter melhores condições de se desenvolver.

Essa “liberdade” concedida deixa Ana desamparada frente às atitudes abusivas de

colegas. Numa das observações do parque Ana ficou submetida à vontade de parceiras

durante mais de uma hora, tentou resistir e opor-se, porém não conseguiu se desprender

de brincadeiras que não desejava. Durante esse tempo, a professora permaneceu sentada

numa cadeira próxima ao parque conversando com outra professora.

APONTAMENTOS GERAIS

Dos quatro sujeitos, os dois que apresentam Síndrome de Down têm sido muito

afetados por atitudes negativas no ambiente escolar. Quanto à interação com parceiros

durante as brincadeiras, a falta de intervenção deliberada da professora e dos

profissionais intensifica o isolamento de Gabriel e a dificuldade de Ana para

desprender-se de situações indesejadas. Em decorrência dessa desatenção, Ana e

Gabriel deixam de ter oportunidades de alcançar formas melhores de convivência e não

usufruem dos avanços que o brincar pode trazer para seu desenvolvimento. É muito

provável que a baixa qualidade das condições que são oferecidas a esses dois alunos

seja um dos determinantes principais do alto índice de suas faltas à escola.

Nos casos de Cristiane e Leandro, que não apresentam deficiência intelectual,

constata-se maior acolhimento e cuidado das professoras (por vezes um cuidado

excessivo). Por outro lado, vale salientar que, para a menina, existem barreiras físicas

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que a escola poderia solucionar. Já Leandro tem poucas oportunidades de brincar em

razão de sua permanência muito curta na classe, pelo fato de que a escola não tem

recursos para atendê-lo durante o período normal.

Pode-se dizer que, em termos das condições para a inclusão, tudo vem

dependendo das professoras individualmente, de seus “méritos” e seus “defeitos”. Duas

delas se dispõem a cuidados diferenciais e encorajam as oportunidades de interação do

aluno incluído com os parceiros, ainda que tenham dificuldades para delinear formas de

atuação mais adequadas às necessidades especiais implicadas. As outras duas

demonstram pouca disposição nesse sentido.

No entanto, a atuação das professoras deve ser pensada em termos não apenas

individuais (sensibilidade, boa vontade, disposição a superar preconceitos, flexibilidade

para adaptar as práticas, etc.), mas principalmente em relação às condições que são

propiciadas a elas para uma ação pedagógica adequada às crianças incluídas.

A esse respeito, os dados tanto de entrevista como de observação mostram que

todas as professoras ressentem-se da falta de conhecimento básico sobre a deficiência

do aluno incluído e da ausência de um interlocutor profissional que ajude a refletir sobre

formas de trabalho junto a essa criança. No âmbito interno da escola, não surgem

iniciativas coletivas, sequer pequenas, e ocorrem somente breves trocas de informação

em reuniões de HTPC (que não contavam com uma coordenadora pedagógica). No

âmbito externo à escola, evidencia-se a falta de orientação dos setores especializados às

professoras e a protelação de providências para contratar auxiliares de classe para os

casos em que essa medida é indispensável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atenção dada à brincadeira na rotina da instituição revela uma subestimação

do valor dessa atividade para o desenvolvimento infantil. No caso da criança com

necessidades educacionais especiais, esse problema acentua-se, pois, sem a colaboração

para transpor seus próprios recursos, ela não é desafiada a avançar no funcionamento

imaginativo e na capacidade de abstrair e criar, superando assim os limites do

imediatamente vivenciado e percebido e elevando as formas de pensamento.

No que concerne à inclusão, estes achados vão ao encontro das análises de

autores (por exemplo, ARANHA, 2004, FERREIRA e FERREIRA, 2004) que vêm

apontando o despreparo da escola para receber o aluno especial, em virtude de

problemas que vão desde a existência de barreiras físicas até a falta de ações coletivas

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direcionadas às questões atitudinais e às necessidades de diferenciação do trabalho

pedagógico, o que resulta na responsabilização do professor, individualmente, pelo

sucesso ou não da experiência escolar.

Os achados sugerem que a melhoria das ações pedagógicas junto a alunos

incluídos na Educação Infantil depende da participação regular de profissionais que

contribuam para orientar o trabalho das professoras bem como da criação de espaços de

colaboração dentro da própria escola, de maneira a ampliar o conhecimento sobre as

necessidades dessas crianças. Claro está que tais iniciativas não garantem muitas das

mudanças desejadas, porém, sem elas, a professora continuará a atuar sozinha e a

criança será atendida de forma insatisfatória ou, mesmo, prejudicial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ARANHA, M.S. Educação inclusiva: transformação social ou retórica? In Omote, S.

(org.) Inclusão: intenção e realidade. Marília: Fundepe, 2004.

CARNEIRO, K.C. de O. O processo de inclusão de uma criança com síndrome de

down na Educação Infantil. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar).

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