Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

224
Nome do livro : AMOR ALÉM DA RAZÃO Autor: JOHN ORTBERG Digitalizado por: KARMITTA Lançamento : SEMEADORES DA PALAVRA - http://semeadoresdapalavra.forumeiros.com/ BOA LEITURA OBS: Não use para fins lucrativos. Obrigada

Transcript of Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Page 1: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Nome do livro : AMOR ALÉM DA RAZÃO

Autor: JOHN ORTBERG

Digitalizado por: KARMITTA

Lançamento : SEMEADORES DA PALAVRA - http://semeadoresdapalavra.forumeiros.com/

BOA LEITURA

OBS: Não use para fins lucrativos.

Obrigada

Page 2: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Vivendo

dob od

cuidado d do

g ra n d e e

ode rodo

D eud

john 0rtberam or além da rCtzão

V idaA

m N

Page 3: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

©1999, de John Ortberg Título do original ■ Love beyond reason,

edição publicada pela ZONDERVAN PuBUSHING HOUSE,

(Grand Rapids, Michigan, e u a )

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

P r a z e r , E m o ç ã o e C o n h e c i m e n t o

Rua Júlio de Castilhos, 280 Belenzinho, São Paulo, SP

cep • 03059-000 Telefax ■ 0 xx 11 6096-6833

www.editoravida.com.br

P r o ib id a a r e p r o d u ç ã o p o r q u a is q u e r m e io s ,

SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil•

Categoria * Crescimento espiritual

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Edição contemporânea de Almeida (e c a ), ©1990, de Editora Vida,

salvo indicação em contrário.

Gerência editorial ■ Reginaldo de Souza Assistência editorial ■ Fabiani S. Medeiros

Preparação de texto ■ Sérgio Pavarini Revisão de provas ■ Jair A. Rechia

Diagrâmação ■ Set-up Time Artes Gráficas

Capa ■ Douglas Lucas

EDITORA FILIADA A

CBLSÓCIO P L F Í S £ £ K : Câmara B rasile ira do L ivro

Page 4: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Dedicatória

Com gratidão, dedico este livro a Ian Pitt-Watson, David Hubbard,

Lew Smedes e Rich Mouw.

Page 5: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Sumário

Agradecimentos 9

1. Amor além da razão 112. Quem ama dá atenção 313. Deus toca o intocável 51

4. O Senhor da segunda chance 655. Jesus, o Mestre 81

6. A satisfação de ser amado 997. O caminho mais árduo 121

8. Amor e graça 1399. Ser amado significa ser escolhido 159

10. Seguros no amor de Deus 17911. Deus busca os que se escondem 199

12. O Deus degradado 217

Notas 231

Page 6: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Agradecimentos

Ian Pitt-Watson foi o primeiro pastor que conheci que tam­bém é poeta e artista. Quando ouvia outros pastores, geralmente sentia-me informado, culpado ou inspirado. Quando ouvia Ian, às vezes, era como se uma cortina se abrisse diante dos meus olhos e subitamente não sabia mais se estava sentado numa sala de aula em Pasadena ou na Jerusalém do primeiro século. Ao ouvir os sermões de Ian, era comum nos vermos, de repente, misteriosa e completamente imersos na presença de Deus — quase sempre para nossa surpresa. Duas dádivas em minha vida foram, primei­ro, seus ensinamentos e, depois, sua amizade.

Talvez seu melhor sermão seja a história dos dois tipos de amor: o amor que busca um valor em seu objeto e o amor que lhe acres­centa valor. Ian nunca o publicou, a não ser alguns trechos que usou como exemplos da arte de pregar. Mas forneceu a idéia cen­tral para o primeiro capítulo: a metáfora da boneca de pano. As histórias e experiências que conto nesse capítulo são exclusiva­

Page 7: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

mente minhas. Pandy realmente existe e passa muito bem em San Diego. Mas a inspiração veio de Ian.

Também quero agradecer a várias pessoas que leram partes ou o todo do manuscrito: Ruth Haley Barton, Gerald Hawthorne, Rich Mouw, Lauri Pederson, Scott Pederson, Lew Smedes e Jodi Walli. Jack Kuhatschek mais uma vez foi extremamente prestativo e amigo como editor, e os diligentes esforços de Jim Ruark deram clareza exatamente onde mais era preciso.

A minha esposa, Nancy, por sua sinceridade e encorajamento, e a Laura, Mallory e Johnny, a quem tributo eterna gratidão pelos que são amados incondicionalmente.

Page 8: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

C A P í T

__ Amor além da razãoO amor destrói o que sempre fomos para que possamos ser o que não éramos.

A g o s tin h o

Seu nome era Pandy. Boa parte de seu cabelo já tinha caído, tinha apenas um braço e, em termos gerais, estava quase

completamente vazia por dentro. Ela era a boneca favorita da mi­nha irmã, Barbie.

Mas nem sempre foi assim. Ela foi um presente de Natal pes­soalmente escolhido por uma tia querida que viajou até Chicago para comprá-la em uma loja de departamentos. Seu rosto e mãos eram feitos de um tipo de borracha ou plástico que lhe dava uma aparência real, mas seu corpo era recheado de trapos para que ficasse macia e fofa como um bebê. Quando minha tia olhou a vitrine da Marshall Fields e viu Pandy, percebeu que tinha en­contrado um ótimo presente.

Quando Pandy era nova e bonita, Barbie a amava exageradamente. Quando Barbie ia para a cama, Pandy ia dormir ao seu lado. Quan­do ia almoçar, Pandy também comia ao seu lado. Sempre que Barbie ganhava permissão, levava a boneca para tomar banho com ela. O

Page 9: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

12 A m o r a l é m d a r a z ã o

amor de Barbie por aquela boneca, do ponto de vista da própria Pandy, beirava a uma “atração fatal”.

Quando conheci Pandy, ela já não era uma boneca muito atra­ente. Na verdade, para ser sincero, ela estava um trapo. Não era uma boneca de muito valor; aliás, nem sei se serviria para dar a alguém.

Mas, por motivos inimagináveis, minha irmã, Barbie, ainda amava aquela pequena boneca esfarrapada de uma forma que só as crianças são capazes de amar. Ela passou a amar Pandy bem mais depois que ela se transformou num trapo do que em seus dias de glória.

Outras bonecas vinham e iam, mas Pandy era da família. Quem amasse Barbie, tinha de amar sua boneca de pano. Tudo vinha incluído no mesmo pacote.

Certa vez, fizemos uma viagem de carro de nossa cidade, Rockford, Illinois, até o Canadá. Na volta, quando estávamos quase na fronteira do estado de Illinois, demos falta de Pandy. Ela tinha ficado no hotel.

Não havia escolha. Meu pai deu meia volta e percorremos todo o caminho de volta, de Illinois até o Canadá. Éramos uma família unida. Não muito inteligente talvez, mas unida.

Entramos no hotel, falamos com a recepcionista, e nada de Pandy. Subimos correndo para o quarto, e nada de Pandy. Des­cemos as escadas até a lavanderia e... bingo! Lá estava Pandy, embrulhada no meio dos lençóis, a ponto de tomar o derradeiro banho de sua vida.

O tamanho do amor de minha irmã por aquela boneca signifi­cava viajar até um país longínquo para salvá-la.

Passaram-se anos, minha irmã cresceu e largou da boneca, que foi substituída por um namorado chamado Andy (e, por incrível que pareça, ele era mais feio que Pandy).

Pandy já não estava lá essas coisas; agora, então, o mais inteli­gente a fazer era jogá-la fora. Mas minha mãe não teve coragem para tanto. Ela pegou Pandy pela última vez, embrulhou-a em um

Page 10: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 13

pano com todo o cuidado e colocou-a dentro de uma caixa que ficou guardada no sótão por vinte anos.

Durante minha infância, tive todo tipo de brinquedo e bichos de pelúcia, e minha mãe nunca guardou nenhum deles. Mas ela guardou Pandy. Dá para adivinhar por quê? Quando eu era pe­queno, achava que talvez minha mãe amasse a sapeca da minha irmã caçula mais do que a mim.

A natureza do amor de minha irmã por Pandy foi o que a tor­nou tão preciosa. Barbie sentia por aquela pequena boneca um tipo de amor que a tornava valiosa para qualquer um que amasse a própria Barbie. Todas aquelas lágrimas e abraços e segredos, de alguma forma, ficaram impregnados nos trapos da boneca. Se você amasse Barbie, naturalmente acabaria também amando Pandy.

Mais alguns anos se passaram, minha irmã casou-se (não com Andy) e mudou-se para outra cidade. Ela teve três filhos, sendo que o último era uma menina chamada Courtney, que logo al­cançou a idade de querer uma boneca.

Barbie não encontrou outra alternativa senão ir até a nossa casa em Rockford e pegar a caixa guardada no sótão. A essa altura, Pandy se parecia mais com um trapo do que com uma boneca.

Minha irmã a levou para um hospital de bonecas na Califórnia (esse lugar existe mesmo, pode acreditar!) e lá ela passou por uma cirurgia reparadora. Pandy fez um lifting facial, uma lipoaspiraçao ou seja lá o que for que se faz nas bonecas, até que, com mais de trinta anos de idade, Pandy ficou novamente tão bonita exterior­mente quanto sempre fora aos olhos daquela que a amava. Não sei se ela mudou alguma coisa para minha irmã, mas agora as outras pessoas também podiam ver o que Barbie sempre vira na­quela boneca.

Quando Pandy era nova, Barbie a amava. Ela comemorava a sua beleza. Quando ela ficou velha e rasgada, Barbie não deixou de amá-la. Agora, além de amar Pandy porque ela estava bonita, ainda sentia por ela um tipo de amor que a tornava bonita.

Page 11: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

E se passou mais tempo. O ninho de minha irmã logo ficou vazio. Courtney agora é adolescente, está se preparando para en­trar na vida adulta e já tem um Andy Jr. ao telefone.

E Pandy? Pandy está pronta para entrar em outra caixa.

D uas verdades

Há duas verdades sobre o ser humano que são de extrema impor­tância. Somos todos bonecos de pano, com imperfeições, defeitos e falhas. Desde a queda, cada membro da raça hum ana tem

vivido no limite da degradação. Em par­te, nosso desgaste é algo que acontece conosco. Nossos genes podem estar pro­gramados para apresentar alguns defeitos. Nossos pais podem nos abandonar quan­do mais precisamos deles. Mas isso não é tudo. Cada um de nós acrescenta uma contribuição própria à degradação da raça humana. Preferimos mentir quando de­

veríamos dizer a verdade, reclamar quando bastaria um peque­no elogio, traímos deliberadam ente mesmo quando damos nosso voto de lealdade.

Como uma gota de tinta que cai num copo d’água, a degrada­ção se espalha por todo o nosso ser. Nossas palavras e pensamen­tos nunca estão livres dela. Somos bonecos de pano sem dúvida alguma.

Mas somos os bonecos de pano de Deus. Ele conhece tudo sobre a nossa degradação e nos ama da mesma forma. Nossa degradação não é o que mais importa a nosso respeito.

Não estávamos degradados quando fomos criados. No início, havia uma tal admiração pelos seres humanos que o próprio Deus, quando olhou para eles na vitrine do mundo, disse: “Muito bom”. Havia uma tal admiração pelos seres humanos que o autor de Gênesis até disse que eram feitos à imagem de Deus. Havia uma tal admiração pelos seres humanos que o salmista disse que eles

S o m o s t o d o s b o n e c o s D E

PA N O , COM IM P E R F E IÇ Õ E S ,

D E F E IT O S E F A L H A S .

Page 12: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 15

competiam com os seres divinos em glória e honra. Há ainda uma tal admiração pelos seres humanos que nem mesmo a nossa que­da pôde apagá-la completamente.

E há uma grande admiração por você. A degradação não faz parte da sua identidade. A degradação não é o seu destino nem o meu. Podemos não ser amáveis, mas somos amados.

Mas não podemos ser amados sem passarmos por uma mudan­ça. Quando as pessoas experimentam o amor (e com isso não quero dizer apenas o sentimento de afeto pelos outros, mas um senti­mento que, às vezes, é implacável, contestador e até impiedoso), passam a ser amáveis.

Isso vale mesmo para o plano físico. Os psicólogos dizem que a emoção de estar apaixonado acelera os batimentos cardíacos: a pele fica lustrosa, os lábios ficam mais vermelhos e até as olheiras diminuem! As fortes emoções dilatam as pu­pilas, e por isso os olhos brilham mais e ficam mais aguçados. Fomos tão bem construídos que até os nossos corpos ficam mais amáveis quan­do são amados.

Estamos mais acostumados com o tipo de amor que busca al­guém ou algo de grande valor. É um amor que celebra a beleza ou a força do ser amado. O amor que estamos mais acostumados a ver é dedicado a um objeto pelo fato de ser caro, de ser atraente ou de dar status a quem estiver relacionado a ele.

Os gregos tinham uma palavra que denotava bem esse tipo de amor: eros. Quando ouvimos essa palavra, logo nos ocorre o ter­mo “erótico”, mas eros era mais do que apenas o amor sexual. Em essência, eros dizia respeito ao tipo de amor que sentimos pelo que satisfaz os nossos desejos, ganha a nossa admiração ou sacia a nos­sa fome. Eros é o amor em uma caça ao tesouro. É a recompensa que se ganha no desfile de Miss Universo ou quando se é chama­do de o homem mais sexy do ano pela revista People.

Aprendemos sobre esse tipo de amor logo cedo. Estudos mos­tram que os adultos sorriem, brincam, beijam e seguram no colo

P O D E M O S NÃO SE R

A M Á V E IS, M AS SOM OS

A M A D O S .

Page 13: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

os bebês que são bonitos mais do que os comuns. Os pais se en­volvem mais sentimentalmente com bebês atraentes do que com aqueles considerados não atraentes pelos outros.

Karen Lee-Thorp observa que as histórias de criança reforçam ainda mais essa idéia. “O príncipe não ficou admirado com a inte­ligência e a perspicácia de Cinderela; mas foi arrebatado por seu vestuário e seus pequenos e delicados pés. A Branca de Neve e a Bela Adormecida conquistaram seus príncipes entrando em esta­do de coma”. Rapunzel passou vinte anos sozinha dentro de uma torre, nem um só dia o seu cabelo esteve em baixa.

Eros — o amor que nasce da necessidade, da admiração e do desejo — não é necessariamente um tipo ruim de amor. É bom que o bebê ame a mãe cujo leite significa vida. É bom que o ho­mem celebre a beleza de sua amada.

Mas o eros por si mesmo é um amor fraco demais para um boneco de pano construir sua vida em cima dele. Você vai cair na armadilha do concurso invencível se tentar provar que é bonito, inteligente, forte ou religioso o suficiente para merecer afeto. Você vai ter medo que uma falha na sua costura mostre o seu verdadei­ro eu. Não, os bonecos de pano precisam de um amor com um recheio mais forte do que apenas o eros.

Esse amor existe, é um amor que acrescenta valor ao ser amado. Existe um amor que transforma os bonecos de pano em tesouros de valor inestimável. Existe um amor que busca frágeis criaturas degradadas, por motivos que ninguém é capaz de adivinhar, e as transforma nos objetos mais preciosos e valiosos do mundo. Esse é o amor além da razão. Esse é o amor divino. Esse é o amor de Deus por você e por mim.

O amor, acima de todas as coisas, é o motivo pelo qual Deus nos criou. Os teólogos defendem a idéia de que Deus criou tudo espontaneamente, sem que houvesse necessidade. Esse fato é m uito im portante, pois significa que ele não nos fez porque estava se sentindo entediado ou solitário ou porque buscava algo para fazer.

Page 14: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 17

Deus não nos criou por necessidade. Ele nos criou por amor. C. S. Lewis disse: “Deus, que não precisa de nada, deu vida a criaturas com pletam ente supérfluas para poder amá-las e aperfeiçoá-las”.

Toda a extensão do amor de Deus não ficou tão evidente quan­do ele decidiu nos criar, mas quando nos tornamos pecadores e deixamos de ser “amáveis”.

Paulo explica essa idéia da seguinte forma: “Porque Cristo, estan­do nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Dificilmen­te morrerá alguém por um justo, embora alguém possa se animar a morrer pelo bom. Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores”.

Pois Deus está plenamente ciente do nosso segredo. Ele sabe que somos bonecos de pano. O profeta Isaías disse isso milhares de anos atrás: “Todos nós somos como o imundo, e todos os nos­sos atos de justiça como trapo da imundícia”. Todos nós ficamos desgastados, tão degradados pelo pecado e pela culpa que a coisa mais inteligente a fazer seria descartar-se da raça humana; jogá-la fora e começar tudo de novo.

Mas este Deus jamais faria isso. Assim, ele propôs uma cirurgia reparadora. Deus decidiu levar a raça humana para um lugar em que poderia trocar os trapos imundos e remover a culpa e o pecado que tornaram os objetos de seu amor tão desprezíveis.

Esse lugar existe e se chama cruz.Segundo Paulo, o amor do ser humano comum, às vezes, é

capaz de sacrifícios por um coração nobre. Mas Deus foi até as últimas conseqüências para provar seu amor por nós. Ele morreu por nós no momento exato\ quando estávamos degradados e fracos e éramos pecadores.

Os autores da Bíblia não quiseram usar a palavra eros para descre­ver esse tipo de amor. Por isso, na maioria das vezes, usaram uma palavra sem cor: ágape. Ela não era muito usada pelos gregos, mas agora passaria a ter um novo significado. Seria usada para denotar o tipo de amor que pode dar esperanças a um boneco de pano.

Page 15: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

18 A m o r a l é m d a r a z ã o

A palavra em nossa língua usada para esse tipo de amor é cari­dade. A palavra caridade era usada antigamente para expressar o amor em forma de pura dádiva. Ela não é muito usada atualmente e, quando o é, geralmente está carregada de um sentido que deno­ta auxílio ou condescendência. Ninguém quer ser um “caso de caridade”.

Mas, no final das contas, a expressão máxima do amor chega a nós como uma dádiva.

C. S. Lewis escreveu:Estamos todos recebendo Caridade. H á algo em cada um de nós que não pode ser amado naturalmente. Ninguém tem culpa então de não ser amado. Apenas o que é amável pode ser amado naturalmente. Você pode até pedir para que as pessoas apreciem o gosto de um pão bolorento ou o som de uma furadeira elétri­ca. Podemos ser perdoados, causar compaixão e ser amados ape­sar disso, por Caridade e nada mais. Todos aqueles que têm bons pais, esposa, marido ou filhos podem ter certeza de que há momentos em que estão recebendo a Caridade, de que não são amados porque são amáveis mas porque o próprio Amor está naqueles que os amam.

C h a m a d o para A m ar

No Novo Testamento, há dois mandamentos que formam a es­sência da nossa resposta ao amor de Deus. Eles não podem ser separados. Toda a vontade de Deus resume-se nisso, conforme Jesus disse: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A forma básica que o nosso amor por Deus assume na Bíblia traduz-se no amar as pessoas que são tão caras para ele. Nas palavras de Jesus: “Qualquer coisa que você fizer pelo mais insignificante deles, estará fazendo para mim”.

“Se quer me amar, ame também meus bonecos de pano”, Deus está dizendo. Tudo está incluído no mesmo pacote.

Page 16: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 19

Se levamos a sério o nosso amor por Deus, precisamos começar pelas pessoas, todas as pessoas. E precisamos aprender a amar es­pecialmente aqueles que o mundo costuma desprezar.

Na época de Jesus, o povo que mais tinha consciência de seu estado de degradação foi exatamente o que se mostrou mais re­ceptivo ao seu amor. Certo dia, Jesus foi comer na casa de um fariseu chamado Simão, o qual achava que, apesar de tudo e mes­mo do ponto de vista de Deus, não era uma pessoa assim tão difícil de ser amada.

Uma mulher entrou na casa. Lucas diz que ela era “uma peca- dora”, o que provavelmente devia ser uma forma bastante educada de dizer que era uma prostituta. Obviamente, ela não tinha sido convidada e escandalizou a todos os presentes, exceto àquele que era realmente santo. A mulher tinha perdido a reputação, boa parte da virtude e, em termos gerais, estava quase completamente vazia por dentro. Seu nome era Pandy.

Mas nem sempre foi assim. Houve um dia em que ela foi a filha querida de alguém e — quem sabe? — alguém alimentou seus sonhos. Houve um dia em que, provavelmente, ela teve seus pró­prios sonhos. Mas esses dias se foram há muito tempo. Fazia mui­tos anos que ela não aparecia em um local de pessoas respeitáveis. Foi preciso muita coragem de sua parte para enfrentar os olhares e sussurros de reprovação daquele recinto.

Ela parou atrás de Jesus, a seus pés (as pessoas reclinavam-se em vez de sentar-se à mesa naquela época). Mas, quando finalmente conseguiu olhar para ele, em vez de desprezo, ela viu amor.

Havia trazido perfume para ungir Jesus. Normalmente, isso era feito derramando-se o líquido sobre a cabeça da pessoa. Mas, ao fitar Jesus, seus olhos se encheram de lágrimas. Talvez ela estivesse pensando no que teve de fazer para ganhar o dinheiro que gastou com o perfume. Talvez ela estivesse pensando na garotinha que tinha sido um dia. Talvez estivesse pensando na distância que ha­via entre o que ela tinha se tornado e o que ela desejava ser. De qualquer forma, em vez da cabeça, ela começou a ungir os pés de Jesus com uma mistura de perfume e lágrimas.

Page 17: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

. . . J E S U S E ST Á E S C A N D A L O ­

S A M E N T E PR O N TOA P E R D O A R .

Então ela fez algo inesperado: soltou os cabelos. Isso nunca tinha acontecido antes. Era uma violação das normas so­ciais; mulheres judias respeitáveis sem­pre mantinham os cabelos presos em público. Como prostituta, ela já tinha soltado os cabelos muitas vezes antes e,

em cada uma delas, seu coração ganhava uma nova ferida e sua alma, uma nova cicatriz. Mas, desta vez, tinha sido num gesto de admiração e respeito, para enxugar os pés que ela tinha banhado e ungido. Ela, que havia soltado o cabelo muitas vezes antes, solta­ra-o mais uma vez. Só que esta foi a última vez. Agora ela tinha feito o que era certo. Seus dias de degradação estavam prestes a terminar.

Simão esperava que Jesus fosse chamar a atenção de todos acu­sando essa mulher. Antes de ficarmos muito severos com Simão, é bom perguntar como nós agiríamos se estivéssemos no lugar dele. Afinal, essa mulher tinha desafiado a Deus com seu modo de vida. Tinha rebaixado os padrões de fidelidade; cooperou para a des­truição de alguns lares. A sua degradação não serve de desculpa. Uma palavra a favor da moral não seria descabida aqui.

Mas Jesus está escandalosamente pronto a perdoar. Ele sabe de algo que Simão não compreende: se o arrependimento é sincero, o julgamento já aconteceu. Ele mostra para Simão que, embora ele tivesse deixado de dar água para que Jesus lavasse os pés, ela os tinha lavado com a única coisa que possuía, suas lágrimas; embora Simão não lhe tivesse oferecido um beijo, ela beijara os pés de Jesus repetidas vezes; embora Simão não lhe tivesse oferecido nem mesmo um azeite barato para aliviar suas dores, ela o tinha ungi­do com um perfume caro.

Simão não poderia receber muito amor, porque estava preso à idéia de que não precisava de muito perdão. A simples idéia de sua superioridade moral e espiritual fez com que perdesse a no­ção de sua degradação. E assim seu coração tinha se tornado

Page 18: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 21

ainda menos amoroso e amável do que a pecadora que ele des­prezava.

Mas ela sabia. A mulher sabia exatamente quem era; sabia que Jesus conhecia tudo a respeito dela e a amava mesmo assim. E com isso ela foi transformada. “Os teus pecados te são perdoados. A tua fé te salvou; vai-te em paz”, Jesus disse a ela, surpreendendo Simão mais do que a seus convidados e a mulher mais do que a Simão.

“Ela pode ser uma boneca de pano”, Jesus poderia ter dito, “mas é a minha boneca de pano. Quem ama a mim, ama a meus bonecos de pano”. Tudo está incluído no mesmo pacote.

Em que consiste esse milagre do amor? Acho que há três coisas que compõem a essência imutável do que esse amor significa. E, como filhos de Deus, precisamos aprender a receber cada um dos elementos de seu amor se pretendemos crescer.Amar significa ser por aquele que é amado

Se amamos alguém, significa que guardamos certas esperanças, intenções e desejos em relação a essa pessoa. Significa que estamos no seu caminho, que esperamos vê-la crescer e desabrochar, que desejamos a realização do seu potencial, que seja repleta de virtu­des e qualidades morais. O amor deseja “que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e perversa, entre a qual resplandeceis como astros no mundo”.

Isso significa que, talvez, sejamos obrigados a fazer algo que magoe a quem amamos. O amor é geralmente confundido com brandura. Quando falamos de “fazer algo por amor”, às vezes pen­samos que isso significa “sempre fazer o que a pessoa que amo gostaria que eu fizesse”. Isso certamente não é amor; nem é saudá­vel. Faça um teste com uma criança de três anos de idade; é bem provável que nunca fique satisfeita.

Dizer que Jesus ama as pessoas não eqüivale dizer que ele sem­pre fará o que elas querem. Dan Allender escreveu: “Se Cristo

Page 19: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

sentisse o tipo de amor que defendemos hoje em dia, ele teria vivido até uma idade bem avançada”. Allender acrescenta que, em muitos casos, o amor autêntico vai “enervar, irritar, perturbar ou até magoar o ser amado”.

Ser por alguém é mais complexo do que apenas querer poupá- lo do sofrimento. Quando realmente somos por uma pessoa, assu­mimos o risco de dizer coisas que podem magoá-la, se essa for a

única forma de induzi-la ao crescimen­to. “Porque o Senhor corrige a quem ama.” O verdadeiro amor está pronto a advertir, reprovar, confrontar ou repre­ender se necessário.

Aprendemos que devemos amar uns aos outros como Cristo amou a igreja e se entregou por ela “a fim de apresentá- la a si mesmo igreja gloriosa, sem má­cula, nem ruga, nem coisa semelhante,

mas santa e irrepreensível”. Veja: Paulo não diz que Jesus amou a igreja “e disse que suas máculas e rugas não importavam”. Sua intenção não é conseguir apenas uma redução de defeitos. O amor espera que o outro alcance o esplendor que Deus planejou — sem máculas, sem rugas, irrepreensível. É quase impossível remover as máculas e rugas sem causar alguma dor. Às vezes, amar significa deliberadamente magoar alguém, mas nunca com arrogância e por prazer.

O amor verdadeiro nunca tem a intenção de infligir dor sem motivo. Só que, muitas vezes, não apenas nos vemos desejando magoar alguém, mas também ansiando por esse momento. Pro­vavelmente, uma boa maneira de evitar que isso aconteça é to­mar todo o cuidado para não magoar alguém se essa idéia lhe proporcionar uma ponta de prazer. O amor de Deus faz com que ele suporte muito mais dor pelo nosso bem do que jamais conseguiríamos: “e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados”.

O V E R D A D E IR O AM O R E S T Á PRO NTO

A A D V E R T IR , R E P R O V A R ,

C O N FR O N TA R O U R E P R E E N D E R SE

N E C E S S Á R IO .

Page 20: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 23

Ser por alguém significa identificar-se com essa pessoa, incentivá- la a seguir em frente, comemorar suas vitórias e compartilhar da dor de suas derrotas. Significa desejar-lhe, profunda e sinceramente, todo o bem.

Isso mostra como é difícil amar. Não preciso de muita coragem para admitir que não quero que meus inimigos vençam. Mais sin­cero ainda seria dizer que, bem no fundo, na maioria das vezes, não quero nem que meus amigos tenham muito sucesso.

Essa é a verdade que comoveu o apóstolo Paulo: apesar de toda a sua degradação, Deus era por ele: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? [...] Quem nos separará do amor de Cristo?”.

Então, dizer que Deus nos ama significa que Deus é por nós. Ele espera que desabrochemos e cresçamos além de nossas espe­ranças.Amar é deleitar-se e alegrar-se no ser amado

Essa característica relaciona-se com o coração daquele que ama. Quando amamos alguém, não o fazemos simplesmente por dever ou obrigação.

Lembro-me que um palestrante cristão disse, certa vez, que devemos sempre amar nosso cônjuge “apesar de” e não “por causa de” — mas quem é que deseja estar do lado que recebe isso? Ima­gine se, quando pedi minha esposa em casamento, dissesse: “Bom, não existe nada em você que jamais interessaria a qualquer pessoa sensata, mas por causa de meu nobre caráter vou fechar os olhos e amá-la de qualquer forma”. O resultado não teria sido tão bom quanto foi.

Não, quando amamos alguém, a mera presença dessa pessoa faz nossos olhos brilhar. O texto de Êxodo consegue expressar lindamente essa idéia na passagem da sarça ardente quando Deus conta a Moisés que seu irmão Arão estava vindo a seu encontro: “Ele também te sai ao encontro e, vendo-te, se ale­grará em seu coração'. Quando você vê alguém que ama, seu coração se alegra.

Page 21: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

O amor exige que o ser amado seja obrigatoriamente amado. O amor celebra o ser amado. E por isso que o amor sempre foi e sempre será expresso com mais intensidade nas canções de amor.

É muito importante lembrar que Deus nos ama dessa forma. Alguns escritores cristãos dizem que Deus nos ama “apesar de”

nós mesmos. É claro, há casos em que muitas vezes isso acontece, mas a de­gradação não é a única característica que você possui. Como disse Lewis Smedes, pode ter sido péssimo que Deus tivesse de morrer por mim, mas é maravilhoso que ele pense que sou digno disso. Po­demos estar degradados, mas nunca devemos confundir degradação com falta de valor.

Deus não apenas ama você porque deve, ele o ama porque quer. Deus de­

leita-se em você. É claro que isso não significa que ele se deleita em tudo que você faz. Nem a sua mãe é capaz disso, se ela tiver a cabeça no lugar. Mas o fato de você existir — você, o seu pró­prio ser — é muito bom aos olhos de Deus. Ele sente prazer em amá-lo.

O salmista fala para Deus guardá-lo “como à menina dos olhos”. Essas palavras são usadas repetidas vezes na Bíblia. Elas poderiam ser interpretadas como “o reflexo nos olhos” pois é isso o que acontece quando olhamos bem de perto nos olhos de alguém e vemos a nossa imagem refletida ali. Transponha isso para o seu relacionamento com Deus: você verá a sua ima­gem nos olhos do Pai. Você é a menina dos olhos de Deus.

É claro que quem já amou certamente já sofreu com o objeto do seu amor. Em algum momento, conheceu a dor do amor não correspondido. Quem ama não apenas sabe entoar canções de amor, mas, melhor do que ninguém, sabe cantar a dor.

C o m o d i s s e L e w i s S m e d e s , p o d e t e r s i d o p é s s i m o q u e D e u s t i v e s s e d e

M O R R E R P O R M IM , M AS é

M ARA VILH O SO Q U E E L E P E N S E

Q U E SO U D IG N O D IS S O .

Page 22: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 2 5

E Deus também. “Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei a meu filho. Mas quanto mais eu os chamava, tanto mais se iam da minha face. [...] Todavia, ensinei a andar a Efraim, tomando-o pelos seus braços; mas não conheceram que eu os cu­rava. Atraí-os com cordas humanas, com cordas de amor; fui para eles [...] e lhes dei mantimento. [...] O meu povo é inclinado a desviar-se de mim”.

Deus é incomparavelmente supremo naquilo que todos aqueles que o amam têm em comum em maior ou menor grau, o que Charles Williams chamou de o dom da dupla visão: Nenhu­ma adoração sob o céu deve impedir que o seu amado saiba (com razoável precisão e amor irracional) quando ela está sendo lân­guida, lasciva ou maliciosa. Ela tem natureza dupla e ele tem dupla visão”. Deus enxerga com extrema clareza quem somos. Ele conhece bem nossos defeitos e fraquezas. Mas, quando olha para nós, isso não é tudo o que vê. Também vê quem pretende­mos ser e quem seremos um dia. Às vezes, dizemos que o amor é cego, mas isso não é verdade. O amor é capaz de enxergar a verdade com sua dupla visão. E, ao enxergar, Deus passa a cha­mar à superfície a bondade e a beleza que há em nós, a qual é visível apenas a ele, para que um dia todos possam ver. E isso alegrará seu coração.Amar é dar e servir ao ser amadoAmar, acima de tudo, é dar. A doação está para o amor assim como a comida está para a fome. Dar é a própria expressão do amor. A passagem mais conhecida da Bíblia começa dizendo: “Por­que Deus amou o mundo de tal maneira que deu...”.

Dar é amar com retidão. Sem atos servis, o amor não tem es­trutura e nada que o ampare.

Dar, para Eros, é fácil no início. Flores, cartões e massagens nos pés fluem tão naturalmente quanto as águas do Nilo. A efusão ini­cial de emoções serve de alimento. Esses sentimentos são uma espé­cie de preparação, mas, cedo ou tarde, eles se esgotarão. Eros é capaz de dar, mas apenas quando espera conseguir uma troca justa.

Page 23: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

A prova do amor está em dar mesmo quando nada se espera receber em troca.

Anne Lamott conta a história de um garoto de oito anos de idade cuja irmã mais nova estava morrendo de leucemia. Disse­ram para o menino que sem uma transfusão de sangue ela morre­ria. Seus pais lhe perguntaram se ele permitiria que testassem o seu sangue para ver se era compatível com o dela e ele concordou. Ele foi testado e era compatível. Então, perguntaram-lhe se daria um pouco de seu sangue para a irmã, pois esta poderia ser sua única chance de viver. Ele disse que precisava de uma noite para pensar.

No dia seguinte o menino disse aos pais que concordava em doar o sangue e assim foi levado ao hospital. Ele ficou numa maca ao lado da irmã de seis anos. Ambos foram ligados para a transfu­são. Uma enfermeira colheu uma medida de sangue do garoto que foi dada à irmã. O menino permaneceu em silêncio enquanto o sangue que salvaria a irmã saía de seu corpo. Um médico apare­

ceu para ver como ele estava passando. O garoto abriu os olhos e perguntou: “Quan­to tempo eu ainda tenho antes de começar a morrer?”.

O amor não é amor de verdade até o momento de dar.

Há mais uma história sobre um boneco de pano. O nome deste era Al.

Al era meu sogro. Ele era uma pessoa descomplicada e fácil de gostar. Era um ade- ta nato e um grande aventureiro que ado­

rava caçar e pescar. Quando tivemos uma filha (sua primeira neta, pois minha esposa não tinha irmãos), não percebemos o tamanho da empolgaçao de Al com a possibilidade de levá-la para o Mara­vilhoso Mundo Selvagem com ele. Até que um dia, quando bus­camos Laura na casa dele, onde ela passou algum tempo e foi secretamente treinada por ele, e estávamos a caminho de casa, fizemos aquela brincadeira que todo o mundo faz com um filho de um ano:

A PROVA DO AM O R E S T Á EM

D A R M ESM O Q U A N D O N A D A

S E E S P E R A R E C E B E R E M

T R O C A .

Page 24: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor além da razão 27— Laura, diz como é que o gatinho faz?— Miau.— E o cachorrinho?— Au, au.— E o passarinho?— Bang!Seu avô queria que ela soubesse.Al era o tipo de homem que não se importava que falassem mal

de sua esposa ou filha, mas não tolerava um insulto sequer contra seu cão. Eppie (para dizer a verdade), infelizmente, era uma cade­la obesa na época que a conheci, mas Al não aceitava isso. Ele insistia em dizer que ela era de uma raça especial, “labrador de pernas curtas”, e o motivo de sua barriga quase arrastando no chão não era que seu estômago estava grande, mas que suas pernas eram curtas demais.

A parte degradada de Al alcançava também a bebida. Ele era alcoólatra, da mesma forma que seu pai, tio e irmão. Mas não era do tipo relaxado, não faltava ao trabalho nem jogava dinhei­ro fora; era, porém, uma pessoa difícil de conviver. Nancy sem­pre soube que seu pai a amava, mas à sua maneira, um amor “esfarrapado”. Ele nunca tinha dito isso a ela diretamente. Às vezes, quando ela dizia que o amava ao telefone, ele respondia: “Eu também, fedelha”, mas a iniciativa de dizer nunca partia dele.

Certo dia, no outono, sua pele ficou amarela, da cor de uma banana muito madura, e os médicos lhe disseram para fazer um exame de câncer no pâncreas, que naquela época era invariavel­mente fatal. Esperamos por ele em sua casa com o resultado dos exames. “Já entendi!”, disse assim que entrou pela porta. Não fa­lou quase nada mais a respeito do assunto. Às vezes, o víamos com um olhar distante diante da janela, mas era difícil adivinhar o que ele estava pensando.

Ele nunca tinha se mostrado muito interessado por qualquer coisa que se relacionasse a Deus. Não era particularmente contra,

Page 25: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

C A P

Quem ama dá atenç[Deus] enche nossa mente como ondas que invadem as praias, penetra em nossos pensamentos pelos meandros de nosso cérebro e, oculto nas profundezas de nosso ser, ilumina nosso caminho em explosões de luz. Recolhe-se em recantos e esconderijos para nos pegar desprevenidos. Disfarça-se sob a matéria, a mesma matéria que se estende dos meus braços até a ponta dos dedos e da minha cabeça aos fios de cabelo.

V ir g ín ia Stem O wens

E sta é uma cena comum. Um casal sentado à mesa para o café da manhã. Um dos cônjuges, digamos, o marido, está

imerso lendo o jornal, enquanto a esposa abre seu coração. Frustrada, ela finalmente reclama: “Você não está me ouvindo”.

E a resposta geralmente é: “Se quiser, repito tudo o que você acabou de dizer”. Ele prossegue para demonstrar. Ela fica satisfeita? Não! Ela não quer que ele simplesmente seja capaz de repetir suas palavras — um gravador seria melhor. Ela quer que ele esteja totalmente presente. Ela quer que ele deixe o jornal de lado, olhe nos seus olhos e preste atenção ao que está dizendo.

Ouvir não basta. É preciso dar toda a atenção.

Page 26: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

3 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

A atenção é uma das forças mais poderosas do mundo. Além de água e comida, o bebê precisa do olhar atento de um rosto humano. Quando, deitado em seu berço, o bebê sorri e um rosto retribui- lhe o sorri, ele percebe que alguém está olhando, respondendo, e o que ele faz é importante. A alegria, a raiva ou a tristeza do bebê está refletida no rosto de alguém. Os psicólogos chamam esse fenômeno de sintonização. O bebê descobre que existe uma maneira de estabelecer um vínculo — entrar em sintonia — com outro ser humano. Se o rosto olhar feio ou desaparecer, o bebê vai tentar descobrir o que aconteceu, como trazê-lo de volta. Esse rosto torna- se o espelho pelo qual a criança aprende se está sendo uma fonte de alegria ou decepção. Ela simplesmente não sobrevive sem o rosto. É o rosto que diz ao bebê que ele é importante.

Segundo Erik Erikson, “dificilm ente alguém aprende a reconhecer o rosto familiar (onde nasce a base da confiança) se ele também se mostrar estranho, esquisito, indi­ferente, desinteressado e carrancudo. E assim começa a inexplicável tendência do homem de sentir-se responsável pelo fato de o rosto ter virado de lado”.

Quando crescemos, ainda precisamos de atenção. De acordo com Gerald Egan, em uma experiência, a partir de um sinal prees- tabelecido, os alunos deveriam passar de uma atitude desinte­ressada e passiva, em que não olhavam diretam ente para o professor, para outra em que olhavam atentamente para ele. O professor, que antes balbuciava mecanicamente suas observações num tom de monotonia, gradualmente foi mudando de atitude, passando a gesticular, olhar para os alunos e falar em um ritmo mais rápido e enérgico. D ado outro sinal, os alunos voltaram a se com portar da mesma forma que antes e o professor, “depois de grande empenho tentando recuperar a atenção dos alunos”, voltou ao tom monótono.

O P o d e r d a A t e n ç ã o

O U V IR NÃO B A S T A . É

P R E C IS O DAR TO D A A

A T E N Ç Ã O .

Page 27: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 3 3

Há ocasiões em que, durante meu sermão, sinto como se toda a congregação participasse secretamente dessa experiência. Todo orador sabe que existem pessoas que o encorajam e o alimentam simplesmente prestando atenção ao que ele fala. Você busca alguns rostos porque, com o olhar, um sorriso ou meneio da cabeça, eles estão dizendo: Vá em frente! O que você está dizendo é interessante. Diga qual é a verdade!

Um dos grandes milagres da vida é que Deus presta atenção em nós. Isso explica em parte por que os autores da Bíblia falam com tanta freqüência no rosto de Deus. E a esperança da grande bênção sacerdotal que o próprio Deus ensinou ao povo de Israel:

O Senhor te abençoe e te guarde.O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti.O Senhor sobre ti levante o seu rosto, e te dê a paz.

Olhar para alguém é dar a essa pessoa sincera e total atenção. Não é ouvir de maneira indiferente com a mente ocupada. É dizer: “Não tenho nada mais para fazer e nenhum lugar em que gostaria de estar. Estou totalmente voltado para ficar com você”. É esse tipo de atenção que Deus nos dispensa.

E ainda melhor. Essa bênção diz que Deus não vai apenas voltar seu rosto para nós, mas fará com que “resplandeça” para nós. O rosto resplandecente é uma imagem de alegria. É o rosto de uma pai orgulhoso que se enche de luz quando o filho faz seu primeiro recital de piano. E o rosto radiante da noiva que caminha para o altar em direção ao noivo. Podemos voltar nossas faces para prestar atenção a qualquer um, com um pouco de esforço. Mas nossas faces se iluminam, brilham e tornam-se radiantes apenas na presença daqueles que amamos profundamente. E, conforme a oração, é assim que Deus nos ama. Ele presta atenção em nós.

Page 28: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

3 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

Por outro lado, perder a atenção de Deus foi, para o salmista, perder tudo:

Quando disseste: Buscai o meu rosto; o meu coração te disse:O teu rosto, Senhor, buscarei.Não escondas de mim a tua face, e não rejeites ao teu servo com ira; tu és a minha ajuda.Não me deixes nem me desampares, ó Deus da minha salvação.

Nada era pior para ele do que a idéia de Deus “esconder sua face”.

A atenção é tão valiosa que não apenas damos, mas também prestamos atenção. É como dinheiro e, sendo assim, geralmente ela flui para aqueles que possuem mais status.Quanto mais importante você for, o que disser vai receber mais atenção das pessoas em geral.Em Um violinista no telhado, Tevye, um leiteiro, acha que se fosse rico, o povo da vila escutaria tudo o que ele tivesse a dizer — mesmo que ele não fizesse a menor idéia do que estivesse dizendo. “Quando você é rico, eles acreditam que você sabe realmente do que está falando”.

O evangelho de João conta a história de um homem que certamente não tinha riquezas mundanas e a quem ninguém dava atenção. Ele passou a vida toda sendo ignorado. Ele simplesmente não merecia atenção. Ele era cego; era um mendigo.

Para ir até o local em que eu trabalhava, costumava passar por um cruzamento onde ficava um homem vestindo um velho uniforme do exército, segurando uma placa que dizia: “Trabalho por comida”. Na maioria dos casos, quem estava parado esperando o farol abrir desviava os olhos. Às vezes, eu dava um dólar a ele, mas geralmente preferia não notá-lo.

É A S SIM QUED e u s n o s

a m a . D e u sP R E S T A

a t e n ç ã o e mN Ó S .

Page 29: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 35

Essa era a vida do homem sobre o qual João escreveu. As pessoas procuravam olhar para o outro lado e ele tentava fazer algo para chamar a sua atenção. Estava acostumado a ser ignorado. Essa era a sua ocupação na vida. Aquele homem era apenas mais um rosto na multidão.

Mas não para Jesus.As primeiras palavras da história são, inclusive, que, “quando

Jesus ia passando, viu um homem, cego de nascença”. Esse é o primeiro milagre da história. Eis um homem que não é apenas cego, mas invisível. Quantos anos haviam passado desde a última vez em que um ser humano tinha olhado para ele? Mas Jesus, que, afinal, tinha lugares para ir e coisas para fazer (“quando Jesus ia passando”), olhou para ele. Jesus viu a mágoa e a decepção de uma vida de dependência e anonimato. Jesus viu a desesperança de uma vida de escuridão que nunca conheceria a luz.

Ninguém jamais viu como Jesus.Jesus viu um cobrador de impostos sentado disfarçadamente no

alto de um sicômoro. Ele sentiu quando uma mulher desesperada por cura tocou a sua roupa, apesar da multidão apressada que o acotovelava. Ele viu uma viúva para quem ninguém mais voltaria o rosto e observou que ela deu tudo o que tinha. Ela fez o rosto dele se iluminar. Ele deu atenção a crianças insignificantes que estavam sendo tragadas pela multidão. Todos os ensinamentos refletem uma qualidade de Jesus: ele via como as sementes de mostarda brotavam e o fermento crescia e como as pessoas enganavam outras para conseguir lugares de destaque em reuniões e títulos de grande status em suas comunidades. Ele viu quando seus amigos discutiam sobre quem era o melhor discípulo; ele viu a dúvida e o medo deles no barco em meio à tempestade; e, às vezes, eles desejavam que ele não visse tanta coisa assim.

Ninguém jamais viu como Jesus.Nessa história, várias vezes, aparece outra expressão que significa

ver”. Aquele que lamenta sua cegueira, alcançará a verdadeira visão espiritual. Aquele que se considera o mais perspicaz, acabará espiritualmente cego. Mas João começa a história com o ato de

Page 30: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

3 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

Jesus. Ele vê um homem que todos haviam aprendido a ignorar. Quem ama a mim, ama a meus bonecos de pano, Jesus diz.

Para viver no amor de Deus, é preciso ganhar novos olhos. Precisamos aprender sempre a ver a graça de Deus acontecendo diante de nós.

Jesus era um mestre nisso. Para ele, era simplesmente claro que vivemos em um mundo inundado por Deus. Bastava abrir os olhos para ver os sinais disso. “Olhe para os pássaros”, dizia a seus amigos. Eles não semeiam, nem colhem, nem fazem estoques em celeiros. Não têm cronômetros nem planos estratégicos. Nunca adquirem uma colite ou úlcera e nem têm pressão alta. Mas nosso Pai celestial nunca deixa de lhes dar alimento. O Pai dos Bonecos de Pano está engajado nisso também.

Cada vez que você acorda, pensa em alguma coisa, saboreia uma refeição, suas experiências não são obras do acaso. Elas são dádivas generosas do nosso Pai.

O Deus da Bíblia é o Deus que enxerga. “O Senhor, tu me sondaste e me conheces”, diz o salmista. Não existe um único detalhe em nossas vidas que não seja de grande interesse para Deus.

Jesus sabia disso. E por isso que ele disse: “Não se vendem dois passarinhos por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais, pois; mais vaieis vós do que muitos pardais”.

A propósito, se você não entender a espiritualidade de Jesus nessa última frase, a idéia perde todo o sentido.Jesus está advertindo que a ansiedade nos rouba a vida. Será que alguém repara? — pensamos.Será que alguém se importa? Ele destaca a preocupação constante do Pai com seus pardais— que era a carne mais barata que se podia com prar naquela época. Portanto, não se preocupe, ele diz. Você vale muitos pardais.

Quantos pardais a sua vida vale aos olhos de Deus? Coloque todos os pardais que já voaram

S u a se x p e r i ê n c i a s

NÃO SÃO O B R A S DO

A C A SO .E l a s s ã oD Á D IV A S

G E N E R O S A S d on o s s o P a i .

Page 31: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 3 7

na terra de um lado e você do outro lado. Deus sempre ficará com você. Se Deus está atento a cada acidente que acontece na vida de cada pardal, imagine então quanta atenção dedica a você!

Na história do homem cego, depois que Jesus o notou, os discípulos também notaram.

Eles perguntam: “Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?”. É uma pergunta estranha. Como poderia ser responsável por sua própria cegueira se ele nasceu cego?

Existia uma crença naquele tempo de que era possível nascer culpado por algum pecado. Por exemplo, se a futura mãe freqüen­tasse um templo gentio, a criança por nascer era considerada culpada de idolatria. Um documento antigo registra o nascimento de um bebê com deformidade porque sua mãe passou por um bosque gentio e ficou “maravilhada”. Havia uma escola de pensa­mento que sustentava ser possível um feto pecar.

Em geral, naquela época, as pessoas acreditavam que havia uma relação de causa e efeito entre sofrimento e pecado. De alguma forma, isso fazia com que as pessoas se sentissem melhor ao pensar que alguém merecia seu sofrimento. Quando julgamos os outros, sentimo-nos menos obrigados a sofrer com sua desgraça. Quando julgamos os outros, deixamos de prestar atenção a eles. As pessoas sabiam em qual categoria colocar esse homem: mendigo, cego, pecador. Boneco de pano. Elas não olhavam além dos rótulos para ver a singularidade deste homem em particular.

Então, o homem passou a vida inteira sendo ignorado. Ele era cego e as pessoas achavam isso deprimente. Ele era mendigo e as pessoas achavam isso perturbador. Era, na cabeça delas, um produto do pecado, o que significava que elas o achavam repugnante.

As mães diziam para os filhos: “Não olhe para ele; não dê ouvidos a ele; não preste atenção nele. Finja que você não o viu. Ele é pecador. Ele quer algo que não merece”.

Jesus passa por esse homem que todos ignoram e pára diante dele. Seus discípulos querem saber se o hom em tinha sido amaldiçoado por causa de seu próprio pecado ou do de seus pais.

Page 32: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

3 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

Eles olharam para o homem, mas não viram o que Jesus viu. Eles viram um objeto para uma interessante discussão teológica. Sua visão não lhes revelou o homem em si. De quem é a culpa: dele ou de seus pais?

Jesus disse: “Vocês não prestaram muita atenção. Deus não o abandonou. Deus apresentou-se a ele”. Este é exatamente o tipo de pessoa que Jesus está procurando.

Ralph Ellison descreveu o sofrimento da vida de um homem negro em uma sociedade de brancos: “Sou um homem invisível. [...] Sou um homem que tem substância, de carne e osso, músculos e sangue — e diz-se até que tenho um cérebro. Mas sou invisível, vejam só, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver”.

Certa vez, perguntaram a madre Teresa o que ela via quando andava pelas ruas de Calcutá, nas quais os pobres viviam; o que ela via quando olhava para os órfãos, famintos e moribundos. Ela disse: “Vejo Jesus disfarçado”.

Repare quando Jesus realizou esta obra de Deus: “quando Jesus ia passando”. João dá uma introdução bastante casual à história. Jesus estava viajando. Ele não estava com pressa. Ele não estava em uma sinagoga, não estava fazendo o Sermão da M on­tanha, não estava alimentando cinco mil pessoas. Ele não estava em uma situação de pregação formal.

O melhor lugar para realizar a obra de Deus é quando se vaipassando. Não é preciso ocupar um alto cargo ou ser importante.Se tiver de acontecer, acontecerá, no dia a dia, em qualquer esquina de sua vida.Quando você for passando.

Esse é o seu dia. Essa é a sua oportunidade de realizar a obra de Deus. Não a deixe passar. Se você deixar, não terá outra. A noite está chegando. Não perca o dia.

Q u a l b a o b r a d e D e u s ?

S i m p l e s m e n t eV E R O Q U E J E S U S

V E R IA SE E S T IV E S S E

O LH A N D O ATRAVÉS D E S E U S O L H O S, E R E A G IR D A FORM A

COMO E l e R E A G IR IA .

Page 33: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 3 9

Qual é a obra de Deus? Simplesmente ver o que Jesus veria se estivesse olhando através de seus olhos, e reagir da forma como ele reagiria.

Os líderes religiosos estavam cegos pela idéia de sua própria virtude. Este homem não é de Deus, disseram, pois não guarda o sábado.

Guardar o sábado era uma das formas pelas quais eles se distinguiam. Havia trinta e nove trabalhos que eram proibidos no sábado e a maioria deles tinha subcategorias. Não era permitido nem cortar as unhas, arrancar um fio de cabelo ou de barba nem usar sandálias com pregos de ferro (as sandálias costuradas eram permitidas mas, se tivessem pregos, cada passo contaria como um castigo).

Um dos atos proibidos era trabalhar no barro. Não se podia fazer nenhuma mistura ou massa — e Jesus o fez para formar o barro que colocou nos olhos do homem.

Além disso, como prática geral, a cura não era permitida no sábado. A regra era que você só poderia receber cuidados médicos nesse dia se sua vida estivesse realmente em perigo. E mesmo assim, só poderia acontecer com o propósito de evitar a morte e não de melhorar o seu estado. Eles descreviam os detalhes: se as suas mãos ou pés fossem deslocados, não era permitido colocar água gelada sobre eles, porque isso poderia ajudar na cura da torção.

Ironicamente, parte do propósito do sábado, conforme está escrito em Deuteronômio 5, era dirigir a atenção para os que costumavam ser ignorados; essa vigilância deveria se estender a crianças, escravos e estrangeiros, para que todos pudessem ter descanso: “Lembra-te de que foste servo na terra do Egito”, Moisés disse.

Os fariseus olharam para o homem que deixara de ser cego, mas não viram motivo de alegria. Eles não viram a presença do reino de Deus entre eles. Viram apenas um sábado violado. Viram uma ameaça ao sistema religioso que alimentava mais a idéia de sua superioridade espiritual. Eles olharam para o mesmo

Page 34: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

4 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

homem que Jesus olhara, mas não viram o que Jesus viu. Estavam m uito ocupados pensando em sua posição para prestar atenção em Deus.

Eles estavam tão empenhados em mostrar a sua retidão que esqueceram a essência da obra de Deus, que é o amor. Não viram o que Jesus via, por isso não fizeram o que ele fez.

João inclui um detalhe que conta exatamente o quanto esse homem era ignorado. Depois de curado, ele voltou ao lugar onde ficava: “Então os vizinhos e os que dantes o tinham visto a mendigar, perguntavam: Não é este o que estava assentado pedindo esmolas? Alguns diziam que era ele. Outros diziam: Parece-se com ele. Mas ele mesmo insistia: Sou eu”.

Esse homem era cego de nascença. Por isso ficou a mendigar, no mesmo lugar, a vida toda, talvez por trinta ou quarenta anos. Essa gente, seus vizinhos, as pessoas que viviam e trabalhavam onde ele mendigava, estiveram com ele todo esse tempo. Por trinta ou quarenta anos, dia após dia, o homem fez parte do mundo deles.

Mas eles prestaram tão pouca atenção a ele que, quando aconteceu o milagre, não souberam nem mesmo identificá-lo. Não sabiam nem descrevê-lo, alguns até pensaram que ele não era o mesmo homem!

Enquanto isso, os fariseus estavam tão empenhados em acabar com a credibilidade desse homem que chamaram seus pais para interrogá-los: “E este o vosso filho? É este que vós dizeis ter nascido cego? Como é que ele agora vê?”.

Eles responderam: “Sabemos que este é nosso filho, e que nasceu cego. Mas como agora vê, ou quem lhe abriu os olhos não o sabemos. Tem idade. Interrogai-o ele falará por si mesmo”.

Sua mãe e seu pai não estavam dispostos a se arriscar para proteger seu filho. Quero acreditar que meus pais seriam um pouco mais devotados.

Mas João conta que eles estavam com medo de serem expulsos da sinagoga. Como Lesslie Newbigin explica, “eles vivem no

Page 35: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 41

mesmo mundo que as autoridades, um mundo governado pelo medo. Eles temem as autoridades e as ‘autoridades’ temem por sua própria autoridade’”.

Por isso, chamaram o homem pela segunda vez. Lembre-se, esse homem passou a vida inteira sendo ignorado. Agora, de repente, as pessoas se atropelam para chegar até ele. Primeiro Jesus e seus discípulos, depois seus vizinhos, então ele é levado até os líderes religiosos. Agora ele é interrogado uma segunda vez. A intenção deles é clara: fazer com que ele diga algo para desacreditar Jesus. E é maravilhoso o modo como ele se porta. Ele é um dos personagens mais convincentes do evangelho de João:

“Dá glória a Deus”, os fariseus disseram, num a tática de intimidação para fazer com que o homem dissesse a verdade que eles queriam ouvir. “Sabemos que este homem é pecador”, eles acrescentaram. O que torna a cegueira deles incurável é a certeza que eles alegam ter. João continua contrastando a intransigência dos fariseus (“sabemos”, eles dizem três vezes distintas) com a ignorância confessada do homem (“não sei”, ele repete três vezes). Se ao menos eles fossem abertos à possibilidade de que não sabem.

“Se é pecador, não sei”, o cego que passou a enxergar disse. “Uma coisa sei: Eu era cego, e agora vejo”.

“Que te fez ele? Como te abriu os olhos?” “Já vos disse, e não o u v is te sEntão, com

admirável coragem ele disse: “Para que quereis ouvir de novo? Quereis fazer-vos também seus discípulos?”

Nesse m om ento, com eçam os a ver o tamanho da cegueira deles. Eis a ironia: eles acham que são totalmente devotados à obra de Deus, mas estão tão mergulhados em si

mesmos que nem percebem quando o próprio Deus aparece. Eles não estão prestando atenção. Não reconhecem a presença do próprio Deus a quem reclamam servir tão fielmente. Que outra palavra, senão cegos, poderíamos usar para descrevê-los?

E l e s e s t ã o t ã o

M E R G U L H A D O S EM SI M ESM OS

Q U E NEM P E R C E B E M QUANDO O P R Ó P R IO

d e u sA P A R E C E .

Page 36: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

4 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

A p r e n d e n d o a D ar A t e n ç ã o a D eus

O primeiro passo para se viver no amor de Deus é aprender a dar atenção a ele.

Surdos, ouvi,e vós, cegos, olhai, para que possais ver.Quem é cego, senão o meu servo [...]Tu viste muitas coisas, mas não as guardaste;Ainda que tenhas os ouvidos abertos, nada ouves.

Deus está dizendo que até seu próprio servo e seu próprio povo sofrem de cegueira espiritual. Isso significa que, sozinhos ou naturalmente, não conseguimos dar atenção a Deus. Precisamos aprender a fazer isso.

William Barry e William Connolly escreveram: “Nossa fé diz que Deus se comunica conosco, quer saibamos ou não, ao nos criar e redimir continuamente. Ele fala conosco mesmo quando não temos consciência disso. [...] Somos continuamente seus ‘receptores’”. Mas não podemos ouvi-lo porque não sabemos ouvir.

Um dia, minha família ficou numa sala de espera aguardando minha irmã sair de seu dormitório e se juntar a nós para o “dia da família”. Na mesma sala encontrava-se a mãe de uma colega de classe da minha irmã, que também esperava ao lado de seu filho de oito anos. Ficamos esperando por uma hora e quinze minutos e creio que, em todo esse tempo a mulher só parou de falar para tomar fôlego. Como se costumava dizer na época, antes do advento do CD, ela falava como uma vitrola quebrada, falava como se as palavras fossem o elo que a mantinha firme na terra. Ela falou tanto que eu sabia mais sobre a família dela do que sobre meus parentes mais chegados.

Finalmente, sua filha apareceu.— Bom, é melhor irmos andando — ela disse, sem perder o

ritmo. — Preciso fazer as reservas para o jantar. Sabe, nós vamos

Page 37: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 4 3

encontrar meu marido em um restaurante e... ah, sim, preciso parar em uma loja e comprar alguns botões.

Então o filho dela disse, pelo que me lembro, as únicas palavras que ele pronunciou durante uma hora e quinze minutos. Virou- se para a mãe e disse como só uma criança de oito anos é capaz:

— Mãe, você precisa de um botão para a sua boca.Só mesmo uma criança para dizer isso.Todos nós estávamos pensando a mesma coisa, mas só uma

criança de oito anos teve a coragem, sinceridade ou cometeu a tolice de dizer “você precisa de um botão para a sua boca”.

Em alguns momentos, desconfio que se Deus tivesse qualquer coisa a dizer, seria: você precisa de um botão para a sua boca.

“Sou o Deus do universo, criador do céu e da terra. Criei o seu corpo, confeccionei o mundo, eu criei o seu potencial. Quero lhe dar sabedoria, orientação e amor, mas não consigo alcançá-lo. Seu coração e sua vida são muito barulhentos e não quero gritar. Eu lhe amo, mas você precisa de um botão em sua boca”.

SÍNDROME DA FALTA DE ATENÇÃO ESPIRITUAL

A primeira obrigação da vida espiritual, à qual precisamos recorrer sempre, é simplesmente prestar atenção em Deus. Isso já é bastante difícil, considerando-se as dificuldades que temos de prestar atenção em qualquer pessoa. Acrescente a isso a dificuldade de dar atenção a um Deus santo, misterioso e invisível e verá que nosso pecado sempre tentará nos distrair. Todos nós temos uma espécie de síndrome da falta de atenção espiritual.

Basil Pennington usa a metáfora de um lago para descrever a importância da constante atenção que devemos dedicar a Deus. Quando jogamos uma pedra dentro de um lago, ela cria ondulações na água que se propagam por todos os lados, mas apenas quando o lago está calmo. Quando as águas do lago estão calmas e tranqüilas, a chegada da pedra pode ser percebida por toda a superfície.

Page 38: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

4 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

Mas quando o lago não está calmo, quando a superfície da água já está ondulada e agitada, a chegada da pedra passa despercebida. Quando o vento abala a superfície, a pedra não faz diferença. Quando acontece uma tem­pestade, tudo fica tao agitado que ninguém é capaz de notar algumas ondas a mais ou a menos. Elas ficarão perdidas no movimento frenético da superfície.

A calma sempre épré-requisito para a recep­tividade. Os aparelhos de televisão e telefone não recebem mensagens quando estão cheios de estática e interferência. É preciso haver silêncio primeiro para depois se poder ouvir; sempre nessa ordem. “Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus”, escreveu o salmista.

Uma das expressões mais fortes desse fato está no salmo 131.Ó Senhor, o meu coração não é orgulhoso, nem os meus olhos altivos [...]Mas fiz calar e sossegar a minha alma;como uma criança desmamada com a sua mãe,como uma criança desmamada é a minha alma

[para comigo.

A criança que ainda não desmamou faz bastante barulho. Ela descobre que o barulho acaba trazendo a satisfação para o seu desejo. Mesmo que isso não aconteça, o barulho em si parece causar um certo alívio. Ou, pelo menos, ele deixa os outros tao infelizes quanto aquele que o está produzindo.

O bebê desmamado, no entanto, aprende que a presença da mãe vai além da gratificação imediata do desejo. Ele consegue ficar em silêncio. Descobre uma nova forma de se comunicar com a mãe. Estabelece um relacionamento inteiramente novo com sua mãe. Agora ela é mais do que simplesmente alguém que existe para satisfazer suas necessidades, para matar a sua fome. Ela passa a ser vista como uma pessoa e não apenas uma provedora.

A CALMA SE M P R E É O

P R É - R E Q U IS IT O

PARA A RECEPTIVIDADE.

Page 39: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 45

Mas, obviamente, isso não é tão simples assim. Desmamar não é um processo muito popular, pelo menos, não entre os bebês. Raramente a criança toma a iniciativa de desmamar porque isso é difícil e doloroso. Desmamar significa aprender a viver em silêncio com desejos não satisfeitos. É um sinal de maturidade.

O salmista está descrevendo o retrato de sua alma, dizendo que aprendeu a aquietar o coração. Ele passou por um processo de desmame espiritual para não ficar à mercê de seus desejos, reflexos e necessidades. Deus se tornou mais do que um Provedor. O salmista está entrando numa nova fase: a de ouvir. Ele calou sua alma.

E como saber quando Deus está operando, tentando falar conosco?

• Quando estamos prontos para falar com raiva, dizer pala­vras ferinas, mas algo nos faz parar e contemos a língua.

• Quando passamos pelo quarto de nossos filhos, rapidamen­te, mas algo nos faz voltar e entrar exatamente no momento em que eles estão precisando conversar com alguém.

• Estamos num restaurante, há um funcionário nos aguardando mas nós nem percebemos. De repente, por algum motivo, ele chama a nossa atenção, olhamos realmente para ele e começamos a conversar. Ele tem a mesma idade que nós e filhos como os nossos. Não fala a nossa língua corretamen­te. Tem de dar duro em dois empregos para sustentar a famí­lia. Percebemos o quanto ele precisa de orações e oportunidades e ficamos espantados por todas as coisas que recebemos e pe­las quais somos responsáveis.

Provavelmente momentos como esses não sejam meros acasos. Talvez em cada um deles Deus esteja sussurrando alguma coisa para nós. Para cada pessoa que notamos, quem sabe mil passem despercebidas, pois as nossas mentes não estão silenciosas. Elas estão tão agitadas que fica difícil distinguir as mensagens que vêm de Deus.

Page 40: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

4 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

Nossas mentes estão incomodadas com desejos desordenados. O que as pessoas acham de mim? Será que serei bem-sucedido? Será que serei rico? Será que sou atraente?

Nossas mentes estão transtornadas com a estática e a ansiedade que acompanham a fé pequena. O que vai acontecer amanhã? E se eu não tiver mais idéias? E se não tivermos dinheiro suficiente? E se eu não conseguir resolver o problema?

Nossas mentes estão agitadas com a tur­bulência do pecado. Nossos remorsos acusam a nossa fraqueza espiritual. A culpa reclama da nossa hipocrisia. A indecisão nos empurra para frente num determinado momento e para trás em outro.

Nossas mentes perdem a tranqüilidade diante de nossa vida agitada. Compromissos e atividades em excesso, poucas horas de sono, estímulos demais, conversa demais, tudo isso abala o silêncio e não nos permite enxergar a ondulação, a “voz interior”, que é o sinal de que Deus quer nos falar.

A pr e n d e n d o a D ar A te n ç ã o às P essoas

Além de dar atenção a Deus, precisamos dar atenção às pessoas que são importantes para nós. Amar é dar atenção. Quem ama sente. Quem ama ouve. Quem ama sabe. Quando é o aniversário dela? Como ele gosta do café? Qual é o seu filme favorito? O amor está nos pequenos detalhes. Deborah Tannen escreveu uma linda história sobre uma boneca de pano:

Depois de muitos anos de viuvez, minha tia-avó, já na casa dos setenta, teve um romance. Gorda, com cabelos ralos, mãos e per­nas deformadas pela artrite, não se pode dizer que ela se encaixa­va no estereótipo da mulher que tem um caso amoroso. Mas ela foi amada por um homem também na casa dos setenta, que vivia em um asilo, mas de vez em quando vinha passar os fins de sema­na com ela em seu apartamento. Ao tentar me explicar o que esse relacionamento significava para ela, minha tia-avó contou-me de

Q u e m a m a s e n t e . Q u e m

AM A O U V E .Q u e m a m a

S A B E .

Page 41: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 4 7

sua conversa. Certa noite, ela saiu para jantar fora com os ami­gos. Quando voltou para casa, seu amigo ligou e então ela con­tou-lhe sobre o jantar. Ele ouviu com interesse e perguntou-lhe: “O que você vestiu?”. Quando ela me disse isso, começou a cho­rar: “Você sabe há quanto tempo alguém não me faz uma per­gunta dessas?”.

Com isso, minha tia-avó quis dizer que fazia muito tempo desde a última vez em que alguém se importou realmente com ela, com tanta intimidade.

Quando entrei no curso de pós-graduação, todos nós, aspirantes a psicólogo, aprendemos que há um tipo certo de postura que se deve ter. Para demonstrar nosso interesse pelos clientes, deveríamos encará-los com sinceridade, ser receptivos (nada de ficar com os braços cruzados), inclinar o corpo na direção deles, estabelecer contato com os olhos e permanecer calmos. Quando atendi meu prim eiro cliente, passei os quinze prim eiros m inutos tão preocupado em manter essa postura que não ouvi uma palavra sequer do que ele disse. Logo depois descobri que a melhor maneira de fazer com que alguém saiba que você está lhe dando atenção é simplesmente dar-lhe atenção.

“Todo homem seja pronto a ouvir, tardio para falar e tardio para se irar”, disse Tiago, apresentando o que deve ser o mandamento mais transgredido de toda a Bíblia.

Se você quer realizar a obra de Deus, preste atenção nas pessoas. Olhe para elas. Olhe especialmente a pessoa que ninguém mais olha. Q uando você prestar atenção em alguém, quando se concentrar totalmente nela, diga: “Você é a coisa mais importante do mundo para mim agora”.

O amor é uma forma de agir. Scott Peck escreveu: “A forma principal que a obra de amar assume é a atenção. Quando amamos uma pessoa, damos a ela nossa atenção; cuidam os do seu crescimento”.

O dr. James Lynch, co-diretor da Clínica e Laboratórios Psicofisiológicos da Universidade de Maryland, realizou um estudo

Page 42: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

4 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

sobre a atenção. Ele descobriu que a verdadeira cura do sistema cardiovascular acontece quando ouvimos. Os estudos revelaram que a pressão sangüínea aumenta quando a pessoa fala e abaixa quando ela ouve.

Deus está totalm ente atento a nós: “até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”, Jesus disse. Geralmente entendemos como um sinal de amor quando alguém repara num corte de cabelo ou penteado que fazemos. (Uma prova disso: deixar de reparar na mudança do penteado é uma das maiores causas de brigas entre os cônjuges).

Deus calculou cada fio de nossos cabelos. Se faltar um, ele notará (pode ser que ele não o substitua, infelizmente, mas certamente notará sua falta). Deus percebe coisas que sua mãe nunca imaginou. E quando vivemos no amor divino, começamos a prestar atenção às pessoas do modo como ele presta atenção em nós.

Em relação à história do homem cego, João quer que os leitores saibam que Jesus dominava a arte de preocupar-se com os outros.

Cada um dos personagens ou grupos de pessoas da história via de forma diferente.

• Quando os discípulos olharam para o mendigo, viram uma questão teológica interessante: quem havia pecado para ele nascer cego? Mas eles não o viram com o coração. A visão deles não os comoveu.

• Quando os vizinhos olhavam para ele, viam uma coisa desa­gradável, uma imagem perturbadora do sofrimento e da po­breza que eles aprenderam a negligenciar. Mas eles não o viam com o coração e, por esta causa, também não se comoviam.

• Quando os fariseus olharam para ele, viram a transgressão de um sábado, uma ameaça à sua autoridade religiosa. Vi­ram com um olhar frio e metálico, sem lágrimas nem bran- dura. Eles não deixaram de ver simplesm ente, mas se

d e u sp e r c e b e

C O ISA S Q U E SU A MÃE

N U N C A IM A G IN O U .

Page 43: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Quem ama dá atenção 4 9

recusaram a ver. Fecharam os olhos do cora­ção e não os abriram mais. A cegueira espi­ritual não é apenas ignorância. Jesus disse aos fariseus: “Se fósseis cegos, não teríeis pe­cado; mas, como agora dizeis: Nós vemos, permanece o vosso pecado”. Há cura para os olhos que não podem ver, mas para os que não querem ver não há remédio. Deus não os abrirá contra vontade.

• Quando Jesus olhou para o homem cego, viu uma oportu­nidade de realizar a obra de Deus. Viu um filho de Deus que precisava se libertar da cegueira. Viu e ficou comovido. Viu com olhos que por vezes ficavam marejados, faiscavam de raiva ou dançavam de alegria. Mas nada passava despercebi­do a esses olhos.

E, assim, um homem que fora cego a vida inteira ganhou novos olhos. Não apenas física, mas espiritualmente. Ele começou a ver o que Jesus via.

A princípio, tudo o que o cego sabia era que o homem que o havia curado chamava-se Jesus (Jo 9.11). Mais tarde, para os fariseus, ele confessou que Jesus era um profeta (v. 17). Depois ele ainda se tornou um defensor de Jesus dizendo que o que ele fizera mostrava que era de Deus (v. 33). Em seu último encontro, ele passou a enxergar Jesus como o Filho do Homem e o saudou e o adorou (v. 38).

Um homem que havia nascido cego passa a ver e percebe que a visão que vai adorar a vida toda, a melhor coisa sobre a qual ele jamais vai colocar os olhos, é a imagem daquele que o curou.

Pois agora ele vê que não foi esquecido por Deus. Agora ele pode perceber, depois de ter sido ignorado a vida toda, que Deus não desviou seu olhar nem mesmo do mais humilde de seus bonecos de pano. Deus ouviu cada oração, contou cada lágrima.

Agora este homem tinha olhos que podiam realmente ver. E suponho que ele passou o resto de sua vida aprendendo a ver como Jesus.

E para isso que servem os nossos olhos.

H Á C U RA PARA OS O LHO S Q U E

NÃO PO D E M V ER , M AS PARA

OS Q U E NÃO Q U E R E M V E R

NÃO HÁ R E M É D IO .

Page 44: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

nr \ a ■ i / j | |Deus toca o intocávelAmar é ficar completamente vulnerável. Ame qualquer coisa e certamente seu coração ficará apertado e possivelmente se partirá. [...]O único lugar além do céu onde você está completamente imune a todos os perigos e preocupações do amor é no inferno.

C. S. L ewis

Q uando eu era pequeno, a doença infantil mais temida não era varíola, sarampo nem caxumba. Era um problema mais sutil

e misterioso. Era altamente contagioso. Não existia vacina, antídoto ou qualquer tipo de inoculação.

Ninguém fazia idéia do que aconteceria quando se contraísse a doença, mas a simples menção dela provocava terror tanto em mim quanto em meus colegas. Sabíamos que ela era uma fatalidade pior do que a morte. A única forma de se resguardar era colocar os portadores de quarentena absoluta.

Felizmente, ela era facilmente detectável. A doença afetava somente as garotas. Toda garota (exceto m inha mãe) estava carregada disso. Não sei exatamente o seu nome científico, mas nós a chamávamos piolho. Bastava uma portadora tocar em você,

Page 45: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

5 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

respirar perto de você ou olhar fixamente para você para que você fosse contaminado. Ninguém era louco o suficiente a ponto de tocar alguém com piolho. Era como se todos os portadores tivessem uma marca na testa dizendo: “Não me toque”. Se soubesse na época que acabaria numa casa com três mulheres, teria enlou­quecido. Eu moro na piolholândia.

Os seres humanos necessitam do toque. Gary Smalley e John Trent citam estudos que demonstram que as pessoas que experi­mentam um contato físico significativo e constante em suas vidas têm uma expectativa de vida maior do que as outras pessoas. Naturalmente descrevemos a intimidade em termos espaciais: estar próximo de alguém em contraste com estar distante. Psicó­logos descobriram que quanto maior a distância física que um casal mantém durante uma conversa, maior a chance de ficar insatisfeito com o casamento e, portanto, maior a chance de se divorciar.

Algumas pessoas declaram não se sentir à vontade com o toque. A revista The Economist relatou um incidente no estado de Bihar, ao norte da índia, ocorrido em junho de 1994, sobre uma garota de uma casta inferior que fugiu para se casar com um garoto “intocável”. Com a aprovação do conselho do povoado, a cabeça do menino foi esmagada com uma pedra, enquanto a menina foi espancada e marcada com um pedaço de lenha em brasa. Esse era o destino do intocável e daquele que o tocasse.

Embora as conseqüências nem sempre sejam tao dramáticas assim, toda sociedade tem seus próprios intocáveis, baseada na raça, status, idioma ou nível cultural. E todos nós, em determinadas épocas ou situações, sentimo-nos como esses intocáveis, ou seja, intrusos desprezíveis e excluídos.

Esta é a história de uma pessoa que foi infectada por uma doença terrível; ninguém nunca chegava perto dela, muito menos a tocava. Mas então Alguém o fez. Esta também é a história de um mundo contaminado por uma doença horrível. Mas Deus o tocou. É a sua história e a minha.

Page 46: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus toca o intocável 5 3

O homem da história era leproso. Vamos entender como essa doença era encarada naquela época. O tipo mais comum começava com uma sensação de letargia e dor nas articulações. Logo manchas descoloridas e nódulos deixavam o rosto do doente irreconhecível. Quando os machucados ulceravam, o mau cheiro ficava intolerável. As cordas vocais também ulceravam, deixando a voz rouca e áspera.

O maior dano que a lepra causava era a perda da sensibilidade. O dr. Paul Brand conduz uma pesquisa inédita sobre a lepra no século vinte e passou a maior parte de sua carreira com leprosos na índia. Ele descreve a história de um portão trancado com uma fechadura enferrujada que a chave não conseguia abrir. Um jovem leproso colocou seu dedo na fechadura e girou-o até abrir a fechadura. Quando tirou o dedo, Brand viu que ele estava corroído até os ossos. Mas o garoto não sentiu nada.

Os leprosos freqüentemente perdem os dedos das mãos e dos pés e as pessoas costumavam pensar que isso era causado pela doença. Brand e outros pesquisadores passavam a noite em claro observando os leprosos enquanto dormiam. Ratos apareciam e roíam as extremidades de seus corpos mas, como eles não sentiam dor, continuavam dormindo. Eles acordavam no dia seguinte com partes de seus corpos faltando, a menos que alguém ficasse ao seu lado para cuidar deles.

O primeiro sinal da lepra era tratado como uma sentença de morte. “Também o leproso, em quem está a praga, andará com as vestes rasgadas, a cabeça descoberta e os cabelos soltos, mas cobrirá o bigode, e gritará: Imundo! Imundo! Será imundo todos os dias em que a praga estiver nele. É imundo, e habitará só; a sua habitação será fora do arraial”.

A lei era bastante clara: “Nada de toques”. Os rabinos iam mais longe. Se a lepra acometesse a casa de alguém, a própria casa era considerada contaminada e deveria ser destruída. Se um leproso fosse visto em um local público, era perfeitamente aceitável que os outros lhe atirassem ovos ou mesmo pedras. Tocar em um leproso significava tornar-se poluído.

Page 47: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

5 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

Imagine a idéia de nunca mais ser tocado por alguém: nunca poder segurar uma criança no colo, sentir o aperto da mão de um amigo, o abraço do seu cônjuge ou o braço de seu pai sobre o seu ombro.

E a lepra, além de ser uma doença física, também carregava um estigma moral. Ela era considerada um castigo de Deus. Para as outras doenças havia uma cura, mas para a lepra dizia-se que o doente precisava ser limpo. Os leprosos não eram considerados apenas doentes, mas “imundos”, poluídos.

É por isso que o evangelho de Marcos fala de um leproso que se aproximou de Jesus “rogando-lhe, e pondo-se de joelhos”. Por isso o leproso lhe disse: “Se quiseres, bem podes limpar-me”. O pai de uma criança endemoninhada disse a Jesus: “Se tu podes'. O leproso não tinha dúvidas que Jesus podia limpá-lo. Ele apenas duvidava se Jesus queria fazê-lo. O homem sentia-se totalmente indigno. Estava tomado de vergonha.

Esta não é apenas uma bela história sobre cura, mas um caso que está em voga. Pense em uma doença da atualidade que seja altamente contagiosa, desperte muito medo, seja considerada fatal e carregue um estigma moral. Como Jesus reagiria a ela?

Recebi o telefonema de uma mulher cuja família freqüentava uma igreja em que servi como pastor há alguns anos. Ela pediu- me para ir visitar seu irmão no hospital e, embora conhecesse sua família muito bem, fui surpreendido, porque nunca tinha ouvido falar que ela tinha um irmão.

Ele estava morrendo de Aids e estava doente há um bom tempo. Ele passara um ano sem ter uma única conversa com seus pais e seu principal objetivo era m orrer despercebido e só. Mas, finalmente, sua irmã descobriu que ele estava doente e convenceu- o a ir para o hospital.

Ele contou-me que havia pensado em se matar na noite anterior porque estava tomado pelo medo e pela vergonha. No entanto, fez as pazes com Deus e pediu-me para batizá-lo. Foi o que fiz, na presença de sua irmã, poucos dias antes de sua morte.

Page 48: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus toca o intocável 5 5

Seus pais foram visitá-lo algumas vezes no hospital, mas não quiseram saber o motivo de sua internação. Sua mãe, a mulher que o havia trazido ao mundo, recusou-se a tocar no assunto mesmo perto de sua morte. Sua principal preocupação era garantir que em todos os registros públicos a causa da morte não constasse como Aids, para que ninguém jamais soubesse o motivo. Ela recusava-se até a pronunciar a palavra.

Ele morreu sem nunca receber de seus pais o toque que poderia ter curado a sua alma.

Os líderes religiosos da época de Jesus estabeleceram o que se poderia chamar de estratégia do isolamento. Leprosos, gentios, cobradores de impostos, mulheres, os não circuncidados, todos deveriam ser evitados “como a uma praga”. Ninguém podia comer, falar e trabalhar com eles ou mesmo olhar para eles. Havia um grupo de rabinos chamados rabinos que “sofrem e sangram” que se comprometia a nunca nem mesmo olhar para uma mulher. É sério, não estou inventando!

A idéia por trás da estratégia de isolamento é que o pecado e o sofrimento são contagiosos. A única forma de evitá-los era separar- se do tipo de pessoa e lugar aos quais você estaria exposto. Era viver numa quarentena espiritual.

Posso compreender por que essa idéia era interessante. O pecado espalha-se como uma gripe comum. Ande com um grupo de insatisfeitos para ver como você vai ficar. Vivemos num mundo que certamente é tão poluído moral quanto fisicamente.

Quando olho para meus filhos e penso em toda a destruição que o mundo causa, dá vontade de deixá-los de quarentena, colocar uma placa pendurada no pescoço deles dizen­do: se você está envolvido com drogas, pro­miscuidade sexual, destruição de propriedade, retraimento social ou body piercing bizarro, mantenha distância. Não toque. Quarentena.Mas as coisas não são assim.

Q u a n d o i s o l a d o , o

AM OR D E FIN H A ; A H U M IL D A D E , A COMPAIXÃO E

A G E N E R O S I­D A D E D E E S P Í ­

RITO FICAM S U F O C A D O S .

Page 49: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

5 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

Através da história, os religiosos sempre recorreram à estratégia do isolamento: evite os pecadores e viva em quarentena religiosa. O problema é que, quando fazemos isso, passamos a ver o mundo em termos de “nós” contra “eles”. A quarentena transforma-se em um efeito estufa para os pecados mais destrutivos: orgulho, exclusivismo, superioridade moral. Q uando isolado, o amor definha; a humildade, a compaixão e a generosidade de espírito ficam sufocados. A conseqüência final da estratégia do isolamento pode ser vista em lugares como a antiga Iugoslávia onde o genocídio é visto como uma “limpeza étnica”. As pessoas diferentes, “os outros”, são vistas como uma sujeira que precisa ser removida.

Em Jesus, Deus deixa bem claro que sempre rejeitou a estratégia do isolamento. Há vários milagres nessa história; o primeiro deles começa logo a seguir.

O M ilagre d a A cessibilidade

Jesus era rabino. A tarefa do rabino era garantir que a lei fosse compreendida e seguida.

Um homem era leproso. Era obrigação do leproso manter-se longe das pessoas, especialmente dos rabinos. O rabino era a última pessoa que um leproso gostaria de ver. Se chegasse perto de um, sabia que seria severamente criticado por ter desrespeitado a lei: o castigo era certo.

Os rabinos orgulhavam-se de ser inacessíveis. Consideravam-se tão próximos de Deus que os pecadores comuns — os leprosos, imundos — não eram autorizados a chegar muito perto.

A ironia é que o único rabino de quem o leproso pôde se aproximar era Deus em pessoa.

Que qualidade Jesus tinha que os outros rabinos não tinham? Ele era eminentemente acessível. Não apenas para os leprosos. Isso acontecia regularmente com prostitutas, cobradores de impostos e gentios pagãos — todo tipo de bonecos de pano. Quanto mais religioso o rabino era, mais inacessível se tornava.

Page 50: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus toca o intocável 5 7

Enfrentamos o mesmo problema. Sabemos que é importante sermos puros, então começamos a tentar impressionar as pessoas com nosso conhecimento teológico ou pureza moral para reforçar nosso senso de superioridade espiritual. Se continuarmos assim, também não vai demorar muito para nos tornarmos inacessíveis.

Há uma forma básica de distinguir o modo de vida de Jesus daquele dos líderes religiosos. Para eles, quanto mais religiosos eles fossem menos acessíveis se tornavam. Mas, com Jesus, era exatamente o oposto. Jesus possuía uma “diferença” mais profunda que atraía os pecadores para ele. Os fariseus possuíam uma diferença superficial que afastava as pessoas.

Quando eu era criança, costumava achar que quanto mais “religiosa” fosse uma pessoa, mais inacessível ela seria, que ser santo significava manter uma certa rigidez, austeridade e distância.

Mas em Jesus vemos que a verdadeira religiosidade sempre torna a pessoa mais acessível, e não o contrário. É por isso que vale a pena refletir sobre isto: Jesus foi o ser humano mais acessível que já existiu.

E no ato do toque que nos tornamos mais presentes e reais uns para os outros. H á alguns anos, levamos nossos três filhos à Disneylândia e Mickey Mouse veio receber o público. Todas as crianças queriam a mesma coisa. Elas não pediam presentes ou entradas grátis. Elas queriam ser tocadas. Nosso filho caçula começou a saltar e a gritar sem parar: “Toque em mim, toque em mim”.

A Bela, personagem principal da história A bela e a fera, apa­receu e nossas duas filhas também começaram a pular e a gritar: “Toque em mim, toque em mim” (algum tempo depois, encon­tramos o Kevin Costner com seus filhos, e m inha esposa come­çou a pular e gritar...).

Marcos narra uma ocasião em que um grupo de crianças foi trazido a Jesus “para que as tocasse”. Os discípulos tentavam mantê- las afastadas e “repreendiam” as pessoas. Eles entendiam que alguém tão importante quanto Jesus não deveria ser normalmente acessível.

Page 51: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

5 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

Mas Jesus indignou-se. “E tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as abençoou”. Ele não precisava fazer isso. Bastava dizer algumas palavras. Mas ele preferiu lhes dar uma lembrança. Imagine ser uma daquelas crianças, ser capaz de lembrar pelo resto da vida que fora tocado por Jesus.

Uma das perguntas mais importantes que podemos fazer a nós mesmos é: “Estou me tornando mais ou menos acessível?”. Sou acessível às pessoas que vivem em meu

pequeno mundo? Meu cônjuge pode conversar abertamente comigo? Já parei alguma vez para colocar o braço sobre o ombro de um colega de trabalho, apenas para que ele saiba que estou feliz por trabalhar ao seu lado? Estou procurando ouvir mais as pessoas sem fazer julgamentos?

O M ilagre d o T o q u e

O segundo milagre tem a ver com a ordem dos fatos. A lei dizia: “Não toque”. O Evangelho está cheio de histórias sobre pessoas que procuram tocar em Jesus: as crianças, a mulher que sofria de hemorragia e desesperadamente tocou na bainha de suas vestes, a prostituta que ungiu os pés de Jesus com lágrimas e enxugou-os com o cabelo e o incrédulo Tomé, que queria sentir os ferimentos de Jesus com suas próprias mãos.

Diferentemente de todas elas, os leprosos não tentaram tocar em Jesus. Eles compreendiam a situação. Eles conheciam a lei.

Mas repare no que Jesus fez: “com grande compaixão, estendeu a mão, tocou e lhe disse: Quero, sê limpo”.

Jesus tocou o leproso antes de curá-lo. Ele tocou o leproso enquanto o homem ainda era imundo. Isso escandalizaria qualquer um que visse a cena. Quem tocasse num leproso também passava

U M A D A S P E R G U N T A S M AIS

IM P O R T A N T E S Q U E P O D E M O S

FAZER A NÓS M E SM O S É:“ E s t o u m e

TO R N A N D O M AIS O U M ENO S

A C E S S ÍV E L ,?” .

Page 52: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus toca o intocável 5 9

a ser considerado imundo. Era um grande milagre. Trata-se de Deus, que, afinal, foi quem criou a lei, quebrando a sua própria lei, pelo bem da humanidade. Jesus não precisava tocar o leproso para limpá-lo. Ele já tinha feito outros milagres à distância; bastava apenas “dizer a palavra”. A palavra curou o corpo e o toque curou a alma. Mas Jesus queria deixar uma coisa bem clara.

O milagre do toque é que Jesus desejava com partilhar o sofrimento de outra pessoa para dar-lhe a cura. É um prenúncio da cruz: Jesus toma para si o nosso pecado para que possamos receber a sua vida. Por suas feridas, somos curados.

Em um mundo contagioso, aprendemos a nos manter distantes. Se chegarmos muito perto dos que sofrem, podemos aca­bar contaminados por sua dor. Não nos parece conveniente ou agradável. Porém, somente quando nos aproximarmos o bastante para sentir sua dor, eles se apro­ximarão o suficiente para sentir o nosso amor.

Jesus não ordenou a seus discípulos que vivessem de quarentena. Ele ordenou que fossem uma espécie de hospital. Imagine um hospital onde os médicos dizem: “Este foi um dia de sorte. Não fui contaminado. Meus pacientes estavam cheios de germes imundos, mas os deixei todos lá fora. Pode ser que morram, mas pelo menos não toquei em nenhum deles. Não fui contaminado”.

Há alguns anos, estava quase entrando em uma loja de antigüidades quando Nancy puxou-me de lado. Eu carregava nossa filha, ainda bebê, em uma espécie de mochila nas costas e Nancy estava grávida de oito meses.

— Já entrei nessa loja uma vez e vi as etiquetas de preço. Eles têm peças bem valiosas aí. Há avisos por todo o lado dizendo: Não toque”. Eu o conheço bem. Você vai seguir direto para a

seção de livros raros e vai se esquecer que está carregando um bebê

O M ILAG RE DO TO Q U E É Q U E

J e s u s d e s e j a v aC O M PA RTILH AR O S O F R IM E N T O D E O U T R A P E S S O A

PARA D A R -L H E A C U R A .

Page 53: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

6 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

nas costas; e, assim que se distrair um pouco, ela vai quebrar um vaso caríssimo e isso nos custará uma fortuna.

— Desculpe — eu disse — , mas tenho trinta anos de idade e doutorado em psicologia. Creio que posso dar conta de uma criança de um ano de idade por meia hora.

— Ótimo. Mas quero deixar bem claro que se ela quebrar alguma coisa, você vai pagar a conta com o seu dinheiro pelos próximos vinte anos.

Então nós entramos.Descobri a seção de livros raros e comecei a ler.Esqueci completamente que carregava um bebê nas costas.Ela fez um movimento brusco em direção a alguma coisa e

engasguei. Nancy ouviu o barulho e virou-se. Mas com oito meses de gravidez, seu corpo ia muito além dos limites normais. Ela acabou esbarrando em um vaso incrivelmente caro, que se espatifou no chão.

Isso aconteceu há dez anos. E ela ainda está pagando.Todo dia passamos pela loja de Deus. Todo dia esbarramos em

objetos de valor incalculável para ele: pessoas. Cada uma delas carrega uma etiqueta de preço, que não podemos ver. Os leprosos e aidéticos, as crianças e os idosos, os sábios e os tolos, os santos e as prostitutas: vale a vida do meu Filho, a etiqueta diz. Você vai respeitar o valor daqueles em quem toca? Está disposto a pagar o preço? Quando alcança os intocáveis do seu mundo, dispõe-se a sofrer. Amor significa decepção e pesar.

Mas existe alternativa? C. S. Lewis escreveu:Amar é ficar completamente vulnerável. Ame qualquer coisa e certamente seu coração ficará apertado e possivelmente se parti­rá. Se você quiser manter-se intacto a qualquer preço, não deve dar seu coração a ninguém, nem mesmo a um animal. Esconda- o cuidadosamente atrás de hobbies e luxos; evite qualquer com­plicação; tranque-o na caixa ou caixão de seu egoísmo. Mas nessa caixa — segura, escura, inerte, sem ar — ele mudará. Não se partirá; tornar-se-á inquebrável, impenetrável, irredimível. A al-

Page 54: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus toca o intocável 61

ternativa para a tragédia, ou pelo menos para o risco de um a tragédia, é a conde­nação. O único lugar além do céu onde você está com pletam ente im une a todos os perigos e preocupações do am or é no inferno.

H o j e h a

P E S S O A S EM S E U M U N D O

E S P E R A N D O P O R A LG U ÉM Q U E AS

T O Q U E .A loja de Deus está cheia de avisos que dizem: por favor, toque. Podemos não querer; estamos ocupados, com medo ou vergonha. Mas apenas quando as pessoas são tocadas em sua devastação é que acontece a cura.

Hoje há pessoas em seu mundo esperando por alguém que as toque. Será você? Coloque o seu braço sobre os ombros de seu amigo. Segure a mão de alguém que sofre. Segure uma criança no colo. Por favor, toque.

A I nfecção I m a c u l a d a

Ninguém tocaria em um leproso, porque todo mundo sabia o que poderia acontecer. Tocar um leproso significava ser infectado pela lepra. Isso sempre acontecia ou, pelo menos, as pessoas pensavam assim.

Mas algo mais forte do que a lepra está agindo nessa história. Marcos diz que Jesus tocou o homem e “imediatamente” a lepra desapareceu. O leproso não infectou Jesus com sua doença. Jesus infectou o leproso com sua vida! A isso podemos chamar de infecção imaculada. A vida que fluiu através de Jesus para o homem foi tão forte que a lepra simplesmente não podia coexistir com ela.

O pecado e o sofrimento não são as únicas coisas contagiosas. Graças a Deus, o entusiasmo, a risada e a própria fé também são. Ande com alguém com essas características e verá que elas são transmissíveis. O contágio funciona dos dois lados.

Jesus usou duas vezes o fermento como exemplo em seus ensinamentos. O fermento é um retrato do contágio. Coloque

Page 55: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

6 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

uma quantidade de fermento em uma massa de farinha e logo ela ficará fermentada. Em Mateus 16, ele avisou seus discípulos para que tivessem cuidado com o fermento dos fariseus. Seu espírito crítico sobre quem é tocável e quem não é estava se espalhando. Eles já tinham uma dose suficiente de superioridade moral para serem inoculados contra a fé.

Mas em Mateus 13 Jesus usou o fermento para tratar de outra coisa: o reino de Deus. Desta vez ele deu a dimensão. Falou sobre uma mulher que misturou fermento em uma quantidade de farinha absurdamente grande, como se estivesse trabalhando com sacos industriais de farinha e fazendo uma refeição para a cidade de Cleveland. O fermento parece crescer. De fato, a palavra que o texto usa é que ela “introduz” o fermento na farinha. Parece um exercício de futilidade. O fermento aparentemente desaparece. Mas é preciso ser paciente. Despercebida e sutilmente, o fermento

penetra em toda a massa. A farinha não tem chance. Agora, é apenas uma questão de tempo.

O mesmo acontece no reino de Deus, Jesus disse. Ele não pode ser impedido. Desde Jesus, o fermento tem agido. Ele pode parecer pouco e insignificante: uma igreja pequena em um bairro decadente do centro da cidade, uma reunião reli­giosa secreta na China, um pequeno grupo de pessoas orando por um lugar

no m undo. Pode parecer pouca coisa agora, um pedaço de fermento, Jesus diz. Mas continue observando. Basta ter um pouco de paciência. As trevas não terão chance. E apenas uma questão de tempo.

O segredo da vida espiritual não é isolar-se do pecado e do sofrimento. Isso seria impossível, mesmo que quiséssemos. Jesus viveu no mesmo planeta contaminado que nós, mas ficou imune. Nossos corpos, no entanto, não resistiram.

O SE G R E D O É SE S E N T IR TÃO PL E N O

COM A V ID A D E J E S U S Q U E AO

TOCAR O M U N D O , E M V E Z D E E L E N O S IN FE C T A R ,

SO M OS N Ó S Q U E O IN F E C T A M O S .

Page 56: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus toca o intocável 6 3

O segredo é se sentir tão pleno com a vida de Jesus que ao tocar o mundo, em vez de ele nos infectar, somos nós que o infectamos.

O leproso curado tinha esse vírus. Ele era contagioso; simplesmente não podia evitar de ser. Em bora tivesse sido advertido para ficar em silêncio, sentiu que não podia. Sua fé era tão infecciosa que ele a espalhou, como um germe, uma gripe, como um boato quente. Todo o mundo pegou: “E de todas as partes iam ter com ele”.

E, desde então, aqueles que são tocados por Jesus têm espalhado germes. Pequenos germes de alegria e de fé, bactérias de devoção.

Pois, conforme meu amigo Ian Pitt-Watson disse em um belo tratado sobre essa passagem, vivemos em um planeta contaminado. Ele está contam inado em todos os níveis. Deveria estar de quarentena do céu. Qualquer Deus com um pouco de sensatez jamais se aproximaria dele apenas com um cajado de três metros de altura.

Mas Jesus não é um Deus sensato. Ele se tornou homem, adquirindo a sua impureza e a minha. Mas em vez do mundo infectá-lo, foi ele quem infectou o mundo, com sua infecção imaculada. Ela ainda está se espalhando.

E apenas uma questão de tempo.

Page 57: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

C A P

0 Senhor da segunda chamO perdão é uma invenção de Deus para aceitar um mundo no qual as pessoas são injustas umas com as outras e se magoam profundamente.Ele começou nos perdoando e pede para todos nós perdoarmos uns aos outros.

L ewis B. Smedes

H á alguns anos participei de um jogo de golfe com alguns amigos (algo que faço raramente e muito mal). No primeiro buraco, preparei-me para dar a tacada, coisa que pela TV parece

muito fácil. Afinal, a bola nem está em movimento. Acertei a bola num ponto difícil de acreditar. Ela voou em um ângulo de noventa graus. Foi impressionante. Ninguém antes tinha visto uma bola de golfe fazer uma trajetória como aquela e, até aquele momento, pensava-se ser fisicamente impossível. Desejei muito poder fazer a tacada de novo (ela acertou o telhado de uma casa vizinha e, pelo barulho, deve ter causado um bom estrago).

Comecei a seguir o rastro da bola para poder fazer a próxima tacada e, então, as pessoas com quem estava jogando disseram algo surpreendente: “Não se preocupe. Deixa para lá”. Disseram- me que pegasse o que chamam de mulligan. Você não precisa jogar

Page 58: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

6 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

de uma posição impossível, explicaram. Você não tem nem mesmo que contá-la. Não vamos marcá-la; ela não aparecerá no cartão de pontos. Será como se nunca tivesse acontecido, concluíram. E irrelevante para a minha pontuação final. Fiquei com a ficha limpa. Ganhei um novo começo. Podia recomeçar, como se fosse a primeira vez. O mulligan é uma espécie de bilhete de misericórdia para uma jogada imperdoável.

Então comecei a pensar: não seria maravilhoso se pudéssemos tomar um mulligan em outras áreas da vida?

Imagine só, um policial pára seu carro por excesso de velocidade e você destaca o bilhete. “Obrigado, guarda. Vou usar o meu mulligan.” “Certamente, senhor.”

O banco diz que seu cheque está sem fundos. “Mulligan”, você diz para eles. Agora mesmo, eles respondem.

Numa discussão com um amigo, você diz algo que não deveria. Mulligan.

Foi mal numa^prova, estragou uma apresentação no trabalho, investiu na empresa errada, cometeu uma gafe constrangedora, esqueceu de enviar o imposto: basta tirar um mulligan.

Nada de perguntas.Nada de multas.A verdade é que bonecos de pano precisam de mulligans o tempo

todo. Quando temos a chance de ajudar alguém, aproveitamos a oportunidade para, em vez disso, nos autopromover. Deixamos a dúvida pairar no ar para ganharmos crédito pelo que não fizemos. Explodimos com os outros facilmente. Ao ajeitar um de meus filhos debaixo da coberta depois de um episódio como esses, tentei retratar-me: “Me desculpe por ter sido tão bravo. Não sei o que me aconteceu. Espero que Papai Noel ainda me traga um presente”.

Ele concordou, com tristeza nos olhos e um ar de dúvida:« '-p 1 / lambem espero .

Será que Papai Noel aceita mulligans?Às vezes, a necessidade de um mulligan é mais profunda. Pode

ser que precisemos de um mulligan em toda uma fase de nossa

Page 59: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 6 7

vida. Uma mulher tinha um relacionamento complicado e cheio de conflitos com seu pai; ela o amava, mas estava brava com ele e sua reação foi o retraimento. Então, em outra parte do país, seu pai morre sozinho e agora ela fica cheia de remorsos. Ela daria qualquer coisa por um mulligan.

Você toma uma atitude — faz uma escolha — que magoa alguém próximo a você, alguém que realmente lhe é importante. E daí você se afoga na culpa; não sabe se um dia vai conseguir recuperar a confiança que havia — você daria tudo por um mulligan.

Você se envolve em uma prática ilícita por dinheiro. Depois passa a viver com medo de ser descoberto e cair na desgraça; vive com a consciência de que construiu sua vida enganando e

trapaceando. Talvez ninguém jamais venha a saber, mas sua consciência e senso moral vão sendo bombardeados dia após dia. Sua desonestidade é como um câncer espiritual que destrói a sua alma. Você precisa de um mulligan mais do que é capaz de imaginar.

Você fracassa em algo importante — na vida profissional, conjugal, na criação dos filhos ou ao demonstrar a sua integridade moral — e a sensação de fracasso nunca desaparece. Você se sente impregnado por ela, como se nunca fosse conseguir se livrar disso. Ela se apega a você como a própria

pele e você se desespera achando que nunca vai superá-la. Se ao menos pudesse usar um mulligan.

Se existe algo que o homem realmente subestima em relação ao amor de Deus, é a sua capacidade de perdoar. No maravilhoso romance Montanha gelada, Charles Frazier fala de um pastor chamado Monroe que é evitado por seus colegas porque “não acredita que Deus possua sérias limitações em sua paciência e misericórdia. Monroe chegava mesmo a pregar que Deus não era em nada semelhante a nós, que não era do tipo explosivo, capaz de pisar sobre nós até nosso sangue jorrar e manchar o seu manto branco...”.

S E E X IS T E ALGO Q U E O

HOM EM R E A L M E N T E S U B E S T IM A

EM RELAÇÃO AO AM OR D E

D e u s , é a s u aC A PA C ID A D E

D E P E R D O A R .

Page 60: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

6 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

Su b ju g a d o pelo Fracasso

O evangelho de João conta a história de um homem que faltou com seu melhor amigo e negou o seu senhor; achava que a sua falta o colocava além do alcance da graça de Deus, no que estava completamente enganado. E a história de todas as pessoas que já se sentiram subjugadas pelo fracasso.

E a história da degradação do homem e da grandeza de Deus.Esta é a história de um homem que desperdiçou a grande

oportunidade de sua vida. E esta é a história do Senhor da segunda chance.

São seis horas da manhã. Pedro e seus amigos passaram a noite pescando. Eles não pegaram nada.

Um vulto chama-os da praia. Uma voz que eles ouviram antes mas não reconhecem diz: “Filhos, vocês não conseguiram apanhar nada, não é mesmo?”.

A pergunta é uma provocação. Ela serve para ver se eles admitem a verdade: o fracasso.

Jesus sempre usou frases ou perguntas casuais para ver se as pessoas admitiam a verdade sobre si mesmas: “Sobre o que debatiam no caminho?”, perguntou aos discípulos quando estavam discutindo para ver quem era o melhor. “Onde está o seu marido?”, perguntou à mulher que havia se casado cinco vezes. “E então”, agora ele pergunta, “pegaram alguma coisa?”.

Ele abranda suas palavras um pouco pelo modo como se dirige aos seus amigos: “Filhos”. Essa é a única vez que ele os chama assim na Bíblia. “Bem, garotos, tiveram sorte?”

Então, algo extraordinário acontece. Um grupo de pescadores admite não ter apanhado nada. Eles nem mencionam o peixe que fugiu (e olha que os pescadores não são exatamente conhecidos por sua honestidade).

A voz indaga: Pegaram alguma coisa?Não, eles respondem. O que está querendo dizer? A história

começa com uma confissão de fracasso, e isso é tudo o que ele quer ouvir.

Page 61: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 6 9

A voz diz: Tentem de novo. Joguem a sua rede no lado direito do barco. Não desistam ainda. Tentem mais uma vez.

Foi o que fizeram. E logo a rede ficou tão cheia que eles nem conseguiam puxá-la para o barco. De repente, eles percebem de quem é a voz.

Pedro fica emocionado. Talvez tenha se lembrado da primeira vez em que encontrou Jesus.

Lucas conta essa história: Jesus entrou no barco de Pedro e ensinou a multidão na praia; depois disse a Pedro: “Faze-te ao mar alto, e lançai as vossas redes para pescar”.

Pedro explica: “havendo trabalhado toda a noite, nada apanhamos”.

Tente de novo. Faça a minha vontade.E Pedro fez; e logo as redes ficaram

tão cheias que começaram a se romper e os barcos tão carregados de peixe que co­meçaram a afundar.

Naquela ocasião, Pedro disse a Jesus: “Senhor, afasta-te de mim; sou homem pecador”. Os degradados, às vezes, oram assim.

Mas Jesus disse: eu sei tudo a respeito dos pecadores. Tenho planos para ajudá-lo a resolver esse problema. Vou dar-lhe uma nova vida. Você vai recomeçar mas, agora, como pescador de homens.

Assim, Pedro conheceu o Senhor da segunda chance.Agora, depois da crucificação e da ressurreição, depois de outro

milagre na pesca, Pedro percebe de quem era a voz. Em um gesto característico de Pedro, ele tira a calça jeans e sua camisa de pescaria da sorte que nunca lava, joga-se ao mar e nada até a praia. Talvez ele tenha se lembrado de uma outra época em que deixou seus amigos no barco e caminhou sobre a água. Sua fé se enfraqueceu e ele afundou — fracassou — , mas o Senhor da segunda chance foi

S E Q U IS E R R E C E B E R A A JU D A DO

SE N H O R D A S E G U N D A

CH AN CE, VOCÊ TAM BÉM T E R Á D E

R E C O N H E C E R A V E R D A D E A

R E S P E IT O D E SU A C O N D IÇ Ã O .

Page 62: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

7 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

seu socorro naquela ocasião também. O Senhor da segunda chance é muito paciente.

Pedro alcançou a praia e encontrou Jesus preparando o desjejum. Ele tinha acendido uma fogueira. João inclui um detalhe: era uma fogueira de carvão.

Havia um motivo para isso. Em João 18, quando perguntaram a Pedro por três vezes se ele conhecia Jesus, se era um discípulo, ele estava se aquecendo diante de uma fogueira. Era uma fogueira de carvão. E foi ali que ele negou o Senhor.

Agora Pedro vê a fogueira, uma fogueira de carvão, e se lembra. Se pretende caminhar com Jesus, terá de enfrentar a verdade sobre quem ele é e o que fez.

Se quiser receber a ajuda do Senhor da segunda chance, você também terá de reconhecer a verdade a respeito da sua condição. Encare a realidade. Tire a máscara.

Há uma história antiga sobre um homem desesperado por um emprego, que vai responder a um anúncio classificado do zoológico. O responsável explica que o gorila morreu e eles não podem comprar outro, por isso estão contratando um homem para se disfarçar desse animal. A princípio ele recusa, mas, por precisar desesperadamente de dinheiro, acaba concordando.

Cada dia fica mais animado em sua jaula. Ele balança em uma árvore com tanta força que vai parar na jaula ao lado, na jaula do leão. Sentindo o bafo quente do leão em sua face, ele esquece-se do disfarce e começa a gritar por ajuda. Nesse momento, o leão diz: “Cale a boca, seu idiota, ou nós dois vamos acabar perdendo o emprego”.

Usar máscaras pode se tornar uma prática comum em sua vida. Fingir que está feliz, quando está sofrendo. Fingir que é espiri­tualmente saudável, quando há uma grande distância entre você e Deus. Fingir que se tem um casamento perfeito, quando a verdade é que seu relacionamento é um quarto frio e vazio.

Pedro lembra agora do grande erro de sua vida. Ele tinha come­tido muitos erros: quando afundou na água, quando Jesus disse

Page 63: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 71

que ele estava proferindo as palavras de Satanás, quando tentou socorrer Jesus com uma espada e realizou a primeira amputação de orelha da história, mas este foi o seu maior erro. Às vezes, cometemos um erro como esse na vida. Parece-nos algo irredimível, imperdoável.

Ele lembra de quando ficou diante da fogueira e decepcionou o seu Deus.

Eles terminam o desjejum e ficam parados diante do fogo, apenas Pedro e Jesus.

Ficam sozinhos, talvez pela primeira vez, desde a negação, crucificação e ressurreição. Pedro está muito fragilizado; ele espera pelas palavras de Jesus como um prisioneiro que espera ouvir o veredito do júri.

Então, ele ouve a pergunta que o magoaria profundamente; a pergunta que o curaria e o traria de volta à vida, a pergunta que ele carregaria até sua morte.

Você me ama?Jesus não pergunta: “Pedro, você se arrepende do que fez? Você

promete nunca mais me decepcionar de novo? Você vai se esforçar mais agora?”.

Murray Harris, um estudioso do Novo Testamento, resume essa história dizendo o seguinte: “o mais importante deve vir primeiro”.

Você me ama?E uma pergunta delicada. Quando você faz essa pergunta, seu

coração está em jogo. É a pergunta de um apaixonado cheio de esperanças. É a pergunta que o pai deseja fazer para o filho desertor, mas tem medo.

Você me ama?Tevye, o leiteiro cujas filhas rejeitaram o casamento arrumado

para se casar por amor, senta com sua esposa um dia, estranhamente tímido, e pergunta a ela numa canção, porque a pergunta é muito delicada para ser simplesmente dita: “Golde, você me ama?”.

Ela não está preparada para essa conversa. Desempenhou o seu papel de esposa daquela cultura, cumpriu com suas obrigações, cuidou da casa e ponto-final.

Page 64: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

7 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

— Você me ama? — ele repete.Ela diz que ele é um tolo, e ele concorda, mas ainda quer uma

resposta. Ela analisa 25 anos de vida: esperanças, sofrimentos, brigas, viver sob o mesmo teto, dormir na mesma cama... o que isso significa?

— Então... — como uma criança, um jovem apaixonado, ele diz — ... você me ama!

— Acho que sim.— Creio que também amo você.— Isso não muda nada — eles cantam juntos — mas, de

qualquer forma, depois de 25 anos, é bom saber.Isso não muda nada, eles continuarão tendo de fazer as mesmas

coisas, tendo de seguir em frente, mas, ao mesmo tempo, isso muda tudo.

Os dois sentam-se no pequeno banco e dão-se as mãos. O relacionamento que eles pensavam ser um arranjo, basicamente um cumprimento de tarefas e obrigações, torna-se uma história de amor. Seus corações estão tão cheios de alegria que mal conseguem falar.

Você me ama?Essa é a pergunta de Jesus e ela não é fácil nem simples de se

responder com sinceridade. Às vezes, penso sobre Jesus, como ele era bom e sábio, e sei que ele é maravilhoso, que sua oferta, sua palavra é a melhor oportunidade que a humanidade já teve.

Sabemos que o amamos.Mas a verdade é que, às vezes, ficamos tão ocupados pensando

em nós mesmos, que não sabemos se realmente o amamos.Agora, apenas Jesus e Pedro estão diante da pequena fogueira,

uma fogueira de carvão.“Simão, filho de João”, Jesus nem usa o antigo apelido, Pedro.

Ele usa seu nome oficial, como se dissesse: “vou admitir que você não quer a antiga intimidade que havia entre nós, vou admitir que você não quer usar o nome que lhe dei”.

“Simão, filho de João, amas-me?”

Page 65: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 7 3

Agora é Jesus que se coloca numa posição vulnerável. Agora Jesus é o apaixonado que espera a resposta do ser amado.

“Sim, Senhor”, Pedro responde, mas sem muita convicção de sua capacidade de conhecer seu próprio coração. Você sabe tudo. Você sabe que sim.

Eu compreendo a resposta de Pedro: Senhor, tu sabes que sim. Eu te amo da melhor forma possível. Quando estou no meu juízo perfeito, eu amo. Quero amar, mais do que posso dizer agora. Nem sei toda verdade sobre o meu coração. Tu sabes, Senhor.

“Apascenta as minhas ovelhas”, Jesus diz. Ame e ensine e proteja e guie e sirva o meu pequeno rebanho que é o que eu tenho de mais importante no mundo. Não abandone o jogo.

Três vezes ele repete isso, até Pedro sentir-se magoado. Por que Jesus fica perguntando? Às vezes, as pessoas acham importante o fato de João usar uma palavra grega diferente para amor na terceira pergunta de Jesus, como se ele fosse se conformar com um tipo inferior de amor por parte de Pedro. Porém, o consenso dos estudiosos do Novo Testamento é que João está simplesmente usando uma “variação estilística”, para evitar a repetição da mesma palavra várias vezes.

A importância da repetição não está nos sinônimos, mas no número de vezes em que a pergunta é feita: três. Pedro não sabe o que sabemos, que ele está sendo curado pelo Senhor da segunda chance.

Não uma, mas três vezes, em pé diante da fogueira, ele negou seu Mestre; não uma, mas três vezes, em pé diante da fogueira, ele confessou seu amor.

Jesus está dizendo a Pedro, está dizendo a qualquer um que já tenha ficado diante da fogueira e decepcionado a Deus, está dizendo também a você e a mim não importa o que tenhamos feito: “Não abandone o jogo. Desenvolva os dons que lhe dei e guarde os planos que tracei para você e dedique-se à igreja. Alimente as minhas ovelhas. Elas precisam de você”.

Page 66: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

7 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

No filme Amigos, sempre amigos, Billy Crystal tenta consolar seu amigo, um personagem cuja vida está em ruínas — seu casamento foi desfeito, sua carreira foi destruída — e que está pronto para terminar com tudo.

Billy Crystal diz a ele: “Comece tudo de novo. Faça como quando éramos crianças. Quando as coisas davam errado, a gente parava e começava tudo de novo. Você pode fazer o mesmo agora. Comece de novo”.

Mas onde vamos conseguir forças e o direito de começar de novo?

Eu dei outra tacada e meus amigos disseram a mesma coisa:— Pegue outro mulligan.— Tem certeza?— Mas é claro — eles disseram. — Sempre fazemos isso.Nesse momento, comecei a ficar preocupado com a integridade

do jogo. Se você continuar a pegar mulligans, a contagem de pontos não faz muito sentido. Especialmente se, como eu, você fizer um monte de tacadas péssimas. Acertei as bolas na água, fora dos limites; usei até quatro mulligans no primeiro buraco.

O motivo de sermos tão liberais com os mulligans naquele dia é porque o jogo não estava valendo. Não estávamos levando muito a sério. Quando se trata de contagem de pontos, os golfistas geralmente se atêm a um nível de verdade, honestidade e integridade semelhante ao dos agiotas. Perto dos golfistas, os pescadores parecem até sinceros. A verdade é que podemos concordar em não marcar uma tacada, mas não estamos enganando ninguém com isso.

Porém, quando o jogo é para valer, a história é outra. Quando o jogo está valendo, é preciso haver justiça. Se você está em um torneio profissional, empata no último bu­raco e faz uma péssima tacada, não pode che­gar e dizer: “Acho que vou usar um mulligan nessa”.

A CRUZ B O L U G A R O N D E SE

ENC ON TRAM O C O M PR O M ISSO

IN A B A L Á V E L D ED e u s c o m a

JU S T IÇ A E SU A E T E R N A

D IS P O S IÇ Ã O EM P E R D O A R .

Page 67: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 7 5

Não existem mulligans no torneio da Associação Profissional dos Golfistas. A integridade do jogo é importante. As regras devem ser seguidas. O jogo é para valer. Você faz a tacada de onde a bola estiver. Se acertar na água, receberá uma punição. Colhe o que semeou. É preciso que haja justiça. O total de pontos é resultado direto do que você fez.

Você compreende o significado disso. A vida é importante. As regras são para valer — pelo menos, as importantes valem. Se Deus é realmente um Deus, ele deve ser justo. Ele não pode dizer: “Hitler, pegue um mulligan. Vamos esquecer o holocausto. Não marque isso. Vamos fingir que nunca aconteceu”.

Alguém precisa marcar o escore — dos campos de concentração de Dachau eTienanmen, da Bósnia, dos tiros perdidos, das crianças molestadas sexualmente e da população pobre e oprimida em muitos países. Um dia, a justiça será feita para que este mundo faça algum sentido. E a Bíblia diz que esse dia chegará. Ela diz que, um dia, a justiça correrá como o rio. Cada um de nós vai calcular os pecados e injustiças que aconteceram em nossas vidas, inclusive você e eu. Todos nós vamos marcar os nossos cartões de resultado.

A Bíblia diz que a cruz é o lugar onde se encontram o compromisso inabalável de Deus com a justiça e sua eterna disposição em perdoar. A cruz é a declaração do repúdio de Deus pelo pecado e por todo o mal decorrente dele. A cruz é a declaração do amor de Deus pelos pecadores e de sua insaciável paixão em redimi-los.

A Bíblia está cheia de exemplos da vontade de Deus de dar uma segunda chance. “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece daqueles que o temem”.

Costumava fazer uma brincadeira com meus filhos na hora de dormir quando ainda eram pequenos.

— Eu não a amo este tanto, nem este tanto, nem este tanto...— dizia, mostrando com as mãos e aumentando cada vez mais a distância entre elas.

Page 68: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

7 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

— Eu a amo esse tantão\ — mostrava, agora, com os braços completamente abertos.

Às vezes, eles tiravam a prova. Estávamos lavando o carro quando uma de minhas filhas entrou no porta-malas, colocou o que estava lá dentro no chão e passou spray em tudo: livros, lençóis, minha raquete de tênis e um vestido novo ficaram tão encharcados e espumando que não dava nem para reconhecer. Minha filha, que na época tinha quatro anos, percebeu pela expressão no meu rosto que tinha cometido um pecado e que o preço dele era a morte.Ela olhou para cima com seus olhos castanhos e abriu os braços o máximo que pôde: — Eu amo você esse tantão — ela disse.

Como poderia castigá-la depois disso?— Tudo bem, docinho. Ajude-me a levar essas coisas para a

garagem então.Eu lhe perdoei, mas é claro que alguém teve de pagar pelo

estrago. Ela contraiu uma dívida pelos livros, roupas e raquete, mas mesmo que eu limpasse o seu porquinho porta-moedas, não faria a menor diferença. Perdoar não depende de simples palavras; há um preço por isso. E alguém tem de pagar por ele.

Foi isso o que aconteceu na cruz, diz a Bíblia. De alguma forma que jamais compreenderemos totalmente, uma dívida impagável foi quitada. E agora podemos recomeçar. Precisamos.

A primeira pergunta não é quanto você ama a Deus, mas quanto Deus ama você.

Deus criou um m undo cheio de mistério e beleza, com cachoeiras, pôr-do-sol, geleiras, trópicos, tortas de banana. Mas ele disse: “Meu amor não se resume nisso”.

Deus lhe deu um cérebro, a capacidade de distinguir o certo do errado, de escolher o bom, a vida. Mas ele disse: “Meu amor não se resume nisso”.

A P R IM E IR A P E R G U N T A NÃO

É O QUANTO VOCÊ AMA A D E U S , MAS

q u a n t o D e u sAM A VOCÊ.

Page 69: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 7 7

Ele lhe deu companhia: professores, amigos, heróis, pessoas com as quais conhecemos a alegria da intimidade e comunhão. Mas disse: “Meu amor não se resume nisso”.

Então, Deus deu Jesus. Era a última tentativa de Deus de nos dizer o quanto somos importantes para ele. O Senhor foi levado à cruz para pagar uma dívida que não poderíamos quitar. Ele foi levado à cruz e Deus disse: “Agora você está livre de todo arrependimento. Chega de culpa. Que cada súplica por justiça seja satisfeita. Agora, finalmente, você compreenderá o lugar que ocupa em meu coração”.

Quando foi levado à cruz, Jesus disse: “Eu amo vocês esse tantão”.

E agora era a vez de Pedro aprender que o Senhor da cruz é também o Senhor da segunda chance.

Warren Bennis fala de um executivo com uma carreira promissora na IBM que se envolveu em um empreendimento arriscado para a empresa e acabou perdendo dez milhões de dólares nessa transação. Ele foi chamado ao escritório de Tom Watson Sr., fundador e líder da IBM durante quarenta anos, uma lenda viva.

O jovem executivo, oprimido pela culpa e medo, adiantou-se:— Acho que o senhor me chamou por causa da minha demissão.

Aqui está. Eu me demito.Watson respondeu:— Você só pode estar brincando. Acabei de investir dez milhões

de dólares na sua educação; não posso aceitar a sua demissão agora.Imagino que Pedro deve ter tido uma conversa como essa com

Jesus. .Pedro fez sua famosa confissão de que Jesus era o Cristo, o

Filho do Deus vivo. Jesus o abençoou, disse que isso lhe havia sido revelado pelo próprio Deus e continuou explicando que era necessário que ele fosse para a cruz. Quando Pedro puxou-o de lado e “começou a repreendê-lo” por isso (“tem compaixão de ti”), Jesus lhe disse que naquele momento era Satanás quem falava por ele.

Page 70: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

7 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

Imagine Pedro dizendo: “Você está certo a meu respeito. Falo impulsivamente; estou sempre metendo os pés pelas mãos. Aqui está a minha demissão”.

E imagine Jesus respondendo: “Você só pode estar brincando. Acabei de confiar uma revelação a você. Não posso aceitar a sua demissão”.

No mar da Galiléia, Pedro desce do barco e começa a caminhar sobre a água. Mas ele desvia os olhos de Jesus. Fica tomado pelo medo e pela dúvida, e se afogaria se Jesus não o salvasse. Jesus diagnostica o problem a com precisão dizendo: “homem de pequena fé”.

Imagine Pedro dizendo: “Você está certo a meu respeito. Sou ótimo em observações contundentes e dramáticas, mas não sou muito bom em confiar. Interiormente, estou cheio de dúvidas e medos. Não é preciso muita coisa para que eu desista. Aqui está a minha demissão”.

“Você só pode estar brincando. Acabei de confiar uma revelação a você. Não posso acei­tar a sua demissão”.

Pedro disse, no momento mais difícil da vida de Jesus: “Eu te seguirei, custe o que custar, não importa o que os outros façam”.

Mas ele não conseguiu segui-lo nem mes­mo por uma noite. Ele negou seu melhor ami­go três vezes.

Imagine Pedro dizendo: “Você estava certo a meu respeito todo esse tempo. Falhei com você completamente no momento em que mais precisava de ajuda. Eu o neguei e o abandonei. Aqui está a minha demissão”.

E Jesus diz: “Você só pode estar brincando. Acabei de confiar uma revelação a você. Não posso aceitar a sua demissão”.

A igreja é o lugar certo para quem precisa de uma nova chance. É isso o que Deus dá.

Ele foi ter com o velho pai Abraão que riu da promessa de Deus e mentiu sobre a esposa; e Deus disse: “Que tal começar de novo?”.

A IG R E JA É O L U G A R CERTO

PARA Q UEM P R E C IS A D E

UM A NOVA CH AN CE. É

IS SO O QUE D E U S DÁ.

Page 71: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Senhor da segunda chance 7 9

Para um pequeno pastor que se tornou rei e cometeu assassinato e adultério, para um profeta que fugiu e foi tirado da barriga de um peixe e queria morrer porque tinha de sentar-se sob o sol quente sem nenhuma videira que lhe desse sombra, para uma nação inteira de pessoas teimosas e idólatras, para um perseguidor chamado Saulo que riu de seu Filho e aterrorizou seu povo, para os pecadores desesperados e solitários, Deus sempre diz: “Que tal começar deD”novo: .

Redimir é a função de Deus. Ele é o pastor das ovelhas des­garradas, o caçador dos tesouros perdidos, o bom pai dos filhos pródigos e tolos. Seu departamento predileto é o de achados e perdidos.

Seu amor não tem limites,Seu perdão não tem tamanho,Seu poder não encontra barreiras conhecidas pelo homem.Ele redime, redime e redime, e está presente neste exato

momento enquanto você lê estas palavras. Ele deseja fazer por você o que já fez por incontáveis bonecos de pano antes de você.

Ele é o Deus do recomeço, o Senhor da segunda chance.Pegue um mulligan.

Page 72: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

C A P

Jesus, o MestEmbora Jesus não fosse filósofo nem teólogo, suas parábolas por si sós fornecem um material de estudo inesgotável tanto para filósofos quanto para teólogos. Esse é o sinal da genialidade suprema de Jesus. Temos o estranho costume, mesmo em se tratando da humanidade de Jesus, de desprezar seu evidente valor intelectual.

C. W . F. Smith

C onheci a sra. Beier há trinta anos. Ela deu aula de piano para a minha irmã e para mim por cinco anos.

A sra. Beier era alemã, completa e irremediavelmente alemã. E, quando digo que é alemã, estou dizendo tudo o que você precisa saber a respeito dela.

Por cinco anos, ela dominou a vida de minha família. Os ou­tros professores de piano de Rockford seguiam um padrão não muito exigente: pratique sempre que puder, siga o seu próprio ritmo. Para a sra. Beier, as coisas não eram assim; nada desse papo furado da educação com liberdade e respeito à capacidade da cri­ança. Se você era aluno dela, tinha de seguir as suas ordens.

Page 73: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

8 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

Praticávamos o quanto ela nos mandasse praticar, pelo tempo que determinasse. Se ela nos mandasse fazer escalas meia hora por dia, fazíamos as escalas meia hora por dia. Ajustávamos o metrônomo no tempo que ela mandava. Sentávamos do modo como ela aprovava, curvávamos os dedos das mãos no ângulo exa­to que ela especificava. Cortávamos as unhas bem curtas para evi­tar que tocassem no teclado, o que era feito muito a contragosto de minha irmã quando ela se tornou adolescente.

A sra. Beier tinha algo que fazia com que qualquer um a levasse a sério como professora. Ela disse aos meus pais, certa vez, que o piano que tínhamos em casa não era apropriado, que precisavam comprar um novo.

Eles compraram um novo piano.Finalmente, chegamos a um ponto em nossa adolescência em

que tínhamos muitas outras coisas a fazer e não queríamos mais tê- la como professora. Tinha chegado a hora de parar. O problema é que ninguém ousava dizer isso à sra. Beier! Não sabíamos se ela ia permitir que parássemos. Sentados à mesa do jantar uma noite, meus pais disseram um para o outro: “Isso é ridículo!”. Por fim, meu pai ofereceu-me cinco dólares para ligar para ela e dar a má notícia por telefone. Como, infelizmente, naquela época ainda não existia secretária eletrônica, tive de dizer tudo diretamente.

Para não dar uma impressão errada, devo apressar-me a dizer que as aulas da sra. Beier não se resumiram apenas a coisas desagradá­veis. Às vezes, isso significava praticar sem vontade, mas, na maior parte do tempo, isso nos trazia grande prazer. Uma única coisa me manteve no jogo: ela tocava como ninguém que eu conhecia.

Até conhecê-la, achava que não era possível que um ser huma­no comum conseguisse fazer aquilo. Às vezes, assim que chegáva­mos, ela nos mandava sentar e tocava Mozart, Beethoven ou Rachmaninov (seu favorito), e era como se fôssemos transporta­dos para outro mundo.

Depois, nos dizia algo que era difícil de acreditar: “Se confia­rem em mim, se vocês se entregarem nas minhas mãos, se fizerem

Page 74: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 8 3

o que disser, um dia conseguirão fazer o que faço. Um dia a m ú­sica estará em vocês”. /

Eu era muito novo e distraído para perceber isso naquela época, mas, quando não estava tocando, os dedos da sra. Beier eram normal­mente dobrados e torcidos, como se estivesse pronta para arranhar alguma coisa. Ela possuía um tipo de artrite aguda. Não podia tocar uma nota sequer sem sentir dor. Tocar partituras inteiras de Rachmaninov, como fazia para nós até o Steinway balançar, deve ter sido uma agonia. Mas ela o fazia porque amava a música. E ela o fazia por nós. Queria nos cativar com a beleza de tudo aquilo, como ela era cativada; queria nos dar esse magnífico presente, por isso suportava uma dor que não dava nem para imaginar.

Como todo grande mestre, o que a mo­via a ensinar era o amor. O amor pela músi­ca. O amor pelos alunos. As verdadeiras lições são sempre uma manifestação de amor.

Quem tem filho sabe disso. E por isso que os pais compram brinquedos educativos, pastam incontáveis horas ensinando seus fi-Olhos a sentar e levantar e dar um passo, comemoram os sons bal- buciados pelos filhos que não se parecem nem um pouco com uma palavra conhecida, grudam figuras e desenhos na porta da geladeira, lêem histórias para as crianças, ensinam lições e deixam que elas os “ajudem” nos afazeres da casa, quando sozinhos pode­riam realizá-los muito mais rapidamente.

Todo grande ensinamento é sempre uma forma de amor. Vemos isso acontecer na história de Anne Sullivan que despertou a alma de Helen Keller. Percebemos isso no círculo de alunos que cerca Sócrates, enquanto ele fala sobre a morte, e procura expressar seu amor por ele. É isso que nos emociona em filmes como Mr. Holland— adorável professor e Sociedade dos poetas mortos-, grandes professo­res que fazem mais do que transmitir informações e fatos registrados. Eles enxergam além de nossa degradação. Eles nos abrem — nossas mentes e corações — para um novo mundo.

TO D O G R A N D E E N SIN A M E N T O É

SE M P R E UM A FO R M A D E

A M O R .

Page 75: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

8 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

Jesus pedia a todos que desejassem segui-lo para que o aceitas­sem como mestre. Ele vivia de uma forma que nenhum homem antes tinha vivido. As pessoas que o viam e ouviam eram trans­portadas para outro mundo.

Então, ele disse coisas que eram difíceis de se acreditar: essa é a sua chance, ele dizia. Se você confiar em mim, se fizer o que estou dizendo, se colocar sua vida em minhas mãos, um dia poderá vi­ver como eu. Um dia a música estará em você.

Mas, primeiro, você precisa aceitar Jesus como seu Mestre.Um século atrás, um debate sobre Jesus que já durava certo

tempo tornou-se mais conhecido. De um lado, dizia-se que o Je­sus da história era simplesmente um mestre, embora muito im­portante e provavelmente excelente. De outro dizia-se que “não, ele não era apenas um sábio. Ele realmente era divino. O Jesus da História realmente é o Filho de Deus”.

Minha tradição e entendimento diz que o Jesus do Novo Testa­mento era completamente humano e completamente divino, que hoje vive e se envolve ativamente nos assuntos humanos.

Mas nesse debate aconteceu uma coisa ruim. As pessoas que acreditavam na divindade de Jesus começaram a desconsiderar o papel do trabalho doutrinário de Jesus. Supunha-se que, se as pes­soas começassem a falar dos ensinamentos do Senhor, isso seria uma forma de desacreditar sua divindade. Alguns setores da igreja até alegaram que grande parte de seus ensinamentos, como o Ser­mão da Montanha, não se aplicava à igreja nem mesmo nos dias de hoje. Por isso, a importância de seus ensinamentos foi forte­mente desprezada.

Mas ensinar não é algo que Jesus fazia apenas para passar o tempo até a crucificação. Não era uma parte opcional e dispensá­vel de seu ministério. Quando ensinava, não estava simplesmente ocupando o tempo até chegar a hora da morte.

Seus ensinamentos eram uma parte insubstituível de seu mi­nistério. Ele veio para nos ensinar como são as coisas. Frederick Buechner diz:

Page 76: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 8 5

O que é o reino de Deus? [Jesus] não fala de uma reorganização da sociedade como possibilidade política ou da doutrina da sal­vação como doutrina. Ele fala de coisas como encontrar um anel de diamantes que se considerava para sempre perdido, ga­nhar na loteria. Ele faz insinuações em vez de explicar detalhadamente, evoca em vez de explicar. Ele pega pela surpre­sa. [...] Parece-me que, na maior parte do tempo, as parábolas podem ser lidas como piadas tão sagradas e divinas a respeito de Deus, do homem e do próprio evangelho quanto a mais sagrada e divina de todas as piadas.

Os discípulos de Jesus foram em grande parte atraídos para ele porque seus ensinamentos faziam muito sentido. Ele era, entre outras coisas, simplesmente o homem mais inteligente que eles já tinham conhecido. O que ele ensinava era coerente com sua pró­pria vida e com a natureza das coisas. Eles nunca tinham visto alguém viver daquela forma, nem tinham idéia de que isso era possível. E ele disse que, se confiassem nele, se colocassem suas vidas nas mãos dele, um dia seriam capazes de ter esse tipo de vida também. Um dia a música estaria neles.

Eles descobriram que podiam confiar nele como seu mestre. E exatamente por terem confiado nele como seu mestre que, depois da morte e ressurreição de Jesus, tiveram condições de confiar nele como seu Salvador.

Portanto, se realmente quisermos sentir o amor de Jesus, preci­samos aceitar um dos presentes mais importantes que ele tem a nos dar: seus ensinamentos. Precisamos convidar Jesus para ser o professor particular de nossas vidas. Precisamos acreditar que ele está certo sobre todos os assuntos. Assim, se discordarmos dele, certamente será porque estamos errados ou não entendemos o que ele disse. Precisamos permitir que Jesus nos ensine a viver.

O próprio Senhor contou uma história sobre a importância fundamental de seus ensinamentos. E uma de suas histórias mais famosas. É sobre o comércio da construção. Era um negócio com o qual ele estava extremamente familiarizado, pois assumira o tra­

Page 77: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

8 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

balho do pai de empreiteiro independente. A história fala de dois homens que constroem casas, sendo que um usa areia e o outro, pedra como matéria-prima.

Essa história tem algo de universal que a torna interessante em vários aspectos. Há uma versão modesta dela que se tornou uma das histórias mais conhecidas da literatura americana. Ela já inspi­rou fdmes, músicas e incontáveis livros. A seguir estão os elemen­tos básicos que ela contém. Veja se consegue adivinhar que história é essa:

• As personagens principais são construtores: cada um deles constrói uma casa.

• Nem todas as casas são feitas da mesma forma; há uma com­paração entre a construção inteligente e a tola.

• Cada casa passa por um teste. A que foi construída com in­teligência resiste; a que não foi cai.

Parece familiar? É a história dos três porquinhos.Cada porquinho constrói uma casa. Uma delas é feita de palha

e sapé, a outra de madeira e a outra de tijolo, mas cada um cons­trói a sua.

Todas enfrentam o temido Lobo Mau. Primeiro, os porquinhos ouvem o lobo pedir educadamente para entrar, o que recusam com uma afronta (‘ não, não, de jeito nenhum”). Depois, eles enfrentam a mesma ameaça do inimigo pneumaticamente abastecido.

Dois dos porcos construíram suas casas com sucata. Eles nunca pararam para se perguntar se ela resistiria ao lobo. Somente a casa construída com inteligência não é derrubada.

Nessa parábola, Jesus na verdade conta duas histórias: a história de um homem inteligente e a de um tolo. (Outros exemplos são a história do pai que pediu aos dois filhos para trabalharem no campo e a história das cinco virgens sábias e das cinco néscias.) Earl Palmer observa que a forma de entender esse tipo de parábola é compará- las e descobrir suas semelhanças e diferenças. Quando você conse­

Page 78: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 8 7

guir enxergar a diferença, entenderá o que Jesus estava querendo dizer.

C a d a P essoa C o n s t r ó i u m a C asa D iferente

Há um detalhe que nunca muda, que não é opcional: todos so­mos construtores de casas.

Para entender essa idéia, podemos trocar a palavra “casas” por “caráter” ou “almas”. Estamos todos construindo uma vida. Isso acontece, basicamente, pelas escolhas que fazemos, diz Palmer.

Cada compromisso que aceitamos, cada amizade que fazemos, cada habilidade que desenvolvemos ou negligenciamos, cada pro­messa que honramos ou quebramos, torna-se parte de nossas ca­sas.

Você está construindo a sua vida. A qualidade das escolhas que você faz determinará a qualidade do seu caráter, da sua alma.

A casa é uma metáfora comum na Bíblia.No entanto, existem vários tipos de materiais que podem ser usados para construir sobre esse alicerce. Alguns usam ouro, prata e pedras preciosas; e outros constroem com paus, com feno e até mesmo com palha! Está prestes a chegar um tempo de prova, no Dia do Julgamento de Cristo para verificar-se que tipo de material cada construtor usou. O trabalho de cada um será provado por meio do fogo, para que todos possam ver se ele conser­va seu valor ou não, e o que é que verda­deiramente foi realizado. Então, todo construtor que edificou sobre o alicerce com materiais certos, cujo trabalho ain­da permanecer, esse receberá a sua re­compensa. Entretanto, se a casa que ele edificou queimar-se, ele terá um grande prejuízo.

Cada um de nós, e ninguém mais, é responsável por sua pró­pria casa.

A Q U A L ID A D E D A S E SC O L H A S Q U E VOCÊ FAZ

D E T E R M IN A R Á A Q U A L ID A D E D O S E U C A R Á T E R , D A SU A ALM A.

Page 79: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

8 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

Mas isso é difícil de aceitar. Tentamos encontrar alguém em quem colocar a culpa. H á alguns anos, uma agência de notícias divulgou a história de um homem na Itália que foi preso por bigamia. Aliás, ele tinha 105 esposas. Quando as autoridades lhe perguntaram por que isso tinha acontecido, ele respondeu que tinha sido mal aconselhado por seus advogados. (E difícil acreditar que seus advogados diriam: “Procure manter um nú­mero aceitável de esposas; umas cem, digamos. Só tome cuidado para não exagerar”.)

Essa verdade é tão grande que podemos acabar passando a vida toda fugindo dela. Erich Fromm escreveu em seu livro O medo à liberdade que muitas pessoas se recusam a realmente fazer uma escolha própria e a assumi-la porque querem evitar a responsabili­dade e a ansiedade que inevitavelmente acompanham a liberdade do ser humano. Podemos ver isso, em uma situação extrema, em seitas e comunidades. Igrejas autoritárias freqüentemente crescem porque muitas pessoas buscam apenas alguém que as poupe da pressão de ter de escolher. Porém, nossas tentativas de fugir da res­ponsabilidade geralmente são mais sutis.

Uma jovem decide onde vai estudar, que carreira seguir, quem namorar e com quem se casar, tudo baseado no que ela acha que seus pais aprovariam. Ela nunca questiona realmente as crenças, valores ou convicção religiosa ao redor dos quais sua vida foi ar­ranjada. Nem passa pela cabeça dela que, ironicamente, seus pais são muito mais inseguros a respeito dessas coisas do que ela ima­gina. Até sua casa é decorada de uma forma, pensando em agradar seus pais.

Nada disso é intencional. Se perguntarem, ela vai teimar que tem “personalidade própria”. Mas a verdade é que ela abdicou de sua individualidade. Ela não está construindo a própria casa, mas a casa de outra pessoa. Porém, ela vai ter de viver ali de qualquer forma.

Paul Tournier escreveu: “Viver é escolher. É por meio de esco­lhas sucessivas e resolutas que o homem constrói a sua vida”.

Page 80: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 8 9

Algumas pessoas têm tanto medo de se decepcionar com a pró­pria escolha que evitam tomar qualquer decisão. Mas, então, é nessa casa que elas vão viver. Outras têm medo de se decepcionar e por isso adiam as decisões. Aí, também vão ter de viver nessacasa.

A seguir estão alguns sinais de quem não está assumindo a res­ponsabilidade por sua própria casa:

• Sou exageradamente ansioso em agradar. Fico esperando que os outros aprovem a minha escolha.

• Não consigo tomar uma decisão. Não tenho certeza do que realmente penso que está certo, que é bom ou mesmo inte­ressante. Hesito em tomar uma atitude.

• Sou inseguro. Basta uma pequena crítica de alguém que me interessa para eu ficar arrasado.

• Não sou franco. Em vez de dizer abertamente aquilo em que acredito, calculo e escolho minhas palavras para dizer algo que se ajuste melhor ao que acho que a outra pessoa quer ouvir.

Somos todos construtores de casas. Não temos alternativa. Pre­cisamos construir as nossas vidas.

T o d o o M u n d o tem de Enfrentar a T empestade

Há mais um detalhe simples: todo o mundo tem de enfrentar a tempestade. O lobo bate à porta de cada um dos porquinhos.

Aliás, Jesus é bastante explícito sobre essa parte da história. A descrição da tempestade que se abate sobre os dois homens é idên­tica, palavra por palavra: “Desceu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos, e deram contra aquela casa”.

Jesus quer deixar bem claro: não se trata de uma história sobre evitar tempestades. Não se pode construir uma casa onde não haja tempestades.

Page 81: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

9 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

Gostaríamos de uma história com dois climas, dois lugares com climas diferentes, digamos, o meio-oeste e o “cinturão do sol”: “e a casa em Illinois era enterrada sob a neve, engolida pela chuva, destruída pelo furacão; mas a casa na Califórnia era banhada pelo sol e pelo surfe”.

Gostaríamos que existisse um lugar onde o lobo nunca batesse à porta.

Nossos amigos Richard e Elizabeth, mais do que ninguém, ado­rariam encontrá-lo. E ele é advogado e ela, psicóloga; eles eram pessoas atraentes, prósperas, devotadas a Deus e um ao outro. Eles se casaram depois de já estarem bem estabelecidos no campo pro­fissional. Por fim, o nascimento de um filho completou a felicida­de de suas vidas um tanto ocupadas.

Um dia, Richard sofreu uma queda andando a cavalo. Os mé­dicos do pronto socorro tiraram uma radiografia, deram-lhe algo para a dor, disseram que ficaria de repouso por alguns dias e de­pois lhe deram alta. No final daquela semana, a dor ficou tão insuportável que ele teve de voltar. Dessa vez, um especialista exa­minou os raios x e seu rosto ficou branco. Ele mandou Richard não se mover, nem mexer a cabeça, nem respirar além do necessá­rio. Acontece que ele tinha sofrido a mesma lesão na coluna que o ator Christopher Reeve, e qualquer movimento em falso ou mes­mo um espirro poderia causar uma paralisia permanente. A vida encantadora de antes, de repente, foi interrompida. Richard cor­ria o risco de ter de passar a vida numa cadeira de rodas ou de morrer durante a cirurgia. Mas isso não aconteceu. Foi um alívio. Tudo ficaria bem. Ele foi para casa, e ambos se sentiram aliviados e agradecidos.

Mas estavam tão aliviados que se esqueceram de confirmar os resultados de outra cirurgia. Pouco antes do acidente, Richard tinha passado por um pequeno procedimento cirúrgico (como os médicos dizem) para não ter mais filhos. Mas, depois de toda a agitação dos eventos que se sucederam, eles esqueceram de ver se o procedimento tinha alcançado o efeito desejado.

Page 82: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 91

Não tinha. Eles descobriram que teriam outro filho. Essa notí­cia não foi muito bem recebida, pois agora tratava-se da vida de duas pessoas ocupadas de quarenta e poucos anos. Mas eles esta­vam se conformando com a idéia.

Então, vieram outras notícias. O bebê não estava se desenvol­vendo normalmente. Havia algo errado. A criança tinha síndrome de Down.

Dessa vez, o alívio não chegaria. Nenhuma cirurgia corretiva era capaz de fazer com que tudo voltasse a ser como antes.

Alguns amigos bem-intencionados deram uma contribuição à sua dor: “Deus deve sentir um amor especial por vocês, para lhes dar um presente como esse”. “Todo mundo está de olho em vocês para ver como irão reagir. Tenho certeza de que farão a coisa certa.”

Isso não era um presente, era uma tempestade. Há presentes que vêm no seu despertar, mas não deixam de ser uma tempestade de qualquer maneira. Se você perguntasse a Elizabeth e Richard, eles diriam que essa frágil vida é incrivelmente preciosa para eles, que foi uma bênção e enriqueceu suas vidas. Mas eles também diriam que trocariam esse enriquecimento num piscar de olhos se essa frágil vida pudesse receber a cura, a reabilitação e a perfeição que Deus pretendia que todos os seus filhos tivessem.

Quando eu era criança, achava que qualquer coisa errada que acontecesse poderia ser consertada. Se perdesse alguma coisa, ela poderia ser encontrada ou substituída; se cometesse um erro, meus pais poderiam consertá-lo. Entretanto, já passei por várias tem­pestades desde então. Aprendi que estava redondamente errado com a ilusão de que passaria ileso pela vida. Agora, olho para a minha família, para meus filhos e fico imaginando o que ainda acontecerá nas vidas que habitam a minha pequena casa. E fico feliz por não saber dizer. Já basta saber que haverá tempestades.

Jesus nos disse: “não se preocupe com o dia de amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal”. Preocupação hoje, preocupação amanhã. Esta é a profecia.

Page 83: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

9 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

T empestade para T estar a C asa

É na tempestade que a estabilidade da casa é revelada. O alicerce não é algo interessante. Ninguém visita uma casa e diz: “Mas que ótimo alicerce vocês têm!”. Ninguém se importa. Até chegar a tempestade.

E a maior tempestade a que Jesus se referiu é o dia do julga­mento. Um dia nossas vidas serão examinadas por Deus. Cada graveto e tronco de árvore, cada palavra e feito passarão por um exame minucioso. Um dia, a verdade sobre nossas casas senLre- velada.

Cada decisão que tomamos entra para a construção das nossas casas e vidas; portanto, não dá para transgredir os ensinamentos de Jesus sobre o modo que as coisas são e ainda querer que tudo dê certo. Fazer isso, é querer destruir as sementes do universo.

Você pode colar em uma prova na escola. Você faz isso pensan­do em ter uma boa nota e ganhar aplausos, para conseguir passar de ano. Mas exatamente por saber que trapaceou, a nota e os aplau­sos e o diploma perdem todo o sentido e satisfação que possam ter ou proporcionar. Não dá para viver com eles; eles não podem se tornar parte de sua casa.

Talvez você use a raiva ou a manipulação para conseguir o que quer de seus colegas de trabalho, amigos e até da família. Você sabe como convencer as pessoas. Mas precisamente por causa des­ses artifícios, você não consegue a intimidade que tanto deseja ter com eles. Não dá para viver com esses relacionamentos; eles não podem se tornar parte de sua casa.

Isso acaba se tornando a verdade a seu respeito. Se não apren­dermos agora, chegará um dia em que isso ficará bem claro. Todos nós temos de enfrentar a tempestade.

Todo aluno tem de enfrentar o dia da prova. O professor dedi­cado não procura poupar o aluno disso, mas prepará-lo para esse momento. O dia da prova simplesmente revela o que já é uma realidade. Por mais difícil que seja enfrentar a verdade, é melhor fazê-lo do que se esconder. O dia do julgamento — a história

Page 84: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 9 3

final — é simplesmente uma outra forma de falar sobre o dia em que a verdade será final, completa e absolutamente revelada.

M o m e n t o de D ec isão : Q ual é o A licerce?

Isso nos traz à variável na história de Jesus. Todo o mundo cons­trói uma casa — tanto o homem inteligente quanto o tolo, cada um dos porquinhos. E todo o mundo enfrenta tempestades; o lobo bate em todas as portas.

A questão é: sobre o que você vai construir a sua vida? Pedra ou areia? Com que material: tijolo ou palha? Qual será o alicerce? No que você vai confiar acima de tudo?

Jesus disse que a má escolha é construir uma casa sobre a areia. É colocar toda a sua confiança naquilo que não poderá resistir às tempestades da vida, apostar que se vai al­cançar a satisfação suprema de algo que não a vida guiada pela sabedoria, pelo poder e pela dedicação de Deus.

O homem que construiu sobre a areia certamente encontrará sua própria destrui­ção. A pergunta óbvia é: como ele foi entrar nessa enrascada? Observe que, de acordo com Jesus, ele não planejou deliberadamente fazer alguma maldade. Jesus não o chama de perverso. O adjetivo que Jesus usa, com precisão cirúrgica, é “tolo”.

Quando as crianças fazem alguma tolice, os pais, numa busca inútil de significado e sentido, sempre fazem a mesma pergunta. São apenas duas palavras: “Por quê?”. Por que você rabiscou a parede com tinta permanente? Por que você colo­cou a bicicleta estrategicamente atrás do carro para que ele passas­se por cima dela e a entortasse? Por que vocês fizeram um concurso para ver quem conseguiria enfiar o maior fio de macarrão dentro do nariz do seu irmão?

T o d o a l u n oTEM D E

E N F R E N T A R O D IA D A PROVA. O

P R O F E S S O R D E D IC A D O NÃO

P R O C U R A PO U PA R O

A LU N O D IS S O , M AS P R E P A R Ã -L O

PARA E S S E M O M E N T O .

Page 85: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

9 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

E as crianças geralmente respondem: “Não sei”. (Aparentemente a pergunta faz parte das instruções finais antes de nascermos: “Vão lhe perguntar um monte de porquês. Fique firme na resposta de sempre”.)

É claro que elas não sabem. Se elas agissem segundo a razão ou a lógica, não teriam feito nada disso, em primeiro lugar. “Sim­plesmente não sei. Aconteceu. Parecia uma boa idéia naquela hora”.

Se fôssemos perguntar ao homem da história de Jesus: “Seu tolo, por que você construiu sobre a areia?”, o que você acha que ele diria?

“Não sei. Aconteceu. Parecia uma boa idéia naquela hora.”Ninguém planeja construir sobre a areia. Nenhum arquiteto

diz: “Veja um local arenoso. Uma boa tempestade varreria a casa completamente nesse lugar. Vamos construir aqui”.

A vida é assim. Ninguém se senta e planeja ter uma existência medíocre. Nenhum casal jura fidelidade pensando em se divorci­ar um dia. Ninguém guarda rancor pensando em se tornar uma pessoa amarga e infeliz. Ninguém tem filhos pensando em ficar tão ocupado a ponto de nem conhecê-los. Ninguém se senta e planeja ir para o inferno.

Apenas acontece. O teólogo Neal Platinga escreve:O pecado, além de um erro, é uma burrice. Na verdade, onde quer que os tolos estejam, o pecado é a atração principal. O peca­do é o exemplo de estupidez mais impressionante do mundo. [...] Pecado é usar a receita errada para manter a saúde; pecado é abas­tecer o tanque com o combustível errado; pecado é pegar o cami­nho errado para chegar a casa. Enfim, o pecado é inútil.

Garrison Keillor escreve sobre David Ingqvist, pastor luterano que se desespera com a completa estupidez do comportamento humano:

David lia a coluna Dear Abby de vez em quando e ficava es­pantado com a freqüência com que ela recomendava os pastores de igrejas. “Fale com o seu pastor”, ela respondeu a uma garota de

Page 86: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre 9 5

catorze anos que se dizia apaixonada por um mecânico de carro (casado) de 51 anos, preso por estupro. Por que Abby acha que um pastor saberia lidar com isso?

O modesto senhor estava mergulhado em seus estudos, fo­lheando o Apocalipse quando, de repente, a porta se abriu e uma adolescente vestida com uma blusinha curta entrou, cho­rando de paixão por um homem casado, com o triplo da sua idade. O que o bom reverendo podia fazer? Que tal você pas­sar duas semanas fazendo artesanato no Acampamento Tonawanda?

Pobre homem. Tudo parecia tão claro para ele há apenas al­guns minutos e, agora, enquanto ela contava sobre o seu amor por Vince — sobre a sua crença na inocência dele, sobre o fato de a esposa dele nunca tê-lo amado, pelo menos não de verdade, como ela, Trish, amava, e sobre o fato de que, apesar da idade dele e de eles nunca terem conversado a não ser por cartas, havia algo indescritivelmente sagrado e precioso entre eles —, tudo o que o pastor conseguia pensar era: “Você está louca! Não seja ridícula!”. Não serás ridícula. Paulo diz: “Vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como sábios^jgmindo o tempo, porque os dias são maus ’. Como isso se aplica especifi­camente a Trish, ao amor por correspondência [...]? Quando Paulo escreveu essa maravilhosa frase, provavelmente estava sen­tado em um local alto de Atenas; era uma noite calma, e todos os néscios dormiam. Ele podia escrever a pura verdade que ne­nhum tolo estaria por perto para dizer: “Como? O que você quer dizer? Você está dizendo que eu não devo entrar para o recorde de caminhada de costas a longa distância? Mas eu sei que posso fazer isso! Eu sou bom nisso! Eu posso andar quilôme­tros de costas!”.

Por Jesus nos amar, ele veio com o mestre. Ele veio para oferecer aos tolos constru tores um alicerce seguro e aos porquinhos des­cuidados um lugar seguro para viver. Ele veio para nos ensinar a viver. E diz que a m aior oportun idade que jam ais terem os é cons­tru ir nossas vidas sobre as suas palavras a respeito de D eus e do m undo.

Page 87: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

9 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

Para construtores degradados como nós, cada palavra dos ensinamentos de Jesus é um presente de amor. E podemos aceitar um tijolo de cada vez:

P a r a c o n s t r u t o r e sD E G R A D A D O S COMO N Ó S , CADA PALAVRA D O S E N S IN A M E N T O S

D E J E S U S É U M P R E S E N T E D E AM O R.

• Confrontando alguém que nos pre­judicou, embora preferindo maldizer essa pessoa para os outros, conhecemos a alegria de um relacionamento resgata­do — ou, pelo menos, a satisfação de ter a consciência limpa e descobrir que Jesus estava mesmo certo.

• Dando um dinheiro que não faltaria, conhecemos a alegria de um coração mais generoso — ou, pelo menos, de um coração que é um pouco menos mesquinho e descobrimos que Jesus estava mesmo certo.

• Contando uma história direta e francamente, mesmo que­rendo mudá-la para nos pintar como heróis, conhecemos a alegria de ser verdadeiros e descobrimos que Jesus estava mesmo certo.

Estamos construindo a nossa casa com a sabedoria que recebe­mos com cada tijolo.

A

C o m o E a C asa Q ue V o cê Está C o n s t r u in d o ?

Uma das casas mais estranhas dos Estados Unidos é conhecida como Winchester House, no litoral. Ela foi construída pela sra. Winchester, cujo marido enriqueceu por conta do rifle associado ao seu nome. A sra. Winchester perdeu o marido e seu único filho e, por pesar, culpa ou motivos agora desconhecidos, tornou-se obcecada pelo ocultismo. Ela deu início a um enorme projeto aparentemente baseada na crença de que, enquanto continuasse a construir sua casa, não morreria.

É uma estrutura extraordinária. A construção precisou de dezesseis carpinteiros trabalhando em tempo integral por trinta e

Page 88: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Jesus, o Mestre y 97

oito anos. A estrutura total (que depois foi parcialmente destruída por um incêndio), continha duas mil portas, 160 mil janelas — mais do que o Empire State Building. As portas de entrada foram instaladas pela exorbitante quantia de três mil dólares. Elas foram usadas apenas uma vez: pelo homem que as colocou. Há corredo­res e entradas para todo o lado, passagens secretas e outras excen­tricidades que são difíceis de entender: escadas que morrem no teto, portas com paredes de tijolo por trás. Tudo isso foi feito aparentemente para confundir a Morte.

A construção ainda não tinha acabado quando/a Morte chegou e não ficou nem um pouco confusa. A Morte tem um ótimo sen-so de direção.

Depois da morte da sra. Winchester, foi preciso oito caminhões trabalhando em tempo integral por seis semanas e meia para re­bocar todo o material de construção e sucata para fora da casa. Eles fizeram isso por 38 anos, e essa era a última vez. Eles vieram para pegá-la.

E uma casa impressionante. Mas foi construída sobre a areia.Bem, porquinho, como vai ser? Palha ou tijolo? Pedra ou areia?Construam rápido seus castelos de areia, porquinhos, diz a his­

tória. Façam uma grande e impressionante construção e decorem- na com coisas maravilhosas. Mas não se esqueçam de uma coisa. Não se esqueçam que um dia o caminhão virá para levar tudo embora. Não se esqueçam que um dia a Morte virá. Ela não se confundirá. Ela saberá exatamente onde procurar. E ela vai bufar e soprar até a sua casa cair.

Não se esqueça que o mesmo Jesus que veio para ser o seu Sal­vador, também veio para ser o seu mestre. E ele é o ser mais sábio que já existiu. E por isso compartilhou seu conhecimento conosco. Compartilhou, apesar disso ter-lhe custado tanto que nem pode­mos imaginar. Ninguém que construiu sua casa sobre a verdadeira compreensão das palavras de Jesus jamais se arrependeu.

Não se esqueça de que está chegando o dia em que sua casa, sua vida, será testada por Deus.

E a casa de pedra agüentou firme.

Page 89: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amadoEstamos acima de todas as coisas amadas — essa é a boa nova do evangelho. [...] Estar entre aqueles que acreditam que apenas talvez essa mensagem esteja realmente certa deve ser como estar entre os que acabaram de ganhar na loteria.

Frederick B uechner

U m a P arábola d a Felic idade

H avia uma garota cujos pais a levaram para o santuário dos Arcos Amarelos. Lá, ela encontrou a oportunidade de com­prar uma mistura de comida com brinquedo que alguém, num

momento de genialidade de marketing, chamou de Lanche Feliz.— Compra pra mim — ela pediu aos pais. — Eu quero um

desse. Quero de qualquer maneira.— Não — seus pais responderam. — O brinquedo não passa

de uma coisa banal que só serve para aumentar o preço da emba­lagem além do seu valor real. É muito caro. Não vamos comprar.

Mas vocês não entendem, ela pensou. Ela sabia que eles não esta- nam apenas comprando batatas fritas, McNuggets e um adesivo de dinossauro; eles estariam comprando a felicidade. Ela tinha

Page 90: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

100 A m o r a l é m d a r a z ã o

certeza de que tinha um pequeno McVazio no fundo de sua alma: “Nossos corações não terão sossego enquanto não encontrarem a paz em um Lanche Feliz”.

Então ela explicou:— Eu quero um Lanche Feliz mais do que qualquer coisa no

mundo. Se vocês me derem, prometo que não vou pedir mais nada. Nunca mais. Não vou mais reclamar de nada nem pedir nada. Se vocês me derem o Lanche Feliz, ficarei satisfeita pelo resto de minha vida.

Pareceu uma boa barganha para seus pais, por isso eles com­praram.

E funcionou.Ela cresceu e tornou-se uma mulher satisfeita, agradecida e ale­

gre. Ela viveu com serenidade e generosidade. Sua vida teve mo­mentos difíceis: seu marido era um parasita e abandonou-a com três filhos pequenos e sem dinheiro. Seus filhos também foram uma decepção: largaram a escola, sugaram suas magras economias e finalmente sumiram sem deixar rastro. Quando ela atingiu a terceira idade, a ajuda da Previdência Social foi cortada e ela teve de viver pensando apenas na sua sobrevivência.

Mas ela nunca reclamou. Ela tinha conseguido o seu Lanche Feliz. E sempre se lembrou disso. Lembro-me do Lanche Feliz, di­zia a si mesma. Que alegria ele me trouxe. Exatamente como ela havia previsto, ele lhe trouxe grande felici­dade. Ficou agradecida pelo resto da vida.

A vida tem alguma coisa a ver com isso?Você acha que depois de algum tempo a cri­ança vai entender tudo e dizer: “Sabe de uma coisa? O Lanche Feliz nunca vai me fazer feliz para sempre; não vou cair nessa histó­ria de novo”. Mas não é isso o que acontece.Quando a emoção toma conta, ela precisa de mais uma dose, de outro Lanche Feliz.Ela continua comprando, e ele continua não

SÓ UM A CRIANÇA SK R IA TÃO TO LA

A PONTO D E A C R E D IT A R Q U E

UM A M UDANÇA NO CU RSO DO S

ACONTECIM ENTOS L H E TRARIA A

SA TISFA Ç Ã O E T E R N A .

Page 91: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amador

101

satisfazendo. Na verdade, a única pessoa para quem o Lanche Fe­liz traz felicidade é o sr. McDonald. Você j á parou para_pgnsar por que o Ronald McDonald está sempre com aquele sorriso estam^ pado no rosto? Por causa de bilhões de Lanches Felizes vendidos.

É claro que somente uma criança poderia ser tão ingênua. Só uma criança seria tão tola a ponto de acreditar que uma mudança no curso dos acontecimentos lhe traria a satisfação eterna.

Talvez não. Pode ser que, quando a gente cresce, não fica neces­sariamente mais inteligente; só o Lanche Feliz é que fica mais caro.

Todos os dias somos bombardeados por mensagens que ten­tam nos convencer de duas coisas: que estamos (ou deveríamos estar) insatisfeitos e que a satisfação está a um passo de distância: “use tal coisa, compre tal coisa, coma tal coisa, vista tal coisa, ex­perimente tal coisa, guie tal coisa, passe tal coisa no cabelo”. As coisas que você pode comprar apenas para satisfazer seu cabelo são inacreditáveis: você pode lavar os cabelos, condicionar, usar musse ou tintura, fazer permanente ou alisamento, fazer parar de aescer onde não deve e fazer nascer onde não cresce.

As pessoas estão mais saudáveis, limpas, ricas e bem informadas do que nunca. Vivemos mais tempo, comemos melhor, vestimos roupas mais quentes, trabalhamos menos e nos divertimos mais do que em toda a história da humanidade. Mas estamos mais feli­zes? Ou não passamos de limpos, saudáveis e bem vestidos insatis­feitos? A busca desesperada por qualquer Lanche Feliz que estejamos procurando acaba se tornando uma busca banal.

> A Frustração d a B usca I n ú til

Há alguns anos, quando o jogo tinha acabado de ser lançado, minha esposa e eu passamos uma noite frustrante jogando Trivial Pursuit com outro casal. Foram raras as vezes em que alguém con­seguiu responder corretamente a uma pergunta. Ninguém estava se divertindo com o jogo, mas não conseguíamos parar de jogar. Os teóricos no assunto dizem que o comportamento mais difícil

Page 92: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 0 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

de se controlar é aquele que é reforçado em intervalos intermiten­tes. Isso explica por que foi tão difícil parar de jogar o Trivial Pursuit. A história mais absurda que apareceu foi quando a esposa do ou­tro casal tirou a pergunta: “Qual a cor do colar da Mona Lisa?”. Acontece que minha esposa tinha visto o quadro há pouco tempo e lembrou que a Mona Lisa não usa nenhum colar! O jogo tinha se tornado tão irritante que começamos a apenas ler as perguntas. Nada é mais frustrante do que passar uma noite numa busca inú­til — quanto mais passar um dia inteiro numa busca inútil.

Ninguém quer gastar seu tempo com coisas inúteis: esperar na fila, ficar preso no tráfego, realizar tarefas sem objetivo. Viktor Frankl, um psiquiatra vienense e sobrevivente do holocausto, em sua obra Em busca de sentido, escreveu que um dos aspectos mais humilhantes e destrutivos dos campos de concentração era ter de cumprir tarefas planejadamente sem sentido, como mover pilhas de terra indefinidamente de um lugar para outro sem motivo ne­nhum. Sou capaz de agüentar qualquer “procedimento” contanto que haja um “motivo”, ele diz.

Mas as pessoas são capazes de realizar tarefas não apenas por um dia, mas por semanas e anos para, depois, perceber que elas não fazem sentido nenhum. “Vaidade de vaidades”, diz o autor de Eclesiastes. “Tudo é vaidade! Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol? [...] Todas as coisas são canseiras, mais do que ninguém o pode declarar. Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir.” A lista não termina por aí: a busca pelo prazer supremo, fama, fortuna, nada disso conse­gue trazer a felicidade eterna. Um dia a alegria termina. As gran­des conquistas acabam se tornando banalidades. Uma vida inteira de frustração, voltada para uma busca inútil, é fatal para o espírito humano.

Richard Mouw, estudioso da ética, foi convidado por alguns de seus colegas pastores para assistir a um show dos Rolling Stones, no Rose Bowl, porque eles queriam fazer uma reflexão teológica sobre a cultura popular. Então, lá estavam eles: um grupo de clé­

Page 93: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 0 3

rigos de meia-idade, na turnê Voodoo Lounge, ligando para seus filhos adolescentes e levantando o telefone para o alto para que eles pudessem ouvir os Red H ot Chili Peppers esquentando o púbico e acreditar que os pais deles estavam mesmo ali.

Um dos pastores perguntou a Mouw: “Há 85 mil pessoas aqui; mais do que todas as igrejas e sinagogas juntas de Pasadena conse­guiriam reunir num fim de semana. O que diria a essa gente se tivesse uma oportunidade?”.

Mouw não fazia a menor idéia... até que Mick Jagger começou a cantar uma das marcas registradas dos Stones: Satisfaction. O i­tenta e cinco mil pessoas começaram a cantar junto com ele: “I cant get no satisfaction. [...] But I try” [“Não consigo ficar satis- feito... Mas estou sempre tentando”!.

Mick Jagger e 85 mil fãs chegaram à mesma conclusão que o autor de Eclesiastes. Muita comida, muito sexo, muita fama, for­tunas incalculáveis, muito poder. Podemos ser bastante hábeis para conquistar tudo isso, mas sem ter nenhuma satisfação. Todas essas buscas acabam se tornando banalidades. A nossa sede não morre, mas nunca conseguimos satisfazê-la.

Por que somos tão frustrados e insatisfeitos?_A resposta, por mais incrível que pareça, é que nossa frustração vem do próprio Deus. Veja o que Paulo escreveu para Roma: “Pois a criação ficou sujeita à vaidade [frustração], não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”.

A situação, no caso, é Deus “sujeitar a criação à frustração”. Deus sabia que, depois da queda, tentaríamos impor outros deu­ses, entregar nossas vidas à busca do prazer, riqueza, poder ou status. Por isso, ele disse que uma das conseqüências do pecado original seria que nenhuma dessas coisas traria “satisfação para o espírito”. Nossa busca por essas coisas sempre encontraria uma certa insatisfação e descontentamento.

Page 94: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 0 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

Mas ele, segundo Paulo, fez isso “na esperança”. A esperança de Deus é que paremos de tentar encontrar uma satisfaçãõinfinifa em coisas finitas. Sua esperança é que a frustração mais uma vez faça com que o filho pródigo pare de fuçar a gamela do porco e volte para o pai. A frustração, nesse sentido, é uma espécie de dádiva. E uma das formas que o amor de Deus assume para aque> les que, de outra forma, jogariam a vida fora com banalidades.

Walter Wink, teólogo do Novo Testamento, escreveu que uma das técnicas de ensino mais eficientes de Jesus era a “frustração deliberadamente induzida”. Ele vivia fazendo perguntas que seus discípulos não eram capazes de responder, delegando tarefas que não podiam cumprir, ensinando o que não conseguiam entender. Ele acreditava que a frustração chama a nossa atenção, é capaz de nos abrir para que aceitemos a ajuda dos outros.

O Povo I nsatisfeito de D eus

A insatisfação foi um tema importante na vida de Israel desde o Êxodo. Durante quatrocentos anos os israelitas foram escravos no Egito. Por quatrocentos anos eles sonharam apenas com a liberda­de; eles sabiam que seriam realmente agradecidos se ao menos conseguissem ser livres.

Então aconteceu. Deus interveio milagrosamente. A escravi­dão chegou ao fim; o inimigo foi destruído; eles ganharam uma identidade, segurança e a promessa de ter sua própria pátria. Eles tinham tudo o que queriam. Sabiam que viviam sob o amor e cuidado de Deus e seriam gratos para sempre, certo?

Então chegaram a Mara, mas não puderam beber as águas de Mara, porque eram amargas. [...] e o povo murmurou contra Moisés, dizendo: Que havemos de beber?

(“Murmurar contra” são duas das palavras mais usadas na his­tória do Êxodo. A tradução grega dessa palavra era gogguzo, que, como a palavra “murmúrio”, é o que os lingüistas chamam de

Page 95: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 0 5

onomatopéia — uma palavra que imita o som do seu significado. Junte uma multidão de pessoas para repetir a palavra “murmúrio, murmúrio, murmúrio” — é um som horrível.)

Então, Deus interveio de novo, e milagrosamente eles recebe­ram água fresca para beber. Agora, sem dúvida nenhuma, eles fi­cariam gratos.

Alguns dias depois...Toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e contra Arão no deserto. Disseram-lhes os filhos de Israel: Quem nos dera tivéssemos morrido pela mão do Senhor na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão a fartar! Tu nos trouxestes a este deserto, para matardes de fome a toda esta multidão.

“Quem nos dera tivéssemos morrido” no Egito. Esse povo ele­vou a reclamação a uma forma de arte completamente nova. “Não estamos pedindo muito; se ao menos pudéssemos ter uma morte rápida quando nossas barrigas estavam cheias. Se ao menos tivésse­mos pão, ficaríamos agradecidos para sempre”.

O texto menciona três vezes que o Senhor “ouviu as vossas mur- murações” contra ele. Seria de esperar que ele ficasse impaciente a essa altura. Mas ele é muito paciente com seu bonecos de pano murmurantes.

Aí Deus interveio novamente. Ele fez chover pão do céu sobre eles. Era chamado de maná, que mais do que um nome é uma pergunta. Uma tradução livre seria: “O que é isso?”.

Maná era, para todos os efeitos, um produto incrível. Tinha gos­to de wafer com mel. Aparentemente, era um alimento muito ver­sátil. Os israelitas foram instruídos a assar o quanto quisessem, cozero quanto quisessem e guardar o quanto quisessem comer cru. Pare­ce o pequeno Bubba no filme Forrest Gump, o contador de histórias descrevendo a incrível variedade de formas de se fazer camarão: “maná assado, cozido ou grelhado, no espeto, hambúrguer de maná, sala­da de maná, purê de maná, torta cremosa de maná com banana etc”.

Page 96: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 0 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

Agora que eles tinham conseguido o maná, ficariam gratos, cer­to? Chega de reclamação, certo?

Em um lugar chamado Taberá...í O populacho que estava no meio deles veio a ter grande desejoI de outro alimento, e os filhos de Israel tornaram a chorar, di-

/ zendo: Quem nos dará carne a comer? Lembramo-nos dos pei­xes que no Egito comíamos de graça, e dos pepinos, dos melões, dos alhos silvestres, das cebolas e dos alhos. Mas agora estamos definhando, e nenhuma coisa vemos senão este maná.

Moisés não agüentou mais e, por isso, aproveitou quando teve uma oportunidade. Ele argumentou com Deus como o faz al­guém que se considera mártir.

todo este povo? Contra mim choram, di­zendo: Dá-nos carne a comer. Eu sozinho não posso levar a todo este povo; é muito pesado para mim. Se assim me tratas, mata-me de uma vez, eu te peço, se tenho acha­do graça aos teus olhos, e não me deixes ver a minha própria ruína”.

Quando os discípulos se rendem à síndrome da reclamação, o líder corre o risco de ser destruído. Quando os líderes são engoli­dos por essa sombra, todo o grupo pode acabar perdendo vida. A alegria, a energia e a motivação, tudo vai por água abaixo; todo mundo quer desistir.

Não era mais o Lanche Feliz.Um dos grandes perigos da ingratidão é que ela é contagiosa.

r

“Por que fizeste mal a teu servo, e por que não achei graça aos teus olhos, visto que puseste sobre mim o encargo de todo este povo? Concebi eu U m d o sporventura todo este povo? Gerei-o eu para g r a n d e sque me dissesses: Leva-o em teus braços, p e r i g o s d acomo a ama leva a criança no colo, à terra i n g r a t i d ã o éque juraste a seus pais? [Essa pergunta é q u e e l a é retórica.] Donde teria eu carne para dar a c o n t a g i o s a .

G R A N D E S

Page 97: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 0 7

Mas Deus é misericordioso com os queixosos. Ele lhes dará exatamente o que pedirem: “Consagrai-vos em preparação para amanhã, quando comereis carne. O Senhor vos ouviu quando chorastes”.

Mas, desta vez, há um tom de repreensão misturado à compai­xão. Pois ele lhes dará exatamente o que pedirem-. “Não comereis um dia, nem dois dias, nem cinco dias, nem dez dias, nem vinte dias, mas um mês inteiro, até vos sair pelos narizes, até vos enfastardes dela”.

Os israelitas descobriram que não é ganhando o que se pede que alcançamos a satisfação permanente em as nossas vidas insa­tisfeitas e que ainda acabamos desprezando aquilo que antes nos­sos corações desejavam porque isso não nos satisfez.

Mas essa história se repetiu por quarenta anos. Por mais coisas que Deus lhes desse — liberdade da escravidão, orientação divina, o presente dos Dez Mandamentos, maná e água, “uma esperança e um futuro” — , nunca era o suficiente. O povo morria reclamando.

É impressionante ver o quanto os autores da Bíblia consideram a ingratidão destrutiva. Paulo escreveu para a igreja em Coríntios sobre quatro costumes que as pessoas praticavam na época de Moisés: idolatria, imoralidade sexual, desacato deliberado a Deus; mas o quarto, o clímax do lote, era “não reclame como alguns fizeram e foram destruídos pelo destruidor”.

A ingratidão é uma das maiores características de nossa degra­dação. O crítico de arte, Robert Hughes, escreveu há alguns anos uma crítica penetrante sobre a sociedade americana, chamada Cultura da reclamação. Ele defende a tese de que vivemos em uma sociedade em que as pessoas acham que merecem ter todos os seus desejos satisfeitos. Achamos que esse é um direito de nascença. Nós nos colocamos na posição de vítimas quando isso não é ver­dade. Vivemos uma cultura da reclamação. Ela molda as nossas mentes e corações.

Quais são os sinais desse descontentamento presentes em nos­sas vidas? Faça uma pausa para um pequeno inventário.

Page 98: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 0 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

• Você se sente cansado do seu emprego ou insatisfeito. Espera que ele não apenas pague as suas contas mas também lhe dê uma certa identidade e valor próprio; e ele está bem aquém das suas expectativas.

• Você está decepcionado com seus relacionamentos. Seus ami­gos, cônjuge ou filhos não suprem as suas necessidades emo­cionais e sentimentais e você está ficando cada vez mais ressentido.

• Em vez de se entregar no momento presente, fica preocupa­do pensando se é ou não realmente feliz.

• Você tenta fugir de seu descontentamento. Procura aliviar-se ou distrair-se assistindo TV, fazendo compras ou bebendo.

• Você perde a tolerância. A sua primeira reação aos aconteci­mentos é ser cínico ou mesmo hostil.

• Você fica cada vez mais ressentido ou invejoso de quem pa­rece estar numa situação melhor do que a sua.

John Cheever escreve: “O sentimento mais comum da média dos adultos americanos privilegiados que têm dinheiro, uma boa educação e cultura é a decepção”. E isso é verdade não apenas para as pessoas do mundo moderno; o coração humano se sente insa­tisfeito desde que deixou o Éden. Mas Deus nos ama apesar de nossos desejos insaciáveis e degradantes. Na verdade, a satisfação só pode ser encontrada numa vida autêntica baseada no amor. “Tu nos criaste para ti; e nossos corações não descansarão até en­contrar a paz em ti”, disse Agostinho.

Uma alternativa é fazer o que os israelitas fizeram e reclamar da vida. Esperar que algo aconteça para você se sentir grato. Cultivar a sua própria cultura da reclamação.

Outro caminho é continuar buscando pequenas alegrias que nos distraiam da nossa grande frustração. O psicólogo Neil Warren escreveu: “Essa busca precipitada da felicidade instantânea foi cri­ada para nos distrair do vazio que sentimos e para anestesiar a dor de nossos fracassos nos relacionamentos e da sensação de futilida­

Page 99: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 0 9

de que nos consome. Esse vício requer doses diárias e, às vezes, a cada hora”.

Mas Deus continua esperançoso. Sua esperança é que depois de uma boa dose de frustração deliberadamente induzida possa­mos finalmente parar de fuçar na gamela do porco e voltar para casa.

O profeta Isaías colocou isso da seguinte maneira:Escutem, os que têm sede: venham beber água! Venham, os que não têm dinheiro: comprem comida e comam! Venham e com­prem leite e vinho, que tudo é de graça. Por que vocês gastam dinheiro com o que não é comida? Por que gastam o seu salário com coisas que não matam a fome? Se ouvirem e fizerem o que eu ordeno, vocês comerão do melhor alimento, terão comidas gostosas.

As traduções mais antigas são mais radicais: “a vossa alma se deleite com a gordura” — a parte mais rica e saborosa da carne. Nada de carne com baixas calorias, baixo teor de sódio ou de soja para Isaías. A Bíblia é decididamente a favor das calorias.

O que Isaías quer então que as pessoas sai­bam é que, obviamente, Deus é o verdadeiro alimento. Viver no seu amor e sob a sua pro­teção é a única esperança de satisfação para o coração humano. “Sou o alimento da vida”, Ele diz. “Quem vier a mim jamais terá fome.” Então, Deus observa espantado as pessoas se consumindo atrás de realizações, status ou posses que não aliviarão suas almas. “Por que vocês gastam dinheiro com o que não é co­mida?”, pergunta.

Essa passagem não apenas contém a promessa de Deus de pro­porcionar satisfação, mas também ressalta que as pessoas que não possuem esse desejo inevitavelmente tentam distrair-se com pe­quenas e efêmeras alegrias onde quer que estejam, mesmo que

V i v e r n o s e u a m o r E SO B A SU A P R O T E Ç Ã O

É A Ú N IC A E SP E R A N Ç A D E

SA T ISFA Ç Ã O PARA O

CORAÇÃO H U M A N O .

Page 100: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

110 A m o r a l é m d a r a z ã o

não tragam satisfação para sua alma. “Por que vocês gastam dinhei­ro com o que não é comida?” Isso é lixo para a alma. São buscas inúteis. Lanches Felizes.

Por que você se consome no trabalho, buscando nas promo­ções e empreendimentos o que eles não podem dar?

Por que você dedica horas da sua noite num passeio infindável de canais em busca de programas sobre a vida que possam fazê-lo rir, sentir medo ou apenas se emocionar, em vez de viver?

Por que você se endivida tentando adquirir o que o dinheiro não pode comprar?

É claro que as conquistas profissionais, as posses e a diversão não são coisas ruins. E podem até ser grandes dádivas, mas podem também se tornar deuses muito cruéis. Eles não servem de base para a sua vida. Não são capazes de nutrir o espírito humano. Eles não alimentam.

Há alguns anos, conheci um homem em uma viagem de avião cujo vício pelo trabalho combinava perfeitamente com a com­pulsão de comprar de sua esposa. De fato, um dia, ele recebeu um telefonema de uma loja de departamentos conceituada que ela freqüentava. Fazia uma semana que a mulher dele não aparecia e eles estavam preocupados. Eles sabiam mais sobre a mulher dele do que ele próprio! Eles tinham dado entrada em um processo de divórcio e ele já estava com outra mulher. O vôo inteiro foi uma longa lista de reclamações.

As pessoas às vezes pensam: se Deus quer que eu me sinta agrade­cido, por que não me dá tudo o que quero?

Todo pai inteligente sabe que a melhor maneira de criar um filho ingrato é dar tudo o que ele quer.

Ano passado, no Halloween, o Dia das Bruxas, quando um amigo meu abriu a porta de sua casa, deu de cara com uma senho­ra já crescida fazendo a brincadeira e pedindo doces: “É para a minha filha”, ela desculpou-se. O dia estava um pouco frio e ela decidiu levar a filha de carro pela vizinhança em vez de fazê-la vestir um casaco. E a filha sentiu-se tão confortável no carro que

Page 101: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 111

caiu no sono; por isso, em vez de acordá-la, a mãe foi, de porta em porta, pedir doces. Só faltou ela querer engolir todos os doces para poupar a filha de uma dor de estômago. O teatrólogo J. M. Barrie estava na casa de um casal de amigos, quando ouviu a dona da casa dizer para o filho: “Chega de comer esse doce senão ama­nhã você vai passar mal”. “Não”, o menino respondeu e conti­nuou a comer calmamente, “eu vou passar mal esta noite”. Barrie ficou tão abismado com a barganha que colocou isso em sua peça Peter Pan. O que aconteceu com o garoto continua um mistério.

Por mais estranho que pareça, as pessoas cujos desejos são cons­tantemente satisfeitos desde a infância, tornam-se as mais ingra­tas. Para sermos agradecidos, precisamos aprender que somos capazes de lidar com a decepção e esperar pela gratificação com paciência e perseverança. É por isso que hábitos como o jejum e a simplicidade são ferramentas extremamente poderosas de transformação. A ex­periência da frustração e da decepção é inestimável para se cultivar um espírito de gratidão.

O A l im e n t o : a Satisfação de Ser A m a d o

Algum tempo atrás, passei um dia sozinho em uma reserva flo­restal. Senti o tipo de “enfado da carne” sobre o qual o autor de Eclesiastes falou. Percebi que estava me dedicando demais a alguns empreendimentos e sentia um enorme peso quando não conseguia realizá-los. Fui pego por minhas próprias buscas inú­teis.

Mas eu estava numa espécie de ambiente natural em que é difí­cil se sentir triste por muito tempo. Os castanheiros, os carvalhos, os bordos e sicômoros estavam refletindo as cores do outono sob um sol brilhante. Comecei a me soltar. De alguma forma, recebi a graça de poder sentir que Deus me amava. Comecei a sentir de novo o que signifi­cava estar vivo, neste planeta, neste lugar,

C o m e c e i a m e s o l t a r , d e

A LG U M A FO R M A , R E C E B I A GRAÇA

D E P O D E R SE N T IRq u e D e u s m e

AMAVA.

Page 102: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

112 A m o r a lém d a r a z ã o

neste momento. Essa sensação foi tão forte que comecei a correr, com a força exata daquele sentimento.

Richard Foster escreveu uma vez sobre um pai que passeava em um shopping center com seu filho de dois anos. O menino era bravo; ficava gritando, se esquivando e reclamando. O pai teve de lutar para permanecer calmo.

Normalmente, histórias como essa não têm um final feliz. Em outra delas, um pai está andando no supermercado com seu filho de dois anos incontrolável, repetindo calmamente: “Tudo bem, Danny. Você consegue, Danny. Já está quase acabando, Danny”.

Alguém pergunta a ele: “O seu filho Danny está num mau dia?”. E ele responde: “O nome do meu filho é Natã. Danny é o meu nome”.

Mas o pai a respeito do qual Richard Foster escreve adota outra estratégia. Ele pegou seu filho “reclamão” de dois anos no colo e, segurando-o bem colado ao peito, começou a improvisar uma canção de amor. Nenhuma palavra rimava. Ele cantava desafina­do, mas da melhor forma que podia, abriu seu coração: “Eu o amo. Sou tão feliz por você ser meu filho. Você me faz rir”.

De loja em loja, o pai continuou cantando, sem rimar, desafi­nado. O filho acalmou-se, cativado pela estranha e maravilhosa canção.

Finalmente, quando eles estavam indo embora, o pai entrou no carro e estava ajeitando o filho no banco quando o menino ergueu os braços e disse olhando para ele: “Cante de novo, papai. Cante pra mim de novo”.

De alguma forma, quando fiquei sozinho com sua criação na­quele dia na reserva, Deus cantou essa canção para mim. Não importava quem eu era ou o que fazia, estar vivo e ser amado por Deus foi o suficiente para me trazer gratidão e contentamento — pelo menos por alguns momentos.

Apesar disso, aquele sentimento maravilhoso não desapareceu completamente, mesmo depois de sair de lá.

Page 103: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 1 3

Muitos dias depois, estava sentado no meio de uma reunião quando, de repente, percebi que não precisava dizer nada. Nor­malmente, eu tomaria a palavra, não necessariamente porque ti­vesse algo a dizer que pudesse contribuir de alguma forma, mas simplesmente porque queria que as pessoas soubessem que tinha uma idéia, li alguma coisa ou tinha algo a dizer que as faria pensar que sou inteligente ou posso ganhar uma discussão.

Mas desta vez, sentado no meio da reunião, eu carregava aquele momento que passei sozinho na reserva florestal. Deus me amava.

É difícil explicar essa sensação que Deus me deu: havia uma certa leveza na minha alma naquele momento. Eu podia falar, se tivesse algo que valesse a pena ser dito. Mas não precisava. Não precisa tentar mostrar que tinha poder. Não precisava causar impressão. Eu tinha algo melhor para me alimentar. Estava satisfeito.

Provei, pelo menos acho que um bocadinho, do que o salmista pretendia dizer: “O Senhor é meu Pastor e nada me faltará”. Fui guiado para águas tranqüilas e pastos verdejantes.

Eu simplesmente fiquei sentado ali, enquanto uma parte de mim ouvia a conversa e a outra dizia: “Cante de novo, Papai. Deus, diga que me ama”.

O H á b it o d a G r a tid ã o

Como Lewis Smedes escreve, quando a Bíblia diz que devemos ser gratos, mais do que um dever, é uma oportunidade que rece­bemos. Quando o motivo básico da gratidão é a obrigação, ela acaba nos sufocando.

Os pais sempre ensinam os filhos a serem educados. Geração após geração a história se repete quando alguém dá um presente aos nossos filhos ou lhes faz um favor, nós dizemos à criança: “Como é que se diz?”.

“Como é que se diz ao bom homem?”“Como é que se diz para a tia Eva pela comida gostosa que ela

fez?’ ’, meus pais me diziam.

Page 104: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 1 4 A m o r a lém d a r a z ã o

Q u a n d o o .m o t i v oBÁ SIC O DA

GRATIDÃO É A O BR IG A Ç Ã O , E L A

ACABA NOS SU F O C A N D O .

O que a criança deve responder?Não é exatamente uma pergunta. Eles

ficariam surpresos se eu dissesse: “Tia Eva, o que é que você tem na cabeça para fazer uma gororoba dessas? Você não deveria nem estar cozinhando. Alguém devia lhe proibir disso”.

“Como é que se diz?” Obrigado.A pergunta pode incitar essa resposta, mas a reação geralmente

é bastante mecânica.Meus pais também ficariam surpresos se eu ficasse realmente

emocionado e dissesse: “Tia Eva, estou admirado e maravilhado com o que acabei de experimentar. Não passo de uma criança. Sem um adulto para cuidar de mim, como você tem feito, eu morreria. Você fez esta refeição de livre e espontânea vontade, em um ato de amor e dedicação por mim. Tia Eva, você é muito humanitária e, em nome de todas as crianças do mundo, eu a saúdo”.

Não, geralmente, eu dava uma resposta minimalista do tipo: “Obrigado”.

Mesmo que as crianças não se sintam gratas, queremos que apren­dam a agradecer apenas por uma questão de educação. Mesmo que não sinta isso, preciso agradecer simplesmente porque esse é o certo, eu devo minha gratidão.

Mas nossa esperança é que nossos filhos não se limitem a dizer a palavra. Esperamos que um dia eles se tornem pessoas agradeci­das, porque a capacidade de experimentar a gratidão, dar graças e orar com sinceridade é uma das características mais importantes da vida e da plenitude espiritual.

“Viva a minha alma, para que te louve”, o salmista diz para Deus. A verdadeira gratidão significa enxergar que tudo é uma dádiva e a vida, a maior dádiva de todas.

G. K. Chesterton disse certa vez: “Aqui termina mais um dia durante o qual tive olhos, ouvidos mãos e o mundo inteiro ao meu redor, e amanhã começa outro dia. Por que tenho direito a dois?”.

Page 105: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 1 5

A vida é boa. A vida é uma dádiva.Há mais ou menos oito anos, Nancy e eu estávamos na sala de

parto do hospital para o nascimento do nosso caçula. Ela estava dando à luz e eu a estava instruindo (esse era o combinado nos dois primeiros partos e parece que deu um bom resultado).

Tudo parecia estar correndo de acordo com o esperado. Nancy dizia claramente que a dor estava insuportável e que ela se vinga­ria de mim um dia por tê-la feito passar por isso, mas a conversa foi a mesma nos outros nascimentos, por isso achei que estava tudo bem.

Então, o médico ficou muito sério. Ele deu várias instruções, pegou um instrumento qualquer e a situação ficou bastante grave. Não sabíamos naquele momento, mas o cordão umbilical do bebê estava enrolado em seu pescoço e seu rosto estava roxo; ele morre­ria sufocado se a situação não fosse contornada com o maior cui­dado.

O médico dava o máximo de si enquanto Nancy se contor­cia de dor. Ele tirou o bebê até um ponto em que conseguia cortar o cordão. Naquele momento, o sangue jorrou para todo lado, o bebê e Nancy choraram, mas o médico sorriu: “Tudo vai ficar bem”.

Pode ser, a essa altura, mas eu já estava quase desmaiando. “Pre­ciso me sentar”. Desabei sobre uma cadeira e, então, o médico me mandou colocar a cabeça entre os joelhos.

Nancy perguntou: “Tem certeza que tudo vai ficar bem?”.“Sim”, ele respondeu. “Na verdade, seu filho e seu marido estão

voltando a si ao mesmo tempo”.Eu soube, naquele momento, que tinha recebido uma dádiva,

que toda a terra é uma dádiva e a vida é a mais preciosa delas. Não é um direito. Não pode ser tomado ou concedido. Ela pode se apagar em um lapso de segundo. A vida é uma dádiva. E é boa. Como é bom estar vivo! Senti uma gratidão que nunca havia sen­tido antes na vida.

Page 106: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 1 6 A m o r a lém d a r a z ã o

Aprender a viver na gratidão de ser ama­do significa receber a dádiva de poder en­xergar. A forma com que você se sente a respeito da vida depende em grande parte do modo como você a enxerga. Um ami­go me contou sobre uma carta que uma universitária escreveu para os pais:

OQueridos pai e mãe:Tenho tanta coisa para contar. Por causa do incêndio no meu

dormitório provocado pelas passeatas estudantis, meus pulmões ficaram intoxicados temporariamente e fui levada para o hospi­tal. Enquanto estava lá, apaixonei-me por um faxineiro e agora

^ estamos morando juntos. Larguei a escola quando descobri que estava grávida e ele foi despedido porque bebia, por isso vamos nos mudar para o Alasca, onde poderemos nos casar depois que o bebê nascer.

Assinado, Sua filha querida

P.S.: Nada disso aconteceu de verdade, mas eu fui reprovada em química e queria que vocês vissem as coisas sob esse ângulo.

G r a t id ã o pelo Q ue V ocê T em

Quando acho que uma mudança nas coisas — digamos, um carro novo — poderia me deixar grato, veja o que essa linha de pensa­mento realmente significa. Eu faço uma lista das coisas realmente maravilhosas que já tenho:

• Fui criado à imagem de Deus. Tenho um corpo que funcio­na bem. Posso enxergar e caminhar. Muitas pessoas não po­dem. Ainda assim, faço isso todos os dias.

• Deus me ama. Ele me chama de filho. Por Jesus ter vindo ensinar e viver, morreu na cruz e ressuscitou — meu futuro com Deus está garantido para sempre.

A p r e n d e r a v i v e rNA GRATIDÃO

D E SE R AMADO SIG N IF IC A

R E C E B E R A DADIVA D E P O D E R

E N X E R G A R .

Page 107: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 1 7

• Fui aceito no maior sonho de Deus: a nova comunhão. Faço parte da igreja — posso ser amado e aceito.

• Fui dotado, criado para dar a minha contribuição única e eterna à obra de Deus. Tenho uma vocação. Mesmo quando estrago tudo, Deus promete trabalhar em mim apesar de meus erros.

Quando faço essa lista inspiradora, concluo que todas essas dádivas juntas — o dom da vida, um corpo perfeito, ser filho de Deus, ter certeza do amor de Deus através de Cristo, o sacerdócio digno de um rei na igreja, a orientação e o poder do Espírito San­to em minha vida — não são suficientes para me fazer sentir uma gratidão permanente. Mas, digo a mim mesmo, se tivesse tudo isso e um carro bem moderno, então ficaria grato para sempre.

A prender a A preciar as D á d iv a s I mperfeitas

Você já foi nessas lojas de ponta de estoque que vendem produtos com “pequenos defeitos”? Às vezes, as imperfeições são bem visí­veis; outras, não dá nem para notar. O mesmo é verdadeiro para nossas vidas, não apenas em relação aos produtos que compra­mos, mas às dádivas que recebemos.

Se você é casado, não precisou de muito tempo para perceber que seu cônjuge era uma dádiva com um “pequeno defeito”. Sem dúvida, ele achou a mesma coisa de você.

Quando as crianças nascem, geralmente dizemos: “Ela é perfei­ta!”. Bem, nós dois sabemos que não é preciso muito tempo para perceber que a perfeição não se resume nos dez dedos das mãos e dos pés. Seus filhos provavelmente são capazes de jurar que não existem muitos pais perfeitos no mundo.

No plano material, qual de nós já não ganhou um presente e depois devolveu porque não era do tamanho ou da cor certos?

E quanto aos nossos corpos? Passamos a vida inteira pensando: se meu corpo fosse diferente, se fosse perfeito, se eu tivesse o corpo de

Page 108: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 1 8 A m o r a l ém d a r a z ã o

Fulano, então seria grato. Seu corpo pode não ser perfeito, mas é uma coisa bastante útil de ter.

r Precisamos aprender a ser agradecidos por todas as dádivas com \ “pequenos defeitos” de nossas vidas. Se guardar minha gratidão

na esperança de casar com a pessoa perfeita, ter o filho perfeito, o corpo perfeito ou o presente de aniversário perfeito, nunca serei

■ grato na vida.O próprio Deus quer se deleitar com dádivas imperfeitas —

em nós. Mesmo que nossos corações sejam falhos e obscurecidos, mesmo que o entreguemos temporariamente e por algum motivo específico, ele os receberá com imensa alegria. O próprio céu re­gozija-se com a dádiva do coração de um pecador arrependido.

Contudo, Deus sabe o que significa quando suas dádivas — perfeitas na sua forma original — são colocadas de lado como se tivessem um “pequeno defeito”. Sua criação foi usada impropria­mente, suas palavras, deturpadas e seus propósitos, ridiculariza­dos. Jesus, que em sua época falou de dias que estavam por vir, conheceu a frustração de oferecer a dádiva de suas palavras a pes­soas que se recusaram a ouvi-las. Ele conheceu a frustração de desejar transmitir a dádiva do perdão a pessoas que não queriam se arrepender, conceder a cura a pessoas que se recusavam a acre­ditar, comungar e congregar filhos que se recusavam a ser unidos. Jesus conheceu a frustração de dar uma festa na qual os convida­dos se recusavam a aparecer, servir o vinho que eles não beberiam, trazer o pão que eles não comeriam.

E, por fim, ele conheceu a frustração da cruz. O que ele acredi­tava ser a maior dádiva do mundo tornou-se a maior tentativa de demover a vontade e a obra de Deus.

Mas a frustração de Jesus foi inundada de esperança. Pois a cruz que pretendia frustrar o propósito de Deus tornou-se sua expres­são final e garantia.

Pois o milagre do amor de Deus pelos bonecos de pano é que, em todo o universo que obedece a sua vontade, num cosmo de beleza e ordem, em toda a sua obra, sua atenção se volta para um

Page 109: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

A satisfação de ser amado 1 1 9

pequeno planeta acidentado, num ponto insignificante de uma pequena galáxia. Seria bem mais fácil para ele simplesmente tirá- lo do mapa. Um planeta rebelde parece não valer todo o seu esfor­ço e tempo. Parece uma busca inútil.

O milagre do amor de Deus é que ele se tornaria homem, tra­balharia como carpinteiro, sentiria fome, cansaço e fraqueza, en­sinaria e até choraria por nós. Pois, no final, a história do amor de Deus por este mundo virou a história de uma busca que não era mais inútil. Que deixou de ser inútil depois que ele se tornou homem. Deixou de ser inútil depois da cruz.

Page 110: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

0 caminho mais árduO homem que não se deixar abater e derrotar pela aridez e pelo desamparo, mas que

(permitjr que Deus o guie calmamente pelo deserto e não busque ajuda e orientação em mais nada a não ser na pura fé e confiança somente em Deus, chegará à Terra Prometida.

T h o m as M erton

Q uando você faz uma viagem acompanhado de crianças pe­quenas, não há a menor dúvida do que vai acontecer. As

crianças vão perguntar. Elas vão perguntar logo no início, vão per­guntar todo o tempo. Elas vão perguntar resmungando obstinada­mente. Elas vão perguntar mesmo que você diga que não quer ouvir isso de novo. Elas vão perguntar como se fosse uma obrigação legal que devessem cumprir. Isso irá irritá-lo — tanto quanto arranhar o quadro negro — e a intenção é exatamente essa.

Nós já chegamos?Geralmente, o tempo de viagem é proporcionalmente inverso

ao tempo que elas demoram para começar a perguntar. Não pre­cisa muito para que alguém no banco de trás comece a reclamar que está sendo puxado, beliscado ou torturado psicologicamente.

Page 111: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

122 A m o r a l ém d a r a z ã o

Os limites estão demarcados, mas então o espaço aéreo de alguém é invadido. Em breve, começa como uma música, uma espécie de canto pagão: Nós já chegamos? Nós já chegamos?

Imagine-se fazendo uma viagem e dizendo: “Não chegamos ainda. Não chegaremos hoje. Não chegaremos amanhã. Na ver­dade, passaremos a vida inteira viajando. Estamos seguindo para o único destino no mundo para o qual vale a pena viajar e receber promessas maravilhosas da nossa chegada. Mas ainda não”.

O D eus d o C a m in h o M ais Á r d u o

Os filhos de Deus estavam se preparando para uma jornada. Eles estavam saindo da escravidão para a liberdade, da pobreza para a riqueza, à terra prometida, um lugar onde o leite e o mel são abun­dantes.

Parecia uma jornada muito simples. A jornada consistia apenas de duas partes como Deus descreveria a Moisés. Vou “fazê-lo su­bir daquela terra”, Deus disse, referindo-se ao Egito, à fome e à escravidão, “para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel”. “Subir” daquela “para” outra.

Eles não iam imaginar que demoraria tanto tempo. Depois de deixarem o Egito, tudo o que tinham a fazer era cruzar a penínsu­la do Sinai. Não era uma viagem assim tão longe — menos de 300 quilômetros. Eles chegariam lá em questão de semanas.

Mas Deus tinha uma rota alternativa em mente.A Bíblia diz: “Quando o Faraó deixou ir o povo, Deus não os

levou pelo caminho da terra dos filisteus, que era mais perto. Pois Deus disse: para que o povo não se arrependa, vendo a guerra, e volte ao Egito. Assim Deus fez o povo rodear pelo caminho do deserto perto do mar Vermelho”.

Este é o Deus que, precisamente por amar seus filhos, recusa-se a tomar o caminho mais curto que eles preferiam. Por causa de sua falta de fé e medo, ele os envia pelo caminho mais árduo. Mais tarde, é claro, por causa da revolta e pecado do povo, o caminho

Page 112: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 1 2 3

se tornaria ainda mais longo. Foi por isso que o reverendo David Handley chamou os caminhos de Deus de árduos.

Já chegamos?Ainda não. Um dia, mas não ainda. Seja paciente.Imagine só, uma nação inteira reunida e chega o dia que eles

estiveram esperando por quatrocentos anos. Eles saem em sua jor­nada para casa. Nenhum deles esteve lá antes, mas eles não estão preocupados com o curso da viagem. Há uma coluna de nuvem e outra de fogo à sua frente. O fogo que queimou a sarça para Moisés agora queima para todos eles. Eles serão guiados por Deus.

A coluna começa a se mover e a caminhada se inicia. Mas então o povo nota que a coluna está indo na direção errada! A terra prometida fica a nordeste e a coluna está indo para o sul. A coluna está seguindo contra o curso.

Já chegamos? — o povo pergunta.O que Moisés poderia dizer? Suas instruções não são muito

precisas. Esta é a única vez na história que uma mulher pergunta ao marido: “Você sabe para onde estamos indo? Estamos indo na direção certa?”. E o marido respondeu: “Só Deus sabe”, e ele esta­va dizendo a pura verdade.

O povo seguirá a Deus mesmo sem entender? Ele seguirá mes­mo que as coisas não façam muito sentido? Ele permanecerá fiel mesmo no árduo caminho escolhido por Deus?

Deus guia seu povo por caminhos difíceis. Ele _não faz nada rápido. Ele nunca está com pressa. Esta é uma de suas característi­cas mais irritantes.

Richard Mouw escreve que nos dias de hoje precisamos de uma correção teológica sob a mensagem: “Deus não demora a agir”. Deus pode, é claro, agir rapidamente. Ele pode atender a uma oração instantaneamente, num piscar de olhos, parafraseando Paulo. Mas, em geral, ele é extremamente paciente. Os menonitas têm um ditado que diz: “Vivemos no compasso da paciência de Deus”. Deus está adiando o final da história por amor, para que o máximo de gente possa encontrá-lo e ser salvo.

Page 113: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 2 4 A m o r a l ém d a r a z ã o

Ele é o Deus que leva seu povo para a terra prometida pelo deserto. Ele é o Deus do caminho mais árduo.

A Experiência d o D eserto

Para o povo de Israel, este não seria um pequeno desvio. Ele pas­saria quarenta anos nesse árduo caminho. Quarenta anos no de­serto.

Quarenta é um número importante na Bíblia. Os estudiosos do Antigo Testamento dizem que ele era usado como número redondo para designar um período muito longo de tempo para os padrões da tolerância e da existência humana. Quarenta anos era o tempo de uma geração. Isaque e Esaú casaram-se aos quarenta; Davi e Salomão reinaram por quarenta anos. Quarenta dias foi o tempo do dilúvio, o tempo que Moisés passou no monte Sinai e o tempo entre a ressurreição e a ascensão de Jesus.

Mas o número quarenta está associado especialmente ao de­serto. Quando Moisés matou um egípcio e fugiu do Faraó, vi­veu no deserto de Midiã quarenta anos. Quando Elias fugiu de medo de Jezebel, foi levado para o deserto em uma jornada que durou quarenta dias e quarenta noites. E, é claro, o próprio Je­sus começou sua pregação depois de jejuar e orar por quarenta dias no deserto.

Isso se repete na vida daqueles que buscam a Deus. Todo mun­do tem de passar algum tempo no deserto. A vida começa aos quarenta.

O deserto é um lugar para onde ninguém gostaria de ir. Não transborda de leite e mel. É seco e árido. A vida é frágil ali.

Se você levar a fé em Deus a sério, também vai aprender algu­ma coisa em seus caminhos áridos. Haverá momentos em que seu coração sofrerá pela mágoa ou perda. Haverá momentos em que você torcerá para que aconteça algo de bom, em que suas motiva­ções parecerão ser justas, em que Deus poderia atender à sua ora­ção facilmente, mas não o faz. São momentos em que a vida parece não valer a pena.

Page 114: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 1 2 5

Geralmente, a jornada pelo deserto é provocada por algum acon­tecimento. Um relacionamento rompido, um filho revoltado, um filho pródigo que vai embora e não volta, uma crise financeira. Você alimenta um sonho por anos, aguardando o dia em que ele se tonará realidade e, então, um belo dia você se dá conta não apenas de que ele ainda não aconteceu, mas nunca vai acontecer. O sonho morre e você com ele.

Porém, às vezes, parece que o deserto sur­ge sem motivo aparente.

Nesses momentos, até ter fé se torna di­fícil. Você ora, abre seu coração para Deus, mas não obtém nenhuma resposta. Não sen­te nenhuma aproximação. A Bíblia não lhe dá consolo. Você se sente confuso e pergun­ta por que aquilo está acontecendo, mas não recebe nenhuma resposta. E o seu espírito, a sua alma, que se sente seca e árida. Você não apenas está no deserto, mas o deserto está em você.

No deserto, tudo o que nos resta é a promessa.Deus não esqueceu de você. Você não foi abandonado. Ele guia

' seus filhos por caminhos áridos. Ele não tem pressa.Deus está agindo no árido caminho do deserto, por meios que

não podemos ver e nem compreender. O caminho de Deus rara­mente é o mais curto. Dificilmente é o mais fácil. Mas é sempre o melhor caminho.

O D eserto n o I n íc io d a V id a C ristã

João da Cruz falou que a experiência no deserto, ou ao que ele chama de noite escura da alma, geralmente faz parte da experiên­cia de um crente pouco após a sua conversão. Segundo ele, ela é necessária para o crescimento.

Isso costuma acontecer da seguinte forma: quando nos torna­mos cristãos, geralmente recebemos o presente de Deus de uma

O CAM INHO D E D E U S

R A RAM ENTE É O M A IS C U R T O .

D i f i c i l m e n t e éo M A IS FÁ C IL .

M a s é s e m p r e o

M E L H O RC A M IN H O .

Page 115: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 2 6 A m o r a l ém d a r a z ã o

sede puramente espiritual. Você sente uma fome feroz de saber mais a respeito de Deus. Você tem prazer em orar. Você tem von­tade de ler a Bíblia e sente como se Deus estivesse falando direta­mente para você. A oração tem vida para você. Seu coração se enche e você mal consegue encontrar palavras para expressar seus pensamentos e sentimentos. Você procura não pecar. Coisas que antes eram uma tentação, agora parecem ter perdido todo o en­canto. Você ama a Deus e a todo o mundo. Você tem vontade de sair e fazer algum ato de bondade para as pessoas.

Pode ser que, se você tiver sorte, continue assim por cinqüen­ta ou sessenta anos e depois morra. Pode ser que você passe toda a sua vida seguindo um caminho direto para o crescimento espi­ritual.^M as, para a maioria de nós, a vida não acontece dessa maneira.

Para a maioria, em algum momento no meio do caminho as coi­sas mudam. O que antes era fácil, simples e divertido, agora se torna complicado e extenuante. Você acaba perdendo a vontade de orar. Ora com menos freqüência e, quando o faz, não o faz com a mesma empolgação de antes. Fica difícil sentir a presença de Deus. A Bíblia parece maçante. Você se encontra em meio a problemas, dúvidas e confusão. As tentações que você achava que tinha superado começam a lhe parecer atraentes de novo. Às ve­zes, quando você está assistindo o culto, vê as pessoas ficarem pro­fundamente comovidas — algumas até choram — , mas para você as lágrimas não chegam.

Alguma vez você já se sentiu assim?Você está passando por uma aridez espiritual. Talvez seja uma con­

seqüência de um pecado que você está cometendo deliberadamente. Se for esse o caso, você precisa confessá-lo e arrepender-se. Mas, geral­mente, parece que isso vem do nada. Você não quer se sentir dessa forma.

Por que Deus permitiu que isso acontecesse?, você pensa. Por que as coisas não podem ser fáceis como antes? Por que tenho de passar por esse caminho árduo?

Page 116: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 1 2 7

Uma coisa muito importante está acontecendo. Faz parte do crescimento. Talvez uma parábola possa ajudá-lo.

Minha primeira bicicleta de verdade era uma bicicleta inglesa de corrida, vermelha. Queria aprender a andar naquela bicicleta mais do que tudo no mundo. Um dia, meu pai me levou para a pista de treino. Ainda não estava totalmente preparado para andar sozinho, por isso meu pai segurava na garupa da bicicleta com uma mão e corria para me acompanhar. Senti-me como um pro­fissional, mas, é claro, a verdade é que ele estava atrás de mim, me empurrando. Eu ainda não era capaz de andar sozinho.

Então, um dia, ele fez uma coisa estranha. Ele me largou.Mas que truque sujo, eu pensei, porque caí. Uma queda feia.E ele continuou a fazer isso e eu continuei caindo. A coisa ficou

tão feia que minha mãe fechou as cortinas porque não agüentou ver. Aparentemente, nem a bicicleta nem eu estávamos tortos.

— Pai, por que você não segura mais?— Porque se eu fizer isso, você nunca vai aprender a andar.

Você nunca vai conseguir andar sozinho. Você quer chegar aos vinte anos e ainda precisar que o seu pai corra atrás de você segu­rando a sua bicicleta?

— Quero — respondi. No momento, pareceu-me uma alter­nativa melhor do que aquilo que estava acontecendo. Mas agora, vejo que ele foi sábio.

Ele não tinha me abandonado. Era um caminho árduo de apren­der a andar de bicicleta, mas não havia outro.

Quando você começa a pedalar sozinho, sem ajuda, sente que nunca pedalou tão mal. Você cai toda hora. A verdade é que você está evoluindo, mas não se dá conta disso.

C. S. Lewis escreveu que no início da vida espiritual, quando Deus nos livra da tentação e nos incute a vontade de orar, ele está facilitando as coisas para nós. E costumamos pensar: Posso fazer isso sozinho! Já tenho maturidade espiritual.

Lewis acrescenta:

Page 117: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 2 8 A m o r a l ém d a r a z ã o

Mas Deus nunca permite que essa situação se prolongue por muito tempo. Cedo ou tarde ele se retira, senão de fato, pelo menos todo o apoio e incentivo de sua experiência óbvia. Ele deixa a criatura se sustentar com as próprias pernas — realizar, contando apenas com sua própria vontade, as responsabilida­des que perderam todo o sabor. É durante esses períodos, muito mais do que nos períodos de plenitude, que evoluímos para nos tornar a pessoa que ele quer que sejamos. Por isso, as orações feitas nesse estado de aridez são as que mais lhe agradam.

Você pode estar passando por um momento em que não sinta a mão de Deus. Talvez permaneça assim por mais algum tempo. Você fica tentado a desistir. Mas a verdade é que você ganhou a chance de aprender a pedalar sozinho.

No D eserto E n c o n tra m o s F o rç a

Por que Deus tirou os israelitas da rota normal? A Bíblia diz que é porque Deus sabia que se eles fossem pelo caminho direto, en­frentariam resistência: “para que o povo não se arrependa, vendo a guerra, e volte ao Egito”.

A rota direta, a auto-estrada do Sinai, iria forçá-los a passar pelo povo que lhes era hostil. Deus era perfeitamente capaz de levá-los mesmo assim, mas eles ainda não acreditavam nisso. Eles tinham muito medo.

Alguém disse certa vez: “Foi preciso uma noite para tirar Israel do Egito. Foram precisos quarenta anos para tirar o Egi­to de Israel”. Por quatrocentos anos os israelitas foram escra­

vos e ainda se consideravam assim. Por isso Deus precisou de algum tempo para dar coragem e fé a esse povo.

É fácil acreditar na terra de leite e mel quando tudo está bem. Quando as orações são atendidas, os problemas desaparecem, quando os dentes dos nossos filhos não têm defeitos e o nosso chefe gosta da gente é

Q u a n d o v o c êC O N SE G U E D A R

GRAÇAS NO D E S E R T O ,

GANHA M U ITA FO R Ç A .

Page 118: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 1 2 9

fácil ter fé. Mas o deserto tem a sua própria maneira de dar força. Deus não está nem um pouco preocupado em saber para onde seu povo está indo, mas o que eles serão quando chegarem lá.

José recebeu a promessa de que seria um grande líder. Em se­guida, ele é vendido como escravo e acaba passando vários anos numa prisão dos egípcios. Ele morre sem nem conhecer a terra prometida. De fato, sabemos que Moisés carregou os ossos de José para fora do Egito. José passou pelo caminho árduo.

Davi foi ungido rei de Israel. Pouco tempo depois, ele acaba se tornando um fugitivo sem ter um lugar para morar, vivendo em cavernas para não ser assassinado por um rei hostil. Davi passou pelo caminho árduo.

Daniel era talentoso, inteligente e devotado. Ele terminou no exílio em uma terra estrangeira e jogado numa jaula de leões. Deus ainda estava com Daniel, mas o guiou por um caminho árduo.

Quando você consegue dar graças no deserto, ganha muita força. Quando você está passando por um caminho árduo, mas diz: “Não vou voltar para o Egito. Serei fiel”, sua alma fica mais forte.

Talvez você queira se apaixonar, está procurando um compa­nheiro ou companheira para a vida toda, procurando algo bom. Mas está passando por um caminho árduo. Tem esperado pelo sr. ou sra. “Perfeitos” e já faz um bom tempo. Você então pensa: Talvez eu acabe ficando mesmo com o sr. “Mais-ou-menos”.

Será que você estará seguindo a Cristo então? Completamente? Vai assumir todos os compromissos que isso significa? “Não vou me envolver romanticamente com alguém que não compartilhe de minha fé e valores morais. Não me envolverei sexualmente com ninguém antes do casamento — mesmo sob grande pressão. Se tiver de terminar o relacionamento, assim o farei. Agora. Vou permanecer no caminho árduo do Senhor. Se isso significar qua­renta anos, serão quarenta anos. Se significar pelo resto da minha vida, será pelo resto da vida.

Page 119: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

130 A m o r a lém d a r a z ã o

No D eserto é P reciso Perseverar

Seria bom se o deserto fosse uma experiência que acontecesse so­mente uma vez na vida, como ser vacinado ou arrancar o dente do siso. Mas o deserto é um lugar para onde sempre retornamos. Ele aparece quando estamos sozinhos, ou cansados, ou tentados.

Talvez você esteja pensando em ter um relacionamento que sabe será destrutivo para você e uma desonra para Deus, mas se sente só ou com medo ou simplesmente está cansado de esperar.

Talvez exista uma pessoa problemática que faz parte da sua vida: um de seus pais, um filho ou um colega de trabalho. Você não sabe como salvar esse relacionamento. Está no fim de suas forças.

Talvez você viva lutando contra o mesmo pecado. Você tenta superá-lo mas sempre retrocede. Já o confessou, resolveu, mas nada parece adiantar. Você está pronto para se entregar secretamente de uma vez por todas.

O deserto é o lugar das tentações. Foi no deserto que Jesus enfrentou a tentação de não cumprir a vontade do Pai, de to­mar um atalho e governar os reinos do m undo em vez do ár­duo caminho da cruz. O deserto é o lugar onde você tem de enfrentar a questão da perseverança. O deserto é o lugar onde apenas os pacientes persistêmTVocê vai seguir a coluna hoje de novo? Vai continuar a seguir quando todo o estímulo para se­guir terminar?

Talvez seu casamento tenha se tornado uma experiência no deserto. Você tinha esperanças e sonhos que não se realizaram e quem sabe nunca se realizarão. Você será pacientemente obedien­te a Deus em seu casamento? Vai amar o seu cônjuge dia após dia? Vai amar com toda a sabedoria de que é capaz, mesmo que não possa mais contar com a ajuda dos hormônios, do romantismo ou da aparente compatibilidade entre vocês?

Um casal de velhinhos está deitado na cama. A esposa não está satisfeita com a distância que há entre eles. Ela lembra:

— Quando éramos jovens, você costumava segurar a minha mão na cama.

Page 120: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 131

Ele hesita e, depois de um breve momento, estica o braço e segura a mão dela. Ela não se dá por satisfeita.

— Quando éramos jovens, você costumava ficar bem pertinho de mim.

Uma hesitação mais prolongada agora e, finalmente, resmun­gando um pouco, ele vira o corpo com dificuldade e se aconchega perto dela da melhor maneira possível.

Ela não se dá por satisfeita.— Quando éramos jovens, você costumava mordiscar a minha

orelha.Ele dá um longo suspiro, joga a coberta de lado e sai da cama.

Ela se sente ofendida.— Aonde você vai?— Buscar minha dentadura.Uma coisa é mordiscar a orelha de alguém quando se é jovem,

está apaixonado, ela cheira um perfume delicioso e fazer isso é fácil.

O utra coisa é mordiscar a orelha quando ela já não ouve muito bem, usa um aparelho de surdez dentro do ouvido, seu corpo cheira gelol e você ainda tem de levantar para buscar a dentadura.

O deserto é o lugar onde você aprende a ser obediente quando não é fácil. Por isso, pode ser um lugar de grande fortalecimento.

N o D eserto En c o n t r a m o s o A m o r de D eus

Por mais estranho que pareça, o deserto nos oferece a oportunida­de única de experimentarmos a intensidade do amor de Deus.

Quando você está por cima, orando com grande alegria, livre de tentações, triunfando em seu ministério, e busca a Deus e ouve novamente a mensagem de que ele o ama, é maravilhoso.

No deserto, por outro lado, a palavra do amor de Deus fala mais fundo em nossos corações. No deserto você fala com Deus, mas não tem orado muito (ou nenhuma vez), foi vencido pela tentação, ficou abalado com dúvidas e acha que pode ser mais um

Page 121: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

132 A m o r a l ém d a r a z ã o

empecilho do que uma ajuda na obra que Deus está realizando no mundo, seja ela qual for. Mas, mesmo assim, você ouve as palavras: “Eu ainda amo você. Não pode­ria amar mais do que já amo. Ainda quero que seja meu filho. Você ainda não apren­deu? Você é o objeto de minha eterna afei­ção. Você é querido por mim”.

Ser amado quando nos sentimos amá­veis é bom. Ser amado quando nos senti­

mos mal e desprezíveis, essa é a vida que todo mundo pediu para ter. É uma bênção.

O deserto é o lugar onde podemos aprender a viver pelo amor de Deus.

Algum tempo atrás, em um restaurante, uma de nossas filhas encontrou uma daquelas máquinas em que se coloca uma ficha e, operando com certa habilidade um pequeno guindaste, tenta-se pegar um dos brinquedos amontoados dentro dela. São cinqüen­ta centavos por ficha. A princípio, nossa filha adorou a máquina. Mas ela gastou cada centavo que tinha sem conseguir ganhar nada. Isso acabou com ela. Depois disso, ela deixou de adorá-la.

O deserto é um período em que não conseguimos a promoção, a casa, o sucesso ou até mesmo a saúde que queremos. É esse o mo­mento em que descobrimos se amamos a Deus sinceramente ou o fazemos simplesmente porque ele nos dá leite e mel. O que faço quando coloco todas a minhas orações em ação e não ganho nada?

O deserto realmente tinha a intenção de ser um lugar onde Deus poderia estar com seu povo, para que ele o conhecesse e confiasse nele. Brevard Childs escreve: “A intenção de Deus era que eles aprendessem a amá-lo e sempre se lembrassem da ex­periência no deserto como uma época idílica que eles tiveram com ele na vida”.

É claro que o deserto não é nenhuma terra prometida. Viver ali não era fácil. Quarenta anos naquele lugar era uma sentença, uma

O D E S E R T O N O S O FE R E C E A

O P O R T U N ID A D E Ú N IC A D E

EX PER IM EN TA R M O S A IN T E N S ID A D E

D O AM OR D ED e u s .

Page 122: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 1 3 3

conseqüência do pecado. Mas até a sentença de Deus está cheia de amor e o seu maior desejo era que o deserto não fosse um lugar de sofrimento para Israel, mas de amor.

No deserto não era preciso construir grandes cidades, vencer grandes batalhas. Era apenas Deus com seus bonecos de pano. Ele iria alimentá-los toda manhã, guiá-los durante o dia e protegê-los durante a noite. A intenção de Deus era que o deserto significasse vida além das realizações. Era para ser uma vida de amor.

Frederick Buechner descreve como o deserto pode ser o lugar do amor de Deus:

Quando acontece o pior, ou quase acontece, instala-se uma es­pécie de paz. Já fui além da dor, do terror, de tudo exceto a esperança, e foi lá, no deserto, que pela primeira vez na minha vida pude ver o que significa amar realmente a Deus. Foi apenas um vislumbre, mas foi o mesmo que encontrar água fresca no deserto. [...] Eu o amei porque não tinha restado mais nada. Eu o amei porque ele pareceu se mostrar tão indefeso em seu poder quando eu estava em meu desamparo. Eu não o amei apesar de não haver nada ali para mim, mas quase exatamente porque não havia nada. Pela primeira vez na vida, lá no deserto, entendi o que pode significar realmente amar a Deus, só por amar, amá-lo incondicionalmente.

A Esperança n o C a m in h o Á r d u o

A vida de Sandy era um mar de rosas. Ela foi criada na fé; seu avô era pastor de uma igreja na qual ela cresceu. Ela se formou em uma faculdade cristã, começou a trabalhar como enfermeira pediá­trica e casou-se com um bom homem cristão.

Quatro anos mais tarde, quando estava grávida de dois meses de seu primeiro filho, seu marido lhe disse que se sentia sufocado e achava que não estava pronto para ser pai. Dois meses depois, ela ficou gravemente doente e, enquanto estava hospedada na casa da irmã, ele a deixou.

Page 123: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 3 4 A m o r a lém d a r a z ã o

Sandy não sabia, mas tinha acabado de tomar um caminho árduo. Ela orava por seu marido, certa de que ele retornaria como o filho pródigo. Mas acabou descobrindo que ele era infiel. Além disso, ainda tinha contraído uma doença sexualmente transmissível.

Quando a criança nasceu, o presente que ela recebeu do pai foi a doença que tinha passado para ela. Na hora do nascimento, o bebê ficou em silêncio em vez de chorar, estava azul e inerte quan­do deveria estar rosado e ativo. Rachel nasceu anencefálica, com apenas uma haste que cuidava das funções mais básicas.

Os médicos disseram que ela morreria em questão de dias ou semanas, mas as semanas se tornaram meses e os meses, anos. A vida de Sandy se resumia em trabalhar doze horas por dia, en­quanto a irmã ou uma amiga ficava com o bebê, e depois passar o resto do tempo cuidando de Rachel.

Esse árduo caminho não continha nenhum dos sonhos que os pais geralmente nutrem em relação aos filhos. Sandy nunca filma­ria a filha indo para o seu primeiro dia na escola; não haveria boletim, presente no dia dos namorados, aulas de culinária, teste para tirar a carteira de motorista e nem gente andando pela casa. Sandy nunca veria a filha dar o primeiro passo, nunca sentiria seus dedos gorduchos segurando sua mão, nunca ouviria sua risa­da nem a ouviria dizer “eu a amo” e nem “mamãe”.

Sandy não podia nem dizer que Rachel sabia quem era sua mãe. A única vez que a menina parecia reagir a qualquer coisa era na hora do banho: quando Sandy esfregava suas costas, Rachel solta­va pequenos gemidos como se sentisse prazer.

Um dia, Sandy decidiu tirar férias, a única em três anos. Seria o primeiro dia que ela passaria longe da filha desde que Rachel ti­nha nascido. Quando Sandy ligou do hotel, sua irmã segurou o telefone no ouvido de Rachel e depois contou-lhe que a menina tinha balbuciado enquanto ouvia sua voz. Foi a única indicação que Sandy teve de que a filha a reconhecia.

Quando chegou no aeroporto, seu cunhado a encontrou e dis­se o que ela, de alguma forma, já esperava ouvir: sua filha tinha morrido.

Page 124: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 1 3 5

O pai de Rachel não apareceu no funeral, nunca perguntou da filha e nem nunca disse: “Lamento muito”. Somente seis anos mais tarde, Sandy conseguiu ler o diário que ela fez durante a vida de Rachel. Na maior parte, ela se perguntava por quê. “Não tive resposta naquela época”, Sandy disse. “E continuo não tendo ago­ra”. Era uma estrada escura, esse caminho árduo.

Contudo, se você perguntar a Sandy se ela preferiria que sua filha nunca tivesse nascido, ela responderá que jamais pensaria nisso. Ela dirá que sentia uma comunhão tão forte quando segu­rava o bebê no colo que mal podia descrever. Ela dirá que apren­deu o que é amar além das limitações e imperfeições, olhar direto para o espírito e amar o que se vê. Ela não se arrepende nem um pouco de ter trazido Rachel para casa e ter lhe dado todo o amor.

Ela dirá que decidiu perdoar. Ela teve de perdoar o marido que nunca havia pedido o seu perdão nem demonstrava querer isso, mas certamente não o merecia. Ela teve de perdoá-lo porque se­não passaria a vida presa ao ressentimento.

Ela teve de perdoar a si mesma, pela amargura, tristeza, pelas limitações e oportunidades que desejou ter novamente.

E, por estranho que pareça, ela teve de encontrar uma forma de perdoar a Deus, por não atender às suas orações que eram justas e por não proteger Rachel.

De alguma forma, no árduo caminho, apesar das perguntas não respondidas e de toda a confusão, ainda assim é preciso fazer uma escolha. Há esperança nesse árduo caminho? É um beco sem saída ou será que, depois de todas as curvas e voltas, essa estrada vai dar em um lugar seguro?

U m a Fa t a lid a d e Q ue D ar ia u m a H istó ria

Norman MacLean tem uma bela passagem em seu impressionan­te livro Young men andfire [Os jovens e o fogo]. É a história poética de sua longa tentativa de quatro décadas de encontrar um signifi­cado para a morte de todo um esquadrão de jovens pilotos de avião de combate a incêndio que morreram em ação no deserto

Page 125: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 3 6 A m o r a l ém d a r a z ã o

de Mann Gulch Montana em 1948. O livro também é uma me­ditação sobre a vida e a mortalidade que se torna mais premen­te com a morte de sua própria esposa.

MacLean fala das mortes em Mann Gulch:É uma fatalidade que esperamos que não termine onde come­çou; ela pode continuar e se transformar em uma história [...] [Esperamos] que neste mundo maluco de formas e cores, se tivermos um pouco de curiosidade, prática e compaixão e to­marmos o cuidado de não mentir nem sermos sentimentais [...], então este assunto do qual tratamos começaria a mudar de uma fatalidade sem sentido para o que poderíamos chamar de histó­ria de uma tragédia, sendo que a tragédia seria apenas uma parte disso, como o é da vida.

A fatalidade não é apenas brutal, mas aleatoriamente brutal. Não há nada de pessoal nela. É um acidente. É o rangido do acaso nas engrenagens insensíveis da máquina cósmica. Não há nenhum sentido ou significado; apenas dor. Se a existência humana é uma mera fatalidade — o rolar de dados que um dia irá parar quando a última vida for destruída — , então não temos esperança. Na fatalidade, o grito de abandono é a última palavra.

Mas as histórias têm significados. Onde há uma história, há um contador de histórias. As histórias podem conter tragédias, mas as tragédias são pessoais, têm uma explicação. Portanto, onde há tragédia, há a possibilidade de redenção. Onde há tragédia, há esperança.

Os autores da Bíblia sabiam tudo sobre fatalidades. O homem está acostumado a vê-la desde a queda. Mas Deus não quer que a

raça humana termine em uma fatalidade; ele quer que ela continue e se transforme numa história. A esperança cristã se baseia na de­claração de que Deus decidiu tomar a nossa tragédia para si. O próprio Deus tomou o caminho árduo. MacLean escreve:

O N D E HÁ T R A G ÉD IA , H Á A P O S S IB IL ID A D E D E R E D E N Ç Ã O .

Page 126: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O caminho mais árduo 137

A expressão mais eloqüente desse grito partiu de um jovem que veio do céu e retomou para ele; um jovem que, enquanto estava na terra, sabia que estava sozinho e à frente de todos os homens e que, quando morreu, morreu num monte: “Por volta da hora nona exclamou Jesus em alta voz: Eli, Eli, lemá sabactâni, que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”.

A esperança cristã diz que o próprio Deus passou pela Via Do­lorosa: o caminho árduo. Portanto, a cruz não é simplesmente uma fatalidade, é uma parte da História. E o dia está chegando em que ela salvará a sua história e a minha, se permitirmos.

A esperança cristã diz que o grito de desamparo é uma palavra real, mas não será a última palavra.

A esperança cristã diz que o que aconteceu com Sandy não é apenas uma fatalidade. Não é simplesmente o problema de um defeito genético, um pedaço de D N A estragado, que conferiria a Rachel a qualidade de ser um breve e insignificante acidente na ordem cósmica. A esperança cristã diz que o que aconteceu a Sandy e a Rachel é parte de uma história, uma trágica história até o mo­mento, mas a tragédia não é tudo. A esperança crista diz que o D NA defeituoso não ficará com a última palavra. A esperança cristã diz que um dia Sandy e Rachel se sentarão na mesma mesa e se conhecerão e se entenderão profundamente; e as palavras de gra­tidão que Rachel não pôde dizer antes, fluirão naturalmente; e os órgãos que foram fracos e inúteis neste mundo, terão graça e bele­za então; a mente que foi traída aqui, resplandecerá num mar de criatividade e inteligência. A esperança cristã diz que aquele que faz a cirurgia reparadora ainda não terminou e que chegará o dia em que a efêmera e despercebida vida de uma pequena boneca de pano deste mundo, brilhará pelos tempos com uma glória que não somos capazes imaginar nem compreender.

A esperança cristã diz que estamos a caminho de sair da fatali­dade e da tragédia para uma história de glória. Estamos a cami­nho. Pode ser um caminho degradante e árduo, mas, apesar de tudo, está fadado à glória.

Já chegamos?Ainda não. Um dia, mas não agora. Seja paciente.

Page 127: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graNão recebemos de Deus nada além de seu amor e sua graça, pois Cristo nos deu sua promessa e sua virtude e tudo o que possuía; ele nos entregou todos os seus tesouros, cujo valor nenhum homem é capaz de avaliar e nenhum anjo é capaz de entender ou sondar, pois Deus é uma fornalha incandescente de amor que aquece a terra e o céu.

M artin L uther K ing

E sta história é sobre uma boneca de pano chamada Agnes, que encontrou um homem de bom coração chamado Tony

Campolo. De viagem no Havaí mas ainda vivendo no fuso horá­rio do leste, Tony entrou em um restaurante às três da madruga­da. As únicas pessoas que restavam ali era um grupo de prostitutas que tinham terminado a noite. Uma delas (Agnes) mencionou que fazia aniversário no dia seguinte e que nunca teve uma festa de aniversário na vida.

Depois que elas saíram, Tony soube por Harry, o cara atrás do balcão, que toda noite elas vinham para aquele restaurante. Tony perguntou se poderia voltar na noite seguinte e dar uma festa. Harry concordou, mas somente com a condição de que sua espo­

Page 128: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

140 A m o r a lém d a r a z ã o

sa fizesse a comida e ele, o bolo. A seguir há uma versão resumida da história.

Às 2h30 da madrugada do dia seguinte, voltei ao restauran­te. Eu tinha comprado papel crepom em uma loja e fiz uma faixa de cartolina em letras bem grandes escrito: “Feliz aniversá­rio, Agnes!”.

A mulher que fez a comida deve ter espalhado a notícia por­que, por volta das 3 h l5, todas as prostitutas de Honolulu já estavam no local. Era prostituta para todo o lado... e eu!

Às 3h30, a porta do restaurante foi aberta e Agnes e sua ami­ga surgiram. Todo mundo estava pronto esperando por elas e, quando entraram, gritamos: “Feliz aniversário!”.

Eu nunca tinha visto alguém ficar tão surpreso. Ela abriu a boca e suas pernas enfraqueceram. Quando paramos de cantar, ela estava com os olhos marejados; quando trouxeram o bolo, ela começou a chorar.

Harry disse bruscamente:— Assopre as velas, Agnes. Vamos! Se você não assoprar, vou

ter de apagar por você. — E foi ele mesmo quem acabou fazendo. Na hora de cortar o bolo, a hesitação demorou um pouco mais.

— Corte o bolo, Agnes. Todo o mundo vai querer um pe­daço.

— Escute, Harry, será que daria para esperar um pouco an­tes de cortar?

— Claro. Se você não quer cortar, não corte. Pode levar o bolo para casa, se preferir.

— Eu posso? — Então ela olhou para mim. — Eu moro logo ali no fim da rua. Vou levar o bolo pra casa e volto daqui a pouco, tá?

Ela carregou o bolo pela porta como se fosse o Santo Graal. Ficamos imóveis e o silêncio tomou conta do lugar. Sem saber o que fazer, eu disse de repente:

— Que tal fazermos uma oração?Lembrando disso agora, é uma coisa bastante estranha para

um sociólogo fazer uma oração em um restaurante em Honolulu às 3h30 da madrugada. Mas naquela hora me pareceu a coisa

Page 129: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 141

certa a fazer. Orei por Agnes, por sua salvação, para que sua vida mudasse. Para que Deus fosse bom para ela.

Quando terminei, Harry debruçou-se sobre o balcão e disse um pouco irritado:

— Ei, você não tinha me dito que era pastor. Em que tipo de igreja você prega?

Em um daqueles momentos em que as palavras certas saem da sua boca, eu disse:

— Sou de uma igreja que dá festa para prostitutas às três e meia da manhã.

Harry esperou um momento e disse em tom de zombaria:— Mentira. Não existe uma igreja assim. Se existisse, eu já

estaria lá há muito tempo.Não estaríamos todos? Será que todos nós não adoraríamos

entrar para uma igreja que prepara festas de aniversário para prostitutas às 3h30 da manhã?

É esse tipo de igreja que Jesus veio criar. Não sei onde fomos arranjar essa outra que é tão sóbria e comportada. Mas quem leu o Novo Testamento sabe que Jesus adorava ser generoso em sua boa vontade com os excluídos, os explorados e os humilha­dos. Os pecadores o amavam porque ele festejava com todos eles. Os leprosos da sociedade encontraram nele alguém com quem podiam comer e beber.

E assim que a igreja deveria ser. Um grupo de bonecos de pano que são amados, mesmo sabendo que nao merecem, e que por sua vez o transmitem aos outros porque se recusam a permitir que sua degradação os impeça de amar. Porque o amor é a assinatura de Deus. E a graça fortalece o amor.

Philip Yancey cita uma questão que Gordon MacDonald apre­sentou para ele durante uma conversa que ambos tiveram: o que a igreja tem a oferecer de diferente que o mundo não possa conse­guir em outro lugar?

Afinal, observou MacDonald, você não precisa ser cristão para construir casas para os sem-teto, dar alimento aos necessitados ou donativos para a caridade. Você não precisa ser cristão para tentar

Page 130: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

142 A m o r a l ém d a r a z ã o

V i v e r n aGRAÇA, E N U N C A

SE E SQ U E C E R D E L A , É O Q U E

SU ST E N T A O A M O R .

fazer uma mudança política ou transmitir a legislação social. Tam­bém há outras tradições e professores que oferecem orientações morais sábias.

O que a igreja tem a oferecer de diferente que o mundo não possa conseguir em outro lugar?

Graça.Onde o mundo vai encontrar graça?Não vivemos num mundo de graça. Nes­

te mundo, nada vem “de graça”. Você colhe o que planta. Nada de comida grátis. E olho por olho. Tudo tem um preço.

Quando foi a última vez que você saiu de carro e viu um ato de graça? Quantas vezes você já viu alguém abaixar a janela e dizer: “A graça esteja contigo. Eu lhe perdôo por me cortar a frente. Eu dou o outro pára-choque. Você quer que eu lhe dê passagem? Eu lhe dou até o meu braço se você quiser”. Quando foi a última vez que o juiz fez uma advertência a um jogador do time da casa e o estádio lotado gritou: “Agora não é hora de criticar. Agora mais do que nunca precisamos mostrar nossa graça para com ele. Que o ju iz seja perdoado!". Acho meio difícil. O nível de descortesia é tão grande que até um grito do tipo “Batam nesse juiz!” seria um ato de generosidade.

Viver na graça, e nunca se esquecer dela, é o que sustenta o amor. Mas perder o contato com ela, esquecer de que se é amado só porque Deus é graça, é o maior veneno contra o amor.

Sheldon Van Auken escreveu: “o melhor argumento a favor da cristandade são os cristãos: sua alegria, certeza e plenitude”.

Adivinhe qual, segundo ele, é o melhor argumento contrai “Quando os cristãos são melancólicos, sombrios, convencidos, presunçosos, intolerantes e repressores — a cristandade morre mil vezes seguidas”.

Acho que Dallas Willard escreveu uma das mensagens mais sábias que existem atualmente a respeito do perigo da vida espi­ritual “sem graça” (nos dois sentidos):

Page 131: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 1 4 3

Quantas pessoas são repelidas, de forma brutal e permanente, por cristãos insensíveis, teimosos, inacessíveis, chatos, impassí­veis, obsessivos e insatisfeitos? E eles estão por toda a parte. O que lhes falta é a jovialidade saudável de uma vitalidade equili­brada pelos preceitos do amor de Deus. A espiritualidade, quan­do mal interpretada ou praticada, é a maior causa do sofrimento humano e da revolta contra Deus.

A espiritualidade, quando bem compreendida, é um sinal de vida. É a humilde aceitação da graça e a escolha confiante pelo amor.

A espiritualidade, quando mal interpretada, é um sinal de mor­te: a maior causa do sofrimento humano e da revolta contra Deus. A espiritualidade mal interpretada gera pessoas que, equivocada- mente, consideram sua falta de amor uma superioridade moral. Gera pessoas que pensam que sua degradação é, na verdade, uma virtude. Vamos examinar alguns bonecos de pano considerados “religiosos”, pessoas que escondem sua degradação sob a máscara da religiosidade — porém, mal interpretada.

Bo n e c o s de Pa n o ' 'R e l ig io so s"

Ele era um homem nervoso: nervoso com seus filhos, com as pes­soas com quem trabalhava, com as pessoas com quem freqüentou a igreja a vida toda. Ele comprava briga sobre aspectos da doutri­na, sobre o que deveria estar escrito na faixa em frente à igreja, sobre qual deveria ser o lema da igreja.

O maior motivo de assistir aos cultos não era encontrar a Deus ou abrir-se para ele, mas apontar as falhas dos sermões.

Quem não era da igreja, não o suportava porque ele era irritan­te. Dentro da igreja, porém, seu modo de ser era considerado uma espécie de zelo pela verdade.

Ele tinha a reputação de uma pessoa de grande religiosidade, mas não era capaz de amar.

Ela era a pessoa mais tem ida na igreja. Era m estre em culpar e m anipular os outros. Ela era a o rientadora do grupo fem inino de

Page 132: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 4 4 A m o r a l ém d a r a z ã o

estudo bíblico, mas deixava bem claro que só seriam bem-vindas as pessoas que cumprissem exatamente as suas ordens. Ela fazia parte da vida de muita gente mas não amava ninguém. A verdade é que ela nem mesmo gostava das pessoas.

Todo mundo sabia que, em casa, era ela quem mandava, muito embora, ironicamente, defendesse com fervor a tradição que dita que o homem é quem deve ser o chefe da casa. Em sua casa, por­tanto, seu marido era o chefe — porque ela disse que ele era, e pobre dele se não “chefiasse” do jeito que ela queria. Ela o coloca­va de joelhos.

Ela tinha a reputação de uma pessoa de grande religiosidade, mas não era capaz de amar

Ele é um escritor e líder cristão que se considera um defensor da verdade. Ele adora arrasar com os cristãos que não concordam com sua posição doutrinária. Ele não apenas se opõe às opiniões, mas ridiculariza, distorce e denigre as idéias e motivações dos ou­tros. Ele quer colocar defeitos nos outros. Também gosta de colo­car defeito nos personagens políticos com quem ele não concorda. Ele cria e espalha boatos mesmo sem ter certeza se está dizendo a verdade. Ele blasfema em nome da verdade.

Ele tem a reputação de uma pessoa de grande religiosidade, mas não é capaz de amar.

Ela vivia reclamando. Reclamava de seus filhos já adultos, di­zendo que não a tratavam bem, de seus vizinhos, do dinheiro, mudanças e da vida em geral.

Quando a igreja que ela freqüentava pas­sou por uma reforma, se opôs a tudo, não tanto porque não gostava das modificações mas por­que elas poderiam significar uma perda de con­trole para ela. As mudanças iriam abrir a igreja para descrentes, gente que ela não queria ali, gente que não enxergava, nem pensa­va, nem se vestia e nem votava como ela.

Não faz muito tempo, essa igreja sofreu uma ruptura. Tratava- se de atitudes desprezíveis e depravadas e, por isso, o corpo de

T o d o m u n d o t e m S E U S D E F E IT O S .

Page 133: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 1 4 5

Cristo foi dividido em dois. As mudanças que ameaçavam o seu controle foram banidas, junto com todos os descrentes. A igreja ficou muito mais sóbria, artificial e inacessível para os visitantes do que antes.

E ela ainda comentou com uma amiga: “Não é maravilhoso? A nossa igreja voltou a ser a mesma!”.

Ela tinha a reputação de uma pessoa de grande religiosidade, mas não é capaz de amar.

O maior problema não é que pessoas desse tipo existam. Todo mundo tem seus defeitos. Deus sabe que eu tenho defeitos maio­res do que esses.

O problema não é existir pessoas desse tipo na igreja. A igreja é um local para pessoas imperfeitas.

O problema é que em toda igreja essas pessoas não são considera­das irmãos e irmãs mais fracos que precisam de ajuda. Elas ficariam extremamente ofendidas se alguém pensasse ou lhes dissesse isso.

O problema é que elas são vistas como exemplos de religiosida­de. Elas eram como os outros achavam que se deveria ser. As pes­soas se sentiam intimidadas por elas, por considerá-las modelos de superioridade espiritual. As pessoas ficavam desanimadas e pen­savam que talvez não quisessem realmente ser religiosas porque não gostariam de se parecer com elas. As pessoas se sentiam ofen­didas, derrotadas ou desesperadas com a degradação da cristanda­de desprovida de graça.

Qual o verdadeiro sentido da religiosidade? É uma vida de ad­miração, respeito, alegria, simplicidade, devoção, gratidão, doa­ção, humildade, coragem e honestidade. Sendo que a sua caracte­rística principal é sempre o amor.

~Í- Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.

Ainda que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que eu tivesse toda a fé, de

Page 134: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 4 6 A m o r a lém d a r a z ã o

maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.

Q uando Jesus apresentou a verdadeira interpretação da espiritualidade, as pessoas deixaram tudo para trás: abandonaram suas posses, sacrificaram suas carreiras, renunciaram aos seus atos e pecados do passado, aceitaram a perseguição e o sofrimento, e fizeram tudo com alegria. Elas o fizeram rindo, chorando, come­morando e dançando, porque eram amadas apesar de sua condi­ção. Elas o fizeram porque estavam convencidas de que tinham finalmente encontrado uma pérola de grande valor, tinham en­contrado o bilhete premiado da loteria, tinham encontrado tudo. Jesus era tudo.' A espiritualidade mal interpretada gera pessoas convencidas, presunçosas, incapa­zes de amar e de sentir. Gera corações de pedra, máscaras de plástico, rostos tristes, vidas hipócritas e almas sofridas.

Não faz muito tempo, minha esposa, ou eu (de repente não me lembro bem), teve a idéia de fazermos um curso de dança. O outro concordou porque quem deu a idéia era uma pessoa graciosa e porque essa era uma forma de ganhar pontos no casamen­to — como um programa de “milhagem matrimonial” que poderia ser reembolsa­do mais tarde.

Nossa instrutora era bailarina clássica da Europa oriental. Ela não dava um passo nem fazia um movimento que não tivesse gra­ça. Cada gesto dela era pura poesia.

Prestei atenção em tudo o que ela disse. Tentei obedecer a todas as suas ordens. Contava o ritmo como se fosse um metrônomo humano. Sabia o que devia fazer. E tentei fazê-lo.

O M UNDO E ST Á CHEIO D E

C R IST Ã O S Q U E D E C L A R A M

C R ER NO Q U E É V E R D A D E IR O E

SE D IZ E M C O M PR O M E T ID O S COM OS VA LOR ES M OR AIS C E R T O S,

MAS Q U E NÃO SÃO CAPAZES D E

N E N H U M ATO D E GRAÇA.

Page 135: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 147

Mas eu contava em voz alta e olhava para os meus pés; ficava com a língua para fora como Michael Jordan quando vai enter­rar a bola na cesta. Sentia-me duro e pesado. Conhecia meus defeitos.

A instrutora disse que me faltava uma coisa. Em uma única palavra: graça. (O que ela realmente disse é que, simplesmente, me faltava “equilíbrio, coordenação e a capacidade para fazer os movimentos sem atrapalhar o resto da classe”; mas é quase a mes­ma coisa.)

O mundo está cheio de cristãos que declaram crer no que é verdadeiro e se dizem estar comprometidos com os valores certos, mas que não são capazes de nenhum ato de graça.

Sem a graça, a vida fica pesada e embrutecida.Sem a graça, as pessoas se machucam.A obra Os miseráveis, de Victor Hugo, conta a história da vitó­

ria do amor misericordioso de Deus sobre a degradação humana. O condenado fugitivo, Jean Valjean, que ficou preso por vinte anos por roubar um pedaço de pão, conhece a hospitalidade de um bispo. Mas a tentação é muito grande; ele rouba alguns obje­tos de prata do bispo à noite. Detido por um policial, ele mente e consegue uma saída para se livrar da culpa. A prata foi um presen­te, ele diz. O policial o leva de volta para o bispo e Jean Valjean espera ouvir as palavras que o levariam de volta à prisão para lá ficar até o dia de sua morte. Nada no mundo poderia prepará-lo para o que ele estava para ouvir. “Você se enganou”, o bispo disse a Valjean. “É claro que essa prata foi um presente. Mas só parte dele. Você se esqueceu da peça mais valiosa. Você se esqueceu de levar os candelabros de prata.”

Jean Valjean esperava por uma acusação que ele sabia que me­recia, em vez disso, é agraciado com o perdão. Num momento, ele está diante da miséria e da prisão, no momento seguinte, ele ganha a liberdade e a fartura. Antes de Valjean partir, o bispo lhe diz: “Nunca se esqueça do que aconteceu aqui. Você ganhou uma nova vida e uma nova alma. Você não está sozinho. De agora em diante, você pertence a Deus.”

Page 136: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 4 8 A m o r a l é m d a ra z ã o

E por causa dessa graça, a vida de Jean Valjean se transforma num ato de amor. Ele honra a promessa que faz a uma prostituta moribunda e cria Cosette, a filha dela. Mais tarde, ele acaba se arriscando para salvar o homem que ama Cosette, mesmo saben­do que isso significaria ficar sozinho.

Ao contrário de Jean Valjean, existe um homem comprometi­do com a lei, com a “espiritualidade mal interpretada”; o policial Jauvert. Jauvert está convencido de sua própria retidão. Olho por olho, dente por dente. Ele é um campeão de moralidade e justiça. Ele passa a vida inteira tentando recapturar Jean Valjean.

Vamos ser justos com Jauvert. Ele acredita em muitas coisas boas. Ele se compromete com a verdade, quer acabar com a injus­tiça, sonha com uma sociedade sem roubos, fraudes ou corrupção. Ele sacrifica sua vida em busca dessa sociedade e acredita sincera­mente que é um representante do bem.

Em seu mundo, porém, não há espaço para o perdão. E, cego em sua própria necessidade de graça, sua capacidade de amar definha e morre. Ele não tem misericórdia. A maior crise da sua existência acontece quando Jean Valjean arrisca a própria vida para salvar a dele, seu perseguidor implacável. Mas Jauvert não se permite rece­ber essa graça. Ele entra em desespero e se mata, em vez de admitir a verdade: sua própria degradação era tão grande quanto a dos cri­minosos que ele tinha passado a vida inteira tentando punir.

No final, é Valjean, o condenado, que se mostra capaz de amar. Ele descobre o que é revelado tão lindamente no musical Les miserables: “Amar alguém é poder ver a face de Deus”.

A graça é a única coisa que a igreja tem a oferecer que não se encontra em nenhum outro lugar. E por isso que o Novo Testa­mento fala tanto sobre ela.

Um dia, ele veio para um boneco de pano chamado Paulo. Ele tinha o tipo mais perigoso de defeito. Ele achava que Deus o ama­va porque ele era digno do seu amor: “Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a lei, fariseu; segundo o zelo, perseguidor da

Page 137: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 149

igreja; segundo a justiça que há na lei, irrepreensível.” Estava claro para Paulo que Deus estava fazendo um bom negócio com ele. Como Jauvert, ele tinha devotado a vida perseguindo e castigan­do aqueles que não respeitavam a lei como ele.

Ele tinha certeza do que acreditava, estava totalmente compro­metido com seus valores.

Mas faltava alguma coisa.Então, Paulo encontrou a graça. Ou melhor, a graça o encon­

trou. Com isso, Paulo percebeu que todos os seus atos — que em si não eram maus — tinham alimentado o orgulho e o preconcei­to em seu coração. Eles o levaram para longe de Deus e do amor pelos outros. Com isso, ele percebeu que sua justiça era como um trapo sujo.

Assim, ele precisou fazer uma auditoria radical. Ele contou todas as suas antigas posses que agora considerava skubala, uma palavra difícil de traduzir. “Imundície”, “estrume” e até “excremento” são usadas, mas são palavras muito educadas; elas não traduzem o des­prezo de Paulo. E uma palavra bem forte: Skubalas acontecem. Tudo o que tentasse impedir Paulo de viver na graça — por melhor que isso lhe parecesse antes — era um skubala.

Sem Esquecer Q ue So u A m a d o pela G raça

Paulo é conhecido como o apóstolo da graça porque não conse­guiu parar de escrever sobre ela. Nos poucos versículos de sua carta aos colossenses, ele usa uma série de metáforas para explicar a graça do amor de Deus.

Ele compreendeu uma das coisas mais importantes que, nós cristãos, precisamos fazer que é lembrar, não apenas que fomos salvos pelo perdão, mas que somos amados hoje pela graça divina. Deus não nos salvou pela graça somente para decidir que agora iria nos julgar conforme o nosso desempenho espiritual. O amor de Deus é sempre misericordioso.

D e u s q u e rQ U E VOCÊ FAÇA PARTE IJE SU A FA M ÍL IA . E S S E É O M ILAGRE

D A GRAÇA.

Page 138: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 5 0 A m o r a l ém d a r a z ã o

Ele fala da circuncisão e do batismo, os rituais de iniciação pe­los quais fomos introduzidos em uma nova comunidade.

Todo mundo já experimentou a dor de se sentir excluído, de não ser desejado na escolha de um time, de ser desprezado por alguém que se ama ou esquecido por quem se considerava amigo, de ser mantido à distância por alguém da família, às vezes até pelo próprio cônjuge.

Agora o próprio Deus está dizendo que você foi escolhido. Você é desejado. Deus quer que você faça parte de sua família. Esse é o milagre da graça.

Por um ato de graça, diz Paulo, ainda estamos vivos. Você esta­va morto aos olhos de Deus: você tinha temor mas ninguém para adorar, culpa mas ninguém para perdoá-lo, necessidade de um propósito mas ninguém para servir, medo mas ninguém que lhe desse esperança.

Agora você está vivo para Deus. você tem forças para resistir, poder para servir e um motivo para ter esperança. A morte por si não tem poderes sobre você. Esse é o milagre da graça.

Por um ato de graça, diz Paulo, fomos absolvidos. O “atestado de dívida” foi cravado à cruz e completamente perdoado. Já viu um cheque (não o nosso, é claro) com um carimbo escrito “sem fundo”? (Minha mãe contou que, no começo do casamento, quan­do eles receberam um extrato com a conta negativa, depositaram um cheque para compensar a diferença.)

Isso é graça para quem já se desesperou com o pecado. É a anulação de nossa montanha de dívidas morais. Se você já sentiu que há uma distância entre o que você é aquilo para o que foi predestinado, se sentiu como se não pudesse compensá-la, então recebeu uma graça. Deus assumiu a sua dívida e culpa e a cravou na cruz. Ele cancelou a dívida, destruiu a nota promissória, para que você pudesse ser eximido, libertado, absolvido. Você pode viver com o coração tão leve quanto uma pluma hoje, não impor­ta o que tenha feito ontem. Esse é o milagre da graça.

Page 139: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 151

Por um ato de graça, diz Paulo, “os principados e as potestades” foram despojados e expostos “publicamente ao desprezo” pela cru­cificação e ressurreição de Cristo. E uma metáfora militar.

Quando um general romano obtinha uma vitória, ele desfilava pelas ruas de Roma. Desarmava os generais derrotados e os fazia marchar até o fim do desfile, (eles não ficavam nem um pouco satisfeitos com isso, é claro). Eles eram tributos — gostando ou não — à vitória do conquistador.

Na crucificação e ressurreição de Cristo, diz Paulo, uma coisa diferente aconteceu. As forças que se uniram contra os seres hu­manos depois da Queda — Paulo é gloriosamente vago neste ponto por isso podemos incluir tudo: morte, culpa, maldade, poderes religiosos, poderes econômicos, poderes, sistemas e estruturas po­líticas — perderam todo o poder de causar um mal permanente. “Quem nos separará do amor de Cristo?”, Paulo pergunta e con­clui dizendo que nada tem poder para tanto.

A ressurreição de Jesus foi o começo de um desfile. O final ainda não passou por nós, mas está se aproximando.

Portanto, Paulo conclui, podemos viver na alegria, com abso­luta segurança; hoje, amanhã, depois de amanhã e cada dia da eternidade. Podemos distribuir amor a todos os seres humanos, mesmo que degradados. Esse é o milagre da graça.

Para Paulo, a igreja mantém a custódia da graça.Aliás, ele começa todas as suas cartas com a palavra “graça”.

Normalmente, as cartas gregas começavam com a palavra chairein, que significa “saudações”. Era um lugar-comum, um costume, como hoje escrevemos “prezado” no início das cartas, mesmo quan­do o destinatário não é realmente prezado por nós.

Paulo mudou esse costume usando uma nova palavra para de­signar “graça”, charis, que era parecida na forma, mas radicalmen­te diferente no significado. “Graça e paz seja convosco”.

E ele terminava da mesma forma: “A graça do Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito”; “a graça seja com todos os que amam”.

Page 140: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

152 A m o r a l ém d a r a z ã o

X A graça é a sua invocação; a graça é a sua bênção, a graça é tudo o que está entre as duas coisas.

Graça é o que levou Paulo ao chão na estrada para Damasco.Graça é o que o colocou de joelhos por seu pecado e o livrou

dele.A graça cravou na pele de Paulo um espinho para que evitasse

de ser destruído por sua própria arrogância e transformou a fra­queza dele na própria força do poder de Deus.

“A minha graça te basta”, Deus disse, e, para Paulo, graça é a primeira e a última palavra e todas as palavras do meio. Paulo nunca mais deixou de ficar admirado diante da graça.

Tudo isso nos leva a uma questão interessante: se a graça é a única coisa que a igreja tem a oferecer, se não há nada como um ato de graça, por que nos esquecemos dela com tanta facilidade? Por que igrejas cheias de pessoas que dizem que foram salvas pela graça podem ter gente tão intolerante? Por que parece que produ­zem mais inspetores Jauverts do que Jean Valjeans? Por que, quando se pergunta a um descrente o que mais lhe vem à cabeça quando se diz a palavra “cristão” (especialmente “evangélico”), ele cita uma postura política conservadora, condenatória ou moralista e não o amor repleto de graça?

Acho que isso tem algo a ver com orgulho. Esse é um tema importante na Bíblia. Os autores da Bíblia dizem que “Deus resis­te aos soberbos, mas dá graça aos humildes”. Isto porque somente os humildes desejam recebê-la.

Quando estamos desesperados, quando conhecemos a urgên­cia da nossa necessidade, estamos abertos à graça. Os cobradores de impostos e os filhos pródigos caem de joelhos com a maior facilidade.

Quando começamos a pensar que fizemos algo importante, passamos a querer ser reconhecidos por isso. Depois que conse­guimos entrar para um clube, ficamos seletivos com os que estão tentando entrar; senão, que graça tem?

Page 141: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 1 5 3

Há pouco tempo, um presidente de uma empresa cotada entre as 500 mais da revista Fortune parou em um posto de gasolina para encher o tanque. Ele entrou para pagar e, ao sair, viu que sua esposa estava numa conversa empolgada com um dos funcionári­os. Acontece que ela o conhecia. Na verdade, quando estava cur­sando o colegial, antes mesmo de conhecer seu atual marido, ela namorou esse homem.

O presidente entrou no carro e os dois saíram em silêncio. Ele estava se sentindo muito bem consigo mesmo quando finalmente disse: “Aposto que sei no que está pensando. Aposto que está pen­sando que teve sorte de se casar comigo, um executivo das 500 mais da Fortune, e não com ele, um funcionário de posto de gaso­lina”. Ela respondeu: “Não, eu estava pensando que se tivesse ca­sado com ele, ele seria um executivo das 500 mais da Fortune e você seria um funcionário de posto de gasolina”.

Ele não queria pensar que parte de suas conquistas poderia ter acontecido por causa dela. Queria todo o crédito para si. Queriao orgulho que acompanha aqueles que vencem com o esforço próprio.

Nós queremos a graça à moda antiga. Nós queremos merecê-la.

Pe r ig o : M a u U so d a G raça

Outra forma de “má interpretação da espiritualidade” é o que cha­mo de “mau uso da graça”. E um costume tão antigo quanto a igreja: quem consegue viver na graça sem abusar dela? Temos o antigo hábito de usar a graça como uma licença para o pecado.

Um autor bíblico disse: “Pois certos homens se introduziram com dissimula­ção [...], homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de nosso Deus, e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo”. De um lado, esse hábito de corromper a graça se deve à nossa própria

natureza pecadora e, de outro, à falta de compreensão do seu ver­

T e m o s o a n t i g oH Á B IT O D E USAR

A GRAÇA COMO U M A LIC EN Ç A

PARA O PEC A D O .

Page 142: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 5 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

dadeiro significado. Jesus usou a graça como exemplo na história do filho pródigo.

Quando o filho estava longe de casa, distraiu-se da distância que o separava do pai com dinheiro, amigos e o que Jesus chamou de “vida dissoluta”.

Um dia, ele acordou sem dinheiro e abandonado pelos supos­tos amigos, e a escassez se abateu sobre a terra. Em pouco tempo, ele passou a viver na pobreza e a comer o alimento que dava aos porcos. A cadeia de eventos colocou-o de joelhos, fez com que recobrasse o juízo.

Você reconhece o que essa cadeia de eventos representa? Isso mesmo, era a graça.

“Pela graça meu coração aprendeu a temer e por ela meus te­mores foram dissipados”, diz o antigo hino Amazinggrace [Graça surpreendente]. Nem sempre pensamos na graça como algo que instila o medo, mas a canção está certa.

Imagine alguém que mente descaradamente, engana sem o menor escrúpulo, cobiça sem sentir remorso, trai os amigos para conseguir o que quer e ainda faz tudo com arrogância e prazer. Então, um belo dia, ele olha no espelho e, pela primeira vez, tem um vislumbre do monstro que se tornou. Ele treme ao dar conta da sua capacidade de fazer coisas tão vis e desprezíveis.

Esse tremor, essa dor, é o começo da salvação. “Pela graça meu coração aprendeu a temer.” Depois, “por ela meus temores foram dissipados”.

Observe o modo como Jesus não contou a história. A história não conta que o pai procurou pelo filho enquanto ele ainda estava longe. N ão foi enquanto o filho esbanjava d inheiro na vida disso­luta que o pai disse: “Vista esta túnica, co­loque este anel na mão, coma o bezerro cevado para festejarmos”.

Não. O mais importante primeiro. O filho precisa querer voltar para casa, não porque precisava merecer a graça de seu pai,

S e v o c ê n ã oQ U IS E R VOLTAR

PARA CASA, PARA O PA I, NÃO Q U E R

SU A GRAÇA.

Page 143: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 1 5 5

mas porque a graça consiste, sempre e unicamente, de tudo o que puder ajudar alguém a voltar para casa e se entregar ao amor do Pai.

Portanto, se você não quiser voltar para casa, para_o_Pai, não quer sua graça.

Quando o filho estava se divertindo à toa, o que ele mais preci­sava — para voltar para casa — era sofrer. Por isso, ojofrimento foi uma graça que ele recebeu de presente. Depois, quando o filho estava sofrendo, o que ele mais precisava era ser recebido de volta em casa. Assim, a festa também foi uma graça.

Pois a graça consiste, sempre e unicamente, de tudo o que pu­der ajudar alguém a voltar para casa e se entregar ao amor do Pai.

Há outro modo que Jesus não conta a história. O grande pastor Fred Craddock, certa vez, contou como seria a história do filho pródigo se não existisse um ato de graça.

Dessa vez, o pai procura o filho mais velho, e não o pródigo, e diz: “Por toda a sua dedicação, pelos anos de trabalho no campo, vou mandar matar o bezerro cevado. Vista a túnica e use o anel. Receba o que você fez por merecer.”

Então, uma mulher sentada no fundo da igreja levantou-se e disse: “É assim que a história deveria ser”.

Mas Jesus não contou dessa forma. O irmão mais velho despeja seu ressentimento, e o pai abre o coração. Ficamos, porém, espe­rando pelo fim da história. O que o irmão mais velho vai fazer: participar da festa ou se tornar o novo fugitivo?

Jesus nunca chegou a dizer. Ele deliberadamente deixa a histó­ria inacabada. Obviamente, ele está rodeado de irmãos mais ve­lhos e eles mesmos terão de dar um fim para a história. Os irmãos mais velhos precisam de tanta graça quanto os filhos pródigos.

A graça consiste, sempre e unicamente, de tudo o que puder ajudar alguém a voltar para casa e se entregar ao amor do Pai.

Por isso Dietrich Bonhoeffer escreveu que não existe tensão entre discipulado e graça, quando entendidos corretamente. A graça, diz ele, é simplesmente uma oferta de discipulado. O discipulado é simplesmente a apropriação da graça. Não se pode ter um sem o outro. Mas isso é geralmente mal entendido.

Page 144: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

156 A m o r a l ém d a r a z ã o

Um homem pensava em ter um caso. Ele me disse: “Vou fazer isso. Pode estar errado, mas Deus vai me dar a sua graça”.

Graça é exatamente o que esse homem não quer. Ele não quer cair em si e arrepender-se. Só o que ele quer é não ter com o que se preocupar.

A graça não é nenhuma garantia de consciência limpa, mas muitas pessoas adotam essa visão distorcida. Elas passam ano após ano sofrendo de desobediência crônica, soltando a raiva sem pesar as conseqüências, praticando transgressões sem parar para pensar, recusando-se a viver com equilíbrio, gastando seu tempo e di­nheiro do modo como bem entendem, desconsiderando o cami­nho do Espírito, tudo em nome da graça.

Vivemos, dessa forma, sob a falsa idéia de que graça significa colocar Deus em uma situação delicada, inteligentemente tirando vantagem do evangelho. Essa atitude infelizmente revela uma idéia falsa de Deus, do pecado, do evangelho... e da graça.

Se você alimenta essa falsa idéia da graça, é hora de parar com isso. Agora. Faça o que for preciso para estar em casa, com o Pai.

V iver em G raça

Finalmente, como vamos fazer para lembrar que o amor que nos sustenta vem da graça?

Precisamos nos manter próximos da cruz. Precisamos, regular­mente, fazer um exame sincero de consciência, confessar nossos pecados e defeitos e aceitar a palavra da graça de Deus.

Os sábios escritores da vida espiritual costumavam alertar as pessoas para a ne­cessidade de se refletir sobre a cruz, sobre a morte de Cristo. Fica muito mais difícil ser ingrato com as pessoas e recusar-se a perdoá-las, quando nos postamos sob a sombra da cruz.

Além disso, precisamos nos manter pró­ximos daqueles que podem ser chamados

F i c a m u i t oM AIS DIFÍCIL. S E R INGRATO

COM AS PE SSO A S E R E C U SA R -SE A

P E R D O Á -L A S , Q UANDO NO S

POSTAM OS SO B A SO M BRA DA

C R U Z .

Page 145: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Amor e graça 157

de “generosos em graça”. Precisamos de pessoas que nos aceitem, recebam e amem incondicionalmente. Eu preciso de gente assim e você também.

Você precisa de uma pessoa assim porque tem outro tipo de gen­te que faz parte da sua vida. O “carente de graça”, com quem você também convive, é um tipo de gente que julga, critica e vive lem­brando você de seus defeitos, de uma forma que o deixa arrasado.

Há algum tempo, estava com um grupo de amigos conversando sobre a solidão. Eu me empolguei um pouco com o assunto, pois conheço profundamente a sensação, mas a conversa logo terminou.

Mais tarde, uma das pessoas desse grupo me convidou para almoçar: “Gostaria de falar a respeito da sua solidão. Fiquei tão triste quando você disse isso!”, ele me disse, com lágrimas nos olhos.

De repente, foi como se alguém tirasse de cima de mim um fardo muito pesado para eu carregar. Fiquei tão comovido com a bondade dele que, desta vez, os meus olhos se encheram de lágri­mas. Comecei a chorar, ele começou a chorar e o garçom veio ver se, quem sabe, havia algum problema com a comida.

Ele se tornou uma fonte de graça para mim, uma pessoa que se alegra com a sua alegria e sofre com a sua dor.

C om o reconhecer os “generosos em graça”? Eles sentem as coi­sas que afetam você; eles prestam atenção nos seus sentim entos e

1 na sua vida. O s generosos em graça falam com você com sinceri- J dade, tan to palavras amigas q uan to difíceis. Eles não são do tipo

7 de gente que só diz o que você quer ouvir, mas alguém que fala a verdade por amor.

Os generosos em graça simplesmente nunca se cansam de amá- lo. Eles enxergam além da superfície; eles vêem tanto a obscurida­de quanto a bondade em seu coração. Mas quando eles vêem a obscuridade, não se retraem. Eles não o xeieitam. Eles se aproxi­mam de você. Você póde ser um boneco de pano, mas é o boneco de pano de Deus e os generosos em graça nunca deixarão que se esqueça disso.

Page 146: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 5 8 A m o r a l ém d a r a z ã o

Precisamos sempre nos manter próximos da fonte de graça su­prema. João diz que quando Jesus se tornou homem, o “Verbo se fez carne, e habitou entre nós. Vimos a sua glória, a glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.

Ele estava cheio de verdade. Ele sabia o que era certo. Ele fazia o que era certo. Finalmente, a raça humana viu alguém que co­nhecia o certo, fazia o certo e cujo saber e fazer eram cheios de graça.

As pessoas que devotaram suas vidas à espiritualidade mal in­terpretada se sentiram ofendidas com ele. Seu comentário para elas foi: “Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes”. Mas, de vez em quando, alguém entendia. E a dança continuava.

Entenda bem, era a graça que estava embrulhada em panos e deitada numa manjedoura. Foi a graça que morou entre nós, que curou o doente, fez o cego enxergar e levantou o morto. Foi a graça que festejou com os cobradores de impostos degradados, que era chamada de amiga dos pecadores, que não jogou a pri­meira pedra. Foi a graça que foi cravada na cruz junto com nosso pecado e nossa culpa, a graça que a sepultura não pôde esconder, que agora está sentada do lado direito do Pai, que um dia voltará para nos buscar.

Depois que estivermos lá dez mil anos e todas as palavras se esgotarem e se desgastarem, apenas então começaremos a apren­der a cantar sobre a graça.

Page 147: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa _ser escolhido

Aquele que é capaz de um amor desprendido, espontâneo e alegre é livre, e nada poderá impedi-lo. Ele dá tudo, apesar de tudo, e tem tudo, porque repousa naquele que é superior a todas as coisas, de onde nasce e flui toda bondade.

T h o m a s A K empis

S er amado significa ser escolhido. A sensação de ser escolhido é um dos melhores presentes que o amor pode dar ao ser amado. Isso significa que alguém o vê como um ser único, que

deseja ficar mais próximo de você, ficar do seu lado. Isso significa que alguém acredita que você tem uma importante contribuição a dar.

Por outro lado, não existe dor igual à de não ser escolhido. No dia em que estava escrevendo isto, uma criança de dez anos de idade mandou uma carta para a coluna de jornal Dear Abby sobre a chatice que era sua vida no playground: “A vida toda sempre fui a última a ser escolhida. Esse é o meu problema. [...] Por que as pessoas não pregam logo um aviso em mim dizendo: ‘Rejeite. O último a escolher fica comigo’?”.

Page 148: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

160 A m o r a l ém d a r a z ã o

Não existe maior alegria do que a de ser escolhido e maior tristeza do que a de ser rejeitado. E quando um rejeitado é esco­lhido por alguém, sua vida é transformada. O excerto a seguir foi extraído de um livro chamado The whisper test [O teste do sussurro]:

Cresci sabendo que era diferente dos outros e odiava isso. Nasci com lábio leporino e quando entrei para a escola, meus colegas deixaram bem claro para mim como me enxergavam: uma menina com um lábio deformado, nariz torcido, dente torto e fala distorcida.

Quando eles me perguntavam: “O que aconteceu com o seu lábio?”, eu dizia que tinha caído e me cortado num pedaço de vidro. Parece que um acidente era mais aceitável do que um problema de nascença. Tinha certeza de que ninguém além da minha família me amava.

Havia, entretanto, uma professora da segunda série que todo mundo adorava: a sra. Leonard. Ela era baixa, gorda e feliz; uma senhora radiante.

Todo ano havia um teste de audição [...]. A sra. Leonard apli­cou o teste em todos os alunos da classe e, finalmente, tinha che­gado a minha vez. Sabia, pelos anos anteriores, que deveríamos ficar contra a porta e tampar um ouvido; a professora, da sua mesa, falava alguma coisa cochichado e tínhamos de repetir o que ela havia falado, coisas do tipo: “o céu é azul” ou “você está usan­do sapatos novos?”. Esperei pelas palavras que Deus colocaria em sua boca, as seis palavras que mudariam minha vida. A sra. Leonard sussurrou: “Gostaria que você fosse minha filha”.

O amor confere a quem é amado a qualidade de ser eleito. O amor sussurra: Eu escolhi você. Quero ficar ao seu lado. E para os degradados, para os espíritos deformados, corações tortos e almas disformes isso é vida.

Ser eleito implica em quatro fatores, sendo que três são positivos.Quando você é escolhido, é visto como um ser único. Pode ser

difícil de se distinguir um objeto de outro; um tijolo é bem pare­

Page 149: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 161

cido com outro e é facilmente substituível. Mas o homem luta para ser notado como um ser especial e não apenas mais um da espécie.

Quando você é escolhido, é reconhecido como alguém que tem algo com que contribuir. A sua característica única é positiva. Você pos­sui um dom que faz diferença. Tem algo que pode ajudar o grupo. Os eleitos são importantes. As histórias de suas vidas viram bio­grafias e são lidas pelos outros porque são interessantes.

Quando você é escolhido, isso significa que alguém o quer. Você não é isolado, afastado. É desejado e faz parte do grupo.

Quando Deus nos escolhe, ele transmite todo o bem implícito em ser eleito. Em nosso mundo degradado, no entanto, a palavra escolhido tem uma quarta implicação que não está presente no coração de Deus. Quando alguém é escolhido em nosso mundo, isso significa que quase sempre outro alguém foi desprezado. Ser escolhido significa ser melhor ou superior a alguém, ser objeto de ciúme, ser o favorito. Em nosso mundo, a disputa pela preferên­cia torna-se uma competição acirrada. E o prêmio de consolação aos perdedores é uma criaturinha maligna chamada inveja. A rai­nha da escola e um destacamento de primeira linha, esses são real­mente os escolhidos. E quem é boneco de pano nem adianta tentar.

Nossa vida é uma tensão constante. Serei escolhido ou rejeita­do? Será que serei escolhido logo na formação dos times de beise­bol? Será que ela dirá sim se eu a convidar para sair? Serei selecionado para esta escola, emprego ou promoção?

Neste mundo, o preço da “preferência” valoriza muito em com­paração à quantidade de rejeitados para a mesma posição. Se uma mulher é eleita “Miss América” significa que cinqüenta outras fo­ram desclassificadas, sem mencionar as milhares que nem conse­guiram chegar ao concurso final. A preferência por alguns acontece a custo da rejeição por outros. Lembro-me que, depois de termi­nar o curso de pós-graduação, os que ainda não tinham consegui­do passar nas provas finais para se tornar psicólogos licenciados, viviam esperando que escolhessem uma junta de examinadores

Page 150: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

162 A m o r a l é m d a ra z ã o

bem fraca. Mas, depois de aprovados, eles passavam a desejar exata­mente o contrário. Eles desejavam que a junta fosse tão exigente quanto possível para impedir que a ralé entrasse. Depois que en­tramos para o clube, queremos o máximo de exclusividade — senão, qual é a graça? É por isso que Groucho Marx disse certa vez que nunca entraria para um clube que tivesse critérios tão baixos a ponto de aceitá-lo como membro.

Em Q ue T im e V ocê V ai Jo g a r ?

Robert Roberts escreveu a respeito de uma brincadeira chamada “pisa na bexiga” que uma professora da quarta série aplicou na sua classe. Amarrava-se uma bexiga na perna de cada criança e o objeti­vo do jogo era estourar a bexiga de todo mundo e manter a sua. A última pessoa que ficasse com a bexiga sem estourar ganhava.

A brincadeira da bexiga é um jogo sem pontuação. Se eu gan­ho, você perde. O sucesso dos outros diminui a sua chance de vitória. Você precisa enxergar os outros como um obstáculo a ser superado, alguém que deve ser destruído.

Essa brincadeira é uma prova darwiniana — a sobrevivência do mais forte — e como as crianças de dez anos de idade são darwinianas por essência, elas entraram de cabeça no espírito da coisa. As bexigas não paravam de ser perseguidas e estouradas. Algumas crianças menos agressivas tentaram ficar afastadas, mas suas bexigas foram estouradas da mesma forma. A batalha termi­nou em uma questão de segundos. Restou apenas uma bexiga intacta e, é claro, o dono era a criança mais odiada da classe. Não é nada fácil ganhar uma competição como essa.

Então, escreve Roberts, uma coisa intrigante aconteceu. Trou­xeram uma segunda classe para a sala, para fazer a brincadeira, só que esta era composta apenas por crianças aleijadas. Elas também carregavam uma bexiga cada uma e receberam as mesmas instru­ções e o mesmo sinal para começar a brincadeira. “Estou sentindo um aperto no coração. Gostaria de poder poupar as crianças da pressão de uma competição”, disse um dos espectadores.

Page 151: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 1 6 3

Desta vez, porém, a brincadeira prosseguiu de forma dife­rente. As instruções não foram m uito bem explicadas para que essas crianças pudessem entender. Em toda a confusão, a única coisa sobre a qual não restou dúvida era que se devia pisar nas bexigas e estourá-las. Mas em vez de uma lutar contra a outra, essas crianças entenderam que deveriam ajudar umas às outras a estourar as bexigas. Então elas formaram uma espécie de frente de cooperação para estourar bexigas. Enquanto uma garotinha ajoelhou-se e segurou firme sua bexiga, como acontece em uma das jogadas do futebol americano, um garotinho pisou nela até estourá-la. Depois, ele ajoelhou-se e segurou a sua própria be­xiga para a menina também poder estourar. E o jogo prosse­guiu dessa forma, com todas as crianças se ajudando no grande estouro.

Finalmente, depois que estouraram o último balão, todo mun­do comemorou.

Todo mundo ganhou.A pergunta que você deve fazer é: quem entendeu direito a

brincadeira e quem não entendeu?Mas a pergunta que você deve responder é: em que time você

vai jogar?Nos planos de Deus, a preferência dele por você deve me enri­

quecer em vez de me diminuir. Israel foi chamado o povo eleito de Deus, mas não no sentido de que era o favorito ou que tinham uma rota interna, direta para o céu. A intenção de Deus, desde o início, é que através de Abraão “serão benditas todas as famílias da terra”. Israel foi escolhido não à exclusão das outras nações, mas precisamente em consideração a todas as outras nações da terra. A intenção de Deus era que, depois que sua comunidade encarnasse na terra, todos os povos entrassem para ela.

Foi essa a idéia que comoveu Pedro, quando finalmente enten­deu: Na verdade reconheço que Deus não faz acepção de pesso­as, mas que lhe e agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo”.

Page 152: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 6 4 A m o r a l ém d a r a z ã o

Mas nosso mundo joga no outro time. O historiador Christopher Lasch escreveu que estamos vivendo “na cultura do individualis­mo competitivo, que em sua decadência leva a lógica do individu­alismo ao extremo de uma guerra de todos contra todos e a busca da felicidade ao beco sem saída de uma preocupação narcisista consi­go mesmo”.

Recentemente, percebi que jogamos nesse time com facilidade. A primeira impressão e a reação reflexa que temos das pessoas é normal­mente crítica, comparativa, competitiva e nos distancia do amor.

Quando vemos alguém dirigindo um carro caro, pensamos: ela provavelmente tem muito dinheiro; deve ser uma pessoa materialista. Se alguém tem um carro muito mais caro do que o nosso, auto­maticamente, começamos a pensar que isso é reflexo de uma vida materialista.

Por outro lado, quando alguém está dirigindo um carro que é mais antigo ou pior que o nosso, geralmente pensamos: eis alguém que não tem um nível tão alto quanto o meu; provavelmente não é tão bem-sucedido quanto eu. (Acho que foi o comediante George Carlin que disse: se você vê um motorista que dirige mais rápjclo que você, ele é idiota, e se vê um que dirige mais devagar, é retar­dado.)

Se vemos alguém reclamando, pensamos: ele deve ser carente, do tipo que gosta de se fazer de vítima. E melhor eu ficar longe. Por que ele não pode ser um pouco mais maduro?

Se encontramos alguém que está sempre alegre, costumamos pensar: Esse cara é alegre demais. Ele deve viver numa ilusão.

Sempre nos pegamos pensando em alguém: Essa pessoa tem uma coisa que eu quero. Gostaria de ter a inteligência (aparência, suces­so, casamento ou dinheiro) dela.

Ou desejamos que ela não tivesse o que tem. Se não podemos ter essas coisas, ficaríamos mais felizes se ninguém mais as tivesse.

Pisa na bexiga!Esse tipo de pensamento faz com que sejamos cruéis, fofoqueiros

ou insensíveis. Eles nos levam a entrar para o time contrário.

Page 153: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 1 6 5

U m Es t u d o sobre a I nveja

No início do ministério de Jesus conta-se que os discípulos de João Batista dizem a ele: “Rabi, aquele homem que estava contigo além do Jordão, do qual deste testemunho, está batizando, e to­dos vão ter com ele”.

Os discípulos de João estavam preocupados com a baixa na sua popularidade. Por algum tempo, ele era a notícia mais quen­te na área, mas as últimas pesquisas confirmavam que sua popu­laridade de melhor jogador estava em risco. Ele não era mais o número um.

Os psicólogos esportivos falam do costume de se sentir a gló­ria “por tabela”. A auto-estima dos fãs do rabino era mais alta quando o time estava vencendo. Quando ele começou a perder, eles ficaram deprimidos. Quando o time se torna um perdedor crônico, os fãs vão aos jogos com a cabeça escondida dentro de um saco de supermercado. Ninguém quer ser identificado como perdedor.

Os discípulos de João deviam estar se deleitando por tabela na glória dele. Se o prestígio de João Batista caísse, adivinha o prestí­gio de quem mais cairia?

Eles precisavam que João fosse uma “estrela”. Se você não pode ser uma estrela, o melhor a fazer é se tornar amigo de alguém que

seja. Quando você é uma estrela — ou ami­go de uma — , ganha status. Você é impor­tante. A posição de todos os outros é determinada pela proximidade de cada um com a estrela. Eles estavam com receio de, se as coisas continuassem seguindo por esse curso, terem de recorrer aos sacos de super­mercado.

Mas a popularidade e o status — a ex­pressão de seu sucesso — eram exatamente

do que João teria de renunciar. Ser escolhido por Deus não signi­fica ter fama e sucesso, mas aprender a renunciar.

S e re s c o l h i d oP O R D E U S

NÃO SIG N IFIC A T E R FAMA E

S U C E S S O , MAS A P R E N D E R A R E N U N C IA R .

Page 154: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

166 A m o r a l é m d a r a z ã o

Uma das coisas mais difíceis na vida é aprender a renunciar. Quan­do se é pai, pensa-se que a parte mais difícil é cuidar dos filhos. Mas não é. A parte mais difícil é deixá-los partir.

Chega o primeiro dia de escola. Você sabe que haverá momen­tos em que seus filhos se sentirão pressionados e tentados, que sofrerão fracassos e derrotas. Alguns colegas, com quem eles não se darão bem, podem machucá-los, professores insensíveis podem não gostar deles, mas você não pode fazer nada. Você tem de deixá- los partir. A primeira vez que eles forem dirigir um carro sozi­nhos, você terá de deixá-los ir.

Há um adesivo de carro que diz: “Entregue tudo nas mãos de Deus”. “Entregar” não significa ser passivo ou inativo. Significa confiar.

Há uma velha história sobre um homem que está caindo de um penhasco. Ele vai morrer, mas estica as mãos e milagrosamen­te consegue se segurar num galho.

— Tem alguém aí em cima?— Sim.— Quem é você?— Sou Deus e vou salvá-lo.— Isso é maravilhoso. O que devo fazer?— Largue o galho.Pausa.— Tem mais alguém aí em cima?Renunciar é sempre um ato de confiança. Esse é o caso de João

e dos discípulos. Ele era uma estrela e os dis­cípulos eram importantes porque andavam com ele. Antes, a dúvida era: ele tem bas­tante fé para agüentar firme e continuar pre­gando o arrependimento quando os líderes religiosos se opuserem a ele? Agora, a ques­tão era ainda mais difícil do que se manter firme: ele tinha bastan­te fé para renunciar?

Fa l a n d o de R e n ú n c ia

R e n u n c i a r éSE M P R E UM ATO D E CO NFIA NÇA .

Page 155: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 167

Se existia uma coisa na qual João era especialista, essa coisa era renunciar.

Desde o início ele sabia que tinha sido escolhido por Deus para realizar uma tarefa especial. Essa intimidade lhe custaria tudo. Para cumprir a sua missão, João teve de renunciar a todas as esperanças e aspirações normais da vida do primeiro século.

• Ele teve de abandonar o estilo de vida normal; “apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia”. Nada de apar­tamento, TV a cabo nem associação dos moradores de bairro. Não era nenhuma Palm Springs; nos tempos de João, o de­serto era deserto.

• Ele nunca teve um emprego normal. Quando preenchia o questionário, tudo o que podia escrever sob o item experi­ência anterior era: “devotado”.

• Ele renunciou às suas esperanças de prosperidade financeira. Seu tipo de trabalho não oferecia nada como seguro saúde ou plano de aposentadoria.

• Ele teve de renunciar aos relacionamentos normais; era visto como um estranho pela sociedade. Viveu como um eremita, e os eremitas não são famosos por terem muitos amigos. Não havia cursos de auto-ajuda para os eremitas aprende­rem a se relacionar com as outras pessoas.

• Deus pediu para que abdicasse de todas as reivindicações de conforto e ele o fez de bom grado. Ele não se preocupava muito com a moda. Suas roupas não serviam nem para ven­der em lojas de segunda mão. Sua dieta era mais magra do que qualquer receita de emagrecimento; gafanhotos e mel selva­gem não era um prato muito apreciado nem mesmo para os padrões do primeiro século. Nada de vinho no jantar tam­bém. Ele já não bebia antes mesmo de existirem as bebidas. Ele era um tipo de abstêmio que não tomava nem chá.

• Viveu sem segurança nenhum a. Desafiou abertam ente as autoridades religiosas de sua época e elas o odiavam

Page 156: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 6 8 A m o r a lém d a r a z ã o

por isso. Certa vez, chegou a chamar a sua congregação de “raça de víboras” e isso não lhe trouxe m uita popula­ridade.

Imagine a liturgia:Líder: — Vocês são uma raça de víboras.Povo: — Sim, nós somos uma raça de víboras.Ele chegou a enfrentar até o governador falando de sua imorali­dade e corrupção e, naquela época, se você quisesse manter a cabeça no lugar era melhor não fazer esse tipo de coisa.

%• Ele teve de renunciar a qualquer esperança de ter uma vida normal. Ele nunca se apaixonaria nem casaria e nem teria filhos. Não haveria ninguém para cuidar dele na velhice. Na verdade, ele nem se iludia sonhando em chegar à velhice. João foi escolhido por Deus, antes mesmo de nascer, para preparar o caminho do Senhor. Mas esse era um tipo de predileção que significava sacrifício, excentricidade, coragem e marginalidade. Era um tipo de predileção que fez com que Reb Tevye, de Um violinista no telhado, dissesse a Deus: “Eu sei, eu sei. Somos o povo escolhido. Mas será que não daria para, de vez em quando, escolher outro?”.

João renunciou voluntariamente a tudo em nome de seu minis­tério. E agora Deus estava pedindo que renunciasse a mais uma coisa: seu próprio ministério.

Seus discípulos sentiram como se ele tivesse perdendo até o privilégio de ser eleito.

Eles vieram lhe falar, aparentemente, porque sentiam inveja do sucesso de Jesus. Era inconcebível para eles que, depois de João ter lançado Jesus no ministério e dado a ele toda a credibilidade de seu testemunho, em agradecimento, Jesus fosse tomar o seu lugar. Eles estavam tão inconformados que não conseguiram falar sem um pouco de exagero: “Rabi, aquele homem que estava contigo além do Jordão, do qual deste testemunho, está batizando, e todos vão ter com ele”.

Page 157: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 169

Já era bastante ruim Jesus começar a oferecer seu próprio minis­tério de batismo independente, tirando de João a exclusividade do franchising, mas agora todo mundo estava indo atrás de Jesus.

A A n a t o m ia d a I nveja

A inveja é o veneno daqueles que acham que não foram escolhi­dos. Harold Boris escreveu: “A inveja [...] carrega consigo um tipo especial de tormento. Além de nos sentirmos deficientes, defeitu­osos e cheios de ódio, em nossa solidão, por causa da nossa soli­dão, sentimo-nos diminuídos e até humilhados”.

Inveja é querer o que o outro tem e sentir-se mal por não ter. Inveja é desprezar a bondade de Deus para com as outras pessoas e rejeitar a bondade dele para consigo mesmo. Inveja é um desejo misturado ao ressentimento. Inveja é falta de fraternidade. Paulo disse: “Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram”. A inveja nos faz chorar quando os outros se alegram e nos alegrar quando os outros choram.

A inveja é perigosa porque vai contra o outro. Pecados como a ganância e a luxúria tratam simplesmente de suprir os próprios desejos. A inveja não busca apenas suprir o próprio prazer, mas diminuir o prazer de quem é invejado. Samuel Rogers, um poeta inglês do século dezenove, conhecia tudo a respeito de inveja. Uma reunião de autoridades da sociedade estava homenageando um de seus membros que estava ausente, um jovem duque que tinha boa aparência, talento, fortuna e um futuro promissor. Em uma breve pausa, Rogers disse: “Graças a Deus, ele tem dentes ruins!”.

Pisa na bexiga!A inveja, por natureza, nunca termina. Ser indulgente na inve­

ja é como tentar matar a sede com água salgada.De todas as emoções, a inveja pode ser a mais humilhante,

porque ela é muito mesquinha. Frederick Buechner disse: “A inveja é o desejo ardente de que todo mundo seja tão infeliz quanto você”.

Quando invejamos alguém, perdemos nossa humanidade.

Page 158: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 7 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

Quando Caim olhou para Abel, não viu mais um irmão. Abel agora era apenas um rival que ameaçava o prestígio de Caim perante Deus. Abel era um eleito a ser odiado. O caso se transfor­mou numa brincadeira da bexiga levada ao ex­tremo. Inveja é isolamento, é cada um por si.

A inveja é o oposto da empatia. Por empatia, buscamos nos colocar no lugar do outro. Por inveja, tentamos incorporar o outro. Por empatia, chegamos a nos sacrificar pelo bem do outro. Por inveja, procuramos sacrificar o outro pelo nosso próprio bem.

João deve ter pensado de seus discípulos: Será que eles realmente me amam ou estão apenas me usando?

E, é claro, como em qualquer relacionamento humano, era um pouco de ambos.

Sem dúvida, ao ouvir a mensagem desse profeta apaixonante e solitário, que rogava pelo verdadeiro arrependimento e pela total renovação, eles devem ter se comovido e sentido um chamado dentro de si.

Mas eram apenas humanos. Eles queriam que João fosse im­portante para que também pudessem ser. E acabaram tentando desviá-lo de sua verdadeira missão. Eles queriam que João mos­trasse que era mais poderoso que o Messias.

Da mesma forma que Jesus no deserto, seu amigo João tam­bém conheceu a tentação. Essa foi a prova de João. Para Jesus, a tentação foi transformar pedras em pão, jogar-se de cima do tem­plo, prostrar-se diante de Satã e adorá-lo. Fazer algo espetacular. Depois, a tentação veio de seu amigo Pedro: “livre-se da cruz, do sofrimento, vá de um poder ao outro”.

Para João, a tentação tomou outra forma: “faça algo grandioso para ganhar o povo de volta”. Adapte a sua mensagem; mude a sua estratégia de marketing. A medida do seu sucesso é a quantidade de pessoas batizadas, assim como a medida do sucesso do McDonalds é a quantidade de sanduíches vendidos. Confie nos números.

S e rIN D U L G E N T E N A IN V E JA É

COMO T E N T A R MATAR A S E D E

COM ÁG UA SA L G A D A .

Page 159: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 171

Havia outra mensagem nessa tentação, um pouco mais sutil, mas que estava presente: Jesus é o nosso adversário. A pregação dele é uma rival sua. Para ele, ser mais poderoso significa que você será mais insignificante e isso é inaceitável.

Os discípulos de João talvez o amassem, mas era um amor de­gradado. E o teria destruído se ele tivesse lhes dado ouvidos.

A Sutileza da I nveja

A inveja é perniciosa porque pode abranger tudo. É possível até invejar-se a espiritualidade ou humildade dos outros.

Harold Boris fala dos três homens que vieram prestar sua ho­menagem ao Senhor. Respeitando a ordem de sua situação finan­ceira, o homem vestido em ouro foi o primeiro a apresentar-se ao altar.

“Perdoa-me, ó Senhor”, ele rogou. “Não valho nada.”O segundo homem adiantou-se, vestido em prata: “Ó Senhor,

perdoa-me. Não valho nada.”O terceiro homem aproximou-se do altar, vestido em trapos,

todo desgrenhado, com a túnica puída e rasgada. “Ó Senhor”, ele rogou, “perdoa-me, pois não valho nada”.

Nesse momento, o primeiro homem cutucou o segundo e ca­çoou: “Olha só quem está dizendo que não vale nada”.

Pisa na bexiga!Saul foi o rei guerreiro de Israel que “desde os ombros para

cima sobressaía em altura a todo o povo”. Depois de algum tem­po, você se acostuma a desde os ombros se sobressair a todos os outros. Você não gosta quando vê alguém metendo o bedelho onde não é chamado.

Mas acontece. Um jovem chamado Davi, que nem era tão gran­de para caber na armadura de Saul, vence o antigo campeonato peso pesado contra Golias. Davi mostra que é um exterminador tão bom quanto Saul. E uma nova canção atinge as paradas de sucesso: “Saul matou milhares e Davi, dez vezes mais”.

Page 160: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

172 A m o r a l é m d a r a z ã o

Saul não ligava para letra. Ele não via mais Davi como uma pes­soa, um pastor. Davi era agora seu inimigo.

“Dez milhares deram a Davi, e a mim somente milhares. Na verdade, o que lhe falta, senão só o reino? Daquele dia em diante, Saul trazia Davi sob suspeita.”

Conforme Neal Platinga observa, “suspeitar” é exatamente o que Saul fez. Ele lançou o maligno olhar da inveja, que filtra toda a sua humanidade até restar apenas um objeto de ameaça.

A inveja é basicamente um pecado do olhar. Ela faz com que o pedaço de bolo do seu irmão pareça maior do que o seu. Uma criança pode ter centenas de brinquedos, mas a inveja faz com que um único brinquedo de um irmão pareça o mais desejável de todos. Quando se trata de inveja, os olhos dizem tudo. E por isso que Dante diz que, no inferno, os invejosos são condenados a passar a eternidade de olhos costurados.

Há uma rede de inveja que permeia toda a Bíblia: desde Caim e Abel, Isaque e Ismael, Jacó e Esaú, José e seus irmãos até o caso de Miriã e Arão que falaram contra Moisés. Raquel foi escolhida; Lia era uma boneca de pano com “olhos fracos”. Acabe cobiça a vinha de Nabote; Ananias e Safira cobiçaram a reputação de gene­rosos; Paulo escreveu para a igreja em Filipos dizendo que havia quem pregasse “por inveja e porfia”.

São palavras bastante sensatas para mim. Eu sinto inveja. Mas a inveja não faz sentido quando se trata de pregar. Na pregação, minha missão é dizer às pessoas para se arrependerem, para toma­rem a cruz e morrerem por si próprias. Como posso ter inveja de outros pastores que pregam a mesma coisa melhor do que eu? Mas esse pensamento condenatório não consegue sozinho acabar com a inveja.

A inveja nos faz lutar por coisas que nem queremos realmente. Em Siblings without rivalry [Irmãos sem rivalidade], uma mulher conta de um dia de verão em que libertou um enorme freezer na garagem de dois anos de produção de gelo.

Page 161: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 1 7 3

As crianças estavam com roupas de banho. [...] De brinca­deira, joguei uma enorme placa de gelo na direção de uma delas e disse:

— Ei, toma um pouco de gelo.Imediatamente, a outras duas aderiram:

— Eu também quero.Peguei mais duas placas e joguei para elas des­

lizando pelo chão. Então, a mais nova gritou:— Eles têm mais.— Você quer mais? — perguntei. — Lá vai!

— E joguei um punhado de gelo a seus pés.Então, as outras duas gritaram:— Agora é ele quem tem mais.Joguei mais dois punhados de gelo na direção

delas.A primeira gritou:— Agora são eles que têm mais.A essa altura, as três crianças estavam com gelo até o tornoze­

lo e ainda gritavam por mais. Tão rápido quanto podia, lancei blocos imensos de gelo aos pés de todas. Mesmo saltando de dor por causa do gelo, elas continuaram a pedir mais, na loucu­ra de uma tentar ganhar vantagem sobre a outra.

Foi nesse momento que percebi que era inútil tentar ser justa com todas. As crianças nunca teriam o bastante e eu, como mãe, nunca daria o bastante.

Não gostamos de sentir inveja. Deixaríamos de senti-la se pu­déssemos. Mas não conseguimos parar de invejar simplesmente porque nos esforçamos para isso. A inveja só é derrotada quando vivemos como seres eleitos por Deus.

Uma das palavras mais importantes da Bíblia usadas para des­crever o povo de Deus é eleito. “Como eleitos de Deus, santos, e amados”, Paulo disse aos colossenses.

Neste mundo, os eleitos mandam e os outros servem.Mas a escolha de Deus não funciona assim. No amor de Deus,

a predileção por nós não acontece às custas de alguém. Deus esco­lhe, ou ama, cada um de seus filhos de maneira diferente. Sua

A IN V E JA s ó É D E R R O T A D A

Q U A N D O V IV E M O S

COMO S E R E S E L E IT O S PO R

D e u s .

Page 162: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 7 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

intenção é que a preferência por um possa melhorar a vida de ou­tros, e não prejudicá-la. Nos planos de Deus, os eleitos sempre escolhem servir.

Harold Boris fala da possibilidade de a inveja se basear no medo de não ser escolhido, de nunca ter havido essa “intenção”. Faber observa que o que as crianças almejam não é ser amadas “igual­mente” em relação a seus irmãos, pois o igual, de certa forma, sempre dá a sensação de menos. “Ser amado exclusivamente — porque se é especial — é ter todo o amor de que se necessita’. E isso o que Deus faz: ele ama exclusivamente cada um de nós.

João compreendeu essa verdade e sua reflexão a respeito, capta perfeitamente a idéia de quem somos e quem não somos: “O ho­mem só pode receber o que lhe for dado do céu”. Precisamos entender a alegria especial de poder receber.

Não sou o noivo, João diz, sou o amigo do noivo. Antigamen­te, nos casamentos judeus, o amigo do noivo era seu shoshbin, o que significava que ele era o melhor homem. O shoshbin ficava encarregado de vários detalhes dos preparativos do matrimônio. Geralmente, era ele quem convidava as pessoas, acompanhava o noivo até a cerimônia e sua última responsabilidade era, no final da noite, montar guarda diante da tenda onde a noiva esperava pelo noivo. Poderia estar escuro, mas o shoshbin reconhecia a voz do noivo quando a ouvia e, assim, abria caminho para o noivo entrar. O noivo entrava na tenda e conhecia a alegria de reivindi­car a sua esposa. O amigo do noivo sentia outra espécie de alegria: a de servir a quem amava. Se o amigo invejasse o noivo, se tentas­se reivindicar para si a alegria que pertencia somente ao noivo, acabaria perdendo tudo. A noiva jamais poderia ser dele e, ao ten­tar reivindicá-la, ele estaria traindo seu amigo e também perderia a alegria que pertencia ao shoshbin.

Basicamente, João está dizendo aos seus discípulos:“A alegria que pertence ao amigo do noivo é minha. Eu enviei

os convites. Fui aquele que gritou no deserto: ‘Prepare o caminho do Senhor’.

Page 163: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 1 7 5

Eu servi ao noivo. Ele é meu amigo. Agora ele está aqui. Ouvi sua voz; ele veio reivindicar sua noiva. É por isso que todos estão se aglomerando ao redor dele. Ela é a noiva dele e não minha. A alegria da união do noivo e da noiva pertence a ele.

Não pense que sofro com isso. Eu também me alegro. Minha alegria é a do amigo do noivo. Se tentasse me apropriar da alegria dele, terminaria sem alegria nenhuma. Agora mi­nha alegria está completa. Não a perderei. Não permitirei que a inveja destrua a minha alegria.”

Na peça Amadeus, Antonio Salieri é um músico da corte cuja alma é destruída pela inveja. Seu sonho é criar uma música que so­breviva ao tempo, pela glória de Deus e (não por acaso) para ganhar fama. A dor de sua própria mediocridade é intensificada pela

genialidade de Mozart e redobrada porque Mozart, aqui, é retra­tado como um grosseirão obsceno, petulante e infantil. A inveja de Salieri se transforma em ressentimento, ódio, traição e trapaça quando ele tenta assumir a autoria de um trabalho de Mozart.

Salieri, como qualquer invejoso de primeira linha, acredita que Deus foi extremamente injusto com ele. Por desejar ser maior que Mozart, ele acredita que Deus tinha a obrigação moral de torná- lo melhor. A inveja sempre carrega consigo a idéia de vítima. Ela sopra em sua mente: “Você me deve isso. Eu mereço ter isso”.

Então Salieri reivindica o título que lhe cabe, de “príncipe da mediocridade”, como uma acusação contra um Deus injusto. Nin­guém, nem mesmo o padre com quem ele se confessa, consegue justificar a aparente injustiça de Deus.

Mas a verdade é que Salieri tinha a possibilidade de ter uma grande alegria. Ele não possuía o dom de Mozart. Mas a ele foi concedido um outro dom: o de ser o único a reconhecer a genialidade de Mozart, declará-la ao mundo, abrir as portas e dar

A IN VEJA S E M P R E

C A R R EG A CONSIGO A

ID É IA D E V ÍT IM A . E L A

SO PR A EM SU A M E N T E : “ VOCÊ M E D E V E ISSO .

E U M EREÇO T E R IS S O ” .

Page 164: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 7 6 A m o r a l ém d a r a z ã o

a i n v e j a e aFACE M AIS

D E G R A D A D A D A H U M A N ID A D E .

oportunidades a Mozart. E isso teria enriquecido sua vida e seu mundo. Ele poderia ter sido o amigo do noivo. Mas ele rejeitou essa alegria. Ele só se contentava em ser o noivo e por isso termi­nou a vida sem experimentar nenhuma alegria.

O nome Amadeus significa “amado por Deus”. O sofrimen­to de Salieri era que ele acreditava que uma outra pessoa era amada em lugar dele. O drama de Salieri era que ele tam bém poderia ter sido ama­do, se tivesse recebido o dom que lhe per­tencia.

O mesmo câncer tomou conta da vida de outro Salieri chamado Herodes, o Gran­de. Quando Jesus — o verdadeiro “Rei dosjudeus” — nasceu, Herodes poderia ter sido o seu padrinho e cuidado para que fosse educado e bem tratado. Mas ele rejeitou essa alegria. Sua inveja se transformou em ódio, trapaça, traição e assassinato. E foi assim toda a sua vida. Herodes, o Grande, foi tão odiado que, no fim da vida, deixou ordens para que setenta dos cidadãos mais proeminentes de Jerusalém fossem executados quando ele morresse, para que houvesse luto depois de sua morte.

Mateus conta que a inveja foi o motivo que levou os líderes religiosos a condenar Jesus à morte. A inveja tentou impedir o seu nascimento, a inveja perseguiu a sua vida, a inveja causou a sua morte. A inveja é a face mais degradada da humanidade.

Deus guarda uma porção de alegria para cada um de seus fi­lhos. Por exemplo, qualquer pessoa pode partilhar da alegria de ser cantor. Quando um artista talentoso canta, ele partilha o seu dom e nós o recebemos. Todos nós ficamos agradecidos por nosso Criador conceder esse dom ao artista e permitir que ele o compar­tilhe conosco.

Há, entretanto, uma forma certa de perder a alegria de ouvir, que é invejar a alegria do artista, desejar estar no lugar dele, com­parar o seu dom com o dele e ter aquela sensação sufocante de

Page 165: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Ser amado significa ser escolhido 177

que, quanto maior o dom, talento ou beleza da outra pessoa, mais diminuído você fica. Viva se comparando e competindo com os outros e acabará sem nenhuma alegria.

Deus reserva uma alegria para cada um de nós. Fomos criados para fazer e ver as coisas de uma forma única — Deus o criou para que conheça a alegria de ensinar, ajudar ou encorajar alguém ou criar algo — e quando você a encontrar e a oferecer, conhecerá a alegria. E Deus o criou para conhecer a alegria de receber e cele­brar os dons dos que o rodeiam. Se você oferecer os seus dons (compartilhá-los) e humildemente aceitar os dons dos outros, sua alegria será completa.

Caso contrário, se você passar a vida buscando a alegria que pertence aos outros, acabará não tendo alegria nenhuma.

O comentário final de João é: “É necessário que ele cresça, e que eu diminua”.

Esta não é uma declaração de resignação nem de martírio. É a alegria do amigo do noivo que agora percebe que a noiva cumpre o seu destino. Essa é a contribuição de João para o reino de Deus onde o humilde é exaltado.

Há um motivo para o Natal ser celebrado no dia 25 de dezem­bro. Não é uma data histórica, é claro, mas ela também não existe por acaso. Ela foi escolhida porque é a época do ano em que os dias são mais longos. A chegada de Cristo significa a chegada da luz no mundo; a escuridão se retrai. E, na época em que não exis­tia eletricidade, a duração do dia era uma grande dádiva. O dia trazia luz e calor para um mundo inóspito.

Você sabe qual é o dia em que, no calendário eclesiástico, o nascimento de João Batista é celebrado? Dia 24 de junho. Não é uma data histórica, mas também não existe por acaso. Ela marca o período em que os dias começam a ficar mais curtos e a luz come­ça a diminuir.

Todo ano, o calendário repete as palavras de João, embora pou­cas pessoas saibam disso.

Page 166: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 7 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

“Ele deve tornar-se cada vez maior, e eu devo dim inuir cada vez mais.”

Mas na magnificência de Cristo está a esperança do mundo, inclusive de João. Pois, em Cristo, Deus está atraindo todos os homens para si. Deus murmura na cruz: “Quero que faça parte do meu grupo. Eu escolho você”.

Page 167: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Com este Deus magnífico posicionado entre nós, Jesus nos traz a certeza de que nosso universo é um lugar perfeitamente seguro de viver.

D allas W illard

lgum tempo atrás, levei meus três filhos para um auditóriovazio da igreja em que trabalho. Sentados na última fila,

cortando o silêncio com nossas vozes, conversamos. Uma das crian­ças então disse: “Papai, pregue um sermão para nós”.

Foi um momento maravilhoso e não acontece com freqüência na família. Não é comum acontecer de Nancy e eu irmos para a cama e ela se virar para mim e dizer: “Querido, pregue um sermão para mim”. Era a oportunidade de uma escolha, por isso pensei cuidadosamente no que iria falar, pois queria que entendessem.

Desejava dizer que elas podiam viver seguras no amor de Deus, por isso contei a história de um filme chamado O urso. E a histó­ria de um filhote de urso que fica órfão. Ele sobrevive, mas o es­pectador sabe que suas chances de futuro são nulas. Então, o inesperado acontece. O filhote se torna uma espécie de filho para um grande urso marrom. Esse urso enorme passa todo o tempo

Page 168: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 8 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

tomando conta do filhote. Ele o protege de um leão da montanha que o perseguia. Ele ensina o filhote a ser um urso de verdade. Tudo o que o urso adulto faz, o pequeno imita. Ele entra num riacho e captura um peixe como o grande urso faz; ele fica em pé, sob as pernas traseiras, e esfrega as costas contra um tronco de árvore como tinha visto o outro fazer. Ao ver isso, o espectador se enche de esperança. O filhote tem futuro. Ele vai sobreviver.

Um dia, eles se separam. O pequeno urso não consegue achar seu pai em lugar nenhum. O leão da montanha, que nunca tinha se esquecido do filhote, agora finalmente tem a oportunidade de capturá-lo. Ele se aproxima rapidamente, em silêncio, fica frente a frente com o filhote e se apronta para dar o bote. O pequeno urso faz o que tinha visto seu padrasto fazer: ele fica em pé, levan­ta suas patas e ruge com toda a força; mas o melhor que consegue fazer é soltar um grunhido amedrontado.O leão da montanha não se convence. Tan­to o filhote quanto seu predador sabem que ele não tem esperança.

A câmera, então, dá um close no leão da montanha, cuja face de repente registra o medo no seu olhar. Ele pára, contrariado, dá meia volta e sai correndo.

A câmera se volta para o filhote. Ele parece tão surpreso quanto o espectador. Será que seu rugido foi tão bom assim? Mas, então, a câmera se afasta e podemos ver algo que não sabíamos antes, algo que o próprio filhote não sabe. Atrás daquele pequeno urso, em pé, enorme, vemos o grande urso marrom pronto para salvar seu filhote num único golpe.

Suas patas são enormes e seu rosnado, poderoso.Então temos certeza. O ursinho não precisa se preocupar. O

filhote não podia ver nem ouvir o grande urso, mas seu pai estava ali o tempo todo. A floresta era um lugar perfeitamente seguro para o pequeno filhote viver. Ele podia confiar no pai, mesmo que, aparentemente, ele estivesse ausente.

E L E PO D IA CONFIAR NO PAI,

M ESM O Q U E , A P A R E N T E M E N T E ,

E L E E S T IV E S S E A U S E N T E .

Page 169: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 181

Será que isso poderia acontecer comigo ou com você? O autor de 2Reis fala de uma época em que o rei da Síria, um inimigo de Israel — um feroz leão da montanha — enviou um grande exérci­to para cercar a cidade de Dotã e destruir o profeta Eliseu.

“Ai, meu senhor, o que faremos?”, perguntou o servo de Eliseu.Então, Eliseu deu uma resposta extraordinária: “Não tenha

medo. Os que estão conosco são muito mais do que os que estão com eles”. O servo de Eliseu olhou em volta, tentando quem sabe descobrir onde os “que estão conosco” se encontravam.

Mas Eliseu então orou: “Deus, abra os olhos dele para que pos­sa ver”.

Lentamente, a câmera se afasta. “Então o Senhor abriu os olhos do servo e ele olhou e viu que as colinas estavam cheias de cavalos

e carruagens de fogo ao redor de Eliseu”.Suas patas são enormes e seu rosnado, po­

deroso.Eliseu pediu, então, para que os siros ficas­

sem cegos, o que aconteceu. E, quando para­ram para perguntar qual era o caminho a seguir, foi a Eliseu que consultaram. Numa comédia divina de erros, ele os levou para o

rei de Israel, que lhe perguntou: “Devo matá-los, meu pai? Devo matá-los?”.

“Mataria os homens que você capturou com seu próprio arco e flecha?”, perguntou Elias, timidamente, como se arcos e flechas tivessem alguma coisa a ver com isso. “Dê água e comida para eles, para que comam e bebam e depois voltem para o seu se­nhor.”

Então, os siros comeram um grande banquete e foram para casa, e as ‘tropas de siros não entraram mais em Israel”. Todo mundo foi para casa em segurança.

Eliseu sabia de uma coisa que o seu servo desconhecia. Eles estavam cercados com uma proteção de amor que o servo mal

C a r r u a g e n s de Fo g o

O CORAÇÃOd e D e u s s e

E N C H E D E T E R N U R A E A L E G R IA SÓ D E P E N S A R EM V O C Ê S.

Page 170: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 8 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

podia imaginar. Seu momento de maior medo era, na verdade, o momento em que estava mais seguro.

Vocês vivem sob a proteção de Deus, disse a meus filhos. O cora­ção de Deus se enche de ternura e alegria só de pensar em vocês. Quando vocês amam alguém e pensam nessa pessoa, começam a sorrir. E isso o que acontece quando Deus pensa em vocês.

Um dia, vocês vão ter de enfrentar perigos e resolver proble­mas. Isso faz parte da vida e do crescimento e eu não os pouparia disso mesmo que pudesse. Mas de uma coisa quero poupá-los. Quando estamos com medo, costumamos pensar que estamos sozinhos. Achamos que ninguém enxerga e nem se preocupa com o que está acontecendo, que estamos por conta própria.

Quando isso acontecer, quero que se lembrem do urso. Lem- brem-se de que existe alguém que está por trás de vocês, cuidando para que nada aconteça. Vocês podem não vê-lo nem ouvi-lo. Mas nunca estão longe do seu alcance. Vocês estão sempre sob sua guarda.

Vocês são os bem-amados de Deus.

P erfeitamente Seg uro

Dallas Willard disse que Jesus viveu com absoluta confiança por­que sabia que seu Pai era infalível em sua competência, além de totalmente devotado. O resultado é impressionante: “Com este Deus magnífico posicionado entre nós, Jesus nos traz a certeza de que nosso universo é um lugar perfeitamente seguro de viver”.

Será? O nosso universo? Falamos muito hoje em dia sobre lu­gares seguros, porque nosso mundo parece ter ficado muito peri­goso. Desastres, violência e morte cobrem a terra.

E, contudo, essa descoberta acontece várias vezes na Bíblia. A jaula do leão e fornalhas ardentes, a prisão do faraó e o leito do mar Vermelho, um pequeno barco no meio de uma tempestade violenta, todas essas situações parecem extremamente perigosas, mas acabaram se transformando no lugar mais seguro de todos.

É verdade mesmo. Nosso universo é um lugar perfeitamente seguro para viver. Não porque as coisas ruins não vão acontecer,

Page 171: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 183

mas porque, como o próprio Paulo disse, “quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?”. As piores armas que este mundo pode usar são impotentes diante do amor.

Essa é a descoberta do salmista: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás co­migo”. Até o vale da sombra da morte é um lugar seguro.

Nossos fracos grunhidos e rosnados podem não ser grande coi­sa sozinhos, mas por trás de nós está aquele que nunca se cansa de nos vigiar. Podemos não vê-lo nem ouvi-lo, mas o Pai está sempre junto de nós. E nada poderá nos separar de seu amor. Nem o fracasso, nem a doença, nem a falta de dinheiro, nem a solidão e nem a própria morte.

Muito mais forte do que todos esses inimigos, ele está atrás de nós e em todos os lugares. Um dia conseguiremos ouvir o seu rugido e ver as mãos que agora mesmo nos amparam. Enquanto isso, caminhamos pela fé. Mas a verdade permanece: nunca esta­mos sozinhos.

Uma mulher acorda com a tempestade. Ela corre para o quarto do filho quando vê o clarão de um raio, porque sabe que vai encontrá-lo aterrorizado. Para sua surpresa, ele está de pé, olhan­do pela janela.

“Estava olhando lá para fora”, ele diz, “e você nunca vai adivi­nhar o que aconteceu. Deus tirou uma foto minha”.

Ele estava convencido de que Deus estava ali e que, portanto, o universo era um lugar perfeitamente seguro de estar.

Mateus conta que, um dia, Jesus e seus discípulos estavam num barco quando “de repente levantou-se no mar uma grande tem­pestade”; coisa que era bastante comum no mar da Galiléia. Os discípulos compreensivelmente se desesperaram, mas o texto diz que Jesus estava dormindo.

Por que Mateus inclui a informação de que Jesus estava dor­mindo? Porque quer que entendamos. Dado o que sabia a respei­to do Pai, o Senhor tinha conhecimento de que o universo era um lugar perfeitamente seguro para estar.

Page 172: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

184 A m o r a l ém d a ra z ã o

Os discípulos tinham fé em Jesus. Eles acreditavam que ele poderia fazer alguma coisa para ajudá-los. Mas eles ainda não ti­nham a fé de Jesus. Eles não compartilhavam da certeza de que estavam seguros nas mãos de Deus.

A isso Paulo chama de a “paz de Cristo”.Como seria a minha vida se tivesse a certeza de que, por causa

do caráter e da competência de Deus, este mundo é um lugar perfeitamente seguro para viver?

• O nível de tensão em minha vida diminuiria. Teria plena certeza de que posso descansar colocando minha vida nas mãos de Deus. Não ficaria preocupado com a minha inca­pacidade.

• Seria um pessoa mais calma. Poderia estar ocupado, com um monte de coisas para fazer, mas internamente manteria a calma e o equilíbrio que vem da certeza de se estar na com­panhia de Deus. Não diria as tolices que agora digo por falar sem pensar.

• Não me deixaria abater pela culpa. Viveria com a confiança que vem da segurança do amor de Deus.

• Confiaria em Deus a ponto de obedecê-lo cegamente. Não acumularia valores. A preocupação faz com que me concen­tre em mim mesmo. Ela rouba minha alegria, energia e com­paixão.

Se a paz de Cristo reinasse numa pessoa, ela seria um oásis de sanidade no mundo em caos.

Se a paz de Cristo reinasse em uma comunidade, ela seria capaz de mudar o mundo.

L iberdade para A rriscar

Jesus não oferece essa certeza simplesmente para que possamos nos comprazer na sensação de conforto e segurança. Não se trata de um “útero espiritual”. O útero pode ser confortável e tranqüi­lo, mas certamente impõe limites sérios ao crescimento.

Page 173: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 185

Queremos segurança, mas queremos mais do que isso. Sabe­mos que, se nossa vida for tomada pela busca da segurança abso­luta, iremos estagnar e morrer. Precisamos crescer e explorar para vivermos plenamente. Na verdade, o conforto pode ser mais fatal do que o perigo. Assistimos a filmes de terror, andamos em mon- tanhas-russas, praticamos bungie-jump (há quem se arrisque) por­que sabemos que se não arriscarmos nossas vidas, viveremos, de certo modo, como se estivéssemos mortos.

Todas as criaturas parecem ter uma necessidade ou um impulso de crescer e amadurecer, que geralmente anda em conflito com a necessidade de segurança. H á alguns anos, um aluno de psicolo­gia de Berkeley levou um rato para o estádio de futebol da univer­sidade e abriu a gaiola. No primeiro dia da experiência, o rato permaneceu na gaiola por trinta minutos, colocou a cabeça para fora por alguns segundos e depois recuou. No segundo dia, o rato aventurou-se a dar alguns passos para fora. Depois de um mês, o rato corria para todo lado, descia as escadas, atravessava o campo até o outro lado e depois voltava para casa de novo, tudo sem nenhum reforço.

Fugimos da dor e temos medo da morte, mas sabemos que a vida é mais do que evitar a morte. Então, a Bíblia se alterna em nos exortar a aceitarmos riscos enormes e em nos garantir segurança

absoluta. E quando estudamos a vida dos grandes discípulos de Deus, vemos esta com­binação de riscos incalculáveis e uma confi­ança quase arrogante de se estar seguro nas mãos de Deus. As garantias que recebemos da proteção divina geralmente aparecem nas Escrituras na forma de golpes que fazem com que pessoas amedrontadas se arrisquem e

obedeçam a Deus mesmo quando não parece seguro. Como o pai que ensina o filho assustado de dois anos a pular da borda da pisci­na para dentro da água: “Confie em mim. Não vou empurrar você. A piscina é um lugar perfeitamente seguro”.

VOCÊ TAM BÉM E ST Á SO B A

PRO TEÇÃO D E UM GRANDE E

P O D E R O S OD e u s .

Page 174: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 8 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

Más a criança nunca saberá se não pular. O pai não pode dar esse passo por ela. Se ele a segurar no colo e levá-la para dentro da água, ela não tomará nenhuma decisão, nunca exercitará sua cora­gem. Ela precisa dar um salto de fé sozinha.

Então Deus ensina seus filhos “de dois anos” inseguros:• Você consegue derrotar o faraó.• Você consegue ocupar a terra prometida.• Você consegue enfrentar Golias.• Você consegue dar tudo o que possui aos necessitados e se

juntar ao grupo de discípulos.• Você consegue se sentar numa prisão romana e enfrentar sua

execução iminente.Todas essas situações aparentemente arriscadas tornaram-se

perfeitamente seguras. Você também está sob a proteção de um grande e poderoso Deus. Ele tem braços muito fortes. Nunca dei­xou ninguém cair. Ele também não vai deixá-lo cair.

Mas você precisa confiar nele. Você vai ter de saltar.Como dar esse salto de confiança?Uma forma (que não é uma opção para os discípulos de Cristo)

é tentar viver sempre em situações de tranqüilidade. A revista Time recentemente publicou uma matéria de capa sobre a tendência da vida moderna: uma volta aos pequenos municípios. As pessoas estão fugindo dos problemas, da pobreza e maus costumes da ci­dade grande para buscar um lugar mais seguro, tranqüilo e con­fortável para se viver.

Não foi esse o tipo de paz que Jesus en­controu. Ao contrário, ele experimentou grande perturbação. João conta que quando Jesus viu o luto pela morte de Lázaro “co- moveu-se profundamente em espírito, e per­turbou-se”. Antes de sua própria provação,João diz que Jesus estava profundamente perturbado e testificou: “em verdade vos digo que um de vós me trairá”.

N Ã O P E N S E Q U E O

CHAMADO À PAZ É UM A B U S C A

PO R SIT U A Ç Õ E S C Ô M O D A S.

Page 175: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 187

Por amar Lázaro, Jesus ficou perturbado diante do terror da morte. Por amar Judas, Jesus perturbou-se diante de sua traição e morte espiritual.

Paulo, também, sabia que a paz de Cristo não era um passe livre para escapar de uma profunda perturbação e preocupação. Ele conviveu não apenas com o sofrimento exterior mas também com uma agitação interior: “Além das coisas exteriores, há o que diariamente pesa sobre mim, o cuidado de todas as igrejas. Quem enfraquece, que também eu não enfraqueça? Quem se escandali­za, que eu não me abrase?”.

Você sabe o que é isso. Você cria seus filhos esperando que eles vivam bem e com sabedoria. Às vezes, você ficará perturbado. Você vai para a cidade e se preocupa com os desabrigados e pobres, ora por amigos que estão perdidos ou são avessos a Deus e resistem a ele por meses ou anos; você sabe o que é perturbação.

Não pense que o chamado à paz é uma busca por situações cô­modas.

U m a Fo r m a de P ensar

Viver na paz de Jesus significa que precisamos começar a pensar e a enxergar o mundo como o próprio Jesus enxergava. É preciso que “a palavra de Cristo habite em vós abundantemente”, diz Paulo. E o fundamental na mensagem de Jesus era a sua insistência em que agora mesmo em nosso mundo somos o objeto da contínua vigilância de Deus.

Jesus nunca se cansou de falar sobre isso. “Por que se preocupar com a vida, com o que comer ou vestir?”, ele diria.

“Veja os lírios do campo. Eles não trabalham nem fiam.” Não formam sindicatos florais, vivem sem planos estratégicos, nunca se reestruturam. Não assistem a nenhum seminário de motivação para aprender a libertar a árvore que lhes serve de abrigo à noite. C ontudo , ao lado deles, pareceria até que Salomão comprava roupas de brechó. Se Deus esbanja uma beleza como essa num a planta que hoje existe, mas amanhã

Page 176: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 8 8 A m o r a l é m d a r a z ã o

deixará de existir, acha que ele não vestiria muito mais você, que é o seu bem-amado?

“Veja as aves do céu”, Jesus disse. Elas não são, em geral, criatu­ras especiais. Não têm úlceras, pressão alta nem colite. Mas são alimentadas pela mão de Deus.

Algum tempo atrás, eu e minha esposa vimos dois gansos e seus gansinhos se alimentando. Um ganso adulto e nove filhotes comi­am plantas, enquanto que o outro adulto permanecia de guarda.

— Veja como a mamãe ganso protege a família — , Nancy disse.— Como você sabe que é a mãe? Talvez seja o ganso pai — eu

disse.— Não, é sempre a mãe que se sacrifica pela família, enquanto

o pai se farta junto com os filhos. É sempre a mesma coisa em qualquer espécie.

Nesse momento, os dois gansos adultos trocaram de lugar. O que comia passou a vigiar e o outro começou a comer.

Fiquei tão agradecido a Deus.Jesus disse que sempre que virmos um pássaro se alimentar de

sementes, não estaremos vendo um evento casual, mas o próprio amor em ação. Ver um pássaro comer é algo tão comum que geral­mente nem nos damos conta. Mas não foi por acaso que ele encon­trou comida. Sempre que você acorda, pensa em alguma coisa ou saboreia uma refeição, não está fazendo essas coisas por acaso. Elas são lembretes de amor que o Pai distribui a toda a criação, na esperança de que alguém os leia.

“Deixo-vos paz, a minha paz vos dou. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize.”

Você já recebeu essa mesma atenção em sua vida.

Houve uma época em que você estava só e Deus lhe enviou um amigo.

Houve uma época em que você precisou de sabedoria e orientação e a encontrou em

E l a s s ã oL E M B R E T E S

DE AMORq u e o P a i

D IS T R IB U I A TO DA A

CRIAÇÃO, NA E S P E R A N Ç A

D E Q U E A L G U É M OS

L E IA .

Page 177: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 189

um livro, fita, mensagem ou palavras sábias que vieram na hora certa.

Você estava desanimado e Deus lhe dedicou algum tempo, en- chendo-o de esperança e coragem.

Você foi tentado, mas sentiu uma força o conter e retomou o autocontrole, deixando de fazer uma coisa que lhe seria extrema­mente destrutiva.

U m a Fo r m a de C a n ta r

Desde o início, a fé do povo de Israel, a fé do povo da igreja, é uma fé que se expressa e se fortalece na música. Somos um povo que canta a fé — mesmo que não cante muito bem. De alguma forma, quando cantamos, as palavras encontram um caminho que liga a mente ao coração.

A música conta a história de Cristo, desde o seu nascimento, quando Maria, Zacarias e os anjos irrompem em cânticos, até o seu fim, quando ele e seus amigos mais íntimos terminam a últi­ma Páscoa cantando um hino antes de Jesus sair para a morte.

A música pode fortalecer a alma. O livro de Atos diz que Paulo e Silas foram injustamente julgados, condenados e atacados por uma multidão, despidos de suas roupas, castigados com varas, jo­gados na prisão, colocados em uma cela afastada e amarrados em um tronco. Então, a passagem diz: “Perto da meia noite Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos os escuta­vam” (como se tivessem outra coisa para fazer!).

Como eles podiam cantar hinos na prisão? Porque eles sabiam que — dado o Deus magnífico para quem eles cantavam — aque­le era um lugar perfeitamente seguro de estar.

É impossível ler os Salmos — mesmo que casualmente — sem perceber que as músicas eram para o salmista tanto uma expressão de fé quanto um veículo por meio do qual a fé encontrava forças. Cantar é, na prática, sinônimo de confiar. “Mas confio no teu constante amor. [...] Cantarei ao Senhor”. Deus é quem inspira a música “à noite”, quando parece que não vale a pena cantar mais

Page 178: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 9 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

nada: “Tornaste o meu pranto em folguedo; tiraste o meu pano de saco e me cingiste de alegria, para que a minha alma te cante louvores, e não se cale”.

Então, cantar torna-se uma parte vital da nova comunidade da igreja. “Cante salmos, hinos e cânticos espirituais com o coração cheio de gratidão a Deus”, Paulo diz. Agostinho escreveu que, quando cantamos a Deus, fazemos duas orações: uma com pala­vras e outra com a música do coração.

Os momentos mais sublimes que temos com Deus são marca­dos pela música: no funeral de alguém que amamos, quando testificamos com a música que a morte não dará a palavra final; por alguns instantes no culto, quando só a música consegue liber­tar nosso espírito; durante um momento de devoção, em que pre­cisamos dar voz a um voto solene de obediência a Deus.

Quando cantamos, vemos que a música pode “fazer bem para a alma”, mesmo quando nada mais parece bem à nossa volta. Ve­mos que este universo é um lugar bastante seguro de viver.

* U m a Fo r m a de O rar

Começamos a buscar a paz de Cristo quando praticamos uma forma de orar em que há uma “entrega constante” a Deus: “Lançai sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós”. Jogue para Deus, Pedro está dizendo, como jogaria fora a água de um barco furado.

Os psicólogos falam da importância dos bebês aprenderem a ficar sozinhos na presença de um dos pais, especialmente da mãe. Quando a criança se convence de que a mãe é acessível, atenta e confiável, e de que ela não será abandonada, toda a sua inquieta­ção cessa. Ela não precisa ser tocada e nem ver a mãe constante­mente. Ela aprende a confiar. De certa forma, o pai está presente mesmo quando a criança está só e, assim, a solidão deixa de ser assustadora. Ela é capaz de explorar o seu mundo com segurança.

Semelhantemente, na oração aprendemos a ficar sozinhos na presença de Deus. Conversamos abertamente com ele sobre todas

Page 179: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 191

as nossas preocupações e aflições. Passamos a crer que não fomos abandonados, apesar de não podermos tocá-lo nem vê-lo. Ele está conosco mesmo — e especialmente — quando estamos sozinhos. Portanto, a solidão deixa de ser assustadora. Isso está implícito no belo nome do Antigo Testamento, Emanuel: Deus conosco.

Precisamos aprender a entregar a Deus nossas inquietações, pois são muitas. O mundo destrói a vida espiritual gerando uma inquieta­ção constante. Jesus disse em uma de suas parábolas que a vida de fé é sufocada pelas “preocupações [inquietações] do mundo”.

Sabemos que isso é verdade. Mas estamos mais amarrados e presos ao mundo do que jamais estivemos em toda a história da humanidade. Somos capazes de nos conectar ao mundo vinte e quatro horas por dia com muito mais facilidade do que a Deus.

Temos canais a cabo, satélites, Fedex, telefones celulares, apare­lhos portáteis de fax, beeper e pager, e o correio eletrônico. Não existe necessariamente nada de errado com toda essa tecnologia, mas ficamos viciados nela, tornamo-nos escravos dela.

Richard Swenson, autor do livro Margin [Limite], contou de um homem da Califórnia que volta para casa depois das férias e descobre que recebeu mil e-mails. (Ele sugere que, para muitas pessoas, a melhor coisa que se poderia receber é uma “linha sem telefone”.)

Na verdade, estamos mesmo precisando é de vinte e quatro horas de acesso a Deus.

Há uma forte relação entre inquietação e oração. Isso fica claro quando Paulo diz: “Não andeis ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, pela oração e pela súplica, com ações de graças, sejam as vossas petições conhecidas diante de Deus”.

Muitas vezes, pessoas perturbadas lêem palavras como essas e se sentem mais perturbadas ainda porque são preocupadas demais. Mas você não pode acabar com sua inquietação simplesmente pela força de vontade.

A idéia é permitir que a inquietação se torne um caminho para a oração. Use a inquietação para reforçar a sua oração.

Page 180: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

192 A m o r a l ém d a r a z ã o

Da mesma forma que os cães de Pavlov ficavam condicionados a salivar antes das refeições toda vez que ouviam o sino, podemos usar a inquietação como uma deixa para a oração.

Não se preocupe com a intensidade de sua inquietação. Sim­plesmente encaminhe suas preocupações para Deus.

Essa sensação perturbadora pode permanecer. Ou talvez não. Não se deixe abater por isso. Sua tarefa não é garantir para que seus sentimentos sejam “espiritualmente corretos”.

Sua tarefa — a nossa tarefa — é sempre entregar nas mãos de Deus.

Você pode começar agora mesmo. Pense na coisa que mais o preocupa. Pode ser um problema para o qual você não encontra resposta, uma culpa que o persegue, uma responsabilidade que o sobrecarrega, uma perda ou decepção que parece grande demais para se suportar.

Você tem carregado essa inquietação sozinho. Entregue-a para Deus.

U m a N o v a Fo r m a de Sentir

Um amigo meu colocou a filha de cinco anos para dormir. Uma hora depois de ajeitá-la na cama, ele voltou para ver se estava tudo bem e, para sua surpresa, ela ainda estava acordada.

— Qual é o problema? — ele perguntou.— Estava pensando.— Sobre o quê?— Estava pensando sobre ser noiva. Sabe? Um dia eu vou ser

noiva. Vou ter um casamento, vou usar um vestido especial. E você, papai, será o meu príncipe.

Na cabeça dela, toda aquela história de noivas e princesas e noivos e príncipes acabou se misturando. Ela seria uma princesa noiva.

— Isso é ótimo, querida, mas não posso ser o seu príncipe.— Por que não? — ela protestou, contrariada com a notícia.

Page 181: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Então meu amigo teve de explicar que ele já era o príncipe da mãe dela e que a sociedade acharia estranho se isso acontecesse.

— Bom, então quem vai ser o meu prín­cipe?

— Não sei. Talvez Aron, ou Brandon, ou um dos meninos que você conhece. Ou não. Provavelmente, você nem o conheça ainda. Na verdade, a melhor coisa a fazer, quando chegar a hora de escolher o prínci­pe, é: deixe que o papai decide. Não faça nada que uma princesa faria sem falar pri­meiro com o papai.

Há em todo coração humano um desejo permanente de ser o príncipe ou a princesa

de alguém. Queremos ser amados.A Palavra diz que somos. Os autores da Bíblia usam os exem­

plos mais diversos para nos convencer disso. O amor de Deus por nós é o amor de um amigo que sacrificaria a vida por quem ele ama, o amor de um pai pelo filho fugitivo, o amor da mãe que jamais permite que ela se esqueça do filho. O amor de Deus por nós é mais apaixonado do que o coração do noivo mais apaixona­do por sua noiva.

Você é o bem-amado de Deus.Essa ânsia de ser amado que existe em nosso coração é apenas

um vestígio do desejo de Deus de nos amar. Antes mesmo de você nascer, já era amado por Deus. Esse é o maior segredo da sua identidade. Ele não pode ser conquistado ou adquirido, apenas recebido com gratidão.

Nada do que você possa fazer fará com que Deus o ame mais do que agora: nem uma obra mais grandiosa, nem mais beleza, nem mais reconhecimento, nem mesmo mais espiritualidade e obediência.

Nada do que você já fez poderia fazer com que Deus o amasse menos; nem seus pecados, nem seus fracassos, nem qualquer cul­pa ou arrependimento.

Seguros no amor de Deus 193

E S S A Â N SIA D E S E R AMADO QUE

E X IS T E EM N O SSO

CORAÇÃO É APEINAS UM

V E ST ÍG IO 1 )0 D E S E JO D E

I)E U S D E N O S AMAR.

Page 182: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 9 4 A m o r a l ém d a r a z ã o

A ironia é que passamos a vida tentan­do conquistar um amor que só podemos receber quando admitimos a nossa pobre­za de espírito.

João disse: “Vede quão grande amor nos concedeu o Pai, que fôssemos chamados filhos de Deus. E somos mesmo seus fi­lhos!”.

Aprender a viver no amor de Deus é o desafio de uma vida inteira. Martin Luther King escreveu: “Trata-se da inefável e in­finita misericórdia de Deus que o pobre coração do homem não consegue compreender e muito menos expressar: é a incomensu- rável intensidade e o zelo apaixonado do amor de Deus por nós”.

C r ia n d o u m L u g a r Seg ur o para o s O utros

Quando sentimos que estamos seguros nas mãos de Deus, pode­mos começar a criar paraísos de segurança para os outros.

Há muitos anos, um amigo meu de Chicago começou o que ele chamou de ministério de Emaús. As pessoas que eles estão tentando ajudar são jovens com a idade aproximada de vinte anos que vêm para Chicago e não têm família — na verdade, a maioria nem chega a conhecer os pais. São vítimas de abuso de drogas que, para sobreviver, acabam se tornando trabalhadores de rua — prostitutos. Não é um tipo de gente que as pessoas amariam com facilidade.

Então essas pessoas do Emaús simplesmente andam pelas ruas de Chicago à noite, das dez às duas ou três da manhã, e procuram pelos bonecos de pano mais degradados. De vez em quando, al­gum homem envolvido na prostituição dirá: “Não dá mais para agüentar. Será que existe uma saída para esse inferno?”. E, então, John e seu amigos oferecem abrigo ou treinamento e tentam aju­dar essa pessoa a encontrar uma saída.

a i r o n i a é q u ePASSAM OS A V ID A

T E N T A N D O C O N Q U ISTA R U M

AMOR Q U E SÓ P O D E M O S

R E C E B E R Q U A N D O A D M IT IM O S A

N O SS A P O B R E Z A D E E S P ÍR IT O .

Page 183: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 1 9 5

Uma noite, John estava em sua sala com um homem chamado Joseph. A esposa de John e alguns membros daquela pequena co­munidade que estavam sentados à mesa convidaram Joseph para jantar com eles. Joseph sussurrou para John quando se sentaram:

— Nunca fiz isso antes.John estava confuso.— Fez o quê?— Jantar com a família toda reunida à mesa. Nunca fiz isso.Joseph era um jovem típico de seu mundo. Não conhecia seu

pai, sua mãe era viciada em crack e violenta, e ele tinha sido tirado de sua casa quando com quatro meses de idade. Foi transferido de uma instituição para outra da rede de assistência social. Já fazia parte de uma gangue com onze anos de idade e foi para a prisão com dezesseis. Agora estava com mais de vinte anos e nunca na vida tinha se sentado à mesa de refeição com uma família de ver­dade. Nunca tinha passado pelo ritual familiar de pai, mãe e filho passar a comida e se olhar diretamente nos olhos e conversar sobre os acontecimentos do dia.

Ele estava constrangido:— Nunca fiz isso, mas já vi fazerem na TV.Quem vai contar para ele que ele não está sozinho? Quem

vai contar para Joseph que ele, também, é o bem-amado de Deus?

Nesses grupos de ajuda mútua, as pessoas geralmente se apre­sentam dizendo: “Meu nome é Fulano. Sou alcoólatra”. É uma forma de acabar com a negação e aceitar a verdade de sua fraque­za. Já se sugeriu que na igreja deveríamos nos cumprimentar di­zendo: “Meu nome é Fulano. Sou pecador”. Provavelmente, não é uma má idéia.

Sei bem o que é gastar todo o tempo e energia tentando con­vencer as pessoas de uma coisa que não sou. “Meu nome é Fula­no. Sou um pecador. Preciso dizer isso.”

Mas há outras palavras que precisamos ouvir e dizer. De certa forma, elas são muito mais difíceis de se dizer. Talvez sejam mais

Page 184: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

1 9 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

difíceis ainda de se acreditar. As palavras são: “Meu nome é Fula­no. Sou o bem-amado. Sou amado por Deus”.

Nós precisamos dessa palavras. Talvez você não possa dizê-las sem dar risada ou não consiga dizê-las sem chorar.

Uma das passagens mais belas das Escrituras é Isaías 43. Deus está falando ao seu povo e, embora as palavras sejam dirigidas para Israel, elas também servem para nós. Leia e sinta as palavras de Deus para você.

Chamei-te pelo teu nome; tu és meu.Quando passares pelas águas, estarei contigo, e quando pas-

sares pelos rios, eles não te submergirão. Quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti.

Pois eu sou o Senhor teu Deus, o Santo de Israel, o teu Salva­dor [...]

Visto que és precioso e honrado aos meus olhos, e porque te amo.

Talvez você deva escrever a última frase em um cartão e carregá- lo consigo: “Visto que és precioso e honrado aos meus olhos, e porque te amo”.

Você é o bem-amado de Deus. O que mais você precisa con­quistar, provar ou adquirir? Você é o bem-amado de Deus. Quem mais você precisa impressionar? Que outra escada você precisa subir?

Você é o bem-amado de Deus. O que você pode acrescentar ao seu currículo que seja mais importante do que isso?

E se a sua vida fosse a experiência de viver no amor de Deus? Toda manhã, quando você acordar, diga: “Sou o bem-amado”. Toda noite, antes de dormir, pense: “Sou o bem-amado”.

Escreva essas palavras e carregue-as consigo. Sempre que for se desesperar por causa de alguma coisa errada que fez, pegue o car­tão e leia-o. Quando acordar e se sentir sobrecarregado por tudo o que tem de fazer, pegue e leia.

Page 185: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Seguros no amor de Deus 1 9 7

Pegue o cartão quando se sentir tentado a pecar a desonrar a Deus, quando se sentir revoltado e quiser agredir, enganar ou usar alguém, quando tiver medo, quando estiver perturbado ou quan­do estiver sozinho. Lembre-se e alegre-se com essas palavras que dão vida.

O Deus que o ama é muito maior do que você pode imaginar. Você pode não vê-lo nem ouvi-lo, mas ele está ao seu lado. Ele está vendo tudo.

Patas enormes. Rugido feroz.“Pois és precioso e honrado aos meus olhos, e porque te amo.”

Page 186: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus

Então Deus se escondeu para que as almas se elevassem até a mais absoluta fé e fossem capazes de descobri-lo por trás de todos os disfarces. Pois, quando conheciam o segredo de Deus, disfarçar era inútil. Elas diziam: "Veja! Lá está ele, atrás da parede, olhando através da grade daquela janela!". Ó Amor divino, esconda-se, desvie-se do nosso sofrimento, faça com que sejamos obedientes. Engane, instigue e confunda a todos. Destrua nossas ilusões e planos para que nos percamos e não possamos ver nem o caminho nem a luz até encontrarmos você. [...] Pois como é triste, ó Amor Divino, não poder vê-lo em tudo que é bom e em todas as criaturas.

Jean P ierre de C aussade

Uma forma de amar todas as coisas é perceber que nós podemos perdê-las.

G . K. C hesterton

N osso amado Deus, disse Jesus certa vez, é um pastor que não deixa de buscar uma única ovelha, embora você pense que

ele deve estar satisfeito com as noventa e nove que ele já tem. Continuamos a nos esconder, mas ele não se cansa de procurar.

Robert Fulghum escreveu que estava em seu escritório e ou­viu as crianças da vizinhança brincando de esconde-esconde. Ele

í t upr o

busca os quese

Page 187: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 0 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

lembrou da sua infância. Lembrou-se especialmente de uma cri­ança que se escondia tão bem que chegava um momento em que todo o mundo desistia de procurar — o que causava brigas sobre a verdadeira natureza da brincadeira que era esconder, procurar e disputar.

Havia um garoto fora do escritório de Fulghum que se escon­deu tão bem que estava a ponto de ser abandonado. Fulghum pensou em gritar: “Saia daí, garoto!”, mas achou que isso iria pio­rar mais as coisas.

Os adultos, ele observa, também costumam se esconder muito bem. Encobrimos nossas falhas, defeitos e medos e depois nos perguntamos por que nos sentimos tão abandonados e sozinhos.

“Desejo de se esconder. Necessidade de ser resgatado. Indeci­são em ser encontrado”: é um diagnóstico bem próximo da con­dição humana.

Fulghum observa que as informações sobre o próprio Deus fo­ram escritas na língua do esconde-esconde. Deus absconditus é ter­mo antigo que significa o Deus que se esconde.

Mas Fulghum tem um palpite de que Deus é aquele que pro­cura e não o que se esconde. Ele prefere uma brincadeira chama­da sardinha: uma pessoa, a sardinha, se esconde e os outros procuram por ela; mas cada um que a encontra, fica junto com ela escondido até juntar um grupo tão grande de crianças que, pelos seus risinhos e gritinhos, fica impossível não descobrir o esconderijo.

“Acho que Deus gosta mais de brincar de Sardinha. E será en­contrado da mesma forma que todo mundo nessa brincadeira: pelas risadas dos que ficam amontoados no final.”

A Bíblia diz: “Então ouvindo a voz do Senhor Deus, que passe­ava no jardim pela viração do dia, esconderam-se o homem e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. Mas chamou o Senhor Deus ao homem, e lhe perguntou: Onde estás? Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim e tive medo, por­que estava nu, e escondi-me”.

Page 188: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 201

D esejo de Se Es c o n d e r . N ecessidade de Ser R e s g a ta d o .

I n d e c is ã o em Ser En c o n t r a d o

Esconde-esconde é uma brincadeira bem simples. Uma pessoa procura e todas as outras se escondem. É mais divertida para quem se esconde. Aquele que se esconde, pode escolher um lugar e tem de ficar de olhos abertos. Quem se esconde tem todo o controle. Todo mundo quer se esconder.

A parte mais difícil é procurar. O pegador deliberadamente permite que os outros se escondam. Ele se coloca na posição hu­milde de procurar pelas pessoas que intencionalmente fogem e riem dele. Ninguém quer fazer esse papel.

O pegador nem tem um nome específico. Em outras brinca­deiras, o personagem principal pelo menos tem um título impor­tante: atacante, lançador, goleiro. O que procura é simplesmente isso, é ele ou ela. Não é capitão isso, nem major aquilo, mas sim­plesmente o que procura. De fato, o grito que inicia a brincadeira se resume em: “Lá vou eu!”.

Mas seja lá quem ele for, tem de ser muito paciente. Ele vai ter de procurar muito. Vai ter de enfrentar evasão e trapaça.

No final da brincadeira, se sobrar alguém que está muito bem escondido, ele vai ter de gritar que a brincadeira acabou, que o caminho está livre, que a pessoa pode voltar em segurança, pois nada vai lhe acontecer. Ela pode voltar, como o filho pródigo que veio e recebeu um banquete. Chega de se esconder. Venha para casa. E um grito de graça.

A história de Deus e da raça humana é uma história de escon­de-esconde. O único problema é que ficamos um pouco confusos às vezes sobre quem vai ser o pegador.

Um adesivo de carro muito popular tempos atrás em alguns círculos da igreja dizia: E U E N C O N T R E I. No sentido estritamen­te teológico, o slogan está invertido. A verdade é: ele me en­controu.

Normalmente, quem está numa jornada espiritual pensa que é ele quem procura. E, é claro, há uma certa verdade nisso. Ele faz

Page 189: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 0 2 A m o r a l ém d a r a z ã o

perguntas, lê livros, assiste aulas, procura a verdade que geralmen­te parece se esquivar. Ele procura a Deus. A Bíblia diz: “Buscar- me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração”.

Mas essa não é toda a história. Não somos apenas aquele que busca, mas também o que se esconde. Precisamos enfrentar o cos­tume de nos esconder, de nos perder.

Desejo de se esconder

Eu me escondi, dia e noite Eu me escondi, anos enfim Eu me escondi, no labirinto da minha mente E dele me escondi mergulhado em lágrimas Carregado numa correnteza de risos sem fim

Esconder-se é sempre a primeira reação à consciência de que se pecou. Foi isso o que Francis Thom pson escreveu no seu mag­nífico poema chamado The hound o f heaven [O perdigueiro dos céus]. Eu me escondo de Deus num momento que se transforma em décadas. Eu me escondo atrás de explicações lógicas e da negação — “no labirinto da m inha mente”. Eu me escondo, apesar das lágrimas e dos risos que me levariam de volta para ele se eu quisesse.

Essa tem sido a fuga da raça humana desde o Éden. O homem não foi feito para se esconder. Desde o início, nosso maior desejo foi conhecer e ser conhecido. É isso o que está dizendo esta passa­gem de Gênesis sobre Adão e Eva: “Eles estavam nus e não senti­am vergonha”. Nada de esconderijos. Não havia motivo para se esconder. O conhecimento era pleno.

Com o pecado, perdeu-se tudo. Depois da queda, quando Deus veio encontrar-se com Adão, a reação dele foi que, quando ouviu a voz de Deus no jardim, ficou com medo, pois percebeu que estava nu e por isso se escondeu.

Page 190: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondetn 2 0 3

Essa é a nossa história. Nós nos escondemos porque não quere­mos ficar expostos em nossa decadência, em nosso lado sombrio. Nós nos escondemos porque temos medo de nunca mais sermos amados se a verdade sobre nós for conhecida. Nós nos esconde­mos dos outros, nos escondemos de Deus, nos escondemos da verdade e, de certa forma, nos escondemos de nós mesmos.

O pecado e o ato de se esconder estão ligados para sempre, são gêmeos siameses de alma pecadora.

A certa altura da vida, meu irmão Bart decidiu que queria ter acesso irrestrito à lata de biscoitos. Ele queria, apesar de minha mãe ter deixado bem claro que ela era o fruto proibido da cozi­nha. Podíamos comer qualquer legume ou fruta livremente, mas a Lata do Conhecimento do Bem e do Mal significaria a morte.

Mas Bart acreditava (e os psicólogos dizem que é uma coisa muito comum até determinado estágio do desenvolvimento) que, contanto que ele não visse ninguém, ninguém o veria também. Então ele foi para a cozinha, com os olhos apertados e com uma das mãos esticada de um lado do rosto para se esconder. Bartus absconditus. Ele entrou de fininho, tateando com a mão livre pelo armário da cozinha e pelo aparador até encontrar a lata de biscoi­tos. Então, abriu a lata, pegou os biscoitos e saiu sorrateiramente sem nem abrir um olho. Meus pais acharam tanta graça que não o impediram (mas eu não achei toda essa graça, mesmo porque ele já estava com dezessete anos nessa época...).

A ironia é que nos escondemos porque temos medo de que toda a verdade a nosso respeito seja conhecida e com isso os ou­tros deixem de nos amar. Mas o que está escondido não pode ser amado. Só se pode amar o que se conhece. Só podemos ser com­pletamente amados se nos deixarmos conhecer completamente.

Quando escondemos alguma parte de nós, tentamos conven­cer os outros de que somos melhores do que de fato somos. Se formos bons nisso, dá até para enganar. Podemos até ganhar o afeto e o amor dos outros. Mas uma voz interior vai ficar sempre nos importunando: tudo bem, mas, se ele soubesse a verdade a meu

Page 191: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 0 4 A m o r a l é m d a r a z ã o

d e u s n a oQ U E R Q U E N IN G U É M

S E J A FOR ÇAD O A SE A P R E S E N T A R ,

N E M M ESM O P O R E L E .

respeito, se encontrasse meus esconderijos, deixaria de me amar. Ele ama quem ele pensa que eu sou. Não ama a mim realmente, pois não me conhece de verdade.

Adão estava fazendo algo bem semelhante. Mas talvez o mais surpreendente tenha sido a atitude de Deus. Quando ele entra no jardim, pergunta: “Onde estás?”.

Por que Deus perguntaria isso? Será que um Deus onisciente ficaria confuso? Deus estaria mesmo incerto quanto ao paradeiro de Adão? Passei anos lendo essa pergunta sem perceber a sua importância.

E uma das perguntas mais marcantes da Bíblia. Deus está permitindo que Adão se es­conda dele. Deus não quer que ninguém seja forçado a se apresentar, nem mesmo por ele.Deve acontecer espontaneamente, com de­

sejo sincero do coração. Deus concede a cada ser que criou a liber­dade de decidir se quer ou não ser conhecido por ele. Deus cobre os olhos com as mãos.

Mas isso vai muito além. Deus não apenas permitiu que Adão se escondesse, mas foi ele quem veio procurá-lo. É ele quem toma a iniciativa de restaurar a intimidade perdida, mesmo sendo Adão o fugitivo. Depois de contar até cem, ele avisa: “Lá vou eu”.

“Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas”, diz o pro­feta Isaías.

Quem se esconde? O homem que sabe que precisa mudar suas prioridades, cujos filhos não o conhecem, que não se lembra da última vez em que fez uma oração sincera, de quem todo ato é calculado pensando no sucesso, mas que é tão viciado nisso que se recusa a enxergar a verdade e a permitir que os outros a conhe­çam. Ele está se escondendo.

Quem se esconde? A mulher que está cheia de raiva de sua mãe, marido ou filhos, ou de Deus, porque não tem um marido, ou o marido que queria. Mas sua raiva está congelada. Ela não permite

Page 192: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 2 0 5

nem a si mesma conhecê-la. A raiva simplesmente se evapora e corrói todos os seus relacionamentos e seu coração. Ela está se escondendo.

Duas pessoas que freqüentam a igreja durante anos, levam uma vida amigável e respeitável mas cujo casamento está morto, per­deram toda a intimidade da relação, não fazem amor e nem se divertem há tanto tempo que já até se esqueceram. Eles estão se escondendo.

Usamos as palavras para nos esconder. Os agressores reconhecem apenas que são “impacientes” com os filhos porque eles os pertur­bam. A arrogância é chamada de auto-afirmação, a fofoca acontece sob o pretexto de ajudar o outro a “orar com mais inteligência”, a promiscuidade sexual, contanto que se fique com um parceiro de cada vez, foi batizada de “monogamia em série”, a ganância por dinheiro é justificada pela desculpa de se estar “fazendo o que é melhor para a família”, a preguiça agora é chamada de “falta de motivação” e as prostitutas são chamadas de “deusas do sexo”.Necessidade de ser resgatado

Cheio de esperanças eu me apressei...Longe das fortes pegadas que se seguiram, me seguiram.Mas numa caçada lenta Em ritmo constantePassos calculados, numa urgência sublime Eles ecoam, e uma voz ecoa Mais urgente do que as pegadas “Tudo conspira contra vós, mas vós conspirais contra mim”.

F r a n c i s T h o m p s o n , T h e h o u n d o f h e a v e n

Eu me escondo e fujo, mas Deus vem me buscar, sem pressa, impassível, continuamente: o perdigueiro dos céus.

Na história de Jesus sobre a ovelha perdida, um animal se perde e não consegue achar o caminho de volta sozinho. A ovelha não é

Page 193: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 0 6 A m o r a l é m d a r a z ã o

um animal muito inteligente. Todo mundo sabe que os animais com uma certa inteligência acabam ganhando um programa de TV só para eles: os golfinhos tinham o Flipper, os gatos têm o Garfield, os cachorros e cavalos têm tantos que nem vale a pena citar, até os porcos já tiveram seus representantes na TV e no cine­ma. Mas a celebrada ovelha é difícil de aparecer.

As ovelhas são notórias criaturas de hábitos arraigados. Q uan­do sozinhas, andam pelo mesmo caminho até ele afundar, pastoreiam nas colinas até elas virarem um deserto, poluem o solo do qual se alimentam até ele ficar cheio de doenças e parasitas.

As ovelhas não são animais de iniciativa. Elas são maria-vai- com-as-outras. Se uma delas for para um precipício, o rebanho inteiro irá atrás. Você imagina que uma delas, em algum ponto do caminho, vai perceber, parar e pensar: Humm. Sally fo i para o pre­cipício e nunca mais voltou. Acho que vou parar por um instante antes de pular para lá cegamente.

Mas isso nunca acontece. As ovelhas pensam apenas: Bom, tudo bem, acho que vou tentar também. Não parece uma má-á-á idéia.

Os pastores contam de ovelhas “empacadas”, ovelhas que quando caem de costas no chão, ficam paralisadas. O escri­tor e pastor Philip Keller explica:

O fenômeno acontece da seguinte forma. Uma ovelha pesada, gorda e sem tosquia deita- se confortavelmente em um pequeno buraco ou depressão no chão. Ela rola um pouco para os lados tentando se esticar ou relaxar. De re­pente, seu centro gravitacional muda tanto, que

seu corpo vira de costas e suas patas suspendem para o ar. Ela entra em pânico e esperneia freneticamente, o que piora ainda mais as coisas. Seu corpo acaba virando ainda mais e se torna quase impossível voltar à posição normal.

Enquanto ela se debate, gases começam a se formar na pança [o estômago dela]. Conforme eles se expandem, começam a di­m inuir e até parar a circulação sangüínea nas extremidades do

E u M E ESC O N D O E F U J O , MAS

d e u s v e m m eB U S C A R , SEM

P R E S S A , IM P A S S ÍV E L ,

C O N T IN U A M E N T E : O P E R D IG U E IR O

D O S C É U S .

Page 194: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 2 0 7

corpo, especialmente nas pernas. Se estiver fazendo muito sol e calor, a ovelha emperrada pode morrer em poucas horas.

Não dá para ficar sozinho se escondendo. Precisamos ser en­contrados. Muitas vezes na vida, essa busca acontece na forma de uma pessoa que nos ama em nome de Deus, mesmo conhecendo os defeitos que tentamos esconder.

Uma noite em casa, não faz muito tempo, desci as escadas e Nancy estava trabalhando na cozinha. Eu devia estar no andar de cima passando o aspirador ou coisa parecida. Nancy perguntou:

— Me ajuda a guardar a louça?— Claro. Estou aqui para servir. Faremos isso juntos.Depois de trabalhar nisso comigo por alguns minutos, ela co­

meçou a fazer o balanço no talão de cheques.Embora tenha sido uma seqüência muito natural de aconteci­

mentos, isso ficou registrado de alguma forma em minha mente e sem perceber acabei concluindo: se ela vai parar por aqui, eu tam­bém vou.

Então comecei a preparar o café para o dia seguinte — eu tomo café e ela não. Nancy disse:

— Você está fazendo café?Entenda, ela não estava me perguntando para obter uma infor­

mação do tipo: “sim, estou fazendo um delicioso café para ama­nhã”. Por isso eu respondi:

— Bom, você parou primeiro para mexer na contabilidade.— Ah, mas isso é uma coisa que faço para nós dois e o café é

somente para você.Era verdade, mas a essa altura eu já tinha perdido toda a sutile­

za da questão.Isso nos levou a uma discussão fascinante sobre a divisão do

trabalho, sobre a Bíblia e os papéis de cada um dos sexos, a influ­ência da família de cada um na nossa educação e revelações inte­ressantes sobre as nossas mães.

Quando terminamos e chegamos a uma conclusão, percebi uma coisa estranha. Nancy estava pronta para restabelecer a nossa in­

Page 195: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 0 8 A m o r a l é m d a ra zã o

timidade, mas eu ainda sentia necessidade de me manter afastado dela.

Na minha cabeça estava passando mais ou menos o seguinte:Vou me afastar dela e me fazer de vítima. Vá em frente. Jogue toda a culpa em cima de mim. Lincoln libertou os escravos, todos menos uma. Quando ela perceber que me magoou e me deixou triste e que estou certo, vai se sentir péssima. A í ela vai fazer exatamente o que quero. Posso controlá-la e manipulá-la me escondendo estrategica­mente.

Mas, até agora, parece que a estratégia ainda não deu muito certo.

Esconder-se torna-se, para nós, não apenas uma forma de evi­tar a dor e o constrangimento, mas também de punir aquele que sabemos deseja estar em comunhão conosco.

Quando conseguimos tomar coragem e parar de nos esconder? Quando somos amados. Em O fantasma da ópera, o fantasma usa

uma máscara para esconder sua face desfi­gurada. Ele vive nos bastidores de uma casa de ópera, para ocultar sua presença e seus pecados. M as um a m ulher cham ada Cristina toca o seu coração. No clímax da história, ele tira a máscara. Nesse momen­to, ele decide se revelar, se expor. Ele sabe que sua face é repugnante e espera que ela grite em terror, mas isso não acontece. O

coração dela se enche de dó e compaixão. Ela não vira o rosto e gentilmente beija sua face marcada por cicatrizes.

O amor dela o transforma, pelo menos um pouco. Ele a deixa partir em liberdade, mesmo sabendo que isso acabará com seu sonho. Quando ele consegue parar de se esconder naquele mo­mento, é visto e amado pelo que realmente é, apesar de sua defor­mação. Primeiro, é preciso deixar a máscara cair para que o amor penetre no coração.

P r i m e i r o , éP R E C IS O D E IX A R

A M ÁSCARA CA IR PARA

Q U E O AM OR P E N E T R E NO

CO R A Ç Ã O .

Page 196: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 2 0 9

Indecisão em ser encontrado

Um passo que hesito em darSerá a minha obscuridade, afinalA sombra de sua mão, estendida carinhosamente?“Ah, cegos, fracos, bem-amados,Sou aquele a quem procurais!Vós tendes sede de meu amor e eu, de vosso”

F r a n c i s T h o m p s o n , T h e h o u n d o f h e a v e n

Lucas conta a história de um homem que se escondia, um co­brador de impostos chamado Zaqueu.

Em Israel, algumas profissões carregavam um forte estigma so­cial. Elas eram consideradas “negócios desprezíveis” e nenhum judeu que se considerasse sério as praticaria. Os líderes religiosos faziam uma lista desses negócios e advertiam as pessoas a escolher outras profissões.

Algumas atividades davam listas pequenas. No final de uma delas, estavam os médicos e os açougueiros (porque são tentados a abastecer os ricos e ser injustos com os pobres) e comentários do tipo: “O melhor dentre os médicos está fadado ao inferno e o mais digno dentre os açougueiros é amigo do diabo”.

Algumas profissões eram incluídas nas listas não por serem desonrosas, mas simplesmente porque eram consideradas repug­nantes. Numa das listas estava o curtidor de peles e o coletor de estrume. A limpeza do estrume era realmente uma opção de car­reira. Se o marido de uma mulher se tornasse um coletor, ela até ganhava o direito de se divorciar dele e receber uma indenização em dinheiro. Mesmo que tivesse casado sabendo que ele entraria para a profissão, nas palavras de um rabino, poderia alegar: “Eu achava que iria suportar, mas não posso”.

Havia algumas profissões, no entanto, que não eram apenas desagradáveis, mas imorais. As pessoas que praticavam essas ativi­dades além de não serem apreciadas pelos outros, eram evitadas. Aqui está uma dessas listas:

Page 197: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 1 0 A m o r a l ém d a r a z ã o

• Jogador de dados• Agiota (por considerarem que eles exploravam os pobres)• Treinador de pombos (nada contra os pombos; a corrida

de pombos era considerada uma forma de jogo)• Cobrador de impostosIsrael foi invadida por Roma e Roma estava basicamente inte­

ressada em saber quanto dinheiro conseguiria arrancar do país. Então, em vez de romanos, eles colocaram israelitas para cobrar os impostos.

Eles faziam um leilão pelo direito de ser cobrador de impostos de uma determinada área. Quem fizesse a melhor oferta ganhava o direito. Essa pessoa poderia cobrar tantos impostos quanto qui­sesse e tinha de dar a Roma o valor de sua oferta. O que restasse, poderia ficar para ela.

Por isso, os cobradores de impostos eram traidores que vendi­am seus irmãos e irmãs para o inimigo por dinheiro. Supunha-se, portanto, que todo cobrador era culpado de grande desonestidade. Havia um ditado que dizia: “para os cobradores de impostos, o arrependimento é difícil”, porque eles enganavam tanta gente que não saberiam nem quem procurar para se retratar e corrigir seu erro. Um escritor romano escreveu certa vez que uma cidade che­gou a erguer uma estátua para um cobrador de impostos que era honesto.

Além de serem odiados, os cobradores de impostos perdiam seus direitos políticos nem civis. Não poderiam servir como teste­munha em julgamentos e eram proibidos de julgar. Um israelita respeitável não permitiria nem que a bainha de seu manto tocasse no manto de um cobrador de impostos.

Se você quiser ter uma idéia do que isso significava, pense nas categorias mais desprezadas da sociedade, como um traficante de drogas ou mafioso assassino.

O que levou Zaqueu a querer entrar para uma profissão que o tornaria odiado?

Page 198: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 211

Não sabemos muito sobre Zaqueu, a não ser que tinha uma característica física importante. Para um homem ser considerado atraente, deveria ter três características: ser alto, moreno e bonito. Zaqueu tinha duas delas, mas na terceira falhava redondamente. Ele era, como se costuma dizer quando criança, um “tampinha”.

Talvez Zaqueu tivesse decidido mostrar aos outros que poderia ser um grande homem da única maneira que conhecia. O dinhei­ro tornou-se a maior motivação em sua vida.

De qualquer forma, tornou-se um cobrador de impostos e era bom no que fazia. Era um chefe de cobradores e tinha funcionári­os para fazer o trabalho por ele. E era rico. E justo assumir que era altamente corrupto. Tinha desistido da sociedade, dos amigos, da decência; apostou tudo que tinha pensando que a riqueza lhe tra­ria satisfação e daria um sentido à sua vida.

Não estava funcionando. As posses, riquezas, segurança e po­der pelas quais vendeu sua alma não estavam compensando. Tudo conspira contra vós, que trais a mim. Alguma coisa em Jesus o dei­xou intrigado. E bastante fácil imaginar o quê.

O evangelho de Lucas conta que Jesus buscou um cobrador de impostos para ser um de seus discípulos e amigos. Não apenas isso, Levi — cobrador de impostos (também conhecido por Mateus) que tinha se tornado um dos discípulos de Jesus — fez uma festa para seus colegas também cobradores e Jesus compare­ceu a ela. Os líderes religiosos desafiaram-no dizendo: “Por que comeis e bebeis com cobradores de impostos?”.

Um acontecimento como esse se espalha com a maior facilida­de. Jesus vai a uma festa de cobradores de impostos. Um de seus discípulos já tinha exercido essa profissão. Zaqueu queria ver o homem que andava com gente como ele.

Zaqueu queria ver Jesus, mas a multidão o impedia. Quando se é coletor de impostos, não se deve esperar muita simpatia no meio de uma multidão. As pessoas não dariam espaço para um cobra­dor de impostos baixinho poder ver. É bem provável que haveria muitos empurrões, cotoveladas e palavrões se um cobrador de impostos fosse estúpido o suficiente para entrar ali.

Page 199: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 1 2 A m o r a l ém d a ra zã o

Então ele subiu em uma árvore. Ele subiu para ver sobre a mul­tidão. Mas pode ser também que tenha subido para se esconder. Conhecer e ser conhecido era seu grande desejo e seu maior medo.

Jesus chega mais perto e Zaqueu fica satisfeito porque terá uma boa visão.

Porém, de repente, ele não apenas está próximo, mas pára bem do lado da árvore e olha para cima. Toda a multidão, centenas de pessoas, olham para a árvore como ele.

— O que ele está olhando?— Não sei; parece que tem uma criança lá em cima.Jesus diz: “Zaqueu”. Uma única palavra bastou para deixar a

multidão bastante agitada.Imagine como Zaqueu se sentiu. Ele pensava que ia ficar es­

condido numa árvore, seguro, olhando à distância e, de repente, Jesus e todo mundo que ele conhece olha para ele em cima de uma árvore.

“Zaqueu.” A multidão prende a respi­ração para ver o que vai acontecer a um cobrador de impostos corrupto e traidor.

“Zaqueu,” Jesus diz, “desce; não dá para a gente conversar aqui. Anda, depressa”.

E ele_disse o que ninguém esperava ou- vir, muito menos Zaqueu: “Hoje eu devo pousar em sua__casa”.

Imagine uma pessoa assim, que é evitada por todas as pessoas educadas e decentes. Agora, imagine Jesus caminhando até ela e tratando-a com educação e dignidade — não apenas tocando-a, mas pedindo para ir à casa dela, para sentar-se e comer com ela — e você terá uma idéia do choque e da confusão que todo mundo sentiu. Zaqueu obedeceu. Desceu da árvore.

Ele finalmente descobre a verdade: sua vida inteira tinha sido construída na ganância e desonestidade. Tinha pecado contra seu Deus e seu povo. E sai de seu esconderijo.

O CORAÇÃO H U M A N O NÃO

S A B E LID A R COM A C U LPA DO

S E G R E D O D E U M A D E SO N R A .

Page 200: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 2 1 3

A revista Time incluiu um novo serviço telefônico algum tem­po atrás. Era uma “linha de desabafo”, um serviço com capacida­de para receber duzentas ligações telefônicas por dia de pessoas que ligavam apenas para desabafar alguma coisa. Houve confis­sões de todo tipo, desde infidelidade conjugal até assassinato.

Há um outro número, cuja ligação é mais cara, em que as pes­soas podem discar e pagar para ouvir as confissões. Eles recebem até dez mil ligações por dia.

Por que as pessoas pagam para confessar? Porque o coração humano não sabe lidar com a culpa do segredo de uma desonra. É uma forma de confessar a culpa sabendo que não se vai ser julgado por isso. As pessoas desejam conseguir algum alívio contando a verdade a seu respeito.

Imagine que, em vez de Zaqueu, você estivesse na árvore. Você deseja ver Jesus e, contudo, em parte tem medo de vê-lo, porque sabe que a sua vida não está à altura dele. Imagine-se nessa árvore, querendo que Jesus o veja e que não o veja ao mesmo tempo. Se Jesus aparecesse hoje e o visse na árvore, o que ele teria para falar com você? O que você procura esconder sobre sua vida?

Parte de nossa degradação é querer viver com problemas enor­mes sem que ninguém saiba a respeito deles.

Quando saía de casa para ir a algum lugar, minha mãe sempre procurava saber se minhas roupas estavam limpas, não apenas a roupa normal, mas a roupa íntima, meias e peças que os outros não podem ver. Por quê? Não porque era mais confortável, saudá­vel ou higiênico, mas caso eu sofresse algum acidente.

Ela não estava preocupada com o acidente. Ela apenas queria garantir que quando a polícia viesse checar se eu tinha ficado alei­jado, desfigurado ou paralisado, pelo menos eles não pensariam que minha mãe me deixava sair de casa com a roupa íntima suja.

(Por um longo tempo, achei que essa era a primeira coisa que a polícia checava em acidentes: “A coisa está feia; não sei se ele vai agüentar , um deles diria. “Tudo bem. É melhor então a gente che­car a roupa íntima dele para vermos que tipo de mãe ele tinha”.)

Page 201: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 1 4 A m o r a l é m d a ra z ã o

Repare na atitude de Jesus. Poderíamos esperar que ele dissesse algo do tipo: “Zaqueu, se você limpar a sua vida, mudar de profis­são e pagar o que deve, irei à sua casa. Não irei agora, pois parece­ria que estou perdoando o que você fez. Francamente, não posso me dar ao luxo de permitir toda a crítica negativa que isso causa­ria, mas limpe a sua vida e eu irei com você”.

Mas Jesus não disse isso. O Perdigueiro dos Céus insistiu em favorecer Zaqueu mesmo antes de ele ganhar respeito. Lucas é bastante claro a respeito da repercussão disso: “Todos os que vi­ram isso” começaram a murmurar, diz ele.

O problema era que eles eram mais religiosos que Jesus (uma religiosidade distorcida, é claro). Esse é um sinal de alerta: se você se achar mais religioso do que Jesus, é porque passou dos limites.

E então Zaqueu saiu de seu esconderijo. Ele diz que pagará a quem enganou o quádruplo do valor. Por lei ele era obrigado a pagar apenas o que tinha tomado mais uma multa de vinte por cento. Mas ele foi mais além para compensar a ganância com ge­nerosidade. E não parou por aí. Além dessa compensação, ele dis­se que daria metade de tudo o que tinha para quem precisasse.

O sinal de uma vida que foi realmente encontrada é quando o maior desejo em reposta ao erro se torna a vontade de consertar as coisas, enquanto for possível. Essa é a diferença entre arrepender- se e controlar-se para não prejudicar ninguém.

O serviço de imposto de renda tem um fundo especial chama­do “conta do trapaceiro”. A idéia é oferecer um serviço às pessoas que extorquiram impostos e se sentem culpadas. Então quem tra­paceou na cobrança de impostos pode enviar dinheiro anonima­mente para compensar. O IR deve receber uma carta dizendo: “Passei anos cobrando impostos injustos e por isso me sinto cul­pado e não consigo dormir à noite. Anexo encontra-se uma or­dem de pagamento de 10 mil reais. P.S.: Se ainda não conseguir dormir, enviarei o restante que permaneço devendo”.

Zaqueu — por mais desgraçado e desprezado que fosse — esta­va apenas a um passo de alcançar a intimidade com Deus, bastan­

Page 202: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Deus busca os que se escondem 2 1 5

do uma confissão sincera. Ele estava tão perdido quanto se pode estar, mas estava muito próximo de viver no reino de Deus.

Para todos que desejam se esconder, precisam ser resgatados e estão indecisos se querem ser encontrados, Deus falou através de Jesus Cristo: “Você está salvo. Pode sair de onde quer que esteja. Acabou o tempo de se esconder. Chegou a hora de voltar para casa. Você não será castigado, punido, nem pego. Apenas volte para casa. Confie em mim”.

Para todos aqueles que têm se escondido bem demais, Deus diz: “Saia daí, criança! Venha para casa”.

Page 203: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Verbo se fez carne, e habitou entre nós.Vimos a sua glória, a glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.

Jo ã o 1 . 1 4

— Você sabe qual é a personagem mais trágica da Bíblia? — ele me perguntou.

— É Deus, abençoado seja o seu nome. Deuscuja criação o decepciona e trai com tanta freqüência.

Elie W iesel

P or que será que temos de contemplar a glória de Deus encar­nados— como simples e limitados mortais: por que Deus veio

para se tornar um de nós? Por que ele é o Deus da manjedoura, o Deus da cruz?

O filósofo dinamarquês S0ren Kierkegaard contou uma pará­bola sobre o motivo de Deus comunicar o seu amor da forma como fez.

Imagine um rei que amava uma hum ilde donzela, disse Kierkegaard. Ela não tinha sangue real, nem instrução e nenhuma

Page 204: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 1 8 A m o r a l é m d a ra z ã o

posição na corte. Usava roupas esfarrapadas. Morava numa caba­na. Levava a vida dura de uma camponesa. Mas por motivos que ninguém jamais imaginou, o rei apaixonou-se por ela, como às vezes acontece. O motivo de seu amor por ela é inexplicável, mas ele a amava. E isso ele não podia controlar.

Então, um pensamento começou a afligir o rei: como ele reve­laria o seu amor àquela moça? Como ele venceria o abismo da condição financeira e da situação social que os separava? Seus con­selheiros, é claro, diriam para simplesmente ordenar que ela se tomasse rainha, pois ele era um homem de grande poder — os estadistas temiam sua fúria, as potências estrangeiras tremiam di­ante dele, os cortesãos abaixavam a cabeça à palavra do rei. Ela não teria como resistir; ela ficaria lhe devendo sua gratidão eterna.

Mas o poder — até mesmo ilimitado — não pode impor o amor. Ele poderia forçar seu corpo a apresentar-se diante dele, mas não poderia forçar o amor por ele em seu coração. Ele pode­ria conquistar sua obediência dessa forma, mas a idéia da submis­são coagida não lhe agradava. Ele buscava a intimidade do coração e a unidade do espírito. Nem todo o poder do mundo é capaz de abrir o coração humano. Essa porta precisa ser aberta de dentro para fora.

Seus conselheiros poderiam sugerir que o rei abdicasse do seu amor e entregasse seu coração a uma mulher mais digna. Mas isso o rei não faria, nem conseguiria fazer. E assim seu amor tornou-se também um tormento. Kierkegaard escreve: “Que imenso pesar [jaz] nesse amor infeliz. [...] Nenhum homem está fadado a sofrer tanto. [...] Deus reservou esse pesar para si, essa tristeza incomen- surável. [...] Pois o amor divino é um amor insondável que nunca encontra descanso”.

O rei poderia tentar construir uma ponte entre o abismo que os separava elevando-a à sua posição. Ele poderia enchê-la de pre­sentes, roupas de seda e veludo e coroá-la rainha. Mas se ele a trouxesse para o palácio, se deixasse que o brilho da sua realeza se irradiasse sobre ela, se ela visse toda a riqueza, poder e pompa de

Page 205: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Deus degradado 219

sua grandeza, poderia ficar im pressionada. C om o ele (ou m esm o ela) saberia se ela o am ava pelo que ele era ou por tudo o que ele lhe teria dado? E ela, saberia que ele a amava, e con tinuaria am an­do, m esm o que ela perm anecesse na condição de hum ilde cam ­ponesa? “Sua certeza seria forte o suficiente para esquecer para sem pre exatam ente do que o rei não queria se lem brar, que ele era rei e ela um a hum ilde serva?”

Todas as outras alternativas tam bém não serviram. H avia ape­nas um a saída. Então, u m dia, o rei levantou-se, saiu do trono, tirou a coroa, abdicou de seu cetro e abandonou o seu m anto real. Ele assumiu a vida de u m cam ponês. U sou roupas esfarrapadas, com m uita dificuldade trabalhou na terra, im plorou por com ida, m orou num a cabana. Ele não apenas assum iu a aparência externa de um servo, mas seu próprio m odo de vida, sua natureza e sofri­m ento. Kierkegaard diz: “M as a servidão não é sim plesm ente um a roupa e, portanto , D eus precisa passar por tudo , suportar todas as coisas [...], Ele precisa ser abandonado à m orte, ser o mais hum il­de de todos, contem plar o hom em ! Seu sofrim ento não é o da sua m orte, mas o de um a vida inteira; e é o am or que sofre, o am or que dá tudo é o que está em necessidade”. Ele se to rn o u tão degra­dado quanto o ser que ele amava, para que ela pudesse se un ir a ele para sempre. Essa foi a ún ica saída.

Sua degradação to rnou-se exatam ente a m arca de sua presença: “Isto vos servirá de sinal: Achareis o m enino envolto em panos, e deitado num a m anjedoura”.

“As raposas têm covis, e as aves do céu ninhos, m as o Filho do H om em não tem onde reclinar a cabeça.”

Este é o Deus que tiro u o m anto e vestiu-se com a roupa de seus servos e com ela enxugou os pés de seus discípulos. E o Deus sobre o qual se disse em Isaías: “N ão tinha parecer nem form osu­ra; e, o lhando nós para ele, nenhum a beleza víam os, para que o desejássemos”. É o Deus que, no fim, foi ridicularizado e vestido com um m anto verm elho e, depois, dele despido para ser crucifi­cado com um a coroa de espinhos. D e todos os deuses da m ito lo­gia, literatura e religião, ele é o único Deus degradado.

Page 206: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 2 0 A m o r a l é m d a r a z ã o

D eus veio à terra. N ós contem plam os sua glória. N ão a glória de tronos e coroas. N ão, sua glória é a de quem deixaria tudo isso de lado por pobres cam poneses degradados e pecadores com o nós.

João diz: “N inguém nunca viu a D eus”. Deus é o único Filho, que está próxim o do coração do Pai, que se fez conhecido.

Q u an d o a Bíblia diz que n inguém nunca viu a Deus, ela não está falando obviam ente de ver a form a física, no sentido mais com um da palavra. Deus não se lim ita a um corpo físico; ele é espírito. A idéia não é que D eus é um tipo recluso e esquivo com o foram H ow ard H ughes e G reta G arbo no fim da vida.

A verdade a ser d ita é que n inguém nunca conheceu realm ente a verdade sobre D eus. N inguém in terp re tou e com preendeu seu caráter e natureza. Temos algumas idéias e descrições a respeito dele, m as as imagens e interpretações erradas que fazemos estão sem pre em ação, d istorcendo a visão que tem os dele de um a for­m a ou de outra. C . S. Lewis escreve em Cartas do inferno sobre a im portância de orar a Deus pensando nele “com o ele realm ente é” e não apenas “com o acho que ele é”. Lembrar-se dessa diferen­ça, falar com Deus pensando “com o ele realm ente é”, é a oração m ais arriscada de todas, p o rq u e é a que o m al m ais p ro cu ra desencorajar.

Talvez o assunto que mais nos deixa confusos seja o da idéia da glória. E m term os hum anos, a glória geralm ente é relacionada a status. Ela significa beleza, fam a, poder, inteligência, conquista e fortuna. É conquistada em cam pos de batalha e salas de reuniões, celebrada em capas de revista e histórias na mídia.

Veja este anúncio da seção “E stritam ente pessoal” da revista N ew York, feito por um a m ulher que, nas palavras de Neal Platinga, quer conhecer um hom em tão m aravilhoso quanto ela própria:

Incrivelmente Bonita — formada pela Ivy League. Divertida, esti­mulante, astuta, elegante, inteligente, articulada, com mente criati­va e espírito único. Possuo o raro equilíbrio entre beleza e conteúdo,

A G l ó r ia d e D eus

Page 207: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Deus degradado 221

sofisticação e descontração, seriedade e apreço pelo divertido. Bem- sucedida profissionalmente, perfeitamente capaz de se sustentar e ser independente, porém incapaz de se sentir plenamente satisfeita até encontrar você. Favor enviar uma resposta abrangente, descre­vendo a sua personalidade e história de vida. Foto é essencial.

Acho meio difícil possuir um raro equilíbrio en tre beleza e con­teúdo e não deixar que os outros descubram isso mas, de qualquer forma, isso é um pouco ameaçador. M esm o que ela não lem bre nenhum dos outros ensinam entos de Jesus, certam ente anotou o “não deixe sua luz escondida na som bra”. E um perfil de glória, pelo m enos do pon to de vista hum ano.

Correm os para a glória e fugimos da degradação. O escritor Elie Wiesel conta de um acidente de carro que destru iu o ladoesquerdo de seu corpo; ele passou por dez horas de cirurgia repa-radora e meses de recuperação. Mas seus amigos sem pre o conso­

lavam com o m esm o pensam ento: você tem sorte; poderia ter sido pior. Você poderia ter perdido a visão, as pernas, a m em ória.

Isso o lem brou de um a antiga história so­bre um hom em que descrevia um a lista dedesgraças a seus amigos — ele tinha perdi­do o em prego, a casa, o d inheiro e a noiva— e seus amigos ficavam dizendo: “Pode­ria ter sido p ior”. F inalm ente, o hom em gri­

tou: “P ior com o?” . E seus am igos confessaram : “Poderia ter acontecido com igo”.

C orrem os para a glória e fugimos da degradação, do sofrim en­to, da solidão e da dor. “Poderia ser pior. Poderia ter acontecido com igo”.

Deus entende a glória de m aneira diferente de nós. H á provas disso no Antigo Testam ento. O autor de Êxodo conta que depois de Moisés im plorar a D eus para continuar a guiar Israel depois que o povo idolatrou o bezerro de ouro, fez um pedido só para si mesmo:

C o r r e m o s p a r aA GLÓRIA E

FU G IM O S DA D EG R A D A Ç Ã O ,

DO SO FR IM E N T O , DA SOLIDÃO E

D A DO R.

Page 208: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 2 2 A m o r a l é m d a r a z ã o

“R ogo-te que me mostres a tua glória.”Moisés ansiava por ver a glória de Deus. E Deus concordou em

revelar sua glória a Moisés.M as antes de prosseguirm os com a história, vamos refletir por

um m om ento . O que você acha que Moisés vai ver? E m que você pensa quando ouve a frase “a glória de D eus”? Trovões e raios? Terrem otos e m aremotos? U m show de efeitos especiais cósm i­cos? E u esperaria ver um a cena de grande poder. U m a dem onstra­ção de brilho, esplendor e poder capaz de sobrepujar esta pequena e insignificante criatura hum ana. E assim que o hom em geral­m ente im agina ser a glória dos deuses — Zeus e T h o r sem pre deixavam um a meia dúzia de trovões à mão.

“R ogo-te que m e m ostres a tu a glória.”E ntão D eus responde, com palavras capazes de tirar lágrimas

de nossos olhos quando pensam os a respeito. Deus concorda em revelar sua glória a Moisés e diz: “Eu farei passar toda a m inha bondade d iante de ti”.

É isso. Essa é a glória suprem a de Deus. N ão o seu braço forte nem o seu terrível golpe de espada, em bora isso, é claro, tam bém faça parte dele. O que é mais glorioso a respeito de D eus afinal não é a sua força, poder, coragem ou magnificência, em bora eles sejam grandes.

O m ais glorioso a respeito de D eus é a sua absoluta e inabalá­vel bondade. M oisés pede para ver a glória de D eus e ele respon­de: “E u farei passar to d a a m in h a bondade d ian te de ti, e te proclam arei o nom e do Senhor. Terei m isericórdia de quem ti­ver m isericórdia, e m e com padecerei de quem m e com padecer”.

O mais glorioso a respeito de Deus é a sua absoluta bondade. C ontudo, para ter um a visão completa do que isso significa o hom em teve de esperar até conhecer um carpinteiro da Galiléia.

Jesus veio nos m ostrar a glória de Deus, mas não um a glória hum ana. N ão é o tipo de gló­

O M AIS G L O R IO SO A

R E S P E IT O D ED e u s é a s u aA B S O L U T A E IN A B A L Á V E L

B O N D A D E .

Page 209: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Deus degradado 223

ria que tem o hom em mais sexy do ano eleito pela People, nem a personalidade do ano eleita pela Time ou o mais rico do ano eleito pela Forbes. Sua glória ficou mais evidente quando ele assumiu a nossa degradação.

A D eg ra da çã o H u m a n a

Elie W iesel é um dos escritores da sua época que mais escreveu sobre a degradação da vida. R om ancista e ganhador do N obel da Paz, Wiesel sobreviveu ao holocausto, mas perdeu seu pai, mãe e irmã. Ele quer im pedir que nos contentem os com respostas sim ­ples quanto à existência de sofrim entos tão terríveis. Ele viu com os próprios olhos a fum aça preta subindo para o céu que saía das fornalhas nas quais sua m ãe e irm ã m orreriam .

Nunca me esquecerei daquela noite, a primeira no campo, que transformou minha vida numa longa noite, sete vezes amaldi­çoada e sete vezes enterrada. Jamais me esquecerei daquela fu­maça. Nunca me esquecerei do rosto daquelas crianças, cujos corpos eu vi se transformarem em anéis de fumaça sob o silên­cio do céu azul. [...] Nunca me esquecerei do silêncio noturno, que tirou de mim, por toda a eternidade, o desejo de viver. Nunca me esquecerei daqueles momentos que mataram o meu Deus e a minha alma e transformaram meus sonhos em pó. Nunca me esquecerei dessas coisas, mesmo que seja condenado a viver tan­to quanto o próprio Deus. Nunca.

Wiesel descreve um a viagem de trem em que os prisioneiros fica­ram sem comida, tiveram de viver sob a neve e novos corpos eram diariamente jogados para fora. Os alemães, de vez em quando, jo­gavam um a casca de pão no meio dos prisioneiros para vê-los brigar por ele. Um senhor de idade conseguiu pegar um pedaço, mas quan­do foi comer, um jovem o atacou e espancou selvagemente por trás.Meir, m eu garoto, você não m e reconhece? Sou seu pai... você está

m e machucando... Você está m atando o seu pai. Eu tenho pão... para você tam bém ... para você tam bém ...”

Page 210: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

224 A m o r a l é m d a r a z ã o

Ele caiu no chão e m orreu , ainda segurando o pão. Seu filho correu para ele, pegou o pão, mas antes que pudesse devorá-lo, outros hom ens, mais fortes do que ele, atacaram -no. Q u an d o eleso deixaram , W iesel escreve, “próxim o de m im havia dois corpos, lado a lado, pai e filho. Eu tin h a quinze anos de idade”.

Ele fala de um garoto de treze anos de idade, com o rosto triste de u m anjo, que foi publicam ente enforcado pela SS.

“Onde está Deus? Onde ele está?”, alguém disse atrás de mim. Os guardas fizeram todos os prisioneiros marcharem perto da forca para que vissem.

Ele ficou pendurado ali por mais de meia hora, lutando en­tre a vida e a morte, morrendo lentamente em agonia sob nos­sos olhos. E tínhamos de olhá-lo de frente. Ele ainda estava vivo quando passei à sua frente. Sua língua continuava vermelha e seus olhos ainda não estavam vidrados.

Atrás de mim, ouvi o mesmo homem dizendo:“Onde está Deus agora?”Então ouvi uma voz dentro de mim responder:“O nde ele está? O lha ele aqui. Aqui, pendurado nessa

forca.”

M uitos anos mais tarde, W iesel conheceu um a grande figura literária da França, François M auriac. M auriac disse a W iesel que ele deveria contar sua história, que precisava declarar ao m undo a verdade do que tinha acontecido. W iesel pediu para M auriac fa­zer o prefácio de seu prim eiro livro e a seguir estão as palavras que descrevem o m om ento em que W iesel e ele se encontraram pela p rim eira vez e ele, a inda jovem , fez a pergun ta “O n d e estava D eus?”:

E eu, que acredito no amor de Deus, que resposta poderia dar ao meu jovem inquiridor, cujos olhos escuros ainda contêm o reflexo daquela tristeza angelical que um dia surgiu na face da­quele garoto enforcado? O que eu disse para ele? Se falei daque­le outro israelense, um irmão seu, que se parecia com ele, o

Page 211: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Deus degradado 225

crucificado, cuja cruz conquistou o mundo? Se eu afirmei que a rocha que esmagou a sua fé era a pedra fundamental da minha, e que a conformidade entre a cruz e o sofrimento dos homens era, a meus olhos, a chave para aquele impenetrável mistério no qual a fé de sua infância havia perecido? [...] Nós não conhece­mos o valor nem de uma única gota de sangue, de uma única lágrima. Tudo é graça. Se o Eterno é o Eterno, a última palavra para cada um de nós pertence a ele. É isso o que eu deveria ter dito a essa criança judia. Mas consegui apenas abraçá-lo, cho­rando.

O nde está Deus? O n d e ele está em m eio a toda essa degrada­ção, sofrim ento e dor? O n d e ele está na sua dor, e na m inha? Em bora eu adm ire as grandes histórias de sofrim ento e dor, tenho a m inha própria. Pequena em com paração, mas tam bém difícil de

entender. O n d e está D eus quando o câncer aparece, quando o am or se transform a em traição, quando o útero de quem anseia por dar vida perm anece estéril, quando a ale­gria é estrangulada pela culpa?

“O n d e está ele? Ele está aqui. Bem aqui, pendurado nessa forca...”

Essa é a principal declaração do Novo Testam ento. Só que não foi a idéia de Deus

que m orreu, com o Nietzsche disse. Foi o próprio Deus. “Mas nós pregamos a C risto crucificado”, Paulo diz.

Poderia ser pior. Poderia ter acontecido comigo. “Q u e assim seja”, Deus disse. “Q ue aconteça com igo”. E aconteceu. Toda a desgra­ça e infelicidade da condição hum ana aconteceu com Deus. “Ele se fez carne e viveu entre nós, e m ostrou sua g lória.” Vim os o Ser onipotente ficar fraco e esgotado. Vimos o criador da alegria cho­rar de tristeza por sua m orte. Vimos aquele cujo verbo deu exis- tencia a Via Láctea bater os pregos na m adeira para fazer mesas e bancos. Vimos o Senhor dos Exércitos ser cuspido, espancado e m anchado de sangue. V im os o próprio A m or ser traído, negado,

D E ALGUM A FORMA FOI NA

CRUZ Q U E A G LÓRIA D E

D e u s éFIN A L M E N T E

R E V E L A D A .

Page 212: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

2 2 6 A m o r a l ém d a r a z ã o

desacreditado e abandonado por seus melhores amigos. V im os o Senhor da Justiça tornar-se um a vítim a indefesa do m aior ato de injustiça da história. V im os o filho de M aria crescer para cum prir a profecia dada à sua mãe no seu nascim ento: “E um a espada tres­passará tam bém a tua própria alm a”.

A dor, o sofrim ento e o pecado deste m undo segue som ente para a cruz. Sempre a cruz. E de algum a form a é na cruz que a glória de D eus é finalm ente revelada.

“Assim que Judas tom ou o pedaço de pão, saiu. E era noite. Q u an d o ele saiu, Jesus disse: Agora é glorificado o Filho do ho­m em , e D eus é glorificado nele”.

Q u an do se prepara para ir para a cruz, Jesus ora: “Pai, é chega­da a hora. G lorifica a teu Filho, para que tam bém o teu Filho te glorifique a ti. [...] E agora, Pai, glorifica-me em tua presença com a glória que tinha contigo antes que o m undo existisse”.

“O Verbo se fez carne, e hab itou entre nós. V im os a sua glória, a glória com o do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.”

Vimos essa glória, João diz. É exatamente isso o que as pessoas pensavam que Jesus não tinha. Nascido na m anjedoura, criado no anonim ato, treinado com o carpinteiro, m orto com o criminoso. U m tipo estranho de glória. U m a form a estranha de salvar o m undo.

M artin Luther King escreveu que o verdadeiro conhecim ento de D eus não levará ao que ele cham ou de “teologia da glória”, mas antes à teologia da cruz. Se dependêssem os apenas de nossos p ró­prios recursos, pensaríam os sem pre em D eus em term os de poder, dom ínio e controle. N ós o faríamos à nossa própria im agem , pen­saríam os nele da form a com o gostaríam os de ser se nós fôssemos D eus.

M as não é esse D eus que se revela em Jesus. Vemos D eus mais claram ente quando estamos sob a luz da cruz. A cruz é a loucura de D eus, o qual é mais sábio que o mais sábio dos hom ens, a fraqueza de Deus é mais forte que todos os hom ens jun tos. Por m eio da cruz, Deus revela a sua servidão e hum ildade. N a cruz, vem os D eus em toda a sua degradação.

Page 213: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Pois a glória de D eus é a sua degradação. O aspecto mais glori­oso de seu ser é ele ter tom ado para si a nossa degradação para não ter de desistir de nós. Karl Barth diz que D eus prefere com parti­lhar o sofrim ento da desgraça hum ana do que ser o Deus abenço­ado de criaturas não abençoadas.

Deus ficou com o nós — tornou-se um de nós — e nós con­tem plam os sua glória.

D eus Bate à N ossa Po r ta

Eu sei tudo sobre o lado bom e o lado ruim da glória. Fui um fã do Chicago Cubs no final da década de sessenta. O cam po inteiro fez um ano com esse tim e de estrelas. R andy H undley, o pegador, era o grande favorito.

U m dia, o telefone tocou. A vizinha, u m a garo ta da m inha classe na escola falou com m inha mãe ao telefone.

— Sra. O rtberg, a senhora nunca vai adivinhar. R andy H undley está aqui na m inha casa! Eu disse para ele que Jo h n era m eu vizi­nho. Ele quer ir na sua casa para conhecer o John.

Então, tudo deu terrivelm ente errado.M inha m ãe não sabia quem era R andy H undley. C om o o faraó

que “não conhecia n inguém cham ado José”, ela n unca tinha ou­vido falar dele. Ela achou que se tratava de algum a criança com quem eu ia para a escola, que estava querendo vir b rincar comigo. Então ela disse:

— O Johnny está na aula de piano. D iga para o R andy que ele pode vir brincar um outro dia.

Eu tive vontade cham ar o pessoal da assistência social. Levem m inha mãe embora!

Naquela tarde, fiquei profundam ente deprim ido. Por volta das cinco alguém bateu à porta. Q uando abri, lá estava R andy Hundley, um jogador de beisebol da liga principal. U m a estrela. Eu con­templei sua glória, a glória de um pegador profissional, cheio de poder e de braço forte.

O Deus degradado 227

Page 214: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

228 A m o r a l é m d a ra z ã o

Ele tinha dado um a parada em nosso bairro antes de seguir para um a entrevista e foi então que m inha colega ligou para casa. D epois da entrevista, em bora fosse um jogador da liga principal e tivesse um a vida m uito atribulada, decidiu fazer ou tra parada an­tes de ir para Chicago.

Ele fez todo o cam inho de volta para o nosso bairro, rastreou m inha casa e bateu em nossa porta.

— Eu não queria atrapalhar a sua aula de piano — ele disse.Ele m e encorajou a con tinuar a seguir C risto e m e deu um a

bola de beisebol autografada que, ao que parece, m inha m ãe jo ­gou fora, provavelm ente para dar espaço para a boneca de pano da m in h a irmã. D e qualquer form a, ela sum iu.

Para um garoto de dez anos de idade, a glória de R andy H undley não era que ele tinha um canhão no braço, nem que conseguia pegar a bola de Ferguson Jenkins e Kenny H oltzm an, nem que tin h a feito grandes home runs em cim a de Bob G ibson e N olan Ryan.

A glória era que alguém tão im portan te com o ele se deu ao trabalho de vir até a casa de um m enino. A glória foi que um dia ele deixou sua luva e bastão de lado e veio bater à m in h a porta. U m dia, ele veio especialm ente por m im .

“O Verbo se fez carne, e h ab ito u entre nós. V im os a sua gló­ria” , João escreveu. N ós contem plam os a sua glória q uan d o o S enhor de todos vo lun tariam en te se subm eteu à sua m ãe e pai em todas as coisas. C on tem p lam o s a sua glória q u an d o o C ria­d o r do céu e da terra usou u m serrote, m artelo e pregos para fazer cadeiras e bancos. C on tem plam os a sua glória q uan d o o Senhor dos anfitriões envolveu-se em um pano, carregou um a bacia e lavou os pés de seus discípulos. C on tem p lam o s a sua g lória quando o A u to r da v ida m orreu na cruz. C on tem plam os a sua glória quando a m orte não foi capaz de detê-lo e a sepu ltu ­ra não pôde aprisioná-lo.

C ontem plam os a sua glória m esm o quando ele esteve entre os seres com uns e decadentes. Pois a glória de Deus não está apenas

Page 215: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

O Deus degradado 229

na sua força, poder e magnificência. Sua glória está em ter vindo neste ponto do universo, para este insignificante planeta, para as pessoas degradadas de quem ele não teve coragem de se desfazer. Sua glória está no d ia em que ele deixou sua m agnificência e beatitude de lado e veio bater à sua porta.

Ele veio, um dia, especialm ente p o r você.

Page 216: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Notas

Todos os grifos em citações foram acrescentados pelo autor e não fazem parte do original, a não ser quando assim indicados. As citações bíblicas foram extraídas da Edição Contemporânea de Almeida ( e c a ) .

Capítulo 1: Amor além da razão11: Agostinho: cit. M. C. D a rc y , The mind and heart of love. New

York, Henry Holt, 1947, p. 87.15 : Thorp: Karen L e e - T h o r p , Why beauty matters. Colorado Springs,

NavPress, 1997.16: Lewis: C. S. L ew is , The four loves. Glasgow, William Collins,

1960, p . 116.16: “Porque Cristo, estando nós ainda fracos”: Romanos 5.6-8.

Todos nós somos”: Isaías 64.6.Lewis: L ew is, Os quatro amores. São Paulo: M undo Cristão, 1983.

20: ‘que sejais irrepreensíveis e sinceros”: Filipenses 2.15.2 1 : Allender: Dan B. A l l e n d e r & Tremper L o n g m a n III, Bold love.

Colorado Springs, NavPress, 1992, quarta-capa.21- "porque o Senhor corrige”: Hebreus 12.6.21- a fim de apresentá-la a si mesmo igreja gloriosa”: Efésios 5.27.

1617

Page 217: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

232 A m o r a l é m d a r a z ã o

21: “e enviou o seu Filho”: ljoão 4.10.22: “Se Deus épor nós”: Romanos 8.31,35.22: “Ele também te sai ao encontro”: Êxodo 4.14.23: “como à menina do olho”: Salmos 17.8.23: “Você é a menina dos olhos”: V. Lloyd O g i l v i e , Caindo na

grandeza. São Paulo: Vida, 1985.23: “Quando Israel era menino”: Oséias 11.1-4,7.24: Williams: Charles W ill ia m s , He carne dotvn from heaven. Grand

Rapids, Eerdmans, 1984, p. 107.24: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira”: João 3.16.28: “Vede quão grande amor nos concedeu o Pai”: ljoão 3.1,2.

Capítulo 2: Quem ama dá atenção29: Owens: Virginia Stem Owens, And the trees clap their hands.

Grand Rapids, Eerdemans, 1983.30: Erikson: E rik H. E r ik s o n , Insight and responsability. New York,

W. W. Norton, 1964, p. 102.30: Egan: Gerald E g a n , The skilled helper. Belmot, W adsworth,

1975, p. 62.31: “O Senhor te abençoe e te guarde”: Números 6.24-26.31: “Quando disseste: Buscai o meu rosto”: Salmos 27.8,9.32: “I f I were a rich man”: do musical Um violinista no telhado,

música de Jerry Bock, letra de Sheldon Harnick, baseado nas histórias de Sholem Aleichem.

32: “Quando Jesus ia passando”: João 9.1.34: “0 Senhor, tu me sondaste”: Salmos 139.1.34: “Não se vendem dois passarinhos”: Mateus 10.29,30.34: “Rabi, quem pecou”: João 9.2.35: Ellison: Ralph E l l i s o n , The invisible man. New York, Random

House, 1963.37: “Lembra-te de que foste servo”: Deuteronômio 5-15.37: “Então os vizinhos e os que”: João 9.8,9.38: “Sabemos que este é nosso Jilho”: João 9.20,21.38: Newbigin: Leslie N e w b ig in , The light has come. Grand Rapids,

Eerdemans, 1982, p. 122.39: “Já vos disse”: João 9.27 (Anchor Bible).39: “Surdos, ouvi”: Isaías 42.18-20.39: Barry: William B a r ry & William C o n n o l ly , A prática da direção

espiritual. São Paulo: Loyola, 1985.

Page 218: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Notas 233

41: “Aquietai-vos, e sabei”: Salmos 46.10.41: “O Senhor, o meu coração não é”: Salmos 131.1,2.44: Tannen: Deborah T a n n e n , Você simplesmente não me entende.

São Paulo: Best Seller, 1992.44: “Todo homem seja pronto”: Tiago 1.19.45: Peck: Scott P eck , A trilha menos percorrida: uma nova psicologia do

amor, dos valores tradicionais e do crescimento espiritual. Rio de Janeiro, Imago, 1994.

Capítulo 3: Deus toca o intocável

48: Lewis: C. S. L e w is , Os quatro amores. São Paulo: M undoCristão, 1983.

49: Smalley: Gary S m a l le y & John T r e n t , A dádiva da bênção.Campinas, U nited Press, 1997.

49: The Economist: 8 de outubro de 1994, p. 17.49: Brand: Paul B r a n d , Pain: the gift nobody wants. New York,

Harper Collins, 1993.50: “Também o leproso”: Levítico 13.45,46.50: William B arclay . Thegospelof Mark. Philadelphia, Westminster

Press, 1963. (The Daily Study Bible.)50: “Se quiseres”: Marcos 1.40.5 1: “Se tu podes”: Marcos 9.22.54: “para que as tocasse”: Marcos 10.13.55: “com grande compaixão”: Marcos 1.41.49: Lewis: L ew is, Os quatro amores.

Capítulo 4: O Senhor da segunda chance

61: Smedes: Lewis B. S m e d es , Forgive and forget. San Francisco,Harper & Row, 1984, p. 11.

63: Frazier: Charles F r a z ie r , Montanha gelada. São Paulo: Cia. dasLetras, 1999.

64: “Filhos, vocês não conseguiram apanhar”: paráfrase de João 21.5.“Faze-te ao mar alto”: paráfrase de Lucas 5.4.Senhor, afasta-te de m im ”: Lucas 5.8.

Flarris: M urray H a r r i s , palestra não-publicada, proferida na capela da Trinity Evangelical Divinity School.

67: Você me a m a “Do you love me?”, do musical Um violinistano telhado, música de Jerry Bock, letra de Sheldon Harnick, baseado nas histórias de Sholem Aleichem.

656567

Page 219: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

234 A m o r a l é m d a r a zã o

68: Variação estilística: v. Raym ond B r o w n , The gospel o f John.Garden City, Doubleday, 1966, p. 370. (Anchor Bible, v. 1.)

71: “Como um pai se compadece”: Salmos 103.13.72: Bennis: Warren B e n n is & Burt N a n u s , Líderes: estratégias para

assumir a verdadeira liderança. São Paulo: Harbra, 1988.74: “Seu amor não tem limites”: Annie Johnson Flint.

Capítulo 5: Jesus, o Mestre75: Smith: C. W. F. S m ith , The Jesus o f the parables. Philadelphia,

W estminster Press, 1948, p. 19.7 9: Buechner: Frederick B u e c h n e r , Telling the truth. San Francisco,

Harper & Row, 1977, p. 62-3.80: Palmer: Earl P a lm e r , Laughter in heaven. Waco, Word Books,

1980, 79 s.81: “No entanto, existem vários tipos”: b v , ICoríntios 3.12-15.81: Fromm: Erich F ro m m , O medo à liberdade. Rio de Janeiro, Ed.

Guanabara, 1986.82: Tournier: Paul T o u r n i e r , The meaning o f persons. New York,

Harper & Row, 1973, p. 205.83: “Desceu a chuva”: Mateus 7.27.85: “N ão se preocupe com o dia de a m a n h ã ”: M ateus 6 .34

parafraseado.87: Plantinga: Cornelius P l a t i n g a , N ot the way its supposed to be.

G rand Rapids, Eerdmans, 1995, p. 121.88: Keillor: Garrison K e i l l o r , O lago das águas paradas. Rio de

Janeiro, Record, 1988.

Capítulo 6: A satisfação de ser amado91: Buechner: F rederick B u e c h n e r , The longing fo r home:

recollections and reflections. New York, Harper Collins, 1996, p. 129.

94: Frankl: Viktor F r a n k l , Em busca de sentido. São Leopoldo,Sinodal, 1981.

94: “Vaidade de vaidades”: Eclesiastes 1.2,8.94: M o u v j: Richard Mouw, conversa pessoal.95: “Pois a criação ficou sujeita”: Romanos 8.20,21.96: “Então chegaram a M ara”: Êxodo 15.23,24.96: “Toda a congregação”: Êxodo 16.2,3.97: “O populacho que estava”: Números 11.4-6.

Page 220: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Notas 235

98: “Por que fizeste mal”: Números 11.11-15.98: “Consagrai-vos”: Núm eros 11.18.98: “Não comereis um dia”: Números 11.19,20.99: “uma esperança e um futuro”: v. Jeremias 29.11.9 9 : Hughes: Robert H u g h e s , Cultura da reclamação: o desgate

americano. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.100: Cheever: John C h e e v e r . Fonte desconhecida.100: Warren: Neil Clark W a r r e n , Finding contentment. Nashville,

Thomas Nelson, 1997, p. 26. V.100: “Escutem, os que têm sede”: BLH, Isaías 55.1,2.102: Barrie: V. história de J. M. Barrie em The little, hrown book of

anecdotes, org. Clifton Fadiman. Boston, Little, Brown, 1985, p. 39-40.

103: “enfado da carne”: Eclesiastes 12.12.103: Foster: Richard F o s t e r , Oração: o refúgio da alma. Campinas,

Cristã Unida, 1996.105: Smedes: Lewis B. S m edes. Fonte desconhecida.105: Recipe: de Cornelius P l a t i n g a , Not the way it’s supposed to be.

Grand Rapids, Eerdmans, 1995, p. 14.106: “Viva a minha alma, para que te louve”: Salmos 119.175.106: Chesterton: G. K. C h e s t e r t o n . Fonte desconhecida.Capítulo 7: O caminho mais árduo

1 1 1 : Merton: Thomas M e r t o n , Novas sementes de contemplação. Rio de Janeiro, Fisus, 1999.

112: “Para fazê-lo subir”: Êxodo 3.8.112: “Quando o Faraó deixou ir o povo”: Êxodo 13.17,18.113: Mouw: Richard M ouw , Uncommon decency. G rand Rapids,

Eerdemans, 1995.114: Estudiosos do Antigo Testamento: v. The Interpreters dictionary of

the Bible. Nashville, Abingdon, 1985, p. 565. v. 3.117: Lewis: C. S. Lewis, Cartas do inferno. São Paulo, Vida Nova,

1964.118: Para que o povo não se arrependa”: Êxodo 13.17.118: José: v. Gênesis 37; 39— 41; 50.22-26; Êxodo 13.19.118: Davi: v. ISamuel 16; 18— 19; 22— 24.118: Daniel: v. Daniel 1; 6.122. ChiUs: Brevard C h ild s , The book of Exodus: a criticai, theological

commentary. Louisville, Westminster John Knox, 1974. (Old Testament Library.)

Page 221: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

236 A m o r a l é m d a r a z ã o

122: Buechner: Frederick B u e c h n e r , A room called remember. New York, Harper & Row, 1984: citação de B o b B e n s o n S r . & Michael W. B e n s o n , Disciplines o f the inner life. Nashville, Thomas Nelson, 1989, p. 85.

125: MacLean: Norman M a c L e a n , Young men and fire. Chicago, University of Chicago Press, 1992, p. 38.

125: MacLean: Norman M a c L e a n , Young men and fire, 299: citando M ateus 27.46.

Capítulo 8: Am or e graça

128: Lutero: Martinho L u t e r o , A sermon on the Eve o f the Sunday before Reminiscere, in Selected writings o f Martin Luther, org. Theodore Tappert. Philadelphia, Fortress Press, 1967, p. 259.

128: Campolo: adaptado de Tony C a m p o lo , The kingdom ofGod is a party. Dallas, Word Books, 1990, p. 6-9.

130: Yancey: Philip Y a n c e y , Maravilhosa graça. São Paulo, Vida, 1999.

131: Van Auken: Sheldon van A u k e n , A severe mercy. San Francisco, Harper & Row, 1977, p. 85.

131: Willard: Dallas W i l l a r d , The Spirit o f the disciplines. San Francisco, Harper Collins, 1989, p. 80-1.

134: “Amarás ao Senhor teu Deus”: Lucas 10.27.134: “Ainda que eu tivesse o dom de profecia”: lCoríntios 13.2.134: “Aquele que não ama”: ljoão 4.8.137: “Circuncidado ao oitavo dia”: Filipenses 3.5,6.138: Várias metáforas: v. Colossenses 2.11-15.140: “Quem nos separará”: v. Romanos 8.35-39.141 : “A minha graça te basta”: 2Coríntios 12.9.141: “Deus resiste aos soberbos”: 1 Pedro 5.5.142: “Pois certos homens”: Judas 4.142: “Filho pródigo”: v. Lucas 15.11-32.143: Craddock: Fred C-raddock: citado por Y an cey , Maravilhosa graça.14 4 : Bonhoejfer: Dietrich B o n h o e f f e r , Discipidado. São Leopoldo,

Sinodal, 1999.146: “O Verbo se fez carne”: João 1.14.146: “Tocamo-vos flauta”: Mateus 11.17; Lucas 7.32.Capítulo 9: Ser amado significa ser escolhido

148: Thomas: Thomas à K em pis, Imitação de Cristo. Petrópolis, Vozes, 1990.

Page 222: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Notas 237

148: The Whisper Test: c it. Les P a r r o t t , H igh-M aintenance relationships. W heaton, Tyndale House, 1996, p. 206.

150: Roberts: Robert R o b e r t s , Taking the Word to heart. Grand Rapids, Eerdemans, 1993, p. 156.

152: “N a verdade reconheço”: Atos 10.34.152: Lasch: C hristopher L a s c h , A cultura do narcisismo: a vida

americana nunca era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro, Imago, 1983.

153: “Rubi, aquele homem que estava”: João 3.26.156: Um violinista no telhado: música de Jerry Bock, letra de Sheldon

Harnick, baseado nas histórias de Sholem Aleichem.157: Bons: H arold B o r i s , Envy. Northvale, Jason Aronson, 1994,

p. xv.157: “Alegrai-vos com os que se alegram”: Romanos 12.15.157: Rogers: Samuel Rogers: cit. Clifton F a d im a n , The little, brown

book o f anecdotes. Boston, Little, Brown, 1985, p. 474.158: Buechner: Frederick B u e c h n e r , Peculiar treasures. New York,

Harper & Row, 1973, p. 20.158: Caim e Abel: v. Gênesis 4.1-16.159: Boris: B o ris , Envy, p. 155.160: “Saul matou”: ISamuel 21.11.160: “Dez milhares deram a D avi”: ISamuel 18.8,9.160: Platinga: Cornelius P l a t i n g a , Not the way its supposed to be: a

breviary of sin. Grand Rapids, Eerdmans, 1995, p. 156 s.161: Siblings Without Rivalry: Adele F a b e r & Elaine M a z lis h , Siblings

without rivalry. New York, W W. Norton, 1987, p. 88.162: Faber: F a b e r e M a z l i s h , Siblings without rivalry, p. 89.162: “O homem só pode receber”: João 3.27.163: “Prepare o caminho do Senhor”: Mateus 3.3.165: “E necessário que ele cresça”: João 3.30.165: “Ele deve tornar-se cada vez maior”: bv, João 3.30.Capítulo 10: Seguros no amor de Deus

166: Willard: Dallas W i l l a r d , The divine conspiracy. San Francisco, Harper Collins, 1998, p. 66, grifo original.

167: Eliseu e os siros: 2Reis 6.8-23; citações parafraseadas.169: Willard: Dallas W i l l a r d , The divine conspiracy. San Francisco,

Harper Collins, 1998, p. 66.^69: Quem nos separará”: Romanos 8.35.

Page 223: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

238 A m o r a l é m d a r a z ã o

169: “Ainda que eu andasse”: Salmos 23.4.170: “De repente levantou-se no mar uma grande tem pestade”:

M ateus 8.23.171: Berkeley psychology student: v. G ilbert B rim , Ambition. San

Francisco, Basic Books, 1992, p. 9-10.173: Time: data da edição desconhecida.173: “comoveu-se profundamente”: João 11.33.173: “Em verdade vos digo”: João 13.21.173: “Além das coisas exteriores”: 2Coríntios 11.28,29.174: “A palavra de Cristo”: Colossenses 3.16.174: “Por que se preocupar”: Mateus 6.25, parafraseado.175: “Deixo-vos a p a z”: João 14.27.176: “Perto da meia noite Paulo e Silas”: Atos 16.25.176: “Mas confio no teu”: Salmos 13.5,6.176: “Tornaste o meu pranto”: Salmos 30.11,12.176: “Cante salmos, hinos”: Efésios 5.19, parafraseado.177: “Lançai sobre ele toda a vossa ansiedade”: lPedro 5.7.177: Swenson: Richard Swenson, em um local público.178: “Não andeis ansiosos”: Filipenses 4.6.180: “Vede quão grande amor nos concedeu o Pai”: ljoão 3.1.180: Lutero: Martinho Lutero, cit. Roland B a in to n , Here I stand.

Nashville, Abingdon, 1950, p. 173.182: “chamei-te pelo teu nome”: Isaías 43.1-4.

Capítulo 11: Deus busca os que se escondem184: Caussade: Jean Pierre de C a u s sa d e , The sacrament o f the present

moment. San Francisco, Harper Collins, 1989, p. 18-9.184: Chesterton: G. K. C h e s t e r t o n , Tremendous triffles. New York,

Dodd, Mead, 1901, p. 56.184: Fulghum: v. Robert F u lg h u m , Tudo que eu devia saber na vida

aprendi no jardim-de-infância: idéias incomuns sobre coisas banais. São Paulo, Best Seller, 1990.

185: “Então ouvindo a voz”: Gênesis 3.8-10.187: “Buscar-me-eis”: Jeremias 29.13.187: Thompson: Francis T h o m p s o n , The hound o f heaven, 1893. 187: “They were naked”: Gênesis 2.25, parafraseado.188: “Mas chamou o Senhor Deus”: v. Gênesis 3.9.189: “Todos nós andávamos”: Isaías 53.6.190: A parábola da ovelha perdida: v. Lucas 15.3-7.

Page 224: Youblisher.com-349977-AMOR AL M DA RAZ O John Ortberg

Notas 239

1 9 1 : Keller: Philip K elle r , A shepherd looks at the 23rd psalm. Grand Rapids, Zondervan, 1996, p. 51-2.

193: Zaqueu: v. Lucas 19.1-9.194: ‘The best amongphysicians”, Jeremias J o a c h im , Jerusalem in the

time o f Jesus. Philadelphia, Fortress Press, 1989, p. 303s.196: Levi/Mateus: v. Lucas 5.27-32.197: Time: data da edição desconhecida.

Capítulo 12: O Deus degradado

200: “O Verbo se fez carne”: João 1.14.200: Wiesel: Elie W ie sel , A 11 rivers run to the sea. New York, Alfred

A. Knopf, 1995, p. 85.200: Kierkegaard: S0ren K ie r k e g a a r d , Migalhas filosóficas, ou, Um

bocadinho de filosofia de João Climacus. Petrópolis, Vozes, 1995. 202: Kierkegaard: K ie r k e g a a r d , Migalhas filosóficas.202: “Isto vos servirá de sinal”: Lucas 2.12.202: “As raposas têm covis”: Lucas 9.58.202: “Não tinha parecer”: Isaías 53.2.202: “Ninguém nunca viu a Deus”: João 1.18.2 0 3 : Lewis: C. S. Lewis, Cartas do inferno. São Paulo, Vida Nova, 1964 ,

carta 4.203: New York: citado por Cornelius P l a t in g a , Not the way it’s supposed

to be. Grand Rapids, Eerdmans, 1995, p. 84.204: Wiesel: Elie W ie sel , A li rivers run to the sea. p. 164.204: “Rogo-te que me mostres”: Êxodo 33.18.205: “Eu farei passar toda a minha bondade”: Êxodo 33.19.205: Wiesel: Elie W ie s e l , Night. New York, Hill and Wang, 1987,

p. 43.206: Wiesel: WlESEL, Night, p. 71-2.207: Wiesel: WlESEL, Night, p. 11.208: “nós pregamos a Cristo”: lCoríntios 1.23.208: ‘He became flesh”: João 1.14, parafraseado.208: ‘E uma espada trespassará”: Lucas 2.35.209: “Assim que Judas”: João 13.30,31.209: 'Pai, é chegada a hora”: João 17.1,5.209: Lutero: Martinho Lutero: v. Philip WATSON, Let God be God.

Philadelphia, Fortress Press, 1970, p. 78.