UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
WELLINGTON DE LUCENA MOURA
A FILOSOFIA DO JOVEM KARL MARX
Joo Pessoa
2005
WELLINGTON DE LUCENA MOURA
A FILOSOFIA DO JOVEM KARL MARX
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia da
Universidade Federal da Paraba, como
requisito final para obteno do ttulo de
Mestre em Filosofia.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Antonio Rufino Vieira
Joo Pessoa
2005
WELLINGTON DE LUCENA MOURA
A FILOSOFIA DO JOVEM KARL MARX.
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia da
Universidade Federal da Paraba, como
requisito final para obteno do ttulo de
Mestre em Filosofia.
Aprovada em 12 de abril de 2005
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Antonio Rufino Vieira
Orientador
Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)
Membro
Prof. Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha (UFPB)
Membro
A Clotilde Beltro de Lucena,
Andr, Vladimir e Mara
DEDICO este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Aos meus professores do Curso de Mestrado em Filosofia da
UFPB: Giuseppe Tosi, Gisele, Paulo de Tarso, Iraquitan e
Miguel.
E, especialmente, ao meu orientador, Professor Antonio
Rufino.
na histria filosfica (...) h tambm os momentos em que a
filosofia volta o seu olhar para o mundo exterior, e no apenas
o concebe, mas, como se fosse uma pessoa viva, tece, por
assim dizer, intrigas com ele. (MARX, CF, 85)
RESUMO
Nesta dissertao caracteriza-se o conceito de filosofia e do seu fim presente nas
obras da juventude de Marx (1839-1845), notadamente em sua Tese de Doutoramento
intitulada Sobre a diferena da Filosofia da Natureza de Demcrito e de Epicuro.
Escolhemos este tema para demonstrar a importncia, a atualidade e a validade da filosofia
de Marx. Para cumprir esse objetivo, tornou-se necessrio estabelecer o itinerrio filosfico
do jovem Marx a partir das crticas s formas de conscincia como o direito, a poltica, a
religio e a filosofia, especialmente filosofia clssica alem, presentes na Tese de
Doutoramento e em outros escritos do jovem Marx (1839-1845) e tambm ressaltar as
investigaes de Marx sobre o materialismo atomista, a dialtica epicurista, o fundamento
e a realizao da filosofia, que determinaram a formulao posterior dos conceitos
caractersticos da obra marxiana. Procuramos seguir o desenvolvimento filosfico de Marx
iniciado com uma nova abordagem do materialismo atomista e com uma crtica dirigida
mentalidade teologizante dos velhos hegelianos, seguida pela crtica da filosofia
poltica do direito, da anlise da filosofia subjetivista dos jovens hegelianos e do
materialismo de Feuerbach com a pretenso de construir, com fundamentos na economia e
na filosofia, uma nova e vigorosa viso de mundo, a filosofia da prxis.
PALAVRAS CHAVE: Filosofia. Prxis. Ideologia. Materialismo. Marxismo.
Liberdade.
ABSTRACT
This dissertation establishes the concept and goal of philosophy present in the works
of the youth of Marx (1839-1845), especially in his Doctors Dissertation entitled About
the difference between Democritean and Epicurean Philosophy of Nature. We choose this
subject to demonstrate the importance, the actuality and the validity of Marx's Philosophy.
To accomplish that goal, it became necessary to establish the philosophical itinerary of the
youth Marx from the criticism of the conscience forms like right, politics, religion and
philosophy, especially against German classical philosophy, present in the Doctors
Dissertation and in other written of the youth Marx (1839-1845). The dissertation pretends
also to stress Marx's Investigations, about the atomistic materialism, the epicurean
dialectic, the foundations and the realization of the philosophy, and others fundamentals
themes for the formulation of the characteristic concepts of the Marx's work. We try to
follow Marx's philosophical development initiated with a new approach of the atomist
materialism and with a criticism against the theologizing intellect of the old hegelians,
followed by the criticism to the political philosophy of the right, to the subjective
philosophy of the young hegelians and to Feuerbach's Materialism with the pretense of
building, a new and vigorous vision of the world, the philosophy of praxis, founded in
economy and philosophy.
KEYWORDS: Philosophy. Praxis. Ideology. Materialism. Marxism. Freedom.
SUMRIO
INTRODUO 10
CAPTULO 1 - OS JOVENS HEGELIANOS 14
1.1 Hegelianos de direita e de esquerda. 17
1.2 Marx e o materialismo metafsico de Feuerbach. 25
CAPTULO 2 - ITINERRIO FILOSFICO DO JOVEM MARX 36
2.1 A filosofia materialista de Demcrito e de Epicuro 37
2.2 Conceito de mentalidade teologizante 49
2.3 Filosofia da religio do jovem Marx 55
2.4 Crtica da filosofia do direito 74
2.4.1 Consideraes sobre a filosofia do direito em Hegel 77
2.4.2 Crtica da filosofia especulativa do direito 90
CAPTULO 3 ESTATUTO DA FILOSOFIA DO JOVEM MARX 100
3.1 Primeiras crticas filosficas da economia 101
3.2 O fim da filosofia 113
3.3 A filosofia da prxis 126
CONSIDERAS FINAIS 137
REFERNCIAS 144
ANEXOS
I-Traduo do texto Bruno Bauer e o incio do cristianismo de F. Engels 147
II- Notas sobre a histria da Tese de Doutoramento de Marx 156
10
Introduo
Pretendemos nesta dissertao caracterizar o conceito de filosofia presente nas obras
da juventude de Marx (1839-1845), notadamente em sua Tese de Doutoramento intitulada
Sobre a Diferena da Filosofia da Natureza de Demcrito e de Epicuro; para cumprir tal
objetivo, levaremos em considerao os poucos estudos sobre Marx, enquanto filsofo, bem
como, a importncia do tema da validade atual da filosofia marxiana, a questo da realizao e
do fim da filosofia posto por Marx e, para faz-lo, nos apoiaremos basicamente nas prprias
obras de Marx1.
Com este objetivo escolhemos a obra de Karl Marx, escrita entre 1839 e 1845,
perodo em que na Alemanha se travou o debate entre diversas formas do idealismo e do
materialismo filosficos. Marx foi firme na justificao da filosofia e da cincia frente ao
irracionalismo e superstio religiosa, filosofia especulativa do direito e ao subjetivismo
filosfico e, assim, formou os conceitos fundamentais do seu pensamento posterior como
conseqncia natural destes debates. Os textos da juventude nos mostram um Marx filsofo,
crtico da conscincia alienada enquanto oposta ao saber real, crtico da alienao que oculta,
do homem e da sociedade, a conscincia da prpria alienao e das condies sociais de
opresso e manipulao espirituais, polticas e econmicas, e, assim, ao impedir a
compreenso da condio humana, bloqueiam a possibilidade do homem alienado exercer a
sua liberdade. A liberdade de pensamento, compreendida como liberdade de expresso
pblica do prprio pensamento, tem na forma da conscincia religiosa o seu primeiro
adversrio (MARX,FDI,45), seguido pela filosofia especulativa do direito ou filosofia poltica
1 Os textos citados de Marx esto abreviados por siglas ver Referncias.
11
e pela prpria filosofia idealista. Marx empenhou-se em fazer a crtica destas formas de
conscincia alienadas, tanto em relao aos conceitos como ao mtodo, e escolheu a filosofia
materialista de Epicuro, interpretando-a como a filosofia da autoconscincia grega, o
iluminismo grego, precursor da dialtica materialista, para iniciar este filosofar.
Para cumprir nosso objetivo, pretendemos examinar as interpretaes de filosofia,
idealismo e materialismo, e de outras formas de conscincia, como o direito e a religio,
presentes na Tese de Doutoramento e em outros escritos do jovem Marx (1839-1845), bem
como ressaltar as investigaes de Marx sobre o materialismo atomista e a dialtica epicurista,
fundamentais para as suas formulaes filosficas, econmicas e polticas posteriores.
Neste sentido, este estudo visa a uma melhor compreenso da crtica marxiana da
filosofia, da poltica e da religio, especificando mais claramente diferenas e relaes
conceituais e histricas, assim como, delimitando o domnio de cada um dos conceitos, para,
desse modo, revelar o ocultamento e a iluso ideolgica prprios da alienao. Enquanto a
atitude alienada embota e oculta a compreenso, diversa a atitude filosfica prpria da
cincia. Esta ltima consiste em desvendar, esclarecer e compreender, atravs da razo e da
observao, tendo como referncia os pressupostos caractersticos da filosofia de fazer a
crtica aos sofismas do seu tempo, alm de formular na linguagem contempornea as questes
filosficas, distinguindo-as dos pseudoproblemas que obscurecem a compreenso filosfica
apresentando o obscurantismo sob uma aparncia de profundidade - novo fenmeno da velha
revelao divina-, que, como sempre, s pode ser compreendido pelos eleitos.
A histria da filosofia demonstra que quando filosofia e mito religioso se confundem
isto apenas serve ignorncia e ao obscurantismo. O contrrio, serve educao, ao saber
verdadeiro e ao saber filosfico e cientfico em particular. Este tambm o nosso propsito:
ao analisar a filosofia da religio marxiana, contribuir para lanar um pouco de luz sobre esta
fronteira delicada, ignorada por muitos filsofos.
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Visamos, finalmente, compreender melhor como a filosofia de Marx voltou-se cada
vez mais para o mundo, negando-se a ser o pssaro de Minerva hegeliano, que apenas
reconhece no mundo o que j est realizado e em decomposio, e tambm negando o
isolamento epicurista na vida privada. E, pelo contrrio, preferiu ser uma filosofia do mundo
que tece intrigas com ele (MARX,CF,85) e nele se extingue ao realizar-se.
No Captulo 1, tratamos do ambiente histrico e filosfico no qual surgiu a filosofia
de Marx ressaltando os fundamentos nos quais se apoiou, os filsofos com os quais manteve
identidades e aqueles com os quais teve diferenas e os projetos filosficos que produziu,
especialmente as relaes entre a filosofia de Marx e os jovens hegelianos, a filosofia de
Hegel e o materialismo, bem como, a metafsica da filosofia de Feuerbach.
No Captulo 2, tratamos do itinerrio filosfico de Marx atravs dos seus escritos
juvenis, comeando com os escritos preparatrios para a tese de doutoramento e a prpria
tese, ainda muito hegelianos, porm j inteiramente materialista e ateu. Depois examinamos a
crtica da religio e a gnese de conceitos marxianos como ideologia, alienao e
materialismo, nos quais foi forte a influncia do debate com os hegelianos de esquerda e com
Feuerbach. Examinamos depois a filosofia do direito, iniciando pela filosofia do direito de
Hegel para depois expor a concepo crtica de Marx sobre o assunto
No Captulo 3, tratamos do estatuto da filosofia no jovem Marx, iniciando com o
exame das primeiras investigaes filosficas de Marx sobre a economia aplicando o mtodo
dialtico e prosseguindo com a questo do fim da filosofia enquanto realizao da mesma.
Conclumos o captulo com a exposio da filosofia da prxis, destacando o papel da filosofia
com relao ao interpretar e ao transformar, s relaes entre teoria e prtica, assim como,
questo da continuidade dos princpios filosficos ao longo da obra marxiana.
Nas Consideraes Finais, apresentamos um resumo filosfico do nosso trabalho,
uma apreciao sobre a importncia atual e a validade da filosofia da prxis, sobre os
13
princpios e o mtodo dialtico, sobre as implicaes da filosofia da prxis na anlise do
capitalismo, bem como, das perspectivas de investigao filosfica que se abrem para a
mesma.
Traduzimos e anexamos o artigo de Engels Bruno Bauer e o incio do cristianismo
por caracterizar o pensamento dos jovens hegelianos preocupados em compreender como o
cristianismo comeou historicamente, como se tornou o pensamento dominante no mundo e a
partir de que idias. Alm disso, o artigo um exemplo de crtica da ideologia, esclarece a
importncia do trabalho de Bruno Bauer e os motivos pelos quais este jovem hegeliano, contra
o qual Marx escreveu o livro A Sagrada Famlia2, diverge de Engels e Marx.
Alm deste ltimo, tambm faz parte do anexo um texto que traduzimos do ingls
com a histria da Tese de Doutoramento de Marx, que consideramos relevante por destacar o
projeto inicial no qual as obras juvenis de Marx esto inseridas, bem como as condies que
tornaram a sua difuso tardia, tanto entre os crticos como entre os discpulos de Marx.
2 O subttulo do livro A ideologia Alem contra Bruno Bauer e consortes.
14
CAPTULO 1. MARX E OS JOVENS HEGELIANOS
duros so os tempos que seguem uma filosofia total em si mesma e nas suasformas subjetivas de desenvolvimento, pois gigantesca a discrdia queforma sua unidade. (MARX, CF, 89)
O debate entre logos e mito que perpassa toda a histria da filosofia apareceu na
Alemanha, no perodo que consideramos, sob a forma de conflito entre filosofia e religio. A
filosofia dominante era a de Hegel e a religio dominante era a religio crist. A filosofia
hegeliana refletiu este conflito separando os hegelianos em jovens hegelianos e velhos
hegelianos. A religio crist tambm se dividia em catolicismo e protestantismo.
A histria deste conflito entre logos e mito foi examinada por Hegel (HEGEL,
1980,125). Segundo a interpretao hegeliana, a filosofia grega comea a brotar dentro da
mitologia grega; medida que a razo se afirma, passa a opor-se explicao mitolgica e,
finalmente, a compreende. Na Idade Mdia o processo se repete: inicialmente, o cristianismo
substitui a religio pag e a filosofia tornou-se uma auxiliar do processo de catequese, um
mtodo de argumentao. O platonismo e o estoicismo foram incorporados, em parte,
filosofia crist, fundamentada no filsofo alexandrino Filon3. Posteriormente, Aristteles
tambm foi absorvido pelo pensamento cristo atravs da leitura de So Toms de Aquino.
Com o Renascimento, o Iluminismo, a revoluo francesa e a Modernidade, e no contexto da
revoluo industrial, retornou-se filosofia clssica, grega, e, novamente, fez-se a crtica
religio dominante daquele tempo, que era o cristianismo, tanto catlico, como protestante. A
crtica conduzia compreenso, feita por Feuerbach, da religio como fenmeno humano.
Neste debate participaram filsofos como Descartes, Bacon, Hume, Kant e Hegel e
3 Ver o artigo de Engels, Bruno Bauer e o incio do cristianismo, anexo a esta dissertao, p. 148.
15
pensadores como Giordano Bruno e Galileu. Diante da condenao deste ltimo, Descartes
mudou o seu estilo, e, segundo Jos Amrico da Motta Pessanha:
toda a obra posterior do filsofo ficar at certo ponto mutilada oudeformada: Descartes apresentar-se- como um filsofo mascarado(segundo sua prpria expresso), passando a se exprimir de formafreqentemente embuada e ambgua, para garantir a tranqilidade desua vida e evitar a represso da Igreja. (PESSANHA,1983,XIII)
Todos estes filsofos formularam crticas mitologia do seu tempo, que era e ainda ,
em ltimo caso, a mitologia judaica na sua forma crist, ou seja, a leitura judaica de
Aristteles e Plato no estilo sincrtico de Filon, conforme precisa Engels:
qual a origem das idias e pensamentos que foram tecidos comouma espcie de sistema no Cristianismo, e como veio ele a dominar omundo? Bauer estudou esta pergunta at a sua morte. Suainvestigao alcanou seu ponto alto na concluso que o judeu deAlexandria, Filon, que ainda vivia por volta de 40 d.C., mas j eramuito velho, foi o pai verdadeiro do Cristianismo, e que o esticoromano Sneca era, por assim dizer, seu tio. A escrita numerosaatribuda a Filon que nos alcanou tem origem realmente em umafuso alegrica e racionalisticamente concebida das tradies judaicascom as gregas, particularmente a filosofia estica. Esta conciliao deperspectivas ocidentais e orientais j encerra todas as idias
essencialmente Crists.4
A dialtica histrica entre o mito e o logos permanece. Marx se inseriu neste
debate revitalizando o materialismo contra todos os mitos, no apenas contra o mito
dominante de sua poca representado pela religio judaico-crist. A confuso entre filosofia
e mito, como demonstrou Marx na crtica mentalidade teologizante, fruto da ignorncia do
senso comum, mas tambm resultado da m f de aproveitadores da ignorncia alheia, da
m conscincia e de interesses das classes dominantes. A expresso mentalidade teologizante
foi usada por Marx para definir uma filosofia que procura justificar racionalmente a
irracionalidade religiosa. Posteriormente, Marx generalizou esta crtica para outras formas de
4 ENGELS no artigo Bruno Bauer e o incio do cristianismo em Anexo, p. 149.
16
conscincia como a filosofia do direito: Na nota que estamos a examinar5, Hegel entrega-se
ao prazer de mostrar o irracional como absolutamente racional. (MARX, CFDH, 52)
Podemos verificar que, depois de Marx, a crtica filosfica da religio continuou atravs
de pensadores como Nietzsche, Heidegger, Bertrand Russell, Sartre. Neste confronto de
idias, a mitologia sempre se renova incorporando parte das crticas ao seu arsenal terico e
procurando negar o conflito entre mito e logos, numa luta permanente para obscurecer esta
fronteira. Eis o que diz o filsofo padre Henrique Cludio de Lima Vaz sobre a incorporao
da crtica marxiana teologia:
O desmoronamento do edifcio da teologia dogmtica tradicional (...)foi acompanhado por uma espetacular inverso terica, que temmuitas analogias com a passagem do Saber Absoluto de Hegel cincia da prxis de Marx. A teologia tornou-se ortoprxis, a umtempo hermenutica e regulao de uma determinada prtica social.(VAZ,1983,146)
A crtica filosfica procura, em vez da negao do conflito, o esclarecimento contra
superstio e o fanatismo, o desvelamento deste confronto, lanando luz sobre o mito e a
mistificao, revelando a ideologia e a alienao de cada forma de conscincia. Assunto, a
partir do qual Marx e outros hegelianos construram suas filosofias.
5 Refere-se ao 280 do livro de Hegel Princpios da filosofia do direito sobre o nascimento do monarca.
17
1.1 HEGELIANOS DE DIREITA E DE ESQUERDA
O idealista absoluto, para s-lo, tem necessidade de realizar constantementeo processo sofstico que consiste em transformar, em primeiro lugar, o mundoexterior a ele em aparncia, em uma simples fantasia do seu crebro.(MARX, SF, 138)
Os discpulos de Hegel dividiram-se em hegelianos de direita e de esquerda,
conforme o modo como interpretavam a relao entre a filosofia de Hegel e a religio de sua
poca. Os velhos hegelianos, a direita, compreendiam que Hegel justificava a religio, no
a religio catlica, mas a religio que surgia da Reforma protestante, enquanto, os jovens
hegelianos, a esquerda, entre os quais o jovem Marx, compreendiam a filosofia de Hegel
como uma ruptura com o cristianismo. Os primeiros caracterizam-se por adotar, conforme
Marx, uma mentalidade teologizante6 procurando conciliar a filosofia de Hegel com a
religio; j os hegelianos de esquerda, denominados jovens hegelianos, procuravam tirar da
filosofia de Hegel uma crtica religio, como o caso de Bauer7, Marx, Feuerbach e outros.
necessrio considerar que, na Alemanha do sculo XIX, o Estado era teocrtico e
monrquico. Hegel defendia a racionalidade do Estado monarquista e teolgico alemo e, ao
mesmo tempo, fazia a crtica ao irracionalismo. Para os hegelianos de esquerda, tambm
denominados jovens hegelianos, isto era uma antinomia de Hegel, defender a racionalidade do
Estado teocrtico, na medida em que consideravam a religio uma irracionalidade. Assim se
compreende o ponto de partida de Marx: a crtica da religio o pressuposto de toda crtica
6 Marx criticou esta atitude filosfica anexando um apndice na sua Tese.. sobre a crtica de Plutarco teologia de Epicuro como exemplo do que a mentalidade teologizante pode fazer filosofia.7 Bruno Bauer foi professor demitido da Universidade de Bonn por ter feito a crtica aos textos bblicos,notadamente dos evangelhos sinticos de So Joo.
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(MARX,FDI,45). impossvel, assim, compreender o esprito de uma poca sem
compreender a mitologia desta poca. A filosofia afirma a sua autonomia fazendo a crtica da
religio do seu tempo. Para Hegel, nenhum filsofo sai do seu tempo, e cada tempo repete em
figuras novas as questes perenes, ou seja, filosficas e originrias, dos tempos anteriores. A
questo : qual o mito dominante deste tempo? E da se parte para desvelar a sua mistificao,
o seu irracionalismo imanente, a sua justificao da alienao, o seu vnculo com formas
histricas de opresso. E o comeo desta desmitificao revelar a sua origem, as suas
contradies, os seus sofismas, as omisses fundamentais do seu discurso. Marx concluir,
posteriormente que da se parte para revelar a religio como ideologia. Os jovens hegelianos
comearam este itinerrio filosfico e, como a religio dominante era o cristianismo,
comearam a sua crtica por esta religio a qual j havia sido objeto de crtica do prprio
Hegel8.
A tradio da crtica humanista do cristianismo bem representada pelo filsofo,
telogo, fillogo e historiador francs Renan, que recusou a possibilidade de encarnao da
divindade aps proceder a uma investigao histrica, filolgica e antropolgica sobre a vida
de Jesus, o fundador do cristianismo, e chegou concluso de que se tratava de um homem
extraordinrio, no um deus, e de que tal homem fora motivo do surgimento de diversas
lendas, as quais se consolidaram nos textos cristos9. O jovem hegeliano David Strauss10, no
qual Renan tambm se apoiou, defendeu a interpretao de que a prpria existncia histrica
do fundador do cristianismo um mito criado pelos judeus da dispora para substituir o
8 Hegel ps em dvida o milagre da transubstanciao do po no corpo de Cristo durante o sacramento daEucaristia (cf. KONDER,1991,73) e fez uma bela defesa de Galileu.9 Renan escreveu o livro Vida de Jesus no qual defende que Jesus Cristo foi um homem extraordinrio, noum deus, cuja biografia est envolvida em lendas e fraudes. Este livro foi colocado no Index pela igreja catlicaromana por apresentar um Jesus humano e no um Jesus divino. (Este livro foi publicado recentemente no Brasilpela Martin Claret, coleo Obras Primas, em So Paulo).10 Strauss exps o resultado de sua investigao no livro Vida de Jesus. Engels menciona a teoria do mito de
Strauss no artigo Bruno Bauer e o incio do cristianismo (Anexo I, p 148).
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esperado messias. Bruno Bauer foi mais longe e demonstrou que tal mito tem origem
deliberada, resultado de inmeras falsificaes documentais, tratando-se na verdade de uma
fraude11. Bauer fez a crtica dos evangelhos e demonstrou que na composio dos mesmos os
autores se apropriaram das profecias da religio judaica para construir a biografia de Jesus e,
para a teologia e a tica, se apropriaram das idias filosficas de Filon de Alexandria. Ou seja,
o fundador do cristianismo seria um personagem criado deliberadamente para iludir as massas
escravas do imprio romano.
Assim, partiu-se da religio como obra humana, depois como mitologia, para chegar
a um mero instrumento de manipulao de conscincias. Marx considerou esta explicao
importante e fez o devido destaque dos resultados obtidos: Os nicos resultados que se
conseguiram com esta crtica filosfica foram alguns esclarecimentos quanto histria
religiosa e mesmo isto de um ponto de vista muito limitado - do cristianismo;. Mas,
limitaram-se a este resultado que Marx considerou insignificante em contraste com a
pretenso dos outros jovens hegelianos: todas as suas outras afirmaes constituem novas
formas de ornamentar a sua pretenso de terem realizado descobertas de importncia histrica
quando, de fato, no foram mais do que esclarecimentos insignificantes. (MARX &
ENGELS, IA, 17). Julgaram, assim, que o combate no plano puramente terico era o
suficiente, pois o problema era superar as iluses da conscincia religiosa: Torna-se assim
evidente que os jovens hegelianos devem lutar apenas contra estas iluses da conscincia
(MARX & ENGELS, IA, 17). E a forma de superar a conscincia alienada seria apenas adotar
um novo postulado moral, a conscincia crtica, que viria a influenciar as relaes humanas,
os atos e as escolhas de todos. H um forte subjetivismo que d teoria total primado sobre a
realidade:
Como, na sua imaginao, as relaes entre os homens, todos os seus
11 Bauer exps o seu trabalho nos livros A trombeta do Juzo Final e Crtica dos evangelhos sinticos.
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atos e os seus gostos, as suas cadeias e os seus limites, so produtosda conscincia, os jovens-hegelianos, coerentes consigo mesmos,propem aos homens este postulado moral: substituir a suaconscincia atual pela conscincia humana crtica ou egosta e, aofaz-lo abolir os seus limites. (MARX & ENGELS, IA, 17)
Marx utilizou uma alegoria para descrever as caractersticas da filosofia dos
hegelianos de esquerda ou jovens hegelianos e explicitar a sua divergncia deles:
Em tempos, houve quem pensasse que os homens se afogavam apenaspor acreditarem na idia da gravidade. Se tirassem esta idia dacabea, declarando, por exemplo, que no era mais do que umarepresentao religiosa, supersticiosa, ficariam imediatamente livresde qualquer perigo de afogamento. Durante toda a sua vida, o homemque assim pensou viu-se obrigado a lutar contra todas as estatsticasque demonstram repetidamente as conseqncias perniciosas de umatal iluso. Este homem constitua um exemplo vivo dos atuaisfilsofos revolucionrios alemes (MARX & ENGELS, IA, 8).
Para Marx, o erro desta filosofia que: Nenhum destes filsofos se lembrou de
perguntar qual seria a relao entre a filosofia alem e a realidade alem, a relao entre a sua
crtica e o seu prprio meio material. (MARX & ENGELS, IA,17). E demonstrar a relao,
tipicamente epicurista, entre a filosofia e a realidade do seu prprio meio material uma das
principais formulaes da filosofia de Marx. O epicurismo compreendia como medida da
filosofia o fato de fazer bem alma, numa funo teraputica tpica da medicina que
objetiva fazer bem ao corpo, assim como entendia como medida da cincia contribuir para a
ataraxia12, a paz de esprito. Num e noutro caso o epicurismo estava atento relao entre a
filosofia e o seu prprio meio material. Embora Marx acrescente interpretao epicurista a
observao fundamental de que a pessoa, o indivduo emprico isolado a quem Epicuro se
refere, uma aparncia, pois o homem um ser genrico, um ser que se concebe como
espcie13, e a pessoa s existe enquanto h pessoas. A compreenso desta relao exige uma
12 Ataraxia, para Epicuro, ausncia de dor no corpo e de perturbao na alma. o prazer estvel que o sbiodeve procurar.13 Para Feuerbach, o homem um ser genrico. Para Marx, O indivduo o ser social (...) A vida individual e avida genrica do homem no so diferentes (MARX, MEF,141)
21
mediao: certo que, sem a pessoa, a personalidade no mais do que uma abstrao; mas
a pessoa s a idia real da personalidade na sua existncia como espcie, ou seja, enquanto
pessoas. (MARX, CFDH, 42)
Marx tambm fez a crtica da filosofia hegeliana por cometer constantemente uma
inverso mstica (MARX, CFDH,46) nos processos que investiga ao atribuir idia o
primado ontolgico sobre a matria (MARX, CAP,21-22). Fundamentando o idealismo,
Hegel rejeita a teologia a fim de a justificar de outra maneira, filosoficamente. Marx
considera este mtodo que compromete a autonomia da filosofia como resultado de uma
mentalidade teologizante que infelicita a filosofia. (MARX, DFN, 124)
O arremate, neste ponto, seria dado por outro hegeliano de esquerda, Feuerbach14,
que escreveu uma crtica fundamental da filosofia especulativa que obteve grande repercusso
na qual exps a essncia dos conceitos cristos e dos conceitos da religio ao mesmo tempo
em que superou as abordagens dos jovens hegelianos Bauer e Strauss:
Bauer tem por objeto de sua crtica a histria evanglica, i. ., ocristianismo bblico, ou melhor, a teologia bblica; Strauss a doutrinacrist e a vida de Jesus, (...) portanto, o cristianismo dogmtico ouantes, a teologia dogmtica; eu, porm, tenho por objeto ocristianismo em geral, i. , a religio crist, e apenas como umaconseqncia, a filosofia ou teologia crist.(FEUERBACH, 1997, 34)
Diante destes escritos Marx declarou que a crtica da religio na Alemanha estava
completada. Feuerbach aborda a religio como uma projeo do homem em Deus.
Compreende que o homem criou Deus e alienou-se deste ato, julgando-se criado por Ele.
Quando se fala do cu na verdade se fala da terra e assim a teologia se resolve na
antropologia: sou at mesmo obrigado a especular ou, o que d na mesma, a parecer estar
fazendo teologia, quando na verdade dissolvo a especulao, isto , reduzo a teologia
antropologia. (FEUERBACH, 1997,35) Entretanto, surgiram diferenas fundamentais entre
14 As idias de Feuerbach foram expostas nos livros Princpios da Filosofia do Futuro, A essncia docristianismo e A essncia da religio.
22
Marx, Feuerbach e os demais jovens hegelianos.
A primeira crtica de Marx aos jovens hegelianos pode tambm ser considerada um
elogio. Ele os acusa de no ultrapassar o terreno da filosofia, considerando que os homens
se libertaro substituindo uma crena por outra, conforme a seguinte argumentao:
At agora, os homens formaram sempre idias falsas sobre si mesmos,sobre aquilo que so ou deveriam ser. Organizaram as suas relaesmtuas em funo das representaes de Deus, do homem normal,etc., que aceitavam. Estes produtos do seu crebro acabaram por osdominar; apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas prpriascriaes. (MARX & ENGELS, IA, 7)
At este ponto h pleno acordo entre Marx, Feuerbach e jovens hegelianos, porm, a
discordncia surge quanto deduo a partir deste pressuposto, pois, para os jovens
hegelianos possvel superar as alienaes de conscincia substituindo tais idias por outras:
Libertemo-los, portanto das quimeras, das idias, dos dogmas, dosseres imaginrios cujo jugo os faz degenerar. Revoltemo-nos contra oimprio dessas idias. Ensinamos os homens a substituir essas ilusespor pensamentos que correspondam essncia do homem, afirma um;a ter perante elas uma atitude crtica, afirma outro; a tir-las dacabea, diz um terceiro e a realidade existente desaparecer. (MARX& ENGELS, IA, 7)
Para Marx, o pressuposto que permite ao homem filosofar a atividade humana, a
vida. O primeiro pressuposto emprico: a existncia de seres humanos vivos (MARX &
ENGELS, IA,18). O que os jovens hegelianos fizeram foi uma crtica da religio,
principalmente do cristianismo, desmistificando as suas origens. O fato de atriburem
religio o domnio da sociedade significa a canonizao da sociedade em bloco e
desconhece que a religio produto e no causa. Para Marx, jovens e velhos hegelianos
concordam sobre o papel social da religio, apenas os primeiros consideram esprio tal papel
enquanto os outros o celebram como legtimo (MARX & ENGELS, IA,16). Neste sentido
os jovens hegelianos, embora se distanciem da mitologia crist, no ultrapassam o idealismo
filosfico, como precisa Marx:
23
Estes sonhos inocentes e pueris formam o ncleo da filosofia atualdos Jovens Hegelianos; (...) O primeiro volume desta obra prope-sedesmascarar estas ovelhas que se julgam lobos e que so tomadascomo lobos mostrando que os seus balidos apenas repetem numalinguagem filosfica as representaes dos burgueses alemes e queas suas fanfarronadas se limitam a refletir a pobreza lastimosa darealidade alem; (MARX & ENGELS, IA, 7)
Feuerbach, embora formule a crtica mais bem fundamentada a Hegel a partir do
materialismo, no que contou com a plena concordncia de Marx, expressa apenas uma
inverso da filosofia hegeliana, mas no abandona o terreno terico e conseqentemente, o
materialismo metafsico e passivo. Para Feuerbach, a atividade terica continua a ser a
atividade principal embora o seu ponto de partida seja o objeto e no o sujeito. Assim o
sujeito feuerbachiano o Homem genrico, o ser genrico, e no o homem concreto ativo
participante da sociedade de classes em que est inserido sem escolha. Marx afirma na sua
Tese I (MARX, TSF,108) que o materialismo de Feuerbach no conhece a atividade humana
sensvel como sujeito. A atividade, a ao, a prxis, para Marx, o que se denomina material.
Nem o sujeito, nem o objeto, mas a prtica humana que fundamenta o humanismo da
natureza e o naturalismo do homem. Feuerbach continuou metafsico embora tenha
demonstrado que a alienao religiosa se resolve na antropologia, pois o homem cria deuses a
sua imagem e semelhana. Mas no compreendeu que esta alienao se resolve na terra, na
atividade crtica que muda as condies de criao dessa imagem falsa e desaliena o homem:
pois nesse ponto ainda se agarra teoria e no integra os homens no seu contexto social, nas
suas condies de vida que fizeram deles o que so. (MARX & ENGELS, IA, 32)
O sofisma invertido continua sofisma e confirma a ideologia s avessas. Assim fala
Marx do mundo invertido e da razo do aparecimento desta conscincia invertida do mundo,
conseqncia de um dado Estado e de uma dada sociedade: O homem o mundo do homem,
o Estado, a coletividade. Este Estado e esta sociedade produzem a religio, uma conscincia
invertida do mundo, porque eles so um mundo invertido. (MARX, FDI,45)
24
A diferena entre Marx e Feuerbach que para o primeiro, no apenas a religio, mas
tambm o direito, a moral, a poltica e a prpria filosofia tm seu pressuposto na atividade
humana sensvel, a prxis. So deduzidas do modo como os homens de uma dada sociedade
produzem e reproduzem a sua vida e no iniciam a partir de si mesmas. Buscar o pressuposto
na prpria atividade terica o que Marx denomina uma inverso:
A conscincia nunca pode ser mais do que o Ser consciente; e o Serdos homens o seu processo de vida real. E se em toda ideologia oshomens e as suas relaes nos surgem invertidos, tal como acontecenuma cmera obscura, isto apenas o resultado do seu processo
de vida histrico. (MARX & ENGELS, IA,25)15.
Entretanto, Feuerbach, apesar de reconhecer a inverso teolgica permanece
considerando a teoria como a principal atividade humana e que todo problema terico se
resolve na teoria. Assim, Feuerbach, permanece filsofo no sentido clssico da palavra,
permanece no reino das sombras de Amnti ocupado em conceber o mundo, permanece
no campo da metafsica clssica do qual Marx procura sair para a atividade prtico-crtica.
15 "Do mesmo modo que a imagem invertida dos objetos que se forma na retina uma consequncia do seuprocesso de vida diretamente fsico". (MARX & ENGELS, IA, 25)
25
1.2 MARX E O MATERIALISMO METAFSICO DE FEUERBACH
O indivduo o ser social (MARX, MEF, 141)
A metafsica, para Marx, est associada a um mtodo de pensar que trata de um ente
esttico e isolado do observador. Opem-se, nesta interpretao, metafsica e dialtica, ser e
devir; objeto e processo; esttica e dinmica. O mtodo, para Marx, derivado de Hegel, deve
ser dialtico, tratando de um processo (dinmico), no de um objeto (esttico), e o sujeito est
junto com o objeto neste processo. Embora Marx seja materialista, ele no aceita inteiramente
o materialismo de Feuerbach, o qual, embora inverta a perspectiva idealista em favor da
materialista, no tem a compreenso dialtica da atividade subjetiva como objeto. Marx
transfere da matria para a atividade humana (prxis) o sentido do que material e assim
considera metafsico o materialismo de Feuerbach.
Investigando a filosofia, Marx se convence de que as formas pelas quais os homens
tomam conscincia da sua vida, ou seja, a arte, o direito, a filosofia, a cincia so derivadas da
vida, notadamente da produo social da vida, ou seja, do trabalho. O ser social produtor da
conscincia social manifesta nas cincias e nas artes. E afirmar o primado das idias uma
alienao. A primeira alienao a religiosa, tentativa mitolgica de explicar o mundo. Os
telogos, Marx concorda com Feuerbach, quando falam de Deus, verdadeiramente falam do
homem, sem ter conscincia disso. A teologia se resolve na antropologia. Mas tambm a
Filosofia, que superao da religio, vem a ser alienao quando se atm ao interpretar,
quando cabe transformar. E, em vez de observar que as idias so produto de uma dada ordem
social, justifica tal ordem a partir das idias.
26
Assim a filosofia alienada justifica o Estado existente - como o caso da filosofia do
idealismo alemo16. um discurso coerente, mas destinado a encobrir e no a esclarecer.
um discurso cujas omisses servem para manter a coerncia. A contraposio cientfica,
conseqentemente, filosfica, a tal discurso no um contra-discurso, igualmente alienado
como o de Feuerbach, mas, o questionamento crtico das omisses, desvelando a incoerncia
do discurso. A filosofia no afirma, pergunta, e , assim, fundamentalmente, questionadora..
O sofista tambm ajusta o discurso ao mundo supondo que todos os discursos so
igualmente vlidos e o que orienta o discurso no a verdade, mas o interesse. De certa forma
Marx, concorda com o sofista no sentido de que a conscincia social determinada pelo ser
social. E assim existiria um discurso de classe: pois, para Marx, a sociedade dividida em
classes antagnicas e, tal como o ser social, o discurso seria mltiplo. Entretanto, ao contrrio
do sofista, Marx acredita que possvel a uma dada classe, numa poca dada, falar a verdade.
Assim, a burguesia quando lutava para se impor, foi portadora desta verdade libertadora. Uma
vez no poder, abandonou tais verdades, que passaram a servir a outras classes.
A metafsica anunciou, na perspectiva marxiana, a decadncia da filosofia grega que
se seguiu:
No nos deixemos enganar pelo tufo que se segue a uma grandefilosofia, uma filosofia do mundo. Sem aquela necessidade[histrica] no se poderia conceber o aparecimento, depois deAristteles, de um Zeno, de um Epicuro ou de um Sextus Empiricus,e depois de Hegel, das pobres tentativas, na maioria sem fundamento,dos filsofos recentes. (MARX, CF, 87)
Marx pensa que tal processo necessrio acontece com as grandes filosofias, como a
de Hegel e a de Aristteles, quando entram em processo de decomposio:
lgico que surja ainda uma multido de formaes subordinadas,lamuriantes, sem individualidade, que se abrigam por trs de umagigantesca figura filosfica do passado (...) a voz lacrimejante de ummanequim do presente e do passado transparece, num contrastecmico, sob a poderosa voz que atravessa os sculos (a de Aristteles,
16 Marx formulou o conceito de ideologia referindo-se filosofia clssica alem, ou idealismo alemo.
27
por exemplo) e da qual ele se arvorou despropositadamente emarauto. (MARX, DFN, 159)
A decadncia da filosofia aprofundou-se durante a Idade Mdia, quando deixou de
ser autnoma e passou a ser uma escolstica a servio da doutrinao religiosa. Somente com
o Iluminismo, a revoluo cientfica e a revoluo industrial, a filosofia voltou a afirmar a sua
autonomia atravs da filosofia moderna, no a partir de si mesma, mas por exigncia da nova
ordem scio-cultural. Reencontrou as suas origens reinterpretando os clssicos Aristteles,
Plato e retornando aos pr-socrticos, e s escolas helenistas.
Os primeiros filsofos descreveram o seu pensamento em textos intitulados Sobre a
Natureza e os seus escritos continham uma tica, uma Fsica e uma Cannica esta ltima
como um mtodo que mantinha a coerncia de modo de pensar entre as duas primeiras. No
havia uma metafsica.
Aristteles classificou a Cincia em trs grupos:
Cincias que contemplam o que o homem no pode mudar (tericas):
Teologia, Filosofia Primeira e Matemtica, Astronomia, Fsica;
Cincias que tratam da ao humana sobre a sociedade humana (prticas):
(tica e Poltica);
Cincias que tratam das obras humanas (produtivas): Artes (Guerra,
Medicina, Agricultura, etc).
O critrio aristotlico foi a atividade humana: no primeiro grupo o homem apenas
contempla, no segundo pensa e age sobre si mesmo, no terceiro pensa e age sobre o mundo. E
acrescentou a Lgica, uma Cannica, como mtodo (rganon) de todas elas.
Havia uma coerncia entre a tica, a Fsica e a Lgica nos filsofos pr-socrticos e
na filosofia aristotlica. Mas Aristteles acrescentou uma cincia do ser em si que justifica os
primeiros princpios, indemonstrveis. Princpios indemonstrveis que fundamentam todas as
28
cincias. So indemonstrveis, pois so evidentes e se fosse preciso demonstr-los, haveria
uma regresso ao infinito e no seriam princpios. A cincia do ser enquanto ser a Filosofia
Primeira, depois denominada metafsica.
A metafsica considerada aqui como a Filosofia Primeira na leitura medieval, feita,
principalmente, incorporando Plato e, depois, Aristteles adaptados ao processo de
doutrinao crist. A linguagem analgica, o raciocnio escolstico procura demonstrar a
verdades da f. Procedendo por separao formal de realidades inseparveis, como forma e
matria, resulta num discurso repetitivo e estril. O Iluminismo instaurou uma crise da
metafsica17, entretanto, a filosofia clssica alem, que faz a crtica da metafsica, torna-se
tambm, para Marx, uma metafsica materialista, quando se limita a interpretar o mundo,
limita-se disputa em torno de frases, como os jovens hegelianos, e procura resolver apenas
com a teoria problemas terico-prticos.
Desdenhar da pergunta pelos primeiros princpios caracteriza, para Plato, a maior
diferena entre filsofo e sofista, ou seja, a diferena entre buscar a verdade e buscar apenas o
interesse egosta. Preocupar-se em ter o homem como medida e assim, considerar apenas o
que est sob o poder do homem compreender e dominar julgar que os princpios so mera
conveno humana. Considerados deste modo, princpios so pontos de vista escolhidos pelo
interesse humano e, no, verdades. O fundamento da filosofia o que permanece naquilo que
muda, , assim, a possibilidade da verdade em si. Aristteles admite a verdade como
adequao entre o que se diz e o que . Marx tambm adota a definio aristotlica para
admitir a possibilidade de dizer a verdade. E comea, como bom aristotlico,18 com
as
premissas:
17 Kant nega a possibilidade da metafsica como cincia porque trata de questes inacessveis ao conhecimento.18 Marx afirma que Aristteles foi o maior dos filsofos antigos . (MARX, CF, 24).
29
As premissas de que partimos no constituem bases arbitrrias, nemdogmas; so antes bases reais de que s possvel abstrair no mbitoda imaginao. As nossas premissas so os indivduos reais, a suaao e as suas condies materiais de existncia, quer se tratedaquelas que encontrou j elaboradas quando do seu aparecimentoquer das que ele prprio criou. (MARX & ENGELS, IA, 18)
Declara o mtodo de verificao fundado no empirismo filosfico: Estas bases so,
portanto verificveis por vias puramente empricas. E a condio fundamental para que
exista a filosofia: A primeira condio de toda a histria humana evidentemente a
existncia de seres humanos vivos. (MARX & ENGELS, IA,18) Parte, assim, da evidncia,
daquilo que no necessita ser provado.
O sofisma, para Marx, a afirmao alienada que inverte a percepo da relao
entre a conscincia social de uma poca e o seu ser social: um dado modo de produo social
da vida humana:
Hegel comea a expor com uma categoria de sofista, como sendo oprprio processo do ser conceitual imaginado, do sujeito absoluto, oprocesso pelo qual o filsofo passa de um objeto a outro, pelainterpretao da intuio sensvel e da representao. Mas, emseguida, acontece-lhe freqentemente oferecer, no interior de suaexposio especulativa, uma exposio real que apreende a prpriacoisa. Esse desenvolvimento real no interior do desenvolvimentoespeculativo leva o leitor a tomar o desenvolvimento especulativo porreal, e o desenvolvimento real por especulativo. (MARX&ENGELS,SF, 62)
Consideramos que o desenvolvimento das cincias particulares retirou as disciplinas
do campo da Filosofia e coloca a questo dos seus objetivos ltimos: daqueles que no tm
possibilidade de passar para o domnio de qualquer cincia particular. A lgica, a dialtica e a
teoria do conhecimento no so objeto de nenhuma cincia particular, bem como a tica, a
esttica e as filosofias da cincia. O fato, entretanto, das cincias se desenvolverem
independentemente da filosofia, no significa que seja possvel um desenvolvimento estanque
de cada uma delas, ao contrrio, o desenvolvimento independente possibilita a cada uma a
clarificao dos seus objetos e uma maior otimizao de esforos, mas obriga a uma constante
30
relao de interdependncia, sob pena de grave regresso, da cincia filosofia em busca dos
princpios, dos fins e do mtodo, e da filosofia ao mito. Talvez esta preocupao regressiva
tenha levado Marx a referir-se expresso materialismo cientfico para referir-se filosofia
da prxis. Segundo Engels, para Marx a cincia era uma fora histrica motriz. Uma fora
revolucionria. (ENGELS, 1983,355). Nas teses II e VIII contra Feuerbach, Marx, conforme
precisa VIEIRA, defende a teoria de que o pensamento no pode estar perdido em
generalidades e abstraes, mas sim ligado a uma prtica (VIEIRA, 2000,60). No caso,
ligado prtica do trabalho cientfico. Ao qualificar a sua filosofia como materialismo
cientfico, Marx desejou explicitar a relao indissolvel entre Filosofia e Cincia na medida
em que ambas procuram o conhecimento verdadeiro e demonstrado pela razo e pela
observao sistemtica. Ele prprio pesquisou em diversas cincias, segundo Engels: no
houve um campo sequer que Marx deixasse de submeter pesquisa - e esses campos foram
muitos, e no se limitou a tocar de passagem em qualquer um deles. (ENGELS,1983,356) A
relao da filosofia com a fsica, a biologia, a neurofisiologia, a psicologia, a pedagogia, a
filologia, a matemtica, a histria a sociologia, a poltica fundamental. A perda desta relao
condena a filosofia repetio de fases passadas, a anacronismos monumentais. como tratar
de esttica sem dialogar com a literatura e a arte, perdendo a relao entre filosofia e fico.
Por ter esta conscincia da importncia revolucionria da cincia que Marx, por exemplo,
segundo Engels: acompanhava detalhadamente a marcha das descobertas realizadas no
campo da eletricidade, at as de Marcel Deprez nos ltimos tempos. (ENGELS, 1983,356)
Uma questo que resta exclusiva da filosofia a do estranhamento diante do ser. Ser
que a cincia examina, mas no investiga em si. E esta sim, uma questo fundamentalmente
metafsica. Marx marca a diferena entre os dois modos de considerar a questo:
Contrariamente filosofia alem, que desce do cu para a terra, aqui se parte da terra para
atingir o cu. (MARX & ENGELS, IA, 26) E esclarece este partir da terra materialista em
31
contraste com o descer do cu da filosofia idealista alem, comprometendo-se com uma
dialtica materialista:
Isto significa que no se parte daquilo que os homens dizem,imaginam e pensam nem daquilo que so nas palavras, nopensamento, na imaginao e na representao de outrem para chegaraos homens em carne e osso; parte-se dos homens, da sua atividadereal. (MARX & ENGELS, IA, 26)
Neste comeo, Marx j distingue a ideologia do saber real, isto , saber cientfico no
sentido amplo de Cincia, definido atravs do ponto de partida: a partir do seu processo de
vida real que se representa o desenvolvimento dos reflexos e das repercusses ideolgicas
deste processo vital (MARX & ENGELS, IA, 26). Enfatiza o vnculo entre as representaes,
mesmo as fantsticas, e o processo de vida material constatado atravs do mtodo da
observao emprica: Mesmo as fantasmagorias correspondem, no crebro humano, a
sublimaes necessariamente resultantes do processo da sua vida material que pode ser
observado empiricamente e que repousa em bases materiais. (MARX & ENGELS, IA, 26).
Deduz assim, da autonomia do processo de vida material, a falta de autonomia das formas de
conscincia: Assim, a moral, a religio, a metafsica e qualquer outra ideologia, tal como as
formas de conscincia que lhes correspondem, perdem imediatamente toda a aparncia de
autonomia. (MARX & ENGELS, IA,26) Se as formas de conscincia no possuem
autonomia, tambm, necessariamente: No tm histria, no tm desenvolvimento; sero
antes os homens que, desenvolvendo a sua produo material e as suas relaes materiais,
transformam, com esta realidade que lhes prpria, o seu pensamento e os produtos desse
pensamento (MARX & ENGELS, IA,26).
Marx declara os pressupostos em que se fundamenta o seu discurso e tais
pressupostos so o fundamento da diferena entre Marx e Hegel, Feuerbach e o subjetivismo
dos jovens hegelianos e tambm explicita o mtodo de observao emprico, tpico da cincia
positiva:
32
Esta forma de considerar o assunto no desprovida de pressupostos.Parte de premissas reais e no as abandona um nico instante. Estaspremissas so os homens, no isolados nem fixos de uma qualquerforma imaginria, mas apreendidos no seu processo dedesenvolvimento real em condies determinadas, desenvolvimentoeste que visvel empiricamente. (MARX & ENGELS, IA, 26)
A cincia fundamental vem a ser a Histria numa interpretao inovadora. E aqui Marx
se distancia tambm dos empiristas, dos quais adotou o ponto de partida, contrapondo
quantificao, coleo de fatos, o processo, tipicamente hegeliano e dialtico:
Desde que se represente este processo de atividade vital, a histriadeixa de ser uma coleo de fatos sem vida, como a apresentam osempiristas, e que so ainda abstratos, ou a ao imaginria de sujeitosimaginrios, como a apresentam os idealistas. (MARX & ENGELS,IA,26)
Assim fica esclarecida a diferena fundamental entre as duas interpretaes,
materialista e idealista, numa das quais a conscincia sujeito, enquanto na outra predicado
do indivduo real e vivo:
No a conscincia que determina a vida, mas sim a vida quedetermina a conscincia. Na primeira forma de considerar esteassunto, parte-se da conscincia como sendo o indivduo vivo, e nasegunda, que corresponde vida real, parte-se dos prprios indivduosreais e vivos e considera-se a conscincia unicamente como suaconscincia. (MARX & ENGELS, IA,26)
Marx parte da existncia de seres humanos vivos19, conforme constatao
emprica. Assim, o ser do qual se parte no est em questo. No se configura tal questo para
a filosofia. Assim como os pressupostos da Lgica, no se configuram para a Lgica como
questo, mas para a Ontologia. O ser humano vivo pressuposto para a Filosofia e assim no
se configura para ela como questo. um dado aceito como evidncia emprica. A physis,
condio permanente da possibilidade do ente vir-a-ser, que Marx aceita como dado,
justificada como princpio. Marx tratou do assunto na seguinte observao tratando o ser da
19 A afirmao tanto do ponto de partida, como a declarao da constatao emprica do fato est no comeoda Ideologia Alem, contra Feuerbach.
33
natureza como livre da razo consciente:
Quando reconhecemos que a natureza razovel, cessa nossadependncia em relao a ela. A natureza no mais uma fonte deterror para nossa conscincia, e justamente Epicuro que faz a formade conscincia em sua imediatidade, o ser-para-si, a forma denatureza. S quando natureza reconhecida como absolutamente livreda razo consciente e considerada como razo em si mesma, torna-se completamente propriedade da razo. Qualquer referncia a elacomo tal ao mesmo tempo alienao da natureza. (MARX, CF,115)
Marx retomou os questionamentos dos atomistas, Demcrito e Epicuro, que
fundamentaram a filosofia a partir dos tomos e do vazio. Os tomos, a-tomos, princpios
indivisveis, e o vazio, o no-ser. Dos tomos todo ente viria a ser e ao tomo todo ente
voltaria ao deixar de ser e assim eles seriam permanentes naquilo que muda. Os tomos, a
verdadeira realidade acessvel apenas pela razo, e o vazio, a condio de possibilidade do
movimento atmico nico absoluto. tomo, o ser; vazio, o no-ser. Movimento, o eterno
vir-a-ser. Talvez os atomistas antevissem o ser no tomo eterno - e o ente nos agrupamentos
transitrios de tomos submetidos mudana dos quais recebemos as representaes
sensveis.
Marx precisou da seguinte maneira a comparao entre o dualismo filosfico de
Plato e o ser slido dos atomistas epicuristas:
O prpiro Plutarco coloca a diferena paltnica sob dois nomesdiferentes, pretendendo, no entanto, que os epicuristas esto erradosao atribuir aos dois lados um ser slido (porm estabelecemclaramente a diferena entre o phtharton e o aghneton imperecvel e intransformvel e o que existe por composio); ePlato no o faz igualmente quando afirma que o ser est solidamenteestabelecido num dos lados e o devir no outro? (MARX, CF, 65)
Aqui talvez esteja a razo porque Plato, que admite o real apenas na idia, omisso
sobre Demcrito, que admite o real apenas no tomo. Por que no atribuir aos dois lados a
matria o ser slido? E o questionamento de Marx revelador de sua escolha.
O critrio da verdade marxiano, coerente com o princpio materialista que adota, a
34
evidncia emprica, ou seja, a prtica, a origem da filosofia, e assim, se compreende que
Marx formulou uma filosofia da prxis, que pode ser a justificativa de uma tica, como est
definido na Tese II sobre Feuerbach:
A pergunta se convm ao pensamento humano uma verdade objetivano terica mas prtica. na prxis que o homem deve demonstrara verdade, a saber, a efetividade e o poder, o carter terreal do seupensamento. A disputa sobre a efetividade ou no efetividade dopensamento -isolado da prxis- uma questo puramente escolstica.(MARX, TSF,108)
Na linguagem contempornea, questo puramente escolstica pode ser compreendida
como pseudoproblema, tpico das disputas metafsicas medievais que procuram provar a
evidncia ou justificar os princpios apenas na teoria. Marx defende um critrio de verdade
terico-prtico fundamentado na sensao e a conscincia de que a filosofia derivada em
relao atividade vital humana. E o mtodo que adota compreendido por Oliveira como
um dos fundamentos da filosofia marxiana desenvolvidos a partir da metafsica do atomismo:
refere-se ao mtodo ou forma de argumentao filosfica. Aexperincia realizada a partir do atomismo grego confirmara-lhe asvantagens de uma argumentao de forma metafsica, ou seja, umaargumentao que visa a explicao de uma realidade total base deum nico princpio terico. Tal forma argumentativa no s garante ocarter necessrio do conhecimento como tambm evita oimediatismo prprio do empirismo positivista. (OLIVEIRA, 1997,49)
A concepo da verdade em Feuerbach procura superar, apenas na teoria, a separao
metafsica entre essncia e conscincia da verdade: Somente a unidade da essncia e
conscincia verdade (FEUERBACH, 1997,271). Esta crtica feita contra a separao,
concebida por Hegel, entre Deus, a essncia, e o homem, a conscincia. Para Feuerbach, no
pode haver unidade verdadeira sem identidade verdadeira, ou seja essncia e conscincia esto
num nico ser, o homem. Entretanto, a concepo marxiana da filosofia como determinada
pelo modo de produo social da vida humana, que a prtica, vai alm da concepo de
verdade apenas terica formulada por Feuerbach e concebe a unidade da teoria com a prtica.
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Como se v, Marx adotou o mtodo de argumentao, base de um princpio terico nico,
conforme a citao acima, no caso, uma concepo nova de matria, prpria de uma dialtica
materialista,que remonta sua tese de doutoramento o incio do itinerrio filosfico
marxiano.
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CAPTULO 2. ITINERRIO FILOSFICO DO JOVEM MARX
O ponto de vista do velho materialismo a sociedade civil burguesa,aquele do novo materialismo a sociedade humana ou a humanidade social.(MARX, TSF,111)
Marx procurou justificar a filosofia, do ponto de vista do materialismo, sem cair no
determinismo, e justificar a liberdade, sem retornar, como os velhos hegelianos e muitos
outros, ao irracionalismo religioso. Foram os dois combates que travou. Uma sntese do
primeiro est na Tese de Doutoramento., no captulo quinto sobre Os meteoros, mas
aprofunda-se nos Manuscritos... e se conclui nas Teses contra Feuerbach e o segundo se
explicita nos Cadernos para a filosofia epicurista, estica e ctica, no Terceiro Caderno, cujo
tema a polmica teolgica entre Plutarco e Epicuro, prossegue no texto sobre A Questo
Judaica, inclui os livros Princpios da Filosofia do Futuro e A Essncia do Cristianismo,
escritos por Feuerbach, mas adotados por Marx, e se conclui na famosa Contribuio crtica
da Filosofia do Direito de Hegel Introduo.
Neste captulo seguiremos este itinerrio filosfico marxiano atravs da filosofia
materialista na tradio de Demcrito e Epicuro e da filosofia da religio, comeando desde o
conceito de mentalidade teologizante at a filosofia da religio, depois tratamos da crtica
marxiana filosofia especulativa do direito e do estado, na qual Marx formula um mtodo
filosfico novo a partir da uma nova determinao ontolgica que o conduzir formulao
de um novo estatuto para a filosofia.
37
2.1 FILOSOFIA MATERIALISTA DE DEMCRITO E EPICURO
Os tomos constituem a substncia da natureza, aquela de onde tudo sai eonde tudo se dissolve. (MARX, DFN, 195)
Sobre a Diferena Entre as Filosofias da Natureza em Demcrito e Epicuro o
ttulo que descreve adequadamente o tema da Tese de Doutorado de Marx. O texto aborda a
diferena entre os dois materialismos citados e tambm faz a crtica da mentalidade
teologizante de alguns filsofos que usam a filosofia para justificar a religio e recusam a
automia do conhecimento filosfico. Marx faz um exame das opinies sobre Epicuro de
Ccero, Plutarco, Gassendi e Hegel e, discordando da opiniodeles, defende a tese de que os
sistemas epicurista, estico e ctico so a chave da verdadeira histria da filosofia grega.
(MARX, DFN,124).
Assim como, na Modernidade, deu-se uma revoluo copernicana na filosofia,
tambm, na doutrina epicurista sobre os meteoros20 h uma antecipao da fsica moderna
unificada e da revoluo copernicana na filosofia. O vnculo entre a filosofia e as doutrinas
sobre os corpos celestes, resultava, na Grcia, em imensas implicaes religiosas; e a teoria
epicurista sobre tais assuntos traz conseqncias semelhantes quelas ocorridas na
Modernidade. Por este motivo Marx denomina Epicuro de iluminista grego.
Segundo Marx, Demcrito ctico, privilegia o conhecimento emprico e tem como
categoria maior o destino representado pela necessidade. O empirismo ctico e o
determinismo o levam a buscar o conhecimento por experimentao e observao. Demcrito
explica a existncia real das coisas, mas considerava o mundo sensvel como aparncia
20 - corpos celestes e os processos que lhes dizem respeito. (MARX, DFN, 203)
38
subjetiva, assim, conhecemos s a aparncia ou o fenmeno, mas no a coisa-em-si, na
linguagem da filosofia moderna. O conhecimento da realidade atmica, pois s tm existncia
real o tomo e o vazio, inacessvel aos sentidos. Demcrito desenvolve um positivismo que
privilegia o conhecimento imediato atravs das cincias empricas. So conhecidas as suas
viagens para estudo e observao. Os tomos e suas qualidades so compreendidos como
hipteses. Movimento atmico de queda e repulso. Assim o tomo passivo, movido por
foras externas. O tempo subjetivo uma vez que os tomos e o vazio so eternos assim
como, so eternos os corpos celestes.
Podemos comparar o materialismo de Demcrito, quanto sua passividade,
originada no determinismo, com o materialismo de Feuerbach, limitado crtica ao
irracionalismo da religio e atividade terica.
Para Marx, Epicuro dogmtico no sentido de buscar um conhecimento lgico e sem
contradies, busca conhecer mais pela filosofia do que pela cincia emprica. No se
registram viagens de estudo ou observao feitas por Epicuro. Tem no acaso (possibilidade)
a categoria maior, caracterizando a sua filosofia pela liberdade e certeza sensvel, pela busca
da ataraxia e auto-suficincia da conscincia que suprime a realidade objetiva da natureza.
Entende o mundo sensvel como fenmeno objetivo e admite a possibilidade do conhecimento
verdadeiro atravs do pensamento autnomo como mediao. Os tomos so essncias e
possuem trs movimentos: queda; repulso; declinao em relao linha reta. O tomo
ativo e capaz de automovimento. Admite a matria e o vazio eternos. O tempo o acidente do
acidente; a mudana enquanto mudana. Considera os corpos celestes como tomos e assim
uma nica fsica para toda a natureza. Marx, na Tese de Doutoramento, concorda com
Epicuro na crtica do fundamento terreno da religio, na defesa da liberdade e da vinculao
entre filosofia e vida.
Marx, na Tese, considera as filosofias do perodo helenstico - epicuristas, esticos e
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cticos - como o pr-do-sol da especulao grega e no um apndice sem relao com as
premissas anteriores. Parte da relao entre o atomismo de Demcrito e de Epicuro para
exemplificar o vnculo necessrio da filosofia grega em seu ocaso com a especulao grega
anterior. Promove uma revalorizao do epicurismo frente a Demcrito, visando apontar uma
diferena essencial na filosofia deles. So essenciais filosofia epicurista: a eternidade da
matria e a eternidade do vazio negativo da matria que possibilita o movimento; o
pressuposto de que no h bem para o homem no mundo, ou seja, fora do homem, na
exterioridade, pois o nico bem do mundo ser livre em relao ao mundo a ausncia de
pressupostos; e o tomo como forma universal do conceito, o gnero, a espcie.
Marx cita a opinio desfavorvel de pensadores antigos sobre Epicuro, repetida
pelos padres da igreja, considerando-o plagiador da fsica de Demcrito: esta opinio
desfavorvel [plgio]... nos padres da igreja. Apenas cito, em nota, uma passagem de
Clemente de Alexandria. (MARX, DFN,140)
tambm a mesma opinio de pensadores modernos, mencionando Leibniz: ... os
escritores modernos tambm consideram Epicuro... como um simples plagiador de
Demcrito. (MARX, DFN,141) Fica demonstrado assim que tais crticos, antigos e
modernos, foram incapazes de perceber a diferena entre os dois pensadores atomistas.
Marx concorda que os princpios de Demcrito e Epicuro so os mesmos: tomos e
vazio. Mas observa que Demcrito e Epicuro se opem diametralmente em tudo o que diz
respeito verdade, certeza, aplicao da fsica e s relaes entre o pensamento e a
realidade em geral. (MARX, DFN,143)
Marx identifica trs diferenas entre as fsicas de Demcrito e Epicuro. Uma
diferena na teoria do conhecimento: Demcrito ctico e Epicuro dogmtico. Conhecemos
apenas o fenmeno, que aparncia para Demcrito e critrio de verdade para Epicuro. Outra
diferena est na prtica cientfica: Demcrito procura conhecer pela observao emprica,
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busca o saber positivo, viaja por meio mundo em busca de experincias e conhecimentos com
grandes mestres, pois no encontra satisfao na filosofia a verdadeira cincia. Epicuro
encontra na filosofia a satisfao e despreza as cincias positivas enquanto no servem
ataraxia. E no sai de seu jardim jactando-se de ser autodidata. Finalmente a diferena na
relao entre pensamento e ser. A necessidade a categoria forte para Demcrito que
desdenha do acaso. Enquanto para Epicuro, a necessidade no existe e sim o acaso. Em
decorrncia desta diferena frente aos fenmenos fsicos, Demcrito explica tudo pelo
determinismo (etiologia21) e Epicuro pela possibilidade - mltiplas causas cuja condio
que satisfaam ao sujeito que explica e no contrariem a percepo sensvel.
Segundo Marx, Demcrito admite dois movimentos do tomo: a queda em linha reta
e a repulso. Para Epicuro os movimento so trs e, aos dois admitidos por Demcrito,
acrescenta o princpio do automovimento do tomo que a declinao em relao linha reta.
Este movimento autnomo causa as composies de tomos, os encontros a repulso , e
origina assim a criao do mundo, resultando, no mbito moral, na liberdade.
Demcrito, conforme Marx, considera as qualidades do tomo enquanto fenmeno,
mas no quanto ao tomo em si; seriam trs as qualidades: a forma, a posio e o arranjo. Para
Epicuro o tomo tem qualidades em si mesmo e so elas a grandeza, a forma e o peso. Todas
estas qualidades contrariam o conceito de tomo enquanto princpio [arkh] e, para solucionar
a contradio, Epicuro esclarece que tais qualidades s tm sentido como diferena entre os
tomos, ou seja, considerando as composies dos tomos e o seu encontro (repulso). Neste
ponto, Epicuro faz a afirmao que despertou admirao de que os tomos no vazio caem com
a mesma velocidade, independente da sua massa ou forma.
Os tomos se movem com igual velocidade porque o vazio dpassagem da mesma forma ao tomo mais leve e ao mais pesado (...)
21 Estabelecimento da conexo necessria entre causa e efeito. Para Demcrito, o estabelecimento de uma nicaetiologia valia mais do que a coroa da Prsia. Atualmente refere-se mais causa das doenas (Medicina).
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Isso acontece porque a prpria natureza do vazio determina aseparao de cada tomo do resto, e no capaz de produzir qualquerresistncia ao seu impulso. (LARTIOS, 1977, 293)
Afirmao que a cincia emprica viria a comprovar, sculos depois, nas
experimentaes de Galileu:
Gassendi louva Epicuro por se ter adiantado, somente guiado pelarazo, experincia que mostra que os corpos, apesar da sua grandediferena de peso e massa, possuem a mesma velocidade quandocaem verticalmente. (MARX, DFN, 187)
E Marx ressalta, valorizando o atomismo de Epicuro frente ao de Demcrito:
Epicuro objetivou o conceito do tomo, entre essncia e existncia,criando assim a cincia do atomismo, enquanto em Demcrito no seencontra nenhuma realizao do princpio e sim a mera defesamaterial e a produo de hipteses empricas. (MARX, DFN, 187)
Conforme Marx, Epicuro denomina tomos os princpios, no por serem pequenos,
conhecveis apenas pelo entendimento, mas por serem indivisveis, a etimologia da palavra
tomo quer dizer exatamente isto: indivisvel. Parece assim que tomos no possuem
qualidades espaciais, entretanto, contraditoriamente, Epicuro afirma que os tomos,
percebidos apenas pela razo, so tambm elementos que compem os corpos. Para
Demcrito o tomo tem apenas o papel de suporte material elemento stoikheon, esta
substncia de onde tudo vem e na qual tudo se dissolve. Entretanto, o tomo mantm-se como
sedimento eterno desta destruio: Pode-se dizer que na filosofia epicurista o imortal a
morte. O tomo, o vazio, o arbitrrio e a composio so, em si, a morte. (MARX, CF, 79) A
morte imortal. O tomo como tal s existe no vazio (MARX, DFN, 196), observa Marx.
Diferentemente de Demcrito, Epicuro, considera o tomo sob dois aspectos, enquanto
princpio arkh no tem qualidades, mas, como base do mundo fenomnico, alienado do
seu conceito, elemento stoikheon.
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O tempo no necessrio para o sistema de Demcrito. Ele est fora do mundo da
essncia e existe na conscincia do sujeito. Epicuro, diferentemente, considera o tempo como
acidente do acidente, isto a mudana em si mesma da substncia. O tempo mudana e
movimento ativo. O sensvel a forma como a conscincia percebe o tempo, a reflexo do
fenmeno sobre si mesmo: a sensibilidade do homem no mais do que a encarnao do
tempo, a reflexo do mundo dos sentidos, nascido para a vida, sobre si mesmo. (MARX,
DFN, 200)
Atravs dos sentidos a natureza sente a si mesma como esclarece Feuerbach na
mesma tradio filosfica: A finalidade da natureza no diversa e independente do meio,
da qualidade do rgo; a natureza s ouve atravs do ouvido, s v atravs do olho, s pensa
atravs do crebro. (FEUERBACH, 1997, 328)
Enquanto, para Demcrito, o tempo fenmeno subjetivo, para Epicuro, uma
conseqncia necessria, pois a mudana do mundo e a sua impresso na sensibilidade so
uma s coisa:
Quando se separam os dois termos, separa-se justamente o que noest separado na sensibilidade. O pensamento comum tem sempre (...)predicados que separa de sujeitos. E todos os filsofos transformarampredicados em sujeitos. (MARX, CF, 64)
Apoiado nos erros dos sentidos, Demcrito rejeita a percepo sensvel
considerando-a como aparncia em vez de critrio de verdade como faz Epicuro. Marx
esclarece o assunto:
[sobre a certeza sensvel] (...) a propriedade reside nos dois termostomados em conjunto, na relao entre o saber sensvel e o sensvel(...) O erro no assim atribudo nem coisa, nem ao saber; pelocontrrio, o conjunto global da certeza sensvel que consideradocomo processo vacilante. (MARX, CF, 63)
Afastado o erro, os sentidos so o critrio de verdade da natureza concreta, como
esclarece Marx:
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Deste modo: da mesma maneira que o tomo no mais do que aforma natural da autoconscincia abstrata e singular, tambm anatureza sensvel apenas a autoconscincia objetivada, emprica,singular, isto o sensvel. por este motivo que os sentidos so onico critrio na natureza concreta, tal como a razo abstrata onico critrio no mundo dos tomos.(MARX, DFN, 202)
Segundo Marx, enquanto Demcrito fica restrito observao emprica e sem
relao com o atomismo, Epicuro tem uma teoria relativa aos corpos celestes e os processos
que lhes dizem respeito, ou sobre os meteoros (expresso que abrange sinteticamente tudo
aquilo) (MARX, DFN, 203), que se ope tanto a Demcrito como a toda a especulao
filosfica e ao povo grego. Para Marx, nos meteoros Epicuro ope-se no s opinio de
Demcrito, mas ainda de toda a filosofia grega (MARX, DFN,203) e tambm s
concepes de todo o povo grego(MARX,DFN,204). Os gregos veneravam o cu, at mesmo
os filsofos22, como Aristteles, conforme precisa Marx: Assim, Aristteles, de acordo com
os outros filsofos gregos, considera os corpos celestes eternos e imortais
(MARX,DFN,208), viam neles a eternidade caracterstica do espiritual. Ainda segundo
Aristteles no texto acima citado, mais do que a caracterstica do espiritual, do divino, pois
correspondia crena de que os corpos celestes so deuses eternos e imutveis, conforme a
observao de todos e o testemunho das geraes anteriores.
Os corpos celestes esto na prpria origem dos mitos dos deuses. O fato de existir
um cu evidente (MARX, DFN,205), lembra Marx. Sendo assim suporte firme para o mito.
Epicuro discordou desta teoria do cu eterno porque viu nela o maior problema da alma
humana pela perturbao que causa admitir a existncia de um mundo eterno e,
simultaneamente, um outro mundo submetido mudana. Seria admitir a existncia de duas
fsicas como fez Aristteles uma tratando do eterno (o cu acima da Lua) e outra do
temporal (o mundo sublunar). Marx cita como fonte a Metafsica de Aristteles n 968,
22 ANAXGORAS disse que nasceu Para contemplar o Sol, a Lua e o cu. (MARX, DFN,203)
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1074 a 38 e 1074 b 1 e seguintes, e tambm De Caelo (do cu) n 270 b (MARX, DFN,203-
205) e diz, literalmente: Assim, Aristteles, de acordo com os outros filsofos gregos,
considera os corpos celestes eternos e imortais (MARX, DFN,208) e assim diferentes dos
demais corpos, pois, para Aristteles:
por o primeiro corpo ser qualquer coisa diferente, exterior terra,ao fogo, ao ar e gua, que eles [os brbaros e Helnicos antigos]chamaram ao lugar mais elevado , Thein ae [curso eterno],acrescentando-lhe o nome de tempo eterno. Mas tanto o cu como olugar mais elevado foi atribudo pelos antigos s divindades, pois sestas so imortais. Ora a teoria atual demonstra que o ter indestrutvel, sem origem, e que no participa em nenhum dosinfortnios humanos. Deste modo, as nossas concepescorrespondem simultaneamente revelao de Deus.(MARX,DFN,204)
Antes Aristteles havia afirmado, conforme Marx: Se existe um deus, como de fato
acontece, a nossa afirmao sobre a substncia dos corpos celestes mantm-se verdadeira; o
que corresponde igualmente percepo sensvel e fala a favor da convico dos homens
(MARX,DFN,204). Epicuro discorda de tudo isto: os corpos celestes no so eternos porque
perturbariam a ataraxia da conscincia de si (MARX,DFN,209), ou seja, contraditrio com
a razo e a observao admitir a existncia de corpos eternos (no cu) e de corpos transitrios
(na terra). Enquanto Aristteles (MARX,DFN,206) critica a crena dos antigos de que e a
terra e o cu eram sustentados pelo tit Atlas, Epicuro censura a crena de que o homem
necessita do cu (MARX,DFN,206), atribuindo tal crena idiotice e superstio humana.
A idiotice e a superstio so igualmente tits... (MARX,DFN,206).
Segundo Marx, Epicuro admite que no cu vemos fenmenos perturbadores, mas,
tambm neste caso devemos nos ater percepo sensvel e admitir mltiplas explicaes,
pois, observa, o comportamento dos astros muito irregular e assim impossvel admitir uma
explicao nica (eterna e divina). Epicuro se ope aos astrlogos e aos esticos por
avanarem uma explicao nica que impede a ataraxia. E, para ele, isto invalida a
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explicao.
Demcrito tambm admitia que os corpos celestes so composies de tomos, e
como tais, no podem ser eternos. Epicuro raciocina que se os corpos celestes so eternos e
so pesados, mas tm os seus centros de gravidade em si mesmos, deslocam-se no vazio e o
seu movimento afasta-se da linha reta formando um sistema de atrao e repulso no qual
conservam a sua autonomia e, finalmente, determinam o tempo com o seu aparecimento,
ento, os corpos celestes so os prprios tomos tornados efetivamente reais
(MARX,DFN,211). Eles so a comprovao material do atomismo. A contradio entre
essncia e existncia que permeia todo o epicurismo reconciliada.
Na teoria dos meteoros, para Marx, surge a alma da filosofia epicurista da natureza: a
autonomia da conscincia de si como singularidade abstrata. Esta autonomia que vincula a
filosofia com o bem viver coincide com a preocupao de Marx de como tornar a filosofia
uma prxis?. Esta autonomia da racionalidade que est no mundo e na conscincia torna
Epicuro o iluminista grego que ousou defrontar a religio que ameaava dos cus os mortais
e deitou por terra a superstio (MARX,DFN,215), conforme o elogio de Lucrcio (Apud
MARX,DFN,215). Lembramos aqui que se fundamentar na autonomia da racionalidade
humana caracterstica da filosofia do Iluminismo.
Marx buscou, na Tese, fundamentar o seu materialismo na tradio filosfica, mas
para se contrapor ao determinismo de Demcrito, apoiou-se na filosofia de Epicuro cuja
categoria principal o acaso:
Para Epicuro, o princpio da filosofia consiste em demonstrar que omundo e o pensamento so pensveis, isto , possveis; e a prova quenos fornece, o princpio de que parte e ao qual retorna, apossibilidade no seu ser-para-si, cuja expresso natural o tomo ecuja expresso espiritual o acaso e o arbitrrio.(MARX, CF,16)
E cujo critrio de verdade a sensao: uma filosofia como a de Epicuro, que parte
da esfera do sensvel e que a considera como o critrio mais elevado, pelo menos para o
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conhecimento (MARX,CF,72).
Assim fez sua a defesa epicurista da liberdade desde a Fsica at a tica partindo do
princpio do automovimento atmico, como j mencionamos. Este princpio epicurista
acompanhar a interpretao de Marx em toda a sua produo terica posterior, tal como
precisa Oliveira:
inegvel a fora exercida pelo conceito de liberdade. O argumentoque, principalmente, leva o jovem doutorando a reivindicar maiorcoerncia na teoria de Epicuro a declinao da linha reta exprime-se como movimento de liberdade absoluta, como efetivao doprincpio de autodeterminao. (OLIVEIRA, 1997, 51).
Epicuro teve seu ponto alto nos Meteoros, quando recusou a diviso da Fsica, contra
toda a especulao grega, em nome da ataraxia e, sculos depois, comprovou-se que estava
correto. Preconizando uma fsica nica, a sua filosofia no necessitou de uma metafsica para
manter a coerncia como ocorreu com os que aceitaram a dualidade. Estes fizeram,
inicialmente, o mesmo caminho de Epicuro recusando o destino para afirmar a liberdade, mas,
depois chegaram a outra concluso divergindo quanto ao modo de considerar o princpio da
conscincia de si: como abstratamente singular, para os epicuristas e como universalidade
abstrata, para os esticos. Marx observa esta divergncia:
Se, a conscincia de si abstratamente-singular considerada comoprincpio absoluto, ... toda a cincia suprimida, ... a singularidadeque reina na prpria natureza das coisas. Mas isto equivaleigualmente ao desmoronamento de tudo o que transcende aconscincia humana e pertence ao entendimento imaginativo.(MARX,DFN,214)
Seguindo o outro caminho, os esticos substituram o destino por um deus livre, que,
futuramente, influenciaria o cristianismo, como precisa Marx em seguida:
Se, ao contrrio, se erigir em princpio absoluto a conscincia de sique apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata, abre-sea porta ao misticismo supersticioso e servil. Encontramos uma provahistrica do que acabamos de afirmar na filosofia estica.(MARX,DFN, 214)
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Marx j interpretara, nos seus trabalhos preparatrios para a Tese, esta questo do
seguinte modo: (...) o princpio do pensvel, que por um lado serve para afirmar a liberdade
da conscincia de si e por outro para atribuir a Deus liberdade relativamente a quaisquer
determinaes.(MARX,CF,19)
H ainda o conceito teraputico da filosofia como vnculo entre Marx e Epicuro. O
iluminista grego preocupou-se com a ausncia de perturbao na alma, vinculando assim
filosofia e vida: Assim como realmente a medicina em nada beneficia se no liberta dos
males do corpo, assim tambm sucede com a filosofia se no liberta das paixes da alma
(EPICURO,1985,13). Idntico motivo d tambm a medida da cincia: afastar o medo do
desconhecido. A tranqilidade da alma, a ataraxia, tambm o motivo para recusar a
eternidade dos astros e, em conseqncia, para a negao do divino no cu.
Neste ponto do seu itinerrio Marx, afirma a autonomia da racionalidade humana,
que ainda denomina como jovem hegeliano conscincia de si, e adota uma metafsica
fundamentada na natureza material, tpica do atomismo, mas revela plena confiana na
percepo sensvel como critrio de verdade e na liberdade apoiado na categoria epicurista da
possibilidade e na tarefa da filosofia de promover a ataraxia vinculando filosofia e vida.
Adota de Demcrito o gosto pela observao e experimentao, assim como um certo
ceticismo, tpico das cincias positivas. Alm disso assim como Epicuro na teoria dos
meteoros afirma a autonomia da autoconscincia frente mitologia que afirmava o eterno no
cu, tambm Marx, defender a autonomia da filosofia perante a religio do seu tempo que
afirmava o divino no cu escrito, na palavra selada de Deus. Apoiando-se inicialmente
nos jovens hegelianos e, depois, em Feuerbach, Marx vai demonstrar que a religio uma
forma histrica de conscincia social do homem e, como tal, derivada da sociedade que a
produz. Conceito que, como veremos adiante, acabar por generalizar para as outras formas
de conscincia. Mas a sua crtica comea pela mentalidade que submete a filosofia ao
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tribunal da religio. Assim se expressa sobre o assunto Oliveira: o apreo pela luta de
Epicuro contra a superstio tambm deve ser lido como defesa da liberdade de pensamento e
protesto contra a autoridade ilimitada da religio.(OLIVEIRA,1997,51) Segundo Oliveira
(1997, 49), este princpio da liberdade como autonomia da autoconscincia, juntamente com
o mtodo ou forma de argumentao filosfica (...) que visa explicao de uma realidade
total base de um nico princpio terico, como fez Epicuro, o acompanharo em todo o seu
pensamento posterior, embora recebam tratamento diferente em cada texto tornando-se
progressivamente mais consistentes. (OLIVEIRA,1997,51)
Tal como Hegel, Marx acreditava que era fundamental fazer a crtica mitologia da
sua poca e, posteriormete, que tal princpio terico a condio para a emancipao poltica
e humana23, e, ao contrrio de muitos marxistas, entendeu, participou e destacou a
importncia deste debate. Nem mesmo o debate puramente teolgico escapou da interpretao
marxiana, como aconteceu alis com outros filsofos modernos, examinando as questes
metafsicas como as provas da existncia de deuses, a imortalidade da alma, a providncia
divina e o culto religioso conforme veremos a seguir.
23 Esta compreenso Marx exprimir nos textos A questo judaica e Contribuio para a crtica da filosofia dodireito de Hegel Introduo.
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2.2 CONCEITO DE MENTALIDADE TEOLOGIZANTE
Mas afirmar isto no o mesmo que dizer: para quem o mundo aparece sem razo,conseqentemente para quem , ele mesmo, irracional, para este Deus existe? Ou,irracional a existncia de Deus. (MARX, DFN, 220)
Como exemplo do que a mentalidade teologizante pode fazer filosofia (MARX,
DFN,124), Marx acrescentou sua Tese de Doutoramento, um Apndice com a defesa da
teologia de Epicuro contra a crtica de Plutarco, e, para esclarecer o significado desta
mentalidade, faz uma defesa veemente da autonomia da filosofia especialmente contra
arrastar, como diz Hume, a filosofia ao tribunal da religio a fim de a julgar (MARX,
DFN,124) e proclama a oposio da filosofia, a todos os deuses do cu e da terra que no
reconheam como divindade suprema a conscincia de si que prpria dos homens.
(MARX,DFN, 124)
Marx participou desta polmica teolgica, assim como outros filsofos, como o
caso j mencionado de Hegel, mas tambm de Descartes, So Toms de Aquino, Santo
Anselmo e Santo Agostinho. Todos eles, ao contrrio de Marx, argumentaram no sentido de
justificar a teologia.
A crtica marxiana religio, no mbito da nossa investigao, caracteriza-se, como
observamos anteriormente, por duas crticas. Uma delas dirige-se mentalidade teologizante,
que procura dar uma aparncia de racionalidade ao irracionalismo religioso e usa filosofia
como serva para este propsito. caracterstico desta mentalidade submeter a filosofia
religio, com fez Plutarco na polmica contra a teologia de Epicuro, ou rejeitar a religio para
melhor justific-la, como fizeram Hegel e os velhos hegelianos. Destacamos trs crticas de
Marx aos argumentos teolgicos: s provas da existncia de Deus; ao argumento de que a f
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em Deus inibe a maldade humana e s provas da imortalidade da alma individual.
Marx examina as provas da existncia de Deus - o ser transcendente, fazendo a
crtica a Hegel por ter invertido as provas teolgicas, rejeitando-as a fim de as justificar.
(MARX, DFN,218) Hegel, afirma: o fortuito no existe, logo, Deus -o Absoluto- existe.
Enquanto a teologia afirma o inverso, que Deus existe porque existe o fortuito: Deus a
garantia do mundo fortuito. E assim, lgico afirmar o contrrio. As provas da existncia
divina seriam tautologias ocas como a famosa prova ontolgica24 que tambm pode ser
invertida e provar a inexistncia de Deus. A prova ontolgica consiste em
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