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Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo COGEAE PUC-SP
ADERIR OU NO AO DELRIO:
Uma anlise perelmeniana dos auditrios construdos pelo narrador em Dom Casmurro
So Paulo 2015
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Tatiany Regina de Oliveira Ocleciano
ADERIR OU NO AO DELRIO:
Uma anlise perelmeniana dos auditrios construdos pelo narrador em Dom Casmurro
Monografia apresentada como requisito para aprovao no Curso de Especializao em
Lngua Portuguesa, sob orientao do Prof. Dr. Everaldo Nogueira Jr.
So Paulo 2015
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Dedico esse trabalho a todos que reconhecem que a verdade de outrem nunca absoluta nem est naquilo que se v superfcie. preciso
ajustar as lentes para enxergar o mundo.
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O ato de apropriao da lngua introduz aquele que fala em sua fala, pois na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui sujeito.
(BENVENISTE)
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OCLECIANO, T.R.O. Aderir ou no ao delrio: uma anlise perelmeniana dos auditrios construdos pelo narrador em Dom Casmurro. 2015, 124p. Monografia. Curso de Especializao em Lngua Portuguesa. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). RESUMO Este trabalho tem por objetivo identificar os auditrios aos quais o narrador-personagem Bento Santiago, cuja alcunha d ttulo ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, dirige sua argumentao. Importa refletir, a partir dessa percepo, sobre a natureza do processo de construo de tais auditrios e sobre o tipo de argumentao que comandam. Questiona-se o porqu de o personagem demonstrar-se aparentemente to convencido do sucesso da prpria argumentao, apesar das falhas e lacunas intencionais e no intencionais que apresenta. O trabalho tem por fundamento a chamada teoria da audincia, conforme apresentada por Cham Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentao, de 1958. Apoia-se, adicionalmente, em conceitos de psicopatologia apresentados por Jos Leme Lopes em A psiquiatria de Machado de Assis. Por meio de pesquisa qualitativa e metodologia de cunho indutivo, passagens da narrativa so analisadas em busca de base proposio de que os diferentes auditrios de Santiago, particulares e universal, foram concebidos sob o efeito de suas paixes (ou delrios). Em sua percepo delirante, ele os v em perfeita comunho com os pontos de vista que privilegia e os considera devidamente convencidos. Por fim, argumenta-se que, embora subsista no discurso argumentativo de Dom Casmurro a retrica do apaixonado, ou seja, uma mscara lgica que no resiste a um exame racional mais atento, a teoria perelmeniana permite aos leitores que escapem de dicotomias limitadoras ao reconhecer a possibilidade de ajuste da intensidade de sua adeso s teses apresentadas, na extenso dos valores e caractersticas que porventura compartilhem com o orador. Palavras-chave: Cham Perelman, auditrios, argumentao, nova retrica, Machado de Assis.
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OCLECIANO, T.R.O. To Adhere or not to Adhere to a Delusion: Analyzing Audiences in Brazilian Novel Dom Casmurro from a Perelmenian Perspective. 2015, 124p. Monograph for a Specialization Course in Portuguese Language. So Paulo Pontifical Catholic University (PUC-SP). ABSTRACT This study aims at identifying the audiences to which Bento Santiago character/narrator whose nickname gives title to famous Brazilian novel Dom Casmurro, by Machado de Assis directs his argumentation. It is an exploration of the way such audiences are constructed in discourse, as well as of the kind of argumentation they imply. We also investigate why the character seems to be rather convinced of the success of his own arguments, in spite of their flaws and gaps both intentional and unintentional. Our main theoretical framework is the "theory of the audience", put forth by Cham Perelman and Lucie Olbrechts-Tyteca in their 1958 opus The New Rhetoric A Treatise on Argumentation. Additionally, we rely on psychopathological concepts presented by Jos Leme Lopes in A Psiquiatria de Machado de Assis (1974). Through qualitative research and an inductive method, we select and analyze excerpts from the narrative looking for basis to our proposition, that Santiagos multiple audiences, particular and universal, were designed under the influence of his passions (or delusions). In his delusional state of mind, he believes his audiences to be in perfect communion with the point of view he favors, and thus considers his readers duly convinced. Finally, we argue that although the argumentative discourse in Dom Casmurro displays marks of the rhetoric of the lover, that is, a "logical mask" that does not stand up to careful rational examination, Perelman and Olbrechts-Tytecas theory allows the reader to escape old and limiting dichotomies by adjusting the intensity of their assent to the theses in question, depending on a range of defining features they might eventually share with the author/rhetor. Key words: Cham Perelman, audience, argumentation, New Rhetoric, Machado de Assis.
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SUMRIO
1. INTRODUO 09 1.1. Escolha do tema 09 1.2. Justificativa 12 1.3. Objetivos 14 1.3.1. Objetivo geral 14 1.3.2. Objetivos especficos 15 1.4. Metodologia 16 1.5.Cham Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca e o Tratado da Argumentao
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1.5.1. Distines entre a retrica clssica e nova retrica 21 1.5.2. A nova retrica perelmeniana 22 2. FUNDAMENTAO TERICA 28 2.1. A teoria da audincia 29 2.1.1. A comunidade efetiva dos espritos 32 2.1.2. O relacionamento entre o orador e o auditrio 33 2.1.3. O auditrio como construo do orador 35 2.1.4. O auditrio como elemento determinante da argumentao 39 2.1.5. Persuadir e convencer 41 2.1.6. Os trs tipos de auditrio 44 2.1.7. O auditrio universal 46 2.1.8. Auditrios de elite 50 2.1.9. A argumentao dirigida para um nico ouvinte: debates e Discusses 51 2.1.10. A deliberao consigo mesmo: razes e racionalizaes 55 2.2. O auditrio do escritor: argumentao, teoria da audincia e Literatura
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3. DESENVOLVIMENTO 66 3.1. Evidncias do processo de deliberao ntima 69 3.2. Resistncias e obstculos formao de um auditrio Contemporneo
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3.3. Auditrios particulares construdos por Bento Santiago 80 3.4. Ao leitor, as lacunas: evidncias dos esforos de cooptao do leitor com vistas formao de uma comunidade efetiva dos espritos
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3.5. Consideraes parciais 87 4. CONSIDERAES FINAIS 90 5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 96 ANEXO I 99
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CAPTULO UM: INTRODUO
Tudo famoso, bem palmilhado e esquadrinhado em se tratando de Dom Casmurro. Todas as leituras e interpretaes j foram feitas, mas sempre vale a pena aplicar o mtodo da leitura atenta (close reading) para descobrir ou redescobrir a maneira pela qual o bruxo de Cosme Velho construa seus enredos com base na explorao da linguagem. [...] Um percurso pessoal de leitura haver de trazer algum tipo de novidade em relao a caminhos j palmilhados.
(MORICONI, 2008, p. 77)
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1. INTRODUO
1.1. Escolha do tema
Este trabalho nasce de uma sensao de estranhamento: Bento Santiago,
narrador-personagem de uma das obras mais emblemticas da literatura brasileira,
Dom Casmurro1, inicia suas memrias dizendo-se exaurido pela monotonia, que o
lembrou escrever um livro. Todavia, sente-se estranhamente incapaz de juntar as
foras necessrias para qualquer empreitada mais rida ou longa algo estranho
para algum que passa a maior parte do tempo a hortar, jardinar e ler, come bem,
no dorme mal... Enfim, algum que se esfora por demonstrar ao leitor que leva
uma vida interior pacata.
Formado em Direito, rea em que atuou profissionalmente, Bento abandona
sem pestanejar a ideia de lidar com teorias estabelecidas, mas que lhe deveriam ser
familiares poltica, jurisprudncia, filosofia e tambm se nega a buscar
documentos e datas para reconstruir uma Histria dos subrbios. O que de fato o
move a escrever, com uma alegria deslocada, sem razo de ser, mas to intensa
que torna sua mo trmula uma alegria quase histrica, se poderia dizer , so as
vozes dos bustos que adornam sua casa2.
Essa casa, por sinal, surgiu tambm de um estranhamento: quase ao final da
narrativa, Santiago confessa que, por ocasio da morte de sua me sem dvida,
uma figura central para entender muitas de suas aes e sentimentos , ao visitar a
casa em que passou sua infncia e juventude, e em torno da qual gira a maior
poro de suas memrias, todo o lugar o desconheceu. Ele a descreve como um
lugar que nada sabia dele, que tinha um ar interrogativo, que pasmava do intruso.
A casa onde cresceu e se formou como pessoa havia se tornado um local estranho
e adverso. Assim, deixou que a demolissem, e mandou erguer outra no bairro do 1 Est sendo considerada a edio de 2006 da Editora Moderna. O uso de algarismos arbicos para
os captulos caracterstica dessa edio. A grafia de algumas palavras foi atualizada de acordo com os parmetros do Acordo Ortogrfico de 1990. 2 So trs imperadores romanos Csar (100 - 44 a.C.), general que se tornou ditador e uma das
mais notrias vtimas de traio em toda a histria humana; o prspero imperador Augusto (63 a.C. - 14 d.C.); e Nero (37 - 68 d.C.), conhecido por sua loucura, crueldade e orgias e um rei africano chamado Massinissa (238-148 a.C.), da Numdia, que estabeleceu em sua poca relaes com os romanos.
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Engenho Novo, de acordo com as impresses e sentimentos que sua residncia
original, na Rua de Mata-cavalos, deveria ter continuado a causar. Embora inicie o
livro dizendo que reproduzira no Engenho Novo o mesmo prdio assobradado, com
as mesmas alcovas e salas, e que [o] mais tambm anlogo e parecido3, ele
termina reconhecendo que a nova casa, conquanto reproduza a de Mata-cavalos,
apenas me lembra aquela, e mais por efeito de comparao e de reflexo que de
sentimento4.
Muitos afirmam que a inteno de Bento Santiago por trs de sua narrativa
atar as duas pontas da vida. Talvez, porm, essa seja apenas uma extrapolao
indevida da motivao expressa e frustrada, pois ele afirma ter falhado em tal
intento tanto no incio e quanto no fim do livro para a reproduo adaptada de sua
residncia antiga. Segundo o prprio Bento, so as vozes dos bustos pintados em
conformidade com suas lembranas que o movem a deitar no papel suas
reminiscncias. Vozes projetadas, naturalmente trata-se de sua prpria voz,
exteriorizada em mais uma de suas muitas fantasias. Em outras palavras, escreve
impulsionado por seus prprios anseios. Significativamente, j no so aqueles os
mesmos bustos com os quais conviveu quando criana. Pouco lhe resta,
materialmente falando, dos tempos que retrata em sua narrativa: no s a casa
original foi demolida, mas quase todos os personagens de que se utiliza j esto
mortos. Ao que parece, pouco lhe resta at de si mesmo: falto eu mesmo, ele diz,
e essa lacuna tudo.
Aqui, ento, surge nosso estranhamento, aludido mais acima: a viso mais
comum da obra-prima de Machado de Assis de que se trata de uma espcie de
pea jurdica, em que o narrador-personagem tenta convencer o leitor da culpa de
sua esposa, que o teria trado com seu melhor amigo. Santiago quer o assentimento
do leitor tambm para suas reaes, seja daquelas apenas tentadas suicdio e
assassinato ou levadas a cabo o exlio da mulher e do filho em outro continente.
Embora j por mais de meio sculo as discusses sobre a obra tenham expandido
os estreitos limites do (a nosso ver) infrutfero debate sobre a traio ou no de
Capitu, e o foco seja com cada vez maior frequncia e intensidade voltado para o
3 Captulo 2 Do Livro (p. 18).
4 Captulo 144 Uma pergunta tardia (p. 157).
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estudo do prprio narrador-personagem, nos parece que poucas vezes os
pesquisadores se perguntam por que, se a casa falhou ao atar as pontas de sua
vida, o esforo autobiogrfico parece ter atingido um inquestionvel sucesso.
Afinal, subitamente, nas ltimas linhas da narrativa -- na suma das sumas ,
Bento Santiago surge capaz de dar de ombros a tudo o que se passou. Sem mais,
confia que o leitor, a quem interpela (e alicia, e ridiculariza, e agrada, e admoesta) a
todo tempo em sua narrativa, ter chegado s mesmas concluses que ele a
mulher culpada, e j trazia consigo os germes da infidelidade e da perfdia desde
menina. Deixa de lado o tom amargurado e rancoroso predominante em seu relato e
se despede cordial e amvel de seus mortos, parecendo at renovado, pronto para
lidar com aquilo que antes lhe parecia rduo e penoso: a Histria dos subrbios.
Sobram-nos perguntas. O longo sculo de debates quanto traio ou no de
Capitu prova que os argumentos apresentados por Santiago esto longe de ser
irrefutveis. Baseiam-se em olhares, acasos, omisses e impresses, e podem ser
interpretados de maneiras diversas, contraditrias e no raro inusitadas5, segundo o
vis de cada leitor. No obstante, depois de junt-los, o notvel jurista parece dar-se
por satisfeito, encerrando de vez sua defesa, como se a considerasse impenetrvel.
Por que Bento se sentiria seguro de que conseguiu convencer o leitor a aderir ao
seu ponto de vista? Em outras palavras, por que pensa ele que seu leitor deveria
compartilhar to prontamente de sua convico?
A convico de Bento Santiago, segundo o psiquiatra Jos Leme Lopes, autor
de A psiquiatria de Machado de Assis, de origem patolgica. Lopes baseia-se,
entre outros, nos estudos do filsofo e psiquiatra alemo Karl Jaspers, que em 1910
identificou quatro graus de manifestao do cime: os dois primeiros seriam o cime
psicolgico (que corresponde aproximadamente definio leiga e comum de
cime) e o mrbido (em que a ligao realidade e o senso crtico so titubeantes).
No terceiro, o cime delirante, as ideias correspondentes ao afeto deslocado
5 Em artigo publico na revista eletrnica Machado em Linha, o pesquisador esprito-santense Wilberth
Salgueiro argumenta, com base no uso que o narrador-personagem faz do verbo jarretar (que aparece apenas duas vezes em toda a narrativa), que Bento Santiago pode ser de alguma forma o responsvel direto pela morte de Escobar. O texto, publicado na edio de dezembro de 2010, chama-se Outro crime perfeito: Casmurro, assassino de Escobar e est disponvel em http://machadodeassis.net/revista/ numero06/rev_num06_artigo07.pdf.
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enxameiam, num jogo de observaes, de evocaes, ora esquecidas, ora
neoformadas, sem mais conservao da crtica. No quarto, o delrio de cime, h
um conjunto de ideias sistematizadas e um humor que pode ser tranquilo, sem
necessariamente corresponder ao afeto (LOPES, 1974, p. 95).
Citando o psiquiatra gauls Henri Ely, Lopes demonstra que [q]uando o
delrio est formado, sistematiza um feixe de provas, de pseudoverificaes, de
falsas lembranas, de interpretaes delirantes, de falsos reconhecimentos (idem,
p. 98). Freud, que considera o cime delirante uma forma clssica de paranoia e v
nele uma homossexualidade suprimida, abafada, tambm lembrado.
Assim munido, o psiquiatra apresenta ento sua hiptese sobre Santiago, a
quem, significativamente, ele trata pelo diminutivo infantil:
H na personalidade de Bentinho as predisposies bsicas para o desenvolvimento psicopatolgico no sentido de um cime delirante. As primeiras manifestaes na adolescncia, sua volta na fase inicial do casamento, a relativa possibilidade de compreenso, a parcial conservao da crtica, as intermitncia falam no sentido do desenvolvimento. No momento, porm, em que surge a percepo delirante, com a transformao mais profunda da personalidade, quando a convico da identidade fsica do filho e do amigo se torna inabalvel e propicia uma permanente rede de interpretaes delirantes, baseadas em acontecimentos ou em recordaes falseadas, finalmente ao verificarmos a alterao final, resfriada a atividade delirante, com o isolamento, a impossibilidade de novas ligaes amorosas estveis, a casmurrice, o diagnstico pende para delrio de cime. (ibidem, p. 102)
Como se v, a psicologia e a psiquiatria podem explicar apropriadamente
como um indivduo acometido por um cime delirante chega a distorcer a realidade
de forma que, aos seus prprios olhos, o improvvel se revista de uma certeza
ptrea e inabalvel. Ainda assim, interessa-nos observar como essa distoro
cognitiva se manifesta no discurso argumentativo construdo pelo autor ficcional.
1.2. Justificativa
Como bem lembra o crtico e professor da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ) Italo Moriconi, citado na abertura desta Introduo, muito j foi falado
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e escrito sobre Dom Casmurro. So numerosas as anlises e menes retrica de
Bento Santiago, mas no o so os estudos voltados para os efeitos que causam na
argumentao a peculiar seleo de auditrios realizada pelo narrador.
Percebemos na anlise retrica tradicional um enfoque que no satisfaz aos
nossos questionamentos de maneira plena: fala-se sobre as estratgias
argumentativas de Santiago para convencer ao seu leitor, mas poucas vezes
explorado o papel do leitor como auditrio receptor dessa argumentao. Existem,
verdade, excelentes estudos6 sobre o escasso e pouco especializado pblico leitor
da poca de Machado de Assis7. Contudo, embora tragam informaes e
proposies importantes, tais pesquisas situam-se no campo conhecido como
esttica da recepo, capitaneado por figuras como Hans Robert Jauus e Wolfgang
Iser. O foco no , portanto, o discurso argumentativo em si.
6 Alfredo Bosi, em texto publicado pela revista eletrnica Machado em linha (ano 2, nmero 4,
dezembro de 2009, pp. 17-32, em http://machadodeassis.net/revista/numero04/rev_num04_artigo02.asp), chama ateno para a obra de Hlio de Seixas Guimares, intitulada O romance machadiano e o pblico de literatura no sculo 19 (publicada pela editora Nankin, em coedio com a Edusp). Segundo Bosi, a nfase dada por Guimares relao escritor-leitor ps em primeiro plano uma dimenso, dialgica, quase diria interativa e virtual, que em geral tinha sido descurada pela crtica machadiana (p. 17, negrito do autor). 7 Luciana Artaud, acadmica da PUC-Rio, cuja dissertao de mestrado trata das estratgias crticas
na fico machadiana, baseia-se em Hlio Guimares para comentar sobre o primeiro recenseamento geral do Imprio (realizado em de 1872 e divulgado em 1876) e seu impacto no cenrio intelectual e literrio do pas. A impressionante taxa de analfabetismo, que ento chegava a 84%, gerou entre os intelectuais, uma ampla discusso acerca do papel do escritor em uma nao que no sabia ler e das possibilidades comunicativas da produo literria onde as instituies existiam, mas por e para 30% dos cidados (ARTAUD, 206, p. 15). Machado de Assis, que at a publicao de Memrias pstumas de Brs Cubas acreditava na existncia de um grande pblico leitor em potencial, apenas temporariamente indiferente ao universo das letras, passou a duvidar de qualquer utilidade mais ampla da modernidade. Era um grande golpe contra seu projeto literrio. Nas palavras de Artaud, tendo sofrido seu maior impacto, a ideia romntica de construo nacional tornou-se insustentvel aos olhos machadianos. [...] O romance, tendo sido um objeto surgido em pases que viviam intensos processos de urbanizao e alfabetizao, nasceu como uma forma literria dirigida para o pblico burgus, condio da sua existncia, sobrevivncia e tambm o seu fim. Portanto, como poderia sobreviver em um pas predominantemente rural e analfabeto? A soluo machadiana , no mnimo, original: sua fico buscou dialogar com a restrita elite brasileira, retratando o que percebia como suas vivncias, modos e conflitos, de maneira a causar, sem jamais perder de vista seu padro esttico, o mal-estar necessrio para a reflexo de suas idiossincrasias. Isto , embora Machado tenha permanecido com a constante sensao de queda no vazio em funo da carncia de pblico e de opinio consistente, insistiu em abordar os temas relativos nossa sociedade fundada em poderosos procedimentos de excluso, por acreditar firmemente que a produo literria, por resistir ao tempo, deve justamente refletir sobre as questes de seu tempo. [O autor] passou ento a adotar como marca radical a postura antidogmtica e de desmistificao da produo literria. Em verdade, a partir de Memrias pstumas estar sempre questionando se ou no romance aquilo que est a escrever. (idem, pp. 16-17).
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Perguntamos-nos mais acima como justificar a certeza com que Santiago
conclui sua narrativa se no h provas concretas que sustentem seus argumentos. A
maior prova da traio de Capitu parece estar em uma suposta semelhana de
Ezequiel, seu nico filho, com Escobar, mas o prprio narrador apresenta suficientes
argumentos para que se coloque em dvida, se no em total descrdito, a
razoabilidade de tal constatao. Sem essa prova, que daria base a uma
argumentao lgica, como esperaria Bento Santiago criar alguma convico em
seu leitor? Ao mesmo tempo, se voltarmos nossa ateno para o efeito catrtico que
a narrativa parece ter exercido sobre o prprio narrador, surge a necessidade de
questionar para quem, de fato, o livro foi escrito.
Encontramos instrumentos para abordar tais questes no Tratado da
argumentao de Cham Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, por meio do qual
exploraremos aspectos gerais da nova retrica perelmeniana e, mais detidamente, a
teoria da audincia. Essa teoria, considerada uma das maiores contribuies de
Perelman em seu projeto de revitalizao do estudo das tcnicas de argumentao,
discute as condies necessrias para que a argumentao ocorra e, como o prprio
nome sugere, estuda os diferentes auditrios aos quais ela pode ser dirigida.
Ao saber-se mais sobre a quem, de fato, Bento Santiago procurou convencer
ao longo de suas pginas, possvel refletir sobre o porqu dessa catarse, tpica de
quem chega a uma concluso satisfatria aps uma longa e excruciante deliberao
ntima. Paralelamente, lanam-se luzes diferentes sobre o antigo debate a respeito
da traio de Capitu, que permanece mesmo em face de um narrador que afirma
expressamente sua crena na culpa da mulher.
1.3. Objetivos
1.3.1. Objetivo geral
Este trabalho tem por objetivo geral identificar os auditrios aos quais dirige
sua argumentao o narrador-personagem Bento Santiago, cuja alcunha d ttulo ao
romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Tomaremos por base os
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pressupostos tericos concebidos por Cham Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca no
Tratado da argumentao, de 1958, concentrando-nos na chamada teoria da
audincia.
Tendo em vista o escopo de nossa pesquisa, no ultrapassaremos
comentrios breves e pontuais sobre recepo crtica, desdobramentos filosficos e
diferentes correntes de pensamento que se formaram a partir da teoria desenvolvida
e defendida por Cham Perelman ao longo de quase quatro dcadas. Afinal, suas
ideias foram to veementemente encampadas quando confrontadas, e mesmo entre
seus seguidores surgiram interpretaes opostas de um mesmo aspecto, mormente
relacionadas ao conceito de auditrio universal.
1.3.2. Objetivos especficos
objetivo especfico deste trabalho entender a quem Santiago dirige seus
argumentos e, a partir dessa percepo, refletir sobre os efeitos que tais auditrios
parecem ter sobre o prprio personagem, que se demonstra convencido do sucesso
da prpria argumentao, apesar das falhas e lacunas intencionais e no
intencionais em sua construo.
Em que pese o supramencionado diagnstico provvel de cime delirante,
com seu grau elevado de desconexo da realidade e tendncia construo de
certezas onde h apenas indcios ou impresses deslocadas, a argumentao do
jurista Bento Santiago no se pauta exclusivamente por impulsos inconscientes, nem
se reveste de qualquer inocncia. Escrevendo em primeira pessoa, a todo o tempo o
narrador solicita aos leitores por ele idealizados auditrios em funo dos quais
constri sua argumentao que lhe preencham as lacunas narrativas e
argumentativas, efetivamente tornando-os coautores, parceiros, cmplices.
Enquanto apresenta suas justificaes para tudo o que alega ter pensado,
sentido e feito, Santiago tambm cuida de proteger sua argumentao contra
possveis crticas, valendo-se, alm desse processo de cooptao, da ridicularizao
de leitores que possam vir a se opor aos seus pensamentos e atitudes. Conforme
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procuraremos demonstrar, tais procedimentos encontram explicao na teoria
perelmeniana, que estuda, entre muitos outros aspectos, como o orador se adapta a
auditrios heterogneos, e como a defesa prvia de argumentos se enquadra no
processo caracterizado como deliberao ntima, no qual o eu o prprio auditrio
da argumentao.
1.4. Metodologia
Em face da teoria que nos serve como base, optamos por um vis qualitativo
para nossa pesquisa. Selecionamos todas as passagens da narrativa machadiana
em que detectamos o narrador em momentos de interao com os auditrios por ele
construdos seja com os diferentes leitores idealizados, seja consigo mesmo, em
deliberao ntima.
Desse corpus, apresentado em sua totalidade nas tabelas disponveis no
Anexo I deste trabalho, selecionamos alguns dos trechos que consideramos mais
significativos, esperando detectar correspondncias diretas com a teoria
perelmeniana, alm de eventuais traos discursivos e gramaticais distintivos. Assim,
ao buscar por padres gerais em uma srie de exemplos particulares, nossa
metodologia se demonstra marcadamente indutiva.
Em que pese o foco na teoria da audincia, o fato de adotarmos como objeto
de estudo a obra mais emblemtica do autor mais estudado de toda a histria da
literatura brasileira, faz com que diferentes aspectos de sua bibliografia crtica
inevitavelmente integrem e fundamentem nossa anlise. No buscaremos aqui,
porm, refazer em detalhes o longo percurso crtico percorrido em mais de um
sculo de esforos interpretativos acumulados, e que resultaram em uma bibliografia
incrivelmente vasta e diversificada, em constante desenvolvimento.
Ao contrrio dos estudos sobre Cham Perelman, ainda relativamente restritos
no cenrio acadmico nacional, anlises e discusses sobre Machado de Assis e
sua obra, sob os mais diferentes pontos de vistas, abordagens e nveis de
profundidade, so hoje de fcil acesso a quaisquer interessados. Assim, autores,
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estudos e referenciais tericos relevantes para a discusso por ns proposta sero
apresentados oportunamente.
O trabalho est dividido em quatro partes principais, incluindo esta
Introduo, correspondente ao Captulo 1. No Captulo 2, empreenderemos uma
explorao dos pontos principais da teoria da audincia, conforme apresentada no
Tratado da argumentao, de forma a construir uma fundamentao consistente o
bastante para reconhecer elementos que elucidem as dissonncias que percebemos
no discurso de Bento Santiago.
No Captulo 3, utilizaremos essa teoria para analisar trechos selecionados de
Dom Casmurro, em busca de correspondncias com os pressupostos perelmenianos
e tambm de padres que sustentem nossas prprias proposies. Os traos
comuns entre tais trechos foram agrupados em categorias, de acordo com sua
funo argumentativa ou auditrios percebidos. Em cada categoria, um trecho
representativo ser analisado em maior detalhe, ficando assim facilitada o
reconhecimento de traos equivalentes em outros trechos da mesma natureza.
Por fim, no Captulo 4, apresentaremos nossas consideraes finais,
buscando reunir e resumir os aspectos estudados e aplic-los a nossa leitura do
texto machadiano. Alm das proposies expostas at o momento, esperamos
adicionalmente explicar por que a anlise perelmeniana do discurso argumentativo
em Dom Casmurro consideravelmente mais promissora do que tradicionais
abordagens cartesianas, que podem prender o leitor em uma armadilha sem sada,
qual seja, a nosso ver, a busca por uma resposta definitiva para o eterno debate a
respeito da traio supostamente sofrida pelo narrador.
Antes, porm, nas subsees seguintes, contextualizaremos brevemente o
Tratado da argumentao, procurando situ-lo histrica e epistemologicamente, para
ento apresentar algumas consideraes sobre a corrente de pensamento
conhecida como nova retrica, com destaque para o ponto de vista perelmeniano.
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1.5. Cham Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca e o Tratado da argumentao
Originalmente publicado em 1958, mas em desenvolvimento desde 19478, o
Tratado da argumentao tornou-se um texto-chave para a filosofia contempornea
ao pr em xeque o vis cartesiano que vinha dominando o pensamento ocidental
desde o sculo XVII.
Pioneiro em um campo de estudos que se tornou conhecido pelo subttulo do
livro9, qual seja, a nova retrica, o tratado uniu o judeu naturalizado belga Cham
Perelman, autor j com slida carreira acadmica e que defendia o positivismo
lgico (tambm chamado de neopositivismo) desde 192910, at que, na esteira da
Segunda Guerra Mundial, viu-se incapaz de encontrar em tal posicionamento
explicao para os horrores que presenciou, licenciada em cincias sociais11 Lucie
Olbrechts-Tyteca, esposa do chefe do departamento de estatstica da Universidade
Livre de Bruxelas e com quem Fela Perelman, esposa de Cham, j havia trabalhado
8 H controvrsias quanto data exata em que o trabalho comeou de fato a ser desenvolvido.
Contudo, tomamos por base nesta apresentao a data utilizada pelo catedrtico americano David Frank, da Universidade de Oregon, em artigo coescrito com Michelle Bolduc, da Universidade de Wisconsin-Milwaukee. Segundo estes autores (2010a, p. 141), Perelman e Olbrechts-Tyteca desenvolveram trabalhos relativos nova retrica, em colaborao ou individualmente, entre 1947 e 1984, ano da morte de Perelman. 9 Em francs, Trait de largumentation: la nouvelle rhtorique.
10 Em sua excelente dissertao sobre a nova retrica de Cham Perelman, o acadmico Marco A. S.
Alves, da Universidade Federal de Minas Gerais, procura suprir o pouco conhecimento que o pblico brasileiro em geral possui sobre filsofo belga por meio de uma biografia que, embora resumida, bastante completa e suficiente para nossos propsitos. Alguns de seus aspectos sero retomados em nosso texto por meio dos artigos de David Frank. No texto de Alves (2005, p. 1), l-se que Cham Perelman (1912-1984) nasceu em Varsvia e transferiu-se para Bruxelas em 1925, naturalizando-se belga. Em seus primeiros passos intelectuais, Perelman recebeu uma slida formao jurdica escrevendo uma tese de doutoramento em direito, concluda em 1934 e tambm em lgica formal ocorrida no decorrer da dcada de 30 sob a influncia do neopositivismo, defendendo uma tese de doutoramento em 1938, sobre o lgico alemo Gottlob Frege. Na dcada de 30, voltou Polnia para estudar na famosa Escola Polonesa de Lgica, Matemtica e Filosofia Positivista, onde foi aluno de Kotarbinski e Lukasiewicz. Com o advento da Segunda Guerra, toda essa formao logicista acabou se voltando contra ela mesma. Perelman, de origem judaica, no concordou em entregar o discurso sobre os valores ao arbtrio que seria a consequncia natural de uma posio neopositivista e se interessou pela possibilidade de uma lgica dos juzos de valor, com o fim de subtrair este mbito do domnio do irracional. A partir de 1948 e durante dez anos de pesquisas em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca, estudiosa de cincias econmicas e sociais, Perelman abandonou seu estudo anterior de uma lgica especfica dos juzos de valor concluindo pela sua inexistncia e se voltou para as tcnicas de argumentao e persuaso estudadas pelos antigos e, em particular, por Aristteles. O resultado desta nova reflexo esto, sobretudo, em Rhtorique et Philosophie, de 1952, e no Trait de lArgumentation, de 1958. Alm do desenvolvimento da Nova Retrica, Perelman aprofundou seus estudos em algumas repercusses que a teoria da argumentao trazia para a filosofia, o direito, a moral e a justia. Seus escritos possuem natureza fragmentria com exceo do Trait de lArgumentation e esto espalhados em uma grande quantidade de artigos. 11
Segundo Frank e Bolduc (2010a, p. 146), o ttulo equivale ao grau de mestre nos Estados Unidos.
19
durante a guerra, contra a ocupao nazista: Olbrechts-Tyteca era secretria-geral
da diviso de Brabante da Liga Belga contra a Tuberculose, e usava sua posio
para manter arquivos secretos sobre os judeus belgas que se ocultavam para
escapar da perseguio alem.
Filsofo de renome internacional, Perelman escreveu, entre 1931 e 1947,
sobre uma vasta gama de assuntos, incluindo paradoxos, contradies, axiologia,
julgamento, conhecimento, definies, metodologia, liberdade, democracia, escolha
e justia. O pensador produziu tambm, nesse perodo, textos sobre Nietzsche,
Duprel, Russel e Frege, alm de artigos sobre a questo judaica na Europa. Em
seu primeiro livro, La justice, escrito durante a guerra (concludo em agosto de
1944), ele explorou o papel da razo nos juzos de valor a partir de uma tica
neopositivista. Sua insatisfao com as concluses a que chegou o levou a buscar,
como alternativa, um sistema de raciocnio no formal, compatvel com o conceito de
valores e adaptado a um mundo abundante em ambiguidades e informaes
incompletas. Por um curto perodo Perelman ainda buscou respostas com um vis
neopositivista, ao utilizar mtodos de cunho emprico, preconizados pelo lgico e
matemtico alemo Frege em sua explorao dos juzos de valor, encontrando
diferentes limitaes em tal caminho terico. Logo aps Olbrechts-Tyteca juntar-se
ao projeto, em 1947, deu-se a guinada em direo retrica, por meio da qual os
autores esperavam encontrar uma concepo de razo que pudesse explicar
adequadamente os juzos de valor e as aes humanas (FRANK; BOLDUC, 2010a,
pp. 144-145).
Dada a grande diferena entre a bagagem acadmica dos dois autores,
bastante discutida a extenso da participao de Lucie Olbrechts-Tyteca no trabalho
colaborativo. Aps os dez anos que culminaram com a publicao do Tratado, ela e
Perelman somente voltaram a publicar em colaborao em 1983, um ano antes da
morte do filsofo que passou toda a segunda metade de sua vida consolidando e
expandido as bases da nova retrica. Couberam a Perelman os esforos de
superviso das tradues do Tratado para o italiano e o ingls, e foram intensas
suas atividades relacionadas ao projeto nos anos 1960 e 1970, perodo em que foi
convidado por universidades na Europa, Unio Sovitica e Estados Unidos para
lecionar sobre nova retrica e outros assuntos. Olbrechts-Tyteca no buscou os
20
holofotes, nem voltou a escrever, individualmente, sobre os assuntos que
desenvolveu em conjunto com Perelman. Depois do Tratado, ocupou-se com
literatura, estatstica e pesquisa sobre tuberculose (idem, pp. 145-146).
H evidncias de que Perelman tenha sido responsvel pela definio dos
rumos do projeto e de que sua participao terica tenha sido de muito maior peso.
So fortes, por exemplo, os paralelos entre conceitos-chave da nova retrica
conforme apresentados no Tratado e aspectos da filosofia judaica que sempre
estiveram presentes em seu sistema de pensamento12. Em contrapartida,
provavelmente partiram da autora importantes anlises sobre a estrutura dos
argumentos e os exemplos necessrios, sobretudo literrios, para dar lastro s
proposies de cunho mais abstrato. Tanto ele quanto Olbrechts-Tyteca creditam a
um quase acaso a guinada rumo retrica, revelao ocorrida aps a leitura de
uma sequncia de autores e citaes que os levaram a Aristteles e tradio
retrica grega (ibidem, p. 148).
Pode-se argumentar que havia um Tratado concebido por Perelman, outro por
Olbrechts-Tyteca e um terceiro materializado a partir da colaborao entre ambos13.
No meio acadmico, porm, bastante comum que Cham Perelman seja citado
isoladamente em discusses sobre o Tratado da argumentao, o que fica evidente
pelo uso generalizado do adjetivo perelmeniano. Incorremos em tal prtica durante
a apresentao a seguir, mas a recuperao nominal da participao da autora se
d logo mais frente, durante a discusso sobre o papel dos auditrios na literatura.
12
David Frank nota que, assim como na tradio judaica, na nova retrica prioriza-se a comunidade dos espritos, e um auditrio humano, e no D-us, a lgica formal ou o indivduo quem julga os mritos de um argumento (1997, p. 320, traduo nossa). Em outra passagem, Frank advoga que o estudo da argumentao em uma era ps-iluminista deve necessariamente ser incrementado pelo sistema dialtico de influncia judaica apresentado na nova retrica. Segundo ele, existem sistemas de lgica e inferncia no formais e que permitem o julgamento no fundamentado [em evidncias]. O sistema de raciocnio Kal Ve-Chomer desenvolve uma lgica no formal pautada pelo domnio da justia e pela dissociao de conceitos, evitando a compulso pelo silogismo e a produo de julgamentos que envolvem princpios gerais inescapavelmente atados a fatos concretos. Tal lgica realiza os objetivos da nova retrica ao proporcionar s comunidades sistemas no violentos para solucionar conflitos baseados em valores (1997, p. 328, traduo nossa). 13
Cabe registrar aqui a resposta de Perelman ao primeiro acadmico a escrever uma dissertao sobre a nova retrica, em 1969 ao ser questionado sobre a participao de sua colega na composio do Tratado. Utilizando o tratamento formal caracterstico do relacionamento entre os coautores, o belga afirmou: a Sra. Olbrechts-Tyteca, que no filsofa, mas estudou sociologia e literatura, escreveu o Tratado em colaborao comigo, tendo sido a maioria das sees reescritas por ambos (FRANK; BOLDUC, 2010, p. 149).
21
1.5.1. Distines entre a retrica clssica e a nova retrica
A segunda metade do sculo XX viu surgir uma gama de autores que podem
ser agrupados sob a chancela de uma nova retrica. Segundo as professoras e
pesquisadoras americanas Lisa Ede e Andrea Lunsford, alm de Cham Perelman,
nomes como Richard Weaver, Richard McKeon, Kenneth Burke, Albert Duhamel e
Edward P. J. Corbett caracterizam-se pela tentativa de recuperar e reexaminar os
conceitos da retrica clssica e ao mesmo tempo definir-se em oposio a esses
conceitos (1982, p. 2, traduo nossa).
Essa oposio, segundo as autoras, se d por meio de quatro distines
persistentemente estabelecidas entre a nova e a clssica retrica, resumidas em
um quadro que traduzimos e apresentamos abaixo:
Quadro 1:
Principais distines tipicamente estabelecidas entre a clssica e a nova retrica
Retrica clssica Nova retrica
1. O homem um animal racional que vive em uma sociedade marcada pela coeso social e por valores compartilhados.
1. O homem um animal que faz uso de smbolos e vive em uma sociedade fragmentria.
2. nfase na prova lgica ou racional. 2. nfase nas provas de cunho emocional ou psicolgico.
3. Relacionamento antagnico entre orador e auditrio, caracterizado por uma comunicao unidirecional e manipulativa.
3. Relacionamento cooperativo entre orador e auditrio, caracterizado por uma comunicao bidirecional e emptica.
4. Persuaso como objetivo. 4. Comunicao como objetivo.
Fonte: Ede e Lunsford (1982, p. 6).
Para elas, a percepo dos defensores da nova retrica com relao
clssica se baseia em uma contradio fundamental os dois primeiros itens
caracterizam a retrica tradicional como racional demais, enquanto os dois ltimos
a acusam de depender demais da manipulao emocional e da coao e em uma
falha na compreenso da abrangncia do sistema filosfico aristotlico.
22
Apoiando-se nos estudos de William Grimaldi14, entre outros, as autoras
procuram demonstrar que no h na retrica de Aristteles uma oposio estanque
entre aspectos racionais e emocionais. O objetivo ltimo da retrica de acordo com
indicaes claras de Aristteles, segundo elas levar krisis (julgamento),
uma atividade prtica do intelecto, impulsionada, portanto, pela ao do logos e do pathos em relao de complementaridade. Como resultado, o estado de esprito ideal somente pode ser compreendido como uma referncia ao estado emocional que, quando unido razo no processo de julgamento ou deciso, torna possveis escolhas inteligentes e responsveis (JOHNSTONE apud EDE; LUNSFORD, 1982, p. 9, traduo nossa).
Com Grimaldi, as autoras observam que, por trs das interpretaes
equivocadas do sistema aristotlico est justamente a (falsa) percepo de que os
pisteis (ethos, pathos e logos) esto relacionados a trs modos independentes de
demonstrao retrica os dois primeiros, s argumentaes no lgicas (ou quase
lgicas) e o ltimo, ao entimema, a forma silogstica prpria da retrica. Ao serem
vistos como elementos discursivos isolados, que podem ser aplicados
separadamente, ethos, pathos e logos podem, por suas caractersticas, reforar o
vis racionalista ou emocional-coercivo conforme as preferncias de diferentes
autores.
A soluo estaria na compreenso de que os trs pisteis correspondem a elos
indissociveis unindo as pessoas engajadas em uma atividade discursiva. Afinal,
como sugerem as autoras, uma forma mais apropriada de descrever os objetivos da
retrica de Aristteles seria como uma forma interativa de descobrir significados por
meio da linguagem (EDE; LUNSFORD, 1982, p. 14, traduo nossa).
1.5.2. A nova retrica perelmeniana
A oposio entre os modelos clssico e novo de retrica menos direta no
caso do projeto filosfico perelmeniano. Desde as primeiras linhas do Tratado, o
autor deixa claro que a ruptura que pretende com a concepo cartesiana de
razo e raciocnio, que, segundo ele, tornou-se caracterstica marcante da filosofia
14
Professor emrito da Universidade Fordham, em Nova York, EUA.
23
ocidental desde o sculo XVII. Situando a argumentao no campo do verossmil,
do plausvel, do provvel, Perelman critica Descartes justamente por considerar
quase como falso tudo quanto era apenas verossmil (DESCARTES apud
PERELMAN, 2005, p. 1).
O sistema de pensamento cartesiano, segundo Perelman, impe a evidncia
como marca da razo. Evidncia, em suas palavras, ao mesmo tempo, como a
fora qual toda mente normal tem que ceder e como sinal de verdade daquilo que
se impe por ser evidente (TA15, p. 4). Citando Pascal, o belga afirma que, em tal
sistema, toda prova mera reduo evidncia, enquanto o que evidente
simplesmente no requer prova. Tal concepo fez com que, por mais de trs
sculos, os lgicos e tericos do conhecimento deixassem de lado o estudo da
argumentao como forma de se obter a adeso a uma tese, j que [a] prpria
natureza da deliberao e da argumentao se ope necessidade e evidncia,
pois no se delibera quando a soluo necessria e no se argumenta contra a
evidncia (TA, p. 1).
Para o belga, o lgico, inspirado no ideal cartesiano, s se sente vontade
no estudo das provas que Aristteles qualificava de analticas, pois todos os outros
meios no apresentam o mesmo carter de necessidade (TA, p. 2). Perelman
percebe limitaes ideia de razo mesmo em pensadores como Pascal, Bergson e
Kant, ao afirmar que a concepo ps-cartesiana nos obriga a fazer intervir
elementos irracionais16, cada vez que o objeto de conhecimento no evidente (TA,
p. 3).
Conforme apresentado mais acima, um dos motivos por trs dessa ruptura
com o positivismo lgico foi a incapacidade de explicar, por tal vis, os juzos de
valor e aes capazes de levar violncia sistmica e sistemtica17 que a Europa
15
Para simplificar as referncias ao Tratado da argumentao e privilegiar a clareza e fluidez da leitura, utilizaremos esta forma abreviada a partir deste ponto da apresentao. 16
Perelman classifica tais elementos em duas categorias: obstculos a serem superados (imaginao, paixo, sugesto etc.) e fontes suprarracionais de certeza (corao, graa, intuio etc.). 17
Esta expresso surge na citao de Crosswhite no texto de David Frank (1997, p. 311, traduo nossa): Os estudiosos da retrica ainda no perceberam a importncia do projeto perelmeniano como uma resposta filosfica a uma Europa ps-moderna, talhada pela violncia sistmica (e sistemtica) e pela fragmentao irrestrita... (Crosswhite, Audience 137).
24
vivenciou durante a Segunda Guerra. David Frank (2007, p. 313) postula que a
opo de Perelman pela revitalizao da retrica e da argumentao dialtica em
substituio necessidade de evidncia racional coerciva pode ter origem, tambm,
no duplo trauma (da perda e da ausncia) resultante do Holocausto belga, em que
pereceram 44% dos judeus daquele pas, muitos deles seus familiares. Tal
perspectiva poderia ser ilustrada pela pungente pergunta do filsofo na introduo
ao Tratado: onde nem a experincia, nem a deduo lgica podem fornecer-nos a
soluo de um problema, s nos resta abandonarmo-nos s foras irracionais, aos
nossos instintos, sugesto ou violncia? (TA, p. 3). Segundo Frank,
Perelman buscou elaborar [seus] traumas ao reformular conjuntamente os conceitos de razo e retrica, movendo ambos diretamente para a esfera dos juzos de valor e da ao. Ao faz-lo, Perelman conectou o raciocnio retrico ao princpio da responsabilidade [...] e identificou uma expresso de razo, de lgica argumentativa, no mundo da experincia, no plano da ao, no reino do pathos. (FRANK, 2007, p. 322, traduo nossa.)
Frank nos lembra, ainda, que o pensamento perelmeniano fortemente
influenciado pelo judasmo18, pelo Talmude e pela noo de Tsedek, que o
conceito judaico de justia (1997, p. 312). Faz parte desse conceito uma definio
de razo que contemple a totalidade das faculdades humanas, incluindo empatia,
emoo e razoabilidade. Para Descartes, quando duas pessoas chegam a respostas
diferentes para um mesmo problema, uma delas est necessariamente errada.
Perelman, por sua vez, sustenta que, se duas pessoas discordam, ambas podem ter
razo segundo seus prprios pontos de vista. No Talmude, respostas diferentes para
a mesma questo podem coexistir, uma vez que a verdade indeterminada e
pontos de vista alternativos podem abranger diferentes aspectos da verdade
(KRAEMER apud FRANK, 1997, p. 315, traduo nossa).
Mesmo no papel central dado aos auditrios na nova retrica perelmeniana
podem ser reconhecidos traos da tradio talmdica. Alinham-se aos princpios
ilustrados pela narrativa talmdica intitulada O forno de Akhnai, citada por Perelman
18
Perelman foi, afinal, fundador e lder da ala judaica do movimento belga de resistncia ocupao nazista (poca em que sua esposa, como j dissemos, trabalhou com Olbrechts-Tyteca em prol dos judeus que ocultavam dos invasores). Mais tarde, em 1958, ano de publicao do Tratado, foi um dos cinquenta intelectuais convidados por Ben Gurion, primeiro-ministro israelense, para ajud-lo (e ao Estado de Israel) a definir o prprio conceito de judasmo (FRANK, 2007, p. 145).
25
em um de seus escritos19, a ideia de que todo discurso, independentemente de sua
fonte, deve ser analisado pela razo humana, e de que os poderes finais de
julgamento e soluo de conflitos esto investidos na maioria, na comunidade em
forma de auditrio, em detrimento do divino ou do indivduo. Assim como outros
pensadores judaicos, Perelman identifica no discurso, na linguagem, e na retrica
uma forma de humanizar o outro e resolver conflitos de valores de forma no
violenta, respeitando e preservando a liberdade de ambas as partes e
proporcionando comunidade uma forma de organizar hierarquias consensuais de
valor (FRANK, 1997, p. 316-318).
Percebe-se portanto que, por sua formao, Perelman se encontrava
especialmente predisposto a lidar com formas aparentemente antagnicas de
demonstrao. Ainda em sua introduo ao Tratado, ele alude explicitamente
coexistncia entre os princpios racionais e subjetivos do sistema aristotlico,
lembrando que o grego analisara as provas dialticas ao lado das provas analticas,
as que se referem ao verossmil ao lado das que so necessrias, as que so
empregadas na deliberao e na argumentao ao lado das que so utilizadas na
demonstrao (TA, p. 3).
Assim, embora exista na nova retrica perelmeniana um aspecto de oposio
ao racionalismo, trata-se de uma refutao aos limites do racionalismo cartesiano, e
no de uma m interpretao do sistema de pensamento aristotlico, limitao
encontrada por Ede e Lunsford em outras correntes da nova retrica por elas
estudadas. Em grande parte, pode-se dizer que Perelman est alinhado s
sugestes de Ede e Lunsford, as quais
veem a Retrica de Aristteles como um trabalho que une orador e auditrio, linguagem e ao, teoria e prtica [...] Se for para a retrica atingir a totalidade de seu potencial [...] como prisma conceitual para disciplinas h muito separadas e como forma de instruo e conduta na leitura, escrita e oratria, ser necessrio que nos definamos em consonncia com o modelo clssico de retrica, e no em oposio a ele. (EDE; LUNSFORD, 1982, p. 22, traduo nossa.)
19
Segundo Frank (1997, p. 313), trata-se do artigo Juridical Ontology and Sources of Law, publicado por Perelman em 1983.
26
E estando assim contextualizados o Tratado da argumentao e a nova
retrica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, dedicaremos o captulo seguinte a um
estudo mais detalhado da teoria da audincia, elemento central da fundamentao
de nossa pesquisa.
27
CAPTULO DOIS: FUNDAMENTAO TERICA
O grande orador, aquele que tem ascendncia sobre outrem, parece animado pelo prprio esprito de seu auditrio. [...] , de fato, ao auditrio que cabe o papel principal para determinar a qualidade da argumentao e o comportamento dos oradores.
(PERELMAN, 2005, p. 27)
28
2. FUNDAMENTAO TERICA
O presente trabalho tem por objetivo analisar os auditrios para os quais
escreve Bento Santiago, narrador-personagem de Dom Casmurro, segundo a
perspectiva oferecida pelos estudos de Cham Perelman (1912-1984) e Lucie
Olbrechts-Tyteca (1899-1987) em seu Tratado da argumentao. Importa-nos,
sobretudo, entender a quem Santiago dirige seus argumentos e, a partir dessa
percepo, refletir sobre os efeitos que esses auditrios parecem ter sobre a
estrutura narrativa do romance e sobre o prprio personagem, que se demonstra
convencido do sucesso da prpria argumentao, apesar das falhas e lacunas
intencionais e no intencionais em sua construo.
Para tanto, utilizaremos como instrumento principal a teoria da audincia,
como so conhecidas as consideraes de Perelman e Olbrechts-Tyteca sobre a
natureza e caractersticas dos auditrios e sua influncia sobre a argumentao. Os
conceitos bsicos e relevantes para o entendimento da teoria da audincia sero
apresentados conforme depreendidos de uma leitura direta do Tratado. Os demais
conceitos e pontos de interesse referentes interpretao literria de nosso objeto
de estudo sero aduzidos oportunamente, durante os captulos voltados anlise e
discusso.
Nas subsees seguintes, traremos uma apresentao detalhada sobre teoria
da audincia conforme fundamentada ao longo da primeira parte do Tratado,
dedicada aos mbitos da argumentao.
Encerrando este captulo, sero oferecidas consideraes adicionais sobre as
aproximaes entre a teoria da audincia e a literatura, como forma de introduo
discusso subsequente.
29
2.1. A teoria da audincia
O objetivo de toda argumentao, segundo Perelman, provocar ou
aumentar a adeso dos espritos s teses que se apresentam a seu assentimento
(TA, p. 50). Consequentemente, sua teoria da argumentao tem por objeto de
estudo as tcnicas discursivas por meio das quais essa adeso pode ser atingida.
Como vimos acima, o pensador belga no se coloca em oposio direta aos
princpios da retrica clssica, mas tambm no se deixa limitar por eles: aproxima-
se igualmente da dialtica conforme definida por Aristteles ou seja, a arte de
raciocinar segundo opinies geralmente aceitas (TA, p. 5) e recupera a noo de
que a adeso dos espritos s teses ocorre com intensidade varivel. Para ele, uma
argumentao eficaz aquela que aumenta essa intensidade at o ponto em que os
ouvintes realizem, ou ao menos se mostrem dispostos a realizar em momento
oportuno, a ao (ou absteno) pretendida pelo orador.
A aproximao mais pronunciada com a retrica vem de sua percepo de
que
essa ideia de adeso e de espritos aos quais se dirige um discurso essencial em todas as teorias antigas da retrica. Nossa aproximao dessa ltima visa a enfatizar o fato de que em funo de um auditrio que qualquer argumentao se desenvolve. [...] a meta da arte oratria a adeso dos espritos igual de qualquer argumentao. (TA, p. 6, grifos do autor.)
Naturalmente, Perelman no restringe sua nova retrica arte de falar em
pblico de modo persuasivo. Na verdade, ele expressamente deixa de lado o
estudo da elocuo e da ao oratria para preocupar-se com a estrutura da
argumentao, encampando o discurso oral, mas concentrando-se sobretudo na
anlise da argumentao escrita, conforme depreendida dos mais variados tipos de
texto.
Tal mudana de foco demanda um estudo detalhado da natureza dos
diferentes auditrios, j que diretamente em funo destes que todo discurso
concebido. Importa saber como so constitudos, quais prticas, valores e crenas
30
representam ou compartilham e, principalmente, como o orador os concebe em seu
discurso, j que, mudando-se o auditrio, a argumentao necessariamente muda
tambm de aspecto.
Richard Long, da Universidade da Carolina do Norte, apresenta um
interessante resumo sobre a relao discursiva entre orador e auditrio na viso
perelmeniana:
Perelman acredita que o orador cria linguisticamente uma presena qual o auditrio adere. Para tanto, o orador primeiro analisa como o auditrio pensa e age, e ento procura recriar estilisticamente a informao resultante. A adeso ocorre porque a conscincia do auditrio preenchida pela prpria essncia dessa presena discursiva. O orador entra em comunho com o auditrio e, como resultado das tcnicas argumentativas, eles agem em conjunto. (LONG, 1983, p. 107, traduo nossa.)
Por sua centralidade para o projeto filosfico de Cham Perelman, e tendo tambm
em vista os propsitos do presente trabalho, dedicaremos as subsees a seguir a
uma apresentao detalhada da teoria da audincia conforme depreendida da leitura
direta do Tratado da argumentao.
Sabemos que se encontram nesse aspecto da teoria da argumentao alguns
dos maiores focos de disputas entre seguidores e detratores20 da nova retrica
perelmeniana. Charlotte Jrgensen, da Universidade de Copenhague, diz, com
relao s divergncias entre Alan G. Gross e James Crosswhite sobre o conceito
de auditrio universal, ser espantoso como dois acadmicos e intrpretes
proeminentes de Perelman possam ler a mesma teoria e chegar a vises to
vastamente distintas21 acerca da sua aplicao (JRGENSEN, 2012, p. 134). As
20
H muitas outras crticas para alm da questo dos auditrios. Frank (1997, p. 311) menciona crticos que consideram o sistema de pensamento perelmeniano relativista, idealista e elitista, entre outros adjetivos. Entre os citados, esto van Eemeren e Grootendorst, que reduzem o Tratado a uma taxionomia da argumentao; John Ray, que acusa Perelman de ter-se apropriado da filosofia kantiana para expandir os limites da teoria da retrica com elementos do neopositivismo e do idealismo crtico; e mesmo Lisa Ede, para quem Perelman reluta em abandonar de fato o racionalismo tradicional. 21
Jrgensen discute sobre possveis inconsistncias entre os conceitos de auditrio universal e de valores na teoria perelmeniana: se o auditrio universal lida exclusivamente com valores abstratos (no especificados, como justia, em oposio a valores concretos como Frana), isso significa sua inaplicabilidade ao discurso poltico? A partir desta pergunta, Jrgensen compara o posicionamento de Gross para quem discursos que visam ao auditrio universal enfocam o real; aqueles que se dirigem a auditrios particulares focalizam o prefervel (GROSS; DEARIN apud JRGENSEN, 2012, p. 136, grifos da autora) com o de Crosswhite, para quem a universalidade deve
31
ideias e os aspectos abordados por cada um, embora sustentados por certas
passagens dos escritos de Perelman, tornam-se problemticas quando confrontadas
com passagens diferentes sobre o mesmo assunto.
A forma elptica com a qual Perelman se expressa tambm alvo de crticas.
Embora a preferncia por definies abertas e fluidas esteja em consonncia com a
busca de alternativas lgica formal, inegvel que, ao longo das 652 pginas do
Tratado22, e mais ainda ao longo de quatro dcadas de escritos relacionados, as
oscilaes na caracterizao de determinados conceitos causem algum
estranhamento.
Long (1983, p. 108, traduo nossa), por exemplo, examinando textos
publicados entre 1963 e 1980, entende que Perelman renega o conceito de
auditrio universal mesmo enquanto se esfora por defini-lo: em um contexto, tal
auditrio a totalidade dos seres capazes de raciocinar. Em outro, a encarnao
da razo tradicional. Em um terceiro contexto, corresponde a um auditrio ideal, que
Plato compararia a uma materializao do divino. Por fim, em um quarto contexto,
Perelman diz que o auditrio universal em verdade no existe: trata-se apenas de
uma construo do orador, um ponto de referncia discursivo cujo objetivo
aglutinar argumentos que transcendem os limites do auditrio particular, variando de
pessoa para pessoa e de poca para poca. No surpreende, portanto, que
ancorando-se em um ou em outro contexto, diferentes interpretaes possam levar a
caminhos tericos bastante incongruentes.
De qualquer forma, um apanhado crtico mais aprofundado, e principalmente
que v alm dos estudos e artigos disponveis em lngua inglesa, foge ao escopo de
nossa presente discusso, por mais produtiva que se afigure tal tarefa. Na
ser entendida em graus e est relacionada a uma situao argumentativa particular e o auditrio universal visto como uma espcie de modelo ou paradigma cuja funo assegurar a qualidade da argumentao. Outros pontos de comparao mais diretamente relacionados questo dos valores (e do discurso poltico) so apresentados. Embora a autora tenda a aproximar-se da posio de Crosswhite, para ela permanecem em aberto questes importantes, como por exemplo a forma de determinar criticamente qual o auditrio universal pertinente em uma determinada situao retrica. 22
De acordo com Noemi Mattis-Perelman, filha do filsofo, aps os dez anos de colaborao com Lucie Olbrechts-Tyteca, a verso finalizada do Tratado passava das 2 mil pginas, as quais tiveram que ser reduzidas para as 740 da edio em francs. Talvez seja essa a razo, argumentam Frank e Bolduc (2010b, p. 309) por trs da escrita aparentemente elptica e insuficientemente elaborada em algumas passagens da obra.
32
apresentao subsequente, a nica interferncia crtica externa, como se ver,
acontece no item 2.1.10, que trata da deliberao ntima e da viso perelmeniana
sobre as diferenas entre razo e racionalizao.
2.1.1. A comunidade efetiva dos espritos
No Tratado da argumentao de Cham Perelman, os conceitos de auditrio
e orador ganham seus contornos iniciais logo na primeira parte da obra, dedicada
aos mbitos da argumentao e na qual so apresentados os elementos e
condies prvias para que a argumentao ocorra.
O autor defende que toda argumentao visa adeso dos espritos e, por
isso mesmo, pressupe a existncia de um contato intelectual. Ele parece utilizar as
expresses contato intelectual, comunidade efetiva dos espritos e comunidade
intelectual como sinnimos, a julgar pela sequncia que d sua proposio:
Para que haja argumentao, mister que, num dado momento, realize-se uma comunidade efetiva dos espritos. mister que se esteja de acordo, mister que se esteja de acordo, antes de qualquer coisa e em princpio, sobre a formao dessa comunidade intelectual e, depois, sobre o fato de se debater uma questo determinada. (TA, p. 16)
A formao dessa comunidade, ou a ocorrncia desse contato, para ele,
uma condio prvia para a argumentao mesmo quando esta se d apenas como
processo mental do indivduo, ou seja, no plano da deliberao ntima, em sua
definio. Diz o autor que, em tais situaes, a pessoa deve conceber-se como
dividida em pelo menos dois interlocutores que participam da deliberao, j que
esta parece constituda com base no modelo da deliberao com outrem (TA, p.
16).
interessante observar o uso do termo parece, neste caso. Desde que
estabeleceu a necessidade de um contato intelectual como pressuposto para a
argumentao, Perelman repetidamente mencionou que nada nos autoriza a
considerar tais relaes como evidentes ou necessrios. Uma interpretao possvel
estaria em sua inteno de diferenciar o ato de argumentar, de influenciar, por meio
do discurso, a intensidade da adeso de um auditrio a certas teses da lgica
33
formal, que se preocupa com a demonstrao coerciva de proposies por meio da
manipulao de sistemas axiomticos de acordo com regras pr-determinadas de
deduo. Ao contrrio do que ocorre na argumentao, na lgica formal no h
preocupao com o sentido das expresses, j que os formalistas [d]eixam a
interpretao dos elementos do sistema axiomtico para os que o aplicaro e tero
de se preocupar com sua adequao ao objetivo pretendido (TA, pp. 15-16). Assim,
fica a impresso de que Perelman pretende evitar em sua formulao qualquer
paralelismo com esse aspecto da lgica formal, ao construir, no cerne dos processos
que descreve, espao para diferentes interpretaes.
Voltando anlise das condies prvias para a argumentao, temos que a
prpria comunidade efetiva dos espritos depende, para sua formao, de um
conjunto de condies. A primeira delas, segundo Perelman, parece ser a
existncia de uma linguagem em comum, de uma tcnica que possibilite a
comunicao (TA, p. 17). Contudo, isso no basta, como o autor afirma
enfaticamente antes de apontar para a existncia de regras que estabelecem como
a conversa pode iniciar-se (TA, p. 17). Tais regras seriam um acordo resultante das
prprias normas de nossa vida social em um mundo hierarquizado, ordenado.
Entre elas, encontra-se o desejo de estabelecer contato com o outro.
2.1.2. O relacionamento entre o orador e o auditrio
O autor parece acreditar que nenhum indivduo tem por objetivo real dirigir-se
a todos os seres humanos indistintamente. Para ele,[o] conjunto daqueles aos
quais desejamos dirigir-nos muito varivel (TA, p. 18). Se por um lado existem
seres aos quais no nos preocupamos em dirigir a palavra, por outro o contato,
quando estabelecido, nem sempre relevante, desejvel, ou resulta em qualquer
tipo de deliberao, podendo ser mero efeito de alguma hierarquia estabelecida
(como ocorre, por exemplo, quando algum dita ordens a um subordinado).
a partir desta noo que Perelman apresenta uma importante definio:
para argumentar, preciso ter apreo pela adeso do interlocutor, pelo seu
consentimento, pela sua participao mental" (TA, p. 18). Lembrando que em
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muitas sociedades, no se dirige a palavra a qualquer um, o autor faz notar que ser
considerado um interlocutor digno em um processo deliberativo uma distino
apreciada. Isso se verifica mesmo em contatos aparentemente frvolos ou
irrelevantes, mas que possuem indispensvel efeito de coeso social. Naturalmente,
a contrapartida que ouvir algum mostrar-se disposto a aceitar-lhe
eventualmente o ponto de vista (TA, p. 19).
De qualquer forma, o pensador belga demonstra que tentar persuadir algum
implica sempre certa modstia da parte de quem argumenta. Em outras palavras,
fica subentendido que o persuasor
no dispe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutvel e [obtenha] imediatamente a convico. Ele admite que deve persuadir, pensar nos argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocupar-se com ele, interessar-se por seu estado de esprito. (TA, p. 18)
Para evitar uma imagem de arrogncia, de antipatia, importante assinalar
discursivamente o valor dado apreciao por parte do outro das ideias ou teses
apresentadas. Por outro lado, h sempre o risco de que as caractersticas desse
outro interfiram na qualidade da argumentao desenvolvida. Perelman busca
Aristteles para lembrar que, no debate com certos tipos de pessoa, os raciocnios
sempre se envenenam, principalmente quando se trata de um adversrio que
procura esquivar-se por todo e qualquer meio dos argumentos apresentados. Em
tais casos, legtimo tentar por todos os meios chegar concluso; mas falta
elegncia para tal procedimento (ARISTTELES apud PERELMAN, 2005, p. 19).
Retomando o exposto mais acima, tanto uma distino receber a ateno
de algum de uma audincia de modo que suas palavras sejam dignas de
considerao, quanto o ser esse algum a quem se dirige a palavra. Sem a
participao desses dois elementos o orador e seu auditrio, configurando o
contato dos espritos no h argumentao.
Para que o vnculo se estabelea, no basta que o orador relate experincias,
mencione fatos ou enumere verdades a esmo. De acordo com Perelman, essa
atitude resulta de uma iluso qual seja, a de que os fatos falam por si ss e
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imprimem uma marca indelvel em todo esprito humano, cuja adeso foram, sejam
quais forem suas disposies (TA, p. 20). H situaes privilegiadas, como as em
que o contato intelectual acontece por fora ou por intermdio de protocolos
institucionais uma preleo acadmica, por exemplo. Mesmo em tais casos,
porm, para que orador tome a palavra e seja ouvido, preciso que ele tenha
alguma qualidade que o valide. Essa qualificao fundamentalmente circunstancial
e pode estar relacionada funo ou posio que o orador ocupa em seu meio, ou
depender das regras e regulamentaes do campo instituies cientficas,
judicirias ou religiosas, por exemplo em que o contato deve ocorrer.
Outra situao privilegiada est na palavra escrita. Para o pensador belga, o
texto impresso aproveita-se do vis mercantil da organizao econmica de nossa
civilizao para impor-se ateno na condio de mercadoria. Tal situao pode
obscurecer a real qualificao do orador, que poderia talvez no encontrar auditrio
se no fosse favorecido pelo prprio meio o texto impresso em que sua
argumentao se desenvolve.
2.1.3. O auditrio como construo do orador
Mais do que mera condio prvia da argumentao, Perelman v o contato
entre o orador e auditrio como determinante para o desenvolvimento dela: como a
argumentao visa obter a adeso daqueles a quem se dirige, ela , por inteiro,
relativa ao auditrio que procura influenciar (TA, p. 21). A partir dessa observao,
torna-se imprescindvel refletir sobre a prpria constituio desse auditrio, j que a
percepo que o orador tem de seu auditrio pode lev-lo a modificar os termos de
seu discurso. Segundo Perelman, difcil determinar um auditrio com a ajuda de
critrios puramente materiais. Quando se trata de retrica, ele sugere que se defina
o auditrio como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua
argumentao (TA, p. 22, grifo do autor). A imaterialidade de tal definio se torna
manifesta quando Perelman expressa ser mais ou menos consciente a forma como
o orador pensa naqueles que procura persuadir, ou seja, a maneira como presume
o auditrio ao qual se dirigem seus discursos.
36
Por consequncia, tem-se que o auditrio presumido sempre uma
construo do orador. Importa, sobremaneira, que o auditrio construdo seja
adequado experincia em questo:
Uma imagem inadequada do auditrio, resultante da ignorncia ou de um concurso imprevisto de circunstncias, pode ter as mais desagradveis consequncias. Uma argumentao considerada persuasiva pode vir a ter um efeito revulsivo sobre um auditrio para o qual as razes pr so, de fato, razes contra. (TA, p. 22, grifo nosso.)
Depreende-se, portanto, que o conhecimento daqueles que se pretende
conquistar , pois, uma condio prvia de qualquer argumentao eficaz (TA, p.
23).
Perelman caracteriza a construo do auditrio presumido por parte do
orador como mais ou menos sistematizada, ou seja, nem presa a regras rgidas e
incontornveis, nem tampouco realizada de maneira aleatria. Para ele, tanto as
origens psicolgicas quanto as origens sociolgicas de um auditrio so passveis
de determinao. Explorando o aspecto psicolgico, Perelman encontrou Aristteles,
que em sua Retrica utilizava idade e fortuna como critrios para classificar
auditrios. Ccero, por sua vez, os diferenciava de acordo com sua formao
intelectual e moral, opondo o homem ignorante e grosseiro, que sempre prefere o
til ao honesto", ao homem esclarecido e culto, que pe a dignidade moral acima de
tudo. Quintiliano, por fim, chamava a ateno do orador para as diferenas de
carter entre os que compunham seu auditrio.
J em sua explorao dos elementos sociolgicos pertinentes constituio
de um auditrio, Perelman faz notar que, mais do que seu carter pessoal, as
opinies de um homem dependem de seu meio social, de seu crculo, das pessoas
que frequenta e com quem convive (TA, p. 23). Isso se deve ao fato de que as
opinies dominantes de cada meio, as convices que lhe so caractersticas e as
premissas que so aceitas sem hesitao configuram um quadro cultural que o
orador precisa levar em conta e ao qual deve se adaptar, se quiser que sua
argumentao tenha os efeitos desejados. dessa forma que a cultura prpria de
cada auditrio transparece atravs dos discursos que lhe so destinados.
37
Ainda tratando do aspecto sociolgico, o pensador belga discute como as
funes e papis sociais que os ouvintes cumprem (e tambm as instituies nas
quais exercem tais funes, ou das quais participa) moldam suas atitudes e podem
influenciar seu posicionamento diante dos discursos que lhes so apresentados.
Qualquer mudana de funo pode significar a adoo de uma personalidade nova,
que o orador no pode ignorar. E o que vale para cada ouvinte particular no
menos vlido para os auditrios, em seu conjunto (TA, p. 24). Segundo os antigos,
o gnero oratrio utilizado decorria diretamente do papel ou funo a ser cumprida
pelo auditrio deliberativo, se, como tal palavra sugere, houvesse alguma
deliberao a ser feita, judicirio, quando ao auditrio coubesse a realizao de
algum julgamento, ou epidctico, caso o auditrio no necessitasse pronunciar-se
sobre o mago do caso, usufruindo do desenvolvimento oratrio como meros
espectadores.
Para algum que se proponha a estudar a tcnica da argumentao, porm,
essa no uma classificao que possa ser cegamente aceita, pois parece presumir
auditrios internamente homogneos, ou seja, compostos por integrantes
suficientemente parecidos entre si para que se possa negar suas particularidades.
No mais das vezes, porm, o auditrio com que o orador deve lidar heterogneo,
formado por pessoas com diferentes vnculos, carter ou funes. So necessrios,
ento, diferentes argumentos para dar conta de tal diversidade, uma vez que se
pode considerar cada um dos integrantes de um auditrio assim constitudo como
pertencentes, simultaneamente, a mltiplos grupos. Perelman ilustra o aparente
paradoxo mencionando os discursos que so proferidos diante dos parlamentos, em
que o orador precisa reconhecer e lidar com os diferentes pontos de vista
representados pelos membros de seu auditrio.
Vem tona, ento, outro ponto-chave da teoria da audincia desenvolvida por
Perelman: de acordo com o autor, para evitar que o orador hesite diante da tarefa
de abranger adequadamente a multiplicidade de pontos de vista esposados pelos
membros de seu auditrio, uma sada inserir ficticiamente esse auditrio em uma
srie de auditrios diferentes. Em outras palavras, como se o orador adotasse,
para cada aspecto ou inclinao que ele detecta em seu auditrio, uma persona
correspondente.
38
Dada a interdependncia entre ambos, no somente o orador que muda
assim de cara, muito mais ainda o auditrio a que se dirige (TA, p. 25). Conforme
discutido mais acima, pode-se tentar determinar e, durante a argumentao,
manipular os fatores psicolgicos e sociolgicos presentes na constituio de um
auditrio. O orador pode dividir seu auditrio de acordo com os grupos sociais aos
quais os seus elementos pertencem (religiosos, profissionais, polticos etc.), ou ainda
de acordo com os valores aos quais aderem seus ouvintes. Tais divises ideais, na
definio do autor, no so independentes uma da outra. Elas podem levar
constituio de auditrios parciais muito diferentes, os quais dependero, por sua
vez, tambm da posio pessoal do orador: ele pode encarar seus interlocutores
como partes de um auditrio nico ou como representantes de uma srie de
auditrios distintos.
importante lembrar que tratamos aqui da construo de uma imagem
presumida do auditrio por parte do orador, de uma condio prvia para que haja a
argumentao. um processo sobretudo discursivo, cujo objetivo final facilitar o
contato intelectual entre as partes e, eventualmente, a adeso dos espritos tese
apresentada. O orador precisa conhecer o auditrio a que se dirige, se deseja que
sua argumentao seja efetiva, e saber desconstru-lo, reconhecendo seus
elementos constitutivos, parte importante desse caminho.
Para o autor, a natureza do auditrio e os meios adequados para condicion-
lo so aspectos correlatos. O orador que conhece seu auditrio sabe, tambm, como
assegurar seu condicionamento e, a cada instante do discurso, a proporo em que
tal condicionamento foi ou no atingido (TA, p. 26).
Quando se fala em condicionamento, trata-se de fatores externos ao prprio
auditrio; ou seja, tcnicas e elementos materiais (Perelman cita direo teatral,
msica, iluminao e jogos de massas humanas, entre outros exemplos) ou
discursivos utilizados como formas de agir sobre as mentes. Seu foco, naturalmente,
o condicionamento atravs do prprio discurso, de sorte que o auditrio j no ,
no final do discurso, exatamente o mesmo do incio. A condio prvia para esse
condicionamento, como se vem discutindo nos ltimos pargrafos, a permanente
adaptao do orador ao auditrio.
39
2.1.4. O auditrio como elemento determinante da argumentao
Cabe ao auditrio o papel principal na determinao da qualidade da
argumentao e do comportamento dos oradores (ARISTTELES apud
PERELMAN, 2005, p. 27). Mais importante do que aquilo que o orador v como
verdadeiro ou probatrio palavra que pode significar tanto algo que contm ou
serve de prova quanto algo que se refere a uma prova o parecer daqueles a
quem a argumentao se dirige. Na verdade, de acordo com Perelman, [o] grande
orador, aquele que tem ascendncia sobre outrem, parece animado pelo prprio
esprito de seu auditrio.
diferente, segundo o pensador, o caso do homem apaixonado, que tem por
nica preocupao aquilo que ele mesmo sente. Citando M. Pradines, Perelman diz
que o discurso de um apaixonado pode ser tocante, mas no resulta em um som
verdadeiro. Estaria em operao, nesse tipo de discurso, apenas uma mscara
lgica incapaz de resistir verdadeira figura. Para o filsofo francs Maurice
Pradines, a paixo incomensurvel para as razes. Perelman prefere sugerir que
o apaixonado, em sua argumentao, no leva seu auditrio suficientemente em
considerao, imaginando seus interlocutores sensveis aos mesmos argumentos
que persuadiram a ele mesmo. Desse esquecimento do auditrio pode resultar
uma m escolha de argumentos, os quais at podem, pelo entusiasmo com que so
transmitidos, influenciar pessoas mais sugestionveis, mas que parecero, maioria
dos ouvintes, desarrazoados.
O carter do auditrio outro elemento determinante para a qualidade da
argumentao. Conforme tratado mais acima, quando da classificao de auditrio
segundo autores da antiguidade, vimos que Ccero diferenciava interlocutores de
acordo com sua formao moral e intelectual. Naturalmente, no se pode
argumentar com um auditrio cuja formao cultural seja notadamente baixa da
mesma forma que se argumenta com um painel de especialistas em determinado
assunto. Por sinal, o belga acredita que se deve a auditrios incompetentes,
desatentos e incapazes de compreender raciocnios ordenados a introduo, na
teoria do discurso, de regras gerais cuja validade parece, entretanto, limitada a
casos especficos. O autor no apresenta exemplos especficos, mas, antes de
40
chegar a tal concluso, j havia mencionado Demstenes, que pedia ao povo
ateniense que se aprimorasse, com vistas ao aprimoramento do estilo de seus
oradores.
Ambiguidade moral e ausncia ou deturpao de princpios so outra
caracterstica que pode impedir um auditrio de sequer considerar os pontos de vista
de um orador cuja formao moral seja elevada. Perelman (TA, p. 28) retorna aqui a
Quintiliano, que tratou do problema da conciliao dos escrpulos do homem de
bem com a submisso ao auditrio. O pensador romano defendia que no basta ao
orador perfeito persuadir bem preciso tambm dizer o bem.
Como se v, so muitas as possibilidades de reflexo baseadas em
particularidades do auditrio. Mesmo sua extenso pode influenciar processos
argumentativos, j que a mesma plateia ampla que pode inflamar um orador pode
atemorizar outro. Importa, tanto quanto a adaptao do orador ao auditrio, que o
discurso seja adaptado igualmente. Segundo Perelman,
o fundo e a forma de certos argumentos, apropriados a certas circunstncias, podem parecer ridculos noutras. A realidade dos mesmos acontecimentos descritos numa obra que se pretende cientfica ou num romance histrico no deve ser provada da mesma forma. (TA, p. 28)
Para cada abordagem possvel na construo do auditrio presumido, o
orador ir se deparar com um conjunto diferente de questes. Torna-se evidente,
ento, a necessidade de uma tcnica argumentativa que se imponha a todos os
auditrios, transcendendo particularidades locais e histricas e fazendo com que as
teses apresentadas possam ser aceitas por qualquer auditrio composto por
pessoas competentes ou racionais. Segundo Perelman, [a] busca de uma
subjetividade, seja qual for sua natureza, corresponde a esse ideal (TA, p. 29).
Transcender valores temporais e locais, expresso que Perelman emprestou
do filsofo francs Julien Benda23, significa buscar aquilo que absoluto, universal.
O belga enxerga nessa questo o ressurgimento de um debate entre os partidrios
23
Conhecido pela obra A traio dos intelectuais, de 1927, em que acusa os clrigos de traio quando abandonam o cuidado com o eterno e com o universal para defenderem valores temporais e locais, na descrio de Perelman (TA, p. 30).
41
da verdade e indagadores do absoluto, entre os quais ele situa os filsofos, e os
partidrios da opinio, envolvidos na ao, entre os quais estariam os retores. a
partir dessa oposio que Perelman prope outro conceito-chave para a teoria da
audincia e para a prpria teoria da argumentao: a diferena entre persuaso e
convico:
2.1.5. Persuadir e convencer
A maneira mais apropriada de introduzir este item passa pela apresentao
de uma passagem importante do Tratado:
Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentao que pretende valer s para um auditrio particular e chamar convincente quela que deveria obter a adeso de todo ser racional. O matiz bastante delicado e depende, essencialmente, da ideia que o orador faz da encarnao da razo. (TA, p. 31, grifos do autor.)
H uma srie de ideias importantes condensadas em tal proposio.
Primeiramente, gostaramos de destacar da passagem acima a palavra matiz. No
se trata, ento, de uma oposio absoluta entre extremos opostos. Embora
reconhea que a distino entre persuaso e convico deva ter sua importncia, j
que se reflete na linguagem por meio de duas noes diferentes, o prprio
Perelman, se recusa a adot-las dentro de um pensamento vivo. O filsofo
considera sua abordagem da questo bastante prxima em consequncias, ainda
que no em princpio da realizada por Kant em sua Crtica da razo pura24, na qual
se l que a persuaso no pode, na verdade, ser distinguida subjetivamente da
convico, se o sujeito imagina a crena apenas como um simples fenmeno de seu
prprio esprito.
A diferena entre Perelman e Kant est no fato de este ltimo, que v a
persuaso e a convico como dois tipos de crena, utilizar-se da oposio
subjetivo-objetivo como critrio classificativo:
24
Conforme citada por Perelman nas pginas 31 e 32 do Tratado.
42
Quando vlido para cada qual, ao menos da medida em que este tem razo, seu princpio objetivamente suficiente e a crena se chama convico. Se ela tem seus fundamentos apenas na natureza particular do sujeito, chama-se persuaso. (KANT apud PERELMAN, 2005, p. 31, grifos do autor.)
Kant afirma que a persuaso mera aparncia, porque uma crena que
tome por objetivo um princpio cujo juzo est exclusivamente no prprio sujeito no
se comunica, ou seja, no capaz de produzir o mesmo efeito persuasivo no
entendimento alheio. Diz o filsofo alemo: Posso guardar para mim a persuaso,
se me dou bem com ela, mas no posso, nem devo faz-la valer fora de mim.
Perelman faz uso tambm do conceito de razo, mas problematiza sua
aplicabilidade e o atrela ao conceito de auditrio ao questionar a exorbitncia de
uma pretenso validade absoluta, para qualquer auditrio composto por seres
racionais, daquilo que fundamentalmente diferente para cada pessoa, ou seja, o
conjunto de fatos, de verdades em que cada um cr. Um orador que acredite estar
se dirigindo validamente a um auditrio estar fazendo o que est ao seu alcance
em busca da convico, mas no poder escapar prova dos fatos nem ao juzo de
seus interlocutores, que trazem consigo seus prprios conjuntos de verdades.
O problema menos aparente em Kant, que fundamenta a convico na
verdade de seu objeto. Segundo Perelman, tal posicionamento leva Kant a excluir da
filosofia a argumentao no coerciva, admitindo apenas a prova puramente lgica,
necessria, atravs da qual se chegaria verdade, objetiva, vlida para qualquer ser
racional. Postular a persuaso como processo exclusivamente subjetivo e individual
significaria, ainda segundo Perelman, aceitar a inviabilidade de toda argumentao
voltada a auditrios particulares. s quando se admite a existncia de outros
meios de prova alm do puramente lgico (ou da prova necessria, como define)
que a argumentao concernente a auditrios particulares tem um alcance que
supera a crena puramente subjetiva (TA. p. 32).
Como se v, muitas vezes chega-se distino entre persuaso e convico
por meio de processos de abstrao que ultimamente isolam determinados
elementos de um contexto mais amplo. Em outras palavras, de um conjunto maior
(de procedimentos ou faculdades) so isolados elementos ditos racionais a partir dos
43
quais se classificar o caso analisado como persuaso ou convico. Perelman
exemplifica por meio da crena de que determinados silogismos podem ocasionar
convico, mas no persuaso:
Dir-nos-o, por exemplo, que tal pessoa, convencida do perigo de mastigar muito rpido, nem por isso deixar de faz-lo, porque [...] tal convico pode colidir com outra convico, a que nos afirma que h ganho de tempo em comer mais depressa. V-se, portanto, que a concepo daquilo que constitui a convico, que pode parecer baseada numa diferenciao dos meios de prova ou das faculdades postas em jogo, o tambm, muitas vezes, no isolamento de certos dados dentro de um conjunto muito mais complexo. (TA, pp. 30-31.)
O exemplo escolhido ajuda a perceber como uma convico nem sempre leva
a uma ao imediata ou esperada. Na verdade, Perelman afirma que, para aqueles
que se preocupam com o resultado, persuadir mais do que convencer, pois a
convico no passa da primeira fase que leva ao. Convencer, em
contrapartida, mais importante para aqueles cujo foco est no carter racional da
adeso. Interessantemente, Perelman diz que essa caracterstica racional da
convico depende ora dos meios utilizados, ora das faculdades s quais o orador
se dirige, j que a persuaso agiria mais diretamente sobre tudo quanto
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