Cancelamento da Inscrição da Empresa no Cadastro de Contribuintes:
Sanção Política ou Medida Protetiva da Ordem Econômica?
Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro1
1. Introdução
Cunhou-se a expressão “sanção política” para designar as medidas restritivas ou
proibitivas impostas aos contribuintes como meio indireto de cobrança de tributos. Fala-se
que referidas práticas possuem natureza política justamente por violarem dispositivos de lei
ou mesmo valores consagrados no texto da Constituição.
Dentre as referidas sanções políticas, destacam-se as seguintes: a) interdição do
estabelecimento; b) retenção de mercadorias; c) inscrição no cadastro de inadimplentes; d)
aplicação de regime especial de fiscalização; e) suspensão da inscrição da empresa no
cadastro de contribuintes de determinado tributo e; e) cancelamento da inscrição da empresa
no referido cadastro.
Tanto doutrina quanto jurisprudência pátrias têm rechaçado, indiscriminadamente,
qualquer previsão normativa que regule práticas que se assemelhem àquelas narradas no
1Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito e Processo Administrativo pela Universidade de Fortaleza. Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Procurador do Estado do Paraná. [email protected]
parágrafo anterior. Em muitos casos, no entanto, laboram em equívoco ao equiparar situações
distintas.
Sobre o tema, em consonância com doutrina majoritária, Hugo de Brito Machado
leciona que:
(…) todas essas políticas são flagrantemente inconstitucionais entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência do tributo é ou não legal.2 (Grifo Nosso)
No que diz respeito especificamente às medidas restritivas à inscrição nos cadastros
de contribuintes, afirma Hugo de Brito Machado Segundo que:
(...) a prática em exame malfere ainda os direitos ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Primeiro, porque a autoridade que decide se defere, ou não, a inscrição a determinado contribuinte não é competente para julgar a legalidade das exigências e imputações que lhes são feitas. Segundo, porque a negativa, a suspensão e o cancelamento da inscrição no mais das vezes ocorrem antes de apreciada a defesa oferecida pelo contribuinte. A sanção é aplicada antes de apurada a prática da suposta infração. Por isso, a coação aqui examinada, que impõe sérias dificuldades ao contribuinte, faz com que sejam pagos os tributos e as multas, mesmo indevidos, com o fito de se evitar prejuízos ainda maiores. Todas as garantias constitucionais processuais do contribuinte quedam inoperantes.3 (Grifo nosso)
A opinião dos Tribunais não tem sido diversa.
A súmula da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal encontra-se
repleta de enunciados atinentes ao tema das sanções políticas. O enunciado n. 70 assevera que
“é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de
tributo”; o enunciado n. 323, por sua vez, dispõe que: “é inadmissível a apreensão de
mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”; por fim, o verbete n. 247 diz
que “não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas,
despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.
2 MACHADO, Hugo de Brito. As Sanções Políticas no Direito Tributário “in” Revista Dialética de Direito Tributário n. 30. pp. 46-47, março de 1998.
3 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. As Liberdades Econômica e Profissional e os Cadastros de Contribuintes “in” Revista Dialética de Direito Tributário n. 67. p. 77. Abril de 2001.
O entendimento supracitado está bem delineado no voto da Ministra Cármen Lúcia
nos autos do Recurso Extraordinário n.634.738, julgado monocraticamente em 25 de fevereiro
de 2011, cujos trechos mais relevantes fazemos questão de transcrever:
(…) O Supremo Tribunal Federal assentou não ser possível a aplicação de restrições para compelir de forma indireta o contribuinte inadimplente a cumprir obrigação tributária principal ou acessória. Nesse sentido: 'Nota-se a tomada de empréstimo de meio coercitivo, objetivando a satisfação de débito tributário. Em síntese, a legislação local submete o contribuinte à exceção de emitir notas fiscais individualizadas, quando em débito para com o Fisco. Entendo conflitante com a Carta da República o procedimento adotado. A Fazenda há de procurar o Judiciário visando à cobrança, via executivo fiscal, do que devido, mostrando-se impertinente recorrer a métodos que acabem inviabilizando a própria atividade econômica, como é o relativo à proibição de as empresas em débito, no tocante a obrigações, principal e acessórias, vir a emitir documentos considerados como incluídos no gênero fiscal' (RE 413.782, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 3.6.2005).4 (Grifo Nosso)
(...) O acórdão recorrido divergiu dessa orientação. 7. Pelo exposto, dou provimento ao recurso extraordinário (art. 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil e art. 21, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Considerando-se a Súmula n. 512 do Supremo Tribunal Federal, deixo de condenar o Recorrido ao pagamento de honorários advocatícios de sucumbência. Publique-se. Brasília, 25 de fevereiro de 2011. Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora.5
Tem-se, portanto, em linhas gerais, a vedação indiscriminada das práticas narradas
anteriormente sob os argumentos de que: a) não seriam admitidos meios de coerção indireta
para cobrança de tributos; b) a cobrança de dívidas fiscais só poderia ser realizada por meio
do procedimento de execução fiscal, positivado na Lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1980
(Lei de Execução Fiscal - LEF); c) as sanções políticas violariam princípios constitucionais
fundamentais como os do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal; d)
referidos métodos inviabilizariam o exercício da atividade econômica e profissional.
Demonstrar-se-á, ao longo deste texto, que nem sempre as práticas enumeradas nos
parágrafos anteriores serão violadoras dos princípios basilares do ordenamento jurídico pátrio.
Medidas como o cancelamento da inscrição da empresa no cadastro de contribuintes de
determinado imposto, por exemplo, a depender do caso concreto, bem como dos termos em
que formulada a lei instituidora da providência, poderão não configurar hipóteses de sanções
políticas.
4STF, RE 634738, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 25/02/2011, publicado em DJe-045 DIVULG 09/03/2011 PUBLIC 10/03/2011. 5 Idem.
2. A Tese da Supralegalidade da Lei de Execução Fiscal e a Vedação à Cobrança de Tributos por Meios Indiretos
O primeiro e mais repetido dos argumentos contrários ao que se convencionou
chamar de sanção política diz respeito a uma suposta proibição de cobrança de tributos por
meios indiretos. Nos termos de jurisprudência majoritária, a Fazenda Pública só teria a sua
disposição o instrumento da execução fiscal, regulado pela Lei Federal n. 6.830/80 – Lei de
Execução Fiscal, não sendo admitida sequer a formulação de pedido judicial de Falência da
empresa devedora, ainda que preenchidos os requisitos constantes da Lei Federal n. 11.101,
de 11 de fevereiro de 2005 – Lei de Falências e Recuperação de Empresas.6
Costuma-se fazer menção, aqui, também às chamadas garantias e privilégios do
crédito tributário, constantes do Código Tributário Nacional, como, por exemplo, a sujeição
praticamente integral do patrimônio do devedor ao pagamento do crédito tributário (CTN, art.
184), a preferência do crédito tributário em relação aos demais, ressalvados os créditos
trabalhistas (CTN, art. 186, caput), e a constituição unilateral do crédito tributário pela
Fazenda Pública. Em virtude de tais garantias e preferências, têm-se defendido a
impossibilidade de execução do crédito tributário por outros meios que não o previsto na
LEF.
A tese, de diminuta profundidade, não pode prosperar, seja se analisarmos a questão
do ponto de vista lógico-jurídico, seja se a apreciarmos sob o aspecto jurídico-positivo.
Em primeiro lugar, não nos parece correto o estudo do tema da cobrança de tributos
com base na classificação proposta por doutrina e jurisprudência, que divide a atuação estatal
em direta, quando o ente público faz uso do procedimento judicial regido pela Lei de
Execução Fiscal, e indireta, quando outro tipo de expediente é utilizado. Mais acertado, a
nosso entender, seria falar em meios legítimos e ilegítimos de cobrança de tributos.
O procedimento executivo regido pela Lei n. 6.830/80, em que pese enquadrar-se
como meio legítimo de cobrança de tributos, não pode, de maneira alguma, ser enxergado
como o único instrumento à disposição da Fazenda Pública. Não há nada no Ordenamento
Constitucional que nos permita concluir de maneira diversa: a uma, porque a satisfação do
direito material – qualquer que seja ele – não pode nem deve ser buscada exclusivamente por
meio do Poder Judiciário; a outra, porque o procedimento de execução regido pelo diploma
6STJ, REsp 164389/MG, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Segunda Seção, julgado em 13/08/2003, DJ 16/08/2004.
legal supracitado encontra-se totalmente defasado em relação às mais modernas diretrizes do
Direito Processual Civil brasileiro.
A cobrança de tributos, e isso deve ficar bem claro, tem por objetivo conferir
harmonia e sustentabilidade ao Sistema Constitucional Tributário pátrio, este entendido
como “o conjunto de princípios constitucionais que informa o quadro orgânico de normas
fundamentais e gerais do direito tributário, vigentes em determinado país.”7 Tal tarefa – de
harmonização e sustentabilidade – não pode ser alcançada exclusivamente pelo uso dos
dispositivos constantes da lei de execução fiscal. A verdade é que a Fazenda Pública pode
dispor de todos os meios – judiciais ou extrajudiciais - previstos no ordenamento jurídico,
desde que não violadores das limitações constitucionais ao poder de tributar, para fazer com
que se pague a obrigação tributária.
Não é razoável, por exemplo, admitir que um banco possa levar a protesto um título
de crédito e a Fazenda Pública não possa fazer o mesmo com as Certidões de Dívidas Ativas,
tudo sob o simplório fundamento de já ter à sua disposição o instrumento da execução fiscal.
No exemplo anterior, também o banco já possuía a via da execução judicial do título e nem
por isso viu-se impedido de protestá-lo. Os fundamentos acerca da legitimidade ou não da
referida prática (protesto de CDA), no entanto, não fazem parte do objeto do presente
trabalho.
A Constituição Federal não contém um dispositivo sequer acerca da lei de execução
fiscal, não sendo razoável conferir a ela a áurea de supralegalidade que vêm lhe conferindo
os Tribunais de todo o país. Da mesma forma que o Estado não pode cobrar tributos
confiscatórios ou instituir impostos sem prévia disposição legal, não é dado aos contribuintes
o direito de, voluntária e reiteradamente, deixar de cumprir dever legal a todos imposto.
Dissertando sobre capacidade contributiva e justiça fiscal, Betina Treiger
Grupenmacher ensina que “A política tributária há de ser, nessa medida, um comportamento
revestido de moralidade no exercício do poder de tributar. É a também chamada ética fiscal,
pressuposto inafastável para que os cidadãos igualmente ajam moralmente”8.
Sobre o tema, confira-se o que diz o tributarista português José Casalta Nabais:
Pelo que, o dever de pagar impostos constitui um dever fundamental como qualquer outro, com todas as consequências que uma tal qualificação implica. Um dever fundamental, porém, que tem por destinatários, não todos
7 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 8.
8 GRUPENMACHER, Betina Treiger. Das Exonerações Tributárias. Incentivos e Benefícios Fiscais “in” GRUPENMACHER, Betina; CAVALCANTE, Denise Lucena; RIBEIRO, Maria de Fátima; QUEIROZ, Mary Elbe. Novos Horizontes da Tributação: Um diálogo Luso-Brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 45.
os cidadãos de um estado, mas apenas os fiscalmente capazes, incluindo-se neles, de um lado, as pessoas (ou organizações) colectivas e, de outro, mesmo os estrangeiros e apátridas. Isto é, não há lugar a um qualquer (pretenso) direito fundamental de não pagar impostos, como o radicalismo das reivindicações de algumas organizações de contribuintes ou a postura teórica de alguns jusfiscalistas mais inebriados pelo liberalismo económico e mais empenhados na luta contra a ‘opressão fiscal’, que vem atingindo a carga fiscal nos países mais desenvolvidos, parecem dar a entender. Há, isso sim, o dever de todos contribuírem, na medida da sua capacidade contributiva, para as despesas a realizar com as tarefas do estado.9 (Grifo Nosso)
Ainda que se admitisse a via judicial como a única possível à cobrança de
tributos, posição com a qual, repita-se, não concordamos, jamais seria possível aceitar a
exclusividade de utilização do procedimento instituído pela Lei de Execução Fiscal,
diploma normativo que, de tão ultrapassado, vem aos poucos sendo suplantando pelo
microssistema de execução instituído pelo Código de Processo Civil - CPC e outras leis
extravagantes. Aos poucos, a Lei de Execução Fiscal vai se tornando instrumento subsidiário
do CPC.
Pelo princípio processual da eficácia da justiça, não basta que o direito material
seja inequivocamente declarado, faz-se indispensável que tal direito seja concretizado. Em
outros termos, não basta ao Poder Judiciário dizer quem ter direito – tarefa que, no âmbito das
pretensões de natureza tributárias, é cumprida de maneira bastante satisfatória pelas ações
ordinárias de embargos à execução fiscal, declaratórias e anulatórias –, é preciso dar ao
vencedor o direito que lhe fora declarado.
Conforme leciona doutrina mais autorizada, “O ‘justo’ e o ‘devido’, com efeito, vão
além do reconhecimento jurisdicionalmente do direito. A efetividade do processo, nesse
sentido, deve ser compreendida como efetividade do direito material pelo processo.”10
A lei de execução fiscal não confere qualquer vantagem ou benefício especial à
Fazenda Pública. Na verdade, aqueles que militam na seara do processo tributário têm
percebido que suas disposições têm servido de verdadeiro escudo contra a incidência
tributária, bastando à empresa, não importa o porte, não dispor de patrimônio suficiente ao
pagamento de tributos para lhe ser assegurado um direito quase sagrado e inviolável de não
pagar impostos.
9 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. P. 186.
10 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil, vol. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Pp. 160-161.
O argumento de que o crédito tributário já seria dotado de uma série de privilégios e
garantias não deve prosperar, sobretudo se levarmos em conta que quase todas as “benesses”
previstas no CTN estão relacionadas a um patrimônio genérico e “invisível” do devedor.
Dizer que o crédito tributário prefere aos demais ou mesmo que todos os bens do
devedor respondem pela dívida não tem serventia alguma se lembrarmos que pessoas físicas
ou jurídicas não precisam de patrimônio algum para exercer suas atividades. Somemos a isso
as enormes dificuldades impostas pelo CTN para alcance do patrimônio dos sócios
administradores. Ao contrário do que ocorre com um banco, por exemplo, que só empresta
dinheiro àqueles que tiverem preenchido uma série de requisitos e, via de regra, tiverem
oferecido garantia real, a Fazenda Pública tem que se contentar com a esperança de o devedor
ser titular de algum bem. Em outras palavras, a verdade é que o crédito tributário, na imensa
maioria das vezes, é dotado de menos garantias que os créditos privados.
Não é verdadeira também a tese da constituição unilateral do título executivo da
execução fiscal pela Fazenda Pública. Em primeiro lugar, em virtude do que estabelece o
princípio constitucional da legalidade tributária, ninguém é obrigado a pagar tributo com o
qual não tenha consentido, ainda que por meio de representantes eleitos (no taxation without
representation); ademais disso, o ordenamento tributário confere oportunidade de defesa e
manifestação a todos aqueles que se sentirem injustiçados devido a eventuais cobranças
indevidas, sendo assegurado até mesmo um segundo grau recursal administrativo; por fim, e
mais importante, temos que, nos dias de hoje, grande parte dos tributos é lançada com base
em informações fornecidas pelo próprio sujeito passivo da exação, a exemplo do que acontece
com o IPI, o IR, o ITCMD, o ICMS e o ISS.
Não se pode, portanto, de maneira alguma, falar em constituição unilateral do crédito
tributário quando é o próprio contribuinte que fornece informações sobre o tributo que
entende devido.
Tanto a ideia de supralegalidade da lei de execução fiscal é falha que nosso
ordenamento jurídico efetivamente prevê uma série de outros dispositivos voltados à
arrecadação tributária, dentre os quais podemos destacar os seguintes: a) art. 193 da Lei n.
8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), que versa acerca da proibição de
participação em licitações pública de empresas em débito com o fisco; b) artigos 191-A do
Código Tributário Nacional e 57 da Lei n. 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e
Falências), que estabelecem a quitação de tributos como requisito ao deferimento da
recuperação judicial; c) a quase totalidade da Lei n. 10.522/2002, que dispõe sobre o
Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais (CADIN) e dá
outras providências e; d) art. 17, V, da Lei Complementar n. 123/2006, que veda o ingresso
no regime diferenciado do Simples Nacional à pessoa jurídica que possua débito com o INSS,
ou com as fazendas públicas federal, estadual ou municipal, cuja exigibilidade não esteja
suspensa11.
Não é forçoso recordar também os chamados crimes contra a ordem tributária,
previstos na Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, dotados que são de verdadeira
exequibilidade.
Se, nos termos do que já decidido pelo Supremo Tribunal Federal12, o pagamento do
tributo, a qualquer tempo, extingue a punibilidade do crime tributário, por que não chamá-los
também de sanções políticas? Alguém seria capaz de negar que a Lei n. 8.137/90 estabelece
meios indiretos de cobrança de tributos? Alguém seria capaz de afirmar também que tais
meios indiretos de cobrança de tributos seriam inconstitucionais?
3. Sanções Políticas e as Violações ao Contraditório e à Ampla Defesa
Tendo sido visto que a Fazenda Pública, com vistas à arrecadação de tributos e,
consequentemente, ao equilíbrio e à sustentabilidade do Sistema Constitucional Tributário,
pode valer-se de uma infinidade de outros meios – judiciais e extrajudiciais – além daqueles
previstos na Lei n. 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal), demonstraremos agora ser
perfeitamente possível também que as autoridades fiscais utilizem-se dos referidos
instrumentos sem levar a efeito qualquer violação a princípios constitucionais
processuais, como os do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Nos termos de doutrina mais respeitada, “O princípio do contraditório é reflexo do
princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a
participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório.13”.
Dissertando sobre a aplicação do postulado em comento aos processos de natureza
administrativa, Lucas Rocha Furtado leciona que “Como consectários do princípio maior do
devido processo legal, em todos os processos restritivos de direito, o contraditório e a ampla
defesa devem ser obrigatoriamente assegurados.14”
11ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito tributário na Constituição e no STF. 16. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. pp. 123-124.
12STF, HC 81929, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgado em 26/11/2002, publicado em DJ 22/08/2003.
13 DIDIER JR. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil e processo de conhecimento. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. pp. 56-57. 14FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. Belo Horizonte: Forum, 2012. p. 1007.
Assim, recomenda a prudência que, antes da realização de qualquer medida de
polícia administrativa, seja conferido à parte possivelmente prejudicada o direito de se
manifestar, assim como de ter suas razões devidamente apreciadas (direito de influência) pela
autoridade estatal competente.
Aqui, as hipóteses de apreensão de mercadorias e cancelamento da inscrição da
pessoa jurídica no cadastro de contribuintes de determinado tributo são as que suscitam
maiores polêmicas.
Quanto ao tema da apreensão de mercadorias, primeiramente, deve-se esclarecer
que, de fato, pouco se tem verificado as garantias do contraditório e da ampla defesa prévios à
efetivação, pelo fisco, de medidas de retenção de bens. A verdade é que tal expediente muitas
vezes tem sido utilizado indevidamente como via ilegítima de cobrança de tributos.
Isso não significa, contudo, que toda retenção de mercadoria pela Administração
Fazendária seja inconstitucional (sanção política). Casos há em que a oportunidade de
manifestação da pessoa prejudicada pela atuação restritiva do Estado fica meramente
postergada, como se dá, por exemplo, na retenção realizada para fins investigativos. Aqui,
desde que perdure o tempo estritamente necessário à identificação das mercadorias
transportadas e à lavratura do auto de infração, nada obsta a efetivação da prática em
comento.
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de assim se manifestar sobre o
tema; confira-se:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 163, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO DE SÃO PAULO: INOCORRÊNCIA DE SANÇÕES POLÍTICAS. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 5º, INC. XIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. A retenção da mercadoria, até a comprovação da posse legítima daquele que a transporta, não constitui coação imposta em desrespeito ao princípio do devido processo legal tributário. 2. Ao garantir o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, o art. 5º, inc. XIII, da Constituição da República não o faz de forma absoluta, pelo que a observância dos recolhimentos tributários no desempenho dessas atividades impõe-se legal e legitimamente. 3. A hipótese de retenção temporária de mercadorias prevista no art. 163, § 7º, da Constituição de São Paulo, é providência para a fiscalização do cumprimento da legislação tributária nesse território e consubstancia exercício do poder de polícia da Administração Pública Fazendária, estabelecida legalmente para os casos de ilícito tributário. Inexiste, por isso mesmo, a alegada coação indireta do contribuinte para satisfazer débitos com a Fazenda Pública. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente15. (Grifo Nosso)
15STF, ADI 395, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2007.
Conforme visto, a apreensão temporária de mercadorias, muitas vezes, representa
mero exercício, pelos agentes fiscais do Estado, do poder de polícia fiscalizatório. Trata-se, na
verdade, de providência indispensável à verificação de ilícitos tributários. Nesta espécie de
apreensão investigativa, repita-se, o direito do contribuinte ao contraditório e à ampla defesa
não é ignorado, mas apenas diferido para o momento do procedimento administrativo fiscal.
Da mesma forma, é possível – na verdade, é assim que ocorre na maior parte dos
entes da federação – que as leis instituidoras da medida de polícia de suspensão ou
cancelamento da inscrição nos cadastros de contribuintes de determinado tributo
prevejam expressamente: a) oportunidade de manifestação prévia do sujeito passivo
eventualmente prejudicado, assim como; b) direito de resposta fundamentada à referida
manifestação. Mesmo antes da inscrição, é natural o diálogo entre empresa e Fazenda Pública
no que diz respeito às exigências – obrigações acessórias – prévias ao início das atividades.
Entendemos que a lei que disciplina a inscrição nos cadastros de contribuintes não
precisa sequer dispor sobre os procedimentos administrativos para cancelamento, suspensão
ou indeferimento, desde que, na prática, haja obediência às leis do processo administrativo no
âmbito de cada ente federativo.
Dito isso, caem por terra as assertivas de que as medidas de apreensão de
mercadorias, suspensão ou cancelamento de inscrição nos cadastros de contribuintes seriam
inconstitucionais por necessariamente afrontarem o devido processo legal, o contraditório e a
ampla defesa.
Atuando a administração fazendária dentro dos limites da Lex Suprema, não há que
se falar em sanção política.
4. O Cancelamento da Inscrição nos Cadastros de Contribuintes como Medida Protetiva da Ordem Econômica: Correta Interpretação do art. 170, Parágrafo Único, da Constituição Federal
Segundo lições de doutrina e jurisprudência majoritárias, as práticas de polícia
administrativa referentes ao cancelamento da inscrição de empresas grandes devedoras de
tributos nos cadastros de contribuintes de determinado imposto afrontariam as disposições
constitucionais constantes dos artigos 5º, XIII16, que regula o livre exercício profissional, e
16 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
170, parágrafo único17, que regula o livre exercício da atividade econômica, do Texto
Supremo.
Tais assertivas não podem prevalecer.
Não existe dispositivo constitucional que não possa ser sopesado a outro da
mesma importância também constante do texto da Constituição de 1988. O art. 170,
parágrafo único, é exemplo clássico disso. O exercício da atividade econômica encontra, sim,
limites no ordenamento jurídico, sendo que grande parte das balizas ao exercício da atividade
econômica encontram-se positivadas nos incisos I a IX do art. 170 da Carta Magna.
Sobre o dispositivo em comento, julgamos indispensáveis as palavras de Leonardo
Vizeu Figueiredo:
(...) a regra é a liberdade de exercício da atividade econômica, como corolário da livre iniciativa, na qual o Estado não deve interferir na manifestação volitiva de seus cidadãos para tanto. Todavia, isso não significa que o Estado, nos casos em que se evidencie interesse da coletividade, não possa regular a atividade econômica, impondo requisitos para seu exercício racional, atuando, inclusive, com poder de polícia administrativa para fazer valer e efetivar suas medidas, devendo tal dispositivo ser interpretado de forma sistemática com os demais preceitos constitucionais de direito econômico. Resta claro, portanto, que o instituto jurídico da autorização, previsto no artigo 170, parágrafo único, da CRFB, se trata de ato jurídico negocial, aplicável as atividades econômicas cuja exploração se sujeita ao Poder de Polícia do Estado. Por óbvio, a natureza jurídica quanto à liberdade de atuação estatal, isto é, quanto à vinculação e a discricionariedade do Poder Público, dependerá de prévia análise da legislação instituidora (marco regulador), mormente quanto à liberdade de atuação do particular em face da chancela da Administração Pública.18 (Grifo nosso).
Na mesma direção, vejamos o que diz o professor Calixto Salomão Filho:
(...) livre iniciativa não é sinônimo de liberdade econômica absoluta (...). O que ocorre é que o princípio da livre iniciativa, inserido no caput do art. 170 da Constituição Federal, nada mais é do que uma cláusula geral cujo conteúdo é preenchido pelos incisos do mesmo artigo. Esses princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.
17 Art. 179. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e da livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames de justiça social, observados os seguintes princípios: (...) Parágrafo único: É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos na lei.
18 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. pp. 65-66.
anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada.19 (G.N.).
O que podemos concluir é que qualquer atividade sofrerá influências do poder de
polícia estatal sempre que forem violados alguns dos princípios gerais da atividade
econômica.
Visando à defesa do consumidor, foi editado o Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990); para proteção da livre concorrência,
função social da propriedade e repressão do abuso do poder econômico, foi criada a Lei
8.884, de 11 de junho de 1994, conhecida como Lei Antitruste, posteriormente revogada pela
Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011.
Nos moldes da nova Lei Antitruste (Lei n. 12.529/2011), por exemplo, constituem
infrações da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma
manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir, dentre outros, os seguintes efeitos:
I) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa
(Lei n. 12.529/2011, art. 36, I); II) dominar mercado relevante de bens ou serviços (Lei n.
12.529/2011, art. 36, II) e; III) aumentar arbitrariamente os lucros (Lei n. 12.529/2011, art. 36,
III).
Dentre as condutas caracterizadoras das hipóteses anteriores, destacamos as de:
a) limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado (Lei n. 12.529/2011, art. 36,
§3º, III); b) criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de
empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços (Lei n.
12.529/2011, art. 36, §3º, IV) e; c) vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente
abaixo do preço de custo (Lei n. 12.529/2011, art. 36, §3º, IV).
Ora, a depender do caso – daí a importância de uma lei que contenha hipóteses de
cancelamento ou suspensão de inscrição em cadastro de contribuintes bem delineadas –, o
reiterado não pagamento de tributos ou descumprimento de obrigação tributária
acessória produzirá alguns (ou todos) efeitos previstos no supracitado artigo 36 da Lei n.
12.529/2011, como, por exemplo, o aumento arbitrário dos lucros ou o prejuízo à livre
concorrência. Empresas que não recolhem tributos na forma devida claramente terão
mais facilidades para praticar preços abaixo dos verificados no mercado.
Sobre o assunto, mais uma vez nos valeremos das valiosas lições de Calixto Salomão
Filho; confira-se:
19 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Atividade Econômica (princípios e fundamentos jurídicos). São Paulo: Malheiros, 2001. pp. 93-94.
Em primeiro lugar, é preciso garantir que a concorrência se desenvolva de forma leal, isto é, que sejam respeitadas as regras mínimas de comportamento entre os agentes econômicos. Dois são os objetivos dessas regras mínimas. Primeiro, garantir que o sucesso relativo das empresas no mercado dependa exclusivamente de sua eficiência, e não de sua ‘esperteza negocial’ – isto é, de sua capacidade de desviar consumidores de seus concorrentes sem que isso decorra de comparações baseadas exclusivamente em dados do mercado.20
Além da pena de multa, a lei 12.529/2011 comina, para os casos narrados acima,
dentre os quais se inclui o reiterado inadimplemento tributário, outras penas, de natureza
extrapatrimonial, como, por exemplo, a proibição de contratar com instituições
financeiras oficiais e participar de licitações tendo por objeto aquisições, alienações,
realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública
federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração
indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos (Lei n. 12.529/2011, art. 38, II) e a inscrição
do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor (Lei n. 12.529/2011, art. 38,
III). Para os casos mais graves, a lei comina até mesmo a penalidade de cisão de sociedade,
ou transferência de controle societário (Lei n. 12.529/2011, art. 38, V).
Em resumo, diversas sanções gravíssimas são estabelecidas em prol da livre
iniciativa, da concorrência e dos interesses do consumidor, ainda que, porventura, venham a
limitar o exercício da atividade econômica da empresa infratora, que poderá até mesmo ser
cindida, não sendo forçoso salientar jamais ter existido qualquer manifestação do Supremo
Tribunal Federal acerca de eventual inconstitucionalidade da Lei n. 12.529/2011.
Entendemos que nem toda lei que determine o cancelamento da inscrição de
empresas devedoras nos cadastro de contribuintes pode ser taxada de sanção política. Para
tanto, é indispensável que referido diploma legal: a) supere todos os degraus do postulado da
proporcionalidade, ou seja, é fundamental que o diploma normativo seja adequado, necessário
e proporcional em sentido estrito aos fins a que se propõe, bem como que: b) obedeça ao
princípio constitucional da isonomia.
6. Voluntário Inadimplemento Tributário como Prática Violadora da Livre Concorrência: O Julgamento do Recurso Extraordinário n. 550.769 pelo Supremo Tribunal Federal.
20 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as condutas. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 54.
Em total consonância com o exposto no tópico anterior, o Supremo Tribunal Federal
negou provimento ao Recurso Extraordinário 550.76921, interposto por indústria de cigarro
em face da união e por meio do qual a recorrente defendia a não recepção – pela ordem
jurídica inaugurada com a Constituição Federal de 1988 – do Decreto-Lei 1.593, de 21 de
dezembro de 1977, que prevê interdição de estabelecimento por meio de cancelamento de
registro especial para exercício da atividade de produção de cigarros para empresas
inadimplentes de obrigações tributárias principais e acessórias relacionadas ao Imposto sobre
Produtos industrializado – IPI.
Nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa, relator do recurso extraordinário em
comento, “Não haveria se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade
econômica combatessem estruturas empresariais que se utilizassem da inadimplência
tributária para obter maior vantagem concorrencial”. Para o julgador, “para ser
reputada inconstitucional, a restrição ao exercício de atividade econômica deveria ser
desproporcional.”
O Min. Ricardo Lewandowski sublinhou que o descumprimento reiterado de
obrigações fiscais por parte de empresas do ramo provocaria distorção do mercado, pois
permitiria o comércio de produtos em patamar de preço inferior à concorrência, e que a livre
iniciativa não seria absoluta. Ressaltou, ainda, que os Enunciados, 323 e 547 da Súmula do
STF não seriam aplicáveis à espécie, por aludirem a devedores inseridos no regime geral
de atividades econômicas.
Já no julgamento da Ação Cautelar 1.65722, ajuizada pela mesma fabricante de
cigarros com o objetivo de conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário mencionado
acima, o ministro César Peluso, relator para o acórdão, falava na “existência de periculun in
mora inverso, consistente na exposição dos consumidores, da sociedade em geral e, em
particular, da condição objetiva da livre concorrência, ao risco da continuidade do
funcionamento de empresa inabilitada”. Para o Douto Ministro, “não há impedimento a que
norma tributária, posta regularmente, hospede funções voltadas para o campo da defesa da
liberdade de competição no mercado, sobretudo após a previsão textual do art. 146-A da
Constituição da República”.
Em arremate, o julgador afirmara que:
21 STF, RE 550769/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 22.5.2013. 22 STF, AC 1657 MC, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CEZAR PELUSO,
Tribunal Pleno, julgado em 27/06/2007.
(...) perante as características desse mercado industrial concentrado, em que o fato tributo é componente decisivo na determinação dos custos e preços do produto, o descumprimento das obrigações fiscais é aqui acentuadamente grave, dados seus vistos impactos negativos sobre a concorrência, o consumidor, o erário e a sociedade. E representa, ainda, tentativa de fraude ao princípio da igualdade e de fuga ao imperativo de que a generalidade dos contribuintes deva pagar tributos. (G.N).
Em resumo, o que fez o Supremo Tribunal Federal foi simplesmente analisar o tema
das medidas de cancelamento da inscrição de empresas grandes devedoras de tributos sob os
prismas da proporcionalidade e da igualdade.
7. Exame de validade da Lei Paranaense n. 14.701/2005 à luz da Igualdade e da Proporcionalidade
No presente tópico, iremos examinar a validade da Lei n. 14.701/2005 do Estado do
Paraná – “que dispõe sobre concessão de inscrição no CAD/ICMS para atividade econômica
de importação e distribuição de combustíveis automotivos derivados ou não de petróleo” – à
luz do princípio da igualdade e do postulado da proporcionalidade. Daremos especial ênfase à
norma contida no inciso II do art. 4º do referido diploma legal, segundo a qual “Acarretará,
ainda, o cancelamento da inscrição no CAD/ICMS a existência de débitos inscritos em dívida
ativa, sem exigibilidade suspensa, em valor superior ao capital social”.
Confira-se:
O princípio da isonomia – ou igualdade -, direito fundamental positivado no art. 5º,
caput, da Constituição de 1988, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Trata-
se, não restam dúvidas, de um dos valores supremos de nosso Estado Constitucional de
Direito, funcionando, consequentemente, como vetor interpretativo das demais disposições
constitucionais. Em consonância com a máxima aristotélica, haverá igualdade, em última
instância, sempre que se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida
de suas desigualdades.
A noção de igualdade teve seu primeiro grande momento no universo jurídico na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, de acordo com a qual “os
homens nascem e são livres e iguais em direitos” (Art. 1º). À época, contudo, prevalecia a
concepção liberal de uma igualdade “abstrata e apriorística”23, logo, uma concepção
23 CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 160.
meramente formal de igualdade. Vê-se assim que, no início, a isonomia era vista
sobremaneira como um meio de garantir a força da lei e inibir os privilégios da nobreza, sem
que efetivamente se preocupasse com as diferenças concretas existentes entre os homens.
Hoje, no entanto, predomina a noção de igualdade material, segundo a qual
tratamentos diferenciados serão bem-vindos nas situações em que os administrados
encontrarem-se em posições de desigualdade.
Sobre o tema, são irretocáveis as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:
Igualdade em sentido matéria, além disso, significa proibição de tratamento arbitrário, ou seja, a vedação da utilização, para o efeito de estabelecer as relações de igualdade e desigualdade, de critérios intrinsecamente injustos e violadores da dignidade da pessoa humana, de tal sorte que a igualdade, já agora na segunda fase de compreensão na seara jurídico-constitucional, opera como exigência de critérios razoáveis e justos para determinados tratamentos desiguais. A compreensão material da igualdade, por sua vez, na terceira fase que caracteriza a evolução do princípio no âmbito do constitucionalismo moderno, passou a ser referida a um dever de compensação das desigualdades sociais, econômicas e culturais, portanto, no sentido que se convencionou chamar de uma igualdade social ou de fato.24 (G.N)
Além da disposição geral da igualdade constante do art. 5º, caput, supracitado, nossa
Carta Magna estabelece ainda uma série de dispositivos que conferem concretude a esse dever
de isonomia, a exemplo do que ocorre com a igualdade entre homens e mulheres em direitos e
obrigações (CF/88, art. 5º, I), a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e
de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (CF/88, art. 7º, XXX) e
a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do
trabalhador portador de deficiência (CF/88, art. 7º, XXXI)25.
Na seara tributária, decorrem da igualdade genérica os princípios da isonomia
tributária (CF/88, art. 150, II), da capacidade contributiva (CF/88, art. 145, §1º) e da
proibição do tributo com efeito de confisco (CF/88, art. 150, IV). Para Roque Antonio
Carrazza: “A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com
igualdade, melhor expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo
tratamento tributário.”26 É por causa disso, por exemplo, que nossa Constituição confere
24 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. pp. 540-541.
25 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. op. cit.. pp. 542-543. 26 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 28. Ed. São Paulo: Método,
2012. p. 89.
tratamento tributário favorecido às micro e pequenas empresas (CF/88, art. 179) e estabelece
uma série de imunidades tributárias – genéricas e específicas.
No Brasil, ninguém dissertou tão bem acerca da melhor forma de identificar os
sujeitos merecedores de tratamento diferenciado – ou igualitário – quanto o professor Celso
Antônio Bandeira de Mello. Em seu Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, o jurista
defende serem as discriminações aceitáveis sempre que se consiga superar 3 (três) estágios
fundamentais, quais sejam: 1) escolha ponderada do fator de discriminação; 2) existência de
correlação lógica entre o fator de discriminação e a desequiparação pretendida e; 3)
consonância da discriminação com os interesses protegidos pela Constituição27.
Sobre a proporcionalidade, concordamos com aqueles que, como o professor
Humberto Ávila, retiram do referido postulado a natureza de princípio jurídico. Tem-se, na
verdade, uma limitação de 2º grau, na medida em que a proporcionalidade encontra-se no
nível das normas que regulam o método de aplicação das chamadas limitações de 1º grau,
como regras e princípios. É justamente por atuar nos casos de colisão entre princípios,
sobretudo aqueles caracterizados como direitos e garantias fundamentais, que a
proporcionalidade não pode a eles se equiparar. Nas palavras do renomado jurista gaúcho:
Nos casos de normas que possuem uma eficácia extrafiscal e restringem os direitos de liberdade (por exemplo, normas que estabelecem obrigações acessórias, isenções para o desenvolvimento de uma região, presunções em razão de fundamentos econômico-administrativos), é consistente a aplicação trifásica do dever de proporcionalidade. E assim é porque existe um fim concreto estruturador da relação jurídica. A aplicação do dever de proporcionalidade no Direito Tributário abrange, via de regra, o Poder Legislativo, na hipótese de haver um fim externo. Nesse caso, deve ser exercido o controle trifásico do dever de proporcionalidade.28 (G.N)
As regras tributárias que dispõem sobre o cancelamento da inscrição especial de
empresas nos cadastros de contribuintes de determinado tributo em virtude de débitos, sem
dúvidas, enquadram-se na categoria de normas com eficácia extrafiscal restritivas de direitos
de liberdade mencionada acima. Mais precisamente, têm por objetivos resguardar os
interesses concorrenciais de determinado setor da economia, bem como conferir harmonia e
estabilidade ao Sistema Constitucional Tributário.
27 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
28ÁVILA, Humberto Bergmann. Sistema Constitucional Tributário: de acordo com a emenda constitucional n. 42, de 19/12/03. São Paulo: Saraiva, 2004. pp. 97-98.
Um ato normativo passará pelo crivo da proporcionalidade sempre que estiver apto a
superar as 3 (três) fases da proporcionalidade – daí se falar em critério trifásico. São elas: a)
adequação; b) necessidade e; c) proporcionalidade em sentido estrito.
Por adequação, também conhecida como pertinência ou idoneidade, deve-se
entender que o meio utilizado pelo administrador ou pelo órgão legislativo, quando da
realização de medidas restritivas de direitos, deve atingir o objetivo escolhido. A intervenção
só será necessária, por sua vez, quando não puder ser substituída por outra de menor
gravidade, daí falar-se também em vedação de excessos. Por fim, falar-se-á em
proporcionalidade em sentido estrito quando os benefícios da medida, adequada e
necessária, em termos de realização do objetivo pretendido, superar outros valores
constitucionalizados e limitados Utiliza-se aqui também a expressão mínima restrição29.
Pois bem, a Lei Estadual n. 14.701/2005, embora estabeleça tratamento tributário e
administrativo inequivocamente mais severo às empresas que atuam – ou que pretendem atuar
– no setor de importação ou distribuição de combustíveis automotivos, chegando até mesmo a
prever o cancelamento da inscrição da empresa no CAD/ICMS nos casos em que o valor da
dívida ativa inscrita e sem exigibilidade suspensa ultrapassar o capital social, não afronta nem
o princípio constitucional da igualdade nem tampouco o postulado da proporcionalidade.
Falando de isonomia, podemos observar, em primeiro lugar, que o fator de discrímen
escolhido – empresas atuantes num dos mais relevantes setores da economia e da sociedade,
como é o setor de combustíveis – apresenta total correlação com a desequiparação
estabelecida na lei em estudo. Em outras palavras, é totalmente justo que se trate de maneira
mais rígida uma empresa distribuidora de combustíveis, capaz de sonegar em único mês
milhões de reais a título de ICMS, do que se trata um pequeno supermercado ou mesmo uma
padaria. Da mesma forma que se justifica um tratamento mais brando às pequenas e micro
empresas, justifica-se uma maior rigidez para empresas atuantes no setor de combustíveis. O
raciocínio deve ser o mesmo aplicado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário n.
550.769.
Além disso, a desigualação proposta está em consonância com os mais relevantes
valores constitucionais, sobretudo aqueles relacionados ao dever fundamental de pagar
tributos (derivado, repita-se, de um dever geral de solidariedade), à harmonia e estabilidade
do Sistema Constitucional Tributário e, por fim, à defesa da ordem econômica, mais
especificamente, da livre concorrência e da livre iniciativa. Apenas para se ter uma ideia da
29ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. pp. 111-115.
relevância do referido segmento para a economia, mais de 20% da arrecadação de ICMS do
Estado do Paraná vem de operações com combustíveis. Uma empresa do setor que sonega
ICMS pode facilmente, e em pouco tempo, levar à falência dezenas de outras; a concentração
de mercado, em última instância, acaba sempre trazendo nefastos prejuízos também aos
consumidores.
O diploma legal em comento é também claramente proporcional, na medida em que
adequado, necessário e proporcional em sentido estrito aos fins a que se propõe. É adequado,
porque os requisitos essenciais de inscrição e cancelamento são específicos para a proteção da
ordem econômica e tributária, impedindo que empresas e sócios sem qualquer idoneidade
financeira venham a lesar os cofres públicos. É necessário, haja vista que num setor como
esse, marcado pela sonegação tributária, o aproveitamento de técnicas diversas daquelas
previstas na ineficiente LEF com vistas à proteção da ordem jurídica são exigências
absolutamente indispensáveis, jamais excessivas. Por fim, é proporcional em sentido estrito
porque as restrições pretendidas de maneira nenhuma superam os benefícios alcançados.
Não se venha argumentar também que o cancelamento da inscrição da empresa é
medida contraditória, que impede a arrecadação do tributo devido. Na prática, o que se
verifica com a continuidade das atividades é o incremento da dívida e a “quebra” de um
número ainda maior de empresas concorrentes. A maior parte das dívidas tributárias oriundas
da atividade de importação e distribuição de combustíveis é “impagável”, daí porque se faz
tão importante um diploma legal como o que ora se estuda.
Não há sanção política quando a restrição estatal tem por único objetivo a promoção
de valores maiores do Ordenamento Constitucional.
8. Conclusões
1. Cunhou-se a expressão “sanção política” para designar as medidas restritivas ou
proibitivas impostas aos contribuintes como meios indiretos de cobrança de tributos, a
exemplo das práticas de retenção de mercadorias, inscrição dos devedores tributários nos
cadastros de inadimplentes e cancelamento da inscrição de empresas nos cadastros de
contribuintes de certo imposto.
2. Tanto doutrina quanto jurisprudência têm rechaçado indiscriminadamente
qualquer diploma normativo regulador de práticas que se assemelhem àquelas discriminadas
acima, via de regra, sob o argumentos de que: a) não seriam admitidos meios de coerção
indireta para cobrança de tributos; b) a cobrança de dívidas fiscais só poderia ser realizada por
meio do procedimento de execução fiscal, positivado na Lei n. 6.830, de 22 de setembro de
1980 (Lei de Execução Fiscal); c) as sanções políticas violariam princípios constitucionais
fundamentais como os do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal; d)
referidos métodos inviabilizariam o exercício da atividade econômica e profissional.
3. Ao contrário do que se tem defendido, no entanto, o procedimento executivo
regido pela Lei n. 6.830/80, em que pese enquadrar-se como meio legítimo de cobrança de
tributos, não pode, de maneira alguma, ser enxergado como o único instrumento à disposição
da Fazenda Pública.
4. Não há nada no ordenamento jurídico que nos permita concluir de maneira
diversa: a uma, porque a satisfação do direito material – qualquer que seja ele – não pode nem
deve ser buscada exclusivamente por meio do Poder Judiciário; a outra, porque o
procedimento de execução regido pelo diploma legal supracitado encontra-se totalmente
defasado em relação às mais modernas diretrizes do Direito Processual Civil brasileiro.
5. Também o argumento de que o crédito tributário já seria dotado de uma série de
privilégios e garantias não deve prosperar, ainda mais quando observamos que quase todas as
“benesses” previstas no CTN estão relacionadas à existência de um patrimônio genérico e
“invisível” do devedor.
6. Da mesma forma, não é verdadeira a tese da constituição unilateral do título
executivo da execução fiscal pela Fazenda Pública, haja vista que a população participa, sim,
da constituição do referido título tanto por meio de representantes eleitos quanto quando do
exercício do direito de defesa no curso do procedimento administrativo fiscal de lançamento
ou mesmo, nos casos de tributos lançados por declaração ou homologação, no momento da
declaração das informações pelo contribuinte.
7. Tanto a ideia de supralegalidade da LEF é falha que nosso ordenamento jurídico
prevê uma série de outros dispositivos legais voltados à arrecadação de tributos, a exemplo do
art. 193 da Lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) e dos artigos 191-
A do Código Tributário Nacional e 57 da Lei n. 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação
de Empresas).
8. As práticas indevida e indiscriminadamente chamadas de sanções políticas não
necessariamente violam princípios constitucionais processuais, como os do devido processo
legal, do contraditório e da ampla defesa, devendo ser sempre conferido às partes
possivelmente prejudicadas a efetiva oportunidade de manifestação.
9. Mais do que um meio indireto de cobrança de tributos ou proteção da harmonia e
estabilidade do Sistema Constitucional Tributário brasileiro, o cancelamento da inscrição de
empresas devedoras de tributos deve ser encarado como instrumento de resguardo da ordem
econômica, mais especificamente, da livre iniciativa e da livre concorrência.
10. Com base nos mesmos fundamentos expostos no parágrafo anterior, o Supremo
Tribunal Federal julgou válido Decreto-Lei que prevê o cancelamento da inscrição especial no
cadastro de contribuintes do IPI para empresas grandes devedoras do tributo atuantes no
segmento da fabricação de cigarros.
11. A Lei n. 14.701/2005 do Estado do Paraná, que dispõe sobre concessão de
inscrição especial no CAD/ICMS para exercício de atividade econômica de importação e
distribuição de combustíveis automotivos derivados ou não de petróleo, embora estabeleça
tratamento tributário e administrativo inequivocamente mais severo às empresas que atuam no
setor, não afronta nem o princípio da igualdade nem o postulado da proporcionalidade.
12. O fator de discrímen escolhido apresenta total correlação com a desequiparação
estabelecida na lei em estudo, ademais disso, a desigualação proposta está em consonância
com os mais relevantes valores constitucionais, sobretudo aqueles relacionados ao dever
fundamental de pagar tributos, à harmonia e estabilidade do Sistema Constitucional Tributário
e à defesa da ordem econômica, mais especificamente, da concorrência e da livre iniciativa.
13. O tratamento diferenciado conferido às importadoras e distribuidoras de
combustíveis é (a) totalmente adequado e necessário aos fins a que se propõe a lei, (b) não
prevê deveres excessivos ou impossíveis de serem cumpridos pelas empresas e (c) não se
sobrepõe aos benefícios oriundos da restrição.
14. Não há que se falar em sanção política quando a restrição imposta pelo Estado
tem por único objetivo a promoção de valores maiores do Ordenamento Constitucional.
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