Cláudio UlpianoCláudio UlpianoCláudio UlpianoCláudio Ulpiano
PPEENNSSAAMMEENNTTOO:: LLUUCCRRÉÉCCIIOO EE EESSPPIINNOOZZAA
(16. 06. 1994)
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Há um texto de comentário em que aparece
um fato estranho: o confronto que uma
determinada filosofia faz entre dois deuses –
EROS, deus do amor; e VÊNUS VOLUPTAS
(voluptas traduzindo prazer), Vênus do prazer.
Essa filosofia afirma que Eros não seria
propriamente um deus, mas uma invenção humana
– enquanto que a Vênus Voluptas seria realmente
uma deusa.
O que essa filosofia quer dizer é que Eros, o
deus do amor, não tem existência divina real e é
uma invenção da arte humana; e que a arte
humana só tem um poder: produzir FELICIDADE.
Então, está sendo colocado que esse deus do amor,
Eros, é um deus que nos traz a felicidade.
Conforme essa filosofia está colocando, Eros não é
realmente um deus, porque ele impede o supremo
movimento de alegria da vida – que seria o
homem encontrar a PLENITUDE DA LIBERDADE.
Liberdade essa que o amor impede, porque nos faz
depender de um outro, externo a nós.
Aluno: Inclusive, Platão, no Banquete, coloca
que desconhece um deus que seja carente…
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Claudio: Para Platão, Eros era um deus; e
aqui está sendo colocado que não, que Eros é uma
invenção dos homens, é uma arte. Deus,
realmente, seria a Vênus Voluptas, porque ela
seria uma deusa apenas do prazer, que não
conduziria os homens a essa posição do amor,
porque o amor nos dá uma imediata dependência:
para encontrar a nossa felicidade ou a nossa
alegria nós passamos a depender de um outro, que
não nós mesmos.
Essa filosofia está nitidamente condenando o
amor como um empecilho e um impedimento para
que o homem atinja a liberdade; e decantando a
Vênus Voluptas, que seria o prazer. E esse prazer
poderia ser alcançado através de comunidades
humanas: os homens viveriam em comunidades –
como, de alguma maneira, houve com os hippies
na década de sessenta; ou com os beatniks na
década de cinqüenta, por exemplo.
Pela Vênus Voluptas, a alegria e a prática do
prazer se dariam integralmente. Então, apareceu
uma coisa muito estranha. É que nós estamos
vendo uma filosofia se confrontar com algo
considerado pelos homens, talvez, como o mais
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importante de suas vidas, que é o amor. Então,
essa filosofia está surpreendentemente afirmando
que o amor de maneira alguma nos traria a
felicidade. E essa filosofia é toda ela dedicada às
PRÁTICAS; e ela diz que há duas práticas: a
PRÁTICA DO PRAZER e a PRÁTICA DA DOR. E ela
vai afirmar que o amor é aquilo que nos traz
muita dor – porque nós dependeríamos
permanentemente de alguma coisa exterior a nós
mesmos. Enquanto que a Vênus Voluptas, que é a
amizade, comunidades de amizade gerando
prazeres, independentemente de relações de
qualquer um com qualquer um, não nos conduziria
a essa posição do amor. Faria aparecer o que é
mais importante na vida, que é a liberdade. A
liberdade seria conseguida pela Vênus Voluptas,
mas seria impedida pelo Eros.
Eu vou fazer uma colocação, que é, inclusive,
pra frente, que pode até mesmo se debater com o
que eles estão dizendo e afirmar que Eros não
seria propriamente um deus, Eros seria alguma
coisa, algo da invenção da arte humana. A arte
humana teria produzido Eros e a Vênus Voluptas
seria realmente uma deusa. Isso, porque essa
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filosofia, que é a filosofia dos atomistas (nós temos
um especialista lá no canto, que é o Estevão, que
vai inclusive fazer uma conferência sobre isso…),
do Epicuro e do Lucrécio, está afirmando – por
isso que estou dizendo – que a arte do homem é
sempre a mesma: produzir INFELICIDADE. Então,
a única maneira de nós encontrarmos o que é
importante e o que não é importante é a prática…
Prática se opõe a especulativo, prática e
especulativo se opõem. Especulativo é algo que
pertence exclusivamente ao pensamento e a
prática é aquilo que se faz. Então, para essa
filosofia, a única coisa que importa é a prática; e a
prática nos mostra dois resultados permanentes: o
PRAZER e a DOR. Então, a experiência
fundamental da vida é a busca do prazer. E a vida
não para de nos ensinar como se conquista o
prazer e se afasta da dor.
Para essa filosofia, o homem faz da sua vida
um mal permanente, porque ele se deixa
perturbar. O quadro da humanidade – afirma essa
filosofia – é um quadro de PERTURBAÇÃO
PERMANENTE, mas não de perturbação do corpo, e
sim de perturbação da ALMA. Nós, os homens,
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teríamos a alma excessivamente perturbada e toda
a filosofia teria uma única função: servir para
produzir uma prática com prazer. Ou seja, o
serviço da filosofia seria nos ensinar o que
pertence à natureza.
É a maneira como eu expliquei Eros e Vênus
Voluptas, dizendo que Eros não seria algo que
pertenceria à natureza, mas seria da invenção da
arte dos homens. Então, é função da filosofia nos
ensinar a distinguir o que pertence à natureza e o
que pertence ao mito; porque aquilo que pertence
ao mito é que vai nos trazer a infelicidade. E se
nós partirmos para entender a natureza, ou seja,
fizermos da nossa vida uma prática constante de
entendimento, se nós procurarmos entender, nós
vamos entender a natureza e vamos suprimir de
nós a infelicidade.
Então, está se lançando para vocês uma
filosofia e ela tem como objetivo fundamental o que
estou chamando de prática e a prática se divide em
prazer e dor. Nitidamente, o prazer e a dor são
fatos que nós experimentamos e podemos
distinguir. Ninguém precisa nos ensinar o que é o
prazer, nem o que é a dor, nós aprendemos. O que
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nós temos que fazer é abandonar todo o regime do
comando e da obediência para entrar no regime do
entendimento. Porque é somente entendendo a
natureza que nós superaremos as nossas
infelicidades. (Ponto aqui, viu?)
Eu dei uma entrada na filosofia de Lucrécio,
e essa explicação, que eu ia dar no meio da aula,
não tinha como objetivo dar Lucrécio pra vocês.
Não, eu não vou fazer isso, porque se eu desse
Lucrécio eu iria isolar muito esse curso. Neste
curso daqui, junto com tudo que estou dando, eu
preciso dar um excesso de cultura: dar, assim,
muita informação junto com as aulas. Então, não
vou poder dar Lucrécio pra vocês. O que eu vou
dar vai ser Plotino, século III e IV d.C.; e Espinosa,
século XVII d.C. Nós vamos estudar basicamente
esses dois. Agora, estudando Espinosa e Plotino
vocês vão ver que Espinosa é um resultado da
filosofia do Lucrécio, um prolongamento da
filosofia de Lucrécio – e eu acabei de colocar pra
vocês que Eros seria a razão da nossa infelicidade.
Então, Eros é uma PAIXÃO TRISTE. Vamos manter
esse nome agora, esse sintagma: paixão triste.
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De onde se originam as paixões tristes? Não
se originam da natureza. Elas se originam sempre
da arte do próprio homem, que é a arte de
produzir constantemente a infelicidade. (É uma
coisa assustadora, mas que é real.) Então, eles
estão dizendo, Lucrécio está pregando pra nós que
nós devemos aprender o que é a natureza. Eu vou
um pouco por Lucrécio para depois passar para
Plotino e Espinosa.
Para Lucrécio, a natureza é constituída de
dois elementos – e essa aula é definitiva, é para
ficar, nós não podemos esquecer! Para Lucrécio,
fundamentalmente, são dois os elementos que
constituem a natureza: o VAZIO e os ÁTOMOS. A
questão dos átomos, eu vou explicar pra vocês o
que é, mas ele vai afirmar que o vazio – “O”
vazio: é um vazio só! – é infinito e a quantidade
dos átomos também é infinita. Então, já no
despertar da filosofia dos atomistas, eles estão nos
explicando que existem três infinitos (vão existir
mais!), mas existe o INFINITO DO VAZIO, o
INFINITO DOS ÁTOMOS e o INFINITO DA
COMBINATÓRIA dos átomos com “o vazio” (UM
vazio só). Agora, a palavra átomo é uma palavra
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que nós utilizamos no século XX, segundo as
informações da física quântica. E a física quântica
nos informa que o átomo é uma estrutura.
Estrutura é um elemento constituído por partes, ou
seja, quando você tem alguma coisa que é uma
estrutura, significa que aquilo tem partes e cada
parte tem uma função. Então, o átomo, esse átomo
com que nós trabalhamos aí e com que fizeram a
bomba atômica é uma estrutura, que é constituída
de prótons, elétrons, etc., os prótons também têm
estrutura, etc.
Agora, o átomo do atomista não tem
estrutura, ele é uma unidade; e essa unidade –
sem partes, sem estrutura – é ETERNA; ou seja,
os átomos nunca nasceram e nunca vão
desaparecer: eles são eternos; como o vazio
também é eterno. E um corpo é constituído de
átomos. Um corpo pode ser esta xícara, um corpo
pode ser o átomo da física quântica, um corpo pode
ser uma galáxia. Então, todos os corpos são
constituídos de átomos. Os elementos que
constituem os nossos corpos são eternos; mas os
nossos corpos nascem e morrem, porque todas as
estruturas se fazem e se desfazem.
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Então, eles estão afirmando que nós não
precisamos de nenhum deus, de nenhuma entidade
superior para compreender a natureza. A natureza
é o vazio e esses átomos; os átomos compõem os
nossos corpos, esses átomos são os compostos dos
nossos corpos, nossos corpos não podem, então, ter
uma existência infinita, uma existência eterna,
porque são estruturas. Eles se desfazem – se
fazem e se desfazem – e os elementos que
compõem os nossos corpos enquanto tais são
eternos, porque eles são os átomos. Então, esse
universo vai ter sempre presente dentro dele
corpos e mundos, porque os átomos vão se chocar,
vão se juntar entre eles e formar mundos e corpos
enquanto tais. Mas, agora, já fica lançado pra
vocês que um corpo é um conjunto de átomos e que
todos os corpos fazem emissões.
Começa a aparecer, agora, uma doutrina
muito difícil; e eu acho que é até onde eu vou –
depois eu vou parar com o Lucrécio!
Por exemplo, o fogo emite fumaça, a luz
emite calor, as flores emitem aromas, os nossos
corpos emitem imagens – porque todos os corpos
fazem emissões de átomos. Então, nesse instante, o
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nosso corpo aqui está emitindo conjuntos de
átomos ou compostos de átomos: é por isso que eu
estou vendo vocês e vocês estão me vendo. Agora,
esses compostos de átomos, que os corpos emitem,
vão se encaminhar para o infinito, vão embora. Os
corpos estão emitindo átomos, eles são conjuntos,
alguns nos pegam e outros seguem em direção ao
infinito. Esses conjuntos de átomos que seguem em
direção ao infinito vão ser chamados CORPOS
DISTANTES DAS FONTES. Ou melhor, SIMULACROS
DISTANTES DAS FONTES, ou ainda melhor,
FANTASMAS DISTANTES DAS FONTES.
O que eles estão dizendo com isso, é que
todos os nossos terrores, todos os nossos medos se
originam nesses simulacros distantes das fontes,
que vão formar o que eles chamam – isso é
fundamental – de SIMULACROS TEOLÓGICOS,
ONÍRICOS e ERÓTICOS. Ou seja, a ilusão percorre a
natureza. Agora, o que tem que ser feito é
entender essa natureza, porque o entendimento vai
nos afastar dos temores que esses simulacros vão
nos causar. Então, essa filosofia afirma – e aqui
eu gostaria que vocês declarassem para vocês de
forma definitiva, porque eu não vou abandonar
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essa forma de pensar – que a única maneira de
nós ultrapassarmos os mitos e os temores é pelo
entendimento. Ou seja, a única maneira de nós
conseguirmos a liberdade é pelo pensamento... não
há outra! De qualquer outra maneira que nós
vivermos, conforme eu estou colocando pra vocês,
nós seremos banhados e subjugados por esses
simulacros. Então, para vencê-los, a única maneira
que existe é o pensamento.
Então, aqui vocês recebem a informação
principal do que é exatamente a minha maneira de
trabalhar em filosofia: a filosofia, a arte e a
ciência ou a vida só têm um instrumento de
libertação: o pensamento. Então, isso se torna
simples? Não! Isso se torna muito complexo,
porque a partir de então, nós temos que verificar o
que é o pensamento.
Então, eu comecei essa aula com o Lucrécio
(eu dou três cursos por semana: o Lucrécio é um
curso que eu estou dando na terça-feira; não o de
vocês), mas a função dessa introdução ao Lucrécio
é que, a partir de agora, eu vou começar a falar
sobre o que é o pensamento. Vocês já estão
sabendo por que eu estou falando o que é o
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pensamento. Porque o pensamento…
E aí vocês não se iludam com nada mais,
porque o pensamento é a única possibilidade que
nós temos de encontrar a liberdade e de suprimir o
domínio desses fantasmas teológicos, oníricos e
eróticos, que vão nos banhar ao longo das nossas
vidas. (Acho que foi bem, certo?). O meu objetivo
nesse começo de aula foi exclusivamente colocar a
questão do pensamento pra vocês.
Então, a partir de agora, eu começo a falar
do que é o PENSAMENTO em termos de Espinosa.
Então, eu abandono Lucrécio – Lucrécio está no
século I a.C. – e passo para Espinosa. Espinosa é
século XVII.
É muito interessante que Espinosa e Lucrécio
tenham morrido mais ou menos com a mesma
idade, quarenta e poucos anos. Lucrécio morreu
completamente louco, mas não é louco por terrores
dos simulacros, mas por alguma coisa como o
cérebro mole, como se dizia no século passado. E o
Espinosa morreu mais ou menos aos quarenta e
poucos anos de idade também, perseguido por
todos os simulacros existentes na época, ou seja,
perseguido por todas as religiões, perseguido pelo
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fanatismo, perseguido pela ignorância.
Então, o que estou dizendo pra vocês é que o
pensamento – aquilo que nós vamos tentar
investigar pela primeira vez nesta aula – não tem
como objetivo o encontro da verdade; não é esse o
objetivo do pensamento! O objetivo do pensamento
é afastar a IGNORÂNCIA e o FANATISMO. Ou seja,
o negativo (usem essa palavra), o NEGATIVO DO
PENSAMENTO para Aristóteles e para Platão, por
exemplo, é o ERRO. Para Espinosa, o negativo do
pensamento não é o erro, o negativo do
pensamento é a IGNORÂNCIA e o FANATISMO.
Como, por exemplo, para Nietzsche, o negativo do
pensamento é a TOLICE.
Então, nós não sabemos, mas o pensamento
tem adversários terríveis. Adversários terríveis do
pensamento que não são, de maneira nenhuma, o
erro – mas a tolice, o fanatismo, a ignorância, a
alienação (como se dizia na década de sessenta),
que seriam os grandes adversários do pensamento,
tomando-se o pensamento como o único ***
Vou dar um exemplo, depois eu vou voltar,
tá?
São três as práticas para se encontrar a
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essência: Eros… Olha só, olha que coisa
interessante: Eros vai encontrar a verdade. O que
Lucrécio disse de Eros? Que é o pai da infelicidade.
No Platão, é para encontrar a verdade. Então, para
Platão, encontrar a verdade são as três maneiras
de se encontrar a essência: Eros, o amor; a
dialética; e o demônio. (Eu não vou explicar!). O
demônio (o daimon, não é?); o amor e a dialética.
Uma vez encontrada a essência, o que nós
encontraríamos? Encontraríamos a verdade! Então,
para Platão, na hora em que o sujeito humano for
governado pelo pensamento, ele vai tender para a
verdade. Então, o corpo e as paixões estariam
impedindo a verdade de ser encontrada. É preciso
dobrar o corpo, dobrar as paixões, dar poder ao
pensamento, para que este encontre a verdade – e
aí estaria organizado o destino do homem. Foi
nítido o que Platão colocou: é que o drama da
filosofia seria suprimir a doxa e encontrar a
episteme. Na realidade, isso nunca aconteceu. Nós
nunca saímos da doxa, nós nunca saímos da
opinião.
Vinte e quatro séculos depois, Proust vai
falar uma coisa muito semelhante: A questão do
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Proust, de toda a obra dele – e isso é
surpreendente para os seus leitores –, é
abandonar o sujeito, encontrar o pensamento e ir
procurar a essência. Logo, Proust é… platônico –
ele é altamente platônico! – só que a essência de
Proust e a essência de Platão não têm nada a ver,
não são sequer parentes. A essência de Platão (isso
ainda é muito difícil para vocês) é regida pelo
princípio de identidade, pelo princípio de não-
contradição, pelo princípio que vai organizar todo o
campo da ciência do Ocidente. Enquanto que as
essências proustianas são alógicas, supralógicas,
elas não têm logicidade; por isso, elas são
diferenças puras e são chamadas por Proust de
MUNDOS POSSÍVEIS. Então, a questão do Proust é
ultrapassar o sujeito psicológico que nós somos (ou
seja, Swann nunca entendeu Proust), e atingir o
pensamento; porque o pensamento é que vai fazer
essa viagem nos mundos possíveis. E a função do
pensamento é dar esses mundos possíveis em
forma de arte para os outros homens. Só há
comunicação entre os homens quando esses
mundos possíveis emergem em forma de arte. Fora
isso, os homens ficarão sempre submetidos a um
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solipsismo insuportável, ou seja, cada um fechado
no seu próprio gueto psicológico. A única maneira
de suprimir esse gueto psicológico é através do
pensamento, encontrando esses mundos possíveis.
Então, para Proust, à diferença de Lucrécio, nem a
amizade salva. É preciso que se abandone o amor,
que se abandone a amizade e se faça da obra de
arte o objetivo da vida.
Eu não estou sendo proustiano, não estou
sendo lucreciano, nada disso. Estou apenas dizendo
como eles dizem, porque a única coisa que resiste
no que estou dizendo pra vocês é que a única
maneira que nós temos para alcançar a liberdade é
pelo pensamento. Então, o pensamento, aqui,
apareceu com muita facilidade – o pensamento em
Platão e o pensamento em Proust se assemelham
muito: é livrar-se do sujeito psicológico que nós
somos.
Aluno: Cláudio, eu poderia dizer que as
essências no Proust se aproximam mais das
essências dos estóicos do que de Platão?
Cláudio: Não. Elas não se aproximam das
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essências dos estóicos. Vou te dar uma resposta
rápida, porque senão fica só para nós dois, não é?
As essências dos estóicos são corpos; e as
essências do Proust são puro espírito. Mas é o
espírito conquanto não pertencente a um sujeito
psicológico. É como se o que Proust chama de
essências fossem outros mundos – outras luas,
como ele diz, outros Saturnos – que só o
pensamento pode visitar. O pensamento visita
esses mundos e é capaz de construir nesses
mundos, de fazer uma montagem estética e
expressá-los. Então, a arte é uma expressão.
Expressão de quê? Expressão desses mundos
possíveis, expressão dessas essências. Agora, essas
essências não são regidas pelo princípio de
identidade, conforme em Platão (não vou explicar
já, que não vai dar). Agora, essas essências, na
verdade, são o caos. O pensamento encontra essas
essências e ergue nelas a obra de arte. Ou seja,
quando Modigliani fez aqueles pescoços e aqueles
olhos, ele mergulhou em mundos possíveis. Ou
seja, para fazer uma obra de arte, você tem que
abandonar o psicologismo, o sujeito psicológico que
você é, fazer um mergulho no caos e arrancar do
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caos alguma coisa. A obra de arte é,
necessariamente, esse mergulho que você faz no
caos. Daí, a grande dificuldade que é você
abandonar a facilidade do sujeito psicológico que
você é… O sujeito psicológico é a coisa mais fácil do
mundo – a gente apenas não consegue viver (não
é?). Abandonar o sujeito psicológico que a gente é,
entrar nessas forças terríveis do pensamento e
com ele fazer esse mergulho no caos e de lá
arrancar alguma coisa.
A obra de Proust começa a ficar mais clara
no texto O Tempo Redescoberto. Vocês já podem até
ir direto pra lá, inclusive se vocês quiserem
focalizar o Proust com o Visconti. Aliás, a maneira
que eu vou usar aqui vai ser essa: sempre pegar a
obra de arte, para facilitar para a gente poder
entender. O Visconti é um proustiano. Então, toda
aquela filmografia do Visconti vai nos liberar tudo
isso. Mas, como eu estou dizendo, não é o sujeito
psicológico que vai poder alcançar esses mundos
possíveis; ele não alcança nunca! Você tem que
quebrar o sujeito psicológico. O que Proust está
chamando de sujeito psicológico? Sobretudo a
associação de idéias. Porque o sujeito psicológico
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que nós somos é constituído por associações de
idéias. Nós vamos passando de uma idéia para
outra, de um fato para outro: diz outra coisa meu
amigo! Aí nós vamos conversando de uma coisa
para outra, de uma coisa para outra, aí não
abandonamos nunca o sujeito psicológico que nós
somos.
Para entrar no pensamento é preciso fazer
esse percurso em direção aos mundos possíveis, é
sobretudo quebrar essas associações de idéias.
Porque essas associações de ideias são exatamente
a doxa e aquilo que nos dá um conforto, uma
segurança. Nós passamos a achar que está tudo
bem, que está tudo tranquilo, que está tudo calmo:
não está; não está! Nós estamos diante do caos.
Nós estamos diante do caos, nós estamos diante do
vazio e é o pensamento que tem que confrontar
com ele e de lá trazer alguma coisa.
Eu acho que foi bem essa exposição.
Vocês, então, têm aqui a tríade: sujeito
psicológico, objeto e pensamento. Como minha
primeira exposição de pensamento, o pensamento
seria, no caso do Espinosa, o que ele vai chamar de
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idéia expressiva. A idéia expressiva é porque o
pensamento é aquilo que expressa esses mundos
possíveis, enquanto que o sujeito manifesta as suas
psicologias. Nós vamos diferir um sujeito humano
– ele está sempre manifestando os seus
fantasmas, as suas biografias… E quando você lê
esses textos de best seller, o sujeito é sempre
fantástico, não é? É sempre um sujeito fantástico,
que é diferente do que o Proust está dizendo do
pensamento – que é a entrada nos mundos
possíveis. Isso vai se chamar idéia expressiva. (Eu
acho que foi bem, não é?). Chama-se IDÉIA
EXPRESSIVA, no sentido de que expressa os
mundos possíveis. E o sujeito é aquele que
manifesta a sua psicologia.
A representação representa os nossos
estados psicológicos, a nossa biografia, os nossos
fantasmas. Enquanto que a expressão, a idéia
expressiva, à diferença da idéia representativa (aí
é que vai começar a ficar difícil, eu vou fazer um
esforço enorme para vocês entenderem…), a idéia
expressiva não expressa o psicológico. Ela vai
expressar o que, em Proust, chama-se mundos
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possíveis e em Espinosa chama-se terceiro gênero
do conhecimento. Aí, veja bem, é possível que nós
possamos dizer algo que não seja da nossa
psicologia, dizer algo que está em nós, mas não é
psicológico. É como se fosse uma unidade diferente,
alguma coisa que nos pertencesse, mas não fosse
nosso; alguma coisa do espírito, mas não da nossa
biografia, não da nossa subjetividade. Ou seja, a
função da arte não é contar os nossos sofrimentos
pessoais, a função do pensamento não é dizer da
nossa história, da nossa biografia, mas é expressar
isto que eu estou chamando de mundos possíveis.
Dois pontos, que eu vou começar a explicar.
Acho que foi bem outra vez, não é?
O que eu quero que vocês marquem, que não
se esqueçam, é a distinção entre idéia expressiva e
idéia representativa – e a propriedade que eu
coloquei na idéia representativa, que é a distância.
Isso daqui é fundamental no momento em que a
gente for trabalhar em arte. Que a distância faz
parte da representação. E um outro fato que eu
distingui, fiz uma distinção entre manifestações
psicológicas e expressões de alguma coisa que está
dentro, mas que não é psicológico.
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Então, vamos fazer essa passagem, eu vou
parar dois minutinhos para tomar um café. Podem
perguntar também [...]
[...] É o que vocês vão fazer para fazer o uso
da vida de vocês. Ou seja, tornar esse planeta
magnífico ou, mais do que nunca, torná-lo
paranóico e insuportável, como ele é. Quase que já
explodindo, de tão insuportável que ele é.
Então, só um instante…
Aluna: Cláudio, uma vez, falando em Platão,
você falou no simulacro no sentido quase positivo,
de que o simulacro seria aquele que não se
submeteria à lei.
Cláudio: É parecido. Os simulacros perdem
contornos porque se distanciam das fontes, ele é
muito parecido com o simulacro platônico. Agora,
nos simulacros platônicos são as conquistas
sofistas para se libertarem dos modelos platônicos.
Têm dois funcionamentos diferentes. São para
essas questões que vocês precisam estar sempre
acesos, que são as ambiguidades dos termos, não
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é? Saber que nós vivemos enfiados na
ambiguidade. A ambigüidade, a polissemia não
seria um acontecimento equívoco que aparecesse.
Não, isso se dá sempre! Nós estamos sempre
envolvidos nisso que eu chamo de ambiguidade.
Inclusive, já dei uma aula pra vocês que é o
problema da… alma isolada… como se chama? Do
solipsismo. O problema do solipsismo. Eu
dificilmente poderia afirmar que a gente se
comunica, porque a gente está sempre dando uma
produção de sentido e o outro está ouvindo de
maneira diferente.
Agora, vamos tentar entender, tá? Eu vou
chamar o homem – não tem nenhuma discussão
teórica nisso que eu vou dizer, é a coisa mais fácil
do mundo, não vou nem fazer explicação –, o
homem, seja qual for, eu vou chamar de sujeito.
Depois, mais na frente, eu faço uma teoria do
sujeito; agora não precisa disso. Então, o homem é
o sujeito e o sujeito tem como correlato – a
palavra correlato quer dizer que se A é correlato
de B, sempre que A aparecer, B tem que aparecer
–, então, o sujeito tem como correlato o objeto,
certo?
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Nós, os sujeitos humanos, temos como
correlato o objeto, que é o MUNDO. O mundo é o
correlato do sujeito, o mundo é o objeto com o qual
o sujeito está sempre em contato. Nós, como
sujeitos, vivemos incluídos num campo físico, num
campo político, num campo social, num campo
econômico, que é onde a nossa vida se desenvolve
– nós, enquanto sujeitos psicológicos, sujeitos
sociológicos. Agora, além desses dois termos –
sujeito e objeto, que eu coloquei como correlatos –
Platão constituiu a idéia de essência.
A minha visada, ao falar isso pra vocês, no
meio do caminho vocês vão entender como o
platonismo funciona, mas o meu objetivo é
Espinosa.
Então, sujeito é o homem. Objeto é tudo
aquilo com o qual o homem entra em contato –
pode vir de qualquer tipo de mundo: físico, social,
econômico, religioso; seja ele qual for, chama-se
objeto. Mas, além desse objeto, Platão coloca uma
figura chamada essência. A essência, para Platão,
seria algo que o nosso corpo enquanto tal, o nosso
corpo chamado de sensível, não apreenderia. Quem
apreenderia as essências seria apenas o
25
pensamento.
O que Platão está colocando, então, é que o
homem seria dotado de pensamento, mas o
pensamento dele seria para apreender as
essências. Então, enquanto o sujeito humano
discutisse sobre os objetos, ele viveria no campo da
doxa, no campo das opiniões. E para atingir as
essências, ele teria que abandonar a DOXA e
entrar na episteme. A episteme é o pensamento!
Então, quando vocês ouvirem a palavra
EPISTEMOLOGIA – que faz muito sucesso por aí –
essa palavra quer dizer que o homem abandonou a
opinião, abandonou a doxa e passou para a
episteme. Então, diz-se que o grande sonho da
filosofia, ou seja, todo o programa da filosofia, é a
superação da doxa para o encontro da episteme.
Ou seja, superação da opinião para o encontro do
pensamento. E o pensamento não lidaria com os
objetos clássicos enquanto tais – objetos físicos,
químicos, sociais – mas com a essência. A
essência seria alguma coisa colocada fora do
tempo; ela teria eternidade.
Aqui começa a surgir algo terrível
teoricamente, não dá para trabalhar já, seria
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insuportável pra vocês: a essência seria o objeto do
pensamento. Ou seja, quando o pensamento
estivesse no campo da episteme, o que seria o
objeto dele? As essências. (Entendido?). A essência
seria a unidade…
[FIM DA GRAVAÇÃO]
FONTE: Centro de Estudos Claudio Ulpiano
APEDEUTEKA GUINEFORT 2014
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