DISCURSO E IDENTIDADE NACIONAL: O UFANISMO PRESENTE NAS
PROPAGANDAS DOS ANOS DE CHUMBO
Priscylla Alves Lima (orientanda)
Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago (orientadora)
RESUMO: O golpe civil-militar brasileiro de 1964 encontra em Hobsbawm (1995) e Fico
(2004) a descrição da marca usual a todos os outros que ocorreram na América Latina: um
confronto entre esquerdistas céticos à política americana e reacionários ultradireita. O
desenlace político desse embate revelou, textualmente, o apoio norte-americano ao regime
ditatorial abalroado de tortura e perseguição, no qual o discurso anticomunista era uma
premissa para a união entre ditadores militares e o governo dos Estados Unidos. É nessa
superfície que determinados enunciados emergem: um cuidadoso esquema de propaganda,
esquematizado por agências do governo (como a AERP e a ARP), servia aos desejos dos
militares, divulgando peças publicitárias nas quais se denegria a imagem dos opositores e se
fomentava o ideário de amor à nação. Para tanto, eram elaboradas campanhas educativas e
cívicas que tinham a concepção de “educar o povo, para que ele soubesse agir no ‘país
grandioso’ que se pensou ser o Brasil” (FICO 2004, p. 55), nas quais a representação da
sociedade miscigenada evocava a união da sociedade brasileira em torno do dispositivo
ufanismo. Tomando principalmente a teoria proposta por Michel Foucault, este trabalho
pretende analisar de que forma os enunciados das propagandas oficiais produzidas durante o
período da Ditadura Militar Brasileira pretendiam fabricar sujeitos dóceis e úteis ao modelo
de sociedade proposto.
PALAVRAS-CHAVE: Enunciado. Identidade. Biopolítica. Biopoder. Sociedade de
Controle.
Introdução
A Linguística muito tentou definir e redefinir o conceito do termo “enunciado”
abordando seus diferentes vieses: como estrutura, como resultado e meio pelo qual uma
interação ocorre...Porém, foi no encontro com o pós-estruturalismo de Michel Foucault que a
Linguística Aplicada de corpus vai caracterizar o enunciado e considerá-lo no tempo e no
espaço, bem como os sujeitos que os proferem. Logo, o enunciado foucaultiano nos interessa,
em Análise do discurso e principalmente, para lançar as bases iniciais do trabalho ora
proposto pois:
[...] é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir
da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição se eles ‘fazem
sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e
que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há
razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios
estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma
função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com
que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 2000,
p. 99).
Os enunciados, então, se materializam no tempo e no espaço através de textos que são
produzido de acordo com regras determinadas socialmente, subordinadas pela História e pela
cultura. Os signos em rotação giram em torno de leis que agenciam os temas a serem
discutidos, a serem elevados ao estatuto de verdade. Não há uma normatização produtiva que
não tenha sido antes, aceita como legítima. Essa legitimidade é auferida no âmbito das
instituições, e, um conjunto de enunciados, tidos como verdades e que tratam de uma mesma
temática, fazem parte de uma mesma formação discursiva, um discurso:
Conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação
discursiva; ele é constituído de um número limitado de enunciados, para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência; é de parte a parte,
histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que
coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações,
dos modos específicos de sua temporalidade (FOUCAULT, 1986, p. 135-36)
Em sua lógica pós-estruturalista, o historiador francês permite que vários campos
científicos se unam em prol do objetivo maior dos analistas: descrever as condições de
produção em que determinados textos emergem, escrutinando as subjetividades e situações,
bem como a relação destes com a memória e com a tríade verdade-poder-saber. As palavras
de Orlandi complementam :
Partindo da idéia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso-
ideologia. Essa relação se complementa com o fato de que, como diz M. Pêcheux
(1975), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é
interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. (2001, p.
17)
O domínio geral de enunciados que, em sua rotatividade, gera sentidos capazes de
serem elevados ao estatuto de verdade nas relações de poder que envolvem tanto as práticas
discursivas quanto as não-discursivas é denominado de discurso e pode construir os sujeitos,
moldando-lhes as identidades.
O enunciado é uma função que rege os signos, sua existência é condicionada a um
equilíbrio entre o lingüístico e a materialidade e ele é necessário para dizer se subsiste ou não
a frase, a proposição, o ato de fala, e a fim de que se possa analisar se a proposição é “legítima
e bem construída, se o speech act está em conformidade com as condições exigidas. Em
conformidade com as vontades de verdade e com o arquivo da época.
Evidentemente, a conclusão de que o enunciado não tem as mesmas propriedades que
a frase, a proposição ou o ato de fala, nos leva a pensar que ele não é uma estrutura, mas sim
uma função que permeia as estruturas dos signos e a eles pertence intrinsecamente e pela qual
se pode verificar efeitos de sentido. Essa função obedece à regras de existência, às quais o
filósofo francês deu o nome de arquivo. Tudo que é dito passa por um agenciamento que
resultará num arquivo, uma soma que recebe o estatuto de verdade. Segundo o teórico francês,
o arquivo é um jogo de regras para os tipos de textos aparecerem em determinada época, a
saber:
Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram conservados por uma
civilização, nem o conjunto de traços que puderam ser salvos de seu desastre, mas o
jogo das regras que, numa cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento
de enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência paradoxal de
acontecimentos e de coisas. Analisar os fatos de discurso no elemento geral do
arquivo é considerá-Ios não absolutamente como documentos (de uma significação
escondida ou de uma regra de construção), mas como monumentos: é - fora de
qualquer metáfora geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor
gesto na direção do começo de uma archê - fazer o que poderíamos chamar,
conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como uma arqueologia
(FOUCAULT apud REVEL, 2000 p.18).
À luz da abordagem pós-estruturalista, o arquivo abrange o conjunto dos discursos que
foram transformados em textos dentro de certo recorte temporal, e que prosseguem através da
história.
Existe uma economia que regulamenta a produção dos dizeres e que classifica o
verdadeiro e o falso, e esta é cheia de particularidades, por exemplo: o discurso ufanista1
recebe o estatuto de verdade nas instituições que o produzem e reproduzem. É
constantemente usado pelo poder político sendo espalhado com a ajuda das instituições
educativas, científicas e da indústria da comunicação. Ele é fabricado e disseminado através
das grandes instituições políticas (no caso o exército, a escola, a igreja e a mídia). O bom
cidadão deve marcar o seu lugar de acordo com o que é valorizado como verdade por estas
estruturas, e então, sob pena das retaliações de uma exclusão identitária, o pertencer é
trabalhado. Segundo Hall (2004, p. 13), a identidade é o sentimento de pertença construído
social e historicamente. Ou seja, aspectos básicos que nos levam a nos comportar de
determinada forma, como integrantes de grupos específicos, não estão descritos em nossos
1 Segundo o dicionário HOUAISS: “orgulho exagerado do país onde se nasceu.”
genes, não são biologicamente definidos e sim historicamente formados. Fazer parte de um
grupo significa adotar certos padrões de comportamento, além de formar uma imagem de si
mesmo e dos outros. Essa adoção de determinados paradigmas acontece no decorrer da vida
do sujeito. Baseando-nos no conceito de comunidade imaginada presente em Hall (1994, p.
50) acreditamos que uma cultura nacional é um meio de construção de significados que
prepondera sobre nossas ações. Ser sujeito requer que o indivíduo, apesar de sua autonomia,
se identifique, a priori, com algo mais abrangente: uma nação a que ele reconheça como sua
pátria. A nação como lar “tem um poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade”
(SCHWARZ apud HALL, 2004, p. 48).
Esse mesmo autor afirma que “uma cultura nacional [...] é uma estrutura de poder
[...]”. Este, nesse caso, foi exercido pelos civis-militares apoiadores do regime e subdividiu a
nação em “subversivos” e “cidadãos de bem”. Modificando uma parte da cultura nacional
pela propaganda e trabalhando a identidade através da mídia, a Sociedade de Controle2,
durante o regime militar, constrói uma nova identidade para o brasileiro, se valendo de uma
vontade de verdade:
[...] essa vontade de verdade [...] apoia-se sobre um suporte institucional: é ao
mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas
como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas,
como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também
reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo
atribuído.[...] creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e
uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos [...] uma
espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a
literatura ocidental teve que buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil,
na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro [...]
(FOUCAULT, 1996, p. 17-18)
Utilizando este arcaboluço teórico, vamos observar como se deu a construção da
identidade brasileira analisando a ruptura tanto histórica quanto lingüística que transformou o
ufanismo eugênico em ufanismo territorial, melhor esclarecendo: como um ideal de nação
2 Nas sociedades pós-modernas, essa redução do assunto à linguagem também é feita pelos aparatos tecnológicos
e midiáticos. Estes podem objetivar o indivíduo,cuja reação é tender a crer no texto impresso. Marcamos aqui o
curioso papel da mídia na formação dos sujeitos e, consequentemente, o surgimento de uma Sociedade de
Controle que, segundo o historiador e filósofo Michel Foucault, é responsável pela origem do indivíduo
moderno, agindo não só sobre o corpo, mas também sobre a alma deste, tornando-o dócil e útil para a sociedade.
É aí que se salienta certa importância, um lugar estratégico que os meios de comunicação assumem no mundo
contemporâneo, [o que Martín-Barbero – 2003, p.33- designa como “mediacentrismo”], cuja relação se estreita
com o destaque que a mídia toma na atualidade. Torna-se impossível, assim, ignorar essa estrutura e suas ações.
Essa relevância é estudada por uma teoria da comunicação chamada Teoria da Agenda (ou hipótese da Agenda
Setting) definida do seguinte modo: “a teoria da agenda demonstra que a compreensão que as pessoas têm de
grande parte da realidade social é fornecida predominantemente pelos meios de comunicação de massa. [...] O
receptor tende a aceitar a representação apresentada pela mídia como a única possível.” [TEMER, 2009, p. 73]
calcado na higiene racial pouco a pouco foi cedendo lugar a uma comunidade imaginada
baseada na valorização das características do hibridismo racial. Vamos analisar os textos que
surgiram para tais efeitos de sentido.
O a priori histórico -ufanismo eugênico e o nascimento do biopoder e da biopolítica – do
Jeca Tatu ao brasileiro ideal.
As novas ordens mundiais que estabeleceram as configurações territoriais, cuja gênese
estava inscrita no período que abarcou as duas Guerras Mundiais, trouxeram um arranjo de
inquietações usuais a todas as sociedades que, sob a influência do capitalismo, organizavam-
se sob a forma do Estado Nacional (SILVA, 2007) e da comunidade imaginada (HALL,
1994). O historiador Eric Hobsbawn (1996) acredita que, principalmente, o período entre
guerras inscreveu em todo o mundo um novo nacionalismo que instigou a formação das
identidades nacionais e o fortalecimento dos Estados.
O Brasil também passou por este processo, e havia uma necessidade premente de,
como comenta o historiador, construir uma nova nacionalidade. A imagem da sociedade
brasileira naquela época era representada pelo miscigenado pois um padrão multiétnico e uma
alta taxa de miscigenação delineavam as características particulares do nosso país.
Na Europa do século 19, surge a eugenia, as discussões acadêmicas envolvendo a
genética e a evolução das espécies aplicava, em textos científicos voltados para o estudo da
espécie humana, os princípios gerais do darwinismo, que estudou a hereditariedade nos
animais.
Em 1865, poucos anos depois da leitura do livro “A Origem das Espécies”, escrito
por seu primo Charles Darwin, o cientista britânico Francis Galton publicou dois
artigos na Macmillan´s Magazine em que pretendia provar que a inteligência e as
habilidades humanas não eram funções da educação e do meio, mas sim da
hereditariedade. Quatro anos depois, estes artigos foram expandidos e transformados
no livro “Hereditary Genius” (O Gênio Hereditário), dando origem às discussões
sobre o controle da reprodução human e o papel da seleção social na preservação das
“boas gerações”. Com esta obra, Galton introduziu um conjunto de idéias que, em
1883, ele denominou de eugenia, “a ciência da hereditariedade humana”. Suas
concepções eugênicas sobre o melhoramento racial se associaram intimamente às
discussões sobre evolução, seleção natural e social, progresso e degeneração,
conceitos fundamentais que constituíram as idéias científicas e sociais no final do
século XIX (SOUZA, 2006, p.13).
Assim, foram se formando as primeiras sociedades eugênicas3, representadas por
diversos grupos sociais, entre eles o acadêmico e o judiciário, e que procuravam realizar
3 Os eugenistas classificavam as medidas eugênicas como “preventiva”, “positiva” e negativa”. Conforme a
definição de Renato Kehl, a “eugenia preventiva” consistia em combater os “venenos raciais” responsáveis pela
pesquisas científicas e divulgar projetos de engenharia social, políticas e leis que
incentivassem a implantação das idéias eugênicas baseadas no conceito de uma raça pura (a
branca), que traria a cura para as doenças da sociedade como a sífilis, o alcoolismo, a
demência mental através da sua ativa participação no processo miscigenatório
(branqueamento). Logo, essas idéias chegam também ao Brasil, sendo bem aceitas inclusive
por Getúlio Vargas, admirador de estados totalitários, como o fascista de Mussolini. A busca
de uma identidade nacional baseada numa seleção hereditária pela raça se torna uma
preocupação política.
Assim, o Estado estatiza o biológico. A questão da vida passa a ser interesse dos
governantes, e esse tipo de poder é denominado por Foucault de Biopoder. Sua forma de ação
ocorre através do que o autor caracteriza como Biopolítica. Este exerce controle sobre a
população, o coletivo, e tornará públicos saberes legitimados pelo discurso médico para criar
uma nacionalidade agenciada pelo dispositivo4 do ufanismo eugênico:
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica e - diferentemente da
disciplina, que se dirige ao corpo - à vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem,
ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no
limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie.[...] a nova tecnologia que se instala,
se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em
corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada
por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira
tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização,
temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas
que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo,
mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada
no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já
não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de urna
"biopolítica" da espécie humana (FOUCAULT, 2005).
degeneração humana, como o álcool e o tabaco; “fazer a profilaxia das moléstias epidêmicas e endêmicas”, bem
como praticar a higiene e o saneamento em todos os seus aspectos. A “eugenia positiva” “cuida, por excelência,
da boa geração; é favorável á educação dos jovens no que diz respeito á sua educação sexual (...); se incumbe
também da educação física, do avigoramento pelas regras da boa higiene, dos exercícios bem compreendidos e
praticados”. Por outro lado, a “eugenia negativa” propunha um rigoroso controle sobre os meios de reprodução
humana, proibindo o matrimônio de indivíduos considerados “inaptos” ou “anormais”; é responsável, ainda, pela
formulação de leis que restrinjam a imigração e que apliquem a esterilização (KEHL, Renato. Sociedade
Eugênica de São Paulo. 1919).
4 O termo "dispositivos" aparece em Foucault nos anos 70 e designa inicialmente os operadores materiais do
poder, isto é, as técnicas, as estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir do momento
em que a análise foucaultiana se concentra na questão do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se
ocupar não "do edifício jurídico da soberania, dos aparelhos do Estado, das ideologias que o acompanham", mas
dos mecanismos de dominação: é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de
"dispositivos". Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-se tanto de discursos quanto de práticas, de
instituições quanto de táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso, de "dispositivos de
poder", de "dispositivos de saber", de "dispositivos disciplinares", de "dispositivos de sexualidade" etc. (REVEL,
2005, p.39).
De acordo com as pesquisas foucaultianas, as noções do evolucionismo que versam
sobre a hierarquia das espécies, ( luta pela vida e seleção que elimina os menos adaptados)
tornaram-se uma espécie de fusão do discurso biológico com o discurso político, no caso da
eugenia. Os enunciados cientificamente fundamentados buscavam provar as diferenças entre
os indivíduos biologicamente superiores e inferiores e: “a medicina vai ser uma técnica
política de intervenção com efeitos de poder próprios. A medicina é um saber-poder que
incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os
processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores”
(FOUCAULT, 2005, p. 302).
Os mais contundentes textos que faziam apologia à eugenia entre as décadas de 10 e
30, no Brasil, foram, notadamente, na área científica as publicações do médico Renato Kehl,
e, na área da Literatura e do Jornalismo, os do escritor Monteiro Lobato. A Sociedade de
Controle vai delineando a sua preponderância. Lancemos um olhar em um trecho de um livro
de Kehl:
“Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. Não há política
racional, independente dos princípios biológicos, capaz de trazer paz e felicidade aos
povos. Política econômica, conservadora, democrática, socialista, fascista,
comunista, todas essas políticas e formas de governo falham se não se inspirarem
nos ditames da ciência da vida. Eis, por que, a política por excelência, é a política
biológica, a política com base na eugenia” (KEHL, 1933, p. 57).
Assim, os conceitos sobre raça e formação de uma identidade nacional impulsionaram
a elaboração do pensamento eugênico no Brasil, considerado uma das nações mais
miscigenadas do mundo e, à luz da eugenia, portanto, mais doentes. O futuro racial e a
formação de uma nova identidade do brasileiro se destacam. A ideia do atraso nacional era
atribuída à miscigenação com raças ditas inferiores e somente uma miscigenação com
imigrantes europeus seria o remédio para evitar o colapso da nação, pensamento que
preenchia o imaginário ufanista das elites nacionais5. Nas palavras de Souza houve,
5 Neste período, o sistema republicano brasileiro estava dominado por amplas oligarquias regionais que
administravam o Estado a partir de relações políticas corruptas, como o coronelismo, o mandonismo e o
clientelismo. De acordo com José Murilo de Carvalho, pelo menos até o final da Primeira Guerra Mundial, o
sistema republicano brasileiro não fez nenhum esforço para incorporar a grande maioria da população, em
especial os negros, mestiços e sertanejos. Para esse autor, a própria idéia de povo era puramente abstrata e,
devido a falta de direitos que garantissem a cidadania, o próprio povo era, em sua grande maioria, hostil ou
totalmente indiferente ao sistema republicano (CARVALHO, José Murilo de. Brasil 1870-1914: A força da
tradição. In: ____________. Pontos e Bordados. escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora
daUFMG, 1998, p. 120).
primeiramente, uma desaprovação explícita em textos internacionais, que colocava o Brasil
numa situação de desprestígio no cenário exterior:
A partir da metade do século XIX, muitos cientistas, viajantes e intelectuais
estrangeiros, apoiados nas teorias científicas e nos (pre)conceitos raciais, haviam
pronunciado diversos veredictos extremamente desfavoráveis ao futuro do Brasil.
Escritores como Arthur de Gobineau, Louis Couty e Louis Agassis - que estiveram
no Brasil durante a década de 1860 - além do inglês Thomas Buckle, consideravam
o Brasil como um “território vazio” e “pernicioso à saúde”, enquanto os brasileiros
eram vistos como “seres assustadoramente feios” e “degenerados”.Para estes
viajantes, uma conjunção de fatores climáticos e raciais, sobretudo a “larga
miscigenação”, era mobilizada para explicar a suposta inferioridade do homem
brasileiro e a impossibilidade do Brasil acessar os valores do “mundo civilizado”.
Essas representações negativas sobre a realidade nacional, quando não influenciaram
a opinião dos brasileiros sobre o seu próprio país, ao menos colocaram em dúvida a
viabilidade do Brasil no cenário internacional (2006, p.23).
Assim, o enunciado científico do sertanejo como um tipo inferior e inapto vai ser
elevado ao estatuto de verdade pela elite intelectual e transmitido por grandes veículos de
comunicação de massa nacionais e famosos escritores.
Além de publicações como a Revista do Brasil6, temos ícones da Literatura Brasileira
apoiando a eugenia, como Monteiro Lobato, que lança, em 1914, na primeira revista citada, o
personagem Jeca Tatu, num artigo intitulado “Velha praga”. O personagem é um sertanejo
preguiçoso, indolente, um trabalhador rural inapto a ser inserido na “civilização”, tal qual o
Brasil era inapto a ser aceito em uma comunidade internacional. É uma alegoria da
preocupação das elites com o povo brasileiro. A figura abaixo, encontrada na Revista do
Brazil, retrata, com traços de símio, a infeliz figura:
Revista do Brazil, 1917, pág 26.
6 Através das páginas da Revista do Brasil, Coelho-Neto ressaltava a importância da propaganda que as
autoridades médicas de São Paulo vinham fazendo em torno da Sociedade Eugênica de São Paulo: “realizando
conferências, espalhando Boletins, pregando, demonstrando, vai conseguindo realizar, ainda que lentamente, a
obra filantrópica da regeneração do homem, para cuidar, em seguida, do aperfeiçoamento da espécie” (SOUZA,
2006, p. 35).
No diálogo travado entre Ruy Barbosa e Jeca, este diz que está com fome mas não
quer ir pegar o prato para que a eminência lhe dê comida. Minimizando o problema da fome,
um dos efeitos de sentido que se pode depreender é que se este brasileiro sente falta de
gêneros alimentícios para comer, é porque está com preguiça de fazer o mínimo esforço. E a
preguiça, segundo as teorias eugênicas, era uma característica genética própria das raças
infectas. A identidade do brasileiro, miscigenado, está condicionada à indolência.
Porém, muitos estudiosos do tema discordavam de alguns princípios da
hereditariedade na formação da identidade, atribuindo à pobreza do meio e à falta de
condições sanitárias básicas, as mazelas da sociedade nacional. O avanço das pesquisas
bacteriológicas influenciou muito na mudança de posicionamento de muitos intelectuais :
“Se, até então, a mestiçagem e o clima eram vistos como as principais causas da
degeneração racial, a ciência demonstrava, agora, que o atraso do país estaria
relacionado às doenças e a falta de saneamento. De uma interpretação determinista
sobre os problemas sociais, a ciência abriria caminho para uma interpretação
médico-sanitarista.” (SOUZA, 2006, p.28)
É sob essa nova verdade do saber científico que Monteiro Lobato redime Jeca Tatu de
sua culpa pelo seu fracasso e fracasso da nação, analisando o quanto as condições do meio
perenizam o seu sofrimento e as suas precárias condições de vida, construindo novos
enunciados ele cria uma verdade resultante do abrandamento do discurso eugênico na sua
fusão com o discurso ufanista :
A nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e adaptação. É boa por
índole, meiga e dócil. O pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o
português, o espanhol. Mas é um homem em estado latente. Possui dentro de si
grande riqueza em forças. Mas força em estado de possibilidade. E é assim porque
está amarrado pela ignorância e falta de assistência às terríveis endemias que lhe
depauperam o sangue, caquetizam o corpo e atrofiam o espírito. O caipira não é
assim. Está assim. Curado, recuperará o lugar a que faz jus no concerto etnológico
(LOBATO, 1918, p. 34).
A cura para os males do Jeca Tatu não serão resumidas embranquecimento, mas no
tratamento e na modificação dos hábitos do homem do campo. Estado e corporações
farmacêuticas se unem para construir um Brasil para se orgulhar:
Podemos perceber que havia um mosaico de ideias que se misturavam tentando
reconstruir a identidade nacional através do reconhecimento de que os problemas do Brasil
poderiam ser mitigados, através do investimento em saneamento básico, através da difusão, da
comercialização de medicamentos que exterminam parasitas corporais. A inferioridade do
homem brasileiro pregada pelos eugenistas mais radicais deu lugar a uma discussão sobre o
meio na qual este era mostrado como um ambiente inóspito e letal pelas suas parcas condições
de higiene e pela falta de interesse das oligarquias, de inserir os excluídos como os índios e os
negros socialmente dando-lhes condições dignas de sobrevivência. Desaparece o Jeca Tatu,
fraco e doente. Aparece um homem forte e trabalhador, essencial para a nova imagem
identitária que vai se instaurar no regime militar, do qual falaremos agora.
O discurso comunista: o golpe e o novo ufanismo anticomunista e multiétnico
A Aliança para o Progresso foi um programa criado no governo do presidente John
Kennedy que financiava os opositores de João Goulart, favoráveis a um golpe militar. Em 18
de março de 1964 a Doutrina Mann é proclamada: os Estados Unidos apoiam o governo de
qualquer aliado, mesmo que este esteja sob os auspícios de um regime autoritário como uma
ditadura, contanto que fosse anticomunista (SUPERINTERESSANTE, 2014, p. 41). Porém o
presidente João Goulart se mostra favorável, em seus discursos, às reformas de base, como a
agrária, e também é de acordo com a expropriação de multinacionais. O embaixador de
Kennedy no Brasil, Lincoln Gordon, em uma das conversas telefônicas com a liderança norte-
americana demonstra toda a insatisfação ianque com os rumos do governo brasileiro:
[GORDON] – Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em
fortalecer a espinha militar. É preciso deixar claro, porém com discrição, que não
somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, contanto que fique
claro o motivo.
_ Contra a esquerda – cortou Kennedy.
_ Ele está entregando o país aos ...
_ Comunistas – completou o presidente.
_ Exatamente. Há vários indícios de que Goulart, contra a sua vontade ou
não...(GASPARI, 2002, p. 60).
Deste modo, a Aliança para o Progresso intensifica suas ações de financiamento e
frentes de propaganda foram criadas:
Outra frente de propaganda ficava por conta do Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), dois órgãos
brasileiros que contavam com financiamento dos Estados Unidos. Ambos produziam
conteúdo para rádio, televisão, cinema e jornais pregando o anticomunismo e a
oposição a Goulart, frequentemente misturando as duas coisas. Além das campanhas
amplas, o plano americano também contemplava ações focadas em público
diferenciado e formador de opinião: os militares brasileiros. Gastaram atuais US$ 60
mil em livros para os oficiais, e só em 1963 organizaram 1.706 exibições de filmes
“progressistas” em quartéis, bases, escolas e navios. (SUPERINTERESSANTE,
2014, p. 39).
Podemos ver, na figura abaixo, algumas publicações do IBAD:
Destaque para as chamadas de capa da revista em verde e amarelo: “ITAMARATY DE
ONTEM E ITAMARATY DE HOJE, O QUE REALMENTE SIGNIFICA COMERCIAR
COM A URSS, A DESTRUIÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS, INTERVENÇÃO DO
ESTADO NA ECONOMIA, MAO ENFRENTA KRUSCHEV, A QUEM INTERESSAM AS
ATIVIDADES DO SR. BRIZOLA, UM PROGRAMA PARA O BRAZIL, CUBA: UMA
REVOLUÇÃO TRAÍDA?”. Podemos notar um certo alarmismo nestes títulos e também
uma ironia hostil ao tratar de assuntos como o comunismo. Ao lado, um panfleto que foi
distribuído por uma igreja do Rio de Janeiro, convocando as mulheres para uma marcha
que iria ocorrer em setembro de 1968, contra os comunistas, que, segundo o escrito, caso
fizessem a revolução “iriam probi-las de amar a Deus”. Era preciso despertar na
população um estado de alerta contra uma certa identidade: a do comunista.
Veja a apologia à violência e a referência às torturas em faixa usada numa passeata
civil anticomunista em 1979:
Fonte: Biblioteca Nacional. Acessado em http://bibliotecanacional/ditadura/foto1765.org.br
Em 30 de março de 1964, João Goulart proferiu um discurso no Automóvel Clube para
militares aliados exaltando as reformas de base. A informação chegou à oposição que ficou
receosa da iminência de um golpe comunista de Jango nas próximas 48 horas. Este foi
informado de que a movimentação militar de tendência liberal progressista teria apoio dos
Estados Unidos e foge para o Uruguai, em primeiro de abril de 1964. Castello Branco avisou
a Lincoln Gordon que o apoio bélico não seria necessário. Estava instaurada a ditadura.
Abaixo, uma publicação norte-americana que produz exemplares em português lança
um caderno separado, intitulado “A NAÇÃO QUE SE SALVOU A SI MESMA”, salvação
aqui representando o golpe militar como o redentor da sociedade brasileira, que a protegeu
dos perigos do regime comunista.
Podemos verificar que, discursivamente, uma situação curiosa acontece. O léxico, que
é o conjunto de palavras de uma língua pode fazer aumentar a freqüência, na sociedade, de
alguns vocábulos. Os enunciados, determinados como partes do discurso recebem assim,
também efeitos de poder que podem agenciar as manifestações tanto escritas quanto verbais.
As palavras recebem o entrecruzamento de diferentes discursos. (FERNANDES, 2005, p. 41)
A violência política percorreu um ciclo no regime brasileiro. Introduziu palavras no
léxico cotidiano, tais como cassar, eufemismos no vocabulário político, como a
expressão “maus tratos”, para designar pura e simplesmente a tortura; siglas no
direito constitucional, como AI, abreviatura dos dezessete atos institucionais
baixados na desordem legiferante nascida com a noção segundo a qual “a Revolução
legítima a si própria” proclamada no preâmbulo do AI-1. Coroando essa confusão
semântica, o próprio regime, autoproclamado “Revolução” [...] foi ao jazigo
aceitando a classificação de “autoritário”, quando para conhecê-lo, não se dispõe, há
mais de dois mil anos, de palavra melhor que ditadura (GASPARI, 2002, p. 141).
Com o fechamento do Congresso, através do Ato Institucional número 5, no governo
de Costa e Silva, o regime ampliava muito os seus poderes: poderia cassar mandatos, demitir
sumariamente, suspendia direitos políticos, a liberdade de expressão (censura) e a reunião
pública, o confisco de bens, além de um artigo que permitida que se proibisse ao cidadão
exercer a sua profissão. Tais medidas feriam o cerne do texto constitucional. Urgia uma
necessidade de mascarar o autoritarismo do regime. A opinião pública precisava ficar do lado
dos militares e dos civis que apoiavam o regime (os industriais em sua maioria, temendo a
perda de suas propriedades através da reforma agrária proclamada por Jango), e isto
significava também apoiar um discurso anticomunista criado no seio da sociedade norte-
americana pós Segunda Guerra Mundial. Havia uma demanda de um certo tipo de brasileiro,
cordato para com os comandos militares, obediente, patriota. Para isso, era necessária a ajuda
da Sociedade de Controle e das propagandas oficiais que, como já foi comentado neste
trabalho, recebiam apoio financeiro dos Estados Unidos. Podemos concluir então que esta
nova identidade brasileira, ufanista, multiétnica e dócil se apoia na formação discursiva
estadunidense anticomunista.
Tenta-se regulamentar a população, não mais pelos fatores eugênicos, e, sim, pelo
oposto disso: a união entre as raças. Os enunciados não são mais a respeito de um brasileiro
que precisa se curar, mas de um brasileiro que precisa amar o seu país, ser tolerante e
trabalhar. Ao tentar estruturar o campo de ação dos brasileiros pela propaganda, vemos outro
conceito foucaultiano presente nas relações ditatoriais com o povo, o de governamentalidade:
A governamentalidade moderna coloca pela primeira vez o problema da
"população", isto é, não a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de sujeitos
de direito ou a categoria geral da "espécie humana", mas o objeto construído pela
gestão política global da vida dos indivíduos (biopolítica). Essa biopolítica implica,
entretanto, não somente uma gestão da população, mas um controle das estratégias
que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em relação a eles mesmos e uns em
relação aos outros. As tecnologias governamentais concernem, portanto, também ao
governo da educação e da transformação dos indivíduos, àquele das relações
familiares e àquele das instituições (REVEL, 2002, p. 54).
Esse contexto aparece com a ajuda da AERP, que foi criada em 12 de janeiro de 1968,
durante o governo do general Costa e Silva. Sua missão era difundir uma imagem melhor do
governo para a opinião pública. Em 1970, o general Médici fundou um sistema de
comunicação social para o Poder Executivo, cuja tarefa era “formular e aplicar uma política
capaz de, no campo interno, predispor, motivar e estimular a vontade coletiva para o esforço
nacional de desenvolvimento e, no campo externo, contribuir para o melhor conhecimento da
realidade brasileira” (FICO, 1997, p. 34). Geisel, em 1974, a aboliu e implantou a Assessoria
de Imprensa e Relações Públicas (AIRP), para guiar a comunicação social do governo. Em
1976, porém, desmantelou a AIRP em duas partes: Assessoria de Imprensa e Assessoria de
Relações Públicas (ARP), subordinada à Assessoria de Imprensa e não à Casa Militar, como
costumava ser.
No decorrer do regime militar foram criados vários órgãos com a finalidade de fazer a
propaganda das realizações do governo e passar uma imagem favorável dos presidentes
militares, sem a preocupação de enaltecer as suas figuras porque se temiam comparações com
o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que agiu no Estado Novo. A propaganda
disfarçada era produzida por órgãos designados como “assessorias”. Tal estruturação tinha
filiais em estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Havia também o Instituto Nacional do
Cinema, cuja produção era exibida, obrigatoriamente, em todas as emissoras de televisão. As
campanhas oficiais então revelaram o seu caráter ufanista, otimista, de cunho emotivo,
mobilizando a população sentimentalmente como o slogan criado após o AI-5: “Brasil, ame-o
ou deixe-o”:
Amar o país, no efeito de sentido procurado pelo discurso ufanista significava
orgulhar-se em exagero, trabalhar com afinco e acreditar na política totalitária, não questionar
a censura. A profusão de slogans progressistas pode ser verificada em exemplos como
“Ninguém segura este país”, ou “Este é um país que vai pra frente”, como podem ser
verificados nas imagens abaixo:
Fonte: Dicionário histórico-biográfico da propaganda no Brasil. Editora FGV: ABP, 2007.
Como podemos observar, a característica primordial desse tipo de propaganda é a
utilização do slogan, frase curta e impactante. As agências de publicidade produziam grande
quantidade de material para a AERP (FICO, 1997). A combinação do slogan progressista
“país que vai pra frente” com caricaturas de pessoas de diferentes etnias se dando as mãos
celebra um simulacro de união motivada pelas relações trabalhistas. É recorrente neste tipo de
veiculação a apologia a uma miscigenação, a um espírito de união que exclui o preconceito
racial; todos os desenhos apresentam pessoas se dando as mãos ou realizando um trabalho
colaborativo. A Norton Publicidade, uma agência que participou da produção de muitos
anúncios oficiais, tinha como sua maior cliente a Willys Overland do Brasil, empresa norte-
americana de automóveis, que na época produzia o Aero-Willys. Vejamos uma propaganda
desta agência:
A mensagem em letras pequenas diz:
Qualquer gigante ficaria uma fera no lugar dele. Há muito tempo que esse gigante
acorda cedo e trabalha até tarde. Por isso, esperamos sinceramente que esta seja a
última vez que alguém fala em gigante adormecido. E, agora, a mensagem do nosso
gigante: Pare de falar e trabalhe. Porque o futuro não existe até que você mesmo o
faça. E o seu país é este, nos outros você não passa de um estrangeiro.(VEJA, 1979,
p.23)
A frase em modo Imperativo (modo do autoritarismo, da ordem): “Pare de falar e
trabalhe” reflete duas características do governo vigente na época: censura (pare de falar) e
tentativa de subjetivação de um brasileiro trabalhador e dócil (obedeça-nos, trabalhe, não fale,
caso contrário, sofrerá um castigo físico – bordoada).
A propaganda oficial militar usou o dispositivo ufanista, o tema da união étnica e o
progresso através do trabalho e seu discurso acabou governamentalizando algumas instâncias
da música popular brasileira, como podemos perceber nessa capa de disco do grupo OS
INCRÍVEIS:
Na capa do disco, a presença da imagem que prevaleceu na propaganda institucional
de slogan “um país que vai pra frente”. Nela, se delineiam três pombas, que representam as
três etnias mais presentes aqui (branco, negro e índio). Podemos ver também ao fundo, abaixo
das pombas, a mulher, a criança, o trabalhador rural e o asiático e na frente, novamente uma
caricatura das três etnias segurando simultaneamente com o trabalhador rural uma corda que
guiará as três pombas, cujo efeito de sentido corresponde a delegar o controle da nação ao
povo, como se esta fosse a ideia principal da ditadura: o povo no poder.
Acreditar no Brasil: a confiança é um dos aspectos primordiais da identidade
construída pela propaganda. O bom brasileiro está confiante. A imagem abaixo, extraída da
veja da primeira semana de ________ do ano de_______ mostra esse excesso de crédito, essa
fé desmesurada, o apagamento dos aparatos de violência, a mitigação da imagem de um
Estado totalitário, irascível. O abrandamento da gravidade da situação.
A propaganda deve entrar na escola, sob os auspícios da disciplina de Educação Moral
e Cívica, especialmente criada para “educar o povo, para que ele soubesse agir no ‘país
grandioso’ que se pensou ser o Brasil” (FICO 2004, p. 55):
Fonte: Biblioteca Nacional. Acessado em http://bibliotecanacional/ditadura/foto1766.org.br
CONCLUSÃO
A ditadura conseguiu ativar em certos grupos o apoio ao regime e aos crimes por este
perpetrados, através de um discurso ufanista e anticomunista. O importante era fazer o
trabalhador obediente viver e deixar o comunista morrer, sendo que o terror ao comunismo
inculcado no ideário do cidadão comum era uma das premissas para o apoio à tortura, à
morte. Nas palavras de Foucault: “vai aparecer nesse momento, a ideia de uma guerra interna
como defesa da sociedade contra os perigos que nascem em seu próprio corpo e do seu
próprio corpo”.
Os enunciados são as unidades mínimas deste processo, e foram gerados tanto por
sociedades científicas (no caso do ufanismo eugenista) quanto por sociedades de controle (no
caso do ufanismo multiétnico patriota). O discurso que controla todos esses textos pode não
ser o mesmo, mas a função enunciativa que transversalmente os perpassa é a mesma: criar
uma identidade que torne os indivíduos dóceis e suscetíveis às biopolíticas.
Assim, o discurso ufanista dessa época faz com que a burguesia brasileira reconheça
uma “história” a partir da reelaboração do conceito de nação, que abandona a biopolítica
eugênica e abraça o biopoder que celebra a união étnica, o trabalho, a confiança cega no
Estado. O poder se exerce no jogo das heterogeneidades discursivas.
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