O desejo de participar de um processo formativo que abrisse a possibilidade de
reflexão/ação sobre um dos componentes essenciais do discurso e da prática do cuidado
em saúde, no caso, a inter-relação entre sujeitos sociais e políticos em ação comunicante
compromissados com a conquista da qualidade de vida individual e coletiva a partir da
realidade das ações de saúde produzidas no território foi uma das principais motivações
para minha decisão de participar do processo seletivo para a segunda turma da
Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade (RMSFC).
Em 2009, participei de um outro processo formativo, no caso a Especialização
em Saúde da Família e Comunidades, que me trouxe a possibilidade de refletir
coletivamente sobre alguns aspectos que, do meu ponto de vista, se apresentam como
centrais nos processo de produção ampliada de saúde, no caso, os mecanismos de
participação social e política das comunidades social e economicamente excluídas.
A entrada na Residência para mim representou desafio subjetivo imenso, visto
que, já trabalho no município de Fortaleza há 5 anos e na Estratégia de Saúde da
Família há 10 anos e esta condição leva muitas vezes a um desgaste ou a uma
desesperança em relação ao efetivo potencial das políticas e ações defendidas pela
Estratégia e pelo Sistema Único de Saúde de garantirem concretamente o cuidado
humanizado formalmente estabelecido no discurso destas Políticas Públicas de saúde.
Nestes momentos de desesperança, lembro de um conceito de “esperança” muito
interessante formulado por Erich Fromm, segundo ele “ter esperança significa estar
pronto a todo o momento para aquilo que ainda não nasceu e, todavia não se desesperar
se não ocorrer nascimento algum durante nossa existência”, ou seja, esperança não tem
nada a ver com o ato passivo de esperar que as coisas aconteçam, ao contrário exige a
ação permanente de estar sempre pronto para o novo e isto envolve a capacidade de
construí-lo, mas de forma tranquila, não desesperada, observando e construindo as
condições objetivas, lembrando, por exemplo, o que Marx falava a respeito da relação
entre Homem e História, “A história nada é e nada faz. O homem é quem é e quem faz”. [1]
A imersão no território que atua aqui também como espaço social formativo para
esta segunda turma da RMSFC, no caso, o território das comunidades do Parque São
José e Conjunto Esperança, revelou para mim mais fortemente que a intervenção do
trabalhador social em geral e do trabalhador da saúde em específico exige da parte
deste, como pressuposto essencial, um posicionamento político consciente. Defendo tal
condição apoiado nas palavras de Paulo Freire (1987) de que, “o trabalhador social não
pode ser um homem neutro frente ao mundo, frente à desumanização ou humanização,
frente à permanência do que já não representa os caminhos do humano ou à mudança
destes caminhos”. Para Freire, o homem, ao responder aos desafios que partem do
mundo, cria pela ação, seu próprio mundo, o mundo histórico-cultural. A estrutura
social criada pelo homem tem como expressão de sua forma de ser, a “duração” da
dialética mudança-estabilidade e esta exige do trabalhador social, análise crítica e
posicionamento conseqüente. Em suma, ou o trabalhador do SUS enquanto trabalhador
social adere à mudança que ocorre no sentido da verdadeira humanização do homem ou
fica a favor da permanência. Sua condição de homem obriga-o a decidir-se. [2]
Acredito que possivelmente esteja aí a tarefa principal do processo formativo do
trabalhador do SUS, a compreensão de que a transformação social é uma exigência do
trabalho social. A dura realidade de vida das pessoas que procuram os serviços de saúde
para “descarregarem” a chaga dolorosa da opressão social deste modelo de sociedade,
as marcas nos corpos daqueles que carregam o peso da indignidade e da injustiça, a dor
da desesperança ante as misérias de um mundo que tem nos privilégios de uma minoria
e na desonra da maioria sua expressão mais vívida, todas estas são questões que não
estão, nem poderiam estar no horizonte de ação do trabalhador social enquanto homem
neutro.
Apesar de todos os avanços do SUS enquanto política pública, desde o seu
reconhecimento como tal até o desenvolvimento de seus mecanismos de atenção
humanizada, apesar disso o discurso produzido no interior do SUS ainda não conseguiu
reconhecer nem apontar alternativas ao processo de formação do trabalhador social com
vistas à superação das limitações da ação “social e politicamente conformadora” do
trabalho em saúde. No máximo, são enfatizadas a necessidade de se preparar o
trabalhador para o enfrentamento das “necessidades do mercado de trabalho” do setor
saúde, de uma realidade de trabalho que precisa levar em conta a complexidade do meio
social onde vive a camada marginalizada da população, mas pouco se fala a respeito da
necessidade de se guarnecer este trabalhador social de instrumental teórico e prático
minimamente necessário para a reflexão crítica e a ação transformadora desta realidade.
A maior exigência recai então sobre a formação de atores sociais com uma nova
mentalidade e com capacidade de cumprir diferentes papéis sociais, mas dentro da
lógica capitalista. Neste contexto, as propostas mais avançadas apontam no sentido do
reconhecimento da função histórico-política do trabalhador de resgatar, do processo
histórico de construção social da saúde, os conhecimentos, êxitos e fracassos da
humanidade em sua luta pela cidadania e bem-estar. Bem como de garantir a
valorização dos diferentes conhecimentos como instrumento de denúncia e promoção da
mobilização crescente da sociedade na realização do seu potencial de saúde e exercício
do direito de cidadania. [3]
A imersão na realidade das duas comunidades, principalmente na parte em
efetivo e real “risco social” das comunidades, como no caso, do “Residencial Cônego de
Castro”, estigmatizada social e politicamente como “favela vertical”, revela a
necessidade da ação política do trabalhador da saúde no sentido da denúncia não só das
mazelas sociais deste modelo de sociedade, mas exigem a ação implicada no sentido da
construção coletiva do novo. A abertura do trabalhador da saúde para a construção
coletiva de um novo modelo de sociedade ou de civilização e para a denúncia e luta
contra o velho é tarefa do processo formativo para o SUS, apesar de concretamente
limitada pelo peso institucional do próprio SUS.
Do meu ponto de vista, esta reflexão sobre formação do trabalhador do SUS e
para o SUS apresenta como exigência prévia a efetivação do discurso e da prática da
atenção à saúde enquanto práxis, ou seja, como atividade de transformação das
circunstâncias e de seus determinismos sobre a teoria (formação das idéias, vontades,
teorias, desejos) e sobre a prática (criação de novas circunstâncias). A práxis do cuidado
em saúde deve apresentar então necessariamente um sentido revolucionante, como
atividade teórico-prática em que a teoria se modifica constantemente com a experiência
prática, que por sua vez é modificada constantemente pela teoria, e revela, para, além
disso, a necessidade de compreensão desta relação em conexão com a idéia de
construção de uma sociedade sem exploração.
Nas palavras de Marx, “A doutrina materialista de que os seres humanos são
produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são,
portanto, produto de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as
circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador
tem ele próprio de ser educado”. [4]
Os mecanismos para se garantir uma práxis revolucionante, muitas vezes se
chocam com o caráter institucionalizado das práticas de saúde e com as dificuldades
inerentes ao processo formativo dos trabalhadores. Acredito que o desafio de se garantir
atenção à saúde à maioria marginalizada da sociedade, longe de se resumir ao ato
concreto de superar as deficiências de caráter gerencial ou técnico, deve
necessariamente envolver a possibilidade de transformação desta realidade sócio-
econômica estabelecida pelo modelo capitalista e que, cotidianamente, tem nos
processos de assistência à saúde, espaço privilegiado de reprodução de práticas
autoritárias, de dominação e opressão.
O Sistema Único de Saúde (SUS) carrega em si contradições decorrentes de sua
constituição como política de Estado. O caráter de Política Pública “em construção” do
SUS, não muda o fato de que ele representa em última instância mecanismo de
manifestação e ação do aparelho estatal e de que é o Estado produto do antagonismo
inconciliável das classes sociais. [5]
Para Chauí, a construção ideológica do Estado como poder uno, indiviso,
localizado e visível, tem o objetivo de ocultar a realidade do social, qual seja, como
constituído pela divisão em classes e fundado pela luta de classes.[6]
Por outro lado, o caráter contraditório de se ter uma política de Estado, ou seja,
um instrumento institucional normativo, mas que apesar disso ainda carrega fortemente
um caráter imanente instituinte revela uma faceta do Sistema Único de Saúde que
impulsiona a reflexão crítica. Aliás, talvez esteja exatamente nas contradições do SUS,
as razões de sua vitalidade. O fato de se apresentar como modelo institucionalizado a
ser socialmente seguido e, ao mesmo tempo, como política social com caráter contra-
hegemônico ao sistema econômico capitalista, confere ao SUS uma aura de construção
perene, de reconstrução, de mudança. Ainda nos dias de hoje, este modelo de atenção á
saúde teima em resistir aos constantes ataques dos defensores da mercantilização da
saúde e do avanço privatista, revelando com isso, de certa forma, o entranhamento de
suas diretrizes políticas no seio das lutas populares por justiça e dignidade e a conjunção
de seus objetivos com o espírito de homens e mulheres que percebem na sua defesa, a
garantia de uma conquista social que concretamente fortalece a luta por justiça social.
A importância de se refletir criticamente sobre as estratégias utilizadas pelo
capitalismo para enfraquecer, deturpar, destruir o SUS tem no financiamento da política
um dado concreto e relevante. Relatório Anual da Organização Mundial da Saúde
(OMS) divulgado recentemente revela que a parcela de 6 % do Orçamento do governo
brasileiro destinada à saúde é inferior à média africana (de 9,6%) e o setor no País ainda
é pago em maior parte pelo cidadão. O relatório inclui um raio X completo do
financiamento da saúde e escancara uma realidade: o custo médio da saúde ao bolso de
um brasileiro é superior ao da média mundial. Dados da OMS apontam que 56% dos
gastos com a saúde no Brasil vêm de poupanças e das rendas de pessoas. O número
representa uma queda em relação a 2000 - naquele ano, 59% de tudo que se gastava
com saúde no Brasil vinha do bolso de famílias de pacientes e de planos pagos por
indivíduos. Mesmo assim, a taxa é considerada uma das mais altas do mundo, superior
ao valor que africanos, asiáticos e latino-americanos gastam em média. Em termos
absolutos, o governo brasileiro destina à saúde de um cidadão um décimo do valor
destinado pelos países europeus. Das 192 nações avaliadas pela OMS, o Brasil ocupa
uma posição medíocre - apenas 41 têm um índice mais preocupante que o do País. [7]
Voltando as necessidades de formação do trabalhador para o SUS, a proposta
formal do programa da Residência Multiprofissional de orientado pelos princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde, intervir socialmente a partir das necessidades e
realidades locais e regionais, aponta no sentido do fortalecimento do caráter instituinte
do Sistema.
Tal caráter passa concretamente pelo reconhecimento das potencialidades e
desafios a serem enfrentados no território destas comunidades que servirão de espaço
sócio-histórico de formação do trabalhador. No caso específico, do Parque São José e
Conjunto Esperança, a necessidade da formação para a atuação implicada e
consequentemente política, tem nas atividades de territorialização, principalmente no
sentido do resgate e valorização da história de luta e resistência e dos mecanismos de
organização comunitária construídos coletivamente bases instituintes fundamentais.
Os grandes desafios concretos dos territórios de ambas as comunidades estão
relacionados ao processo de opressão e desigualdade social, refletidos na violência, no
tráfico de drogas, na falta de oportunidades geradas pela estrutura educacional
precarizada, na falta de espaços e ações voltadas para o trabalho e lazer de jovens e
adolescentes, no abandono da infra-estrutura urbano expressos na falta de saneamento,
drenagem, calçamento, transporte e esgotamento sanitário e nas implicações de todos
estes processos no meio ambiente expressos pela comunidade na poluição do rio
Maranguapinho, por fim, com relação especificamente às ações de saúde, os desafios
estão relacionados em parte às questões ligadas à ações/decisões de nível central da
gestão municipal e outras apresentam relação com processos locais das unidades de
saúde como, por exemplo, a falta de médicos, de informatização do posto e de
condições de trabalho para os Agentes Comunitários de Saúde e a necessidade de
“melhorar” o atendimento, respectivamente.
As potencialidades individuais e coletivas, institucionais e não-institucionais
percebidas no território foram em suas maioria reconhecidas pela própria comunidade,
sendo algumas, concretamente equipamentos institucionais, tais como: o CRAS
Modubim, o Projeto Escola Aberta, o projeto de urbanização do Rio Maranguapinho, o
CITS, o Colégio Irmão Urbano, o CSF Parque São José, a Igreja sagrado Coração de
Jesus, as igrejas evangélicas e o Conselho Comunitário de Defesa Social (CCDS);
outras são resultantes da ação política exclusiva da comunidade ou do apoio de
organismos da sociedade civil, como o “Cadeiras na Calçada”, o Projeto Vida Nova, os
grupos de oração, as associações comunitárias dentre outras e por fim as potencialidades
subjetivas da comunidade como a participação popular, a boa relação entre as
vizinhanças, a organização e os afetos da comunidade e o apoio dos profissionais de
saúde também foram reconhecidas pela comunidade.
Com relação aos processos de trabalho nos CSF foram significativas as
dificuldades de organização dos fluxos de entrada dos usuários nos serviços do CSF
Parque São José e as precárias condições estruturais do CSF Graciliano Muniz,
principalmente em relação à ambiência decorrente dentre outros fatores do espaço
insuficiente para acomodação dos trabalhadores de saúde e usuários. Várias outras
questões se apresentam como desafios para ambas as unidades como a falta de reuniões
de co-gestão (rodas) nas unidades, a inoperância do Conselho local de saúde do CSF
Graciliano Muniz, a deficiência de espaços dialógicos com a comunidade mesmo em
locais com um Conselho local atuante como no caso do Parque São José, a falta de
organização na divisão das atividades dos trabalhadores que consequentemente
sobrecarrega o trabalho em certos setores, a falta de um modelo de acolhimento das
unidades que construído de forma participativa garanta atenção humanizada, a falta de
articulação entre as equipes de saúde e dos trabalhadores dentro das próprias equipes, a
carência de profissionais, medicamentos e insumos. Como visto este último desafio bem
como o relativo às condições estruturais da CSF Graciliano Muniz são os únicos que
exigem a participação efetiva da gestão central e regional da saúde para superação dos
condicionantes, todas as outras podem e devem ser objeto de atuação da RMSFC junto
com trabalhadores, usuários e gestão local.
A Residência Multiprofissional traz, enquanto processo formativo, alguns
diferenciais em relação aos outros modelos de pós-graduação para a área de saúde em
geral e para o SUS em específico. Uma delas é a disposição de atuar nos cenários de
educação em serviço representativos da realidade sócio-epidemiológica do território, ou
seja, no caso de Fortaleza, a escolha do território da Secretaria Executiva Regional
(SER) V deveu-se ao fato de ser este o território do município que se apresenta em pior
situação sócio-econômica, representados pelo menor Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) e pela carência de infra-estrutura e equipamentos públicos. Outros
fatores de igual relevância, também apresentados como diretrizes deste processo
formativo apontam no sentido do enfrentamento dos desafios presentes no território
como a proposta formativa baseada na concepção ampliada de saúde, ou seja,
compreendendo os diversos aspectos da vida que repercutem nas condições de saúde da
população como a inserção no meio social, o lazer, a alimentação, a moradia e renda, as
condições dignas de trabalho, o acesso a serviços de saúde de qualidade e a ausência de
violência, assim como fatores como raça, etnia e situação de pobreza que realçam as
desigualdades, as iniqüidades sociais e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde,
considerando o sujeito enquanto ator social responsável por seu processo de vida,
inserido num ambiente social, político e cultural.
O contexto de trabalho das duas unidades mostrou também uma série de
potencialidades como, por exemplo, a estrutura física do CSF Parque São José, a
capacidade de atuação do Conselho Local de Saúde desta unidade, o reconhecimento
pela comunidade da atuação implicada de muitos trabalhadores, a disposição de muitos
destes trabalhadores de planejar, executar e avaliar as ações de saúde junto com a
comunidade, a presença do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), a presença no
território do apoio matricial e a realização de atividades de matriciamento em saúde
mental no CSF Parque São José, a presença da Comissão de prevenção à violência
contra a criança e o adolescente, dentre outras.
A Residência Multiprofissional traz em seu bojo princípios que fomentam a
valorização destas potencialidades no sentido de facilitar o enfrentamento dos desafios
anteriormente elencados, como por exemplo, a instrumentalização de uma abordagem
pedagógica que considere os atores envolvidos como sujeitos do processo de ensino-
aprendizagem-trabalho e protagonistas sociais. O uso de estratégias pedagógicas
capazes de utilizar e promover cenários de aprendizagem configurados em itinerário de
linhas de cuidado, de modo a garantir a formação integral e interdisciplinar; a integração
ensino-serviço-comunidade, por intermédio de parcerias dos programas com os
gestores, trabalhadores e usuários; a integração de saberes e práticas que permitam
construir competências compartilhadas para a consolidação da educação permanente,
tendo em vista a necessidade de mudanças nos processos de formação, de trabalho e de
gestão na saúde e o estabelecimento de sistema de avaliação formativa, com a
participação dos diferentes atores envolvidos, visando o desenvolvimento de atitude
crítica e reflexiva do profissional, com vistas à sua contribuição ao aperfeiçoamento do
SUS.
A história de ambas a comunidades, seus processos de luta e resistência, bem
como seus mecanismos de organização política são sem dúvida os principais potenciais
presentes no território, há disputas e conflitos políticos locais decorrentes da luta pelo
poder e que aparentemente revelam-se de caráter fisiológico e individualista e que
podem representar ou provocar fissuras no processo de luta organizada da comunidade.
Existem muitos equipamentos sociais importantes no território e que já foram citados
acima, mas se percebe a necessidade de interligar esta rede sócio-assistencial local no
sentido de qualificar as ações. O NASF está presente nas duas unidades, mas com
discrepâncias em relação à dinâmica da organização e efetivação das ações. O NASF
que atua no CSF Parque São José relatou dificuldades locais para formação de grupos
terapêuticos decorrentes da “falta de iniciativa” das equipes de saúde da unidade para
realização de ações conjuntas. Ficou patente no encontro com o NASF a necessidade de
construção de contratos/pactos entre os integrantes da equipes de saúde da família e
destes com os trabalhadores do NASF, um dos motivos desta dificuldade talvez esteja
relacionada ao fato de que não existem espaços-tempos na rotina de ações do CSF
Parque São José para reflexão, deliberação, ação e avaliação coletivas.
Do meu ponto de vista, uma das principais potencialidades percebidas no
trabalho/processo formativo da RMSFC está relacionada diretamente com a conjunção
de afetos e subjetividades entre os residentes e destes com o grupo de preceptores, desde
o início ficou patente a facilidade do trabalho em equipe entre as diversas categorias
componentes do processo formativo. Acredito que um dos responsáveis por esta
condição, seja a disposição coletiva dos residentes e preceptores e a abertura conferida
pela coordenação e gestão da educação permanente para a construção de um ambiente
de trabalho que tenha na prática dialógica um dos eixos principais de organização das
ações. Creio que esta experiência deva ser propagada, não como modelo estanque a ser
seguido, mas como proposta passível de ser trabalha pelas equipes de saúde que hoje
têm na relação entre e intra-equipes obstáculos severos ao trabalho multiprofissional e
que obviamente têm impacto direto na qualidade da atenção à saúde.
As estratégias de imersão no território, em especial, a disposição dialógica
apresentada desde o inicio por residentes e preceptores na chegada ao território e, mais
especificamente na Unidade de Saúde, na relação com os trabalhadores de saúde,
facilitou sobremaneira a inserção das categorias profissionais da RMSFC no território.
Depois da curiosidade e das reservas naturais, conseqüente ao processo de aproximação
e conhecimento dos atores que acabavam de chegar ao território, a relação com as
equipes tem sido, até o momento, de disposição para o trabalho colaborativo entre
residentes e trabalhadores no sentido de qualificar as ações de saúde.
Alguns referenciais teóricos foram fundamentais neste processo de imersão e
territorialização da RMSFC nas comunidades do Parque São José, eu destacaria o
pensamento crítico e transformador de obras que enfatizam a inseparabilidade entre
teoria e prática, reflexão crítica e ação libertadora, para compreensão da realidade e
transformação do homem e do mundo, tais como: “Pedagogia do Oprimido” e
“Educação e Mudança” do mestre Paulo Freire, “Pela mão de Alice – O social e o
político na pós-modernidade” do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, “Cultura e
democracia” da professora Marilena Chauí, “Um método para análise e co-gestão de
coletivos” do professor Gastão Wagner de Sousa Campos. Além de artigos que
trouxeram a discussão sobre o processo de territorialização a partir da análise crítica do
território, como os que tiveram por base os trabalhos do Professor Milton Santos.
A história de luta da comunidade, como foi resgatada no processo de
territorialização, se estende por todas as dimensões da vida social se revelando luta
política em essência, ou seja, se estende das lutas materiais por condições dignas de
vida, às de caráter imaterial/superestrutural por respeito aos seus valores e sua produção
cultural, incluído aí o enfrentamento às determinações do aparelho estatal. Esta relação
subjetiva do sujeito com o lugar onde vive e luta, ou seja, seu território coaduna-se com
o conceito de território defendido por Milton Santos, “É o uso do território, e não o
território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. (...). Seu entendimento é,
pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da
existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro”. [8]
A compreensão crítica, pelo trabalhador do SUS, enquanto trabalhador social,
das contradições do capitalismo, deve levar em conta não somente a percepção do
caráter complexo das relações de dominação e opressão social, mas principalmente,
deve ser instrumento potente de impulso deste trabalhador nos processos de luta
implicada e solidária na defesa dos interesses das classes populares. No processo
dialético da estrutura social, não pode “ser o trabalhador social, como educador que é;
um técnico friamente neutro. Silenciar sua opção escondê-la no emaranhado de suas
técnicas ou disfarçá-la com a proclamação de sua neutralidade não significa ser neutro,
mas, (...) trabalhar pela preservação do status quo”. [2]
A unidade de saúde de lotação (CSF Parque São José) foi inaugurada em 2009 e apresenta um espaço físico amplo, bem distribuído, com todas as salas climatizadas e população adscrita com cerca de 20 mil habitantes com 03 equipes de SF incompletas (02 médicos, 03 enfermeiras e 03 dentistas) e uma equipe de NASF. Podemos constatar uma evidente disputa político partidária no território, com sérios e comprometedores reflexos sobre o serviço de saúde. Fluxo confuso, sem formas humanizadas de acesso e acolhimento, ausência de prontuários, de sistema informatizado e de atividades de grupo na unidade ou na comunidade, com exceção das visitas domiciliares que não eram realizadas por todas as equipes e não envolvia o trabalho em equipe. A equipe do NASF é ausente e atua de forma descontextualizada da realidade do território e separada das equipes de referência. Possui um conselho de saúde local atuante e lideranças comunitárias participativas.
Considerando a problemática relatada e como uma das demandas do Planejamento Participativo realizado pela residência durante o processo de imersão no território, a RMSFC pactuou com os profissionais e com a gestão a formação de 02 GTs: um para discutir e organizar o fluxo e o acesso da unidade e outro para discutir e organizar processo de educação permanente e momentos terapêuticos. Tais grupos não avançaram e logo se esvaziaram... (queria destacar a falta participação da gestão na organização do processo)
Desde a inserção dos residentes no território sua atuação foi pautada pelo planejamento e diálogo constante com a comunidade, profissionais do serviço e gestão local, a qual sempre se mostrou aberta as propostas de trabalho da RMSFC.
Durante todo período de atuação dos residentes no CSF, eles procuraram colaborar e fomentar o planejamento e execução das rodas de gestão da unidade de saúde procurando destacar que a mesma possui 04 dimensões, a saber: administrativa, pedagógica, terapêutica e política. Considerando que até então as rodas de gestão restringiam-se a dimensão administrativa com informes e tentativas de organização do serviço, a RMSFC procurou enfatizar e trabalhar as outras dimensões de forma lúdica e que estimulasse a participação de todos, num esforço constante de estimular a co-gestão da unidade de saúde.
Durante esses dois anos, apesar da coordenação local e regional afirmar ser parceira do PRMSFC, observamos que muitos processos e planejamentos pactuados e propostos com os profissionais e com a gestão não aconteceram justamente pela falta de apoio da gestão local, regional e municipal, dentre os quais podemos destacar:
Implantação do prontuário e do acolhimento; Fomento ao trabalho em equipe; Fomento a articulação Equipe SF e NASF; Não reconhecimento dos residentes como profissionais do serviço e da rede;
Em relação a SER tivemos contatos pontuais com a coordenação e técnicos do Distrito de Saúde durante o processo de territrialização e alguns momentos de articulação para resolução de casos e de algumas fragilidades e dificuldades do serviço de saúde e do PRMSFC. A comunicação e articulação ficou a cargo da preceptoria e não observamos um estímulo por parte destes de fomentar a vivência dos residentes nestes espaços de gestão.
i. Fomento e apoio à organização/planejamento das rodas de gestão; ii. Participação da coordenação em algumas discussões de caso;
iii. Visita/Atendimento conjunta com a coordenação; iv. Tentativas de implantação do prontuário e do acolhimento; v. Papel da coordenação como articulador com a SER e demais setores
para a resolução de alguns casos.
b. Relação com a SER V Responsável: Pedroi. Período de territorialização (coleta de dados, conhecer os técnicos e
os programas, disponibilização de material (estetoscópio...)ii. Comunicação ficou a cargo apenas da preceptora de território;
iii. Não inclusão dos residentes em algumas atividades ofertadas aos profissionais da rede;
iv. Tentativa de articulação para resolução de algumas fragilidades relativas ao programa de Residência;
v. Atividades em datas especiais (idoso, campanhas, TB, Hansen, dengue)vi. Fomento das atividades de saúde do adolescente tanto no CSF quanto
nas escolas (distribuição das cadernetas).
Historicamente a odontologia foi estruturada enquanto ramo do saber técnico e
disciplinar voltado para formação da força de trabalho e de produção de valor para o
mercado. O predomínio dos interesses mercantis na formação do trabalhador cirurgião
dentista parece estar associado às marcantes influências das ciências médicas francesa e
principalmente norte-americana.
A influência do Relatório Flexner sobre as bases científicas da medicina,
processo desencadeado nos Estados Unidos já no início do sec. XX e que resultou na
redefinição do ensino e da prática médica a partir de princípios tecnológicos rigorosos,
afetou fortemente o discurso e a prática odontológica que naquele momento aspirava
seu reconhecimento como especialidade médica. Na realidade o modelo flexneriano
influenciou todos os campos de saberes da saúde, inclusive a saúde pública, tanto que
podemos afirmar que, ainda hoje, as referências paradigmáticas do movimento da saúde
pública não expressam qualquer contradição perante as bases positivistas da medicina
flexneriana. [1]
Para além do aspecto ideológico da técnica, o processo de trabalho em saúde,
mesmo sem representar produção de valor strictu sensu, assim como todo o “mundo do
trabalho”, sofre a influência direta das crises sistêmicas e cíclicas do modelo econômico
capitalista. O novo regime capitalista “financeirizado” que agora se encontra em crise é
fruto do processo de estagnação econômica, iniciado a partir da década de 1970. Tal
estagnação tem relação com o fato de que “o crescimento subjacente da mais-valia não
consegue acompanhar o ritmo da acumulação do capital em dinheiro”. A análise da
crise econômica mundial de 1974 e das condições da recuperação econômica
subseqüente permitem compreender melhor o papel que teve a nova articulação entre o
capital financeiro e o produtivo no ciclo econômico que termina por gerar nova crise em
2008 [2]. Após um período de acumulação de capitais, o auge do fordismo e do
keynesianismo das décadas de 1950 e 1960, o capital passou a dar sinais de entrada em
um quadro crítico, observado por alguns elementos como: a tendência decrescente da
taxa de lucro decorrente do excesso de produção; o esgotamento do padrão de
acumulação taylorista/fordista de produção; a desvalorização do dólar, indicando a
falência do acordo de Breton Woods; a crise do “Estado de Bem-Estar Social”; a
intensificação das lutas sociais (com greves, manifestações de rua) e a crise do petróleo. [3]
Estes fatores promoveram na década de 1980, nos países de capitalismo
avançado, profundas transformações no mundo do trabalho, nas suas formas de inserção
na estrutura produtiva, nas formas de representação sindical e política. Foram tão
intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar que a “classe-que-vive-do-
trabalho” sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade,
mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento
destes níveis afetando, inclusive, a sua forma de ser. [3]
Neste contexto, refletir sobre o processo de trabalho do cirurgião dentista, assim
como dos demais trabalhadores, exige a compreensão crítica da conjuntura sócio-
política atual. Tal conjuntura traz implicações óbvias para o mundo do trabalho e afeta
obviamente o processo de trabalho em saúde. A entrada do Estado, como instância
competitiva na compra de mão de obra do setor saúde no final da década de 1980 em
meio ao avanço do discurso neoliberal afetou diretamente a forma de organização e a
base de atuação do trabalhador cirurgião dentista. A nova crise do capitalismo neste
início de século XXI chega agora afetando a proposta reformista do Estado de Bem
Estar Social, anunciando a abertura de nova fase de transformação social e política.
As implicações desta conjuntura sobre o processo de trabalho revelaram-se
transformadoras do discurso e das práticas dos trabalhadores da saúde, afetando
especialmente o trabalhador cirurgião dentista, que historicamente teve no espaço
privado sua base social de atuação. Há, entretanto um longo caminho a ser percorrido
visto que, a hegemonia do discurso e das práticas de cunho liberal, a conformação
teórico-conceitual flexneriana e biologicista das intervenções, a predominância da
prática clínica individual, tecnicista e curativista, a dependência limitante do uso de
tecnologias “duras” e a valorização do caráter instrumental das intervenções, bem como,
a resistência à superação do discurso higienista, revelam o atraso político do discurso
disciplinar “odontológico” e concretamente ainda hoje limitam fortemente a atuação
deste trabalhador principalmente no sentido de que o mesmo possa avançar na
compreensão da dinâmica sócio-política do processo saúde-doença.
A conquista formal do direito à saúde com a institucionalização do SUS em
1988 gerou por um lado expectativa de mudança da realidade da atenção à saúde e de
avanços das políticas sociais patrocinadas pelo Estado, e por outro, desconfiança em
relação à sua concretização decorrente do momento histórico de crise econômica e
avanço do paradigma neoliberal de Estado mínimo. É nesse contexto contraditório que o
Sistema Único de Saúde (SUS) findou por se inscrever, trazendo em si as ambigüidades
de se pretender universal, justo e democrático em plena crise mundial dos Estados de
proteção social. [5]
A criação da Estratégia de Saúde da Família (ESF), em 1994, representou o mais
importante avanço político do SUS visto que trouxe a possibilidade de se reordenar as
práticas de saúde no âmbito da atenção básica em novas bases e critérios, com foco na
família, a partir do seu ambiente físico e social, servindo de porta de entrada dos
serviços, coordenando cuidados e possibilitando a resolutividade da grande maioria dos
problemas de saúde do território, em suma, promovendo a reafirmação e incorporação
de princípios básicos do SUS como a universalização, descentralização, integralidade e
participação da comunidade.
A ESF representa o modelo brasileiro dos cuidados primários em saúde
defendidos desde a Conferência de Alma Ata em 1978. Os atributos que dão corpo e
forma à Atenção Primária em Saúde (APS): territorialidade, primeiro contato,
longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado, assim como os não-
exclusivos: orientação familiar e comunitária e competência cultural compõem a
essência do discurso e da prática da ESF.
Demorou seis anos para que a saúde bucal fosse vista como necessidade de
saúde pelo Estado e o acesso aos serviços inseridos como direito de cidadania. A
publicação da Portaria Ministerial n° 1.444, de 28 de dezembro de 2000, pelo Ministério
da Saúde anunciou oficialmente a incorporação de “profissionais de saúde bucal” à
Estratégia de Saúde da Família. A inserção da Odontologia nas equipes de ESF poderia
ocorrer de duas formas, com variações do incentivo financeiro aos municípios:
Modalidade I, composta por um Cirurgião-Dentista e um Auxiliar de Saúde Bucal
(ASB); e a Modalidade II, composta por um Cirurgião-Dentista, um ASB e um Técnico
de Saúde Bucal (TSB). [6] A Portaria criou um incentivo para a reorganização da atenção
à saúde bucal prestada à população brasileira, frente aos alarmantes resultados obtidos
pela Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD 1998. Rio de Janeiro; 2000),
visando à ampliação do acesso coletivo às ações de promoção, prevenção e recuperação
da saúde bucal e a conseqüente melhoria de seus indicadores epidemiológicos. Para
alguns autores, o fato da odontologia não estar presente desde o início da estratégia
possivelmente tenha acarretado prejuízos no processo de integração e co-
responsabilização dos profissionais que compõem a equipe de Saúde da Família, assim
como pode ter determinado formas variadas de implantação das equipes de saúde bucal. [7]
A inserção da saúde bucal na ESF representou a possibilidade de criar um
espaço de práticas e relações a ser construído para a reorientação do processo de
trabalho odontológico. Caracteriza-se por um desafio na mudança do modelo de
atenção, tradicionalmente centrado no indivíduo e na doença, para uma abordagem
integral do sujeito inserido em seu contexto familiar, comunitário e social e para a
própria atuação da saúde bucal no âmbito dos serviços de saúde. Dessa forma, o cuidado
em saúde bucal passa a exigir a conformação de uma equipe de trabalho que se
relacione com usuários e que participe da gestão dos serviços. Dar resposta às demandas
da população e ampliar o acesso às ações e aos serviços de promoção, prevenção e
recuperação da saúde bucal, por meio de medidas de caráter coletivo e mediante o
estabelecimento de vínculo territorial, passou a ser um desafio [6].
A partir da constituição das equipes de saúde bucal (ESB) e sua inserção na ESF,
imensas possibilidades de atuação disciplinar e profissional foram abertas. O trabalho
em equipe multiprofissional, a intervenção interdisciplinar e intersetorial, a
responsabilidade sanitária de base territorial e a concepção de uma intervenção sobre o
processo saúde-doença a partir do contexto familiar e comunitário revelam-se princípios
com potencialidade operadora de uma efetiva mudança no processo de trabalho do
cirurgião dentista.
As mudanças curriculares dos cursos de formação de odontologia, bem como a
criação do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e
Comunidade, se apresentaram como elementos fundamentais para o avanço na
formação sócio-sanitária do cirurgião dentista. A Residência Multiprofissional nasce
como produto da Política de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde,
compreendendo que a formação e o exercício profissional não poderiam estar alheios ao
debate de estruturação da implementação do cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS).
Deveria, sim, ter a proposição de considerar o trabalhador sujeito dos processos de
gestão, formação, atenção e participação social, com centralidade no usuário e em suas
necessidades, contrapondo-se às práticas centradas no ato médico e nos procedimentos
técnicos. [8]
A regulamentação pelos Ministérios da Saúde e da Educação, da Residência
multiprofissional como modalidade de formação em serviço, pós-graduação lato sensu é
fundamental no preparo de profissionais qualificados para a atenção à saúde da
população brasileira e para a reorganização do processo de trabalho em saúde na direção
dos princípios e diretrizes constitucionais do SUS. [9]
A análise da experiência destes poucos anos de inserção da odontologia na saúde
coletiva deve levar em consideração pelo exposto acima que na perspectiva da Atenção
Primária em Saúde (APS), a atuação da Equipe de Saúde Bucal (ESB) não deve limitar-
se exclusivamente ao trabalho técnico-odontológico. Além das funções específicas,
mostra-se fundamental a interação da equipe com profissionais de outras áreas, de
forma a ampliar seus conhecimentos, permitindo a abordagem do indivíduo como um
todo, de forma integral, atenta ao contexto cultural, social e econômico no qual ele está
inserido. A troca de saberes e o respeito mútuo às diferentes percepções devem
acontecer permanentemente. A Odontologia, apesar de ser uma profissão da área da
Saúde e vista por muitos como uma especialidade médica, transita com dificuldade em
meio às outras clínicas. Sua formação acadêmica especializada, focada no corpo-objeto,
produz um discurso que não raro se serve de uma linguagem tão específica que a
impede de se pronunciar sobre problemas sociais que julga permanentemente não serem
seus. [6]
O Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e
Comunidade de Fortaleza, iniciado em 2009 e que atualmente está na 2ª turma, apesar
das dificuldades estruturais representou um importante avanço no processo de formação
da categoria. Depois de uma primeira turma com 66 trabalhadores, hoje a residência é
formada por 14 trabalhadores, de 6 categorias diferentes, sendo 3 deles cirurgiões
dentistas. As dificuldades de execução do programa parecem decorrentes dentre outros
motivos da falta de investimento das três esferas de governo e da fragilidade das ações
de educação permanente e formação de trabalhadores para o SUS no município, carente
de uma política pública específica para formação dos trabalhadores, ou seja, que não
seja refém de interesses político-partidários ou vítima do avanço privatista sobre a
gestão de recursos e pessoal em formação. Este contexto, não impede que se construam
cotidianamente intervenções multiprofissionais, que apontem para a integralidade da
atenção e que a partir do contexto familiar e comunitário dos usuários dos serviços
produzam cuidado para os dois atores sociais. Um exemplo são as práticas de
acolhimento multiprofissional realizadas no território que além de garantir maior
equidade no acesso aos serviços e melhor organização do processo de trabalho,
potencializam a atenção integral ao possibilitarem um diálogo multiprofissional e que
leva em conta a vivências e saberes dos usuários a respeito de suas vidas, seus desejos,
seus problemas e interesses. Tal situação seria impossível numa atividade centrada no
espaço disciplinar de somente uma categoria profissional.
A possibilidade de construir uma agenda de atividades conjuntas com as outras
categorias, que de forma planejada propicie intervenções de caráter preventivo e de
promoção de saúde, sem deixar de lado as atividades clínicas/individuais, ou seja, a
efetivação de ações centradas na clínica ampliada que fortaleçam as intervenções dos
campos de saberes, sem diminuir a importância dos núcleos, como por exemplo, nas
atividades de puericultura ou nos grupos de ciclos de vida já realizadas pela
enfermagem ou nas atividades de matriciamento de saúde mental feitas em conjunto
com a psicologia, ou nos grupos de alimentação saudável realizadas pela nutrição dentre
outras, possibilitam ao trabalho em saúde bucal romper as fronteiras do trabalho do
“duro” núcleo de saber odontológico e principalmente, incorporá-la ao processo de
cuidado integral em saúde.
O avanço concreto da profissão com o reconhecimento e a inserção da saúde
bucal como política pública não impedem, entretanto que se perca de vista obstáculos e
fragilidades que ainda hoje limitam a atuação do cirurgião dentista como trabalhador
social com responsabilidade sócio-sanitária. A centralização do processo de trabalho da
equipe de saúde bucal na figura do cirurgião dentista em detrimento do trabalho em
equipe; a dificuldade de apropriação pelo trabalhador das situações locais,
principalmente da influência sócio-cultural do território sobre os processos de
adoecimento da população; a secundarização do papel do pessoal auxiliar decorrente,
como dito, do modelo centrado na figura do dentista e do forte caráter corporativista e
mercantil da prática odontológica; a baixa cobertura dos serviços e o baixo impacto das
ações sobre os principais problemas de saúde da população; a ênfase nos procedimentos
clínicos e individuais em detrimento da construção de um processo de intervenção
interdisciplinar e multiprofissional baseados na construção de um modelo de clinica
ampliada que vise garantir a atenção integral e equânime ao usuário dos serviços; a
pouca utilização de um referencial epidemiológico, que garanta um planejamento
racional das ações de saúde bucal e que considere os aspectos e implicações afetivas e
sócio-políticas sobre o cuidado em saúde e a qualidade de vida representam situações
limite importantes para o avanço social e político da categoria.
As dificuldades de integração ao trabalho em equipe multiprofissional, de
incorporação dos princípios defendidos pelo SUS, de gestão das políticas e ações de
saúde pelos cirurgiões dentistas tem como dito acima origem no processo de formação
eminentemente técnica e voltada para o mercado privado da categoria, que não contribui
para subsidiar o serviço público com profissionais preparados, com conhecimento da
realidade social e necessidades de saúde da população usuária do SUS. Há a
necessidade e a sensação de que algo precisa ser mudado e/ou acrescentado na atual
formação em Odontologia, de modo que os futuros profissionais possam atuar
desenvolvendo ações coletivas em saúde. Esta nova concepção implica mudanças no
sujeito do trabalho odontológico, pois o cirurgião-dentista cede lugar à equipe de saúde
bucal, o que implica a necessidade de transformação no processo de formação destes
profissionais. [6]
É perceptível um movimento do setor privado da educação superior no sentido
da adequação curricular dos cursos superiores da saúde aos parâmetros do SUS com o
único objetivo de continuar formando força de trabalho para o mercado representado
pelo Estado consumidor de mão de obra. Obviamente, que a ampliação do “mercado de
trabalho” no setor saúde representa uma importante conquista da sociedade e dos
trabalhadores, afinal revelam um aumento do investimento do Estado em políticas de
saúde, mas a formação e atuação acrítica, hegemonicamente técnica, que tenha nos
princípios do SUS meras consignas formais, sem materialidade, sem abertura para a
mudança e a transformação, que não compreenda a importância da intervenção
implicada do trabalhador da saúde, enquanto trabalhador social, com responsabilidade
pelo cuidado e pelo enfrentamento dos determinantes sociais produzidos pela
exploração do trabalho e pela opressão social jamais garantirá a promoção efetiva do
cuidado, a construção da autonomia e a emancipação dos sujeitos tão essenciais para a
“saúde” em sua concepção “ampliada”. Construções contra-hegemônicas continuam
sendo fundamentais para o enfrentamento desta “tendência” (com)formadora da
sociedade, neste sentido, instrumentos como o Programa de Residência
Multiprofissional podem representar espaços interessantes de formação, não de sujeitos
seriais, como diria Sartre, dotados de excelência técnica simplesmente, mas de sujeitos
com capacidade de intervenção social e política, incomodados com uma realidade cada
vez menos humana e com disposição para enfrentá-la e transformá-la.
O Sistema Único de Saúde e a participação comunitária
No Brasil, o processo de abertura democrática, após novo influxo autoritário
representado pelas mais de duas décadas de ditadura militar, gerou a expectativa de
participação formal dos sujeitos nos processos da vida política. Percebeu-se, contudo,
que o contexto de participação política da sociedade civil mostrou-se limitado pelos
estreitos limites da democracia representativa e pela possibilidade de participação
popular restrita aos periódicos pleitos eleitorais. Conforme Roncalli (2003, p.31) “O
regime autoritário, instaurado após o golpe militar de 1964, trouxe, como conseqüência
imediata para as políticas de saúde no Brasil, um total esvaziamento da participação da
sociedade nos rumos da previdência”.
A reestruturação do modelo sanitário brasileiro, a partir da criação do SUS, teve
como antecedente histórico a VIII Conferência Nacional de Saúde que enfatizou o
direito à saúde como direito de cidadania. Este evento, que teve forte presença dos
movimentos sociais de caráter popular trouxe para o centro do debate o conceito
ampliado de saúde, como a resultante “das condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso
e posse da terra e acesso a serviços de saúde”. (RONCALLI, 2003, p.33).
Com as lutas do chamado Movimento de Reforma Sanitária e a posterior
promulgação da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se a base formal para a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), modelo de atenção voltado para a construção
das bases estruturais do direito à saúde como componente essencial do exercício da
cidadania plena. Entretanto, para Roncalli (2003, p.30) “A noção de cidadania regulada
deu o tom para o estabelecimento das políticas sociais no Brasil e, dentre estas, das
políticas de saúde”.
A conquista formal do direito à saúde com a institucionalização do SUS gerou
por um lado expectativa de mudança da realidade da atenção à saúde e de avanços das
políticas sociais patrocinadas pelo Estado, e por outro, desconfiança em relação à sua
concretização decorrente do momento histórico de crise econômica e avanço do
paradigma neoliberal de Estado mínimo. “É nesse contexto contraditório que o Sistema
Único de Saúde se inscreve, trazendo em si as ambigüidades de se pretender universal,
justo e democrático em plena crise mundial dos Estados de proteção social” (PIRES e
DEMO, 2006).
O caráter de modelo em construção justifica a necessidade de luta política
contínua, dos diversos movimentos sociais, em defesa do direito à saúde como direito
de cidadania, através da concretização de pressupostos estabelecidos pela legislação e
pela efetivação dos princípios doutrinários e organizativos do SUS. Como expressam
Cunha e Cunha (1998) “o SUS significa transformação e, por isso, processo político e
prático de fazer das idéias a realidade concreta.”. É importante registrar que tal luta se
conflagra num país onde a cidadania é marcada pela forte presença da tutela e
submissão do povo aos ditames do Estado, embora com movimentos de resistência
significativos e influentes (PIRES e DEMO, 2006).
O SUS se estruturou formalmente tendo nos princípios da equidade,
universalidade no acesso aos serviços e integralidade da atenção substrato ideológico-
doutrinário, e nos princípios de descentralização político-administrativa com direção
única em cada esfera de governo, gestão regionalizada e hierarquizada e participação da
comunidade na busca de efetivação do controle social sua base organizativa.
(RONCALLI, 2003).
A inter-relação dos princípios doutrinários e organizativos do SUS pode ser
avaliada a partir do pressuposto de que há a necessidade de se pensar o indivíduo
inserido na comunidade e a partir daí perceber que as ações de saúde não podem ser
voltadas apenas para a assistência ou mesmo para o próprio setor saúde. Com relação à
participação popular há a necessidade de se incorporar a idéia de cidadania ao contexto
das ações integrais em saúde, no sentido de que “nenhum cidadão possa ser considerado
saudável sem que tenha seus direitos garantidos” (ALBUQUERQUE e STOTZ, 2004).
Não menos importante é a necessidade de se perceber que a mudança do modelo
de atenção inapsiano, em termos concretos, não se efetivou, em grande medida, por ter
abandonado a necessidade de superação do grave fosso cultural existente entre serviços
de saúde e população. Tal situação fora prevista pelos grupos populares que
contribuíram para a composição do ideário do movimento da Reforma Sanitária, pois,
para eles “o modelo biomédico que está na base do processo de separação cultural
entre serviços de saúde e população continuou intocado”, afinal, a política de saúde
desde então implementada continuou a manter este modelo como pressuposto da
atenção da saúde. (STOTZ, DAVID E UN, 2009).
Um dos grandes desafios à superação do modelo técnico-assistencial inampsiano
reside na dificuldade de efetivação da integralidade da atenção, afinal ela depende tanto
de mudanças culturais, através de mudanças no modo de atuar do trabalhador de saúde,
pela implementação integrada de ações de promoção, preventivas e curativas; quanto de
mudanças sócio-políticas, já que exigem a adoção do conceito ampliado de saúde como
genuíno direito de cidadania e em conseqüência, efetivamente inscrito na esfera política.
Nesse contexto, o fortalecimento da participação popular, enquanto mecanismo
político de luta pela garantia de direitos, se apresenta como estratégia basilar para
a mudança estrutural da atenção à saúde.
A carta de Ottawa de 1986 se apresenta como referencial para o que acima se
afirma, pois para Albuquerque e Stotz (2004), ela “desloca para o âmbito da política a
garantia da saúde, destacando como fundamental a participação comunitária”.
Um dos maiores entraves ao processo de participação comunitária reside no fato
de que “grandes parcelas da população (camponeses e moradores urbanos favelados)
não são organizadas de modo a sustentar atividades políticas regulares”. Como
conseqüência frequentemente os interesses destes setores são expressos através de
processos informais, ao invés de formas públicas de pressão. No Brasil, a partir da
segunda metade da década de oitenta, os movimentos populares passaram a canalizar
suas demandas para as comissões interinstitucionais municipais de saúde, e depois, para
os conselhos e as conferências de saúde. Através desses canais participatórios, se
apresentavam pública e formalmente as demandas dos setores sociais recorrentemente
excluídos dos processos decisórios. (CORTES, 2002).
A regulamentação do controle social no SUS, através da lei 8142 de 1990,
institucionalizou como foros de participação popular, os Conselhos e Conferências de
Saúde, como espaços formais de participação comunitária e de construção da co-gestão
das políticas e ações de saúde (BRASIL, 2009). Apesar da conquista do aparato legal,
Valla (1998, p. 10) contra argumenta que “os avanços legais, incluindo os dos
Conselhos Municipais de Saúde, (...) não têm levado a transformações efetivas na
realidade dos serviços, a não ser em alguns casos isolados”.
O Conselho de Saúde é órgão colegiado, deliberativo e permanente do Sistema
Único de Saúde em cada esfera de Governo, integrante da estrutura básica do Ministério
da Saúde, da Secretaria de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
com composição, organização e competência fixadas na Lei nº. 8.142/90. O Conselho
de Saúde consubstancia a participação da sociedade organizada na administração da
Saúde, como Subsistema da Seguridade Social, propiciando seu controle social. O
Conselho de Saúde atua na formulação e proposição de estratégias e no controle da
execução das Políticas de Saúde, inclusive, nos seus aspectos econômicos e financeiros
(BRASIL, 2003).
Diferentemente do que acima está posto a legislação não conseguiu prover os
Conselhos de instrumentos eficazes para a efetivação de políticas ou ações de controle
social, em conseqüência, muito comumente os Conselhos não se consubstanciam em
espaços dotados de poder político (poder de controle/vigilância). O que se percebe é que
“o tom vago e difuso em que a proposta de participação popular aparece em textos
oficiais, ao lado de sua frágil normatização, tende a torná-la, como conseqüência, algo
centralizado nas mãos dos técnicos e na burocracia governamental” (VALLA, 1998).
Obviamente, tal contexto interessa a diversos setores voltados para a
manutenção do status quo, incluídos aí, desde setores governamentais, mesmo daqueles
governos referidos como "progressistas" ou "populares" como também a setores da
sociedade civil organizada, como os partidos políticos e sindicatos, interessados no
fortalecimento dos processos de despolitização das classes populares.
Grande parte dos conselhos de saúde no Brasil enfrenta dificuldades de
estruturação deste controle público em conseqüência da reduzida participação dos
usuários e de representação de setores da sociedade civil de caráter popular, ou seja,
“aqueles preocupados com a construção da cidadania, a melhoria da qualidade de vida e
o controle desse processo pela sociedade civil organizada e pelos cidadãos” (VALLA,
2009).
Neste contexto, está claro, que o processo de efetivação da participação popular
nos Conselhos de Saúde é interdependente da construção de espaços/tempos coletivos
que objetivem a participação política livre de sujeitos capazes de pensar e agir de forma
autônoma ou, dotados de “autonomias possíveis”. A participação popular, neste
contexto, “significa uma força social imprescindível para fazer sair do papel as
conquistas e impulsionar as mudanças necessárias”. (VALLA, 1998).
Pelo acima afirmado, percebe-se claramente, que a efetivação da participação
popular envolve, além destes constructos institucionalizados, a assunção pelo sujeito em
situação de opressão de seu protagonismo social, proporcionando condições para a
análise de problemas, a definição de prioridades, o estabelecimento de projetos, o
planejamento de estratégias alternativas, a intervenção sobre a realidade, o sonhar
enfim. Pressupõe a atuação concreta dos sujeitos na construção do processo político e de
construção de si mesmos.
Observa-se assim que a efetiva participação popular necessita de arranjos outros
além dos garantidos por lei para ser concretizada; diversas situações e momentos podem
ser criados, enquanto dispositivos de participação, como rodas de conversa, reuniões e
fóruns populares. Claro está que a participação da sociedade civil não pode ser
resumida à participação nos espaços dos conselhos ou outros criados na esfera pública.
Até para que haja qualificação, dessa participação, ela deverá advir de estruturas
participativas organizadas autonomamente na sociedade civil. Para isto torna-se
fundamental o chamado trabalho de base, no sentido de “alimentar e fortalecer a
representação coletiva nos colegiados da esfera pública”. Além disso, é importante
que “essa esfera pública não seja vista como um degrau superior, que surgiu para
eliminar ou superar formas e níveis de mobilização e organização que existiram na
sociedade brasileira”. (GOHN, 2004).
O contexto de participação comunitária nos processos de trabalho e na gestão do
Sistema Único de Saúde, infelizmente, mostra uma realidade bem diferente, como
admite o próprio poder público, por exemplo, na cartilha da Política Nacional de
Humanização (PNH) sobre gestão participativa, “Quando se analisa o envolvimento dos trabalhadores de saúde e usuários no dia-a-dia das unidades de atenção do SUS, percebe-se que a participação ainda é muito pequena. Talvez porque lhes pareça que esta participação é difícil, complexa ou impedida pelo excesso de burocracia do sistema de saúde.” (BRASIL, 2004).
A implementação pelo ministério da Saúde da PNH (HUMANIZASUS) em
2004, teve o objetivo de qualificar a atenção e garantir a gestão compartilhada da saúde
pelos três atores envolvidos neste processo, no caso, trabalhador de saúde, usuário e
gestor. (BRASIL, 2004).
O conceito de humanização tem por base a valorização dos diferentes sujeitos
implicados no processo de produção de saúde e deve ser norteado por valores como
autonomia e protagonismo dos sujeitos, a co-responsabilidade entre eles, os vínculos
solidários e a participação coletiva no processo de gestão. Visando intervir de modo
transversal nas diversas instâncias e ações do SUS de modo a consolidar redes, vínculos
e a co-responsabilização entre usuários, trabalhadores e gestores, a PNH foi instituída,
afirmando que ao direcionar estratégias e métodos de articulação de ações, saberes,
práticas e sujeitos, podem-se efetivamente potencializar a garantia de atenção integral,
resolutiva e humanizada (BRASIL, 2006).
A Política Nacional de Humanização tem como princípios norteadores: a
construção de autonomia, capacidade de realização e protagonismo dos sujeitos e
coletivos implicados na rede do SUS e a responsabilidade conjunta desses sujeitos
nas práticas de atenção e de gestão.
Uma das propostas de concretização destes princípios deu-se a partir do
estabelecimento de um novo tipo de relação, de encontro e de diálogo crítico entre o
pólo dos saberes e o pólo de práticas desenvolvido no cotidiano de trabalho, chamada
Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP). (BRASIL, 2006).
Foi neste contexto, que se pretendeu construir, através da proposta formal da
PNH, um espaço/tempo coletivo no território da comunidade Boa Vista/Castelão que
propiciasse a reflexão coletiva sobre os entraves subjetivos e objetivos, teóricos e
práticos à participação política comunitária em suas lutas cotidianas por satisfação das
necessidades de sobrevivência e de superação desta realidade inóspita.
A Estratégia da Saúde da Família e os caminhos da educação popular
A Estratégia de Saúde da Família surgiu sob o caráter de programa
governamental com a denominação, ainda recorrentemente utilizada, de Programa
Saúde da Família (PSF), como tal teve início, em 1994, como um dos programas
propostos pelo governo federal aos municípios para implementar a atenção básica. O
PSF teve como antecedente o PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde),
lançado em 1991, e que já trabalhava a família como unidade de ação programática.
“Concebido como Programa dentro da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), o PSF
foi aos poucos, sendo tomado como prioritário dentro dos modelos propostos para
atenção básica e hoje se fala em Estratégia de Saúde da Família”. (RONCALLI, 2003,
p. 45). De forma crítica, Roncalli (2003, p. 45) enfatiza que “políticas assistenciais
voltadas para grupos vulneráveis e com baixa tecnologia coadunam com a lógica
eficientista que vem sendo imposta para a consecução de políticas sociais nos países de
economia dependente”.
Para o discurso oficial, entretanto, a Estratégia de Saúde da Família se insere no
contexto do SUS como uma estratégia de reorientação do modelo assistencial,
operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades
básicas de saúde. Estas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número
definido de famílias, adscritas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam
visando garantir a integralidade da atenção à saúde com ações de promoção e
manutenção da saúde, prevenção, recuperação e reabilitação de doenças e agravos
(BRASIL, 2009).
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) mantém coerência com os princípios do
SUS: acessibilidade, resolubilidade, regionalização, hierarquização e participação
popular; é o componente do sistema responsável pela atenção primária à saúde e
finalmente assim como o próprio SUS, apresenta-se em processo de construção, a partir
do aprofundamento de suas bases conceituais e criação de uma nova práxis envolvendo
todos os atores implicados na produção de saúde (ANDRADE, BARRETO e
FONSECA, 2004).
A Estratégia de Saúde da Família tem o objetivo de dinamizar e consolidar o
SUS, como modelo de organização da atenção à saúde, através da mudança das práticas
convencionais de assistência por um novo processo de trabalho, centrado na vigilância à
saúde. (RONCALLI, 2003). Além disso, prioriza em suas bases teóricas a promoção da
saúde sem desprezar a clínica, ou seja, baseia-se no conceito ampliado de promoção e
tem o coletivo como seu foco de atenção, baseado no conceito de determinantes sociais
do processo saúde-doença. (ANDRADE, BARRETO e FONSECA, 2004).
A ESF se propõe a ampliar a abordagem sobre o processo saúde-doença ao
território, espaço social onde se estabelecem as relações sociais de produção e
reprodução de sujeitos e coletivos. Como afirmam Mendes e Donato (2003), “Sendo
território uma construção, é produto da dinâmica onde tensionam-se as forças sociais
em jogo. Uma vez que essas tensões e conflitos sociais são permanentes, o território
nunca está pronto, mas sim em constante transformação”. Neste contexto, enfatiza-se, a
necessidade de se conhecer a história dos sujeitos, do território onde estão inseridos
e de como o território se insere na dinâmica da cidade.
Deve ser constante o processo de conhecimento e desvelamento da realidade
onde atuam as equipes de saúde tendo como objetivo a transformação social. Neste
sentido a ESF “possibilita a participação cotidiana dos cidadãos na gestão pública e no
controle das condições que podem interferir na sua saúde e da coletividade onde vivem
e trabalham”. Como condição-meio deste processo, Mendes e Donato (2003) defendem
que seja “necessário, que os sujeitos se apoderem do território, o que implica um
processo de identificação com os diferentes lugares e as particularidades históricas e
políticas desses lugares, possibilitando assim uma participação mais efetiva”.
Constituído desta forma o território se expressa como espaço de aprendizado e
conquista de cidadania.
Para Boaventura, “sempre que o capitalismo teve de confrontar-se com suas
endêmicas crises de acumulação, fê-lo ampliando a mercadorização da vida,
estendendo-a a novos bens e serviços e a novas relações sociais”, (SANTOS, 1999, p.34
e 35). Os modelos de atenção à saúde, enquanto produto de políticas sociais, são
conformados à relação estabelecida entre Estado e sociedade e dependem de forma
intrínseca do modo e das relações de produção.
A reavaliação das bases científicas da medicina a partir do relatório Flexner, no
inicio do século XX, e a conseqüente redefinição do ensino e da prática médica a partir
de princípios tecnológicos, com base no conhecimento experimental, proveniente da
pesquisa básica realizada sobre a doença, reforçou o caráter individualista do modelo
biomédico ainda dominante na atenção à saúde no Brasil. O que se percebe é que o
modelo flexneriano reforçou “a separação entre individual e coletivo, privado e público,
biológico e social, curativo e preventivo”. A reflexão sobre o modelo de saúde pública
ainda vigente deixa clara a percepção de que “as referências paradigmáticas do
movimento da saúde pública não expressam qualquer contradição perante as bases
positivistas da medicina flexneriana”. (PAIM e ALMEIDA FILHO, 1998, p. 302 e
303).
A estruturação de bases teóricas capazes de sustentar uma nova prática da saúde
pública necessita, para Paim e Almeida Filho (1998, p.307), de profissionais com uma
nova mentalidade, com capacidade de cumprir diferentes papéis. Desde uma função
histórico-política de “resgatar, do próprio processo histórico de construção social da
saúde, os conhecimentos, êxitos e fracassos da humanidade em sua luta pela cidadania e
bem-estar” até uma “função agregadora de valor através da produção e gestão do
conhecimento científico tecnológico”. Por fim, utilizando o conhecimento como
instrumento de denúncia e promoção da mobilização crescente da sociedade na
realização do seu potencial de saúde e exercício do direito de cidadania.
A Saúde Coletiva trouxe de forma relevante alguns pressupostos fundamentais
para o processo de superação do modelo biomédico, tais como: a necessária articulação
social do setor saúde, “A Saúde, enquanto estado vital, setor de produção e campo do
saber, está articulada à estrutura da sociedade através das suas instâncias econômica e
político-ideológica, possuindo, portanto, uma historicidade”; a necessidade de
constituição das ações de saúde enquanto prática social, “As ações de saúde (promoção,
proteção, recuperação, reabilitação) constituem uma prática social e trazem consigo as
influências do relacionamento dos grupos sociais”; a delimitação do seu objeto de
estudo e ação “O objeto da Saúde Coletiva é construído nos limites do biológico e do
social e compreende a investigação dos determinantes da produção social das doenças e
da organização dos serviços de saúde e o estudo da historicidade do saber e das práticas
sobre os mesmos”; e os processos de produção de conhecimento “O conhecimento não
se dá pelo contato com a realidade, mas pela compreensão das suas leis e pelo
comprometimento com as forças capazes de transformá-la” (PAIM e ALMEIDA
FILHO, 1998, p. 309).
A educação popular se insere no contexto da Saúde Coletiva e em específico na
Estratégia de Saúde da Família como um poderoso instrumento auxiliar na
incorporação de novas práticas, facilitando a inserção das equipes no território e
principalmente estimulando a implicação dos sujeitos. “Sua concepção teórica,
valorizando o saber do outro, entendendo que o conhecimento é um processo de
construção coletiva, tem sido utilizada pelos serviços, visando um novo entendimento
das ações de saúde como ações educativas (ALBUQUERQUE e STOTZ)”.
A educação popular garante uma mudança de perspectiva, de agires e discursos
sobre o processo formativo dos envolvidos na produção e gestão da saúde
(trabalhadores e usuários), gerando em conseqüência um novo olhar sobre os conceitos
de gestão compartilhada e atenção humanizada.
Pela valorização da ação dialógica, a educação popular “caminha para a
superação das formas existentes de opressão, [no sentido de] uma pedagogia
emancipatória”, orientada no sentido da interpretação da natureza complexa do homem
em suas relação com o outro e com o mundo, considerando que “todos se educam pelo
diálogo, intersubjetivamente”. (MELO NETO, 2004).
A educação popular leva em consideração que a educação tem como objeto de
estudo e instrumento teórico e prático o saber, ou seja, o sentir / pensar / agir das
pessoas, grupos, categorias e classes sociais. Portanto, o saber inclui as dimensões
intelectual, afetiva e prática e não somente a produção e transmissão de conhecimentos
e conteúdos, o conhecimento de teorias e metodologias e a produção e circulação de
informações, ou seja, a dimensão intelectual. (SALES, 2001).
A base sobre a qual se justifica a Educação Popular é o fato de que o povo, no
processo de luta pela transformação social, precisa elaborar o seu próprio saber. O
reconhecimento de que estamos em presença de atividades de educação popular se dá
quando, independentemente do nome que levem se está vinculando a aquisição de um
saber (que pode ser muito particular ou específico) com um projeto social
transformador. Neste sentido, se apresenta como técnica privilegiada para atividade
epistemológica da pesquisa-ação. A educação é popular quando, enfrentando a
distribuição desigual de saberes, incorpora um saber como ferramenta de libertação
nas mãos do povo. (VIEIRA, apud BRANDÃO, 1986 p.68).
A desqualificação dos saberes populares é usada como instrumento de
dominação e opressão e os mediadores (trabalhadores e técnicos da classe média)
infelizmente, mesmo uma parcela considerável daqueles engajados às causas populares,
têm dificuldades em interpretar os desejos e interesses das camadas oprimidas
exatamente por não reconhecerem as dimensões do saber popular e a complexidade do
contexto de suas vidas.
È necessária a compreensão de que a não consideração dos sentidos, dos
sentimentos e dos modos de agir das pessoas tem péssimas implicações na prática
educativa: estas práticas desqualificam dimensões fundamentais das vidas das pessoas,
o que do ponto de vista da educação popular que se pretende, significa desqualificação e
empobrecimento das pessoas: “não se vivencia a participação ao se impor às pessoas
e grupos alguns objetivos, conteúdos, metodologia e formas de gestão que não têm
ressonância e importância em sua vida”. Desta forma se compromete a eficácia da
atuação quando não se leva em conta a realidade subjetiva de pessoas de quem se deseja
estar junto ou a quem se pretende prestar um serviço. (SALES, 2001, p. 112)
Para finalizar, é necessário que se afirme o compromisso político da educação
popular com as lutas populares por emancipação. Neste sentido, Stotz lembra que “Nas
suas mais diversas formas de expressão, a educação popular em saúde é também um
compromisso político com as classes populares, com a luta por condições de vida e
de saúde, pela cidadania e pelo controle social”. E lembra sua conexão direta com a
participação popular, ao afirmar que a educação popular “Está diretamente ligada à
valorização e à construção da participação popular. Tem uma perspectiva histórica,
reconhecendo os pequenos passos e os movimentos das forças sociais em busca do
controle de seu próprio destino”. (STOTZ, 1994).
O processo de estruturação das equipes de saúde da família no município de
Fortaleza, iniciou-se em 2006, com a contratação através de concurso público de 850
trabalhadores, médicos, dentistas e enfermeiros que se distribuiriam pelas 88 unidades e
centros de saúde da família da cidade. Fortaleza iniciava naquele instante uma nova
etapa na atenção à saúde, visto que a carência de mão-de-obra para a efetivação de
atividades de assistência à saúde e principalmente para cobertura das áreas adscritas às
unidades era perceptível.
Segundo dados da SMS, um milhão e 600 mil pessoas, o equivalente a 70% da
população de Fortaleza, necessitam do SUS de maneira mais efetiva. Para cobrir 100%
desse contingente, seria necessário o trabalho de 460 equipes do PSF, com médicos,
enfermeiros, auxiliares de enfermagem e odontólogos, além de 2.700 agentes
comunitários de saúde. A partir de 2006 o município dobrou o índice de cobertura da
estratégia, passando de 102 equipes de saúde da família (15%) para algo em torno de
200 equipes.
É importante enfatizar que o processo de inserção das equipes de saúde no
território representa um momento crítico da estruturação dos serviços. No Centro de
Saúde da Família Edmar Fujita isto não foi diferente. Percebeu-se de inicio que apesar
da novidade e do impacto da presença de uma grande quantidade de novos
trabalhadores na unidade, com novos desejos, interesses e aspirações, da inter-relação
tempo-espaço oportuna para novas possibilidades, infelizmente prevaleceu o pilar da
regulação.
Para os atores que já atuavam no processo de produção da saúde no território, a
chegada de novos atores foi recebida com um misto de esperança e desconfiança.
Esperança de um atendimento mais humanizado e desconfiança de que tudo
permaneceria como estava, esperança de avanço quantitativo na assistência e
desconfiança de que de repente se avançasse também qualitativamente, esperança de
poder dividir o peso do atendimento da demanda e desconfiança da possibilidade
iminente do conflito pelo espaço usurpado. Neste contexto complexo em que todos se
envolveram trabalhadores da estratégia de saúde a família, usuários, trabalhadores da
unidade e gerência, prevaleceu o desejo de permanência, de conservação do status quo
do modelo de atenção médico-centrado, individualista e curativista.
Apesar do arcabouço teórico, aberto à mudança paradigmática, da estratégia de
saúde da família já ser conhecido por boa parte dos atores locais o que predominou foi o
medo da liberdade. Prova disso são as raríssimas discussões e reflexões na roda de co-
gestão da unidade a respeito deste modelo, seu caráter negador da autonomia dos
usuários, do conhecimento e dos valores populares, da ação contextualizada e crítica em
relação à realidade objetiva dos grupos em risco social, as possibilidades do poder
terapêutico do poder.
Discute-se a necessidade de ampliação das ações de promoção e prevenção,
contanto que não interfira no atendimento clínico. Discute-se sobre acolhimento
contanto que a demanda se adeque às ofertas da unidade. Discute-se sobre a
participação da comunidade na roda contanto que se garanta a manutenção de um
espaço técnico/profissional restrito. Prevalece o pilar da regulação.
As questões levantadas mostram que estamos distantes de construir a
integralidade da atenção. A roda de co-gestão, aliás, me parece expressão
indevidamente utilizada, visto que ainda não conseguiu se estruturar enquanto espaço
coletivo de deliberação e constituição de sujeitos, longe de representar espaço de
formação e democratização do ambiente de trabalho, no final das contas serve
principalmente como ambiente de repasse de informações.
Os problemas, entretanto não parecem se restringir aos trabalhadores e ao
interior da unidade de saúde. Percebe-se através do diálogo informal com atores locais
que os movimentos sociais comunitários não se sentem representados nos processos
decisórios locais, o conselho local de saúde apresenta dificuldades de estruturação por
conta do desinteresse dos trabalhadores e gestão pelas atividades de controle social e
pela desconfiança dos usuários sobre sua efetividade como espaço de deliberação ou
mesmo de discussão dos problemas locais de saúde, as lideranças comunitárias
reclamam da falta de engajamento e compromisso dos moradores, os trabalhadores
reclamam e se sentem desanimados com a falta de “adesão” dos usuários às atividades
de educação em saúde, por fim, o que se percebe no complexo contexto das relações
entre trabalhadores, usuários e gestão local é uma dinâmica relacional que normalmente
oscila da indiferença ao paternalismo.
Este contexto nos obriga a problematizar questões tais como: de que forma os
diversos atores (trabalhadores, usuários e gestores) encaram este processo de
inserção das equipes no território de adscrição do CSF Edmar Fujita? Que
mudanças foram percebidas na qualidade da atenção do usuário dos serviços?
Como estes atores encaram a contradição da manutenção do modelo inapsiano de
atenção no interior de um modelo que se propõe transformador? Que mecanismos
poderiam ser utilizados para superar a situação limite “medo da liberdade”?
Como favorecer os processos de participação efetiva dos movimentos sociais
locais? Como estimular a participação dos diversos atores nas atividades de
controle social? Como fortalecer o conselho local enquanto espaço de discussão e
deliberação dos problemas locais de saúde? Como estimular os processos de
participação popular na comunidade de modo a garantir a efetividade do trabalho
de promoção da saúde? Como, por fim, construir um ambiente dialógico que
possibilite que os diversos interesses em jogo possam ser postos à mesa de modo a
constituir sujeitos? Estas são questões merecedoras de reflexões futuras, e que este
trabalho se propõe a tentar esclarecer, pelo menos, no que tange ao seu objeto de estudo.
PARTICIPAÇÃO POPULARParticipação popular é tema ainda novo dentro dos marcos teóricos das ciências
da saúde e conceitualmente controverso para as ciências sociais. O objeto participação
popular enquanto tema central do processo de controle social de políticas públicas teve
sua importância reconhecida em contexto histórico recente. Coincidiu com as
discussões visando à formulação dos aspectos técnicos e políticos do Sistema Nacional
de Saúde, ou seja, sua emergência enquanto marco teórico de importância sócio-política
coincidiu com as lutas em defesa do Sistema Único de Saúde, a partir do Movimento de
Reforma Sanitária.
Para Valla (1998, p.09), “participação popular compreende as múltiplas ações
que diferentes forças sociais desenvolvem para influenciar a formulação, execução,
fiscalização e avaliação das políticas públicas e/ou serviços básicos na área social”, mas
pode ter outros sentidos, aliás, uma das características marcantes da discussão sobre
participação é exatamente, seu caráter ambíguo.
Consciente desta ambigüidade e com o intuito de tentar facilitar a compreensão
sobre a categoria participação aqui abordada torna-se necessário um esclarecimento
prévio, “a literatura sobre o tema tem tratado como participantes em potencial a
comunidade, o consumidor, as classes populares (participação popular), o cidadão e o
usuário”. (CORTES, 2002). Este trabalho, apesar de concretamente lidar com o usuário
do sistema de saúde e em vários momentos abordar a questão da participação deste na
construção das políticas do setor, tem o objetivo de articular o processo de atuação
política do usuário, à discussão sobre a construção da emancipação das classes
populares e do protagonismo dos atores comunitários. Para tal fim, considera-se que há
participação quando o envolvido tomar parte no processo de decisão política, ou seja,
quando atua como sujeito e decide os rumos da vida em sociedade.
A referência a “classe popular” é específica à “grande parcela da população que,
se não tiver um trabalho diário remunerado, corre o risco de não satisfazer suas
necessidades mínimas de moradia e alimentação, mas que permanece muito distante de
qualquer forma de realização profissional ou familiar” (VALLA, 2009). Como será
discutida mais adiante, a referência à participação popular aqui abordada, também se
insere no contexto da participação política destas mesmas classes em suas lutas pela
sobrevivência física e pela emancipação sócio-política.
Os conceitos de participação e protagonismo se inter-relacionam, visto que em
essência a categoria participação envolve um processo de vivência que imprime sentido
e significado a um grupo ou movimento social, tornando-o protagonista de sua história,
desenvolvendo uma consciência crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a
esse grupo ou ação coletiva, e gerando novos valores e uma cultura política nova. A
construção do protagonismo comunitário envolve necessariamente o “empoderamento”,
ou seja, exige a instauração de processos que tenham a capacidade de gerar
desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes externos - os novos
educadores sociais – atores fundamentais na organização e no desenvolvimento dos
projetos. Uma característica recente deste processo é que ele tem “ocorrido,
predominantemente, sem articulações políticas mais amplas, principalmente com
partidos políticos ou sindicatos”. (GOHN, 2004).
Enquanto em fins da década de 70 predominava entre os movimentos sociais a
idéia de participação e organização da população civil do país no sentido da luta contra
o regime militar, tendo como eixo estruturante a idéia de autonomia. Nos anos oitenta,
ocorreu um descentramento do setor popular (movimento sindical e de bairro) como
“sujeito social histórico” e o conseqüente aparecimento de novos atores que trouxeram
para arena política a discussão sobre o conceito de cidadania. A incorporação ao
discurso oficial e a resignificação do conceito cidadania nos anos 90 promoveram uma
mudança nos mecanismos de atuação dos movimentos sociais, visto que, tal conceito
engloba a idéia de participação civil, de responsabilidade social dos cidadãos, por tratar-
se não apenas dos direitos, mas também de deveres, e consequentemente homogeneíza
os atores. (GOHN, 2004).
A variedade de movimentos sociais, principalmente do chamado terceiro setor e
suas respectivas formas de atuar, gera um “cenário contraditório, no qual convivem
entidades que buscam a mera integração dos excluídos por meio da participação
comunitária em políticas sociais exclusivamente compensatórias” representadas
pelas entidades de perfil corporativo; com “entidades, redes e fóruns sociais que buscam
a transformação social por meio da mudança do modelo de desenvolvimento que impera
no País”. (GOHN, 2004)
Alguns pressupostos sustentadores do que é aqui defendido como participação,
se coadunam com o sistematizado por Gohn (2004), ou seja: a construção de uma
sociedade verdadeiramente democrática só será possível através “da participação
dos indivíduos e grupos sociais organizados”. A sociedade não será transformada
apenas com a participação no plano local, micro, mas “é a partir do plano micro que
se dá o processo de mudança e transformação na sociedade”. É exatamente no plano
local, mais precisamente no espaço do território, “que se concentram as energias e
forças sociais da comunidade, constituindo o poder local daquela região”; mas, além
disso, é no local onde ocorrem as experiências, ele é a fonte do que vem a ser
designado capital social, “aquele que nasce e se alimenta da solidariedade como
valor humano. O local gera capital social quando gera autoconfiança nos indivíduos de
uma localidade, para que superem suas dificuldades”. Acima de tudo o capital social
cria, “junto com a solidariedade, coesão social, forças emancipatórias, fontes para
mudanças e transformação social”. Por fim, “é no território local que se localizam
instituições importantes no cotidiano de vida da população, como as escolas, os postos
de saúde etc.”. È importante enfatizar, entretanto, que o poder local de uma comunidade
não existe a priori, necessita ser organizado, “adensado em função de objetivos que
respeitem as culturas e diversidades locais, que criem laços de pertencimento e
identidade sociocultural e política”.
A participação da sociedade civil na esfera pública - via conselhos e outras
formas institucionalizadas – deve se dar de forma “ativa e considerar a experiência de
cada cidadão que nela se insere e não tratá-los como corpos amorfos a serem
enquadrados em estruturas prévias, num modelo pragmatista” de modo a exigir que o
Estado cumpra seu papel institucional. Ou seja, propiciar educação, saúde e demais
serviços sociais com qualidade, e para todos. (GOHN, 2004).
Valla citando Stotz (1998) chama atenção para a urgência de superar esta mera
defesa do papel do Estado em prover diretamente ou em regular a oferta privada
(contratada ou autônoma) de serviços. Segundo ele, “Para que tais serviços contemplem
de fato as necessidades sociais das populações, precisam levar em conta,
obrigatoriamente, o que as pessoas pensam sobre seus próprios problemas e que
soluções espontaneamente buscam”.
Há a necessidade de se garantir, aos atores sociais das classes populares, o poder
de decisão sobre o que efetivamente deseja e lhe interessa, através do fortalecimento dos
coletivos formais e informais de participação política. Isso pode ser iniciado pelo
resgate da história das lutas comunitárias por conquista e efetivação de direitos sociais e
políticos. Como tão bem lembra o autor “A história nunca começa com o contato dos
profissionais dos serviços com as suas clientelas”. Para ele “há um passado que ainda
vive, em sua virtualidade, no presente e está referido às experiências acumuladas em
uma gama amplamente diversificada de alternativas, bem como às lutas moleculares ou
coletivas que enraízam formas de pensar e agir”. E complementa “É esta experiência
que precisa ser resgatada pelos serviços, pelos profissionais, técnicos e planejadores”
(VALLA, 1998).
No contexto da crise de interpretação dos mediadores, algumas questões podem
estar diretamente implicadas como, por exemplo, as diferenças de concepção sobre o
modo como as classes populares “encaram a vida”. A superação deste obstáculo deve
passar necessariamente pela admissão por parte dos mediadores/profissionais de que “é
bem provável que esses setores da população tenham enorme lucidez sobre a sua
situação social, o que pode significar também que seja ilusória uma considerável
melhoria de vida”. Nesse sentido, a “crença em melhorias e numa solução mais
efetiva pode apenas ser um desejo, embora importante, da classe média
comprometida”.
Para Valla (1998), “ainda que alguns mediadores sejam mais atenciosos e
respeitosos com as pessoas pobres da periferia, os muitos anos de uma educação
classista e preconceituosa faz com que o papel de ‘tutor’ predomine nas suas relações
com esses grupos”.
A reflexão sobre participação política, para Chauí (1989, p.300), envolve
necessariamente a compreensão da categoria “opinião pública”. Segundo a autora, no
contexto atual da indústria e do marketing político, a opinião pública deixou de ser a
“reflexão e ponderação em público”, herança da antiga democracia grega, para tornar-se
o “desabafo dos sem-poder captado pelo mercado político para ser convertido em
‘demanda social’ e para ser trabalhado pelas ‘elites’ a fim de convertê-lo em
mercadoria oferecida pelos partidos aos cidadãos”. Tal situação significa que “a
opinião propriamente dita é produzida pelos vendedores da mercadoria política”, e
consequentemente “produz a ilusão da participação”, ou seja, engendra o contexto de
“cidadãos isolados, privatizados e despolitizados imaginando que a expressão, em
público, de suas angústias, de seus medos, de seus desejos os converteriam em sujeitos
políticos ativos”, ou mais precisamente “como se o desabafo pudesse elidir a impotência
sócio-política no exato momento em que a deixa aparecer em público” .
Como paradoxalmente “o processo da despolitização só será eficaz se também
produzir o sentimento da participação (ainda que ilusória)”. Chauí (1989, p. 300-301)
provoca, ao indagar “se as contradições entre a ilusão de participar e a percepção efetiva
da heteronomia crescente das práticas sociais e das idéias políticas [de repente] não
provocaria um movimento que fizesse aparecer (...) os limites da ilusão e da
heteronomia e pudesse introduzir o tema da autonomia”. Para ela, os “movimentos
sociais e populares que agem como contra-poderes sociais” poderiam ser uma pista
deste movimento.
Para Glória Gohn, movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter
sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e
expressar suas demandas”. Podem ter caráter diversificado, mas quando assumem
postura política progressista “constituem e desenvolvem o chamado empowerment de
atores da sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para atuação
em rede”. Para a autora, os movimentos atuais construíram um novo entendimento sobre
autonomia; para eles, ter autonomia é “ter projetos e pensar os interesses dos grupos
envolvidos com autodeterminação; é ter planejamento estratégico em termos de metas e
programas; é ter a crítica, mas também a proposta de resolução para o conflito”. A
autora continua “é ser flexível para incorporar os que ainda não participam, mas têm o
desejo de participar, de mudar as coisas e os acontecimentos da forma como estão”. E
finaliza, “é priorizar a cidadania: construindo-a onde não existe, resgatando-a onde foi
corrompida”. (GOHN, 2003, p. 13-17)
Para Chauí, autonomia é a “capacidade interna para dar-se a si mesmo sua
própria lei ou regra e, nessa posição da lei-regra, pôr-se a si mesmo como sujeito”. E
complementa, “a autonomia não consiste, então, no poder para mudar o curso da
história e sim na capacidade para, compreendendo esse curso, transformar-lhe o
percurso”. (CHAUÍ, 1989. p, 300-301).
A luta política em defesa da autonomia pressupõe: “a compreensão de que a
forma contemporânea da dominação e da exploração cristaliza-se na separação radical,
em todas as esferas da vida social, entre dirigentes e executantes”. Separação na qual, os
primeiros “detêm a decisão, a direção, o controle e as finalidades de uma prática,
enquanto os segundos devem adotar comportamentos prescritos (...) cujo modo de
realização, sentido e fins lhes escapam inteiramente”. Chauí complementa “essa
heteronomia (...) é reforçada e naturalizada porque encontra suporte na ideologia da
competência, isto é, na crença de que o saber dos especialistas enquanto saber legitima o
exercício de autoridade”. Tal conjuntura ocorre sem que se leve em conta que de um
lado “a criação dos competentes só pode ser feita pela criação simultânea dos
incompetentes” e por outro lado “o vinculo entre saber e poder, tal como o conhecemos,
é resultado das instituições sociais criadas pelo capitalismo”. (CHAUÍ, 1989. p, 306).
Aqui recorremos mais uma vez a reflexão freireana, quando afirma que “um dos
elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda prescrição é a
imposição da opção de uma consciência à outra”, o autor finaliza afirmando, “por isto, o
comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas
estranhas à ele – as pautas dos opressores” (FREIRE, 2005, p. 36-37)
Há a necessidade de se refletir sobre até que ponto os mediadores estão
contribuindo para processo de culpabilização das classes populares e consequentemente
estão fortalecendo os processos de dominação e opressão. “Uma das justificativas
para se culpar as vítimas é a desqualificação do saber popular. Assim, o monopólio
do saber técnico, seja médico ou de outro tipo, põe em segundo plano o saber
acumulado da população trabalhadora, ao lançar mão da escolaridade como parâmetro
da competência”. (VALLA, 1998).
Tal concepção aponta para a necessidade de se desvelar esta outra categoria,
construída ideologicamente pela sociedade capitalista. O discurso da “competência” é
responsável pela forma contemporânea de dominação, através da separação entre o
controle técnico-científico do processo de trabalho por um grupo de dirigentes
competentes (concepção) e a execução do trabalho pela maioria incompetente
(realização) (CHAUÍ, 1989. p, 109). Para Chauí, o discurso competente “se instala e se
conserva graças a uma regra que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que
pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em qualquer
lugar”. E complementa “com esta regra, ele produz sua contraface: os incompetentes
sociais”. Incompetentes tolhidos na capacidade de construir seus destinos através da
participação política. Todavia, Chauí aponta um caminho “se procurarmos desvendar os
mecanismos de produção da incompetência social, teremos alguma possibilidade de
desfazer internamente o discurso da competência”. Complementa, “trata-se de contestar
o uso privado da cultura, sua condição de privilégio ‘natural’ dos bem dotados, a
dissimulação da divisão social do trabalho sob a imagem da diferença de talentos e de
inteligências”. E finaliza “é a noção de competência que torna possível a imagem da
comunicação e da informação como espaço da opinião pública (...) ao fazer do público
espaço da opinião, essa imagem destrói a possibilidade de elevar o saber a condição de
coisa pública, isto é, de direito a sua produção por parte de todos”. (CHAUÍ, 1989, p.
02).
Essa desqualificação do saber das classes populares é utilizada como
instrumento de dominação e tem seu contexto ampliado de forma a desqualificar os
sujeitos destes saberes, castrando a “vocação dos homens” de humanizarem-se
(FREIRE, 2005). Daí que a “desqualificação da classe trabalhadora também passa pela
construção de uma imagem do bruto, do carente, do nulo, afirmando, aliás, que família
pobre é ‘igual à doença’”. Neste contexto, estrutura-se o objetivo da dominação de
“apagar as diversidades do interior das classes populares e de infantilizar os mesmos
trabalhadores”, para isso “chama-os de mentirosos quando alegam problemas de saúde,
de apáticos quando demonstram desinteresse na sala de aula, ou acusa-os de não
compreender os conselhos de prevenção”. (VALLA, 1998).
Tal condição gera dentro do processo educacional, enquanto troca de saberes,
situações ou idéias mitificadas, como o fato de que na “aceitação” de que “os saberes
dos profissionais e da população são iguais, esteja implícita a idéia de que o saber
popular copia o dos profissionais”. Gera ainda obstáculos muitas vezes intransponíveis à
autenticidade do processo, como por exemplo, o fato de que “se a referência para o
saber é o profissional, tal postura dificulta a chegada ao saber do outro”. Tal processo se
dará possivelmente pela superação da incongruência de nós oferecermos nosso saber,
por pensarmos que “o da população é insuficiente e, portanto, inferior, quando, na
realidade, é apenas diferente”. Bem como, de certas artimanhas políticas, como o fato
de que, “embora haja profissionais preocupados com a necessidade de a população
se organizar e reivindicar seus direitos e serviços básicos de qualidade, na
realidade a tradição dominante no Brasil é o convite das autoridades para que a
população participe mais”, no sentido de cumprir obrigações que em verdade são
do Estado. (VALLA, 1998).
METODOLOGIA
Neste trabalho se utilizarão as bases teórico-metodológicas da comunidade
ampliada de pesquisa como uma modalidade de pesquisa-ação aplicada à realidade da
comunidade Boa Vista/Castelão. Assim, perseguindo a abertura de espaços de análise
da realidade local, foram criadas algumas estratégias que constituíram um programa de
formação de diversos atores locais que incluiu várias etapas, de forma que cada uma
delas preparava as condições necessárias para o desenvolvimento das subseqüentes. A
primeira, que consideramos como o momento disparador das discussões, e que
destacamos aqui por razões metodológicas foi o Fórum Popular que teve o objetivo de
permitir os primeiros contatos entre os saberes populares e dos técnico-mediadores,
estimular o diálogo/reflexão e a ação sobre a realidade concreta a partir da análise dos
problemas e potencialidades locais pelo grupo de trabalho do Fórum e fortalecer o
caráter democrático e participativo dos coletivos comunitários.
A pesquisa-ação é uma abordagem, específica em ciências sociais, definida
como uma pesquisa na qual há um ação deliberada de transformação da realidade e
que possui duplo objetivo: transformar a realidade e produzir conhecimentos
relativos a essas transformações. (BARBIER, 2002).
Para Thiollent (1988, p. 15), uma pesquisa pode ser qualificada como pesquisa-
ação quando houver uma ação do tipo não trivial, ou seja, “uma ação problemática
merecendo investigação para ser elaborada e conduzida”, para o autor é necessário
ainda que tal ação “seja conduzida por pessoas ou grupos implicados no problema sob
observação”.
Uma das principais características da pesquisa-ação está relacionada ao papel do
pesquisador ou dos pesquisadores na pesquisa e a relação entre as unidades de pesquisa.
Para Barbier (2002, p.14), “a pesquisa-ação obriga o pesquisador a implicar-se. Ele
percebe que está implicado pela estrutura social na qual está inserido e pelo jogo de
desejos e de interesses de outros”. O autor complementa afirmando que o pesquisador
“também implica os outros por meio de seu olhar e de sua ação singular no mundo. Ele
compreende, então que as ciências humanas são, essencialmente, ciências de interações
entre sujeito e objeto de pesquisa”. E finaliza afirmando que “o pesquisador realiza que
sua própria vida social e afetiva está presente na sua pesquisa sociológica e que o
imprevisto está no coração de sua prática”.
Na pesquisa-ação os sujeitos-atores da pesquisa não são excluídos. Nela “o
pesquisador descobre que (...) não se trabalha sobre os outros, mas e sempre com os
outros”. E mais, “ele não apresenta sozinho seu relatório de pesquisa ao solicitante da
pesquisa (...) sem antes o ter apresentado ao seu grupo de pesquisa de campo, principal
interessado. Quando possível, ele o redige coletivamente” (BARBIER, 2002, p. 14-15).
Voltando ao papel do pesquisador, Barbier descreve o pesquisador em pesquisa-
ação, como “antes de tudo um sujeito autônomo e, mais ainda, um autor de sua prática e
de seu discurso”. Este processo de autorização, segundo o autor, “leva-o juntamente
com outros a formarem, na incompletude, um grupo-sujeito no qual interagem os
conflitos e os imprevistos da vida democrática” (BARBIER, 2002, p.19).
Com relação ao processo de pesquisa, em termos comparativos, a pesquisa-ação
apresenta vantagens nas cinco fases por que normalmente passa a pesquisa clássica. Ela
não tem de formular a priori hipóteses e preocupações teóricas ou de traduzi-las em
conceitos operatórios suscetíveis de serem medidos por instrumentos padronizados.
Nela o pesquisador constata o problema de pesquisa, não o provoca e seu papel consiste
em ajudar a coletividade a determinar todos os detalhes (...), por uma tomada de
consciência dos atores do problema numa ação coletiva. O pesquisador leva em
consideração “as questões da coletividade inteira e não as de uma amostra
representativa” e seus instrumentos de pesquisa podem ser semelhantes, mas, em geral
são mais interativos e implicativos (discussões de grupo, desempenho de papéis,
conversas aprofundadas)”. Na pesquisa-ação “os dados são retransmitidos à
coletividade, a fim de conhecer sua percepção da realidade e de orientá-la de modo a
permitir uma avaliação apropriada dos problemas detectados”. Por fim, os dados de
pesquisa “são o produto de discussões de grupo”, desta forma, a análise e discussão
impõe a comunicação dos resultados da investigação aos membros nela envolvidos,
objetivando a análise de suas reações”. No fim da pesquisa, “há sempre discussão sobre
os resultados e uma proposta de novas estratégias de ação”. (BARBIER, 2002, p.54-
56).
A Comunidade Ampliada de Pesquisa foi dispositivo criado pelo médico Ivar
Oddone e sua equipe na Itália (1978-1982) e materializa a necessidade constatada de
articular as formas de cultura, de acumulação de patrimônios (saberes e valores) que
existem no trabalho com as disciplinas acadêmicas. Essa articulação, segundo Oddone
(1986), sempre foi muito incipiente, evidenciando uma “incultura” por parte do
pesquisador e do trabalhador, evidencia tanto um desconhecimento por parte dos
pesquisadores com relação ao trabalho realizado em situações específicas, quanto por
parte dos trabalhadores no que se refere à produção científico-acadêmica. (BARROS E
OLIVEIRA, 2009). Conhecer as formas de cultura e patrimônios deve segundo essa
perspectiva, passar pelo conhecimento dos próprios trabalhadores que será então
confrontado com os saberes formais dos pesquisadores e vice-versa. A CAP, também
chamada Comunidade Científica Ampliada, seria então um instrumento privilegiado
para o conhecimento do trabalho e para provocar nele transformação.
Voltado para o estudo sobre as condições de trabalho e a produção de
conhecimento por quem executa, atua, produz valor, ou seja, o trabalhador, a CAP traz a
discussão a respeito das condições de trabalho a partir de certas categorias como a
diferença entre trabalho prescrito e efetivo. As prescrições são as regras que definem
como o trabalho deve ser realizado. No entanto, as situações cotidianas, os imprevistos
nem sempre são definidos pelas prescrições. Para dar conta da realidade complexa
do trabalho, os trabalhadores são convocados a criar, a improvisar ações, a
construir o curso de suas ações, a pensar o melhor modo de trabalhar, a maneira
mais adequada de realizar o trabalho, de forma a atender os diversos contextos
específicos.
O caráter imanente do trabalhador enquanto gestor de suas ações é percebido a
partir do fato de que “a cada situação que se coloca, o trabalhador elabora estratégias
que revelam a inteligência que é própria de todo trabalho humano. Portanto, o
trabalhador também é gestor e produtor de saberes e novidades. Trabalhar é gerir. Gerir
junto com os outros”.
A criação implica experimentação constante, maneiras diferentes de fazer.
Assim, evita-se fazer a tarefa de forma mecânica, em um processo de aprendizagem
permanente, uma vez que se questionam as prescrições e se constroem outros modos de
trabalhar para dar conta de uma situação nova e imprevisível.
Os projetos de pesquisa que se articulam a essa perspectiva consideram,
portanto, que para conhecer o trabalho desenvolvido pelos viventes humanos, coloca-se
o desafio de conjugar diferentes pesquisas, colocar em diálogo crítico os conhecimentos
e análises científicas com ações práticas concretas de mudanças. Essa seria uma
estratégia para compreender-transformar as condições de trabalho nos diferentes
estabelecimentos, baseada no diálogo-confrontação entre conhecimento científico e
experiência dos trabalhadores. (ATHAYDE et al, 2003, p. 13-14).
Para Oddone (1986), surgia neste contexto uma forma original de pesquisa-ação
em torno do tema das mudanças das condições de vida e trabalho que chamou de
“pesquisa não ritual” porque alterava os métodos da pesquisa tradicional, uma vez que
todos os atores se tornariam co-autores da pesquisa, portadores de saberes
específicos e, no caso dos trabalhadores, de “saberes informais”, conforme
denominavam a experiência. Ao invés de desprezar e/ou desqualificar, exalta-se a
iniciativa dos trabalhadores, fazendo um apelo à cultura da classe para modificar o
ambiente de trabalho, pois sem a participação dos trabalhadores o objetivo das
pesquisas empreendidas pelos especialistas poderia se reduzir aos interesses das
empresas. Assim, parte-se da perspectiva de que produzir cultura não significa somente
fazer “descobertas originais”, mas, também especialmente, difundir de modo crítico as
invenções, socializá-las e fazer com que se tornem base de ações vitais, elementos de
coordenação de ordem moral e ética (VICENTI, 1999).
Essa iniciativa poderia oferecer aos trabalhadores e pesquisadores uma forma de
aprender e utilizar a experiência acumulada nos centros de pesquisa e nos coletivos de
trabalho para que destes dois tipos de experiências emergisse uma experiência científica
que priorizasse as demandas das categorias profissionais e uma nova comunidade
científica ampliada. O lugar do especialista, possuidor da verdade, da única fala
autorizada, foi questionado através da Comunidade Ampliada de Pesquisa, apesar
de que obviamente com isso não se estava negando a importância do saber dos
especialistas, uma vez que ninguém pode ser competente pelo outro, no lugar do outro.
A experiência realizada permitiu, assim, definir três conceitos articulados, sobre
os quais o modelo operário italiano se institui que são: grupo operário homogêneo de
produção, validação consensual e não-delegação. O primeiro refere-se a um grupo de
trabalhadores que vivem conjuntamente a mesma experiência de trabalho. Portanto, são
portadores não somente da experiência bruta de seus membros, como também daqueles
que já o deixaram e dos julgamentos de valor que eles estabeleceram (VICENTI, 1999).
A validação consensual refere-se ao julgamento coletivo, pelo qual o grupo valida a
experiência de cada trabalhador relativa às condições de trabalho. A não-delegação
exprime a recusa de delegar aos especialistas o julgamento sobre a nocividade das
condições de trabalho e a fixação dos padrões de nocividade. Não se trata de
desqualificar as análises dos especialistas, mas, acima de tudo, afirmar que a
interpretação dos resultados da pesquisa será aceita somente após a validação por parte
do grupo homogêneo. A historia da organização da classe trabalhadora, mais
precisamente o “modelo operário italiano de produção do conhecimento”, pode,
portanto, nos oferecer pistas importantes para as investigações sobre as atividades de
trabalho. Esse paradigma está centrado na valorização da experiência dos trabalhadores,
busca pensar coletivamente o trabalho para transformá-lo, uma vez que parte substancial
da experiência dos trabalhadores, muitas vezes, lhe escapa.
Conforme Oddone (1986), a mudança que se espera nesse processo não é
mensurável, uma vez que, dentre outros aspectos e, principalmente, objetiva-se operar
transformações nos processos de subjetivação. Ao se modificar as relações tradicionais
entre técnicos e trabalhadores sobre as definições dos modos de produção, deu-se início
à problematização/desnaturalização da divisão social do trabalho, da divisão entre
trabalho manual e trabalho intelectual, e a busca da produção coletiva de trabalhadores e
técnicos. Torna-se necessário e possível um modo diferente de fazer pesquisa.
Como percurso metodológico e como pesquisador inserido na prática a ser
estudada, lançarei mão da observação-participante. Segundo Schwartz e Schwartz, trata-
se de um processo na qual “o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo
tempo modificando e sendo modificado por este contexto” (SCHWARTZ e
SCHWARTZ apud MINAYO, 2008, p. 273-274).
Como técnica de problematização estruturante deste trabalho, lançarei mão das
técnicas do círculo de cultura originada nos trabalhos do Movimento de Cultura Popular
(MCP) da Universidade Federal de Pernambuco, coordenado por Freire na década de
60. Valorizando o conhecimento popular construído a partir do “seu fazer no mundo”.
É reconhecida a cultura dos excluídos, o que pressupõe a existência de uma cultura
dominante. Esta última, por sua vez determina valores e atitudes exteriores aos sentidos
construídos por sua história, prática e vida. Assim sendo, o Círculo de Cultura é o
espaço da "Ação Cultural, através da qual se enfrenta, culturalmente, a cultura
dominante" (Freire, 1982, p.54).
O processo “freireano” ação-reflexão-ação é proposto como um modelo cíclico.
Parte da auto-reflexão – perguntas geradoras, da escuta – a partir das perguntas
temáticas e da análise da experiência, do diálogo - a partir da reflexão grupal, da análise
de caso ou da realidade concreta, da ação – como parte do planejamento de alternativas
e soluções para a situação problema e da síntese – que pressupõe a avaliação coletiva
das alternativas e dos argumentos. Esses pressupostos podem dar suporte para que
educadores se engajem em um diálogo crítico, utilizando múltiplos métodos e
estratégias. Podem, sobretudo, auxiliar no desenvolvimento de habilidades de
negociação e outras habilidades também necessárias para o estabelecimento de diálogo
entre os diversos atores em relação.
Uma outra abordagem a ser utilizada será um roteiro de entrevistas, mais
especificamente entrevistas semi-estruturadas como instrumentos orientadores. Para
Minayo (2008, p. 261) a entrevista é “acima de tudo uma conversa a dois, ou entre
vários interlocutores, realizada por iniciativa do entrevistador, destinada a construir
informações pertinentes [a] um objeto de pesquisa” e que visa também a “abordagem
pelo entrevistador, de temas igualmente pertinentes” ao objeto. O roteiro semi-
estruturado deve “desdobrar os vários indicadores considerados essenciais e suficientes
e m tópicos que contemplem a abrangência das informações esperadas”, devem ainda
induzir uma conversa a experiência e conter apenas alguns itens indispensáveis para o
delineamento do objeto (MINAYO, 2008, p.191).
Através da entrevista buscar-se-á coletar dados objetivos e subjetivos. Dessa
forma escolhi como entrevistados, os participantes do grupo-sujeito da comunidade
ampliada de pesquisa, oriundos do Fórum Popular local, formada por: uma agente
comunitária, três lideranças comunitárias, uma conselheira local de saúde e dois
usuários.
Os dados serão analisados a partir da técnica de análise de conteúdo que, para
Bardin (1979, p.42), trata-se na realidade de “um conjunto de técnicas de análise de
comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do
conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção destas mensagens” (BARDIN apud
MINAYO, 2008, p.303).
Será realizada, ao final da pesquisa, a apresentação da análise dos dados ao
conjunto dos entrevistados de forma a ensejar a reflexão coletiva sobre o processo de
construção de estratégias de participação popular e de formação de sujeitos capazes de
construir coletivamente a autonomia possível.
SINTESE DE UM CAMINHAR Apresentamos abaixo o que o pensamento freireano designa como síntese, ou
seja, instante do processo ação-reflexão-ação que pressupõe a avaliação coletiva das
alternativas às impertinências deste modelo de sociedade propostas pelo coletivo e dos
argumentos utilizados pelo mesmo para construírem sua pronúncia do mundo. Nas
palavras do autor “De um lado, incorporar-se ao povo na inspiração reivindicativa. De
outro, problematizar o significado da própria reivindicação”. (Freire, 2005, p.212)
O Fórum Popular
O Fórum Popular no contexto deste trabalho é concebido como um dispositivo
de participação política e como espaço coletivo que aponta para a constituição de
sujeitos com capacidade de análise e intervenção na realidade concreta. Representou o
primeiro passo no processo de construção de alternativas de participação popular das
comunidades Boa Vista e Castelão e serviu de base para a estruturação da Comunidade
Ampliada de Pesquisa.
Ele se deu também como um desafio à turma do Estágio Extra-Mural II do
Curso de Odontologia da UNIFOR, que reafirmando a importância do território como
efetivo campo de formação, se dispôs a construir um espaço/tempo comunitário capaz
de estimular o debate sobre o contexto social e político local.
O Fórum Popular se propôs constituir o espaço coletivo onde se buscaria
fortalecer os processos democráticos de discussão e participação política da
comunidade, estimulando a reflexão sobre a realidade local, seus problemas e
potencialidades a partir da práxis dos atores locais, que histórico-social e culturalmente
foram alijados de qualquer participação nas instâncias formais de poder. Em suma, seria
a tônica de um movimento inicial em busca de autonomias possíveis.“Não somos seres completamente autônomos, porque dependemos sempre dos outros (os outros também nos constituem), não sendo viável historicamente autonomia absoluta (destruiria, ademais, a autonomia dos outros). Mas podemos alargar enormemente, indefinidamente, a autonomia, se soubermos pensar, conhecer, aprender” (DEMO, 2005).
Para Gastão Wagner (2000, p.47), o espaço coletivo se estrutura como “um
arranjo organizacional montado para estimular a produção/construção de sujeitos e de
coletivos organizados”. Neste sentido, refere-se a “espaços concretos (de lugar e tempo)
destinados à comunicação (escuta e circulação de informações sobre desejos, interesses
e aspectos da realidade), à elaboração (análise da escuta e das informações) e tomada de
decisão (prioridades, projetos e contratos)”. Gastão identifica quatro modalidades de
espaço coletivo: os conselhos de co-gestão, os colegiados de gestão, os dispositivos e o
diálogo e tomada de decisão no cotidiano. Segundo ele, “a combinação dessas distintas
modalidades de espaço coletivo conformam sistemas de gestão participativa”.
(CAMPOS, 2000, p. 147).
O fórum popular da comunidade Boa Vista/Castelão tem atuado como um
dispositivo de participação comunitária cujo objetivo é deflagrar o processo de análise
coletiva dos problemas e potencialidades locais a partir do resgate da história local e
assim tem buscado o fortalecimento da co-gestão dos processos do mundo da vida
potencializando espaços de reflexão-ação sobre a realidade objetiva. Nesse sentido tem
contribuído para a democratização do trabalho em saúde.
Democratização é aqui vista como processo necessariamente dependente da
“práxis de grupos sujeitos (no sentido dado por Sartre de oposição à ‘serialidade’ e
Guattari como grupo capaz de lidar, com certa autonomia, com os constrangimentos da
história e do seu contexto) e produtora de sujeitos”. Gastão Wagner Campos afirma que
como produto social, a democracia depende da “correlação de forças entre movimentos
sociais e poderes instituídos”, da “capacidade social de se construírem espaços de poder
compartilhado” e da “intervenção deliberada de sujeitos concretos”. Neste contexto,
para o autor “democracia refere-se à possibilidade de alteração dos esquemas de
dominação, à produção de novos contratos e à construção de nova hegemonia”
(CAMPOS, 2000, p. 41).
Para Boaventura (1999, p.297) a forma representativa de democracia como
modelo exclusivo do paradigma dominante “significou um empobrecimento dramático
do potencial democrático que a modernidade trazia no seu projeto inicial”, sendo,
portanto “necessário reinventar esse potencial, o que pressupõe inaugurar dispositivos
institucionais adequados a transformar relações de poder em relações de
autoridade partilhada”.
Para Chauí (1989, p.49), é fundamental a compreensão crítica do caráter
ideologicamente construído da categoria “competência”, “a elite está no poder, acredita-
se, não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o aparelho do Estado,
mas porque tem competência para detê-los, isto é, porque detém o saber”.
As discussões durante a fase de planejamento do Fórum foram importantes e
evidenciavam, concomitantemente, o desejo e o medo do novo. A professora e os alunos
de Odontologia de inicio não entendiam perfeitamente que relação haveria entre
atividades de mobilização e discussão sobre problemas sociais com a formação das
mesmas enquanto “dentistas”. Houve inclusive a solicitação para que não se fizesse
“somente” a discussão política, mas se abrisse espaço também para atividades de
educação em saúde, o que foi aceito contanto que não se descaracterizasse o caráter de
coletivo organizado para discutir, a história da comunidade, problemas sociais e ações
políticas locais. O receio de não comparecimento da comunidade levou o grupo a pensar
em atrativos, como a oferta de serviços e brindes, inclusive com a sugestão de se usar
um título diferente para a atividade como “dia D da comunidade”. Tivemos muitas
dúvidas com relação à organização e à metodologia da atividade e neste instante o apoio
de pessoas que trabalhavam a educação popular na gestão foi de fundamental
importância.
As atividades do Fórum foram realizadas em espaço institucional do território e
tiveram a participação de um número próximo a 200 (duzentas) pessoas, entre adultos e
crianças.
O processo incluiu vivências de acolhimento e de resgate da história local,
conduzido pela Agente Comunitária de Saúde mais antiga da área de adscrição do CSF
Edmar Fujita, que trazia ao centro da roda momentos importantes da história da
comunidade. Para esse resgate os moradores lançaram mão de imagens fotográficas
representativas dos vários momentos históricos: as primeiras casas, as primeiras
famílias, a enchente do rio Cocó na década de 70, a luta pela posse da terra, as invasões
e expulsões, os conflitos. Como provocação, levamos algumas questões tais como: O
porquê do nome bairro Boa Vista? Como surgiu? Quais as características culturais
e étnicas dos moradores? Qual a origem de sua gente (de onde vieram)? Quais os
aspectos culturais locais mais marcantes? Como surgiram os espaços sociais
locais?
A comunidade pôde então expressar suas percepções sobre a própria história,
sua origem e suas lutas. Dona M. L. S., moradora, trabalhadora da saúde, liderança
política local traz em sua fala a história de um povo que, fugindo à tradição messiânica
da política brasileira construiu com suas próprias mãos sua história e deu-lhe um
sentido.
“Em 1960 o bairro Parque Boa Vista era um bairro praticamente despovoado as casas eram muito distante de uma pra outra, comercio, só tinha duas mercearia, nós não tínhamos água, luz, transporte coletivo, escolas e nem posto de saúde. Só tínhamos muitas carnaúbas, já existia o Seminário Regional e o Convento das Irmãs Dorotéias enquanto isso o bairro foi se povoando e como não tinha escola então foi montada a Escolinha São José no Seminário Regional e os maiores estudavam na Escola Antonio Dias Macedo.”
O resgate histórico se revelou instante primeiro de descrição das situações-limite
apresentadas pela comunidade. Para Freire (2005, p.104-105) situações limites são
“dimensões concretas e históricas de uma dada realidade. Dimensões desafiadoras dos
homens”, nas quais os mesmos incidem através dos seus atos limites.
“Daí começamos a lutar por água potável, transporte coletivo, iluminação pública, calçamentos para todas as ruas etc. E graças às lutas comunitárias hoje nós temos água, luz, escolas públicas particulares as ruas todas asfaltadas, temos vários comércios e empresas, temos 3 creches, 6 templos evangélicos, 2 conventos com igrejas católicas, uma delegacia que é modelo, um complexo de cidadania que inclui posto de saúde, CRAS, creche e uma bela escola. Isso tudo foi fruto de uma grande luta da associação”.
Este o instante da proclamação do ato limite. Segundo Freire (2005, p. 105)
“atos limites são aqueles que se dirigem a superação e a negação do dado, em lugar de
implicarem sua aceitação dócil e passiva”.
“Então começamos a discutir as necessidades da comunidade, principalmente as maiores necessidades e resolveu-se ir à luta, que era em primeiro lugar, seria água, luz, escola e ônibus. Ao passar a luz de Paulo Afonso dentro do bairro nós começamos fazer passeata de lamparina, solicitando iluminação para todos, até que conseguimos. A luta continuou por água e escola até que um dia através de muita briga conseguimos. Porque antes nossas crianças estudavam no seminário regional que lá funcionava a escolinha São José, depois se mudou para dentro da fazenda Uirapuru, Escolinha Nossa Senhora de Fátima, até que conseguimos a Escola Profa. Maria Gonçalves depois de muita briga. Daí não paramos mais de ir em busca de nossos benefícios como saúde, segurança, ruas todas asfaltadas, cinco linhas de ônibus, 4 para o centro e 1 terminal.”
No momento em que a percepção critica se instala, a partir da ação mesma do
grupo, percebe-se o desenvolvimento de um clima de esperança e confiança que os leva
a se empenharem na superação das situações limites. Para Freire (2005, p.105) esta
superação, “não existe fora das relações homens-mundo, somente pode verifica-se
através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as situações
limites”. “Então nosso bairro cresceu muito, de acordo com a necessidade. Temos vários comércios, inclusive fábrica. Temos muita ocupação, que não é moradia digna de se morar, mas também tem muitas moradias dignas inclusive condomínio. Hoje nossa maior luta é pelo saneamento básico é mudar o perfil das moradias de ocupação, a urbanização do rio que antes o lazer e sobrevivência do bairro e hoje é totalmente poluído. Outra luta da comunidade é resgatar o nome original do bairro que é Boa Vista e não Mata Galinha e nem Castelão, pois Castelão é o estádio construído dentro do bairro Boa Vista.”
Superadas as situações limites, com a transformação da realidade o grupo se
prepara para novas que surgirão, provocando outros atos limites. Este processo exige
uma separação do mundo, objetivando-o, separação de sua atividade de si mesmo, “ao
terem o ponto de decisão de sua atividade em si, em suas relações com o mundo e com
os outros, os homens ultrapassam as situações limites”. (FREIRE, 2005, p.104)
As principais situações-limite identificadas pelos grupos foram: violência,
drogas, precariedade do saneamento básico, moradias ruins, falta de emprego,
dificuldade de acesso à informação, políticas sociais insuficientes, transporte
coletivo deficiente e mal distribuído, enchentes, doenças, ausência de médico;
deficiência e dificuldade de acesso ao atendimento odontológico, entre vários
outros citados com menor freqüência. Mais uma vez a fala da moradora M.L.S. é
emblemática desse olhar da comunidade sobre suas situações-limite:
“Boa Vista é um bairro que em vista de outros é pequeno. Mas apesar de minúsculo a sua área de risco se torna mais do que de outros bairros. Só as margens do rio têm uma população de 1600 famílias que geralmente são alagadas e também temos 3 ocupações onde todos têm água potável e iluminação publica mais as moradias não são dignas de se morar, pois a maioria é feita de taipa ou materiais aproveitáveis e não se tem fossas. Mais nelas podemos contar com a violência e o trafico de drogas. Usuários e traficante usa e repassa as droga na presença das crianças e muitas vezes usam as crianças como avião e estas ocupações só uma tem ACS.”
Enquanto potencialidades da comunidade foram citadas o artesanato, crochê,
as rezadeiras, os grupos de oração e a igreja. Foi considerado como passível de ser
trabalhado pela comunidade e pelas equipes da unidade, situações-limite como o
agendamento odontológico, melhor utilização dos espaços sociais disponíveis,
oferta e busca por cursos profissionalizantes entre outras.
Um ponto importante a ser destacado neste instante refere-se à dificuldade dos
“profissionais/mediadores admitirem, nos contatos que desenvolvem com as classes
populares, a cultura popular como uma teoria imediata, isto é, um conhecimento
acumulado e sistematizado, que interpreta e explica a realidade”. A origem ideológica
desta mitificação aparece representada na “formação escolarizada da classe média”,
infelizmente comum naqueles profissionais que agem como mediadores entre os grupos
populares e a sociedade e que freqüentemente “os leva a ter dificuldade em aceitar o
fato de que o conhecimento também é produzido pelas classes populares”. È necessário
o reconhecimento de que “os saberes da população são elaborados sobre a experiência
concreta, a partir das suas vivências, captadas de uma forma distinta daquela vivida pelo
profissional” (VALLA, 1998).
O problema condições de moradia foi trazido pela comunidade da Boa Vista
durante o Fórum Popular envolto em uma gama de problemas sociais e foi conduzido à
condição de tema gerador pelos pesquisadores populares desta comunidade ampliada de
pesquisa e reflexivamente posto como situação limite, passível de sofrer a ação do
grupo como ato-limite.
Como resultado deste processo, criou-se, um grupo de trabalho, composto por
17 representantes da comunidade, engajados espontaneamente, visando à
continuidade das discussões iniciadas, o encaminhamento das demandas passíveis de
serem resolvidas localmente e o estabelecimento de estratégias para encaminhamento
daquelas que precisam de ação institucional de esferas estatais, bem como o
fortalecimento do vínculo da comunidade com as equipes de saúde. Nesse processo a
roda de gestão da comunidade constituiu-se espaço de encaminhamento desses atos-
limite.
Trazendo a perspectiva do diálogo-confrontação entre os saberes acadêmicos e
os saberes da experiência defendido pela Comunidade Ampliada de Pesquisa foi
realizada a sistematização das percepções das alunas do curso de odontologia da
UNIFOR a partir dos relatos individuais, presentes em seus portifólios. Este inclusive,
foi um dos instrumentos de avaliação processual das atividades desenvolvidas durante o
estágio no Centro de Saúde da Família Edmar Fujita. Os relatos permitem perceber o
grau de apropriação e/ou mudança da percepção da realidade das comunidades
periféricas da cidade de Fortaleza pelos mediadores/estudantes de um curso superior da
área de saúde, de uma universidade particular, de reconhecida predominância de setores
médios (classe média) da sociedade.
Nos relatos a perspectiva da superação do mito do desinteresse das classes
populares pela discussão dos seus problemas e pela tomada de decisões sobre seu
destino,
“O fórum superou minhas expectativas quanto à participação e à quantidade de pessoas / As pessoas se mostraram interessadas no assunto, em relatar as dificuldades e as potencialidades da comunidade / O interesse da população nos motivou ainda mais”;
A percepção da importância da formação dos vínculos com a comunidade para o
trabalho em saúde,
“Possibilitou ver de perto o comportamento da comunidade, seus anseios e reclamações / Serviu para que os profissionais de saúde conhecessem as necessidades da população relatadas pelos próprios moradores e pensassem em medidas e programas de melhoria da qualidade de vida desta
comunidade / Trouxe pontos positivos para nosso crescimento como futuros profissionais da saúde pública e o fortalecimento do vínculo da UBS com a comunidade / Nos ensinou a conviver com outras pessoas, nos ajudou a superar desafios e sermos capazes de aumentar o vínculo da população com a unidade de saúde”.
A centralidade da escuta, do diálogo, da implicação para o trabalho em saúde na
estratégia de saúde da família,
“Deu pra ver melhor como funciona uma atividade no PSF e da importância de realizá-las, uma vez que a gente interage de forma ativa e direta com os usuários, passa informações, ouve o que as pessoas têm a dizer, observa o grau de satisfação da população e vê onde tem que melhorar /
A percepção da importância da participação popular como estímulo ao trabalho
em equipe e componente essencial da estratégia de saúde da família,
“Vi também a importância de trabalhar em equipe, uns ajudando aos outros e o resultado foi o sucesso da atividade / O trabalho em grupo foi muito importante”.
O impacto da atividade coletiva sobre os aspectos subjetivos relacionados ao
crescimento pessoal e profissional,
“Contribuiu bastante para o engrandecimento e o amadurecimento profissional / Momento de superação, na prática, das nossas dificuldades e limitações pessoais”.
A perspectiva da troca de saberes e de superação do caráter prescritivo da
relação profissional/paciente, técnico/ população, dirigente /subalterno,
“A comunidade pôde trocar experiências vividas, discutindo seus direitos para que junto com os profissionais da unidade, buscassem a melhoria do serviço público de saúde da sua localidade e com isso garantir um atendimento de qualidade à população”.
A percepção da centralidade da participação popular como mecanismo
instituinte dos processos de fortalecimento do protagonismo e autonomia dos sujeitos,
“Interagir para as pessoas melhorarem sua auto-estima, para que sejam atores do processo de saúde, do auto-cuidado, fazendo-os menos dependentes dos profissionais de saúde”.
O processo de elaboração, participação, vivência e construção de práticas
coletivas revela-se de fundamental importância no processo de formação do trabalhador
social, e funciona como atividade dinamizadora do processo de construção do sujeito
social, consciente de sua realidade objetiva e da necessidade de emancipação humana,
por tudo revela-se aqui, através das percepções das alunas do Estágio Extra-Mural
(EEM II), o impacto cultural sobre todos os envolvidos nas práticas políticas
construídas através da participação popular, reveladoras das iniqüidades sociais e
capazes, também, de funcionar como mecanismo dialético superador desta realidade.
“No momento em que atores sociais tomam consciência das causas mais profundas dos problemas de saúde e das relações sociais que os permeiam, podem apontar para a luta social de forma mais conseqüente, ficando também mais comprometidos com a saúde da comunidade. É nessa dicotomia que surgem as discussões sobre o apoio social. Lideranças, profissionais e agentes comunitários de saúde estão diretamente envolvidos nesse processo, estimulados a lutar pela saúde da comunidade e compelidos a buscar na própria comunidade formas de resolver e minorar algumas questões de saúde que não podem e nem devem esperar só pelo Estado”. (ALBUQUERQUE & STOTZ, 2004)
O grupo-sujeito
No segundo semestre de 2008 foram retomadas as atividades a partir dos
encaminhamentos levantados pela comunidade. Para isso, algumas atividades foram
discutidas com o intuito de se mobilizar o grupo de trabalho formado durante o Fórum,
de modo, a se refletir sobre as questões levantadas pelo coletivo comunitário acerca dos
seus problemas sócio-econômico, de suas potencialidades locais e acima de tudo da
possibilidade concreta de intervenção dos atores sociais na realidade local.
A proposta era mobilizar o grupo de trabalho numa perspectiva de se articular a
formação de um “grupo sujeito”, no sentido proposto por Guattari e Rolnik (1993). Um
coletivo que tenha a possibilidade de captar elementos da situação, construir suas
referências teóricas e práticas, sem ter que ficar na posição constante de dependência ao
“poder global, a nível econômico, a nível do saber, a nível técnico, a nível das
segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos”. Enfim, que seja capaz de
efetivar um processo de “singularização” através de sua “automodelação”. O objetivo
era que o grupo adquirisse “a liberdade de viver seus processos”, que passasse a ter a
capacidade de ler sua própria situação e aquilo que passa em torno dela.
Foi articulada então a realização de um seminário com o objetivo de garantir o
encaminhamento dos problemas apontados pelo fórum através da reflexão e atuação do
grupo. Para Thiollent (1988, p. 58), o “seminário” constitui a técnica principal de
condução da investigação e do conjunto do processo de pesquisa-ação, tendo o papel de
“examinar, discutir e tomar decisões acerca do processo de investigação”.
O Grupo de Trabalho constituiu-se sujeito coletivo responsável por intervir na
realidade objetiva de modo a transformá-la, tendo como ponto de partida, a
compreensão de toda produção histórico-social engendrada pela experiência do Fórum
Popular. Ou seja, o pensar coletivo sobre o processo histórico de formação da
comunidade, as principais situações-limite enfrentadas por seus moradores, as
potencialidades comunitárias individuais e coletivas e por fim, os níveis concretos de
ação comunitária capazes de construir a categoria freireana dos inéditos-viáveis.
Além disso, o grupo sujeito seria a base sobre a qual se articularia a composição
da Comunidade Ampliada de Pesquisa, que teria ali seus primeiros passos dados e seria
desenvolvida em etapas subseqüentes.
Dos dezessete representantes da comunidade que se dispuseram a trabalhar e
refletir sobre os problemas colocados pelo fórum, apenas sete se engajaram
efetivamente na formação do grupo de trabalho, visando a estruturação do grupo sujeito.
Foram realizadas oficinas de planejamento participativo utilizando o MAPP
como técnica-modelo de reflexão das causas e conseqüências dos problemas
comunitários. Para Matus (1989) o planejamento é uma, “atividade de cunho
nitidamente político”, no sentido da constituição da política como um jogo e um conflito
de estratégias que constituem e requerem um esforço de planejamento com os recursos
técnicos disponíveis, organizando informações, hierarquizando e ordenando as ações,
orientando as decisões. No planejamento participativo “o ator que planeja é parte do
processo social e político e está por este contido, ele é, ao mesmo tempo, sujeito e
objeto do planejamento”.
O MAPP (Método Altadir de Planificação Popular) se estrutura na análise de
problemas, na identificação de cenários, na visualização de outros atores sociais e na
ênfase na análise estratégica e, pelas suas características operativas, constitui-se no
método de eleição para planejamento no nível local. Visto favorecer o
comprometimento da comunidade e de suas lideranças com a análise e enfrentamento de
seus problemas.
Os problemas diagnosticados e referidos pelo Fórum foram classificados
quanto à urgência, importância e capacidade de enfretamento do grupo. Cinco
problemas receberam classificação “alta” nos três quesitos, Violência, Condições das
Moradias, Falta de Médicos, Dificuldade no Acesso ao Dentista e Transporte
Coletivo Deficiente, após nova rodada de discussão, elegeu-se como prioritário, o
problema “Condições Inadequadas das Moradias, a partir dele foi construída a
“Espinha de Peixe” identificando as causas e seus condicionantes e as conseqüências e
suas implicações na realidade sobre o problema “moradias ruins/indignas”, de modo a
aprofundar a discussão sobre o problema em foco.
Entre as causas referidas pelo grupo estão: as invasões (ocupações irregulares),
as enchentes, o desemprego, a falta de espaço no território, a falta de planejamento;
como fator condicionante da causa “invasões” foi colocado, pelo grupo, a questão das
migrações do campo para a cidade e das áreas centrais da cidade para a periferia. Dentre
as conseqüências: as doenças, o desrespeito à comunidade, a violência, a falta de
saneamento e o problema ambiental (poluição do Rio Cocó). Foram citadas como
implicações das conseqüências elencadas: o preconceito contra o pobre/favelados, as
drogas e acúmulo de lixo.
Foi proposta a realização de um ato limite de cunho político-educativo, e
realizado a divisão de tarefas dentro do grupo de trabalho. Os representantes da
comunidade assumiram a responsabilidade pela mobilização dos moradores.
Tais atividades culminaram no ato público: “Caminhada pelo Direito à
Moradia e Ambiente Saudáveis da comunidade Boa Vista/Castelão” que percorreu
as ruas do bairro Boa Vista, chamando as pessoas da comunidade a participar, refletir e
reivindicar sobre o direito dos moradores de acesso à moradia digna, e chamando a
atenção para o cuidado com a preservação do rio Cocó, principalmente na questão da
necessidade de acondicionamento do lixo domiciliar e de preservação da vegetação e do
solo às margens do rio.
O ato público, apesar do visível impacto simbólico em todos os que
participaram, principalmente nas lideranças comunitárias, na concepção do grupo
sujeito, não conseguiu atrair um número de pessoas condizente com a dimensão do
problema. Os representantes da comunidade no grupo associaram o problema da
mobilização comunitária às dificuldades de participação política da comunidade,
tema que será utilizado para análise e reflexão desta Comunidade Ampliada de Pesquisa
e que será abordado a seguir. Tal situação apresenta pertinácia ao que Barbier afirma
“ora, é somente durante o processo de pesquisa que o verdadeiro objeto (a necessidade,
o pedido, os problemas) emerge, e que os participantes são capazes de apreendê-lo
progressivamente, de nomeá-lo e de compreendê-lo” (BARBIER, 2002, p.51).
A comunidade ampliada de pesquisa da Boa Vista
Foram retomadas as atividades do grupo, a partir da reflexão sobre a situação-
limite colocada pelo grupo, ou seja, a necessidade de reflexão sobre a questão da
participação política da comunidade nas lutas cotidianas em defesa dos interesses locais.
O grupo manteve a composição original que participara da maioria das reuniões do
seminário anterior sobre planejamento participativo e do ato-limite “caminhada pela
moradia digna”. Ou seja, três lideranças comunitárias, uma agentes comunitária de
saúde, duas usuárias do CSF Edmar Fujita e uma conselheira local de saúde, que na
realidade também é agente comunitária e liderança local, mas que aqui representou o
ponto de vista de um ator do controle social, visto ser além de conselheira local,
conselheira municipal de saúde. Neste momento, a meta de desenvolver a Comunidade
Ampliada de Pesquisa como mecanismo/instrumento de reflexão sobre participação
popular, por sua estrutura baseada no encontro e no diálogo crítico entre o pólo dos
saberes e o pólo de práticas desenvolvidos no cotidiano de trabalho, na aliança/conflito
entre os saberes formais/técnicos dos trabalhadores/especialistas e os saberes
informais/empíricos da comunidade, se revelou conciso com os objetivos do grupo.
O primeiro encontro teve o duplo propósito de trazer para o grupo experiências
outras de atuação coletiva existentes na comunidade e reavivar a iniciativa do grupo a
partir da reflexão sobre suas dificuldades. Para tanto foi apresentado um vídeo
produzido pelo grupo de fotografia Vista Boa em Boa Vista que traz o contexto atual da
realidade do bairro ao mesmo tempo em que abre espaço para o resgate da história da
comunidade a partir da fala de seus atores sociais mais antigos. A experiência serviu
para que estes atores sociais se vissem refletidos no contexto da história da comunidade,
afinal dois dos atores sociais que aparecem no vídeo são protagonistas desta
Comunidade Ampliada de Pesquisa. Proporcionou ainda a possibilidade primeira de
“objetivação” da realidade concreta da comunidade pelo grupo da comunidade ampliada
que seria aprofundada nos encontros posteriores.
No segundo encontro realizou-se um seminário de reflexão utilizando o método
do círculo de cultura, criado e desenvolvido pelo educador Paulo Freire, com o objetivo
de aprofundar a questão da participação realizando coletivamente a problematização
sobre o tema. Foram convidados a participar deste momento, profissionais de saúde
componentes da Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Em seguida foi
realizada a reconstituição da caminhada do grupo através da apresentação de fotografias
das atividades realizadas durante o fórum e das reuniões e ato-limite do grupo de
trabalho.
Os integrantes do grupo em círculo foram chamados para, a partir de imagens
(fotografias e recortes de revista) dispostas aleatoriamente no centro da roda, trazer para
reflexão as palavras geradoras. Para tanto foi solicitado que a partir das imagens fosse
registrado em tarjetas palavras capazes de codificar/representar a imagem escolhida.
Os participantes foram chamados, em seguida, a descodificar as imagens, exprimindo
questões subjetivas e objetivas para as escolhas, as relações das imagens com suas vidas
e a vida da comunidade. As palavras foram posteriormente conformadas em formato de
mandala de modo a que o grupo pudesse refletir sobre a totalidade expressa pela
reflexão coletiva.
Em seguida foi realizada a divisão da comunidade ampliada em três subgrupos
para problematização do tema participação popular a partir de algumas questões
geradoras. (anexo 8.1)
Com o intuito de aprofundar as análises coletivas sobre o objeto participação
popular foi proposta a realização de entrevistas individuais ou em duplas, a critério do
grupo, dispostas sob a forma de roteiro semi-estruturado, contendo 10 (dez) perguntas e
divididas de acordo com os papéis sociais. Foram 07 (sete) os entrevistados, sendo,
como já dito anteriormente, três lideranças comunitárias, uma agentes comunitária de
saúde, uma conselheira local de saúde e duas usuárias do CSF Edmar Fujita. (anexo 8.2)
A categoria classe social apresentou-se de forma expressiva nas falas do grupo e
é trazida desde o primeiro instante no próprio relato histórico feito ainda durante o
fórum popular. Tal percepção é assim expressa pelo grupo, entretanto torna-se
necessário que o esforço de compreender as condições e experiências de vida, e também
a ação política da população, seja acompanhado de maior clareza das suas
representações e visões de mundo. Caso contrário corre-se o risco de procurar uma
suposta identidade, consciência de classe e organização que, na realidade, é uma
fantasia criada por nós, já que há várias subdivisões, na cidade e no campo, entre as
classes populares no Brasil. (VALLA, 1998)
“Assim a população passava por muita dificuldade, pois não tinha transporte
suficiente para ir ao centro não tinha água potável e nada de conforto”; “pois éramos
a classe pobre do bairro”; “tive uma infância pobre” (M. L. S. - conselheira). / “na
minha profissão, você vai morrer pobre!”; “eu era pobre, mas era uma menina feliz!”.
(M. G. - liderança)
A relação da posição social com as condições estruturais é expressa como,
“Eu andava na beirada desse rio e via muita criança chorar, um choro de
criança que pedia socorro”; “O pessoal saía daqui pra pegar água lá no Dias Macêdo,
não tinha água, não tinha luz”; “na época não tinha nada” (A. N. - liderança). / “uma
das melhores ruas do bairro era só lama”. (M. S. – usuária) / “à noite, nossa
iluminação era os vagalumes e a lua” (M. L. S. - conselheira).
A análise de tal categoria se liga diretamente aos conceitos de conflito social ou
luta de classes, ambos fundamentais para a teoria marxista explicativa da história e por
esta considerada os verdadeiros motores da história. A percepção de luta, de conflito é
homogeneamente expressa pelo grupo, mas de forma velada, envolta na trama
ideológica que torna o inimigo invisível. Percebe-se a divisão, mas não a
oposição/antagonismo entre as classes, que é base estrutural deste modelo de sociedade.
Estes conceitos são perceptíveis em todas as falas, em expressões como,
“Isso tudo foi fruto de uma grande luta da associação”; “brigando por
educação, água e etc.” (M. L. S. – conselheira) / “mostrar para as pessoas a
verdadeira potencialidade da comunidade através da luta”; “a luta do posto de saúde
com a comunidade da Boa Vista” (expressões retiradas do circulo de cultura); “nada
caiu do céu, tudo foi uma luta comunitária”; “eu ainda luto porque sou teimoso” /
“sem luta não vinha nada”, “comecei minha luta comunitária como presidente de
associação”; “esse pessoal que tá na beirada do rio, não nasceu caído como feijão
não, foi luta mesmo, foi briga mesmo” (A. N. - liderança) / “a Boa Vista é uma
comunidade que luta muito” (M. L. – usuária) / “através de lutas comunitárias foi
conquistado posto de saúde, escola, delegacia, sinal, CRAS e etc.” (V. S. - ACS).
Para Chauí, (1989. p, 20). “O social histórico é o social constituído pela divisão
em classes e fundado pela luta de classes”. É essa divisão entre as classes que faz com
que a sociedade seja, em todas as esferas, atravessada por conflitos e por antagonismos
que expressam a existência de contradições constitutivas do próprio social.
“O meu trabalho mesmo não é com filho de ‘papaizim’ não, os filhos de
‘papaizim’ se acolhem, misturam com a gente porque eles vêem o tratamento que a
gente vem dando” (A. N. - liderança).
A separação entre Estado e Sociedade Civil, fruto dos processos abstratos de
separação do mundo político e econômico, do poder e das relações sociais de produção,
instituído pela estrutura ideológica burguesa, se presta, a ocultar a divisão e a luta entre
as classes sociais. Tal construção ideológica leva a percepção mitificada de uma
sociedade civil unificada e homogênea. A figura do Estado (poder público) representa a
construção ideológica responsável por ocultar estas contradições. Ao aparecer
socialmente como um poder uno, indiviso, localizado e visível, o Estado “pode ocultar a
realidade do social, na medida em que o poder estatal oferece a representação de uma
sociedade, de direito, homogênea, indivisa, idêntica a si mesma, ainda que de fato
esteja dividida” . (CHAUÍ, 1989. p, 20). Tal função, até a revolução burguesa de 1789
pertenceu à igreja/religião, em conseqüência se percebe, ainda hoje, um imbricamento
entre as concepções de lei (forma concreta do ente abstrato Estado) e Deus,
“É lei, hoje, a comunidade sair da beirada do rio, é lei a Boa Vista ser um
bairro de elite, portanto é coisa de Deus” (A. N. - liderança) / “Deus não criou o
homem para ser senhor de si!” (M. G. - liderança).
Para Boaventura, “as classes são um fator de primeira importância na explicação
dos processos sociais”, mas contrariando as teorias fundadas no reducionismo
econômico das teorias marxistas, principalmente do materialismo histórico ortodoxo, é
“errôneo reduzir a identificação, formação e estruturação das classes à estrutura
econômica da sociedade. As classes são uma forma de poder e todo poder é político”.
Neste momento de transição paradigmática cada vez mais os fenômenos mais
importantes são simultaneamente econômicos, políticos e sociais, sem que seja fácil
“destrinçar estas diferentes dimensões”. Nos países periféricos “as formas de opressão e
dominação assentes na raça, na etnia, na religião e no sexo afirmaram-se pelo menos tão
importantes quanto às assentes nas classes”. Para o autor “o valor explicativo das
classes depende das constelações de diferentes formas de poder nas práticas sociais
concretas. (...) a constelação desse poderes é política”. (SANTOS, 1999, p. 37-41).
A responsabilização dos cidadãos em arenas públicas, através de parcerias nas
políticas sociais governamentais, por um lado representou um ganho, visto ter
significado o reconhecimento de novos atores em cena. De outro, entretanto,
representou “um risco, com o qual as lideranças progressistas da sociedade civil devem
estar alerta: o de assumirem o papel que deve ser exercido pelo poder público estatal,
pois para tal ele é eleito, ou indicado, e os cidadãos pagam impostos”. (GOHN, 2004).
“Nossa luta é por melhorias, contra o poder público, pois pagamos impostos”
(M. L. S. – conselheira).
A categoria empírica liderança, aliás, está presente em praticamente todos os
discursos e apresenta-se como será visto normalmente ligada à categoria poder.
Para alguns, a liderança apresenta-se como fator de agregação e união da
comunidade,
“Por ele ser liderança e estar sempre presente ajuda na formação dos grupos”
(V. S. - ACS) / “outras lideranças, começaram a luta e elas foram despertando o desejo
de alguém que viu que ‘sem luta não vinha nada’” (A. N. - liderança) / “a comunidade
fortalecida proporciona o fortalecimento da liderança” (F. E. - liderança).
Como indivíduo dotado de grande respeitabilidade/poder junto à comunidade,
“O usuário do posto, antes de ir ao posto, ele passa antes na liderança,
conversa primeiro com seus lideres, pra ter orientação, isso é maravilhoso, isso é
importante, a participação da liderança, isso traz conhecimento, e melhora” (A. N. –
liderança). “A Boa Vista tem um conselho de anciãos que contam a história de trás pra
frente e quando o ‘bicho vai pegar’ os novinhos aqui correm, reúnem e tomam os
conselhos (M. G. - liderança)”.
Há a percepção clara nas falas, da presença de um conflito interno entre as
lideranças e que a primeira vista parece ser um dos grandes desafios aos processos de
participação popular da comunidade, de um lado lideranças tradicionais, reconhecidas
pelo histórico das lutas pela organização da comunidade e pela conquista da infra-
estrutura local,
“Formou-se um grupo para fazer a reivindicações necessárias, (...) em 1980
formou-se a 1ª associação (...) então começamos a discutir as necessidades da
comunidade, principalmente as maiores necessidades e resolveu-se ir à luta, que era em
primeiro lugar, seria água, luz, escola e ônibus”. / “E graças às lutas comunitárias
hoje nós temos água, luz, escolas públicas particulares as ruas todas asfaltadas, temos
vários comércios e empresas, temos 3 creches, 6 templos evangélicos, 2 conventos com
igrejas católicas, uma delegacia que é modelo, um complexo de cidadania que inclui
posto de saúde, CRAS, creche e uma bela escola. Isso tudo foi fruto de uma grande luta
da associação”. (M. L. S. – conselheira) / “a Boa Vista tá (...) um céu, mas nada caiu
do céu, tudo foi uma luta comunitária, foi feita passeata por água, por luz, por comida
e daqui pra frente nós vamos fazer passeata, assim como fizemos pela saúde, pelo que
for necessário” (A. N. – liderança).
De outro, novas lideranças que lutam por reconhecimento e por espaço de
atuação, o conflito é perceptível nas falas,
“Pra mim a liderança é aquela que sente necessidade de estar fundando,
criando, e não [de] estar avançando em cima do que ela criou (...), se a gente começa a
ficar, ficar, ficar, a coisa fica com a minha cara, fica minha, é meu, é meu, daqui a
pouco é meu e pronto”; “A nível de organização comunitária, a nível de associação,
me parece que eles têm medo de prestar a devida informação, eu acho que eles têm
medo de deixar de ser assistencialista porque eles têm medo de perder a liderança”;
“Eu também fui influente nessa questão da conquista do posto, nas passeatas, nas
negociações”; “foram vocês mesmos que legitimaram os terrenos da fazenda com a
Kolping, o poder da fazenda com a igreja, vocês legitimaram vocês ‘antigos’(...) quem
legitimou foram as lideranças daqui”; “eu não cheguei aqui nas [passeatas das]
lamparinas” “ são as referências que estão sem sentido”(M. G. - liderança).
Percebe-se ainda um conflito de concepções sobre o papel da liderança,
“Liderança comunitária é você não ter nada e o pessoal lhe ouvir, não precisa
você oferecer cesta básica” (A. N. – liderança) / “o intuito da liderança que se preza
é discutir os problemas da comunidade e cobrar que seja feito, embora que seja feito
por políticos, porque a gente precisa muitas vezes do político até pra abrir certo
canal de negociação” (M. L. S. – conselheira) / “a liderança deve fazer a coisa
crescer e voar, buscar outro lugar pra ajudar a crescer, pra mim liderança é isso”;
“Eu não gosto de executar, mas de habilidade de dizer ‘tem que fazer e eu arranjar
as peças certas pra fazer a coisa andar’(...) eu queria tá sempre no comando, dizendo
é assim, assim, faz!, tu pode!, constrói!, eu quero assim!, tal e tal (...) eu era a cabeça,
mas eu não gosto de fazer” (M. G. - liderança).
Importante a retomada do pensamento freireano, para quem “não é possível à
liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ou executores de suas
determinações” (FREIRE, 2005, p. 142), que a liderança negue ao oprimido a
possibilidade da reflexão sobre seu próprio fazer. Nestas condições, o que ocorre é
que oprimido tendo a ilusão de que atua, na atuação da liderança, continua
manipulado por quem, por sua natureza, não poderia fazê-lo. Ao impor sua palavra a
eles, torna-a falsa, de caráter dominador.
Há, pelo contrário, a necessidade da dialogicidade entre a liderança e as massas
oprimidas, para que no processo de busca de sua libertação, reconheçam o caminho da
superação verdadeira da contradição em que se encontram, como um dos pólos da
situação concreta de opressão. (FREIRE 2005, p.144)
Com relação à importância da liderança nos processos de participação, houve
um aparente tom consensual,
“O líder comunitário que não vê a participação popular como critério de
capacitação e de crescimento dele mesmo, por que se ele desenvolve um bom trabalho
ele é visto pelos órgãos competentes, e se ele afasta o povo do conhecimento, tanto é
cego ele como o seu povo” (A. N. – liderança) / “a participação ativa da comunidade
é o principal para a atuação da liderança” (F. E. - liderança).
Há uma percepção homogênea de que os trabalhadores de saúde não se
envolvem nas questões sociais da comunidade,
“Eu não acho que os trabalhadores se envolvam nas questões sociais da
comunidade” (V. S. - ACS) / “era para se envolverem” (M. S. – usuária) / “deveria ser
obrigação o profissional se envolver com os movimentos, para que assim fizesse um
atendimento mais humanizado, procurando soluções para os problemas.” (M. L. S. –
conselheira) / “hoje, o médico de saúde da família, eu acredito que (...) se ele ficar
calado no consultório dele, com medo de enfrentar a calamidade da favela, ele não vai
ter êxito não, porque vai ser sempre um médico ‘vip’” (A. N. – liderança) / “seria bom
que os profissionais se envolvessem mais” (F. E. - liderança). “Não, pelo ato da
obrigação, porque vêem como ato da obrigação, não vêem como aquela coisa (...)
interior, porque é novo, tem que executar, tem que se envolver, participar, é uma coisa
nova que está sendo imposta por uma secretaria, pelo governo federal, aí eu tenho que
fazer porque se eu não fizer, eu posso perder meu emprego” (M. G. - liderança).
Talvez aí esteja uma das explicações para a desconfiança da comunidade das
intervenções do trabalhador de saúde no território, visto como um representante do
Estado contra qual luta, um invasor ao invés de um aliado. Para Vincent Valla (1998),
“embora muitos profissionais sejam sinceros na sua intenção de colaborar com uma
participação mais efetiva, e de acordo com os interesses populares, a população os
identifica como atrelados às propostas das autoridades das quais ela, em geral, descrê”.
A partir dessa percepção, o autor sentencia, “daí a sua aparente falta de interesse em
‘participar’”.
“Não vão pensar que se mexerem com a gente, não vão trazer um doutor
Cláudio da Cidade dos funcionários pra cá, é, os ‘intelectuais’ hoje estão querendo vir
pra cá”; “o seu superior mandou que você fizesse esse conhecimento” (A. N. –
liderança) / “os trabalhadores são muito ‘donos da história’, (...) eles se apropriam
muito da história achando que a História é deles, e não admitem que a História é de
todos e eles passaram por ela também” (M. G. - liderança).
Um dos grandes obstáculos ao processo de resgate histórico e consequentemente
de intervenção implicada dos mediadores nas comunidades reside na dificuldade de
diálogo entre os atores sociais das comunidades e os mediadores. “Na realidade, essa
discussão – que não é nova no campo da educação popular – trata das dificuldades de
profissionais e políticos interpretarem as classes subalternas”. Neste ponto é impossível
discordar da percepção de que “a crise de interpretação é nossa, assim como também
[o] é o enfoque da idéia de iniciativa”. Este cenário gera a mitificação de que “muitos
profissionais trabalham com a idéia de que iniciativa é parte da tradição dos mediadores,
e que a população falha neste aspecto, fazendo com que ela seja vista como passiva e
apática”. (VALLA, 1998). Percebeu-se nas falas que os saberes populares apesar de
vistos como representativos para a comunidade, não são valorizados ou reconhecidos,
“Acho que são válidos porque vê resultados, porque não são formalizados, não
se tornam técnicos”; “não estão sendo incluídos por nenhum técnico, eles não admitem
os saberes populares” (M. G. - liderança) / “o conhecimento da comunidade referente
ao que eles têm hoje precisa ser aprimorado” (F. E. - liderança) / “acho que não existe
um estimulo ao saber popular” (A. N. – liderança) / “acredito que são poucos, pelos
profissionais são muito pouco, eles não procuram conhecer quais são os potenciais que
tem dentro da comunidade, e aí falta estimulo dos próprios funcionários” (M. L. S. –
conselheira) / “no caso das doenças de verdade, tem que ser profissional. As pessoas
são orientadas a só confiarem no trabalho do profissional”.
De acordo com Valla (1998), vários estudiosos vêem diversas contradições nas
relações entre profissionais e classes populares, ainda que o profissional seja um
mediador aliado. Os profissionais costumam ter dificuldade em interpretar a fala e o
fazer das classes populares de maneira apropriada. Para o autor, a dificuldade dos
mediadores (profissionais, técnicos, políticos) de compreender o que os membros das
chamadas classes subalternas estão lhes dizendo se relaciona “mais com a postura do
que com questões técnicas”. Relaciona-se com a dificuldade em aceitar que pessoas
humildes, pobres, moradoras da periferia sejam capazes de produzir conhecimento, que
sejam capazes de organizar e sistematizar pensamentos a respeito da sociedade, fazer
uma interpretação capaz de contribuir para a avaliação dos mediadores sobre a mesma
sociedade. Em relação à contribuição para o fortalecimento da participação popular na
comunidade por parte de trabalhadores, gestão, lideranças e conselheiros as falas
expressam a sensação de abandono, esquecimento, desinteresse,
“Os trabalhadores não estão se envolvendo, somente alguns e muito pouco, (...)
porque se eles participassem mais talvez incentivasse mais a participação da
comunidade naquele movimento”; “Tanto da prefeitura como da regional eu estou
achando ‘zero’, ainda tem um pouco de participação da gestão local, (...) a gerência se
envolve mais nos problemas de saúde”;” eu acho que é no conselho, o melhor espaço
para discutir os problemas de saúde e ir em busca das soluções”; “deveria ter mais a
presença do profissional, que não é muito freqüente a não ser quando tem interesse
próprio, e não se preocupa em refletir os problemas de saúde da comunidade”. (M. L.
S. – conselheira) / “ele [o trabalhador] pouco se envolve no social referente ao diálogo
com a comunidade, mas de suma importante seria que se integrasse, se envolvesse junto
a associações e conselhos, para desenvolver maior trabalho na questão de saúde
comunitária” (F. E. - liderança) / “a comunidade não participa do conselho porque
não foram chamados”; “o conselho não tem ido até a comunidade saber seus
problemas”; “a comunidade não sabe nem o que é conselho de saúde” (M. L. –
usuária).
Os desafios e potencialidades à participação foram expostos pelo grupo e
revelaram novamente os conflitos internos,
“Praticar novas diretrizes, novos temas com reciclagem e partir para a
execução do plano, de formação das lideranças, de lutar contra o paternalismo e o
assistencialismo, contra o medo da perda do poder, contra o medo de passar o poder”
(M. G. – liderança) / “precisa maior compromisso de todos os envolvidos”; “utilização
do espaço da associação, conselho, segurança e saúde” (F. E. - liderança) / “
incentivo, hoje dentro do nosso bairro os nossos princípios estão desaparecendo, o
mais idoso vai falar ele não tem vez e voz pois a juventude com os seus idealismos [não
permite]; “ a desunião”; “as potencialidades são a crença em Deus, a história de luta
da comunidade e as entidades que são forças mas estão divididas” (A. N. – liderança) /
“ser persistente e perseverante, fazendo uma maior divulgação” (M. L. S. –
conselheira) / “a comunidade acreditou em promessas não cumpridas”; “hoje se
tornou uma comunidade acomodada, que não acredita mais em nada”; “as lideranças
perderam o moral, o poder” (M. L. – usuária).
Neste ponto, importante trazer a categoria poder que nas falas da comunidade se
inter-relaciona com as noções de liderança e/ou poder público (Estado). Para
Boaventura (1999, p. 125-127), nas sociedades capitalistas são perceptíveis quatro
tempos/espaços estruturais de produção de poder que se articulam de maneira
específica. Cada um com sua unidade de prática social, forma institucional, mecanismo
de poder, forma de direito e modo de racionalidade. São eles: o espaço doméstico
constituído pelas relações sociais entre o homem e a mulher e entre ambos (ou qualquer
deles) e os filhos. Nele, os sexos e as gerações são as unidades de prática social, a forma
institucional é o casamento, a família, o parentesco; o mecanismo de poder é o
patriarcado normatizado pelo direito doméstico, ou seja, as normas partilhadas ou
impostas que regulam as relações familiares; e o modo de racionalidade operado pela
maximização do afeto. O espaço da produção constituído pelas relações do processo de
trabalho tem como unidade de prática a classe social já abordada acima,
institucionalizada na fábrica ou empresa, cujo mecanismo de poder é a exploração, a
juridicidade é baseada no direito da produção (código da fábrica, regulamento da
empresa) e a racionalidade centrada na maximização do lucro. O espaço da cidadania é
constituído pelas relações da esfera pública entre o cidadão e o Estado, a unidade da
prática é o indivíduo e a forma institucional é o Estado, neste espaço o mecanismo de
poder é a dominação, normatizada pelo direito territorial (o direito oficial estatal) e
racionalizada pela maximização da lealdade. Por último, o espaço da mundialidade é
constituído pelas relações econômicas internacionais e pelos Estados nacionais, sua
unidade de prática social a nação, institucionalizado nas agências, acordos e contratos
internacionais. Seu mecanismo de poder é a troca desigual, a forma de juridicidade é o
direito sistêmico (normas muitas vezes não escritas e não expressas que regulam as
relações desiguais entre os Estados e entre empresas no plano internacional) e o modo
de racionalidade é a maximização da eficácia. Para o autor esta concepção permite
mostrar que a natureza política do poder não é atributo exclusivo de determinada forma
de poder, mas antes o efeito global da combinação entre as diferentes formas de poder.
No espaço comunitário se interrelacionam os espaços familiar (doméstico), do trabalho,
da cidadania na conformação das relações sociais no território, conforme as falas,
“Eles [os primeiros moradores] me tinham como neta”; “então nós somos uma
família” (M. G. - liderança) / “não, mas eu vou falar com ele, ele também foi meu
garoto, e cheguei pra esse cidadão [traficante], e dei uma dura mesmo”; “uma das
minhas maiores tristezas é quando eu chego à beira do campo com material esportivo,
que vou dar para os meus meninos trocarem de roupa” (A. N. – liderança).
Por fim, a percepção da comunidade ampliada sobre o fórum popular revelou-se
positiva para o grupo, como se percebe nas falas,
“Achei muito bom o Fórum, eu vi que houve expressão da comunidade” (V. S. -
ACS) / “serviu pra arranjar mais conhecimento, ganhar mais amizade, mais
capacidade” (M. L. – usuária) / “eu acho importante porque além da troca de
conhecimento, nós também passamos a conhecer os anseios da comunidade e suas
potencialidades”; “o fórum e o grupo são importantes mobilizando, chamando para o
processo de discussão”. (M. L. S. – conselheira) / “aquele fórum nos abriu a idéia de
nos interessar, eu da minha parte fiquei interessado e cada dia que eu participo eu
tenho mais conhecimento, eu posso dizer que sou um homem de conhecimento popular”
(A. N. – liderança) / “serviu de experiência, conhecimento e [para] desenvolver um
trabalho de aproximação com a comunidade” (F. E. - liderança) / “é show, porque é
ver a mistura, é instigar o povo, (...) é jogar suas necessidades em discussão e fazer
com que eles [próprios] decidam” (M. G. - liderança).
Bem como a certeza das conquistas através do processo de participação popular,
as falas fazem referência tanto às conquistas materiais (a maioria), quanto às
subjetivas/simbólicas,
“Mesmo sem apoio das autoridades as lutas da comunidade conseguiram
respeito e valorização” (M. S. – usuária) / “o Complexo da Cidadania, a ‘saúde’, a
delegacia, as escolas e creches, os cursos profissionalizantes” (M. L. – usuária) /
“foram inúmeras as conquistas que não dá nem pra descrever e, já houve uma grande
participação, tanto que hoje tudo que tem de ‘bom’ foi luta e conquista da
comunidade” (M. L. S. – conselheira) / “moradia, escola, creche, posto de saúde,
centro social, calçamento, água, luz” (F. E. - liderança).
Para finalizar, o registro de algumas expressões de medo, angústia e ansiedade,
pela possibilidade da comunidade ser despejada, expulsa de seu território por conta do
evento esportivo da Copa do Mundo, que como toda política pública de estímulo ao
mercado turístico deve necessariamente “esconder” as mazelas sociais, concretamente
representadas na condição indigna de sobrevivência do indivíduo pobre. Nesse sentido,
retomamos o pensamento freireano, para salientar, “quem, melhor que os oprimidos, se
encontrará preparado, para entender o significado terrível de uma sociedade opressora?
Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir
compreendendo a necessidade da libertação?”. (FREIRE, 2005, p. 34).
Tais percepções trazem a interrelação das diversas categorias apresentadas, mas,
além disso, a denúncia, a súplica,
“Querem pegar a Boa Vista hoje e jogar lá na rampa do lixo, mas estão
enchendo de ‘gringo’ aqui dentro da fazenda, que é terra nossa”; “nós estamos sendo
jogados no lixo, mas aqui está cheio de gringo” “estão jogando nossas raízes,
arrancando”; “cada vez que a Boa Vista se manifestava pelos seus ideais, quantas
vezes eu não vi criança chorando com sede aqui, água passando dentro do nosso bairro
e nós sem direito à água” (A. N. – liderança) / “essa fazenda não vai ficar assim não,
deixa melhorar tudo aqui, pra ver se não vão construir prédios aí dentro” (M. L. S. –
conselheira).
Como proposta de encaminhamento das reflexões foi agendado um novo
encontro, desta feita com os trabalhadores da unidade de saúde, durante a roda de co-
gestão, para a construção de um novo fórum popular.
Como etapa final deste trabalho foi feita apresentação de todo o material
epistemológico produzido pela comunidade, para sua análise e reflexão final, visando o
fechamento do relatório final e a apresentação do mesmo à comissão científica
avaliadora desta especialização. O objetivo, já explicitado anteriormente, era garantir
aos participantes/co-autores desta obra o empoderamento de sua produção científica, a
consciência da possibilidade da autoralidade e a certeza da capacidade de reflexão-
ação/práxis dos sujeitos das classes oprimidas sobre esta realidade social que o esmaga,
desumanizando-o.
CONCLUSÕES
O processo de participação política das comunidades em situação de opressão
social e política é problema reconhecido por todos os autores aqui citados e, creio eu,
por todos aqueles que apóiam as lutas das classes populares. As dificuldades de
mobilização comunitária, mesmo quando a luta se desenrolava sobre interesses diretos
da comunidade, como os da moradia aqui exemplificados, foram claramente percebidos
em todos os instantes desta experiência social. Mesmo uma comunidade como a Boa
Vista/Castelão que, como foi visto, apresenta rica história de lutas apresenta obstáculos
que a primeira vista parecem intransponíveis. Ao mesmo tempo ficou aqui explícita, a
capacidade destas mesmas comunidades de criarem alternativas ao que está posto, de
criar mecanismos de superação de seus problemas sociais e políticos. Neste sentido as
técnicas da educação popular se apresentam como mecanismos com fantástico poder de
mobilização das forças transformadoras da sociedade, principalmente por trazer
explícito em sua estrutura, como exigência conceitual, a emergência do oprimido como
agente central da transformação social.
O fórum popular da comunidade Boa Vista/Castelão utilizou-se das técnicas de
educação popular para estimular a reflexão coletiva sobre problemas sociais, alçada aqui
a condição de situação limite, e ao mesmo tempo, das potencialidades comunitárias.
Para o senso comum, inclusive de boa parte dos mediadores engajados, as comunidades
pobres, em situação de risco social, são espaços permeados somente de problemas e
nesta condição, como se diz, é muitas das vezes mais cômodo não “mexer no vespeiro”
até para não se criar falsas expectativas, afinal, isto é problema do Estado e de suas
políticas públicas. Esta condição é construída ideologicamente e utilizada como
mecanismo de “invasão cultural” das classes opressoras, de modo que, o sujeito
oprimido “acredita” que ele realmente é um “problema social” e somente como tal pode
ser percebido.
No mesmo sentido a comunidade ampliada de pesquisa utilizou-se das técnicas
de educação popular para problematizar o tema gerador participação popular, como
situação limite percebida pelo grupo no seu processo de reflexão-ação social.
Por meio desta experiência, a comunidade pôde despertar para a necessidade de
construção de espaços coletivos com a potencialidade de constituição de sujeitos e
coletivos com capacidade de análise e intervenção na realidade concreta. Espaços de
debate, discussão e formulação de políticas.. Espaços, enfim, capazes de construírem
coletivamente, alternativas para o enfrentamento e superação de situações-limite, mas,
sobretudo com capacidade de estimular, através da prática efetiva da co-gestão, o
exercício do poder dos sujeitos e coletivos enquanto prática pedagógica, terapêutica e,
sobretudo libertadora.
Certas percepções aqui devem ser destacadas, percepções que o discurso
ideológico dominante tenta desqualificar, ou até, suprimir ou negar, como a riqueza
existencial dos sujeitos das classes socialmente oprimidas, seus saberes acumulados e
adquiridos na experiência, teoria concreta e imediata forjada no contato direto com a
realidade. A percepção e compreensão sobre uma vida tão dependente do “jeitinho”, da
“ginga”, da “malandragem”, ou seja, marcadamente dependente de saberes construídos
a partir da experiência, baseados na ação individual e coletiva visando a construção de
mecanismos de luta pela sobrevivência, diretamente dependentes de sua história e sua
cultura, fundadas na carência material e na abundância afetiva. Saberes autênticos e
esquecidos propositadamente, não reconhecidos socialmente, ideologicamente
desconstruídos, desvalorizados e desvalorizadores de seus possuidores. Esta condição
de desvalorização do oprimido e de sua cultura alarga o fosso social, distancia ainda
mais os pobres dos centros de decisão e poder, obstaculiza a efetivação de políticas
públicas de caráter autenticamente popular, justifica e fortalece o caráter opressor e
dominador deste modelo de sociedade.
O sentido de “comunidade”, no caso dos moradores da Boa Vista é fruto
exatamente de sua história, de sua luta política por direitos sociais básicos negados, luta
por reconhecimento e por respeito, por dignidade e justiça. O orgulho pelas conquistas
se entrelaça com a percepção das muitas dificuldades a serem enfrentadas.
A realidade de desigualdade, injustiça e opressão desta comunidade, comum à
maioria das comunidades periféricas das grandes cidades, propiciou as condições
necessárias para que, a partir de minha “imersão” na realidade objetiva local, se
construísse este processo de “emersão” coletiva dos sujeitos envolvidos nesta
comunidade ampliada de pesquisa.
Percebeu-se ao final um ânimo renovado pela possibilidade de retomada pela
comunidade de um protagonismo social há algum tempo esquecido, visto que, era
demanda das lideranças comunitárias locais a necessidade de mobilização popular em
defesa de diversos direitos sociais historicamente negados. A “Caminhada pelo Direito à
Moradia e Ambiente Saudáveis da comunidade Boa Vista/Castelão” representou para
muitas das antigas lideranças comunitárias a possibilidade de reinserção da comunidade
no contexto das lutas políticas por justiça social e pelo protagonismo comunitário no
processo de transformação social e política.
Estas comunidades, ou melhor, esta comunidade, sofre hoje em dia a “aflição”
de habitar a circunvizinhança do estádio Castelão e de se ver ameaçada de “expulsão”
do território, por conta da recente escolha de Fortaleza como uma das capitais sub-sedes
da Copa do Mundo de 2014. Obviamente, a ameaça que refiro é feita exatamente contra
os setores mais pobres da comunidade, aqueles que habitam as margens do rio e que,
historicamente esquecidos pelo poder público, agora se vêem obrigados a sair de seus
lares para dar passagem ao “progresso” urbanístico decorrente do evento esportivo. A
reflexão sobre este contexto nos obriga a certos questionamentos, como até que ponto,
a ameaça, o medo, a ansiedade pelo risco de perda concreta dos laços afetivos e
sociais desta comunidade afetam sua qualidade de vida, ou seja, sua saúde? De que
forma estes eventos são expressos pelos indivíduos e percebidos pelos
trabalhadores de saúde? Será que o sistema de saúde em geral e os trabalhadores
de saúde em específico estão atentos à influência dos fatores sociais sobre a saúde
dos indivíduos? Habituados por formação/deformação a atuarem sobre a doença
expressa nos corpos físicos, aonde chegarão os trabalhadores com seus limitados
mecanismos de atuação ante a natureza complexa dos problemas sociais/de saúde
enfrentados pelas comunidades socialmente oprimidas? Essas são questões
merecedoras de trabalho reflexivo específico e que epistemologicamente aqui não serão
tratadas diretamente. Fica, entretanto, a proposta de problematização de questões que
pelo caráter histórico-político, e não apenas epistemológico, a que este trabalho se
propõe, não poderiam ser esquecidas.
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