Download - Haroldo de Campos: Tradução Como Formação e Abandono Da Identidade

Transcript
  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    1/14

    158 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    en a

    eidentidaeidentididentidadeidentidaeidentididentidadeidentida

    eidentididentidadeidentidaeidentid

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    2/14

    R E V I S T A U S P, S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 159

    Haroldo de Campos:traduo como formao eabandono

    da identidade

    M R C I O S E L I G M A N N - S I L V A

    MRCIOSELIGMANN-SILVA professordo Programa dePs-graduao emComunicao eSemitica da PUC-SP.

    TRADUO COMO METFORA DA LINGUAGEM

    A reflexo terica sobre a traduo vivenciouno sculo XVIII uma virada decisiva. Sob a forma de

    uma filosofia da traduo essa teoria desenvolveu-se,

    por sua vez, acoplada a uma filosofia da linguagem que

    se estruturava com base numa concepo expandida da

    linguagem: na visodo mundo como texto,como livro

    selado cuja chave para leitura decifradora encontra-

    va-se perdida. Essa noo expandida da linguagem

    implicava uma abertura da concepo de traduo: para

    ela no apenas se poderia traduzir de uma lngua para a

    outra (= traduo interlingual), como o mundo deveria

    ser traduzido (isto , conhecimento = traduo), quer

    Este texto, agora com pequenasmodificaes, serviu de base parauma exposio no 48oCongres-so Internacional de America-nistas, realizado em Estocolmoentre 4 e 9 de julho de 1994.

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    3/14

    160 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    num texto cientfico quer em poemas. Pos-

    teriormente Valry sintetizou esta concep-

    o (numa passagem mais de uma vez cita-

    da por Haroldo de Campos): crire quoi

    que ce soit, ausitt que lacte dcrire exi-

    ge la rflexion, et nest pas linscription

    machinale et sans arrts dune parole

    intrieure toute spontane, est un travail

    de traduction exactement comparable

    celui qui opre la transmutation dun texte

    dune langue dans une autre (1).

    Se escrever equivale a traduzir, esta-

    mos portanto diante de uma relativizao

    da noo do original: h uma intertextua-

    lidade generalizada. A traduo no senti-

    do tradicional seria uma traduo da tra-

    duo; ou ainda, platonicamente falando:representao da representao, cpia da

    cpia. Sendo assim, fcil perceber em que

    medida a filosofia da traduo pde permi-

    tir muitas vezes um olhar que penetrou na

    estrutura mesma da linguagem, dessa

    traduo primeira que reelaborada e,

    como veremos, posta em questo pela tra-

    duo segunda.

    A marca ou estigma da traduo em geral

    o fato de ela ser uma passagem: de um

    texto para outro, de um espao para outro,

    de um tempo para outro. Mas mais do que

    uma simples passagem, toda traduo e,

    logo, toda linguagem est marcada pelo

    abandono.

    Ao menos desde Parmnides falar de

    algo concebido antes de mais nada como

    falar de algo ausente. O discurso exige a

    sada, vale dizer, a perda do objeto, o seu

    abandono a favor dapalavra. A linguagem

    cotidiana, como Valry tambm costuma-

    va afirmar, estende-se sobre um vazio como

    uma pequena ponte pnsil sobre um preci-

    pcio (2). Essa distncia implicada na lin-

    guagem tambm pode ser lida como uma

    fonte de tristeza. Da por que para Manfred

    Frank falar significa ber den Verlust des

    Bezeichneten trauern (enlutar a perda dosignificado) (3). Alm disso, devemos

    acrescentar a existncia de outros sacrif-

    cios que a linguagem constantemente rea-

    liza: para que ela possa enredar a realida-

    de, h de ocorrer necessariamente o sacri-

    fcio no apenas do objeto, mas tambm

    de todo um universo extralgico (isto ,

    extra-logos), extralinear (isto , extragra-

    matical) do mundo (4).

    Na traduo de uma lngua para outra,

    como fcil de se perceber, tambm ocorre

    um abandono ou sacrifcio semelhante. Mas

    se, por um lado, verdade que ao transpor-

    se um texto de uma lngua para outra sacri-

    ficam-se os elementos prprios da ln-

    gua de partida, para os quais no se encon-

    tra um correspondente na lngua de chega-

    da, por outro lado, deve-se para poder tra-

    duzir, antes de mais nada, abandonar a sua

    prpria lngua. O abandono aqui, portan-to, duplo abandono da sua prpria ln-

    gua e de determinados elementos que

    eu, seguindo uma longa tradio, denomi-

    naria de elementos corporais da lngua

    de partida.

    Gide, num dilogo travado com Walter

    Benjamin e posteriormente publicado por

    este sob o ttulo Gesprch mit Andr Gide,

    contou que aps dez anos de ter deixado de

    lado o seu estudo do alemo e de dedica-o, neste meio tempo, com afinco exclu-

    sivamente ao ingls, ocorreu ter consegui-

    do no apenas lerAs Afinidades Eletivasno

    original em alemo, como tambm ter lido

    melhor do que antes ele poderia t-lo fei-

    to. Gide tratou na entrevista logo de escla-

    recer que no fora de modo algum o paren-

    tesco do ingls com o alemo que permitira

    a sua leitura da obra de Goethe: o fato de

    eu ter me afastado da minha lngua mater-

    na, que me deu o lan para dominar uma

    lngua estrangeira. Quando se estuda uma

    lngua o mais importante no a lngua que

    se aprende; o decisivo o abandono da sua

    prpria lngua. Tambm apenas ento que

    a compreendemos de modo fundamental.

    E, pouco mais adiante no texto de Benja-

    min, encontramos uma formulao de Gide

    que estabelece de modo cristalino a relao

    entre teoria da traduo e filosofia da lin-

    guagem tal como, na histria da filosofiamoderna, j se encontrara nos romnticos

    alemes: Ce nest quen quittant une chose

    que nous la nommons (5).Por motivos editoriais, as notasse encontram no final do texto

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    4/14

    R E V I S T A U S P, S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 161

    O movimento indicado por este ato

    nomeador semelhante ao da reflexo tal

    como ela fora teorizada por Fichte e que

    estava na base da filosofia e prtica

    romntica da traduo. A reflexo implica

    a sada do indivduo de si mesmo, que se d

    atravs do confronto com um Outro o

    No-Eu da teoria fichtiana , s neste

    gesto originrio e fundador que o in-divduo

    nasce, ou seja, constitui-se em oposio ao

    mundo. A partir dos primeiros romnticos

    alemes Friedrich Schlegel e Novalis essa

    idia do Ser como reflexo e constante tra-

    duo de si mesmo torna-se paradigmtica

    e substitui a concepo ontolgica do Ser.

    Traduo equivale, a partir de ento, a

    poesis, criao absoluta um binmiooximoresco (como falar de um absoluto

    relativo ou mesmo criado? perguntava-

    se Schelling) sobre o qual a modernidade

    e sobretudo as suas melhores obras foram

    erigidas (6).

    Com base nesse conceito de reflexo

    fcil compreender o sentido ambguo de

    uma outra noo romntica tambm essen-

    cial para a sua teoria da traduo: a de

    Bildung. Esta palavra significa tanto for-mao como cultura, possuindo portanto

    in nuceum duplo movimento: a Formao

    s pode se dar atravs da sada de si trau-

    mtica, mas ao mesmo tempo originria do

    Eu ; da o culto romntico da Viagem, da

    busca do eu no confronto com o outro; da

    tambm o culto romntico da traduo (7).

    Mas na traduo j est implicado o movi-

    mento seguinte: o da volta Ptria, ln-

    gua-ptria, onde encontramos o sentido da

    Bildungcomo cultura. O Eu, assim como a

    lngua, s pode existir nesse espao entre a

    monolngua e a plurilngua.

    Como conhecido, os romnticos de-

    senvolveram a sua filosofia (da linguagem,

    da histria, da traduo) dentro do contex-

    to do relativismo cultural e do historicismo,

    que vinha sendo constitudo como viso de

    mundo desde o final do sc. XVIII, entre

    outros autores, por Herder. Em termos de

    teoria da traduo e tambm da histo-riografia, tomando-a benjaminianamente

    como uma espcie de traduo do passa-

    do para um determinado presente pode-

    se dizer que a inovao bsica do

    historicismo foi o desenvolvimento

    paroxstico da conscincia quanto impos-

    sibilidade da traduoda totalidade de uma

    cultura ou texto para outra. W.

    Humboldt, com a sua noo de forma in-

    terna das lnguas retomada mais tarde

    por Benjamin em inmeros fragmentos e

    textos de teoria da linguagem e traduo ,

    representou um dos avatares do histo-

    ricismo, na medida em que justamente pro-

    curara demonstrar o grau de idiossincrasia

    de cada lngua particular; ou seja, em que

    medida cada lngua vincula-se a uma de-

    terminada Weltanschauung, e como ela

    constitui uma perspectiva, um prisma a

    prioriatravs do qual cada indivduo (ouos indivduos pertencentes a um mesmo

    grupo lingstico) v e compreende o mun-

    do. Desse modo, o trabalho de traduo

    envolvia para os romnticos como tam-

    bm mais tarde para Benjamin (cf.GSIV,

    p. 19) um esforo no sentido de se tentar

    alargar os horizontes e a capacidade da ln-

    gua para a qual se traduz: a traduo um

    elemento da formao, Bildung. Mas ela

    deve ser pensada para os romnticos antesde tudo como uma inverso da assimetria

    que caracterizava o trabalho do tradutor at

    ento. Para eles o tradutor deveria atuar no

    mais dentro da tradio francesa da tradu-

    o como belle infidle, governada pela

    batuta da lngua de chegada, pela apropria-

    o homogeneizadora e que negava ao in-

    vs de afirmar o outro(8).

    Essa viso a da traduo no apenas

    contra Babel mas tambm trans-Babel.

    Nesse sentido a infrao babilnica deve ser

    subsumida ao toposdafelix culpa. Essa tra-

    duo que se assume como tal baseia-se num

    respeito ao esprito (Geist) da lngua es-

    trangeira que deve na sua passagem para a

    lngua de chegada modific-la. Essa modi-

    ficao absolutamente potica, geradora

    da linguagem, a saber, reconstruo da lin-

    guagem originria: o imperativo da tra-

    duo, afirmou Friedrich Schlegel, assenta-

    se evidentemente no postulado da unidadelingstica(Spracheinheit) (9). Do ponto de

    vista romntico a traduo tem em comum

    com a poesia (poesie) a tarefa de rejuve-

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    5/14

    162 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    nescer a linguagem (10). Rejuvenescer

    implicava para eles justamente a restitui-

    o de uma linguagem originria,

    Ursprache, que na verdade s existe den-

    tro da traduo. A lngua originria encon-

    tra-se ela mesma dentro do constante mo-

    vimento de passagem entre as lnguas.

    Com esta concepo somada a outros con-

    ceitos mais complexos que no podemos

    tratar agora, como o de ironia, alegoria e

    Witz, os romnticos encontram-se no in-

    cio da tradio moderna de crtica do rei-

    nado de um logosconcebido antes de tudo

    como domnio de um sentido singular,

    independente de qualquer elemento

    corpreo. Eles, como se l por exemplo

    nas obras de um Tieck, desmontaram sis-tematicamente a linguagem da Lgica, que

    sempre esteve ligada noo de

    linearidade(compreendida como cadeia

    de causa-efeito). A conseqncia dessa

    crtica foi a valorizao dos elementos

    corpreos da linguagem, em detrimen-

    to do seu elemento artificial, comunica-

    tivo de sentido. Como afirmou Novalis,

    quanto mais grosseira a arte, mais evi-

    dente a presso do contedo (11). Emtermos da concepo da arte a revoluo

    iniciada pelos romnticos com a sua cr-

    tica radical da noo de sentido levaria

    busca de uma arte no mais empenha-

    da na imitatio naturae, mas sim a uma

    arte comopoesis , criao do mundo, que

    se compreende como um fator na

    Bildung/formao do Eu, de um Eu que

    s existe enquanto circulao, passagem,

    que ele mesmo poesia, vale dizer, tra-

    duo (12).

    HAROLDO DE CAMPOS:LINGUAGEM CONCRETAE LINGUAGEM COMUNICATIVA

    Toda reflexo e prtica literria de

    Haroldo de Campos pode ser compreen-

    dida dentro deste paradigma romnticoda linguagem potica (ou seja:poitica)

    e da sua tenso com a funo comunica-

    tiva. Para HC, assim como para Novalis,

    o elemento central do artesanato potico

    est na estrutura paralelstica que per-

    passa em todos os nveis (sinttico-gra-

    matical, sonoro, imagtico e semntico)

    um texto (13). J com Jakobson um

    dos autores-chave na construo da sua

    concepo da palavra potica e, por sua

    vez, um grande leitor de Novalis (14)

    HC compartilha a idia de que, em poe-

    sia, toda coincidncia fonolgica sen-

    tida como um parentesco semntico,

    como na paronomsia, num processo

    fecundante geral de pseudoetimologia ou

    etimologia potica (15). A etimologia

    potica funciona como estratgia de cr-

    tica da dita etimologia histrica, baseada

    na existncia de um sentido transcendental,ou seja, baseada na metafsica da presen-

    a que HC empenha-se em desconstruir

    tanto na sua poesia como nas suas tradu-

    es e textos tericos. Mas ele no cai na

    ingenuidade de pregar uma linguagem

    desprendida da sua carga semntica. Na

    sua poesia ele trabalha o jogo de tenses

    entre o elemento concreto da lingua-

    gem o seu valor de escritura, como diria

    Henri Meschonnic e o seu componentede sentido. Nas suas tradues ele man-

    tm a mesma tenso entre a submisso ao

    texto original e a sua prpria lngua, en-

    tre o respeito aos elementos figurais do

    texto original sua etimologia potica

    e ao seu elemento descritivo, narrativo.

    Nesse sentido, se as suas tradues po-

    dem e devem ser aproximadas do

    criticism by translation poundiano, a

    noo de crtica deve ser compreendida

    no apenas enquanto uma crtica das obras

    traduzidas, mas tambm de crtica de toda

    uma concepo da linguagem e, mais

    ainda, da metafsica da presena como

    um todo. J nos manifestos e textos ex-

    plicativos poca do movimento da Po-

    esia Concreta essa crtica era um tema

    constante. HC buscava ento uma orga-

    nizao da linguagem de maneira sin-

    ttico-ideogrmica ao invs de analti-

    co-discursiva (16). Neste mesmo tex-to fica clara a noo totalizante e no

    privilegiadora do semntico do conceito

    de linguagem de HC:

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    6/14

    R E V I S T A U S P, S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 163

    O concretismo herdou da concepo

    cubista da arte a tentativa de desmontar o

    aparato mimtico do cdigo artstico, mas

    sem abandonar o elemento, digamos as-

    sim, semntico ou figurativo (no caso

    das artes plsticas). HC descreveu essa ten-tativa como uma fascinante aventura de

    criar com dgitos, com o sistema fontico,

    uma rea lingstica no-discursiva, que

    participa das vantagens da comunicao

    no-verbal (maior proximidade das coisas),

    sem, evidentemente, mutilar o seu instru-

    mento a palavra... (Teoria da Poesia

    Concreta, p. 80).

    Assim como ocorrera antes entre os

    romnticos de Iena e entre as vanguardasdo incio do nosso sculo, tambm HC,

    nesta operao de reflexo sobre a lingua-

    gem e o cdigo da literatura, aproximou a

    poesia das demais artes: ora da msica (va-

    lorizao dos elementos fnicos no-se-

    mnticos da literatura), ora da pintura

    (desmontagem da estrutura linear, lgico-

    discursiva da linguagem, a favor da simul-

    taneidade do eixo espacial) (17). Na sua

    anlise do texto de Fenollosa sobre os

    ideogramas chineses autor esse cuja obra

    tambm representou, deve-se lembrar, uma

    das vias de continuidade do iderio romn-

    tico dentro das vanguardas literrias da

    nossa poca HC destacou reiteradas ve-

    zes a propenso do chins para as constru-

    es paratticas e para os esquemas

    paradigmtico-paralelsticos, inspirados

    numa lgica da correlao, [que] parece

    coincidir com a tendncia da prpria lin-

    guagem potica ocidental a romper com algica tradicional, para reger-se por uma

    lgica outra, a lgica da imaginao de

    Eliot [...], a lgica concreta da pense

    sauvage de Lvi-Strauss, a lgica da ana-

    logia ou analgica (Ideograma, p. 70).

    O conceito de concretude da lingua-

    gem de HC deve ser tomado dentro da tra-

    dio poetolgica que via como uma das

    tarefas da poesia a restituio da lingua-gem natural, na expresso corrente nas

    teorias dos iluministas do sc. XVIII (18).

    A concepo de linguagem concreta que

    subjaz a toda obra de HC constri-se sobre

    o paradoxo de tender ao mesmo tempo

    maior proximidade possvel com as coisas

    (19) e, por outro lado, constituir um mundo

    fechado em si; lembrando a tambm ro-

    mntica concepo da poesia comopoesis,

    criao do mundo, j acima referida (20).H, portanto, atuando no subterrneo dos

    textos de HC, um trabalho incansvel de,

    por um lado, uma busca de uma linguagem

    icnica, transparente aos objetos, imedia-

    ta, concreta, e, por outro lado, de crtica da

    possibilidade de se instituir esta linguagem

    (21). A tenso gerada por estas duas con-

    cepes levou construo de um universo

    esttico monadolgico, hermtico:

    paradigma da incapacidade de se traduzir o

    texto do mundo num Livro para

    mantermo-nos no campo deste grande mito

    mallarmaico que tanto marcou HC. Essa

    tendncia para o hermetismo para o su-

    blime silncio do sentido direciona

    tambm, como veremos, a eleio dos tex-

    tos nas tradues de HC. Esse caminho

    eminentemente aportico deve ser visto no

    como um fracasso da sua potica, mas an-

    tes como um percurso programaticamente

    visado: a palavra deve justamente trazer asmarcas do luto, inscrev-las na sua super-

    fcie, ela deve abdicar ao ideal de uma lin-

    guagem instrumental que visa o domnio

    POESIA CONCRETA: atualizao verbicovisual

    do

    OBJETO virtual

    DADOS:

    a palavra tem uma dimenso GRFICO-ESPACIAL

    uma dimenso ACSTICO-ORALuma dimenso CONTEUDSTICA

    agindo sobre os comandos da palavra nessas

    3 dimenses...

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    7/14

    164 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    do mundo e assumir a sua paradoxal onipo-

    tncia enquantopoiticae absoluto e

    incompletitude enquanto eterno devir,

    obra aberta.

    O modo de pensar de HC deve portanto

    ser considerado como programaticamente

    aportico. E no poderia ser de outro modo:

    como crtico da funo semntica da lin-

    guagem que atua inevitavelmente deden-

    tro desta mesma linguagem, a tendncia

    para a aportica e para o oxmoro uma

    conseqncia desejada. A teoria da tradu-

    o de HC no poderia fugir a esta mesma

    estrutura: tambm nela ele reitera tanto a

    necessidade da traduo, como tambm a

    sua intrnseca impossibilidade(22).

    POESIA COMO TRADUOTRADUO COMO POESIA

    Tentando fazer uma leitura detalhada da

    Aufgabe des bersetzers (A Tarefa do

    Tradutor) de Walter Benjamin, Derrida

    chegou a uma concluso no muito diferen-

    te acerca da necessidade/impossibilidade da

    traduo. J no ttulo do ensaio de Benjaminestava inscrita a ambigidade da tarefa do

    tradutor: em alemoAufgabequer tanto di-

    zer tarefa como abandono, renncia. Para

    Derrida o evento da Torre de Babel cons-

    tituiria o prprio mito da origem do mito:

    origem da necessidade de traduo, de

    suplementao. a metfora da metfo-

    ra. E ele arrematou: Cette histoire raconte,

    entre autres choses, lorigine de la confusion

    des langues, la multiplicit des idiomes, la

    tche ncessaire et impossible de la

    traduction, sa ncessit comme

    impossibilit (23). Mito de origem no

    apenas na medida em que Babel funda a

    necessidade de se traduzir, mas tambm

    enquanto anuncia a impossibilidade dessa

    tarefa: ele funda a diferena necessria e

    portanto insupervel entre as lnguas. Mais

    que isso, Babel mostra a inexistncia de uma

    lngua originria, ou seja, revela a prpria

    diferena como origem, a quedacomo umasituao j na origem ou, psicanalisando,

    o pai castrador/Super-Eu como instaurador

    do mundo simblico. Da a necessria busca

    de suplementao das lnguas particulares,

    e o inexorvel da traduo como tarefaa

    prioricondenada ao malogro: pois s h ln-

    gua (Eu) diante de uma outralngua (No-

    Eu). Voltamos portanto ao nosso ponto de

    partida: a concepo de traduo como

    metfora da linguagem e do prprio proces-

    so de autoconscincia (formao) do indiv-

    duo como metfora da ciso palavras-coi-

    sas, indivduo-mundo.

    Na obra de HC de um modo geral encon-

    tramos a traduo com um sentido muito

    diverso do tradicional. Isso no apenas

    pelo fato de ele ser um crtico das tradues

    na linha das belles infidless quais me re-

    feri acima, e que continua at hoje a dominar

    o horizonte das tradues. Na sua obra, atraduo tem o peso de uma potente alavan-

    ca a partir da qual ele procura remodelar no

    apenas a traduo stricto sensu, mas a pr-

    pria noo de Literatura, as oposies entre

    a prosa e a poesia, literatura e pintura, apa-

    rncia e realidade, original e traduo, fic-

    o e discurso da verdade, nacional e es-

    trangeiro, isso sem contar toda uma gama de

    gneros literrios que so repensados e

    problematizados sob a lupa, quer das suastradues, quer dos seus ensaios. Mesmo a

    sua obra que poderia, seguindo certas cate-

    gorias tradicionais, ser dividida em obra

    ficcional (ou potica), tradues e ensaios

    de crtica e histria da literatura, j d mos-

    tras do seu esprito eminentemente

    transgressor: nos seus poemas ele teoriza

    sobre a literatura, cita e traduz outros poe-

    tas; nas suas tradues ele cria livremen-

    te, enxerta textos de outros poetas brasilei-

    ros e portugueses, redige verdadeiros trata-

    dos nas introdues, notas e posfcios hist-

    rico-filolgicos, justificando as suas opes

    na traduo; j nos seus ensaios, a sua lin-

    guagem nunca deixa de ser a do poeta HC e

    o seu tema muitas vezes a reflexo sobre a

    sua prpria atividade potica, de tradutor.

    Seguindo a sua concepo de linguagem

    potica acima descrita, HC sempre procu-

    rou para as suas tradues textos marcados

    por intrincados jogos de assonncia,aliterao, perpassados por uma teia

    paralelstica de elementos tanto imagticos,

    como sonoros e semnticos, em suma, HC

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    8/14

    R E V I S T A U S P, S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 165

    quase sempre optou por textos os mais dis-

    tantes possveis da nossa linguagem cotidi-

    ana ou mesmo cientfica, marcada pela obe-

    dincia lgica discursiva. Da a opo pela

    segunda parte do Faustodo Goethe um

    dos textos mais hermticos da literatura

    ocidental , pelo Finnegans Wake obra

    que visou desmontar a estrutura

    hermenutica da leitura tradicional do texto

    como busca de um sentido, na medida em

    que levou s ltimas conseqncias o pro-

    cesso de ciframento da escrita da a sua

    opo pelo teatro n, pelos haicais japone-

    ses e por textos do Antigo Testamento

    escritos em hebraico, a lngua celebrada por

    muitos tericos do sc. XIII, como por exem-

    plo Herder, como sendo a lngua originriae, portanto, a mais carregada de elementos

    naturais HC diria concretos e repleta

    de estruturas paralelsticas. Em todas essas

    escolhas HC foi guiado pela preferncia por

    textos, por assim dizer, caracterizados por

    uma baixa carga semntica, ou seja, essas

    opes em si mesmas j revelam quais os

    elementos da linguagem que a atividade tra-

    dutora de HC vai buscar trabalhar e at, de

    certo modo, redimir da lngua de partida,onde eles se encontravam dominados pela

    articulao comunicativa. Ao contrrio dos

    tradutores da tradiobelle infidle, que ele-

    gem textos nos quais prepondera a funo

    semntica o que compatvel com o privi-

    lgio do lgico discursivo linear em detri-

    mento do elemento figural, prprio da poe-

    sia , HC busca aqueles textos que seriam

    considerados por aquela tradio como os

    menos passveis de serem traduzidos. Ora,

    para HC assim como para Walter Benja-

    min, vale lembrar (cf. GSIV, p. 20) os

    textos que possuem uma relao mais frou-

    xa com o sentido so justamente os que se

    prestam verdadeira traduo. As tradues

    tradicionais que elegem textos onde apenas

    a moeda gasta do sentido (GSII, p. 296)

    desempenha um papel importante seriam

    apenas arremedos de traduo: elas forne-

    cem a iluso da tradutibilidade entre as ln-

    guas, quando na verdade o que ocorre apenas uma troca de palavras de uma lngua

    para outra, na qual se perde o elemento na-

    tural, concreto, corpreo, a etimologia

    potica da lngua de partida, que representa-

    va justamente o seu teor esttico, ou seja,

    para HC, a essncia da linguagem.

    Da por que tambm a opo por traduzir

    uma traduo que Hlderlin fizera da

    Antgonede Sfocles, ou seja, a tentativa de

    uma traduo terceira potncia, levando

    em conta que tambm para HC vale a noo

    expandida da linguagem ou do original

    como traduo. Benjamin no seu ensaio

    sobre a tarefa do tradutor justamente lanara

    a interdio da traduo da traduo e sobre-

    tudo a traduo dessa traduo de Hlderlin,

    pois nela o sentido tocado apenas como

    uma harpa elica pelo vento (GSIV, p. 21).

    HC empreendeu esta traduo justamente

    para ir alm da teoria benjaminiana da ta-refa do tradutor. Ir mais alm implica uma

    concordncia de princpio, pois Benjamin

    inverte o propsito, tradicionalmente atri-

    budo traduo, de restituir o sentido, sus-

    pendendo a considerao do contedo [].

    Com isso abala o prprio dogma da tradu-

    o servil (24).Apesar dessa concordn-

    cia fundamental entre as concepes de HC

    e as de Benjamin, HC sente a necessidade de

    libertar a teoria benjaminiana do seu ele-mento metafsico-mstico: ele critica a vi-

    so do tradutor como redentor da lngua pura,

    originria, que Benjamin defendera. Uma

    vez que para HC esta origem tornou-se mera

    diferenano h mais espao para uma vi-

    so do tradutor como o encarregado dessa

    tarefa anglica, como a denomina iro-

    nicamente HC. Ele inverte essa tarefa numa

    misso luciferina a transformao do ori-

    ginal, na traduo da sua traduo (25). Na

    medida em que HC traduziu a traduo de

    Hlderlin ele infringiu o tabu que ainda

    enclausurava a teoria benjaminiana da

    traduo: a separao de statusentre o escri-

    tor e o tradutor, entre o original e a traduo.

    A ultimao da teoria da traduo em

    Walter Benjamin implica lev-la at con-

    seqncias por ele mesmo no enfrenta-

    das, ou seja, a uma nova reverso que lhe

    force a clausura metafsica, para falarcomo Derrida. De fato, apesar de ter

    desconstitudo e desmistificado a norma da

    transparncia do sentido e o dogma da fide-

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    9/14

    166 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    lidade e da servilidade da teoria tradicional

    da traduo; apesar de ter promovido o

    aspecto estranhante da operao tradutora

    como transpoetizao daforma de uma

    outra forma; apesar de ter contribudo, ain-

    da que em termos sublimados e sacrali-

    zados, para o descortino do cdigo intra- e

    intersemitico, a lngua pura, que a tra-

    duo de poesia pe em relevo e exporta de

    lngua a lngua como prtica libertadora e

    re- ou transfiguradora (26); apesar de tudo

    isso, Benjamin insiste na manuteno de

    uma distino categorial entre original e

    traduo, o que o leva a afirmar outro dog-

    ma, o da impossibilidade da retraduo de

    tradues de poesia (27).

    Como j disse acima, HC guiado, na

    sua escolha de textos para a traduo, pelo

    baixo teor semntico e alta performance

    esttica. Num texto de 1962, discutindo a

    teoria semitica de Max Bense, ele j ressal-

    tara a impossibilidade de se traduzir esses

    textos: A informao esttica, escreveu

    ele ento, no pode ser codificada seno

    pela forma em que foi transmitida pelo artis-

    ta [...]. A fragilidade da informao esttica, portanto, mxima. E ele concluiu: En-

    to para ns, traduo de textos criativos

    ser sempre recriao, ou criao paralela

    (28). HC elegeu como estratgia nesta ba-

    talha da traduo, j de antemo perdida,

    uma leitura totalizante do texto, leitura

    partitural, como ele denominou, para po-

    der executar a passagem para o texto de

    chegada, a reorquestrao, ou re-

    configurao em termos de trans-criao

    das articulaes fonossemnticas e sint-

    tico-prosdicas do texto de partida

    (BereShith, p. 11). Essa acentuao do ele-

    mento recriador do ato de traduo foi deno-

    minada por HC algumas vezes como uma

    necessidade constante da parte do tradutor

    de compensar. Essa compensao liga-se

    no apenas ao que ele chamou de jogo de

    perde-ganha com relao transferncia

    para a lngua de chegada das diversas fun-

    es da linguagem ativas num texto, mastambm liga-se a uma atualizaodo texto,

    sua passagem transformadora para um novo

    contexto. A traduo como crtica tam-

    bm significa, portanto, crtica da noo de

    linearidade no apenas no sentido de

    linearidade do significante, crtica da lgi-

    ca aristotlica e (d)a dignidade-linearidade

    alfabtica (Ideograma, p. 97), mas tam-

    bm crtica da linearidade da histria. A

    traduo enquanto corte, ou salto

    (tigrino, dentro da noo benjaminiana de

    Jetztzeit, tempo do agora que deve guiar a

    atividade do historiador), que conecta dois

    pontos histricos, pe em questo a viso

    tradicional da histria: HC filia-se, nesse

    ponto, portanto, moderna postura que vin-

    cula o modelo pico aristotlico con-

    cepo clssico-ontolgica da histria, que

    regem juntos a clausura metafsica do Oci-

    dente (29). Ou seja, a crtica do sentido estligada no apenas a uma crtica da arte como

    imitatio, masda prpria historiografia como

    imitatio de uma srie linear de eventos.

    HC construiu a sua concepo no-line-

    ar da histria, da traduo como corte

    sincrnico e criador de nexos histricos, com

    base num modelo intertextual tanto da lite-

    ratura como da histria (30). Ele recorre

    freqentemente nas suas obras teoria de-

    senvolvida basicamente por Bakhtin eKristeva, da literatura como dialogismo e

    intertextualidade; ele fala de um movimento

    plagiotrpico da literatura e explica: A

    plagiotropia(do gregoplgios, oblquo; que

    no em linha reta; transversal; de lado)

    [] se resolve em traduo da tradio, num

    sentido no necessariamente retilneo. []

    Tem a ver, obviamente, com a idia depa-

    rdiacomo canto paralelo, generalizan-

    do-a para designar o movimento no-linear

    de transformao dos textos ao longo da

    histria, por derivao nem sempre imedia-

    ta. E HC ainda acrescenta: Este modelo

    conjuga-se com minha concepo da opera-

    o tradutora como captulo por excelncia

    de toda possvel teoria literria (e literatura

    comparada nela fundada). [] Nesse senti-

    do, pode-se dizer que a mais eficaz traduo

    da linguagem de Dante, enquanto resultado

    esteticamente computvel, encontra-se an-

    tes, fragmentariamente, em Cames (e noSousndrade []), do que nos tradutores

    que se ocuparam explicitamente com a tare-

    fa (31). Seguindo essa concepo da litera-

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    10/14

    R E V I S T A U S P, S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 167

    tura como jogo intertextual jogo de cita-

    o e plgio, traduo constante de um

    texto no outro , HC procurou nas suas tra-

    dues no apenas estranhar a lngua por-

    tuguesa, vivificando-a, abalando-a criati-

    vamente com a violncia do sopro da ln-

    gua estrangeira, romanticamente alargan-

    do a lngua do tradutor, como alm disso

    ele violenta sistematicamente o texto origi-

    nal, reprocessando-o dentro do horizonte da

    literatura da sua lngua e do agora

    (benjaminiano) do seu ato tradutrio. Um

    modelo desse procedimento ele encontrou

    em Odorico Mendes, cujas tradues ele

    sempre trata como ideais no seu gnero: O

    nosso Odorico Mendes, pai rococ

    (Sousndrade) e patriarca da traduo cria-tiva, interpolava, quando lhe parecia bem,

    em suas tradues homricas, versos de

    Cames, Francisco Manuel de Melo, Anto-

    nio Ferreira, Filinto Elsio. Na recriao do

    Cro dos Lmures (Grablegung/Enterra-

    mento) [do Fausto], usei deliberadamente

    de uma dico cabralina, haurida no auto

    Morte e Vida Severina (32). HC deixou-se

    inspirar pelo Guimares Rosa do Meu Tio,

    o Iauret para traduzir o Finnegans Wake,ou ainda pela poesia de Sousndrade para

    verter o Fausto de Goethe e o BereShit.

    Para traduzir do chins utilizou-se de tc-

    nicas medievais de paralelismo para com-

    pensaras diferenas com o texto de partida.

    Como ele afirmou no seu posfcio tradu-

    o doFausto, a sua traduo enquanto no-

    submissa a um texto original assim como

    a linguagem potica para HC no se subme-

    te ao simples objetivo comunicativo liga-

    se a um desideratumde toda traduo que

    se recusa tirania de um Logos pr-ordena-

    do que implica em romper a clausura

    metafsica da presena (como diria Derrida):

    uma empresa satnica (33). A conseqn-

    cia desse raciocnio foi evidentemente, eu

    repito, a transformao do original na tra-

    duo da sua traduo (34).

    Esta empresa satnica de traduo

    como crtica culmina, como num efeito

    domin, no questionamento da prpria

    noo de identidade. Identidade no mais

    apenas no sentido da lgica que vimos aci-

    ma, mas tambm na sua acepo expandi-

    da de identidade nacional (35). Esse l-

    timo passo s pode ser compreendido ago-

    ra, depois de termos trilhado juntos a teoria

    romntica da reflexo e daBildungna sua

    relao com a concepo de traduo

    (trans-)formadora, aps termos visto a con-

    cepo haroldiana da linguagem potica

    funcionando como crtica da linguagem dis-

    cursiva, a sua operao de desmonte de

    diversas oposies da tradio ocidental, e

    como a sua valorizao do plano de ex-

    presso em detrimento do significado

    do elemento espacial, material da lingua-

    gem em detrimento do seu encadeamentolgico-linear levou a uma crtica da lin-

    guagem como mera portadora de um senti-

    do transcendental que se conectou por

    sua vez crtica da noo de arte como

    imitao (mmesis), e da historiografia

    como construo de uma sucesso linear

    de fatos. Finalmente, com a viso da litera-

    tura e da sua histria como construo

    de intertextos, como trabalhode tradu-

    o no sentido que o termo trabalhopossui para Freud na locuo trabalhode

    luto , a barreira que separa e cimenta a

    identidade de cada literatura ou cultura

    nacional abalada. A tarefa (Aufgabe) do

    tradutor, ou, melhor dizendo, da traduo,

    para HC, culmina naAufgabe, no abando-

    no de uma j impossvel ainda que ne-

    cessria e indispensvel noo de identi-

    dade. A traduo como necessria e como

    necessria impossibilidade encontra, por-

    tanto, o seu correlato na identidade como

    necessria e como necessria impossibili-

    dade. Para usar uma expresso do prprio

    Haroldo, ele movimenta-se dentro do mo-

    delo do como: da lgica da correlao,

    da aproximao por analogia, antilinear por

    excelncia. O como, afirma HC, torna

    lbil o estatuto da identidade (da continui-

    dade, da verdade) abrindo nele a brecha

    vertiginosa da associao por analogia []

    no limite, como ressalta Walter Benjamina propsito da metaforizao hieroglfica

    na alegoria barroca, qualquer coisa, cada

    relao, pode significar uma outra qualquer

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    11/14

    168 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    ad libitum (36). A concepo de tradu-

    o de HC, ou, por outra, a sua aplicao

    da traduo como princpio, como um ope-

    rador privilegiado, contamina toda a lin-

    guagem e, graas ao modelo metafrico

    da razo potica baseada no como,

    ele corri os compartimentos estanques

    criados por uma certa tradio filosfica

    que domina at hoje o nosso modo de

    pensar (37).

    O comodeve ser visto como um medium

    na equao do Ser como constante sada de

    si mesmo, jogo de diferena. Essa reflexo

    sobre a diferena, sobre a dependncia de

    princpio entre o Eu e o No-Eu, HC j

    pudera encontrar num eminente poeta bra-

    sileiro, que sempre se empenhara emdesconstruir determinados mitos nativos.

    Creio que, no Brasil, afirmou Haroldo,

    com a Antropofagia de Oswald de

    Andrade, nos anos 20 [], tivemos um

    sentido agudo dessa necessidade de pensar

    o nacional em relacionamento dialgico

    com o universal. A Antropofagia

    oswaldiana o pensamento da devorao

    crtica do legado cultural universal [...]

    segundo o ponto de vista desabusado domau selvagem, devorador de brancos,

    antropfago. Ela no envolve uma submis-

    so (uma catequese), mas uma transcul-

    turao, melhor ainda, uma transvalora-

    o: uma viso crtica da histria como

    funo negativa (no sentido de Nietzsche),

    capaz tanto de apropriao como de expro-

    priao, desierarquizao, desconstruo

    (38). A traduo haroldiana seria portanto

    uma continuao da dialtica marxilar

    de Oswald, que com seu Coup de Dents

    desconstri a relao entre o prprio e o

    estrangeiro sob o signo da devorao. A

    traduo atua como exerccio e teraputica

    do abandono tanto do Eu como do outro,

    ela tece e revela tanto a literatura como a

    histria, o Prprio e o Outro, como

    palimpsesto e intertextualidade (39).

    H um momento dentro dessa lgi-

    ca da traduo de Haroldo que constante-

    mente, na medida mesma em que anula abandona os conceitos j estabelecidos,

    indica (deiticamente) o oco dentro da pr-

    pria linguagem: revela a melancolia com

    relao perda e ao abandono na base da

    eloqncia da palavra, na raiz da necessi-

    dade da palavra e da identidade Como

    Benjamin notou com relao s tradues

    de Hlderlin, nelas desvendamos die

    ungeheuere und ursprngliche Gefahr aller

    bersetzung: dass die Tore einer so

    erweiterten und durchwalteten Sprache

    zufallen und den bersetzer ins Schweigen

    schliessen (GS, IV p. 21: o perigo mons-

    truoso e originrio de todas tradues: que

    os portes de uma lngua to alargados e

    atravessados fechem-se e encerrem o tra-

    dutor no silncio). Na obra de HC este

    perigo extremo sempre est espreita; e

    isso no apenas nas suas tradues(-cria-

    es), mas tambm nos seus poemas(-tra-dues): somos constantemente guiados na

    borda e sobre o precipcio das palavras. Da

    o seu percurso revelar a necessidade da parte

    do poeta, num mundo marcado pelo anoi-

    tecer das utopias e, como ele mesmo

    notou, sem perspectiva utpica, o movi-

    mento de vanguarda perde o seu sentido

    (40) de carregar mais e mais o carter de

    traduo da sua poesia: ou seja, o ato

    poitico assume-se como pura traduo.A traduo torna-se o gnero criativo da

    poesia num momento em que o projeto de

    uma busca/criao de uma identidade

    nacional foi suspendido ou melhor, re-

    organizado sob o signo de um nacionalis-

    mo modal junto com o minguar das uto-

    pias. A poesia ps-utpica, possui, portan-

    to, como afirmou HC, como poesia da

    agoridade, um dispositivo auxiliar essen-

    cial na operao tradutora. O tradutor, na

    expresso de Novalis, o poeta do poeta,

    o poeta da poesia. A traduo permite

    recombinar criticamente a pluralidade dos

    passados possveis e presentific-la, como

    diferena, na unicidade hic et nuncdo po-

    ema ps-utpico (41). Traduo como

    guardi e recriadora dos passadosposs-

    veis: vale a pena reter essa reflexo central.

    Tambm o poeta, tradutor e terico

    Hlderlin fez um percurso semelhante a este

    de HC, assumindo, aps ter passado portoda uma paleta de gneros poticos, a tra-

    duo como poesia. As tradues de

    Hlderlin tambm so marcadas por uma

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    12/14

    R E V I S T A U S P, S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 169

    dupla violncia, um duplo abandono: vio-

    lncia com relao ao texto/lngua de par-

    tida e com relao sua prpria lngua. Ele

    fora, portanto, assim como entre ns HC,

    alm do modelo romntico daBildung, que

    se baseava, como vimos, num respeito

    (sacralizador) com relao lngua do ori-

    ginal. Com o seu misto de literalidade

    abrupta e desvio enigmtico (42),

    Hlderlin abandonou tanto a sua lngua

    como a do texto traduzido (43). Norbert

    von Hellingrath, o principal divulgador das

    tradues hlderlinianas, e um dos seus

    grandes tericos, notou que Hlderlin tra-

    duziu muitas vezes de modo literal all

    zu ngstlich (carregado pelo medo),

    porque ele no compreendera totalmenteo sentido do original (44). Gostaria de

    concluir estas reflexes propondo uma outra

    explicao para essa literalidade radical

    nas tradues de Hlderlin e tambm nas

    de HC (45). O medo que Hellingrath

    detectou pode ser lido como conectado ao

    perigo acima mencionado de ser tragado

    pelo (sublime) silncio que, como Ben-

    NOTAS

    1 Cit. por Haroldo de Campos, Paul Valry et la Potique de la Traduction, inBulletin des tudes valryenne, n. 58, 1991, p. 35. No sc. XVIII muitosautores defenderam uma ordem de idias semelhante como se pode ler na passagem muito citada daAesthetica in nuce de Hamann: Falar

    traduzir de uma linguagem anglica numa linguagem humana, ou sej a, pensamentos em palavra s, coisas em nomes imagens em si gnos.Aesthetica in nuce , Stuttgart (1762), 1968, pp. 87 e seg. Traduo de minha autoria. Todas as tradues, caso no esteja indicado o nome do seuautor, so de minha responsabilidade.

    2 Paul Va lry , euvres, org. por Jean Hytier, Paris, 1957, pp. 1.317 e seg.

    3 Manfred Frank, Die Dichtung als Neue Mythologie, in Karl Heinz Bohrer (org.),Mythos und Moderne , Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1983, p. 16.

    4 Mas sempre houve tambm uma tradio que procurou valorizar os elementos do mundo que, por assim dizer, contaminam o texto da traduoprimria. Estamos evidentemente nos referindo ao tema clssico da linguagem natural em oposio artificial, ou, em outras palavras, distinoentre, por um lado, a linguagem motivada e , por outro, a afirmao da arbitrariedade fundamental dos significantes com relao aos seus significados,

    que pode ser retraada at a antiga querela entre Crtilo e Hermgenes do dilogo de Plato. Mais abaixo voltaremos a este ponto.

    5 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, org. por Rolf Tiedemann e H. Scheweppenhuser, Frankturt a.M., Suhrkamp, 1972, vol. IV, p. 506. (A partirdaqui citaremos as obras completas de Benjamin apenas com as iniciaisGSseguidas do nmero do volume e da pgina.)

    6 Quanto concepo primeiro romntica de traduo como criao absoluta, cf. a minha tese de doutorado:Prosa Poesie Unbersetzbarkeit.Wege durch das 18.Jahrhundert und von den Frromantikern bi s zur Gegenwart(Prosa Poesia Intraduzibilidade. Itinerrios atravs do sc. XVIII edos Romnticos at o Presente), Instituto de Teoria Literria e Literatura Comparada da Universidade Livre de Berlim, dezembro, 1996.

    7 Cf. quanto a esta concepo romntica da traduo como conhecimento do Outro, do estrangeiro, a obra de Antoine Berman,Lpreuve deltranger; culture et traduction dans lAllemagne romantique(Paris, Gallimard, 1984), onde ele anotou o seguinte com relao noo romnticade Bildung: []le mouvement de sortie et dentre en soi de lEsprit, tel que le dfinissent Schelling et Hegel, mais galement F. Schlegel []est aussibien la re-formulation spculativede la loi de la Bildung classique: le propre naccde lui-mme que par lexprience, ces t--dire lp reuve deltranger, pp. 258 e seg. Cf. tambm a minha dissertao de mestrado:Ler o Livro do Mundo. Walter Benjamin: Romantismo e Crtica Potica, FFLCH-USP, agosto de 1991, pp. 280 e segs.

    8 A poca romntica foi a poca das grandes tradues na Alemanha. Como notou Antoine Berman na sua obra sobre o conceito romntico detraduo, h sempre uma resistnci a a esta abertura ao outro, implcita na traduo: toda cultura resiste traduo, mesmo precisandoessencialmente dela. A visada mesma da traduo abrir no nvel da escrita uma certa relao com o Outro, fecundar o Prprio pela mediaodo Estrangeiro atinge de frente a estrutura etnocntrica de toda cultura (op. cit., p. 16). A. W. Schlegel e Hlderlin visaram com as suas traduesalargar no apenas o idioma alemo, mas tambm transmitir novas formas literrias para a sua cultura. A. W. Schlegel foi, juntamente com LudwigTieck, o tradutor das obras completas de Shakespeare para o alemo, obra esta que atuou de modo efetivo no sentido de remodelar a concepo

    jamin afirmou, espreita toda traduo. Esse

    silncio decorre do risco constante da

    perda do Eu que est implcito no aban-

    dono inerente ao ato de traduo. J Kant

    vira no sublime a resposta a um fenmeno

    que extrapola a capacidade de recepo do

    Eu, defrontando-o com o seu limite com

    a morte. Da a traduo ser marcada pelo

    medo: medo de que no ocorra a volta,

    o retorno a si mesmo. Tanto o tradutor como

    o artista de um modo geral criam a partir da

    perda de si mesmo; eles podem tanto mais

    ser na medida em que eles menos so.

    Como Philippe Lacoue-Labarthe notou

    com relao a esse paradoxo do artista: Le

    paradoxe nonce une loi dimproprit,qui

    est la loi mme de la mimsis: seulLhomme sans qualits, ltre sans

    proprit ni spcifit, le sujet sans sujet

    (absent lui-mme, distrait de lui-mme,

    priv de soi) est mme de prsenter ou de

    produire en gnral (46). A astcia do

    conceito antropofgico de traduo de HC

    est no fato de ele ter transformado o luto

    pela perda num jogo de perde-ganha.

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    13/14

    170 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 5 8 - 1 7 1 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    do drama da poca e de superar os antigos cnones da potica. A. W. Schlegel traduziu tambm Caldern, Ariosto, Dante, Petrarca, Boccaccio,o Bhagavad Gte outros autores portugueses, italianos e espanhis. Tieck traduziu o Don Quijotee o prprio Goethe traduziu Diderot OSobrinho de Rameau , a au tobiografi a de Benvenuto Cel lini, Voltaire , Racine, Corneille , sem contar outras tradues suas do la tim, g rego,espanhol e das lnguas eslavas.

    9 Friedrich Schlegel, Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe, org. por Ernst Behler, Mnchen/Paderborn/Wien, vol. XVIII, 1963, p. 288.

    10 Idem, ibidem, p. 204.

    11 Cf. o famoso fragmento no qual Novalis define a poesia aproximando-a da msica, a arte tradicionalmente considerada como a menos passvelde narrar: Poesias apenas bem-sonantes e cheias de belas palavras mas tambm sem qualquer sentido ou contexto apenas compreensveisem algumas e estrofes elas devem ser como meras runas das coisas as mais diversas. No mximo, a poesia verdadeira pode ter um sentidoalegrico geral e exercer um efeito indireto como msica, etc. A natureza portanto puramente potica e assim tambm um quarto de umMgico de um Fsico de uma criana um quarto de npcias e uma despensa.Werke, Tagebcher und Briefe, org. por H.-J. Mhl e R. Samuel,Mnchen, 1978, vol. II, p. 769. O iderio que tradicionalmente se associa ao termo Romantismo est a quilmetros de distncia do que estemovimento de fato representou em termos de filosofia e teoria da literatura. Tambm do romntico Novalis a seguinte frase: Que a poesiano deve gerar nenhum efeito, est claro para mim afetos so simplesmente algo fatal, como as doenas. Idem, p. 757. Cf. quanto a esteponto Walter Benjamin, O Conceito de Crtica de Arte no Romantismo Alemo, trad. Mrcio Seligmann-Silva, So Paulo, lluminuras, 1993, passim.

    12 Karl Philipp Moritz, um importante antecessor dos romnticos de Iena, deve ser considerado como o primeiro terico da noo moderna daarte como criao absoluta. Cf. o seu pequeno estudo Tentativa de uma Unificao de Todas as Belas-artes e Cincias sob o Conceito deCompletas em Si Mesmas (in sich selbst vollendeten), que deve ser lido como uma resposta ao influente texto de Batteux,Les Beaux Arts rduits un mme Principe(Paris, 1747), que tentara, por sua vez, explicar a unidade de todas a artes a partir da imitao da Natureza. Cf. ainda, tambmde Moritz, o seu Versuch einer deutschen Prosodie, 1786.

    13 HC, BereShith.A Cena da Origem , So Paulo, 1993, p. 94.

    14 Cf. Aage A. Hansen-Ive,Der russische Formalismus. Methodologische Rekonstruktion seiner Entwicklung aus dem Prinzip der Verfremdung, Wien,1978, pp. 33-6, 276, 517.

    15 Ideograma, Anagrama, Diagrama: uma Leitura de Fenollosa, in HC (org.),Ideograma: Lgica, Poesia, Linguagem, So Paulo, 1977, p. 39.(Citaremos por Ideograma.)

    16 HC e outros, Teoria da Poesia Concreta,So Paulo, 1965, p. 5.

    17 O tema da relao intersemitica entre as artes da possibilidade datraduo de uma arte para a outra e de um rgo do sentido para umoutro acompanhou tradicionalmente desde o sculo XVIII a reflexo sobre a possibilidade da traduo de uma lngua para outra.

    18 G. E. Lessing, Moses Mendelssohn e Friedrich Nicolai, trs dos principais tericos da poesia do lluminismo alemo, j defendiam essa postura,inspirados por Dubos e por suas importantesReflxions critiquessurla Poesieet sur la Peinturede 1719. Cf. a famosa carta de Lessing a Nicolai

    de 26 de maio de 1769: A Poesia deve simplesmente buscar elevar os seus signos de arbitrrios para naturais; e apenas desse modo ela sediferencia da Prosa e torna-se Poesia. O meio atravs do qual ela o faz so o tom, as palavras, a posio das palavras, a medida das slabas, asfiguras e os tropos, comparaes, etc. Todas essas coisas elevam os signos arbitrrios proximidade dos naturais.Smtliche Schriften, org. porKarl Lachmann, Stuttgart, 1891, vol.17, p. 290. Cf. quanto relao da Poesia Concreta e a s teorias estticas do sc. XVIII o interessante ensaiode Wendy Steiner, The Colors of Rethoric, Chicago, 1982. Vale notar que estes conceitos possuem nos romnticos um sentido praticamenteoposto ao da filosofia do racionalismo e Iluminismo alemes. Para Novalis, o correspondente Natursprachedos Iluministas era a Ursprache,a linguagem, em termos semiticos, mais icnica possvel e, portanto, modelo para a linguagem da arte. Die gemeine Sprache ist dieNatursprache die Bchersprache die Kunstsprachen, Werke, op. cit., p. 524.

    19 HC fundamentando a Poesia Concreta escreveu que tendendo para a tcnica sinttico-ideogrmica de compor, ao contrrio da analtico-discursiva, toda uma culturmorfologia que, nos ltimos sessenta anos, produziu-se no domnio artstico (desde Mallarm), armou o poeta deum instrumento lingstico mais prximo da real estrutura das coisas. Teoria da Poesia Concreta, op. cit. p. 69. Mesmo mais tarde, num textode 1981 falando da linguagem de Alencar, HC aplicaria o termo concreto dentro da noo iluminista de linguagem natural que seria maisprxima das coisas nomeadas: A busca da origem se dava por via mitopotica de um naturalismo admico, j que a barbarizao do portugus

    lngua civilizada do poder e da verdade eurocntrica permitia ao autor de Iracema reconduzir-se escrituralmente condio ednica dalngua natural, concreta, prxima das coisas em estado de nomeao inaugural, icnica.Metalinguagem e Outras Metas, So Paulo, Perspectiva,

    1992, p. 155.

    20 Veja-se o malabarismo terico que HC executou ao tentar descrever o elemento icnico dos ideogramas; malabarismo este que lembrao obscuro conceito benjaminiano das semelhanas no-sensveis: Desde logo o pictograma decididamente um cone: uma pinturaque em virtude de suas prprias caractersticas se relaciona, de algum modo [?], por similaridade, com o real, embora esta qualidaderepresentativa possa no decorrer de imitao servil, mas de diferenciada configurao de relaes, segundo um critrio seletivo e criativo .Ideograma, p. 40.

    21 Apesar da crtica constante da parte de HC ao modelo mimtico como explicao tanto da linguagem de um modo geral como da obra dearte, evidente e ele consciente desse fato que estas duas tendncias inerentes a sua obra a busca da iconicidade da linguagem e a visoda obra de arte como poesis de um mundo fechado em si permanecem dentro do esquema aristotlico dammesis, que, como se sabe, podedar-se de trs modos: como imitatio da Natureza, como poesis (isto , imitao do princpio criador da natureza, da natura naturans), e comoimitao das obras de arte clssicas. Esta ltima modalidade, HC incorporou tambm criticamente e ironicamente na sua concepo deliteratura como intertextualidade que veremos a seguir.

    22 HC j destacara a noo de lgica oximoresca que Susanne Langer aplicou natureza da arte de um modo geral, e em que medida a metfora,

    como elemento central da linguagem potica, mina o princpio da identidade. Ele, enquanto poeta-terico, nunca buscou fugir a esta lgica.Cf. Ideograma, p. 79.

    23 Des Tours de Babel, in Psych.Inventions de lautre , Paris, 1987, p. 208.

    24 Da Traduo Transficcionalidade, in34 Letras, no3, maro/1989, p. 84. Cf. ainda BereShith, op. cit., p. 23; Qohlet. O-que-sabe. Eclesiastes:

  • 8/10/2019 Haroldo de Campos: Traduo Como Formao e Abandono Da Identidade

    14/14