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33 ENCONTRO NACIONAL DA ANPOCS26 a 30 de outubro de 2009, Caxambu Minas Gerais
GT 01: A cidade nas cincias sociais: teoria, pesquisa e contexto
A PERIFERIA DE SO PAULO:
REVENDO O CONCEITO, ATUALIZANDO O DEBATE
Autora: rica Peanha do NascimentoDoutoranda em Antropologia Social (PPGAS/USP)
Bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo
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Resumo: A presente proposta adota o investimento nos projetos de ao cultural
protagonizados por artistas perifricos como recorte analtico estratgico para a problematizao
da dicotomia centro-periferia, bem como para novas reflexes que busquem articular cultura e
poltica no cenrio urbano, visando contribuir com a reviso crtica das categorias e modelos deanlise forjados nos ltimos trinta anos sobre a produo do espao urbano. Como parte do
esforo terico e etnogrfico empreendido em minha pesquisa de doutorado sobre produo e
consumo cultural na periferia paulistana, este trabalho recupera alguns discursos produzidos nas
cincias sociais sobre a periferia de So Paulo para refletir sobre os potenciais rendimentos do
contexto atual de proliferao de movimentos, grupos e projetos culturais articulados em torno
da periferia e organizados por sujeitos oriundos deste espao social.
Palavras-chave: periferia, cultura da periferia, projetos de ao cultural
1. Reflexes sobre a periferia paulistana na produo acadmica entre1970 e 1990
Objeto privilegiado das cincias humanas nos anos 1970 e 1980, o tema
das periferias urbanas brasileiras vem sendo retomado na ltima dcada a partir
da proposio de novos vieses tericos e metodolgicos. O que est em pauta a necessidade de se rever criticamente as categorias e modelos de anlise que
foram forjados nos ltimos trinta anos sobre a produo do espao urbano, bem
como a pertinncia do conjunto de problemas associado ao padro
socioespacial dele resultante.
Em balanos recentes, autores como Cymbalista (2006), Frgoli Jr.
(2005), Marques e Bichir (2001), Torres e Oliveira (2001) assinalam que
trabalhos acadmicos produzidos nas dcadas de 1970 e 1980, embora tenham
divergido quanto descrio dos processos que resultaram no padro
socioespacial paulista, apresentaram certo consenso com relao
homogeneidade de condies geogrficas e de vida, tanto nas regies centrais
quanto nas perifricas. Em geral, o pressuposto que orientava a produo dessa
poca era a dicotomia centro-periferia que fixava, de um lado, os ricos e bem-
servidos dos equipamentos pblicos e condies de vida nas regies centrais; e
de outro, os trabalhadores com baixos salrios e sem acesso boa infra-
estrutura nas reas perifricas.
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Segundo Jos Guilherme Magnani (2006), especialmente em So Paulo,
a oposio espacial centro-periferia sempre operou de forma bastante
significativa para os atores sociais e acadmicos, pois, historicamente, houvecerta continuidade entre segregao espacial e de direitos na regio
metropolitana paulista, fazendo com que morar e ser da periferia significasse ao
mesmo tempo ausncia do Estado e de equipamentos urbanos. Deste modo, o
termo periferia s pde ser entendido em oposio ao centro e, mesmo depois
dos anos 1990, com a produo de sucessivas centralidades (centro histrico,
centro expandido a partir da Avenida Paulista e o ncleo da Avenida Berrini),
persistiu uma ideia do espao perifrico como seu contrrio, at porque os
diferentes ciclos econmicos continuaram a empurrar os trabalhadores para as
reas mais distantes desses centros e menos providas de equipamentos
pblicos.
A despeito de a periferia ser um fenmeno sociocultural e poltico
relevante, o interesse por enfoc-la a partir dos anos 1970 tambm guarda
relao com a disseminao da sociologia marxista entre os pesquisadores
brasileiros, de acordo com Heitor Frgoli Jr. (2005). Para este autor, tornou-se
bastante influente por aqui a interpretao que tomava a cidade como uma
varivel dependente das determinaes econmicas e polticas na perspectiva
de se produzir explicaes macroestruturais e distanciar-se das anlises
culturalistas da Escola de Chicago, precursoras em territorializar questes
sociais (como a marginalidade e a segregao) e produzir a concepo de uma
cultura urbana que tomava a cidade como varivel independente das
contingncias estruturais.
O modelo que se disseminou no campo dos estudos sociolgicosrealizados no referido perodo era aquele que apontava o Estado como o
responsvel pela reproduo da dinmica capitalista, encontrando em Lcio
Kowarick (1979) o autor que mais o aplicou nos estudos do caso brasileiro.
Conforme Kowarick, sendo o Brasil um pas de capitalismo tardio, o novo
sistema econmico s funcionaria submetendo a fora de trabalho a padres
constantes de super explorao e espoliao urbana. Nesse modelo, a periferia
seria fruto da acumulao econmica e da especulao imobiliria, constituindo-se como o aglomerado distante do centro onde passa a residir a crescente
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mo-de-obra necessria para girar a maquinaria econmica (1979, p.31),
construdo e reconstrudo pelo Estado e pela prpria dinmica da acumulao. A
periferia, portanto, era entendida como o territrio da espoliao urbana, isto ,da sistemtica excluso das classes trabalhadoras ao acesso aos servios de
consumo coletivo.
Ao atentar para o aumento da migrao interna que acarretava inchao
de populao nas periferias das grandes metrpoles e gerava altos ndices de
desemprego em diversos pases latino-americanos, pesquisadores como Nabil
Bondunki e Rachel Rolnik (1979) enfocaram a precariedade das moradias,
associando certas situaes de marginalidade aos moradores dos bairros
perifricos. Segundo eles, o padro perifrico que caracterizou a metrpole
paulistana at os anos 1970 seguia a lgica de extenso ilimitada da cidade:
devido aos fluxos de migrao entre os anos 1940 e 1970, queles que
aportavam na regio metropolitana restava como alternativa mais barata de
moradia a co-habitao com parentes ou o pagamento de aluguel em
loteamentos afastados das regies centrais ou, por vezes, situados no entorno
das fbricas.
Alm da peculiaridade dos lotes, da falta de infra-estrutura bsica e da
mobilizao dos moradores para a autoconstruo das casas, tambm era
possvel identificar na figura das lideranas comunitrias, que estabeleciam
relaes clientelistas com os candidatos a pleitos eleitorais e eram importantes
intermedirios entre o poder pblico e a populao local, outro indicativo de uma
organizao diferenciada na periferia, sobretudo quando esta era pensada em
relao aos bairros nos quais habitavam as classes mdias e altas (Bondunki e
Rolnik, 1979).Na reviso bibliogrfica empreendida por Eduardo Marques e Renata
Bichir (2001), anlises sociolgicas e urbansticas produzidas entre 1970 e 1980
podem ser interpretadas a partir da mobilizao de mecanismos estruturais ou
de natureza econmica, ou ainda, fazendo referncia ao comportamento
econmico dos agentes. Para estes autores, foram as pesquisas antropolgicas
e outros estudos direcionados para o nvel micro que destoaram dessas
orientaes em funo de terem se debruado sobre o espao perifrico parainvestigar os atores, modos de vida, cotidiano, formas de lazer, formulao de
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identidades, mobilizaes coletivas, etc., tais como os trabalhos de Teresa
Caldeira,1984; Ruth Cardoso, 1987; Eunice Durham, 1986; e Jos Guilherme
Magnani, 1984.As pesquisas antropolgicas tambm trouxeram tona os movimentos
sociais populares que emergiam, principalmente, das periferias1. Coincidindo
com o avano do autoritarismo na Amrica Latina, diversos estudos de caso
estavam sendo realizados com o propsito de entender as reivindicaes das
classes populares para serem reconhecidas pelo Estado, ou ainda, discutir o
papel dos novos atores sociais e suas condies de atuao no espao pblico
(Cardoso, 1987). De tal modo, as especificidades do contexto brasileiro a
saber: diferentes formas de desenvolvimento da democracia e da cidadania,
heterogeneidade do espao de mobilizao dos atores fora de partidos polticos
e sindicatos produziram investigaes sobre movimentos emancipatrios,
novas formas de associativismo ou lutas organizadas em torno de reivindicaes
por creches, transportes, educao, moradia, etc.
Sendo essas as temticas e debates que circunscreveram as primeiras
pesquisas sobre a periferia paulistana, o que ser que mudou na abordagem
acadmica sobre este espao nos ltimos anos? Alguns estudos realizados a
partir dos anos 1990, como o de Victor Faria (1992) e Eduardo Marques (2000),
indicam que houve ampliao dos servios pblicos, especialmente
saneamento e educao bsicos, atribuindo-a tanto ao processo de
redemocratizao e mudana das burocracias estatais com relao a algumas
polticas pblicas, quanto presso de movimentos sociais populares.
Haroldo Torres e Maria Aparecida de Oliveira (2001), por exemplo,
pontuam que os dados da Pnad-1999 demonstravam que servios de gua,eletricidades e educao fundamental j estavam quase universalizados na
Regio Metropolitana de So Paulo, mesmo que at hoje ainda persistam
problemas com relao ao acesso aos ensinos infantil e mdio, qualidade da
educao pblica como um todo, meios de transporte pblicos e padres
1 Conforme ressalta Frgoli Jr. (2005), ao fazer reflexo sobre a literatura que estava sendoproduzida nos anos 1980, Eunice Durham demonstrou como a visibilidade que a AntropologiaUrbana obteve poca ligava-se prpria projeo na cena poltica alcanada por movimentossociais que se organizaram em torno da ampliao de direitos e tornaram-se focos da disciplina.
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construtivos das residncias. Mas embora esses autores busquem destacar que
a oferta e ausncia de equipamentos e servios pblicos bsicos no servem
mais como chaves explicativas da segregao espacial na cidade de So Paulo,atentam que ingnuo supor que o investimento pblico em si seja capaz de
eliminar a segregao (Ibidem, p.66). Assim, esses autores propem que sejam
levadas em considerao outras dimenses da vida nos espaos urbanos, como
os nveis de emprego e desemprego, ndices de violncia, caractersticas dos
domiclios, distncia ou m qualidade dos equipamentos de sade e da rede de
ensino, entre outros.
Para Eduardo Marques e Haroldo Torres (2001), a melhoria na oferta de
equipamentos e servios no impediu que uma acentuada parcela da populao
continuasse includa de forma marginal no sistema econmico e submetida s
piores condies de infraestrutura em espaos que os autores denominaram
hiperperiferias e que representariam a segregao da segregao por conta
da ausncia de equipamentos e de oferta de servios, menor renda da
populao, maior percurso para o trabalho e alta vulnerabilidade a riscos
ambientais (inundaes, desmoronamentos, etc.). Ao mesmo tempo, autores
como Marques e Bichir (2001), a partir do argumento de que no se pode
estabelecer uma relao linear e bvia entre crescimento da cidade e volume de
investimentos, sinalizam que possvel identificar em So Paulo bairros que
podem ser considerados periferias consolidadas, dadas as melhorias de
infraestrutura realizadas.
Outro fenmeno que entrou na pauta dos estudos foram as favelas. Ainda
que datado da dcada de 1970, o surgimento das favelas nas periferias passou
a ser enfocado, a partir dos anos 1990, como parte do processo do declniodessas reas. Alm disso, por serem menos visveis do ponto de vista das
polticas pblicas, as favelas de periferia mostravam-se muito menos
estruturadas urbanisticamente e frequentemente expostas situao de risco
ambiental, diferentemente do que ocorreria com as favelas centrais, que
permitiriam ao trabalhador algum acesso aos mercados locais de trabalho e a
servios pblicos diferenciados (Torres e Oliveira, 2001).
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Bonduki (2001) assinala que, ao se falar de periferia atualmente, as
vrias situaes se misturam (p. 96): h a favela de periferia, que j abriga 20%
da populao paulistana; o adensamento populacional, a ocupao demananciais e at mesmo o registro de melhores condies de vida. Neste
sentido, mesmo nas regies onde aconteceram melhorias urbansticas, o
elemento social continuar determinante para a permanncia do que a idia de
periferia representa, pois, conforme o autor: as ruas podem ser asfaltadas, o
esgoto pode estar l, mas aquela sensao de carncia continua (...) Outra
questo a econmica, a de salrio e de no ter trabalho, tudo isso culmina na
questo da violncia (Ibidem, p. 97).
Teresa Caldeira (2000), analisando a urbanizao da cidade de So
Paulo identificou que desde o final dos anos 1980 diferentes grupos sociais
passaram a conviver numa mesma regio geogrfica, at por conta do
deslocamento das camadas privilegiadas para condomnios de luxo instalados
ao redor de reas perifricas. Nessas regies, a separao entre os grupos
sociais seria feita por muros de tecnologias de segurana (os enclaves
fortificados), que, de um lado, perpetuariam a excluso, o controle e a
estigmatizao; e de outro, criarim espaos privatizados para moradia,
consumo, lazer e trabalho (Caldeira, 2000).
J para Vera Telles (2006), preciso considerar, ao se fazer pesquisas
que tomam a periferia como lcus, as diversas problemticas que se situam em
escalas diferentes. A autora se refere, entre outros aspectos, expanso do
trfico de drogas nos anos 1990 que alterou rotas de violncia e criminalidade,
assim como interferiu na sociabilidade cotidiana, sobretudo nos bairros mais
pobres. Mais do que isso, Telles enfatiza como dados a serem considerados ocrescimento da economia informal, a possvel indistino entre o lcito e o ilcito,
e a presena de um novo tipo associativismo nas periferias que inclui entidades
filantrpicas, instituies multifuncionais e ONGs.
Diante desses breves apontamentos sobre a temtica da periferia, cabe
observar, conforme Frgoli Jr. (2005), que o primeiro desafio que est posto a
produo de anlises que avancem no entendimento do que se modificou e
permaneceu com relao periferia nos nveis conceitual e contextual, dado oregistro de diversidades urbansticas e de fenmenos socioculturais. No nvel
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conceitual, possvel sinalizar que o modelo centro-periferia que orientou a
parte da produo acadmica nos anos 1970 e 1980 passou a ser relativizado
por estudos desenvolvidos a partir de 1990, pois estes assinalam condiescada vez mais diversificadas entre os bairros urbanos e que interferem, por
conseqncia, na produo do espao social e nas relaes e prticas nele
constitudas. No entanto, se a sinalizao dessa heterogeneidade passou a ser
recorrente, levando alguns pesquisadores a privilegiarem o conceito periferias
para abarcar as diferentes problemticas identificadas (Bonduki, 2001), no se
pode descartar a capacidade interpretativa do termo periferia quando utilizado
de modo operacional ou relacional, buscando fugir de generalizaes que o
empreguem como sinnimo de segregao espacial, social ou econmica.
Novamente segundo Frgoli Jr., torna-se necessrio pensar novas
perspectivas tericas e recortes analticos que ajudem a explicar no s a
produo socioespacial, mas tambm o processo que nela culminou, sem
desconsiderar, entretanto, a atuao de movimentos culturais juvenis como o
hip hop , que por meio de elaboraes estticas articulam uma espcie de
singularizao da periferia cuja novidade consiste na representao local ou
nativa, e no de fora para dentro (2005, p. 114).
H mais de vinte anos mesclando produo cultural e engajamento
poltico, os artistas ligados ao hip hop despertaram o interesse acadmico por
terem sido pioneiros em produzir, coletivamente, discursos sobre a periferia a
partir de interpretaes dos mecanismos de marginalidade social e imprimi-los
nas artes plsticas, na dana e na msica. Portanto, ao mesmo tempo em que
essa estetizao do espao e cotidiano perifricos resultou em um discurso
homogeneizante sobre prticas e problemas sociais que se traduziu na mximaperiferia periferia em qualquer lugar2, tambm trouxe tona certa viso
propositiva segundo a qual ser da periferia significa participar de um certo
ethos que inclui tanto uma capacidade para enfrentar as duras condies de
vida, quanto pertencer a redes de sociabilidade, a compartilhar certos gostos e
valores (Magnani, 2006, p. 39).
2 Expresso criada por GOG e popularizada em Braslia periferia que, posteriormente, foireproduzida por Mano Brown e Edy Rock, dos Racionais MCs, em outro rap intitulado Periferia periferia.
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2. O que h de novo nas periferias paulistanas?
Para alm do hip hop, desde o incio desde o final dos anos 1990
multiplicaram-se no espao urbano brasileiro diferentes artistas, movimentos e
grupos articulados em torno da periferia ou da favela, protagonizadas por
sujeitos jovens ou no, que relacionam sua atuao e produtos artsticos a tais
espaos e procuram explorar diferentes linguagens artsticas (como a msica, o
teatro, o cinema, as artes plsticas e a literatura). Ou ainda, tal como afirmam
Heloisa Buarque de Hollanda (2004) e Hermano Vianna (2006), dentre as
tendncias culturais emergentes na dcada de 2000 a afirmao das vozes da
periferia, com sua beleza, insero mercadolgica e alto poder agregador,destaca-se como principal fenmeno.
Hermano Vianna (2006) ressalta especialmente os mercados paralelos3
que proliferaram margem da indstria cultural oficial, tais como aqueles
articulados a partir de estilos musicais como o tecnobrega paraense, forr
amazonense, funk carioca ou lambado matogrossense. Segundo o autor, o
mercado de consumo cultural inventado por grupos autogestionrios alocados
em periferias constituiu-se como um fenmeno to significativo que permitedesmontar a rigidez da fronteira centro-periferia, assim como repensar a ideia de
incluso digital, cultural ou social.
Para Vianna, ao se falar de incluso tem-se como pressuposto que o
centro possui um tipo de cultura, tecnologia ou economia que falta periferia e
que esta, por sua vez, necessita ou almeja atingir o padro central. Nesta
perspectiva seriam desconsideradas todas as solues econmicas, novos
circuitos e produtos culturais que florescem nas regies perifricas e quedificilmente so acessadas pelos membros das classes mdias e altas,
tampouco esto disponveis nas rotas de consumo destes pblicos. Assim, de
acordo com o autor, por conta desta economia paralela que poderia at indicar
3 Um dos argumentos de Vianna (2006), no texto Paradas do sucesso perifrico, que asmsicas que mais animam as festas populares no so as que ocupam o topo das paradas desucesso das rdios comerciais, no so lanadas por artistas ligados a grandes gravadoras ouque aparecem em programas de televiso. So aquelas cujos intrpretes sobrevivem sem essesintermedirios (gravadoras, emissoras de TV e de rdio), viabilizando com o dinheiro ganho emshows a gravao de suas msicas em pequenos estdios e a impresso dos seus CDs, ouainda, contratando produtoras especializadas em gravar shows inteiros e para vend-los noformato de CDs-vdeo ou DVDs em cameldromos.
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caminhos para o chamado centro por oferecer alternativas s atuais crises do
mercado de msica e vdeos, no mais o centro que inclui a periferia. A
periferia agora inclui o centro. E o centro, excludo da festa, se transforma naperiferia da periferia (Op. cit., p.29).
Outros pesquisadores, como Antonia Gama Costa (2009), Israel Oliveira
(2007) e Silvia Ramos (2006), ressaltam a atuao de organizaes no-
governamentais do Rio de Janeiro que so geridas e voltadas para jovens
moradores de favelas e periferias, e inclusive ganharam projeo internacional,
como o Ns do Morro, o Afro Reggae e a CUFA. O Grupo Ns do Morro foi
fundado em 1986 e objetiva possibilitar o acesso arte e cultura, investindo na
formao nas reas de teatro e cinema para moradores das favelas e periferias
cariocas. O Grupo Cultural Afro Reggae foi constitudo em 1993, aps uma
chacina na favela de Vigrio Geral, e busca oferecer formao artstica e cultural
como alternativa ao cotidiano de violncia, atuando em quatro favelas do Rio de
Janeiro. J a CUFA (Central nica das Favelas), foi fundada pelo rapper MV Bill
e o produtor cultural Celso Athayde, em 1998, para operar como plo de
produo cultural, bem como de atividades de lazer, esportes e educao.
Em So Paulo, como analisei em minha pesquisa de mestrado4, a
conformao de uma cena cultural em bairros tidos como perifricos est
diretamente ligada s intervenes literrias e polticas de escritores
identificados com a chamada literatura marginal, pois foi a partir delas que se
potencializou a articulao de artistas que tomam a periferia como mote para
elaboraes estticas ou para uma atuao poltico-cultural.
A emergncia do movimento de literatura marginal dos escritores da
periferia ocorreu a partir do lanamento das trs edies especiais Caros
Amigos/ Literatura Marginal: a cultura da periferia, organizadas pelo escritor
Ferrz5 nos anos de 2001, 2002 e 2004. Reunindo, no total, 48 autores
4 Trata-se da pesquisa Literatura marginal: os escritores da periferia entram em cena,desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da USP entre os anos de2004 e 2006. A ntegra da dissertao encontra-se disponvel nos sites www.edicoestoro.net ewww.teses.usp.br Alm disso, uma verso revisada do trabalho ser publicada no livro Vozesmarginais na literatura, no prelo.5
O escritor Ferrz projetou-se nacionalmente com Capo Pecado, um romance baseado nassuas experincias sociais como morador de um bairro tido como perifrico e bastante associado violncia, o Capo Redondo, localizado na Zona Sul de So Paulo. Com o sucesso alcanado
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(majoritariamente residentes em So Paulo) e 80 textos (entre crnicas, contos,
poemas e letras de rap), esses trs nmeros especiais reportavam o leitor, por
meio dos editoriais, textos e minicurrculos dos participantes, a um novoconjunto de autores brasileiros que estava se apropriando do termo marginal
para classificar a sua condio de escritor ou a sua produo. Trata-se de
escritores oriundos das classes populares e moradores das periferias urbanas
para os quais a associao do termo marginal literatura remete, igualmente,
situao de marginalidade social, editorial ou jurdica vivenciada pelo autor e a
uma produo literria que visa expressar o que peculiar aos espaos e
sujeitos tidos como marginais/marginalizados (Nascimento, 2006).
Um dos argumentos desenvolvidos na referida pesquisa que tais
escritores esto orientados pelo projeto intelectual comum de dar voz ao seu
grupo social de origem, atravs de relatos dos problemas que os acomete em
textos literrios, e de conferir nova significao periferia, por meio da
valorizao da cultura de tal espao. Esta noo de cultura da periferia
englobaria tanto a ideia de um conjunto simblico prprio dos membros das
camadas populares que habitam em bairros da periferia urbana quanto alguns
produtos e movimentos artstico-culturais por eles protagonizados.
A cultura da periferia seria, ento, a juno do modo de vida,
comportamentos coletivos, valores, prticas, linguajares e vestimentas dos
membros das classes populares situados nos bairros tidos como perifricos. E
dela ainda fazem parte manifestaes artsticas especficas, como as
expresses do hip hop (break, rap e grafite) e a literatura marginal-perifrica,
que reproduziriam tal cultura no plano artstico no apenas por retratarem suas
singularidades, mas por serem resultados da manipulao dos cdigos culturaisperifricos (como a linguagem com regras prprias de concordncia verbal e uso
do plural, as grias especficas, os neologismos, etc.) (Nascimento, 2006).
pelo livro, Ferrz foi convidado a atuar como colunista da revista Caros Amigose aproveitou-sedesta oportunidade para viabilizar seu projeto de literatura marginal em revista. As trs ediessomaram 15 mil exemplares vendidos e, a partir de ento, a designao literatura perifrica ouliteratura da periferia passou a ser utilizada como sinnimo de literatura marginal pelosprprios escritores que participaram das referidas edies especiais e tambm por jornalistas(Nascimento, 2006).
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Sob um vis antropolgico, essa noo de cultura da periferia pode ser
vista como um conjunto de produes simblicas e materiais que produzido e
reproduzido constantemente, por meio do qual se organizam formas desociabilidade, modos de sentir e pensar o mundo, valores, identidades, prticas
sociais, comportamentos coletivos, etc.; e que caracteriza o estilo de vida dos
membros das classes populares que habitam em bairros perifricos6.
Outra considerao apresentada em meu trabalho de mestrado diz
respeito s intervenes pragmticas dos escritores perifricos que visam
estimular a produo, o consumo e a circulao de produtos culturais nas
periferias paulistanas. Exemplos disto so o autodenominado movimento
cultural 1daSul (Somos todos um pela dignidade da Zona Sul), criado por
Ferrz em 1999 para promover atividades artsticas e criar bibliotecas
comunitrias no distrito do Capo Redondo; e a Cooperifa(Cooperativa Cultural
da Periferia), idealizada pelos poetas Srgio Vaz e Marcos Pezo e que tem
como principal atrativo a promoo de saraus semanais em um boteco
localizado na Zona Sul paulistana. Tambm merece destaque o Projeto
Literatura no Brasil, organizado pelo escritor Sacolinha em 2001, que teve como
propsitos iniciais a divulgao da produo literria de escritores perifricos e a
promoo da leitura no municpio de Suzano, na regio metropolitana
(Nascimento, 2006).
Sobre o contexto paulistano, vale ponderar que, nos ltimos anos,
diferentes grupos e movimentos ligados ao cinema, teatro e dana tambm
passaram a se associar a uma ideia de periferia e de cultura perifrica.
Tomando como exemplo somente nos grupos que atuam na Zona Sul
paulistana7, pode-se destacar na rea de cinema o autodenominado coletivo de
6 No se deve ignorar, contudo, que tais elaboraes sobre cultura devem ser problematizadas,pois pressupem um grau de isolamento muito grande dos moradores das periferias urbanas eimplicam aspecto valorativo imbricado na defesa de uma cultura perifrica autntica. Mesmoporque as elaboraes de discursos e imagens sobre a periferia ou do que seria a sua culturapeculiar no so premissas de sujeitos que relacionam seus produtos artsticos a tal espao,tampouco so produzidas sem que haja conexes com diferentes classes sociais ourepresentantes ligados ao centro (geogrfico, de produo cultural, de poder poltico, etc.).7 O mapeamento de artistas, bem como de grupos, movimentos e coletivos culturais,identificados e atuantes na periferia da Zona Sul paulistana est sendo desenvolvido para aminha pesquisa de doutorado intitulada Nis ponte e atravessa qualquer rio: produo,circulao e consumo cultural na periferia paulistana.
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produo de mdia NCA (Ncleo de Comunicao Alternativa), focado na
produo de vdeo, oficinas de produo, exibies e distribuies de trabalhos
independentes em audiovisual; e o Cinebecos, um coletivo que realizaexibies peridicas e itinerantes pelos becos, vielas, escades e bares8. No
que se refere ao teatro, despontam as aes da Brava Cia, companhia que se
dedica s apresentaes de rua e a oferecer cursos e oficinas teatrais gratuitos,
e que, recentemente, props-se a coordenar as atividades de teatro em um
espao pblico da Zona Sul9; e da Capulanas Cia Negra de Teatro, cuja
proposta explorar variadas linguagens artsticas em espetculos que possam
contribuir tanto para difundir a cultura popular quanto para valorizar a imagem
da mulher negra.
Na literatura, outro exemplo bastante significativo advm da consolidao
do selo Edies Tor, organizado pelo escritor Allan da Rosa. Desde que o selo
foi criado, em 2005, foram lanados dezesseis livros exclusivamente de autores
que moram e atuam nas periferias. Com uma tiragem mdia de 600 exemplares,
a Tor atingiu at meados de 2009, segundo seu organizador, pouco mais de
sete mil livros vendidos (custando entre R$ 10,00 e R$ 15,00). Algo a ser
considerado um sucesso editorial nas periferias paulistanas, visto que so os
prprios autores os responsveis por vender suas obras e que estes o fazem em
diferentes espaos de consumo cultural perifricos.
interessante registrar que, nesse processo de construo da cultura da
periferia, diferentes manifestaes artsticas antes associadas s chamadas
cultura negra ou afrobrasileira so tambm abarcadas. Como por exemplo, as
rodas de samba Comunidade Samba da Velae Projeto Sociocultural Pagode da
27, ambos voltados para a revelao de novos compositores da Zona Sul
8 Segundo os releasesdos coletivos disponveis em Vdeo popular: uma forma que pensa, de2008. Esta publicao foi financiada pelo VAI (Programa de Valorizao das Iniciativas Culturaisda Prefeitura Municipal de So Paulo), alm de textos autorais de ativistas envolvidos com aproduo e exibio de vdeo popular, so apresentados releases de dezessete coletivos devdeo e cinema localizados em diferentes regies da capital paulista, fruto de um mapeamentorealizado pelo prprio NCA.9 Fao referncia aqui ao Sacolo das Artes, localizado no mesmo prdio onde funcionava oantigo sacolo municipal de comercializao de verduras, legumes e frutas, no Parque SantoAntnio, bairro da Zona Sul de So Paulo. Desde agosto de 2007, moradores, lideranas locaise grupos artsticos da regio mobilizaram-se para ocupar o espao e promover atividadessocioculturais e esportivas. Desde maio de 2009, no entanto, o espao encontra-se interditadopor ordens da Subprefeitura de MBoi Mirim, responsvel por sua manuteno.
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paulistana e o resgate de sambistas da chamada velha guarda. Ou ainda, o
Instituto Umoja, dedicado pesquisa das linguagens artsticas da cultura
abrobrasileira e das discusses tericas sobre a questo racial negra; o Grupode CulturaAfrobrasileira Esprito de Zumbi, que oferece gratuitamente oficinas
de capoeira, percusso e dana afro e que tem como principal vitrine de suas
aes o Panelafro, um evento mensal que mescla performances de dana e
msica, privilegiando manifestaes folclricas, maracatu, cco, samba de roda
e capoeira.
Juntamente com outros artistas e coletivos, todas essas iniciativas
perifricas paulistanas acima citadas reuniram-se em uma mostra cultural
coletiva intitulada Semana de Arte Moderna da Periferia e realizada em
novembro de 2007. Promovida pela Cooperifa oitenta e cinco anos depois dos
eventos que marcariam a histria cultural brasileira, a Semana de 2007, contou
com a participao de cerca de 300 artistas e coletivos das reas de literatura,
teatro, dana, msica e cinema, de acordo com seus organizadores.
Mais do que uma referncia Semana de 1922, tratava-se de um
contraponto a vrios momentos do modernismo brasileiro que se manifestou na
escolha do ttulo do evento, na pardia ao cartaz da semana modernista, na
apropriao do conceito de antropofagia e na publicao do Manifesto da
Antropofagia Perifrica. Pode-se considerar que, em grande medida, isso se
deve influncia que tal movimento artstico-cultural ainda exerce sob os
padres estticos estabelecidos, mas se relaciona, sobretudo,
intencionalidade de colocar os produtos e atuao dos artistas da periferia em
contraste com um marco simblico de certa elite cultural do pas.
Como se tratava de se acentuar os contrastes com relao Semana de1922, os primeiros aspectos que merecem ser destacados so facetas do perfil
sociolgico dos artistas envolvidos: nem todos tm a arte como profisso, so
originrios das classes populares, moram ou tm sua base de atuao ou a
sede de seus grupos em bairros da periferia. expressiva, ainda, a escolha dos
locais onde aconteceriam as atividades da Semana de 2007: um terminal de
nibus, centros comunitrios e unidades escolares. Todos situados na periferia
da Zona Sul e distantes do centro geogrfico e cultural paulistano, visando
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atingir os moradores dessa regio e tambm provocar o deslocamento do
pblico de diferentes regies.
Do meu ponto de vista, a Semana de Arte Moderna da Periferia pode serapreendida como um evento galvanizador da movimentao cultural que vem
sendo desenvolvida desde o final dos anos 1990 nas periferias paulistanas e
que tem como protagonistas artistas comprometidos com as populaes
perifricas ou cujos trabalhos tomam uma ideia de periferia como alvo de suas
formalizaes estticas no raro que ambos os aspectos estejam combinados.
Especificamente em So Paulo, os artistas, movimentos, grupos e
coletivos perifricos encontraram como importante espao de divulgao a
Agenda Cultural da Periferia, uma publicao mensal produzida pelo Espao de
Cultura e Mobilizao Social da ONG Ao Educativa10, e que veicula
exclusivamente eventos promovidos em bairros tidos como perifricos na
Grande So Paulo ou as apresentaes de artistas da periferia no centro
paulistano. Com tiragem de 10.000 exemplares e estratgia de distribuio que
privilegia os bairros onde acontecero os eventos divulgados, a Agenda est
organizada pelas sees hip hop, samba, grafite, literatura, cinema e
vdeo, teatro, outras cenas e periferia no centro. Publicada pela primeira
vez em maio de 2007, esta Agenda divulgou, nos seus primeiros doze nmeros,
868 eventos, tendo sido 643 deles realizados na capital e 225 na Grande So
Paulo. No que diz respeito s atividades promovidas, as rodas de comunidade e
eventos samba aconteceram em maior nmero (263), seguida por eventos de
literatura, como saraus e lanamento de livros (177); shows e debates
promovidos pelo movimento hip hop (133); exibies de cinema e vdeo (81);
apresentaes musicais (57); teatro (52) e atividades ligadas ao grafite (21),entre outros11.
Creio que os variados exemplos citados at aqui podem indicar a
incipincia de um campo temtico e pouco explorado por pesquisadores, mas
com promissores rendimentos para reflexes que busquem articular cultura e
10 A Ao Educativa uma associao civil de direito privado sem fins lucrativos ou econmicoscriada em 1994 na cidade de So Paulo com o objetivo de atuar na promoo de direitoseducativos e da juventude.
11 A sistematizao dos dados apresentados na Agenda Cultural da Periferiatambm integra osesforos de investigao da minha j referida pesquisa de doutorado.
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poltica na cena urbana. O que estou sugerindo que, tal como a abordagem
dos movimentos sociais tornou-se significativa para a compreenso do tema da
periferia nos anos 1970 e 1980, principalmente para certa tradioantropolgica, a movimentao cultural empreendida por artistas perifricos
pode ser estratgica para as anlises atuais.
3. Novo contexto emprico, possveis rendimentos tericos
Quais sero os rendimentos tericos que essas aes culturaisorganizadas por artistas perifricos produzem? Creio que preciso ter cautela
para se elaborar interpretaes abrangentes partir de universos empricos
especficos, pois h diferenas significativas de contextos de produo cultural.
Como se tentou demonstrar, alguns estudiosos indicam que h, em diferentes
cidades brasileiras, uma efervescncia de iniciativas que integra esse processo
mais geral de reconhecimento pblico da produo artstica das periferias e
favelas. Mas, particularmente, tenho estreitado contato, por meio da pesquisaque estou desenvolvendo e da leitura de outras monografias, com grupos,
movimentos e empreendimentos culturais situados nas cidades de So Paulo e
Rio de Janeiro.
Tomando como exemplo, ento, essas iniciativas coletivas paulistas e
cariocas, um primeiro ponto a ser notado a polissemia de termos nativos para
nomear cada atuao: so autodefinidos movimentos e grupos culturais,
projetos socioculturais, organizaes no-governamentais e at mesmomovimentos sociais urbanos. Evidentemente, esses termos j se apresentam
como boas pistas para a investigao das reflexes micas sobre cultura e
poltica, mas relacionado a isso tambm est uma variedade prticas, princpios
e discursos que guarda estreita ligao com os contextos sociopolticos desses
estados e dos espaos sociais onde essas iniciativas criaram suas bases12.
12 Para ilustrar este argumento, considero importante anotar alguns dados referentes a duas
iniciativas cariocas que se tornaram verdadeiros empreendimentos sociais. O Afro Reggae, almde estabelecer parcerias com a grande mdia e ter padrinhos famosos como Regina Cas eCaetano Veloso, administra cerca de 60 projetos e somente em 2006 movimentou 5 milhes de
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Para efeitos de anlise, ao menos os autondenominados coletivos,
movimentos e grupos culturais que tenho acompanhado nas periferias de So
Paulo podem ser analisados como projetos de ao cultural. Com isso, nopretendo homogeneizar categorias nativas, que julgo necessrio investigar em
cada caso estudado, mas chamar a ateno para o fato de que, embora sejam
aes culturais de carter coletivo, cuja finalidade transformar (mesmo que
simbolicamente) o espao social onde esto sediadas e a vida dos sujeitos com
menos acesso a oportunidades educacionais, profissionais e culturais, so
tambm projetos pessoais13 de seus idealizadores. E, desta maneira, esto
intrinsecamente ligados s suas trajetrias pessoais, de militncia social, redes
de contatos, etc.
Os artistas perifricos que protagonizam projetos de ao cultural tambm
merecem destaque porque, na atual conjuntura de mltiplos discursos sobre
periferia e o que seria sua cultura especfica, eles so atores do espao e da
cultura que esto esforando-se para construir. Tem-se, assim, a possibilidade
de se explorar um vasto campo de formulaes nativas que podem apontar
heterogeneidades, consensos ou disputas entre os diferentes artistas da
periferia, ou ainda, sinalizar semelhanas e continuidades com outras
elaboraes formuladas no mbito da academia, imprensa, televiso, campo
cultural, etc.
Com isso, quero chamar ateno para o fato de que, desde que os
protagonistas de iniciativas culturais perifricas emergiram, certa produo
televisiva e cinematogrfica, por exemplo, tambm vem se apropriando da
esttica, das peculiaridades do cotidiano e dos temas associados s periferias e
reais (Platt e Neate, 2008). A CUFA, que se define como um movimento social urbanoe atuaem todas as unidades federativas, responsvel por 65 projetos das mais diversas naturezas:pedaggicos, de capacitao profissional (vendas, gastronomia, hotelaria, serigrafia e produocultural), bem como oficinas de informtica, esporte, msica, breakdance, graffiti, teatro,audiovisual e outras (Costa, 2009).13 Nos termos de Gilberto Velho (2000), projetos colocam em evidncia a capacidade deindividual de planejar um futuro para si ou para coletivos. por meio do projeto que osindivduos do sentido s suas experincias fragmentadas e organizam seus interesses parainteragir em sociedade. Todo projeto, contudo, delimitado por deliberaes e escolhasdisponveis no quadro sociocultural em que est situado, bem como por um campo depossibilidades com limites nem sempre evidentes.
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favelas (como a pobreza, a violncia, as prticas sociais, etc.)14. Alm disso,
como se tentou assinalar na primeira parte deste trabalho, o tema das periferias
urbanas atrai o interesse dos pesquisadores brasileiros desde os anos 1970.Sendo assim, outra pergunta que se torna chave : como e por que
artistas e projetos coletivos de ao cultural assumiram como principal
caracterstica o papel de produtores e amplificadores da cultura da periferia? A
resposta parece indicar que em meio aos mltiplos discursos sobre a periferia,
esses sujeitos individuais e coletivos articularam uma nova diferena15,
passando a significar seus produtos e atuaes manipulados na periferiacomo
culturaou arteda periferia.
Por um lado, isso significa dizer que esses artistas perifricos se
constituram como sujeitos polticos portadores das demandas dos habitantes
dos bairros tidos como perifricos. E, por outro, que suas iniciativas de ao
cultural resultaram no apenas em modos especficos de se produzir, fazer
circular e consumir cultura (por meio de publicaes de livros coletivas,
organizao de saraus, bibliotecas comunitrias, etc.), mas em discursos,
demandas e prticas coletivas que se relacionam tambm com as esferas de
produo (pois reivindicam e usufruem financiamentos pblicos); de circulao
(dado que demandam equipamentos em bairros tidos como perifricos ou
ocupam espaos privados para transform-los em centros culturais); e de
consumo (no intuito de beneficiar a populao dos bairros onde so atuantes).
14
Pode-se citar os filmes O invasor (Beto Brant, 2001), Cidade de Deus (Fernando Meirelles,2002) e Antnia (Tata Amaral, 2006), ou ainda, os programas de televiso Turma do Gueto(Rede Record, 2002), Central da Periferia (Rede Globo, 2006) e Manos e Minas (TV Cultura,2008).15 Este argumento baseado nas contribuies de autores ps-coloniais, como Stuart Hall, paraquem o perodo ps-colonial marcado pela proliferao da diferena, dada a nova estrutura deglobalizao e de reformulao da modernidade, cujo centro est nas periferias dispersas pelomundo. neste contexto que o autor se debrua sobre a administrao dos problemas dadiversidade gerados pelas sociedades multiculturais, direcionando seus estudos s questes deidentidade e sujeito. O interesse de Hall volta-se, entre outros aspectos, para estratgiasculturais que produzem diferenas e deslocam as disposies de poder, como movimentos emtorno da valorizao da identidade ou da cultura negra frente ao racismo. Avalio que a leitura deHall sobre a idia de cultura negra, como representao de tradies e comunidades negrasque se manifestam na cultura popular, rentvel, por exemplo, para refletir sobre o valorestratgico de elaborao de uma cultura da periferia.
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Tenho como hiptese que esses sujeitos vm ganhando espao na cena
poltica ao apresentar questes e demandas que se sofisticaram com relao
quelas comumente associadas aos moradores de periferias, uma vez quepassam a privilegiar em suas reivindicaes questes relacionadas fruio
cultural. Ao mesmo tempo, avalio que, ao produzir a prpria imagem por meio de
produtos artsticos, ou falar com voz prpria, os artistas perifricos,
principalmente aqueles organizados coletivamente, tornaram-se sujeitos de
discursos sobre periferia e sua cultura singular.
Assim, mais um aspecto que merece ser destacado o papel
desempenhado pelas diferentes aes culturais perifricas nesse processo mais
geral de reconhecimento de que a periferia ou a favela seja tambm um lugar
onde se produz e consome cultura. Mesmo que seja preciso considerar que as
noes de periferia e cultura esto sendo constantemente construdas e por
isso so passveis de tenses, negociaes e contradies , a ideia de cultura
da periferia elaborada e manifestada em produtos e discursos de artistas
perifricos instiga a reflexo sobre uma produo do espao que substancializa
uma formulao de cultura, que ora aparece como sinnimo de produo
artstica, ora abrange tambm prticas cotidianas. Neste sentido, a chave
mobilizada para representar a periferia se d por meio da cultura, ou mais
frequentemente, por uma produo artstica que se pretende singular.
Finalmente, vale comentar que esta reflexo sobre periferia e sua cultura
singular forjadas por artistas perifricos remete s relaes entre cultura e
poltica que no se restringem s formulaes de movimentos sociais, mas se
estendem para a produo artstico-cultural. Pois necessrio ponderar que os
artistas da periferia esto edificando uma atuao poltico-cultural voltada para oincentivo produo e consumo de bens culturais e se colocam como porta-
vozes dos moradores da periferia no plano cultural. E, neste sentido, tem valor
estratgico o posicionamento de certos artistas como representantes da
periferia no campo cultural, defensores de uma cultura especfica e
amplificadores identidades coletivas, cujos vnculos com tal espao tm tambm
carter positivo.
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