UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MARIA NAZARETH DE LIMA
O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da
significação
JOÃO PESSOA
2007
MARIA NAZARETH DE LIMA
O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da
significação
Dissertação elaborada por Maria Nazareth de Lima e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semióticas verbais e sincréticas, com vistas à obtenção do grau de mestre em Letras.
Orientadora: Professora Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista.
JOÃO PESSOA
2007
L 732 c LIMA, Maria Nazareth de. O conto na literatura popular: percurso gerativo da Significação / Maria Nazareth de Lima. – João Pessoa, 2007. 199 p.: il. Orientadora: Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista. Dissertação (mestrado) – UFPB/CCHLA 1. Semiótica. 2. Conto popular. 3. Ideologia. UFPB/BC CDU: 801.54 (043)
MARIA NAZARETH DE LIMA
O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da
significação
Dissertação elaborada por Maria Nazareth de Lima e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semióticas verbais e sincréticas, com vistas à obtenção do grau de mestre em Letras.
Aprovada em 10 de dezembro de 2007.
Banca Examinadora
______________________________________________________ Professora Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista - UFPB
Orientadora
______________________________________________________ Professora. Dra. Maria do Socorro Silva Aragão – UFPB/UFCG
Examinadora
______________________________________________________ Professor Dr. Luciano Barbosa Justino – UEPB
Examinador
A meus pais, por me permitirem a vida e me oportunizarem o saber, encantando-se com os vôos, mesmo que rasantes, de cada uma de suas águias, dedico.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus, Força maior do Universo, que me rega de otimismo, prudência e persistência à intelectualidade acadêmica.
À minha família que, embora distante geograficamente, está presente espiritualmente pelas orações de proteção.
A Renato Mota pelo entusiasmo e paciência com que tantas vezes suavizou os obstáculos.
Às professoras Maria do Socorro Aragão e Zélia Monteiro Bora pelas sugestões valiosas, dadas no Exame de Qualificação, que ampliaram meu estudo.
Aos professores da Banca Examinadora de Defesa, por terem aceitado o convite para analisar
e opinar sobre os conceitos e idéias levantados nesta dissertação.
À coordenadora do curso de Pós-Graduação Liane Schneider, pela atenção que me dispensa sempre e pelo espírito de justiça em favor do direito dos alunos.
À amiga professora Joana Áurea, por acreditar na minha capacidade e promover o intercâmbio com a orientadora.
A Seu Álvaro Batista pelas atitudes prestativas e pelo carisma com que sempre me recebeu em sua casa.
A Antonio Fernandes e Elzimar, pelo espaço profissional que me permitiram aberto, entendendo as ausências.
Às amigas Iredja Regina e Cristina Suassuna, pela amizade, incentivo e apoio constantes.
A Socorro Cavalcante, companheira de curso, pela presença e cumplicidade constantes durante o curso.
Aos colegas e professores que dividiram comigo a intensa caminhada do mestrado.
Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a conclusão deste trabalho.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À minha orientadora
Professora Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista,
pela honestidade, seriedade e capacidade com que exerce sua profissão, pela dedicação e cuidado para com seus orientandos, permitindo a estes, além de um espaço acadêmico, um espaço familiar. E agradeço, em particular, por acreditar, mesmo sem conhecer, que eu seria capaz de atender suas expectativas enquanto orientadora. Assim, com verdadeiro afeto, meus agradecimentos.
HOMENAGEM
Ao professor
Braulio do Nascimento
Pelo sorriso acolhedor
Pela paz do olhar
Pela mansidão da voz
Pelo aperto de mão salutar
E, sobretudo por se encantar pelo contar,
E acolher outros “encantados”
No conto
Pelo conto.
Deixa ao menos que teu olhar pouse sobre minha nudez,
Já que abriste a porta e agora vês
minha casa...
Mas quando saíres,
Não te esqueças dos olhos
Porque o que desejo é somente o olhar,
Esse sim,
Toca-me.
Graciele de Lima
RESUMO Lidando com conteúdos da sabedoria popular, repletos de um profundo humanismo, os contos populares são importantes para os estudos antropoculturais. É nessa literatura que cada leitor se identifica com o amor, os medos, as dificuldades de ser criança, as carências (materiais e afetivas), as autodescobertas, as perdas, as buscas, as sansões, a solidão e os encontros e desencontros que povoam seu mundo real e até mesmo o fantasioso, fazendo sentido na realidade viva do cotidiano. Selecionou-se um corpus composto de aspectos caracterizadores de uma micro-estrutura, a família e uma macro-estrutura, a sociedade. Esses aspectos, revestidos do imaginário popular, engendram verdades, ao mesmo tempo, subjetivas e culturais, denunciadoras de valores que se (re)constroem através do (re)contar. Partindo da hipótese de que os contos populares apresentam valores que não caracterizam o universo infantil, procurou-se, como objetivo primeiro deste trabalho, analisá-los numa perspectiva semiótica, a fim de descobrir os microssistemas de valores instaurados nos discursos e capazes de comprovar a hipótese levantada. Para tanto, foram analisadas duas variantes de três tipos de contos populares O Fiel João, Fernando o verdadeiro e Fernando o falso e A Mais Bonita. As versões foram extraídas das coletâneas publicadas em 1995: por Pimentel e Maia (Estórias de Luiza Tereza, levantadas em Guarabira) e por Maia (Contos Populares da Paraíba, levantadas em Catolé do Rocha). Seguiu-se uma trilha metodológica constituída dos seguintes passos: realização de um estudo preliminar sobre o conto popular considerando estrutura, motivos, classificação, tipologia e identificação em obras universais; estudos teóricos sobre a semiótica; e análise do percurso gerativo da significação de cada versão dos contos referidos. Na narrativização, observaram-se as relações estabelecidas entre os sujeitos e seus objetos de valor, bem como as modalizações que os instauram. Na discursivização, foram destacadas as relações intersubjetivas e espaço-temporais de enunciação e enunciado, bem como as hipóteses levantadas pelos sujeitos sobre o universo a seu redor. Na semântica profunda, observaram-se a ideologia e sistemas de valores sustentados pelos discursos e distribuídos em relações de oposição, implicação e contraditoriedade. Nos três contos analisados, os protagonistas são rapazes de origem humilde, cujos valores são: a vida, a amizade, aventuras e sabedoria. São heróis, revestidos de qualidades excepcionais, que refletem as ideologias apreciadas pelo povo, mas que no fundo, foram criações das estruturas de dominação, com intuito de construir modelos ideais, a serem seguidos para facilitar o seu trabalho. Das análises fluíram temas como: morte, vida, separação, união, passividade, atividade, opressão, liberdade, felicidade, caridade, religiosidade, sabedoria, riqueza, pobreza, esperteza, família. Além dos temas, destacam-se os conflitos: bem versus mal; ser versus parecer; dominante versus dominado; ativo versus passivo; conhecimento versus ignorância; conhecimento de Deus versus conhecimento de mundo; riqueza versus pobreza. Assim, é caracterizado como recurso didático, moral e exemplar, embora abra espaço para o irreal, o impossível, o mito, a fim de atrair, principalmente, o olhar infantil.
Palavras-chave: Semiótica. Conto Popular. Ideologia.
RESUMEN Trabajando con los contenidos de la sabiduría popular, repletos de un humanismo profundo, los cuentos populares son importantes para los estudios antropológicos y culturales. Es en esa literatura que cada lector se identifica con el amor, los miedos, las dificultades de ser niño, las faltas (materiales y afectivas), las auto descubiertas, las pérdidas, las búsquedas, las sanciones, la soledad y los encuentros y desencuentros que pueblan su mundo real e incluso el imaginativo, haciendo sentido en la realidad viva del cotidiano. Se seleccionó un corpus compuesto de aspectos caracterizadores de una micro-estructura, la familia y una macro-estructura, la sociedad. Esos aspectos, revestidos de lo imaginario popular, engendran verdades tanto subjetivas como culturales, denunciadoras de valores que se (re)construyen a través del (re)contar. Partiendo de la hipótesis que los cuentos populares presentan valores que no caracterizan el universo infantil, se buscó, como primer objetivo de este trabajo, analizarlos en una perspectiva de la semiótica, con la finalidad de descubrir los microsistemas de valores establecidos en los discursos, capaces de comprobar las hipótesis presentadas. Para tanto, fueron analizadas dos variantes de tres tipos de cuentos populares O fiel João, Fernando o verdadeiro e Fernando o falso e A Mais Bonita. Las versiones se extrajeron de las colecciones publicadas en 1995: por Pimentel y Maia (las Historias de Luiza Tereza, levantadas en Guarabira) y por Maia (Cuentos populares de la Paraíba, levantadas en Catolé do Rocha). Se siguió un sendero metodológico constituido por los siguientes pasos: un estudio preliminar acerca del cuento popular considerando estructura, razones, clasificación, tipología e identificación en obras universales; estudios teóricos acerca de la semiótica; y análisis del recorrido generador de la significación de cada versión de los cuentos referidos. En la narrativización, se observó las relaciones establecidas entre los sujetos y sus objetos de valor, como también las modalizaciones que los establecen. En la discursivización, se destacaron las relaciones inter-subjetivas y los espacios-temporales de la enunciación y del enunciado, así como las hipótesis levantadas por sujetos acerca del universo que lo rodea. En la semántica profunda, se observaron la ideología y los sistemas de valores sostenidos por los discursos y distribuidos en las relaciones de oposición, implicación y contradicción. En los tres cuentos analizados, los protagonistas son muchachos de origen humilde que tienen por valores: la vida, la amistad, la aventura y la sabiduría. Son héroes revestidos de cualidades excepcionales que reflejan las ideologías valoradas por el pueblo, pero que en el fondo, fueron creaciones de las estructuras de dominación con el objetivo de construir modelos ideales a ser seguidos para facilitar su trabajo. De las análisis fueron extraídos temas como: la muerte, la vida, la separación, la unión, la pasividad, la actividad, la opresión, la libertad, la felicidad, la caridad, la religiosidad, la sabiduría, la riqueza, la pobreza, la habilidad, la familia. Además de los temas, se destacaron los conflictos: el bien versus el mal; el ser versus el parecer; el dominante versus el dominado; lo activo versus lo pasivo; el conocimiento versus la ignorancia; el conocimiento de Dios versus el conocimiento de mundo; la riqueza versus la pobreza. De esta forma, se caracteriza como recurso didáctico, moral y ejemplar, aunque abra espacio para lo irreal, el imposible, el mito, con el fin de atraer, principalmente, la mirada infantil. Palabras-clave: Semiótica. Cuento Popular. Ideología.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13 1 EMBASAMENTO TEÓRICO...........................................................................................17 1.1 O SIGNO: de Platão a Peirce..................................................................................17 1.2 O SIGNO LINGÜÍSTICO..................................................................................................22 1.3 DA SIGNIFICAÇÃO..........................................................................................................24 1.3.1 Estrutura Fundamental.................................................................................................26 1.3.2 Estruturas Narrativas....................................................................................................28 1.3.3 Estruturas Discursivas...................................................................................................34 2 PREPARANDO O CORPUS..............................................................................................43 2.1 O CONTO POPULAR: conceito e estrutura.....................................................43 2.2 LEVANTAMENTO E AMOSTRAGEM..........................................................................46 2.3 TIPOLOGIA DO CONTO POPULAR ANALISADO......................................................47 2.3.1 O Fiel João......................................................................................................................47 2.3.2 Fernando o verdadeiro e Fernando o falso...................................................................51 2.3.3 A Mais Bonita.................................................................................................................55 3 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS VERSÕES DOS CONTOS POPULARES....................58 3.1 O FIEL JOÃO.....................................................................................................................58 3.1.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação.......................................58 3.1.2 Estruturas Narrativas....................................................................................................62 3.1.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1..............................................................................62 3.1.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2..............................................................................64 3.1.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3..............................................................................66 3.1.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4..............................................................................67 3.1.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5..............................................................................69 3.1.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6..............................................................................71 3.1.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7..............................................................................73 3.1.2.8 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto O Fiel João.............................75 3.1.3 Estruturas Discursivas...................................................................................................77 3.1.3.1 Relações intersubjetivas................................................................................................77 3.1.3.2 Temas e figuras.............................................................................................................90 3.1.3.3 Leituras temáticas.........................................................................................................93 3.1.4 Estrutura Fundamental.................................................................................................94 3.2 FERNANDO O VERDADEIRO E FERNANDO O FALSO...............................................100 3.2.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação........................................100 3.2.2 Estruturas Narrativas....................................................................................................103 3.2.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1.............................................................................103 3.2.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2............................................................................104 3.2.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3............................................................................106 3.2.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4............................................................................107
3.2.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5............................................................................109 3.2.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6............................................................................110 3.2.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7............................................................................111 3.2.2.8 A propósito do Sujeito Semiótico 8............................................................................112 3.2.2.9 A propósito do Sujeito Semiótico 9............................................................................114 3.2.2.10 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto Fernando o verdadeiro e
Fernando o falso...................................................................................................115 3.2.3 Estruturas Discursivas.................................................................................................117 3.2.3.1 Relações intersubjetivas..............................................................................................117 3.2.3.2 Temas e figuras...........................................................................................................126 3.2.3.3 Leituras temáticas.......................................................................................................128 3.2.4 Estrutural Fundamental..............................................................................................128 3.3 A MAIS BONITA...............................................................................................................134 3.3.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação.....................................134 3.3.2 Estruturas Narrativas..................................................................................................136 3.3.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1............................................................................136 3.3.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2............................................................................138 3.3.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3............................................................................139 3.3.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4............................................................................140 3.3.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5............................................................................142 3.3.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6............................................................................143 3.3.2.7 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto A Mais Bonita.......................145 3.3.3 Estruturas Discursivas.................................................................................................147 3.3.3.1 Relações intersubjetivas..............................................................................................147 3.3.3.2 Temas e figuras...........................................................................................................153 3.3.3.3 Leituras temáticas.......................................................................................................156 3.3.4 Estrutural Fundamental..............................................................................................156 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................165 REFERÊNCIAS....................................................................................................................168 ANEXOS................................................................................................................................176 ANEXO A - Va– O Príncipe e o Marcôndio...........................................................................177 ANEXO B - Vb– Pedra mármore............................................................................................181 ANEXO C - Va– A Princesa da Pedra Fina............................................................................186 ANEXO D - Vb– Princesa da Pedra Fina................................................................................189 ANEXO E - Va– O filho do rico e o filho do pobre................................................................193 ANEXO F - Vb– O compadre rico e o compadre pobre.........................................................196
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INTRODUÇÃO
As manifestações populares de qualquer natureza são fontes inesgotáveis das riquezas
culturais da prática humana. Guardadas na memória e repetidas durante séculos são recebidas
pelos enunciatários “recheadas” de verdades universais, ao mesmo tempo em que se
apresentam numa roupagem fictícia fruto de uma criatividade que não tem fim.
Sob o ponto de vista antropológico, as narrativas populares, não importando o gênero,
constituem a dimensão fundamental da linguagem do homem em que figura o modo de
apropriação do mundo, na sua diversidade sócio-econômica-cultural.
A literatura dos contos infantis funciona, em muitos casos, como um dos instrumentos
de manipulação da criança quando, retratando o mundo adulto, bloqueia ou censura a ação
dos personagens infantis, seja pela veiculação dos valores da sociedade vigente, seja pela
linguagem empregada. Tendo como arquétipos narrativas consagradas pelo público de
diferentes épocas, por terem vencido tantos outros gêneros de concorrência, os contos são
considerados o paradigma de maior significação entre os textos destinados à criança.
A fantasia é um recurso sempre presente nesses contos. Com esse elemento há forte
atração, verdadeiro apelo para o universo da leitura. E a criança é o convidado especial. São
palavras, sons, imagens não-verbais que se interdinamizam na tentativa de provocar, fazer o
ouvinte sujeito. E aqui está a necessidade de se entender o uso de certos elementos
integradores dos contos, em especial, dos contos na Literatura Popular.
Lidando com conteúdos da sabedoria popular, repletos de um profundo humanismo, os
contos populares são importantes para os estudos antropoculturais. É nessa literatura que cada
leitor se identifica com o amor, os medos, as dificuldades de ser criança, as carências
(materiais e afetivas), as autodescobertas, as perdas, as buscas, as sansões, a solidão e os
encontros e desencontros que povoam seu mundo real e até mesmo o fantasioso, fazendo
sentido na realidade viva do cotidiano.
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Esta dissertação contém um estudo que intenta contemplar a variedade de imagens que
a narrativa dos contos populares constrói sobre atitudes de um povo, num determinado espaço
e época, evidenciando aspectos humanos que pertencem e/ou caracterizam determinada fase
da vida. Tentou-se, ainda, recuperar aspectos construídos no contexto sócio-cultural,
reproduzindo e interpretando fatos que sustentam valores milenares, transmitidos oralmente
de uma geração a outra.
Para ajudar nesse complexo percurso, buscaram-se fundamentos no estudo crítico e
sistematizado da Semiótica Greimasiana, cujos recursos permitiram um olhar técnico sobre a
superfície do texto, objetivando captar elementos necessários à comprovação das hipóteses. E
porque é o discurso uma simbiose de outros tantos, é que se fazem correntes as
transmodalizações, reforçando assim verdades subjacentes.
Selecionou-se um corpus composto de contos com aspectos caracterizadores de uma
micro-estrutura, a família e uma macro-estrutura, a sociedade. Esses aspectos, revestidos do
imaginário popular, engendram verdades, ao mesmo tempo, subjetivas e culturais,
denunciadoras de valores que se (re)constroem através do (re)contar.
Dessa forma, intentando alcançar os objetivos da pesquisa, foram analisadas duas
variantes de três tipos de contos populares O Fiel João, Fernando o verdadeiro e Fernando o
falso e A Mais Bonita. As versões foram extraídas das coletâneas publicadas em 1995: por
Pimentel e Maia (Estórias de Luiza Tereza, levantadas em Guarabira) e por Maia (Contos
Populares da Paraíba, levantadas em Catolé do Rocha).
A primeira narrativa se estrutura em torno de uma amizade entre um rapaz de origem
humilde e um de origem nobre, desde a infância, no seio familiar, até a vida adulta, longe da
família. A segunda narrativa volta-se para a busca de aventuras de um rapaz, também de
origem humilde, ainda adolescente que, para realizar seus sonhos e adquirir formação humana,
rompe com os laços familiares e embrenha-se no mundo. E a terceira narrativa engendra-se a
partir da coexistência de duas famílias, pertencentes a pólos sócio-culturais oponentes cujos
filhos, ainda muito jovens, saem juntos para desbravar o mundo, a fim de comprovar as
verdades implantadas no seio familiar e obterem experiência de vida. Através dessas
narrativas, foi possível perceber, de forma cuidadosa, os valores que norteiam fases da vida
humana, a exemplo da infância, adolescência e vida adulta, dada à fronteira sonho/realidade,
que se presentificam nos discursos.
Partindo da hipótese de que os contos populares apresentam valores que não
caracterizam o universo infantil, procurou-se, como objetivo primeiro, analisá-los numa
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perspectiva semiótica, a fim de descobrir os microssistemas de valores pertinentes ao universo
infantil, destacando as atitudes dos sujeitos instaurados no discurso.
A partir dessas afirmações, a pesquisa foi estruturada em três capítulos que
envolveram reflexões sobre o conto, o arcabouço teórico e análise do corpus.
O primeiro capítulo foi reservado ao estudo da teoria semiótica greimasiana que serviu
de subsídio-base para as análises. Partiu-se da investigação do signo em duas dimensões: a
filosófica, de onde se extraíram as definições (ora diática, ora triática) do signo pelos filósofos,
partindo de Platão até chegar a Peirce; e a lingüística, de que foram examinadas as visões
sincrônicas de sistema e estrutura (Saussure e Helmslev) às visões pancrônicas da semiótica
(Greimas, Courtés e Pais). A semiótica como modelo pancrônico trabalha com a significação
como processo de produção, transformação e acumulação dos signos em discurso, iniciando-
se na mente do falante e só estando concluída na do ouvinte. Trata-se, pois, de um percurso a
que chamam gerativo de sentido cujas partes constitutivas são: as estruturas narrativas,
discursivas e fundamentais.
O segundo capítulo comporta um estudo sobre o conto popular, considerando estrutura,
motivos, classificação, tipologia e identificação em obras universais e características que
definem o conto popular como tal, enfocando o maravilhoso, visto que parte do corpus
selecionado se apresenta dentro dessa classificação.
O terceiro capítulo destinou-se às análises das versões escolhidas como corpus: O
Príncipe e o Marcôndio e Pedra Mármore variantes do conto O Fiel João, A Princesa da
Pedra Fina e Princesa da Pedra Fina variantes do conto Fernando o verdadeiro e Fernando
o falso e O filho do rico e o filho do pobre e O compadre rico e o compadre pobre variantes
do conto A Mais Bonita.
Primeiramente, extraíram-se os segmentos de cada versão, observando as
convergências e divergências que fazem do conto uma manifestação popular. Foi possível
perceber a presença de determinados segmentos em uma versão que estão ausentes da outra,
embora seja possível afirmar que a estrutura-base permaneceu inalterável, permitindo ligar as
versões à invariante original. Em seguida, investigou-se o processo de narrativização do
corpus selecionado, a partir da descrição dos programas principais e auxiliares que compõem
o percurso de cada sujeito semiótico em busca de seu objeto de valor, verificando as
modalizações que o instauram e as estruturas de poder pertinentes ao discurso. Continuando o
percurso, fez-se a análise das estruturas discursivas, onde se investigaram as relações
intersubjetivas e espaço-temporais de enunciação e de enunciado. Por último, na estrutura
fundamental, observaram-se a ideologia e sistemas de valores sustentados pelos discursos.
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Nos três contos analisados, os protagonistas são rapazes de origem humilde, cujos
valores são: a vida, a amizade, aventuras e sabedoria. São heróis, revestidos de qualidades
excepcionais, que refletem as ideologias apreciadas pelo povo, mas que no fundo, foram
criações das estruturas de dominação, com intuito de construir modelos ideais, a serem
seguidos para facilitar o seu trabalho. Das análises fluíram temas como: morte, vida,
separação, união, passividade, atividade, opressão, liberdade, felicidade, caridade,
religiosidade, sabedoria, riqueza, pobreza, esperteza, família. Além dos temas, destacam-se os
conflitos: bem versus mal; ser versus parecer; dominante versus dominado; ativo versus
passivo; conhecimento versus ignorância; conhecimento de Deus versus conhecimento de
mundo; riqueza versus pobreza.
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1 EMBASAMENTO TEÓRICO
1.1 O SIGNO: de Platão a Peirce
A investigação sobre a natureza dos signos, da significação e da comunicação na
história das ciências sempre foi uma constante entre os estudiosos, desde os filósofos gregos e
latinos. No decorrer da história, os estudiosos ora concebiam o signo com três elementos, ora
com dois elementos.
Para Platão, o signo obedecia a uma estrutura triádica na qual é possível distinguir os
três momentos: ónoma (o nome), eîdos (a noção/idéia) e prágma (a coisa referente). As idéias,
para o autor, representam o conhecimento objetivo e certo – constituem realidade eterna do
universo. Ainda com relação às idéias, todos os objetos sensíveis nada são, senão reflexos ou
cópias imperfeitas, cuja realidade inferior – um mero devir – decorre da sua participação nas
idéias.
Quando afirma no diálogo Crátilo (Sobre a justeza dos signos): “[...] receio muito que
[...] seja bastante precária a tal força de atração da semelhança e que nos vejamos forçados a
recorrer a esse expediente banal, a convenção, para a correta imposição dos nomes”
(PLATÃO, 1988, p. 70), significa dizer que a verdade transmitida pelas palavras, embora com
certo grau de semelhança com as coisas a que se referem, é sempre inferior ao conhecimento
das coisas, uma vez que as palavras são instituídas por mera convenção.
O entendimento desse pensamento é a porta de entrada para a teoria semiótica. Nunca
o signo é igual à coisa à qual se refere, pois se fosse, não seria signo, seria a própria coisa.
Aristóteles idealizou o signo como uma relação de implicação, focalizando-o no
âmbito da Lógica e da Retórica. Além dessa relação de implicação, descreveu o signo como
uma proposição que leva a uma conclusão. Para ele, o signo é considerado como símbolo,
definido como signo das “afecções da alma”. Essas afecções seriam as imagens das coisas.
Os estóicos se baseiam na estrutura triádica do signo platônico, apresentando uma
nova nomenclatura para os elementos constitutivos: semaínon (a parte perceptível),
semainómenon ou lékton (o significado) e tygchánon (o objeto referido). Ligados à teoria da
lógica são, portanto, racionalistas. Para eles, os signos são classificados em comemorativos
que definem como associações anteriores aos signos e indicativos que são fatos não-evidentes.
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Fundamentados na teoria do conhecimento empirista, os epicuristas, por sua vez,
conceberam o signo mais simplificadamente: apenas com o semaínon (significante) e o
tygchánon (o objeto referido), formando uma estrutura diática. O lékton (imagem imaterial)
não é reconhecido na estrutura do signo. Nesse modelo, a origem das imagens está no objeto
físico. Essa imagem emerge a cognição do receptor sob a condição de fantasia. As duas
imagens (emitida pelo objeto e captada pelo receptor) correspondem aos dois elementos que
formam a estrutura diática do signo.
No final da Antigüidade e primórdios da Idade Média, Santo Agostinho (354 a 430)
realiza um estudo sobre o signo, concebendo-o no âmbito da Teologia, o que se estende por
toda a Idade Média. Nesse período, o mundo é concebido teocentricamente, isto é, Deus é a
origem do Universo e tudo deve prestar-Lhe homenagem. O signo, portanto, é parte dessa
realidade que rege o universo. No seu livro Doutrina Cristã, (2002, p. 85) considera os signos
(sinais) como manifestações das coisas, o “algo diferente”. Define sinal como toda coisa que,
além da impressão que produz em nossos sentidos, faz com que nos venha ao pensamento
outra idéia distinta. Considerou, ainda, a existência dos signos naturais, convencionais e
verbais. Os homens se comunicam através de sinais verbais e não-verbais: palavras, gestos e
até mesmo o paladar e o olfato. A existência do sinal se dá pelo fato de expressar alguma
coisa e por isto mesmo é sinal. As coisas são tidas como objeto de fruição (o que faz as
pessoas felizes) e objeto de utilização (o que ajuda o homem a inclinar-se para a felicidade).
Na definição de Santo Agostinho (2002, p. 44), “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela
própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso
tal objeto mereça ser amado”. Os signos podiam ser, ainda, próprios e figurados. Signos
próprios são aqueles que designam os objetos para os quais foram convencionados, ou seja, é
o sentido real. E os signos figurados (ou metafóricos) são os mesmos objetos com seu termo
próprio, mas são tomados para significar algo diferente (AGOSTINHO, 2002, p. 99).
De influência aristotélica, surgiu um novo estudo sobre o signo, entre os séculos X e
XV. Dessa vez, foram os escolásticos que reconheceram três disciplinas; a Filosofia Natural, a
Filosofia Moral e a Ciência dos Signos ou Ciência Racional, que corresponde à Lógica. O
representante maior da escolástica foi São Tomás de Aquino, que considerou o estudo dos
signos no modelo das ciências cognitivas, definindo-o como instrumento de comunicação e de
cognição. Para ele, a “palavra” (verbum) está presente no interior da alma e significa no
exterior pela voz mediante a palavra vocálica. Para sabermos o que é a “palavra interior”, é
preciso examinar o que significa a palavra vocálica. A nossa palavra é imperfeita, enquanto
que a Palavra divina é perfeitíssima. Ele distingue som de voz: voz não é qualquer som, mas o
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som animado que só se dá na medida em que se dê alma: voz, boca e hálito. É na voz que se
fixa a palavra. A palavra é uma realização específica do signo que, por sua vez, é tudo que se
dá a conhecer do outro. O signo leva o sujeito a conhecer algo diferente do próprio signo.
Este autor reconhece a existência de três naturezas intelectuais: a humana, a angélica e
a divina e, assim há três palavras. Falar, para ele, é próprio da inteligência. Então, entre a
realidade designada pela linguagem e o som da palavra falada, há um elemento essencial da
linguagem que é o conceito, a palavra interior que se forma no espírito de quem fala e que se
exterioriza pela linguagem, constituindo seu signo audível. Porém, se a palavra sonora é um
signo convencional, o conceito é um signo necessário da coisa designada: nossos conceitos se
formam por adequação com a realidade.
O “conceptus” na proposta teórica pós-estruturalista advém daí, porém a visão de
mundo era Teocêntrica – Deus como a origem de todas as coisas - conforme referido
anteriormente.
Em contraposição, no Renascimento, época caracterizada pelo Antropocentrismo,
uma vez que a humanidade se colocava como referência, recuperando valores da Antigüidade
Clássica, trocavam-se verdades religiosas e dogmáticas da Idade Média pela incerteza
libertária do conhecimento. Não mais o crer, agora o verbo é o saber. Assim, o homem passa
a ter uma visão antropocêntrica do mundo. Nesse período, a semelhança ocupou um papel
edificador no saber da cultura ocidental; conduziu a exegese e a interpretação dos textos;
estruturou os jogos dos símbolos; favoreceu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis e
guiou a arte de representá-las. Assim, a trama semântica da semelhança ocupou um espaço
mais dinâmico.
Posteriormente, refletindo sobre a semelhança, Foucault (1999, p. 24) selecionou
quatro principais figuras que estabelecem as articulações no saber da semelhança:
convenientia, aemulatio, analogia e simpatia.
A convenientia é uma semelhança que, antes de propriamente similar, está ligada à
relação de vizinhança de lugares. Quando as coisas se aproximam e se comunicam pelo
movimento, influências, paixões e propriedades, dizemos que são convenientes. Ao se
articularem, aparece uma semelhança. Esta se apresenta dupla. Semelhança de lugar, há pois,
similitude de propriedade em que “ a vizinhança não é exterior entre as coisas, mas signo de
um parentesco ao menos obscuro” (FOUCAULT, 1999, p. 24). Em seguida, a esta vizinhança,
nascem outras novas semelhanças; efeito oculto contrário ao efeito visível da proximidade. A
convenientia é a semelhança ligada ao espaço na forma de “aproximação gradativa” e
semelhança na ordem da conjunção e do afastamento.
20
A aemulatio (emulação) é a segunda similitude. É a conveniência que se realiza à
distância; geminação natural das coisas. A emulação se origina inicialmente como um simples
reflexo, fugidio, distante. Os elos da emulação formam círculos concêntricos, refletidos e
rivais. A emulação em seu sentido mais comum é uma espécie de estímulo, incentivo,
sentimento que incita à igualdade. Foucault (1999, p. 27) alude a uma semelhança sem
contato como se fosse o reflexo no espelho; coisas dispersas, mas que se correspondem. Na
emulação, as duas figuras relacionadas se apossam uma da outra. O semelhante envolve o
semelhante.
A terceira similitude focalizada é a analogia, que se aproxima da convenientia e da
aemulatio. Como aemulatio, assegura o afrontamento das semelhanças pelo espaço; como
convenientia se refere aos ajustamentos de liames e de conjuntura. As similitudes que a
analogia executa são as mais discretas das relações.
A quarta e última similitude abordada pelo autor (1999, p. 33) é a simpatia. É uma
aproximação e tem o poder de atrair (simpatia) e de repelir (antipatia). Dentro do contexto
focalizado por Foucault, a simpatia age de forma livre, nenhum caminho, distância ou
encadeamento são determinados. É o princípio da mobilidade; instância do mesmo; tem o
poder de assimilar, transformar, alterar na direção do idêntico. É compensada pela figura
gêmea (antipatia) que deixa as coisas em sua solidão e impede a assimilação. Antipatia e
simpatia se equilibram de maneira a não fazerem desaparecer as coisas, preservando sua
singularidade.
Durante o Racionalismo, o sistema dos signos deixa de ser ternário (significante +
significado + objeto referido) e passa a ser binário (significante + significado). A Gramática
de Port Royal (século XVII) exclui a referência exterior ao considerar que o signo representa
a idéia de uma coisa e não a coisa em si: o signo compreende duas idéias – uma é a idéia da
coisa que representa, e outra, a idéia da coisa representada. A natureza do signo consiste em
excitar a segunda pela primeira. A revolução de Port Royal está em considerar o significante
(a coisa que representa) como uma idéia imaterial de uma dada coisa.
John Locke, considerado o maior empirista moderno, séculos XVII e XVIII, introduz
na Filosofia o termo semiotics, designando-a como o estudo dos signos em geral. Para Locke
(1991, p. 27-34), o signo é concebido como “instrumento de conhecimento”, dividido em
duas classes: idéias e palavras. As idéias representam coisas na mente do contemplador,
enquanto que palavras não representam nada, a não ser idéias na mente de quem as emite.
O signo em Locke fica incompleto tanto para palavras quanto para idéias, já que
palavras representam idéias apenas na mente do emissor e idéias, coisas apenas na mente do
21
contemplador, o que torna impossível a comunicação, uma vez que idéias e palavras são
indissociáveis e precisam estar na mente de ambos interlocutores.
Na passagem do século XIX para o XX, encontra-se uma importante figura da teoria
dos signos, que é Charles Sanders Peirce. Ele foi leitor assíduo dos semioticistas escolásticos
que, por sua vez, fundamentaram-se na filosofia estóica. A semiótica peirceana é, portanto,
eminentemente triádica, sendo seus constituintes:
interpretante
representâmen objeto
que ele define da forma seguinte:
Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen (PEIRCE, 2003, p. 46).
Significa dizer que Peirce considera o signo como a representação do objeto, criando
um signo equivalente, na mente de alguém, que é o seu o interpretante. Aquilo que o signo
representa é denominado objeto. A representação caracteriza-se pela relação entre o signo e o
objeto. Representar é estar no lugar de outro, de tal forma que, para uma mente interpretante,
o signo é tratado como sendo o próprio objeto, em determinados aspectos. O termo
representação envolve, necessariamente, uma relação triádica, que é um esquema do processo
contínuo de geração dos signos. O processo representativo se define pelas relações imbricadas
que se estabelecem entre signo-objeto-interpretante, nas quais os termos atuam, determinando
ou sendo determinados pelos outros elementos da tríade.
22
1.2 O SIGNO LINGÜÍSTICO
As idéias de Ferdinand de Saussure constituem o fundamento da moderna Lingüística.
As anotações, concatenadas e publicadas em 1916 por seus alunos Charles Bailly e Albert
Séchehaye com o título de Cours de Linguistique Générale, foram relevantes para a
construção da estrutura desta Ciência, como também para o estudo da Semiótica. O signo
lingüístico é definido por F. Saussure (2004, p. 80) como “uma entidade psíquica” em que se
distinguem dois elementos: significante e significado.
O significante corresponderia à imagem acústica (som), enquanto o significado
corresponderia ao conceito (pensamento). A escolha da porção acústica para o pensamento
não segue nenhuma regra preestabelecida, tem-se a arbitrariedade do signo. Essa
arbitrariedade explicaria por que um fato social pode, por si só, originar um sistema
lingüístico. Para o autor, o valor conceitual do signo (que está sob a dependência da
significação) está na propriedade que este tem de representar uma idéia. Esse valor é
encontrado a partir de dois aspectos: a dessemelhança e a semelhança. No primeiro caso, o
valor é relacionado a seu oposto, fora do campo da significação; no segundo caso, quando
relacionado com outros signos, dentro do campo da significação.
O valor do signo na sua totalidade parte das diferenças tanto do conceito quanto da
matéria. Assim, o que distingue um signo é tudo que o compõe.
Para Hjelmslev (2003, p. 54), o signo lingüístico é composto de duas grandezas:
expressão e conteúdo. Cada uma dessas grandezas é composta por uma forma e uma
substância (conhecimento que temos da língua). A forma é semelhante a uma gramática que
compreende uma morfologia e uma sintaxe. No conteúdo, a relação de dependência entre a
substância (que é semântica) e a forma (que é semêmica) dá origem ao significado.
Na função semiótica, expressão e conteúdo são os dois funtivos que estão sempre
unidos por uma relação solidária.
O autor assim afirma: “Uma expressão só é expressão porque é a expressão de um
conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma expressão” (2003, p. 54).
Dessa forma, não existe expressão sem conteúdo, nem tampouco conteúdo sem expressão. Na
expressão, a substância é fêmica e a forma é femêmica e origina o significante. A toda
substância de uma forma qualquer, o autor chamou sentido. No entanto, não se pode
confundir conteúdo com sentido, já que aquele pode existir sem este.
A proposta de Hjelmslev pode ser resumida no digrama seguinte:
23
A relação entre conteúdo e expressão é arbitrária. Eis um ponto comum entre
Hjelmslev e Saussure. O pensamento é um aspecto comum a todas as línguas e indispensável
à estruturação do signo lingüístico. Saussure chamou o pensamento de significado, enquanto
Hjelmslev, de conteúdo. Para este (2003, p. 49) “Um ‘signo’ funciona, designa, significa.
Opondo-se a um não-signo, um ‘signo’ é portador de uma significação.” Quando fora do
contexto, os signos nada ou quase nada significam. Uma palavra, por exemplo, pode ser
considerada num contexto de um signo menor que ela, porém, por sua natureza significativa e
pela estrutura organizacional e relação que mantém com outros signos menores, pode
significar, de igual modo ou mais que uma palavra, quando empregada como elemento menor
de um contexto maior que sua natureza. Sobre essa idéia, o autor assim se expressa:
As palavras não são os signos últimos, irredutíveis, da linguagem, tal como podia deixá-lo supor o imenso interesse que a lingüística tradicional dedica à palavra. As palavras deixam-se analisar em partes que são igualmente portadoras de significações: radicais, sufixos de derivação e desinências flexionais. (HJELMSLE, 2003, p. 49).
Ao decompor uma palavra em seus elementos mórficos, percebemos a carga
significativa que cada morfema carrega, daí serem considerados signos. Porém, o mesmo não
pode ser dito com relação aos fonemas e às sílabas, dada a sua falta de significação e por isto
mesmo, a impossibilidade de ser signo.
Assim, Hjelmslev complementa a teoria saussuriana no que diz respeito à relação
entre o conteúdo e expressão de uma língua, propondo não mais um sistema de signos, mas
um sistema de figuras, e abrindo caminho para uma visão pancrônica da língua.
Sig
nific
ado
Conteúdo
Substância semântica
Forma semântica
Forma femêmica
Substância fêmica
Expressão
Sentido
Sentido
S
igni
fican
te
Função Semiótica
ϕσ
24
1.3. DA SIGNIFICAÇÃO
É no início dos anos setenta que surge em Paris uma Escola Semiótica defendida por
Greimas, Courtés e seus discípulos. Antes, entretanto, em 1958, A. J. Greimas já havia escrito
uma primeira versão de sua Semântica, quando comprou o livro Prolegômenos a uma teoria
da linguagem de Hjelmslev, cuja leitura foi tão importante que o fez destruir quase duzentas
páginas de seus manuscritos. Parte, então, o semioticista da concepção de significação,
proposta por Hjelmslev, isto é, uma relação de dependência entre conteúdo e expressão,
complementando-a. A significação abarca o conceito de semiose, que é processo de produção,
acumulação e transformação da função semiótica em discurso. Com isso, eles aperfeiçoaram a
dicotomia diacronia/sincronia proposta por Saussure, criando a pancronia onde o sistema se
apresenta em contínua mudança (BARBOSA, 1996, p. 31-45). Acontece um processo
contínuo de auto-alimentação e auto-regulação, de formulação e reformulação do sistema e
por isso, dinâmico. O sistema produz o discurso que, por sua vez, produz o sistema de forma
contínua. A competência modifica-se de um sujeito para outro e, com relação ao mesmo
sujeito, de um discurso para outro. O sistema é ainda um conjunto de códigos e sub-códigos
que são os responsáveis pelas mudanças que acontecem no sistema. A significação se dá pelo
processo de produção, acumulação e transformação da função semiótica: informa, produz
novas grandezas, reformula a visão de mundo e, portanto, transforma (PAIS, 2002, p. 104).
Seguindo uma trajetória que tem início na mente do enunciador e só está completa na
mente do enunciatário, a significação manifesta-se e se constrói ao longo do discurso e só está
completa no percurso sintagmático do discurso por inteiro (PAIS, 1995, p. 56).
De acordo com Greimas (1975, p. 12-13) é preciso compreender que “o homem vive
num mundo significante”. O sentido então, “não se coloca, é colocado”, causa dos
questionamentos sobre o que dizer determinada palavra e/ou o que se entende por algo. Para o
autor a significação é a “transposição” de uma linguagem a outra, o que permite ser esta
possibilidade de “transcodificação”.
A significação é compreendida como um percurso gerativo constituído de três níveis:
o fundamental; o narrativo e o discursivo. Seus componentes são dispostos uns com relação
aos outros, confirmando que todo objeto semiótico é definido segundo o modo de produção.
Esses componentes, que se incluem nesse processo, se articulam entre si de acordo com um
percurso que vai do “mais simples ao mais complexo, do mais abstrato aos mais concreto”
(GREIMAS & COURTÉS, 1979 , p. 206).
25
Greimas e Courtés (1979, p. 209) consideram o percurso gerativo com duas estruturas
de profundidade superpostas: sêmio-narrativas e discursivas. Os demais autores, no entanto,
consideram que só o componente semântico é associado às estruturas profundas, enquanto os
componentes fonológicos e fonemático, às estruturas de superfície.
As estruturas sêmio-narrativas constituem o nível mais abstrato e são compostas por
dois componentes (sintáxico e semântico) e dois níveis (profundo e de superfície). No
primeiro, se destacam uma sintaxe fundamental e uma semântica fundamental; no segundo,
uma sintaxe narrativa e uma semântica narrativa. Essas estruturas são definidas por referência
tanto ao conceito de língua, quanto ao de competência narrativa, uma vez que incluem, além
de uma taxionomia, um conjunto de operações elementares. As estruturas discursivas são
consideradas menos profundas e responsáveis por retomar as estruturas de superfície,
colocando-as em discurso pela enunciação. Apresenta um componente sintáxico, ou sintaxe
discursiva, encarregado da discursivização das estruturas narrativas que comporta três
subcomponentes: actorialização, temporalização e espacialização, além de um componente
semântico, ou semântica discursiva, onde são explorados os subcomponentes: tematização e
figurativização. O modelo da trajetória segundo Greimas e Courtés (1979, p. 209) pode ser
estruturado da seguinte forma:
PERCURSO GERATIVO
Componente Sintáxico
Componente Semântico
Estruturas sêmio-narrativas
Nível profundo
Nível de superfície
Sintaxefundamental
Sintaxe narrativa ede superfície Semântica narrativa
Estruturas discursivas
Sintaxe discursiva Discursivização (actorialização,temporalização,espacialização)
Semântica discursiva
(Tematização Figurativização)
Semântica fundamental
26
1.3.1 Estrutura Fundamental
O nível fundamental do percurso gerativo, o primeiro do ponto de vista do enunciado,
determina o sentido primeiro a partir do qual se constrói o discurso. Apresenta princípios
lógico-conceptuais estruturados de uma sintaxe e de uma semântica fundamental.
Na SINTAXE FUNDAMENTAL, encontramos as categorias semânticas que estão na
base da construção de um texto e que abrigam as diferenças, as oposições. Mas para que seja
possível comparar dois opostos, é preciso que eles tenham algo em comum sobre o qual se
estabeleça uma diferença. A sintaxe fundamental foi apresentada, inicialmente por Greimas,
através do quadrado semiótico constituído pela relação entre os termos contrários,
contraditórios e implicativos. Os termos contrários, como o próprio nome indica, mantêm
uma relação de pressuposição recíproca. A negação de cada contrário define os contraditórios.
Cada um dos contraditórios é contrário entre si e podem estabelecer a ausência ou presença de
algum traço que são as implicações (S1.......S2 e S2......S1) 1. A significação S aparece como
eixo semântico que se opõe a S, entendido como ausência total de sentido e contraditório de
S. O eixo semântico S (substância do conteúdo) articula-se em dois semas contrários (S1
S2)2 que indicam a existência dos termos contraditórios (S1 S1 e S2 S2)
3, cujo
quadro semiótico aparece da seguinte forma:
(GREIMAS, 1975, p. 127)
1 ......... relação de implicação 2 relação de contrários 3 relação de contraditórios
27
O octógono é estabelecido a partir dessa relação de contrários (S1 e S2) que sustenta a
tensão dialética do quadrado semiótico. O octógono é, na realidade, a ampliação do quadrado.
Das relações de implicação (S1+ S2 e S2 + S1) é que geram os termos complexos e a
combinação dos termos S1 e S2 os quais definem o termo neutro (ø), isto é, a ausência
semiótica. O diagrama abaixo ilustra o que foi dito:
É através do octógono que Greimas (1973, p. 184) propõe a interpretação do quadrado
semiótico, onde aparecem os meta-termos, os quais constituem a dialética entre os dois termos
simples do quadrado, gerando termos complexos.
O octógono é, portanto, a evolução do quadrado semiótico, ambos empregados como
representações sintáticas da estrutura elementar de significação.
Na SEMÂNTICA FUNDAMENTAL, determinam-se as qualificações semânticas
euforia vs disforia. Para Greimas (1979, p. 170), a euforia é o termo positivo da categoria que
serve para dar valor a microuniversos, enquanto que disforia é o termo negativo.
A aforia se coloca num universo neutro: nem eufórico, nem disfórico. Assim os textos
podem ser euforizantes, disforizantes e aforizantes.
28
1.3.2 Estruturas Narrativas
O nível narrativo ou narrativização é a camada intermediária entre a estrutura
superficial e a estrutura profunda e apresenta uma sintaxe e uma semântica. Esse nível intenta
reconstituir o fazer do homem que, ao buscar os valores para sua existência sociocultural,
transforma a história e o mundo.
A SINTAXE NARRATIVA compreende o desempenho de um Sujeito que realiza um
percurso em busca de um Objeto de Valor, sendo motivado por um destinador e ajudado por
um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente. E é por assim se organizar que a narrativa
amplia seu espaço de atuação para englobar todo o enunciado, onde se confirma a existência
de um sujeito. Batista (2001, p. 150) argumenta:
A análise da estrutura actancial de um texto permite captar sua temática e ideologia, considerando que esta não apresenta a conotação política que lhe é atribuída normalmente, mas se define pelo sistema de valores de um indivíduo, de uma cultura, de uma sociedade.
Dessa forma, quanto mais actantes e variados forem, mais ideologias são identificadas
no texto. Nesse nível pode ocorrer um actante (A1) manifestado em um ator (a1), um actante
(A) representado por vários atores (a1 ,a2, a3) e vários actantes (A1, A2, A3) representado por
um ator (a). Quando um actante (A) se manifesta no discurso por vários atores (a1 ,a2, a3)
acontece o conflito, ou seja, a tensão. Veja os três casos: sem e com conflito.
A1 A2 A3 A A1 A2 A3
a1 a2 a3 a1 a2 a3 a
(Conflito)
Considerando a estrutura actancial, que objetiva explicar o imaginário humano, é
possível identificar duas espécies de enunciados narrativos: um Sujeito (S) do fazer em busca
de um Objeto de valor (OV) e um Destinador (Dor) que destina o Objeto de valor a um
29
Destinatário (Dario). Há um valor objetivo quando da relação homem/trabalho e um valor
subjetivo quando da relação homem/objeto de desejo. Esse universo coletivo é caracterizado
pelas disjunções sintagmáticas. E é representado graficamente num retângulo: Destinador (ao
lado do Anti-destinador - Dor) que incita o sujeito (ao lado do Anti-sujeito - S) a adquirir o
Objeto almejado; o Adjuvante que ajuda, física ou psicologicamente, para que o sujeito
consiga seu Objeto almejado e o Oponente, cujas ações intentam prejudicar o sujeito em sua
realização.
Dario Dor Dor
Adjuvante
S S1 OV
Oponentes
Constituído de vários programas auxiliares, para seguir o percurso, o sujeito semiótico
percorre um caminho, segundo a ordem dos fatos da narrativa, que se chama percurso do
sujeito. Veja os esquemas seguintes:
S1 OV1
S1 OV2
S1 OV3
Seguindo o percurso em busca do Objeto de Valor, o Sujeito Semiótico pode ou não
encontrar obstáculos. Encontrando, passa por momentos diferentes, tendo que tomar decisões
que têm por finalidade ultrapassar o obstáculo. Nesse caso, o gráfico vai ser representado com
quebras, tantos quantos forem os momentos. Observe.
30
S1 0V1
S1 0V2 S1 0V6 S1 0V10
S1 0V3 S1 0V7 S1 0V11
S1 0V4 S1 0V8 S1 0V12
S1 0V5 S1 0V9 S1 0V13
O universo individual é caracterizado pelas disjunções paradigmáticas constituído pelo
quadrado, onde se distingue a dêixis negativa da dêixis positiva.
Positiva S1 S2
_ _ S2 S1
Negativa
Desse universo resultam desdobramentos atuacionais em que cada actante desempenha
um papel em conformidade com uma das dêixis referidas. Muito saliente no conto popular as
oposições bom versus mau, onde o bom ocupa sempre a dêixis positiva e o mal ocupa sempre
a dêixis negativa, da mesma forma acontece a dicotomia herói/traidor, adjuvante/oponente,
entre outras atuações.
A função-juntiva determina o enunciado de estado que se traduz na relação sujeito e
objeto. A junção pode situar-se em duas situações contraditórias: a conjunção (posse) do
sujeito com seu Objeto de valor, e a disjunção (privação) do sujeito com seu Objeto de valor.
É representado pelo esquema:
F junção (S ∩ O) (que se lê: sujeito transformador conjunto com o objeto de valor)
F junção (S U O) (que se lê: sujeito transformador disjunto com o objeto de valor)
31
A função de transformação engendra o enunciado do fazer, que corresponde à
passagem de uma relação de estado para outra (da disjunção para a conjunção e vice-versa). É
representado pelas seguintes frases-diagrama:
F = [ (S1 ∩ OV ) (S1 U OV ) ] (que se deve ler: o fazer transformador em que o
sujeito semiótico conjunto do seu objeto de valor, passa a disjunto com o mesmo).
F = [ (.S1 U OV ) (S1 ∩ OV ) ] (que se deve ler: o fazer transformador em que o
sujeito semiótico disjunto do seu objeto de valor, passa a conjunto com o mesmo).
A SEMÂNTICA NARRATIVA está voltada para os valores do sujeito semiótico. De
natureza semântico-cognitiva, esses valores são imprescindíveis para que o sujeito realize seu
percurso que o fará conjunto ao seu objeto de valor.
A modalização corresponde tanto ao enunciado do estado quanto ao enunciado do
fazer. O enunciado do estado denomina-se modalização do ser e volta-se para o sujeito modal.
O enunciado do fazer recebe o estatuto de modalização do fazer, responsável pela
competência modal do sujeito do fazer. Tanto a competência do sujeito do estado, quanto do
sujeito do fazer regem os predicativos: querer, dever, poder, saber.
Greimas (1977, p. 183) assegura que para se chegar à performance é preciso antes ter a
respectiva competência. A competência é responsável pela passagem da virtualização à
realização, onde se instaura a narrativa complexa em que aparecem quatro percursos
encadeados.
O primeiro percurso é o da manipulação, é o do fazer-fazer: um enunciado do fazer
rege outro enunciado do fazer. Nesse patamar, um sujeito manipulador (Destinador) faz com
que o sujeito manipulado (Destinatário) realize a conjunção entre um sujeito do estado e seu
objeto de valor. Nesse percurso, pode haver um sincretismo entre o sujeito manipulado e o
sujeito do estado.
A manifestação da manipulação nos discursos depende da competência do
manipulador que pode se instaurar por um saber, um poder, ou alteração modal, realizada na
competência do sujeito manipulado. Quando o sujeito manipulador se sustenta numa
dimensão pragmática e promete ao manipulado um objeto de valor positivo como, por
exemplo, “Se você for aprovado no fim do ano, te dou uma viagem a Disney.”, revela uma
tentação. Ou quando o manipulador age numa dimensão cognitiva, apresentada,
positivamente, como uma espécie de “adulação”, acontece uma sedução, por exemplo, “Você
é um menino tão inteligente e sabe se comportar, não vai tirar reprovação, não é?”. Ou
32
ainda, quando aplicado no plano pragmático, fazendo acontecer uma intimidação, como
“Estude para passar de ano, senão não tem viagem nenhuma, entendeu?”. O manipulador
ameaça de privar o manipulado de algo agradável para ele. E, finalmente, no nível cognitivo,
o manipulador apresenta ao manipulado uma imagem negativa dele: “Duvido que você seja
aprovado, com essa preguiça toda!”, de forma que o manipulado tenta provar o contrário,
mostrando-lhe uma imagem positiva. Tem-se o discurso da provocação. Vejamos essas
situações resumidas no quadro:
Percursos
Competência do
Destinador-manipulador
Competência do
destinatário
Nível
Exemplo
Tentação
Poder
(positivo)
Querer-fazer
Pragmático
“Se você for aprovado no fim do ano, te dou uma
viagem a Disney”.
Sedução
Saber (positivo)
Querer-fazer
Cognitivo
“Você é um menino tão
inteligente e sabe se comportar, não vai tirar
reprovação, não é?”
Intimidação
Poder (negativo)
Dever-fazer
Pragmático
“Estude para passar de
ano, senão não tem viagem nenhuma, entendeu?”
Provocação
Saber (negativo)
Dever-fazer
Cognitivo
“Duvido que você seja
aprovado, com essa preguiça toda!”
A segunda etapa do percurso de uma narrativa complexa caracteriza a competência
modal do sujeito responsável pelas transformações. Nesta instância, são definidas quatro
modalidades: dever-fazer e querer-fazer, poder-fazer e saber-fazer.
Greimas & Courtés (1979, p. 283) colocam o dever-fazer e o querer-fazer como
virtualizantes, uma vez que indicam o desejo do sujeito. A partir do querer e do dever do
sujeito, se instaura um sujeito transformador. O poder-fazer e o saber-fazer são modalidades
atualizantes, pois qualificam o sujeito, atribuindo-lhe a capacidade para agir. Para os autores,
33
o sujeito também pode apresentar modalidades negativas (não-dever, não-querer, não-saber),
impossibilitando-o de agir.
Ainda se destacam as modalidades realizantes do fazer e do ser, que correspondem à
performance do sujeito. Observemos de forma sintética essas modalidades:
Modalidades
Virtualizantes
Atualizantes
Realizantes
Dever-fazer Querer-fazer
Poder-fazer Saber-fazer
Fazer Ser
Instauração
Qualificação
Realização
E o último elemento do esquema narrativo é a sanção, que pode se apresentar sob duas
dimensões: a pragmática e a cognitiva. A primeira se sustenta sobre o fazer do sujeito que
realiza a performance. O Destinador-julgador estabelece um juízo epistêmico – do crer –
sobre a conformidade ou não, como foi atualizado no contrato inicial. Em contrapartida, o
destinatário responde com a retribuição. Por ter realizado a performance e cumprido as
obrigações contratuais, o destinatário recebe do destinador a compensação prevista, que pode
ser positiva (recompensa) , ou negativa (punição), dependendo da conformidade ou não de sua
ação.
A segunda forma de sanção se sustenta sobre o ser do sujeito e é também de natureza
epistêmica. O julgamento do Destinador-julgador é sobre a realidade da performance do
destinatário, confirmando a veracidade de suas ações. Do ponto de vista do Destinatário-
sujeito, essa sanção equivale ao reconhecimento do herói e, negativamente, à confusão do
vilão (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 390).
34
1.3.3. Estruturas Discursivas
Preliminares
A discursivização se apresenta recoberta de papéis atuacionais manifestados por atores
que se apresentam ora disjuntos, ora conjuntos. Esses modelos atuacionais contribuem para
descrever percursos e instâncias de sentido, geradores do discurso. E por razões pragmáticas
devem ser considerados modelos de previsibilidade. A teoria do discurso tem a tarefa de
explorar as formas discursivas e os diferentes modos de articulação antes de passar para a
teoria lingüística. O conceito de texto é polissêmico porque é utilizado em diversas correntes
com concepções diferentes, conforme observa Pais (1995, p. 136). De um modo geral, os
estruturalistas, definem o discurso como o ato de fala (parole) ou algo próximo de texto como
coisa enunciada ou como enunciado.
Para a semiótica e a lingüística pós-estruturalistas, o discurso atesta um processo
dinâmico de constante produção. O discurso é o lugar da semiose (significação), daí ser o
discurso produtivo porque produz significação e informação, ou seja, funções semióticas e
metassemióticas e seus recortes culturais, organizando referentes, elaborando parcialmente
uma visão de mundo. O discurso dedutivo (variação do discurso) é mantido pela tensão
dialética entre consenso (total) e especificidade (parte do todo), sustentando-se na
comunicação intersubjetiva.
Por outro lado, o discurso produz o sistema, assim como o sistema é função do
discurso. É na discursividade onde se instaura e se renova a competência.
À SINTAXE DO DISCURSO cabe as relações intersubjetivas de espaço e de tempo
de enunciação e de enunciado. Quando se constrói um discurso-enunciado é,
pressupostamente, estabelecido um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário, o que
determina a veracidade ou não do texto. Esse acordo de confiança mútua prescreve, como o
enunciatário deve perceber o texto do ponto de vista da verdade e da realidade e como o
enunciatário deve compreender o discurso-enunciado, a partir da informação superficial,
instaurada pelos significados gerais de elementos que constituem a estrutura, isto é, o
conteúdo dito, recuperando o dizer. Segundo Benveniste (2006, p. 82), o primeiro a se
preocupar com a questão da enunciação, o processo de uso da língua como instrumento de
35
enunciação pode ser observado sob três aspectos: a realização vocal; mecanismos de produção
vocal; caracteres formais da enunciação. Por realização vocal da língua entende-se o som
emitido e percebido no interior de uma fala, procedentes de atos individuais. O autor
considera a enunciação o colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização. A enunciação produz o enunciado e não o texto do enunciado. É a relação do
locutor com a língua que determina os caracteres lingüísticos da enunciação, recuperados nos
discursos examinados.
Na produção científica, há o intento à objetividade, porém uma experiência, mesmo
repetida em detalhes, jamais é a mesma. A enunciação supõe a conversação individual da
língua em discurso. É a semantização da língua que conduz à teoria do signo e à análise da
significância. Antes da enunciação, a língua é possibilidade. Depois da enunciação, ela é
efetivada numa instância do discurso. No ato individual, a língua é um processo de
apropriação do aparelho formal da língua. É instituído então um enunciador que implanta um
outro. Na enunciação, a língua é empregada para expressar uma certa relação com o mundo.
O locutor sente necessidade de referir para o outro, através do discurso, a possibilidade de co-
referir, no consenso pragmático que faz cada locutor um co-locutor. Há aqui a emergência dos
índices lingüísticos de pessoa – eu/tu e da mesma forma, os índices lingüísticos de ostensão –
este/aqui/ entre outros.
Cada tipo de enunciação tem seu modo de ser e parecer. Em determinadas enunciações,
a relação entre as pessoas eu/tu que simula a relação enunciador-enunciatário, pode aparecer
implícita ou explícita. Se a relação é explicitada, a enunciação é chamada enunciação
enunciativa. Por outro lado, quando o enunciador e o enunciatário estão implícitos no
enunciado, não havendo marca pessoal que se refira a eles, tem-se a chamada enunciação
enunciva. Além da categoria de pessoa, o enunciado mobiliza também as categorias de tempo
e de espaço. Na enunciação enunciativa, o tempo é o momento do agora e o espaço é o lugar
do aqui. Na enunciação enunciva, o tempo é o do então e o espaço é o do lá. Cada tipo de
enunciação tem seus sistemas temporais, espaciais e pessoais próprios e seus modos de
colocá-los em discurso. São formas verbais, cujo ponto de referência é sempre o tempo
presente. O autor considera o tempo um aspecto inato do pensamento. Considerando o agora
como tempo axial, podemos construir um modelo de referência em que se destacam uma
anterioridade e uma posterioridade. Da mesma forma, podemos construir outros sistemas
temporais com o tempo axial pretérito e futuro.
Fiorin (2006, p. 60) sintetiza a temporalização da seguinte forma:
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Anterioridade
Concomitância
Posterioridade
Pretérito perfeito
Presente
Futuro do presente
Futuro do presente
Presente do futuro
Futuro do futuro
Pretérito-mais-que-perfeito
Pretérito
Futuro do pretérito
Da enunciação é instaurado o presente, do presente nasce a categoria de tempo. O
presente formal explicita o presente inerente à enunciação que se renova em cada enunciação.
A enunciação também oferece as condições necessárias às grandes funções sintáticas que
influenciam, de algum modo, o comportamento do alocutário: a interrogação que incita uma
resposta; a intimidação que incita um determinado comportamento do outro; a asserção que
comunica uma certeza. Dessa forma, o que caracteriza a enunciação é a acentuação da relação
discursiva com o parceiro, que coloca em evidência o quadro figurativo da enunciação. É o
diálogo. O monólogo (diálogo interior) se origina claramente da enunciação. A transposição
do diálogo em “monólogo”, em que o EGO ou se divide em dois, ou assume dois papéis,
presta-se a figurações ou transposições psicodramáticas: conflitos do “eu profundo” e da
“consciência”.
Em Bakhtin (2004, p. 128-129), encontramos o sentido da enunciação chamado de
tema, determinado não só pelas formas lingüísticas, mas igualmente pelos elementos não
verbais da situação. Além do tema, a enunciação é dotada de uma significação, resultado de
um contexto ativo e responsivo. Só existe significação em uma palavra quando esta se coloca
enquanto traço de união entre os interlocutores. Sobre esta forma de pensar o autor esclarece:
A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro (BAKTHIN, 2004, p. 132).
O autor acredita que a língua só se realiza através do processo de enunciação, que
compreende não só a matéria lingüística, mas o contexto social em que o enunciado se
manifesta (2004, p.72). Disto decorre que o discurso é resultado de uma interação social e traz
para dentro de sua estrutura sintática e semântica outras vozes, outros discursos, igualmente,
37
situados social e ideologicamente e que, além disso, ao serem citados, não perdem, de todo,
sua forma e conteúdo.
Greimas e Courtés (1979, p. 145-148) focalizam na definição de enunciação duas
maneiras diferentes de percebê-la: como estrutura não-linguística e como instância linguística.
No primeiro caso, falam de uma “situação de comunicação”, ou “situação psicossociológica”
da produção do enunciado, que essa situação permite atualizar. Essa definição aproxima-se do
ato de linguagem. No segundo caso, como o enunciado é considerado o resultado da
enunciação, esta é entendida como “instância de mediação”, um componente autônomo da
linguagem que possibilita a passagem entre a competência e a performance; entre as estruturas
virtualizantes, que atingem qualificação atualizantes, e as realizantes no enunciado.
A enunciação acolhida pelos autores é a que sustenta a segunda definição, em que a
“instância de mediação” produz o discurso. Levam em conta as diferentes instâncias,
organizadas em camadas de profundidade, constituindo o percurso gerativo global.
Consideram que:
[...] o espaço das virtualidades semióticas, cuja atualização cabe à enunciação, é o lugar de residência das estruturas sêmio-narrativas, formas que, ao se atualizarem como operações, constituem a competência semiótica do sujeito da enunciação (GREIMAS&COURTÉS, 1979, p. 146).
Assim, a enunciação é o lugar de exercício da competência semiótica, ao mesmo
tempo, a instância da instauração do sujeito. A enunciação enquanto ato, apresenta uma
“intencionalidade” interpretada como “visão de mundo”, uma relação orientada que permite o
sujeito construir o mundo enquanto objeto, simultaneamente à construção de si próprio. Nesse
sentido, tem por efeito a semiose, ou mais precisamente atos semióticos os quais chamamos
manifestação.
A efetivação da enunciação depende de três categorias eu-aqui-agora, projetados ou
não no discurso. Assim, a discursivização é o procedimento gerado de pessoa, lugar e tempo
da enunciação e, concomitantemente, referenciando pessoa, lugar e tempo no discurso, através
de uma representação actancial, espacial e temporal.
Os mecanismos de instauração das categorias do eu-aqui-agora no enunciado são a
debreagem e a embreagem. A debreagem consiste em ausentar a enunciação, ou seja, negar
um eu-aqui-agora, fazendo surgir um ele-algures-então no enunciado. Greimas (1979, p. 95)
sustenta que:
38
A debreagem actancial consistirá, então, num primeiro momento, em disjungir do sujeito da enunciação e em projetar no enunciado um não-eu; a debreagem temporal, em postular um não-agora distinto do tempo da enunciação; a debreagem espacial, em opor ao lugar da enunciação um não-aqui.
A debreagem, conforme refletido acima, pode ser vislumbrada através do seguinte
esquema:
Eu Debreagem actancial não-eu = Ele
Enunciação Aqui Debreagem espacial não-aqui = Algures Enunciado
Agora Debreagem temporal não - agora = então
O mecanismo da embreagem é uma tentativa de retorno à enunciação com a suspensão
das oposições de pessoa, tempo e espaço. Assim, se a enunciação é reconstruída a partir da
recuperação dos traços deixados no enunciado, o retorno à instância da produção enunciativa,
dá margem ao desaparecimento do enunciado, impedindo, portanto, a restauração da
enunciação. Dessa forma, “Toda embreagem pressupõe, portanto, uma operação de
debreagem que lhe é logicamente anterior” (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 140).
Vejamos a possibilidade de embreagem no esquema a seguir:
Ele Embreagem actancial Não-ele = Eu
Enunciado Algures Embreagem espacial Não-algures = Aqui Enunciação
Então Embreagem temporal Não-então = Agora
Outro aspecto da organização esquemática enunciativa refere-se à existência de um
narrador e de um narratário, implícitos ou explícitos, no enunciado. São os actantes da
enunciação enunciada, diretamente delegados do enunciador e enunciatários, podendo
encontrar-se em sincretismo com um dos actantes do enunciado.
E o último momento, refere-se à hierarquização enunciativa que surge quando o
enunciador-narrador delega a voz a um actante, engendrando uma debreagem interna que
instaura o diálogo. Produz um efeito de verdade por consistir no simulacro da própria
39
instância da comunicação, através da qual, faz emergir os actantes destinador e destinatário,
que exercem as funções de interlocutor e interlocutário. Veja-se essa relação no esquema:
Enunciador Instância da enunciação pressuposta Enunciatário
Narrador Debreagem de 1º Grau Narratário
Interlocutor Debreagem de 2º Grau Interlocutário
UNIVERSO DO DISCURSO
Vale salientar que o esquema acima não é fixo no discurso, da forma como se
apresenta, pode variar dependendo do universo de discurso. A debreagem e a embreagem são,
portanto, estratégias sintáticas da enunciação que servem para manipular e convencer durante
o processo de argumentação.
Pottier (1974, p. 44) criou uma curva senoidal para explicar o percurso gerativo de
significação, em que se destacam a duas faces: codificação e decodificação. A primeira face
tem sua origem na mente do enunciador (fazer persuasivo); a segunda acontece quando a
enunciação é completada na mente do enunciatário (fazer interpretativo). Durante o percurso
da enunciação acontecem várias etapas de acordo com a visão dos semioticistas.
Observe as etapas apresentadas no diagrama a seguir para um melhor entendimento de
como acontece o percurso da enunciação:
(PAIS, 1995, p. 162-181)
40
A primeira etapa é a percepção: o enunciador é consciente dos objetos que o rodeiam,
considerados individual e concretamente.
A conceptualização é a segunda etapa. É a fase da preparação do conceptus. O
enunciador constrói em sua mente o conceito dos objetos do mundo natural. No conceptus,
estão presentes os traços semânticos: as saliências, traços que se sobressaem, óbvios; as
pregnâncias, traços virtuais acrescentados pelo enunciador; as latências, traços que, apesar de
não se mostrarem explícitos, são deduzíveis.
Barbosa (2000, p. 95-120) mostra que o conceptus se estrutura no sentido
amorfo/formado, compreendendo três naturezas: o arquiconceptus ou conceptus stritu sensu,
recorte cultural dos noemas universais, isto é, comum a todas as culturas; metaconceptus,
recorte cultural dos noemas específicos; o metametaconceptus, recorte cultural dos noemas
individuais, intencionais, modalizadores e manipulatórios. Este último diz respeito ao modo
como o sujeito se instaura na narrativa como modalizador.
A semiótica humana inicia-se na conceptualização. É o processo que sai de uma
semântica cognitiva (natural) para uma semântica lingüística (uso da língua). Não existe
semiótica completa quando o enunciatário desconhece o objeto de decodificação. Enunciador
e enunciatário(s) são responsáveis pelo acréscimo do saber.
A terceira etapa é a semiologização. Acontece a transição do cognitivo ao semiótico. É
ideológico, o enunciador deixa as marcas de seus valores de acordo com a sociedade em que
está inserido. Acontece a leximização (quinta etapa), escolha das lexias para atualização
(sexta etapa) do discurso. Aqui o discurso se adequa ao enunciatário para que possa realmente
haver comunicação.
A etapa seguinte é a semiose, produção, acumulação e transformação da significação.
Produz-se aqui o texto de ambos eor e eário. O enunciatário agora re-atualiza; re-semiotiza;
re-semiologiza; re-conceptualiza; realimente e auto-regula os seus conceitos que lhe chegam
modificados, aumentando, dessa forma, sua competência e seu saber sobre o universo em
construção.
Pais (1993, p. 60) complementa a discussão, quando mostra que a competência e o
desempenho do sujeito enunciador são definidos pelas relações entre designações, designatas
e modelos conceptuais noêmicos existentes num processo e contínua construção e
reconstrução da visão de mundo. Desta forma, trata da curva senoidal como um percurso da
cognição.
Focalizamos, neste contexto, os sujeitos assinalados por Pais (1995, p. 143-164), nesse
processo de enunciação: Sujeito-Enunciador (S’), e o Sujeito-Enunciatário (S”), além do
41
sujeito que se encontra projetado no texto, o Sujeito de Enunciado (S*), que pode assumir ou
não, o mesmo posto do Sujeito Enunciador. Isto acontece porque o discurso só tem existência
como processo, pois prevê o percurso da enunciação, tendo o Sujeito-Enunciador como
produtor, ou seja, como emissor do discurso e o Sujeito-Enunciatário, como receptor, dentro
de um contexto sócio-cultural, que o envolve e que se desloca no eixo do tempo, o tempo da
História.
Além desse tempo, Pais focaliza o tempo de duração do percurso e o tempo da
enunciação, que se desdobram em tempo do emissor e tempo do receptor, ou tempo da
enunciação de codificação (T’) e o tempo da enunciação de decodificação (T”) que, mesmo
em equivalência, nunca são idênticos. Há ainda, o tempo do enunciado (T*), que é o tempo do
texto em sua completude.
Além do tempo, o autor faz uma abordagem entre os espaços e o contexto sócio-
cultural; o espaço e o contexto da enunciação e seus sujeitos: espaço do enunciador (E’) e
espaço do enunciatário (E”), projetados no texto, como o espaço do enunciado (E*).
A SEMÂNTICA DISCURSIVA é organizada a partir dos investimentos:
figurativização e tematização que correspondem a realizações dos atores como mecanismos
que promovem a coerência discursiva.
Em Semântica Estrutural, o lexema aparece como um modelo relativamente estável,
uma figura central, a partir da qual se desencadeiam certas virtualidades, certos percursos
semêmicos. O lexema é uma manifestação virtual, pois nunca se realiza como é, no discurso
manifesto. Na hora em que o discurso coloca sua isotopia semântica, o tesouro lexemático
permite a presença das figuras que são recuperadas pela memória. As figuras lexemáticas, seja
qual for sua manifestação de origem, não são objetos fechados, mas prolongam a todo instante
seus percursos semêmicos, encontrando e incorporando outras figuras, constituindo, dessa
forma, as constelações figurativas de organização própria. Manifestam-se no quadro do
enunciado e ultrapassam esse quadro formando uma rede figurativa relacional que se
desenvolve por seqüência inteira e nela constituem configurações discursivas. São as figuras
que estabelecem, em parte, a especificidade do discurso como forma de organização de
sentido (GREIMAS, 1973, p. 189). As configurações são formas de conteúdo próprias do
discurso que se organizam segundo o esquema canônico do enunciado (destinador-Objeto-
Destinatário), sendo cada termo desse esquema passível de produção de um percurso
figurativo autônomo. Outra propriedade estrutural dessas figuras é a polissemia, que permite
compreender a escolha de uma figura plurissemêmica, propondo virtualmente vários
42
percursos figurativos, e pode dar lugar à organização pluriisotópica do discurso, sem que os
termos figurativos sejam contraditórios.
Além disso, pode ocorrer também percurso figurativo distintos, mas paralelos, que
introduzem variantes, permitindo a pluriisotopia (que ocorre quando uma figura única inicial
dá lugar a desenvolvimentos de significação superpostos num só discurso) e a plurivariação
(diversidade figurativa retida e disciplinada pela presença de um papel único). A importância
da plurivariação está na aparição de um papel temático. As reflexões, acerca das figuras,
permitem percebê-las como portadoras de virtualidades, que deixam prever as realizações
semêmicas frasais e os feixes possíveis de seus predicados figurativos. Não é preciso abarcar
todas as variantes, dada sua diversidade. A configuração discursiva corresponde ao papel
temático (discurso), assim como o lexema corresponde ao semema (enunciado). No domínio
da investigação temática, os percursos figurativos ultrapassam e atravessam os discursos.
Enquanto as estruturas narrativas intentam caracterizar o imaginário humano, as
configurações discursivas (motivos e temas) são fios que remetem às áreas e às comunidades
sêmio-culturais.
O papel temático é uma figura nominal. Além de tema, é também um papel, sobre um
plano lingüístico. Define-se por uma dupla redução: da configuração discursiva a um só
percurso figurativo realizado ou realizável no discurso; e redução deste percurso a um agente
competente que subsume virtualmente. Toda figura num discurso se encontra revestida de um
papel temático. Estes podem ser reconhecidos pela ajuda de terminais nos quais culmina a
presença dos papéis atuacionais. Assim, o discurso, considerado no nível da superfície surge
como o desdobramento sintagmático, com presença parcial de figuras polissêmicas, recheadas
de virtualidades múltiplas, reunidas em configurações discursivas, contínuas e confusas.
Somente as figuras, cuja denominação é atores, se encontram erigidas de papéis temáticos. O
ator é o lugar de conjunção das estruturas narrativas discursivas, do componente gramatical e
do componente semântico, porque é carregado concomitantemente de um papel atuacional e
um papel temático que lhe permitem a competência e os limites de seu fazer ou de seu ser. Ele
é também o lugar de investimento e de transformação desses papéis, pois o fazer semiótico se
realiza no quadro dos objetos narrativos, consistindo num jogo de desperdício, de
substituições e de trocas de valores, modais ou ideológicos. Dessa forma, a estrutura atoral é
topológica: decorre de estruturas narrativas e discursivas, é o lugar de sua manifestação, sem
pertencer totalmente nem a uma nem a outra.
43
2. PREPARANDO O CORPUS
2.1 O CONTO POPULAR: conceito e estrutura
A cultura de um povo tem origem nos antepassados. Foi recebida pelo exercício de
atos práticos de audição de regras de conduta religiosa e social. Assim, a sabedoria tradicional
é guardada na memória, o que, no exercício verbal, consagra a cultura popular (CASCUDO,
1983, p. 686). E o conto popular é um instrumento de veiculação desses saberes.
O conto é um relato de curta duração, onde se destacam poucos personagens. No nosso
país recebe muitas designações: História da Carochinha, História de Trancoso, Histórias das
mil e uma noites, entre outras. A origem é incerta: Sellan (2005, p. 1) registra que “uns
remontam ao Egito; outros, à Índia; outros ainda apontam à Babilônia”. O que importa validar,
entretanto, é que todos os povos possuem seus contos que refletem, de algum modo, seu
imaginário, ou sua memória coletiva. É o conto oral a gênese de todas as variações de contos
populares hoje existentes.
Sabe-se, no entanto, que o interesse dos intelectuais por essa forma literária, começou
no século XVII, quando, em 1697, Charles Perrault publicou a primeira coleção de contos
populares franceses, onde se destacaram A gata borralheira, O chapeuzinho Vermelho e O
gato de Botas, com o propósito de entreter o filho do rei Luiz XIV e os freqüentadores de
salão. Esse interesse foi intensificado no século XIX, com os trabalhos dos Irmãos Grimm, na
Alemanha que tiveram consciência do valor dessas criações anônimas e as reuniram,
conservando-lhes determinadas características conferidas pelos contadores do povo.
Segundo Cascudo (1986, p. 15), o conto apresenta a multiplicidade de saberes nele
embutidos. Seu valor não se limita apenas ao emocional e delicioso, nem muito menos a uma
viagem de retorno à infância. Está mais na constituição de elementos indispensáveis às
ciências afins. Revela informações históricas, etnográficas, sociológicas, jurídicas. Dessa
forma, é um documento vivo, denunciador de costumes, idéias, mentalidades e até de
julgamentos.
Faria (2004, p. 229) relata que “Os contos populares, com sua dimensão estratégica,
trazem encobertos por trás do lúdico, um direcionamento para informar e convencer.” Dessa
fala, extraímos a idéia de que há sempre um contrato fiduciário, cuja pretensão é a adesão do
enunciatário: o público acolhe os ensinamentos veiculados no conto.
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Em conformidade com a classificação organizada por Coelho (2003, p. 172), o conto
pode ser maravilhoso e de fadas. Maravilhoso porque o núcleo das aventuras é sempre de
natureza material/social/sensorial (busca de riquezas, a satisfação do corpo, conquista do
poder, entre outros). O maravilhoso era uma fonte misteriosa e privilegiada, de onde nasceu a
literatura. Nas palavras da autora:
Desse maravilhoso nasceram personagens que possuem poderes sobrenaturais; deslocam-se, contrariando as leis da gravidade; sofrem metamorfoses contínuas; defrontam-se com forças do Bem e do Mal, personificadas; sofrem profecias que se cumprem; são beneficiadas com milagres; assistem a fenômenos que desafiam as leis da lógica, etc. (COELHO, 2003, p. 172).
Diferentemente do conto maravilhoso, Coelho (2003, p. 173) caracteriza o conto de
fada como sendo de natureza espiritual/ética/existencial. De origem céltica, esses contos
apresentam heróis e heroínas, cujas aventuras estavam ligadas ao sobrenatural, ao mistério do
além-vida e objetivavam a realização interior do homem. Esta seria a razão da presença de
uma fada, cujo nome vem da palavra latina fatum, que significa destino.
Nesses contos, o homem é limitado pela materialidade do próprio corpo e do mundo
em que vive, por isso deseja uma ajuda mágica. Assim, entre ele e suas realizações se
instalam os adjuvantes (fadas, talismãs, varinhas mágicas, entre outros) e oponentes (gigantes,
bruxas ou bruxos, feiticeiras, seres maléficos e outros). Segundo a autora (2003, p. 174):
[...] as fadas são seres imaginários, dotados de virtudes positivas e poderes sobrenaturais, que interferem na vida dos homens para auxiliá-los em situações-limite (quando nenhuma situação natural poderia valer). A partir do momento em que passam a ter comportamento negativo, transformam-se em bruxas. A beleza, a bondade e a delicadeza no trato são suas características comuns.
São constantes nessas narrativas a onipresença da metamorfose pelos encantamentos
que, geralmente, são quebrados por mulheres; o uso de talismãs que, como “num passe de
mágica” solucionam os problemas mais difíceis, ou satisfazem os desejos mais impossíveis; a
força do destino indicando que tudo parece determinado a acontecer, como uma fatalidade a
que ninguém pode escapar; o desafio do mistério ou um interdito que consiste num enigma a
ser superado pelo herói; a reiteração dos números (principalmente 3 e 7 ) ligados a crenças
nas religiões e filosofias antigas; magia e divindade que se confunde, muitas vezes, com a
providência divina, com o milagre que se acredita advir de contos representativos da
passagem da Antiguidade pagã para a modernidade cristã; e valores ético-ideológicos. Nestes
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se destacam: valores humanistas (preocupação com a sobrevivência e com a palavra dada),
oscilação entre ética maniqueísta (separação entre o bem e o mal, certo e errado), e ética
relativista (o que parece mau, termina se revelando bom, o que parece errado, termina se
mostrando certo), e a esperteza inteligente que sempre vencem a imprudência e a força bruta
(COELHO, 2003, p.177 a 180).
Quanto à estrutura, esses contos apresentam sempre uma fórmula inicial (Era uma vez )
e uma final (foram felizes para sempre.) ou expressões equivalentes. A seqüência do enredo
apresenta uma ordem inicial, seguida de uma ordem perturbada ou conflituosa, finalizando
com uma ordem restabelecida. A idéia de tempo no termo inicial, ou equivalentes é vaga e
funciona como uma indicação de que se vai passar do mundo real, para o mundo da fantasia,
onde tudo é possível. O mesmo acontece com o espaço que é figurativizado comumente por:
reino, palácio, casa, fonte, floresta, entre outras expressões de natureza genérica.
Sobre os actantes, Propp (2003, p. 135) menciona a presença de um herói com
atributos positivos e seu opositor ou anti-herói com atributos negativos. Ambos evidenciam
características da vida humana e personificam o bem e o mal, acontecendo sempre a vitória do
primeiro sobre o segundo. São comuns as ocorrências de natureza fantástico-milagrosa, como:
a intervenção de forças sobrenaturais na vida cotidiana; a adoção de formas e falas humanas
para animais irracionais; aceitação de animais e plantas enfeitiçadores dos homens; bruxas,
feiticeiros, fadas, anões, gigantes, dragões e outros.
Na abordagem de Pais (2004, p. 177), o discurso dos contos populares apresenta um
sujeito-enunciador-coletivo que surge sempre à medida que os textos são retomados, a um
tempo conservados e modificados, e transformados ao longo das gerações por pessoas
especiais como contadores e recebidos pelos sujeitos-enunciatários-ouvintes como “verdades
gerais e universais.” Por assim ser, sustenta facetas de sistemas de valores, dos sistemas de
crenças que integram o imaginário coletivo de uma comunidade humana.
Esses contos refletem os costumes de uma região e o saber dizer de um contador em
particular que, através da incoatividade mnemônica, relatam fatos fictícios do passado, mas
atualizados em virtude do espaço, tempo e pessoas do presente. Adequam elementos
conforme a receptividade dos seus ouvintes, causa por que o conto popular sofre determinadas
alterações, quer recebendo, quer perdendo elementos. E por assim ser “Quem conta um conto,
altera sempre um ponto.”
As pesquisas realizadas por Nascimento (2005, p. 17) afirmam que a migração dos
contos para o Brasil, saindo da Península Ibérica, teve início possivelmente no século XVI.
Essa cultura transplantada para o Novo Mundo, pelo branco europeu, era trazida, juntamente
46
com vários outros elementos, da literatura popular. Posteriormente, chegava outra
contribuição importante: o imaginário dos escravos africanos. Seria então as misturas
portuguesa, africana e indígena, desenvolvidas por outros povos, a caracterização da tradição
brasileira.
Segundo o mesmo autor, a primeira pesquisa oral no País foi realizada por Celso de
Magalhães (1848-1878), sendo divulgada, em seus trabalhos A poesia popular brasileira, que
foi publicado no Recife (PE), no Jornal O Trabalho, de abril a outubro de 1973. Além de
romances, coletou contos como: Jesus mendigo, A madrasta, O jabuti, e A saúva. A primeira
coletânea de Contos Populares do Brasil foi elaborada por Silva Romero e, mais tarde,
ampliada por Luiz da Câmara Cascudo.
Na Paraíba, O Núcleo de Pesquisa Popular – NUPPO - desenvolveu o projeto Jornada
de Contadores de Estória da Paraíba, coordenado por Altimar de Alencar Pimentel, cujo
objetivo era a coleta, estudo e divulgação do conto popular, de que resultaram várias
coletâneas.
Foi realizado, no ano de 1982, o II Encontro de Estudo do Conto Popular em João
Pessoa, com o patrocínio do INF/UFPB/NUPPO. Os contos coletados começaram, então, a
ser objeto de estudo acadêmico.
Aragão (2004, p. 45) enumera como objetivos da pesquisa sobre o conto popular, na
Paraíba, a geração de novos mecanismos adicionais de ensino-aprendizagem para a população
rural, através da leitura de textos sobre o conhecimento popular; a motivação para a criação de
textos, a partir da realidade sócio-econômico-cultural local; a difusão da cultura e literatura
populares manifestadas em suas várias formas, utilizando-se a escola como meio veiculador
prioritário de divulgação junto à comunidade.
Assim, fixados nas terras brasileiras, o conto popular adquiriu cor local, auto-
afirmando um pluriculturalismo que se construiu ao longo do tempo, consistindo, ainda em
nossos dias, uma prática de tradição avoenga.
2.2 LEVANTAMENTO E AMOSTRAGEM
O universo de pesquisa constou de cento e dois contos, dos quais trinta e oito foram
coletados no município de Catolé do Rocha, interior do Estado, constituindo a série extensão -
Contos Populares da Paraíba – organizado por Myriam Gurgel Maia e publicado em 1995.
47
Os sessenta e quatro restantes foram extraídos da obra Estórias de Luzia Tereza, V.1,
coletados, no mesmo ano, por Altimar de Alencar Pimentel e Myriam Gurgel Maia, no
município de Guarabira. Selecionou-se uma amostragem para ser analisada, constituída de
três tipos, cada um com duas variantes, num total de seis textos. Cada variante foi codificada
com a letra V (a primeira letra da palavra versão), seguida das letras “a” ou “b”, conforme se
pode ver no quadro a seguir:
Variação do conto
Código
Versões
Va
O Príncipe e o Marcôndio
O Fiel João
Vb
Pedra Mármore
Va
A Princesa da Pedra Fina
Fernando o verdadeiro e Fernando o falso
Vb Princesa da Pedra Fina
Va
O filho do rico e o filho do pobre
A Mais Bonita
Vb
O compadre rico e o compadre pobre
2.3 TIPOLOGIA DO CONTO POPULAR ANALISADO
2.3.1 O Fiel João
A narrativa centra-se na estória de um rapaz de origem humilde ligado por um
sentimento de amor fraterno a um rapaz de origem nobre da realeza. Vista como uma união
incompatível, dada à diferença de status, é posto à prova e vence difíceis obstáculos com a
ajuda de forças misteriosas que o revestem de coragem e visão profética para, com isso, poder
provar sua honestidade e fidelidade, inclusive desencantando a princesa destinada ao amigo.
Algumas versões finalizam com a vitória da amizade, porém separação dos amigos pela
viagem do pobre, noutras eles continuam vivendo juntos.
É perceptível, portanto, através dos fatos do enredo, o desejo social da implantação de
valores humanos numa sociedade que se mostra carente das relações de, por exemplo,
48
honestidade e fidelidade, uma vez que é o conto popular a simbiose cultural de gerações pelas
quais passa.
Este título provém da coletânea Grimm Nº 6. Aarne/Thompson registrou como
Faithful John, tipo 516, com ocorrências dos episódios II. A fuga da princesa. III. Perigos da
viagem. IV. O criado malentendido. V. Desencantamento do criado. Esse conto tem versões
na Alemanha, Finlândia, Suécia, Estônia, Lituânia, Dinamarca, Escócia, França, Espanha,
Catalunha, Holanda, Áustria, Itália, Romênia, Hungria, Tchescolováquia, Slovênia, Iugoslávia,
Rússia, Grécia, Albânia, Arábia, Índia, Argentina, Chile, República Dominicana, Porto Rico,
Cabo Verde, Estados Unidos e Brasil. Foi exaustivamente estudado por Erich Rosch. Der
Getrave johannes, 77C, Vol. XXVII, nº 77, Helsinki, 1928, através de 147 versões. Em
Portugal, Teófilo Braga encontrou intitulado por A Bicha de Sete Cabeças em Contos
Tradicionais do Povo Português, com versão no Old Deccan Days de Miss Frere, sob o título
Rama and Luxaran e situações semelhantes em conto indiano de Kathá Sarit Ságara;
Consiglieri Pedroso Contos Populares Portugueses – Pedro e o Príncipe e Os Dois
Pedrinhos; Adolfo Coelho Contos Populares Portugueses – Pedro e Pedrito, F. Xavier
Ataíde de Oliveira Contos Tradicionais do Algarve - Pedro e Pedrito, Quem este Conto Ouvir
e Contarem Pedra Mármore se há de Tornar e O Príncipe convertido em Pedra; Luís da
Câmara Cascudo Os Melhores Contos Populares de Portugal – O Fiel Pedro, Versão do
Porto; e J. Leite de Vasconcellos Contos Populares e Lendas duas versões com o mesmo
título – O Homem de Pedra, nºs 323 e 324 – Dois Príncipes, nº 325. Nota de Alda da Silva
Soromenho e Paulo Catarão Soromenho às versões de J. Leite de Vasconcellos informa que
Bernardino Barbosa, Contos Pop. De Évora, RL, XVII; o primeiro reproduzido nos Contos
Pop. Port., de Viegas Guerreiro. Este conto tem um paralelo no Romanceiro de J. Leite de
Vasconcellos, intitulado José e a Príncipa.
No Catálogo do Conto Popular Brasileiro (CCPB*)de Bráulio do Nascimento,
publicado em 2005, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC),
encontra-se classificado no grupo: II. Contos Folclóricos Comuns, como A.Contos
Maravilhosos, tipo 516. Nascimento catalogou as versões desse conto no Brasil registradas
por: Cascudo, 1946:25-30 – O Fiel Dom José; Monteiro, 1974, II:496-99 – [João de Calais]
(v.506); Almeida, 1951, 5 – Em pedra há de virar; Gomes, 1953:162-64 – Histórias da filha
do barão; Fagundes, 1961, 18 – Os dois amigos; Paula, 1987, 27 – A estória da moça do
retrato; 73 – A moça do retrato; Pimentel, 1993, 2 – Os dois amigos; 1995, 45 – Pedra
mármore; Benjamin, 1994, 28 – Os dois amigos; Nóbrega, 1996:236-40 – O pai que tinha
doze filhos; 290-94 – Os dois amigos (v.408); Pereira, 1996:144-46 – O príncipe lagarto;
49
Trigueiro & Pimentel, 1996, 28 – Dom João e Dom Quincas; Lima, 2003, 26 – A pedra
mármore (v. 408); 33 – Dom João, Dom Francisco.
O quadro a seguir condensa as informações sobre o conto analisado segundo
Nascimento:
Tipo Identificação no
CCPB*
Versões analisadas
Obras
Local
O Príncipe e o
Marcôndio
Maia
Catolé do Rocha
II. Contos folclóricos
comuns A. Contos
maravilhosos 516
Motivo: F674 - Hábil pintor**
Pedra Mármore
Pimentel
Guarabira
**Motifts: F674. Skillful painter – Antti Arrne’s – V. LXXV, nº 184.
As duas versões analisadas, embora discursivizadas de forma diversa, apresentam uma
estrutura profunda constituída de elementos comuns que permitem ligá-las ao conto O Fiel
João – tipo 516 do catálogo de Aarne/Thompson. Essa estrutura mostra a existência de uma
amizade entre um rapaz rico e um pobre desde a infância passada juntos, o afastamento do
país de origem em busca de aventura, o enfrentamento juntos das dificuldades, a fidelidade do
rapaz pobre na proteção do rico, a transformação do pobre em pedra mármore e seu posterior
desencanto realizado pelo príncipe que mata os seus para salvá-lo.
A diversificação de título de Va - O Príncipe e o Marcôndio para Vb – Pedra Mármore,
justifica-se, provavelmente, pela influência do último encanto recorrente no texto,
outorgando-lhe o caráter maravilhoso, em que figura a punição pela desobediência à
orientação superior, ao mesmo tempo em que é testado o nível de fidelidade fraterna do amigo
rico.
As duas versões analisadas podem ser vislumbradas nos resumos a seguir:
Em O Príncipe e o Marcôndio, codificado como Va, a narrativa centra-se no
nascimento do príncipe simultaneamente ao de uma criança deixada na porta da casa do rei. Já
crescidos, o príncipe e a criança que é chamada Marcôndio criam problemas na cidade. O rei
50
então é aconselhado a exterminar Marcôndio, apontado pelos súditos como a causa dos
problemas. Arquiteta então uma viagem para o príncipe na intenção de ficar sozinho com
Marcôndio e poder matá-lo. Ameaçado pelo rei, Marcôndio suplica-lhe que o deixe ir embora
com seu armamento. Seu pedido é aceito e, nas matas, Marcôndio vence um monstro de sete
cabeças, roga a Deus por água e mata um leão. Segue seu caminho e encontra um sobrado
onde resolve passar a noite. Dentro, pisadas levam-no à refeição e ao descanso. Ao tentar
abraçar a princesa, é encantado.
Enquanto isso, o príncipe, ao voltar da viagem, recebe a notícia de que Marcôndio foi
embora. Parte, então, ao encontro do irmão, seguindo a mesma trilha, vence os mesmos
obstáculos (monstro, sede, leão), chegando ao sobrado onde passadas o encaminham ao banho,
à refeição e ao descanso. Resolve continuar a busca pelo irmão e o encontra no quarto, ao lado
da princesa. Tenta um diálogo que não acontece. Ao abraçá-los, quebra-se o encanto. Depois
de decidirem com quem casaria a princesa, voltam ao reino do pai deles. Uma profecia indica
os perigos por que passarão o príncipe e a princesa durante a viagem de retorno. Marcôndio os
protege. Nova profecia é anunciada sobre o casamento e morte do príncipe e da princesa. Já
no reino, para proteger o casal da morte, Marcôndio luta e vence uma serpente. O rei, ouvindo
o barulho, imagina ser os irmãos brigando. Novamente o rei ameaça matar Marcôndio que
pede para contar os fatos até ali ocorridos e, como era proibido contar, foi encantado em pedra
mármore.
Após quatro anos, a última profecia é anunciada ao príncipe: ele deve matar os quatro
filhinhos e, com o sangue, banhar a estátua, quebrando, dessa forma, o encanto. A vida é
então restabelecida com a volta de Marcôndio e a ressurreição das crianças.
Na segunda versão analisada Pedra Mármore, codificada como Vb, embora seja o
mesmo conto, considerada por estudiosos, a exemplo de Bráulio do Nascimento, apresenta
modificações no percurso figurativo. Nesta versão, a narrativa centra-se na história de dois
amigos, um rico e um pobre, que saem pelo mundo. Os dois conseguem logo emprego na
cidade. O rapaz pobre namora uma moça rica. Como o pai dela não permitiria o casamento,
resolve fugir com ela e o amigo. Decidem que a moça deve ficar com o rapaz rico. Ao
consultá-la, ela aceita. Depois de caminharem bastante, resolvem lanchar e descansar debaixo
de uma árvore, quando ouve um passarinho dizer que à frente encontrarão três cacimbas e, se
a moça beber da água das duas primeiras cacimbas, ela morrerá, a não ser que beba somente
da terceira e quem contasse aquela história se transformaria em mármore. O rapaz pobre não
permite que ela beba água das duas cacimbas. Continuam viagem e mais uma vez param.
51
Nova profecia é anunciada pelo passarinho, dizendo que agora a moça ia desejar comer uvas e
quando comesse morreria. Novamente o rapaz pobre protege a moça.
Depois de uma noite de descanso debaixo de uma árvore, os passarinhos chegam e
anunciam que, quando ela entrar na casa do rei a porta cairá em cima dela. Imediatamente, o
rapaz pobre foi na frente e derrubou a porta. Quando o rapaz rico chegou nada aconteceu.
O pobre depois de proteger a moça, foi embora e ela casou com o rico. No dia do
casamento, depois do jantar, o rapaz pobre foi para o jardim e, debaixo de uma árvore, ouviu
os passarinhos dizerem que quando o casal estivesse dormindo, um bicho a mataria, mas se
tivesse alguém para vigiar e matar o bicho, ela viveria. E quem contasse a história se
transformaria em mármore.
O rapaz pobre ficou debaixo da cama, quando o bicho apareceu em forma de uma
cabeça, ele o feriu com o alfanje e o bicho desapareceu. O casal acordou e a moça acusou o
pobre de falsidade. Para livrar-se da acusação, ele contou toda a história e se transformou em
estátua.
Quando a esposa deu à luz uma criança, o rapaz rico ouviu a voz da profecia
mandando matar o filho e com o sangue banhar a estátua que desencantaria o amigo. Ele
assim fez: arquitetou a saída da esposa, e fez o que a voz determinara, desencantando o amigo.
O pobre foi embora desgostoso com a moça e quando o rico foi ver, o filho estava
vivo e ainda mais bonito na redinha.
2.3.2 Fernando o verdadeiro e Fernando o falso
A narrativa centra-se na estória de um rapaz de origem humilde que deseja romper
com a realidade em que vive, sonhando casar-se com uma mulher que lhe dê não só prazer,
mas também riqueza. Por este desejo ser visto como uma impossibilidade por sua própria
família, é impulsionado a realizá-lo, o que o faz viver uma série de obstáculos, mas com ajuda
divina, consegue realizar-se. Algumas versões finalizam com a punição dos oponentes, outras
apenas os afastam da narrativa.
Comprovando o caráter popular desse tipo de construção em que se mostram os
conflitos sociais fluindo pela criatividade e rememorização de uma autoria coletiva que não
deixa morrer os desejos de transformação, por mais que se perpetuem as diferenças, o conto
52
aborda valores e crenças de um povo que serão mostrados através da análise semiótica do
conto.
Este título foi registrado por Aarne/Thompson como Ferdinand the true and
Ferdinand the false, tipo 531. Este conto é corrente em Portugal, tendo sido recolhido por F.
Xavier Ataíde de Oliveira Contos tradicionais do Algarve com o título A Princesa das Pedras
Finas e por J. Leite de Vasconcellos Contos Populares e Lendas em Viseu – A Rainha das
Pedras.
No Catálogo do Conto Popular Brasileiro (CCPB*) de Bráulio do Nascimento,
publicado em 2005, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC),
encontra-se classificado no grupo: II. Contos Folclóricos Comuns, como A.Contos
Maravilhosos, tipo 531(T67.1). Nascimento catalogou as versões desse conto no Brasil
escritas por Cascudo, 1946:77-82 – Maria Gomes (v.327A); Almeida, 1951, 118 – A princesa
da Pedra Lisa; Gomes, 1953:157-59 – Histórias do cavaleiro-de-prumo; Pimentel, 1976:78-
86 – Os amigos invejosos; 1995, 7 – A princesinha roubada; Fagundes, 1961, 12 – Joãozinho
e os couves (v.530); Aragão, 1992:32-33 – O pássaro das penas de ouro (531+506); Maia,
1995:70-72 – A princesa da Pedra Fina (531+T67.1); Silveira, 1998, 11 – João sem direção
(531+506). É um conto recorrente também em Portugal e na África.
O quadro a seguir condensa as principais informações sobre o conto analisado segundo
Nascimento:
Tipo Identificação no
CCPB*
Versões analisadas
Obras
Local
A Princesa da Pedra
Fina
Maia
Catolé do Rocha
II. Contos folclóricos
comuns A. Contos maravilhosos
531+T67.1 D231.2
Motivos: T. Sexo D. Religião
Princesa da Pedra Fina
Pimentel
Guarabira
As duas versões analisadas, embora discursivizadas diferentemente uma da outra,
apresentam na estrutura profunda, elementos comuns que permitem identificá-las como
pertencentes ao conto Fernando o verdadeiro e Fernando o falso – tipo 531 do catálogo de
Aarne/Thompson. Essa estrutura revela um afastamento da terra de origem e,
consequentemente do seio familiar, em busca de realizações, a superação de obstáculos pela
53
ajuda divina, fenômenos que desafiam as leis da lógica como foi o caso do reino encantado e
a quebra desse encanto pelo rapaz que, por suas qualidades, fora destinado à difícil missão.
A semelhança do título das versões acontece, provavelmente, por ser a princesa da
pedra fina a expressão que revela a realidade onde estão embutidos os valores almejados pelo
personagem principal a exemplo de felicidade, riqueza e experiência de vida. E ainda por nela
está arraigado o caráter exemplar do conto Desejar o que é bom, não o que é ruim.
As duas versões analisadas podem ser vislumbradas nos resumos a seguir:
Em A Princesa da Pedra Fina, codificado como Va, a narrativa centra-se na figura de
três filhos de um homem pobre. Apesar de trabalharem, viviam necessitados. Um dia, os três
pararam para conversar debaixo de um juazeiro. José desejou um prato de feijão com coco.
João em contrapartida, disse que melhor era mungunzá com feijão. Manoel, depois de insultar
os irmãos, desejou ver as pernas da Princesa da Pedra Fina.
Por este desejo, Manoel sofreu uma surra do pai e foi acudido pela mãe. Resolveu ir
embora, foi abençoado pela mãe, que pediu a Deus e a Virgem Maria que o guiassem. No
caminho, encontrou um cavalo com muita sede e foi ajudá-lo, apanhando a água no cacimbão
com o chapéu. O cavalo depois de saciado, morreu de tão grande era a sede. Manoel cortou as
crinas e levou-as com ele para se lembrar da caridade que fizera.
Mais adiante, encontrou um cachorro atacando uma raposa. Salvou a raposa que,
agradecida, ofereceu ajuda para quando ele estivesse em dificuldade e disse que o cavalo a
quem ele havia ajudado era seu guia. Manoel foi trabalhar de jardineiro no reinado da
Princesa da Pedra Fina.
Os irmãos de Manoel resolveram ir atrás dele. Saíram sem direção e chegaram ao
reinado em que o irmão estava e foram trabalhar num sítio. Um dia encontraram-se com
Manoel e ficaram sabendo que ali era o reinado da Princesa da Pedra Fina. Os irmãos,
sabendo que a princesa estava encantada, foram até o rei e disseram-lhe que Manoel tinha dito
que a desencantaria. O rei foi saber se Manoel tinha dito aquilo. Manoel negou, mas se os
irmãos disseram, ele faria.
No caminho, a raposinha esperava-o para repreendê-lo por se deixar acompanhar dos
irmãos e orientou-o sobre como proceder para desencantar a princesa. Ele deveria invocar o
cavalo, montar nele e deixar que ele saberia ir, pois era o anjo da guarda de Manoel. Ao
chegar ao portão, encontraria uma serpente, se ela estivesse com os olhos fechados, voltasse,
pois ela estaria acordada, se estivesse com os olhos abertos, poderia entrar, pois ela estaria
dormindo. Antes pegasse uma chave que se encontrava no nariz dela, pois com esta chave
54
abriria a porta do quarto, onde a princesa estava. Assim fez Manoel. Na volta, deixou a chave
e foi embora. Com a chegada da princesa, fizeram uma festa no reinado.
A raposa, novamente, falou com Manoel, orientando-o para ele fosse dizer ao rei que
os irmãos tinham dito que tinham coragem de ficar dentro de um quarto com uma arroba de
pólvora e, se o rei tocasse fogo, eles apagariam. O rei foi saber dos irmãos de Manoel. Eles
negaram, mas como o irmão disse, eles ficariam. Morreram despedaçados quando o rei tocou
fogo. Manoel casou com a Princesa da Pedra Fina. Ela disse que ele tinha desejado ver as
pernas dela e tinha se dado bem.
Na segunda versão analisada Princesa da Pedra Fina, codificada como Vb, o percurso
figurativo sofre alterações, visto que se trata de uma narrativa popular, sem autoria específica.
A narrativa tem início com um pai e seus três filhos no roçado. Eram onze horas quando o
mais novo desejou comer pipoca, o do meio, bredo e o mais velho desejou deitar no colo da
Princesa da Pedra Fina. Esse último desejo foi motivo para uma grande surra do pai. Em
pouco tempo, chega a mãe com as pipocas e o bredo. Joaquim, o mais velho, não quis comer.
No dia seguinte, Joaquim foi embora e chegou a um local parecido com uma rua de
pedra. Viu uma gruta e imaginou ser repouso de roceiros ou morada de uma onça. Entrou para
descansar, quando ouviu tocar a campainha. De repente, estava num palácio, guiado por uma
voz que o levou ao banho e à ceia. Quando voltou ao descanso, estava novamente na gruta.
Passou três dias recebendo o café pela manhã, almoço ao meio dia e às quatro horas da tarde,
a gruta se transformava em um palácio. No terceiro dia, o palácio tinha três quartos, a voz
então disse para Joaquim abrir a porta do primeiro quarto. Ao abrir, viu uma linda princesa
que lhe pediu para catar-lhe os piolhos e arrancar-lhe um alfinete da cabeça. Joaquim assim
fez e a princesa foi desencantada. Ela avisou que faltavam mais dois dias para concluir o
desencanto. No dia seguinte, tudo se repetiu e a princesa então lhe pediu para abrir a segunda
porta. Joaquim viu a rainha que fez os mesmos pedidos feitos pela princesa e, como a princesa,
foi desencantada.
No último dia, foi a vez do rei ser desencantado e Joaquim abriu a terceira porta. Ao
arrancar o alfinete da cabeça do rei, o que antes parecia uma rua de pedra foi transformado
numa cidade. O rei fez o casamento de Joaquim com a filha e deu uma grande festa.
O pai reuniu a família e resolveu procurar Joaquim. Chegaram ao reinado onde estava
Joaquim que os reconheceu. Estes, porém, não o reconheceram porque Joaquim estava vestido
de príncipe. Ele chamou todos ao alpendre e ofereceu pipoca, bredo e colocou o cinturão com
que seu pai lhe bateu sobre a mesa. Engendrou uma cama com três cadeiras e pediu a princesa
55
que sentasse para ele colocar a cabeça no colo dela. Recordou a surra que sofreu do pai,
dizendo que era necessário desejar o que é bom, não o que é ruim. Em seguida pediu a benção
ao pai, abraçou os irmãos e as cunhadas. Reinou muita alegria e festa naquele lugar. Ainda
convidou os pais para morarem no palácio com ele.
2.3.3 A Mais Bonita
Esta narrativa está voltada para a história de dois homens compadres de classes sociais
diferentes que resolvem mandar seus filhos viajarem pelo mundo com o intuito de que eles
comprovassem o valor da riqueza e do saber, conforme a posição que defendiam. O filho do
pobre volta rico e o filho do rico volta pobre, o que causa decepção aos pais que, angustiados
se suicidam.
Pode-se inferir a partir deste conto o registro de valores fundamentados na
desigualdade social, como histórico secular de um povo movido pelo prazer efêmero das
coisas corrosivas de um lado, e de uma pequena e desacreditada massa de pessoas desejosas
do inteligível, a exemplo da sabedoria, de outro.
Este título foi registrado por Aarne/Thompson como The Most Beautiful, tipo 925.
Este conto é corrente na Estônia, França e Irlanda e Portugal.
No Catálogo do Conto Popular Brasileiro (CCPB*) de Bráulio do Nascimento,
publicado em 2005, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC),
encontra-se classificado no grupo: II. Contos Folclóricos Comuns, como C. Novelas (contos
românticos), tipo 925. Nascimento catalogou versões desse conto no Brasil, escritas por:
Gomes, 1965:105-10 – Amante de repolhos; Paula, 1987, 49 – A estória da gata; Pimentel,
1993, 14 – Os filhos do faraó (v.551); Maia, 1995:19-21 – O filho do rico e o filho do pobre
(v. N141); Nóbrega, 1996:146-48 – O reino encantado no Araripe; 188-90 – A riqueza e o
saber (v. N141); Silva, 1998, 1 - História do rapaz que saiu pelo mundo; Silveira, 1998, 9 --
O menino da floresta; Alcoforado & Albán, 2001, 69 – A história do rico e do pobre; Lima,
2003, 62 – O ter e saber.
O quadro a seguir condensa as informações sobre o conto analisado segundo
Nascimento:
56
Tipo Identificação no
CCPB*
Versões analisadas
Obras
Local
O filho do rico e o
filho do pobre
Maia
Catolé do Rocha
II. Contos folclóricos
comuns C. Novela (Contos
românticos) 925* (V. N141)
Motivo: N. Acaso e destino
O compadre rico e o
compadre pobre
Maia
Catolé do Rocha
As duas versões analisadas apresentam na estrutura profunda, elementos comuns que
permitem identificá-las ao conto A Mais Bonita – tipo 925 do catálogo de Aarne/Thompson.
Essa estrutura mostra a existência de duas famílias que caracterizam os pólos da diferença
sócio-econômica, cada uma argumentando em defesa do status que ocupa, destinando os
filhos para comprovarem suas posições.
Embora caracterizadas como novelas, dentre as várias especificidades dos contos
folclóricos comuns catalogados por Nascimento, em Va aparecem aspectos do maravilhoso
pelo encantamento.
As duas versões analisadas podem ser vislumbradas nos resumos a seguir:
A versão O filho do rico e o filho do pobre, codificada como Va, a narrativa inicia-se
com o rico defendendo o ter e o pobre defendendo o saber. O rico determina que seu filho
viaje com o filho do pobre. Durante a conversa, o pobre diz que o filho vai com a maca nas
costas e uma rodilha. O rico levou tudo o que podia precisar e muito mais.
Saíram os dois e depois cada um seguiu um caminho diferente. O rico gastou tudo que
tinha com farras. Quando se encontrou só, foi parar na casa do Cururu encantado. A princesa
o atendeu e entregou livros para ele ler e instrumentos para ele tocar. Mas ele não sabia nem
ler, nem escrever. Ela apagou a luz e disse que se abraçassem com quem achasse melhor. Ao
acender a luz, viu o rico abraçado com a comida da mesa. Depois a princesa saiu com ele para
olharem a propriedade e ao atravessar o riacho ela deixou as coxas à mostra. Perguntou o que
ele tinha achado mais bonito e ele disse que tinha sido o umbuzeiro florido e, por tudo isso,
foi preso.
O filho do pobre em sua caminhada também chega à casa do Cururu. Saudou-o, leu,
tocou, e ainda elogiou as pernas da princesa, ganhando sua simpatia. O Cururu que era o rei
encantado desencantou-se e fez o casamento da filha com o pobre. Quando, um dia,
57
passeavam, viu um alçapão e perguntou o que era. Vendo o amigo preso, pediu que o soltasse.
Voltaram à casa dos pais: o que era pobre numa carruagem e o rico com a maca nas costas.
O pai do rico, vendo seu filho com a maca nas costas e o do seu compadre na
carruagem, suicidou-se. O que era pobre levou a família para morar com ele.
Assim como as demais versões observadas dos outros contos analisados, Vb, que
consiste na versão O compadre rico e o compadre pobre, também apresenta alterações no
percurso figurativo, embora haja elementos comuns. Nesta versão a narrativa conta a história
de dois compadres: um rico que só valorizava o ter e o pobre que valorizava o saber. O pobre
colocou o filho na escola e insistiu na sua aprendizagem.
Um dia, os dois conversando, o pobre decidiu que mandariam seus filhos viajarem
pelo mundo para ver quem conseguia melhores condições.
Saíram os dois e quando tiveram que se separar, o pobre foi por uma vereda e o rico
por uma estrada. Em sua estrada, o rico encontrou um palácio, onde uma criada o atendeu e
pediu que aguardasse enquanto avisava ao dono da casa. Teve uma calorosa recepção pelas
moças e o pai delas. Durante o jantar, acenderam as luzes porque escurecia, mas o dono pediu
que apagassem para ver quem estaria amparado. Quando acenderam novamente, cada um
tinha abraçado uma pessoa, só o rapaz abraçou uma tigela de jerimum. No dia seguinte,
trouxeram livros para ele ler e instrumentos para ele tocar, mas nada ele sabia. Então foram
olhar as propriedades da princesa. Durante o passeio, ela deixou mostrar um pouco das pernas.
Quando mais tarde, perguntou o que ele tinha achado mais bonito no jardim, ele respondeu
que foi o “pé de resedá”. Foi colocado num chiqueiro, sendo alimentado com jerimum.
Um mês depois, chega o pobre ao palácio e, passando pelas provas – ler, tocar e os
outros dois testes mais importantes: escolher no escuro em quem se apoiar e elogiar as pernas
da moça. Ele se saiu muito bem, uma vez que fez as escolhas certas, conquistando a simpatia
do pai da moça que o quis como genro e da moça que o quis como esposo.
Um dia passeando, viu o chiqueiro e reconheceu o filho do amigo do pai. Soltou-o e
mandou que cuidassem dele.
O rei fez o casamento do pobre com a filha e o enviou numa carruagem para pedir a
bênção aos pais. O rico foi numa carga de burro. Reconhecendo o filho no meio da carga de
burros, os pais ricos subiram no sobrado e de lá se jogaram. Na casa do pobre foi festa que se
prolongou até hoje.
58
3 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS VERSÕES DOS CONTOS POPULARES
3.1 O FIEL JOÃO
3.1.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação
As versões foram codificadas conforme se seguem:
Va – O príncipe e o Marcôndio: contado por Severino Carrero, natural de Santana, município
de catolé do Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da
Paraíba, p.49-46, publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade
Federal da Paraíba.
Vb – Pedra Mármore: contado por Luzia Tereza, natural de Guarabira, PB, coletado e
organizado por Altimar de Alencar Pimentel e Myriam Gurgel Maia, Estórias de Luzia
Tereza, p. 259-264, publicado em 1995, em Brasília, DF, pela Thesaurus Editora.
É a segmentação a primeira etapa empírica para a análise semiótica do percurso
gerativo de sentido a que Barthes (1973, p. 38) considera como “recortar o texto [...] em
segmentos contíguos e em geral muito curtos (uma frase, uma porção de frase, no máximo um
grupo de três ou quatro frases)”. Porque são unidades de leitura, ele chamou de lexias,
significante textual e, por assim ser, um produto arbitrário, simplesmente um segmento
interior, de onde se percebe uma repetição de sentidos.
Por tratar-se de construções de caráter oral, as versões apresentaram segmentos ora
convergentes, ora divergentes, não afetando a estrutura conteudística da narrativa, dada à
possibilidade de reconhecimento de elementos correspondentes ao conto. A textualização foi
constituída pelos segmentos abaixo relacionados:
Sg 1 Nascimento do príncipe simultaneamente ao de Marcôndio / rapaz pobre
Sg 2 Os dois amigos saem pelo mundo
Sg 3 Os dois arranjam emprego na cidade
59
Sg 4 O príncipe e Marcôndio / rapaz pobre criam problemas na cidade
Sg 5 O rei é aconselhado a exterminar Marcôndio / rapaz pobre
Sg 6 Pedido do rei para o príncipe viajar sozinho
Sg 7 Ameaça de morte do rei a Marcôndio
Sg 8 Súplica de Marcôndio ao rei
Sg 9 Vitória de Marcôndio sobre o monstro de sete cabeças
Sg 10 Súplica de Marcôndio a Deus
Sg 11 Vitória de Marcôndio sobre um leão feroz
Sg 12 Chegada de Marcôndio a um sobrado
Sg 13 Namoro do rapaz pobre com a moça rica
Sg 14 Fuga do rapaz pobre com a moça rica e o amigo
Sg. 15 Encantamento de Marcôndio
Sg. 16 Notícia dada pelo rei ao príncipe de que Marcôndio foi solto nas matas
Sg. 17 Pedido do príncipe ao rei para ir em busca de Marcôndio
Sg. 18 Vitória do príncipe sobre os três obstáculos
Sg. 19 Chegada do príncipe ao sobrado
Sg. 20 Encontro do príncipe com Marcôndio
Sg. 21 Quebra do encanto pelo abraço do príncipe
Sg. 22 Decisão de que o príncipe casará com a princesa
Sg 23 Aceitação da moça em ficar com o príncipe
Sg 24 Parada para descanso
Sg 25 Profecia dos perigos por que passaria a moça
Sg. 26 Profecia dos perigos por que passariam o príncipe e a princesa
Sg. 27 Nova profecia sobre o casamento e morte do príncipe e da princesa
Sg 28 Proteção da moça pelo rapaz pobre
Sg 29 Chegada à casa do pai do príncipe/ rapaz rico
Sg 30 Casamento do Príncipe / rapaz rico com a princesa/ moça
Sg 31 Nova profecia sobre a morte da moça
Sg 32 Vitória de Marcôndio/ rapaz pobre na luta contra a serpente/ bicho
Sg 33 Ameaça de morte do rei a Marcôndio
Sg 34 Insinuação de falsidade pela moça ao pobre
Sg 35 Encantamento de Marcôndio
Sg 36 Determinação da voz para que o príncipe/ rapaz rico quebre o encanto
Sg 37 Ressurreição do(s) filho(s) e restabelecimento da amizade entre os dois amigos.
60
Sg 38 Partida do rapaz pobre
QUADRO I - Sistematização mais nítida dos segmentos estudados:
Versões Segmentos
Va Vb
Sg1 X Sg2 X Sg3 X Sg4 X Sg5 X Sg6 X Sg7 X Sg8 X Sg9 X Sg10 X Sg11 X Sg12 X Sg13 X Sg14 X Sg15 X Sg16 X Sg17 X Sg18 X Sg19 X Sg20 X Sg21 X Sg22 X X Sg23 X Sg24 X Sg25 X Sg26 X Sg27 X Sg28 X Sg29 X X Sg30 X X Sg31 X Sg32 X X Sg33 X Sg34 X Sg35 X X Sg36 X X Sg37 X X Sg38 X Total 27 18
61
Observa-se a partir do quadro acima que a versão Va traz maior número de segmentos
no início da narrativa (Sg1, Sg4, Sg5, Sg6, Sg7, Sg8, Sg9, Sg10, Sg11, Sg12, Sg15, Sg16, Sg17,
Sg18, Sg19, Sg20, Sg21, Sg22) e Vb traz os do final (Sg22, Sg23, Sg24, Sg25, Sg28, Sg29, Sg30,
Sg31, Sg32, Sg34, Sg35, Sg36, Sg36, Sg37, Sg38).
De um total de trinta e oito segmentos, a versão Va apresenta vinte e sete segmentos e a versão
Vb apresenta dezoito. Nenhuma das duas versões portanto, apresenta-se completa, dado o
caráter coletivo da autoria que ora adiciona, ora retira elementos. Aqui se comprova a
afirmativa popular de que “Quem conta um conto, acrescenta um ponto”. Colocando-se na
ordem decrescente, tem-se:
QUADRO II – Identificação dos segmentos por versões
(em ordem decrescente)
Identificação dos
segmentos Versões em que
aparece Sg38 01 Sg37 02 Sg36 02 Sg35 02 Sg34 01 Sg33 01 Sg32 02 Sg31 01 Sg30 02 Sg29 02 Sg28 01 Sg27 01 Sg26 01 Sg25 01 Sg24 01 Sg23 01 Sg22 01 Sg21 01 Sg20 01 Sg19 01 Sg18 01 Sg17 01 Sg16 01 Sg15 01 Sg14 01 Sg13 01 Sg12 01 Sg11 01
62
Sg10 01 Sg9 01 Sg8 01 Sg7 01 Sg6 01 Sg5 01 Sg4 01 Sg3 01 Sg2 01 Sg1 01
3.1.2 Estruturas Narrativas
3.1.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1
Em Va, o Sujeito Semiótico 1 (S1) é figurativizado por Marcôndio e se instaura na
narrativa pela modalidade de um querer-fazer. Motivado por uma autodestinação, o S1 deseja
defender a vida (dele e do irmão) – Objeto de Valor principal – já que reage contra todos que
tentam tirá-las. O rei e o povo são seus anti-Sujeitos. A coragem e as forças sobrenaturais
benignas (Deus, passadas, voz) o auxiliam na busca de seu objeto. Como anti-Destinador,
coloca-se o povo, que quer sua morte. Funcionam como Oponentes o rei que, aconselhado
pelo povo, tenta matá-lo e forças sobrenaturais malignas aqui figurativizadas por um monstro
de sete cabeças, uma profunda sede, um leão e uma serpente que tentam tirar-lhe a vida,
O programa principal do S1 pode ser assim representado:
Dario Dor Dor
(desejo) (Povo) Adjuvante (coragem/forças sobrenaturais benignas)
S S1 OV
(Rei/Povo) (Marcôndio) Oponentes (defesa da vida)
(rei/povo/forças sobrenaturais malignas)
Em Va, o percurso do S1 acontece em dois momentos: a aventura e o retorno. No
primeiro momento, sendo ameaçado pelo rei, pede-lhe para partir (OV2) com seu armamento.
63
Nas matas, vence três obstáculos (OV3) – monstro, sede e leão. À frente encontra um abrigo
(OV4) e descansa. Passadas o encaminham ao alimento (OV5). Depois deseja conhecer o
sobrado (OV6). Ao chegar a um quarto, encontra uma princesa e quer abraçá-la (OV7), mas é
encantado. No segundo momento, ao ser desencantado pelo príncipe, convence-o a casar com
a princesa (OV8). Durante o caminho de volta, protege o príncipe e a princesa (OV9),
livrando-os da morte. Após o casamento, novamente protege o príncipe e a princesa, matando
uma serpente (OV10) que fora destinada a matá-los. Ao ouvir o barulho da luta do S1 com a
serpente, o rei imagina ser entre os filhos e vai à procura do S1. Encontrando-o, ameaça-o de
morte. O S1 pede para contar a estória proibida (OV11) antes de morrer, livrando-se mais uma
vez, porém se transformando em pedra mármore. Por fim, o S1 é desencantado (OV12) mais
uma vez pelo príncipe.
Os dois momentos podem ser observados no diagrama dos programas auxiliares:
AVENTURA RETORNO
S1 OV1
(defesa da vida) S1 OV2 S1 OV8 (partir) (casar o príncipe com a princesa) S1 OV3 S1 OV9
(vencer três obstáculos) (protegê-los) S1 OV4 S1 OV10
(encontrar abrigo) (matar a serpente) S1 OV5 S1 OV11
(alimento) (contar a estória) S1 OV6 S1 OV12
(conhecer o sobrado) (desencanto) S1 OV7
(abraçar a princesa)
Em Vb, o S1, é figurativizado pelo rapaz pobre que quer servir ao amigo. A amizade é
seu Objeto de Valor principal. As forças sobrenaturais benignas (Deus/voz/passarinho) e a
coragem se colocam como seus Adjuvantes e, como Oponentes, aparecem as forças
sobrenaturais malignas (bicho, sede e a fome da moça, a queda da porta). O S1 acompanhado
pelo amigo, arranja emprego (OV2), namora uma moça (OV3) e, porque o pai dela não os
aceita, foge (OV4) com ela e o amigo. No entanto, o segundo momento é igual nas duas
versões, exceto pela partida final (OV10) em Vb.
Os dois momentos podem ser observados no diagrama seguinte:
64
SAÍDA RETORNO E NOVA PARTIDA S1 OV1
(amizade) S1 OV2 S1 OV5 (emprego) (casar o príncipe com a princesa) S1 OV3 S1 OV6
(namorar) (proteger a moça) S1 OV4 S1 OV7
((fugir) (matar o bicho) S1 OV8
(contar a estória) S1 OV9
(ser desencantado) S1 OV10
(partida)
O estado inicial do percurso do S1 tanto em Va como em Vb, caracteriza-se pela
conjunção com seu Objeto de Valor principal. Lutando para proteger a própria vida e a do
amigo, o S1 passa por perigos e encantamentos numa tentativa de afastá-lo do seu Objeto de
Valor, porém termina seu percurso conjunto com o mesmo.
É possível representar os estados de transformação (F) pela frase-diagrama:
F = [ (S2 ∩ OV ) (S2 U OV ) (S2 ∩ OV ) ]
O discurso do S1 se qualifica como persuasivo ao querer conservar a vida em Va, e ao
querer continuar amigos em Vb.
3.1.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2
O Sujeito Semiótico 2 (S2) em Va, figurativizado pelo Príncipe, deve fazer uma
viagem (OV1) para afastar-se da cidade, impulsionado pelo rei, seu Destinador. É sujeito de
um dever-fazer para com o rei. Tem como Adjuvante Marcôndio e o povo como Oponente.
O S2 apresenta apenas o programa principal:
65
Dario Dor Dor
(Rei) (Povo) Adjuvante
(Marcôndio)
S2 OV
(Príncipe) Oponentes (uma viagem)
(povo)
Os dois rapazes, o rico e o pobre, figurativizam o Sujeito Semiótico 2 (S2) em Vb cujo
Objeto de Valor é fazer uma viagem em busca de aventuras (OV2), superar as dificuldades
(OV3) e sobreviver (OV4). Trata-se de uma autodestinação, tendo como modalidade o querer-
fazer. O adjuvante é a capacidade de trabalho e o espírito fraterno. Seus Oponentes são os
obstáculos que enfrenta durante a viagem. Trata-se de um sincretismo atoral.
O percurso do S2 em Vb pode ser esquematizado pelo seguinte esquema:
S2 OV1
(viagem) S2 OV2 (aventuras) S2 OV3
(superação de dificuldades) S2 OV4
(sobrevivência)
O estado inicial do S2 caracteriza-se pela disjunção com seu Objeto de Valor. Uma vez
que ele viaja, passa para uma conjunção final.
O estado de transformação (F) do S2 é representado pelo diagrama:
F = [(S2 U OV) (S2 ∩ OV)]
O discurso do S2 se qualifica como persuasivo ao dever-fazer (atender o pedido do rei)
em Va e ao querer-fazer em Vb.
66
3.1.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3
O Sujeito Semiótico 3 (S3) em Va e em Vb apresenta o mesmo percurso, embora
figurativizados de forma diferente (Príncipe e rapaz rico). O Objeto de Valor é o status social
e para mantê-lo, ele deve casar com a moça rica, sendo destinado pelas leis sociais que o
obrigam a casar-se com uma pessoa do seu nível. O rapaz pobre é seu Adjuvante, uma vez
que lhe recorda o dever e o ajuda na execução das tarefas necessárias, inclusive, concedendo-
lhe a própria namorada que pertence à elite. As forças sobrenaturais são os Oponentes porque
se manifestam contra a aquisição do seu Objeto de Valor.
O programa principal do S3 é:
Dario Dor Dor
(sociedade) (querer próprio) Adjuvantes
(rapaz pobre)
S3 OV
(rapaz rico) Oponentes (status)
(forças sobrenaturais)
O S3 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de valor e termina conjunto com o
mesmo.
A frase-diagrama a seguir condensa o estado de transformação (F) do S3.
F = [(S3 U OV) (S3 ∩ OV)]
O discurso do S3 em ambas as versões, qualifica-se como persuasivo ao dever-fazer o
que as leis sociais determinam.
67
3.1.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4
Em Va, o Sujeito Semiótico 4 (S3) figurativizado pelo Príncipe, instaura-se na narrativa
por um querer conservar a amizade do irmão – Objeto de Valor principal – visto que reage
contra a atitude do pai e de todos os demais que tentam separá-los. O rei é seu anti-Sujeito.
Marcôndio e as forças sobrenaturais benignas (Deus, passadas, voz) funcionam como
adjuvantes. Como anti-Destinador aparece o povo que aconselha o rei a separá-lo de
Marcôndio. Criando obstáculos para que o S4 não atinja seu objetivo aparece o rei que
arquiteta a separação dos filhos. As forças sobrenaturais malignas (fera, a sede, um leão e uma
serpente) funcionam pois, como Oponentes.
O programa principal do S4 fica assim organizado:
Dario Dor Dor
(Desejo) (Povo) Adjuvante
(Marcôndio/forças sobrenaturais benignas)
S S4 OV
(Rei) (Príncipe) Oponentes (amizade do irmão)
(forças sobrenaturais malignas)
O percurso do S4 é o da experiência. Voltando da viagem e recebendo a notícia do rei
de que Marcôndio partiu, resolve procurá-lo (OV2). Nas matas, vence três obstáculos (OV3) –
monstro, sede e leão. Encontra abrigo (OV4) e umas passadas o conduzem ao banho, depois à
comida. Ao encontrar o irmão, tenta estabelecer um diálogo (OV5 ) através de palavras, não
conseguindo, abraça a ambos (OV6) príncipe e princesa. O abraço faz quebrar o encanto
(OV7), trazendo Marcôndio de volta. No caminho de volta ao reino do pai, o S4 deseja
alimentar-se (OV8). Depois de quatro anos, quer desencantar o irmão/amigo (OV9) mata os
filhos (OV10) orientado por uma voz e a amizade e a vida são restabelecidas.
Veja-se e percurso do S4 no esquema abaixo:
68
S4 OV1
(amizade do irmão) S4 OV2 (procurar o irmão) S4 OV3
(vencer os três obstáculos) S4 OV4
(encontrar abrigo) S4 OV5
(tentativa de diálogo) S4 OV6
(abraço) S4 OV7
(desencanto) S4 OV8
(alimentar-se) S4 OV9
(novo desencanto) S4 OV10
( matar os filhos)
Em Vb não existe modificação no percurso do S4 aqui figurativizado pelo rapaz rico.
Auxiliando o S4 na busca de seu Objeto de Valor aparecem o rapaz pobre e as forças
sobrenaturais. Com um percurso consideravelmente mais curto, O S4 deseja ouvir a estória
que o amigo precisa contar (OV2), o que faz o amigo se transformar em mármore. Tempos
depois uma voz orienta-o a desencantar o amigo (OV3) que mata o filho (OV4).
Observe-se o percurso do S4:
S4 OV1
(amizade do amigo) S4 OV2 (ouvir a estória) S4 OV3
(desencanto) S4 OV4
(matar o filho) O estado inicial do S4 caracteriza-se pela conjunção com seu Objeto de Valor e
termina conjunto com ele.
O estado de transformação (F) do S3 pode ser representado pela frase-diagrama:
F = [(S3 ∩ OV) (S3 ∩ OV)]
69
O discurso do S3 se qualifica como persuasivo ao querer-ser amigo.
3.1.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5
Em Va e Vb os Sujeitos Semióticos 5 são completamente diversos.
Figurativizado pelo rei em Va, aparece o Sujeito Semiótico 5 (S5) que tem como
Objeto de Valor principal a separação dos filhos/amigos (Marcôndio e o Príncipe), e se
instaura na narrativa pela modalidade de um dever-querer-fazer Marcôndio morrer. O povo o
impulsiona a exterminar Marcôndio, funcionando pois, como Destinador. Como Adjuvante
aparece a imprudência, uma vez que não consegue discernir entre o bem e o mal decidindo-se
a atender o pedido do povo.O S4 (Príncipe ) e o S1 (Marcôndio) funcionam como anti-Sujeitos
por se posicionarem em defesa da amizade e da vida. As forças sobrenaturais benignas (Deus,
passadas, voz) impedem a obtenção do Objeto de Valor do S5.
Vejamos o programa principal do S5:
Dario Dor Dor
(Povo) (Querer do Adjuvante S1 e S4)
(Imprudência) S5 OV
( rei) Oponentes (separação)
(forças sobrenaturais benignas)
Com intenção de separar os filhos, arquiteta uma viagem para o Príncipe (OV2 ) com o
objetivo de exterminar Marcôndio (OV3). Aceitando o pedido de Marcôndio para deixá-lo ir
embora, acredita estar conseguindo separar os dois. Quando os filhos voltam para casa
juntamente com uma princesa, o S5 casa o Príncipe com a princesa (OV4). Na noite de
núpcias do Príncipe e a princesa, Marcôndio trava luta com uma serpente que veio matar o
casal e ouvindo o barulho da luta, o S5 pensa ser entre os filhos e novamente ameaça
Marcôndio (OV5) .
70
Os programas auxiliares do S5 são assim representados:
S5 OV1 (separar os filhos) S5 OV2
(viagem do Príncipe) S5 OV3 (ameaça a Marcôndio) S5 OV4
(casamento do Príncipe) S5 OV4
(nova ameaça a Marcôndio)
O S5 inicia seu percurso disjunto de seu Objeto de Valor principal que é a separação
dos filhos. Durante o percurso, consegue separá-los, ficando conjunto, porém termina disjunto,
uma vez que não consegue manter a separação.
A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) é:
F = (S5 U OV) (S5 ∩ OV) (S5 U OV)]
O discurso do S5 se qualifica como persuasivo ao dever-querer-fazer o que o povo
determina.
Em Vb, o Sujeito Semiótico 5 (S5) é figurativizado pelo pai da moça, pessoa de status
social elevado. É sujeito de um querer casar a filha (OV1), e por isso é auto-destinado.
Ajudando-o a atingir seu objetivo, aparece o rapaz pobre, que funciona como Adjuvante.
Agindo contra a obtenção do Objeto de Valor do S5, colocam-se as forças sobrenaturais
malignas (a sede, a fome, a porta e o bicho) que funcionam como Oponentes.
Veja-se o programa principal do S5 em Vb é:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (rapaz pobre) S5 OV
(pai da moça) Oponentes (casamento da filha)
(forças sobrenaturais malignas)
71
Sem programas auxiliares, o S5 inicia seu percurso disjunto de seu Objeto de Valor
principal e termina conjunto com ele.
A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) do S5 é:
F = (S5 U OV) (S5 ∩ OV)]
O discurso do S5 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o casamento da filha.
3.1.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6
Em Va o Sujeito Semiótico 6 (S6), figurativizado pela princesa, tem como Objeto de
Valor principal o desencanto (OV2) para poder casar-se com o Príncipe e ser mãe (OV3) e se
instaura na narrativa pela modalidade de um querer-ser livre do encanto. Os Adjuvantes são o
príncipe que a desencanta e Marcôndio que protege sua vida no caminho de volta ao reino.
Funcionando como Oponente do S6, aparecem as forças sobrenaturais malignas que a
encantou.
O programa do S6 fica assim representado:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (Marcôndio)
S6 OV
(Princesa) Oponente (Desencanto)
(Forças sobrenaturais malignas)
Os programas auxiliares do S6 são:
S6 OV1
(desencantar-se)
S6 OV2
(casar)
S6 OV3
(os filhos)
72
Em Vb, o percurso do S6, figurativizado pela moça rica, é mais extenso que o do S6 em
Va. O Objeto de Valor principal muda em relação ao de Va, pois, como não precisou
desencantar-se, já inicia seu percurso com o desejo de casar-se (OV1). Para conseguir o que
deseja, o S6 arranja um namorado pobre (OV2), com quem foge (OV3). Durante a viagem,
aceita namorar o rapaz rico (OV4), sente sede (OV5) e fome (OV6). Chegando à casa do pai,
casa-se com o rapaz rico (OV7). Na noite de núpcias é protegida pelo rapaz pobre que fere um
bicho destinado a matá-la. Porém, o acusa de falsidade (OV8), uma vez que ele precisou se
esconder dentro do quarto do casal para esperar o bicho.
Os programas auxiliares são organizados, segundo o esquema a seguir:
S6 OV1
(casamento) S6 OV2 (namorar o pobre) S6 OV3
(fuga) S6 OV4
(namorar o rico) S6 OV5
(beber água) S6 OV6
(comer uvas) S6 OV7
(casar com o rico) S6 OV8
(acusar o pobre) O S6 em ambas as versões inicia seu percurso disjunto do seu objeto de valor e termina
conjunto com ele.
O estado de transformação (F) pode ser representado pela frase-diagrama:
F = [ (S6 U OV) (S6 ∩ OV) ]
O discurso do S6 é qualificado como persuasivo ao querer-ser livre do encanto em Va e
ao querer-ser casada Vb.
73
3.1.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7
Em Va e Vb, os Sujeitos Semióticos são diversos.
O Sujeito Semiótico 7 (S7) em Va, é figurativizado pelo povo, tem como Objeto de
valor principal, a morte de Marcôndio. Como Adjuvantes destacam-se as forças sobrenaturais
malignas (fera de sete cabeças, a sede, o leão e a serpente) que tentam tirar a vida de
Marcôndio. As forças sobrenaturais benignas (Deus, passadas, voz) funcionam como
Oponentes do S7 e como anti-Sujeitos aparecem o S1 (Marcôndio) e o S4 (Príncipe).
No programa principal do S7, pode-se ver:
Dario Dor
(desejo) Adjuvante
(forças sobrenaturais malignas)
S S7 OV
(S1 e S2) (Povo) Oponentes (morte de Marcôndio)
(Forças sobrenaturais benignas/Marcôndio)
Em Va, o S7 inicia o percurso disjunto do seu Objeto de valor, e termina disjunto. A
frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) é:
F = [ (S7 U OV) (S7 U OV) ]
O discurso do S5 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o rei matar Marcôndio.
Os passarinhos figurativizam o Sujeito Semiótico 7 em Vb cujo Objeto de Valor é
comunicar um saber para evitar a morte da moça (OV2). Trata-se de uma autodestinação,
tendo como modalidade um saber-fazer. O Adjuvante é o conhecimento. Seus Oponentes são
as forças sobrenaturais malignas.
O programa principal do S7 em Vb é:
74
Dario Dor
(desejo) Adjuvante
(conhecimento)
S7 OV
(Passarinhos) Oponentes (comunicar um saber)
(Forças sobrenaturais malignas)
O percurso do S7 em Vb, organiza-se da seguinte forma:
S7 OV1
(comunicar um saber) S7 OV2 (evitar a morte)
Em Vb, o S7 inicia o percurso conjunto do seu Objeto de valor, e termina conjunto. A
frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) é:
F = [ (S7 ∩ OV) (S7 ∩ OV) ]
O discurso do S7 em Vb se qualifica como persuasivo ao saber-fazer a comunicação à
pessoa certa.
75
3.1.2.8 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto O Fiel João
Sujeito Semiótico
Versões
Figurativização
Objeto de Valor
Destinador
Anti-Destinador
Anti-Sujeito
Adjuvante
Oponente
Modalização
Va
Marcôndio
Defesa
(da vida)
Desejo
Povo
Rei
Povo
Coragem/ Forças
sobrenaturais benignas
Rei/povo/ /forças
sobrenaturais malignas
Querer-fazer
S1
Vb
Rapaz pobre
Amizade
Desejo
–
–
Coragem/ Forças
sobrenaturais benignas
forças
sobrenaturais malignas
Querer-fazer
Va
Príncipe
Viagem
Rei
–
–
Marcôndio
Povo
Querer-fazer
S2
Vb
Rapaz rico
Rapaz pobre
Viagem
Desejo
–
–
Capacidade
Espírito fraterno
Obstáculos
Querer-fazer
Va
Príncipe
Status
Sociedade
Querer próprio
–
Forças sobrenaturais
benignas Marcôndio
Forças
sobrenaturais malignas
Dever-fazer
S3
Vb
Rapaz rico
Status
Sociedade
Querer próprio
–
Forças sobrenaturais
benignas Rapaz pobre
Forças
sobrenaturais malignas
Dever-fazer
Va
Príncipe
Amizade
(do irmão)
Desejo
Povo
Rei
Marcôndio /Forças
sobrenaturais benignas
Forças sobrenaturais
malignas
Querer-ser
S4
Vb
Rapaz rico
Amizade
(do irmão)
Desejo
–
–
Forças sobrenaturais
benignas/ rapaz pobre
Forças
sobrenaturais malignas
Querer-ser
76
Va
Rei
(pai do príncipe)
Separação (dos
amigos)
Povo
Querer do S1 e S4
–
Imprudência/
Forças
Sobrenaturais benignas
Dever-fazer
S5
Vb
Pai da moça
Casamento (a filha)
Desejo
–
–
Rapaz pobre
Força sobrenaturais
malignas
Querer-fazer
Va
Princesa
Desencanto
Desejo
–
–
Marcôndio
Forças
sobrenaturais malignas
Querer-ser
S6
Vb
Moça rica
Casamento
Desejo
–
–
Rapaz pobre
Forças
sobrenaturais malignas
Querer-ser
Va
Povo
Morte de
Marcôndio
Rei
–
S1(Marcôndio) S4 (Príncipe)
Forças
sobrenaturais malignas
Forças
sobrenaturais benignas
Querer-fazer
S7
Vb
Passarinhos
Comunicação (de um saber)
Desejo
–
–
Conhecimento
Forças
sobrenaturais malignas
Saber-fazer
77
3.1.3 Estruturas Discursivas
3.1.3.1 Relações intersubjetivas
As versões O Príncipe e o Marcôndio e Pedra Mármore constituem um mesmo conto
popular de tradição oral que, como toda narrativa desta origem se (re)constrói pela memória e
ideologia de seu (re)criador, efetivando a coletividade da autoria, daí o fato de a variação
acontecer tanto no título quanto em determinados elementos integradores do texto.
A Va apresenta um enunciador projetado explicitamente por um “eu” embreado com a
enunciação, embora debreado do enunciado.
“Agora eu vou voltar ao príncipe.”
Em Vb, o enunciador se projeta também por uma embreagem quando deixa escapar a
fala com interpelações diretas ao enunciatário.
“(Imagine um pobre namorando uma moça rica! Com o outro o rico, podia).”
“Que fez o pobre?”
“(O pobre dizendo. Gente besta)”
“O que era que fazia?”
Aqui ele é um ator que opina sobre os fatos narrados, como se tivesse sendo escutado
por um enunciatário (também ator) que está vendo e que o escuta. Em suas interpelações, o
enunciador deixa evidente sua posição em relação ao rapaz pobre, julgando incompatível o
namoro entre ele e a moça rica, dada sua posição sócio-econômica, o que culmina por destruir
a relação entre ambos. O rapaz pobre torna-se consciente de que é incapaz de possuir a moça
rica e a entrega ao príncipe/jovem rico.
O enunciador, com um discurso carregado de marcas da oralidade e de valores sociais,
parece querer, através de um exemplo, fundamentar a posição de que a amizade pelo irmão-
amigo, aliada ao desejo de conservar a vida e a honestidade, representa, simbolicamente, a
luta pela conservação da união e amizade fraternas dos que vivem ameaçados pela morte
78
como prática banal no meio familiar e social, onde se destacam crianças, adolescentes e
adultos: os sertanejos paraibanos.
Para dar veridicção a esta afirmação, o enunciador delega a voz a seis atores, dos quais
um apenas um recebe denominação própria: Marcôndio. Os demais são apontados pelos
papéis temáticos que exercem, isto é, pela função social: filho, príncipe, rei, pai, princesa,
povo, passarinho. Aos atores que não são nomeados por um substantivo próprio, é conferido
um caráter impessoal, podendo ser representado por qualquer um daqueles que vivem
conflitos semelhantes, ao mesmo tempo em que busca, através de forças incoativas da
memória, seres que caracterizam o universo aristocrático como rei, rainha, príncipe e princesa.
Em Vb, o pai da moça era, provavelmente, um rei devido à ênfase ao poder aquisitivo e a
localização espacial ser o reinado.
A designação Marcôndio, atribuída ao rapaz de origem plebéia, aparece apenas em Va,
enquanto Vb traz a designação genérica de rapaz pobre. O nome próprio pode ter se originado
de uma analogia com a palavra mármore, remetendo ao encantamento em pedra mármore (daí
o título Pedra Mármore da segunda versão) do rapaz pobre como punição por contar a estória
proibida. Com essa designação própria, o enunciador parece querer destacar a representação
dos perseguidos, porém protegidos por Deus. A Marcôndio é conferido o caráter de
personagem principal da narrativa, apesar da presença de um príncipe, a quem é,
canonicamente, atribuído esse papel. Tem como adjuvante o sobrenatural, nas figuras de Deus,
voz (profecia) e passadas, atribuindo-lhe engenhosidade, bravura, curiosidade e visão
profética, para vencer todos os obstáculos, conservando a própria vida e a do irmão e,
portanto, conservando a amizade.
Marcôndio e o rapaz pobre são projetados no texto por uma debreagem enunciva e
uma debreagem enunciativa. A primeira é caracterizada pelo contar do enunciador, numa
elocução indireta:
“Depois que eles estavam grandes, batizaram, o príncipe e Marcôndio.”(V a)
“Dois rapazes, um rico e outro pobre [...]”(V b)
A segunda é caracterizada pela enunciação dos atores abaixo explicitados, em
elocuções diretas:
Príncipe
“– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio [...]”(V a)
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Rei
“– Meu filho, eu quero que vá uma viagem mas não quero ficar sozinho, quero que
você deixe Marcôndio comigo.”(Va)
Povo
“– Dê fim a Marcôndio que a desgraça do Príncipe é Marcôndio.”(V a)
Passarinho
“– Aquele rapaz pobre furtou aquela moça [...]”(Vb)
A nomeação Marcôndio parece ser uma estratégia do enunciador para focalizar no
palco do discurso, aquele que dá razão à existência do enunciado. Colocá-lo como perseguido
e defensor é caracterizar, simbolicamente, as pessoas humildes, que acreditam no cultivo da
amizade e união fraternas, além de conferir-lhe a verdadeira valentia: lutar honestamente pelo
bem da vida.
O mistério (que envolve os irmãos), os dois encantamentos (vividos por Marcôndio), a
ressurreição (vivida pelos filhos do príncipe) e um passarinho falante, reforçam, através do
imaginário fantástico de um povo, de um grupo social, verdades da fé: Marcôndio era
coadjuvado por forças sobrenaturais, vencendo os obstáculos mais intensos, comparando-se a
um Hércules que vence o monstro Hidra e um leão. É forte porque crê em Deus:
“Fez uma rogativa a Deus para não morrer de sede naquela montanha.”(Va)
Ao ser caracterizado por atitudes de humildade e luta pela vida, Marcôndio/rapaz
pobre é revestido de valores positivos. É ele que serve de exemplo para uma vida honesta.
Mesmo quando suas atitudes convergem para a prática de matar, o enunciador retira-lhe o
semema de maldade, atribuindo-lhe o de defensor da vida:
“Ele lutou muito com essa fera até que matou.”(V a)
“Travou-se outra luta e matou o leão.”(Va)
“No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente. Entraram em luta.”(V a)
“Ele pá, com o alfanje, feriu aquela cabeça.”(Vb)
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Os fragmentos mostram que o humilde rapaz foi induzido a lutar, brigar, ferir e matar,
mas para, além de autodefesa, sobretudo proteger outras pessoas que, como ele, eram
perseguidas.
O Príncipe e o rapaz rico são projetados no discurso por uma debreagem enunciva e
uma debreagem enunciativa. A primeira pelo contar do enunciador:
“Depois que eles estavam grandes, batizaram, o príncipe e Marcôndio.(Va)”
“Dois rapazes, um rico e outro pobre, [...]”(Vb)
A segunda pela voz que o enunciador delega aos atores:
Marcôndio
“– Quem vai casar é você que é príncipe.”(V a)
Povo
“– Dê fim a Marcôndio que a desgraça do príncipe é Marcôndio.”( Va)
Passarinhos
“– O pobre roubou a moça rica e deu ao amigo rico, mas ele não se lucra dela.”(Vb)
O afastamento do príncipe em Va por meio de uma viagem, provavelmente, é uma
estratégia do enunciador para que se inicie o conflito em defesa da vida. Com a saída do
príncipe, Marcôndio entra em cena. Esse afastamento (viagem) lembra as novelas de cavalaria,
quando o homem parte em busca de aventuras para formar-se. Aqui, certamente, para
completar a formação humana dos rapazes. A primeira parte do texto é caracterizada,
predominantemente, pelo agir do rei, o pai adotivo, contra Marcôndio e de Marcôndio em
confronto com o querer do rei e sobre os demais atores que confluem com a vontade do
monarca. O enunciador dá a Marcôndio a oportunidade de auto-afirmar-se como pessoa
íntegra, esquivando-se de ser morto pelo próprio pai, mesmo sem se rebelar contra ele.
Marcôndio é afastado duas vezes da narrativa. A primeira vez ( só em Va) acontece
quando deseja abraçar a princesa encantada. O enunciador, neste momento, impede a
Marcôndio o contato com a princesa, que é destinada ao príncipe. A segunda vez acontece
tanto em Va quanto em Vb, está sendo punido por não seguir as orientações devidas: de não
contar a estória proibida. Neste momento, o mágico é um recurso lúdico de atração infantil,
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dada à natureza ingênua e curiosa dessa fase da vida humana, em que o impossível perde
espaço para dar lugar às possibilidades da imaginação. A luta honesta de Marcôndio, em
favor da vida, recorda o cristão medieval que tinha ciência de estar vivendo no meio do
combate entre o bem e o mal, na luta de São Miguel4 com Satanás. O rapaz, assim como o
cristão daquela época (que aceitava ser forte ou fraco; rico ou pobre; guerreiro ou trabalhador;
religioso ou leigo), aceita seu lugar social de pobre e é consciente da batalha que está travando
contra o mal.
O rei em Va, pai, incumbido de matar o filho adotado, é projetado no discurso por uma
debreagem enunciva pela voz do enunciador e por uma debreagem enunciativa quando o
enunciador delega a voz a alguns atores.
Vejam-se fragmentos do texto que comprovem a debreagem enunciva:
“Era um rei e uma rainha.”
A debreagem enunciativa:
Marcôndio
“– Meu pai, não me mate!”
Príncipe
“– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio é muito meu amigo e eu só gosto
de andar com ele.”
As três estruturas de dominação legítima estão presentes no conto: a política (legal), a
familiar (tradicional) e a religiosa (carismática).
A estrutura de dominação política emerge com a projeção do rei que é também rico, o
monarca representante do povo. Aquele que, embora numa posição de poder, age conforme a
vontade dos outros. A vontade própria não influencia na tomada de decisões, uma vez que
precisa agradar seu povo. O rei assume a vontade do povo como se fosse a própria.
“[...] e todo mundo dizia ao rei:”(Va)
“Então um amigo do rei aconselhou:”(V a)
4 São Miguel, o Arcanjo de Deus na batalha contra Lúcifer e os anjos rebeldes (Apoc 12,7-8), é o primeiro Anjo honrado pelos fiéis, honrado como "o príncipe da milícia celeste"
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Assim funciona a sociedade: em virtude da posição (status) que ocupa, apresenta um
agir que não lhe é próprio. É uma forma de aculturação quando acontece a negação dos
atributos de um eu pela implantação dos atributos do outro.
A segunda estrutura, a familiar, é caracterizada pelo rei/homem rico, rainha, príncipe,
Marcôndio (filho adotivo) e a princesa que, com o príncipe, construirá outra família composta,
além deles, pelo(s) filho(s).
Ao rei, o enunciador também confere o poder de dominação tradicional, instaurando-o
como pai, chefe da família: o rei tem poder sobre os filhos, que lhe devem obediência, até
quando estes decidem buscar sua liberdade, saindo de casa para lutar pela sobrevivência.
Mesmo atribuindo ao rei uma dupla dominação legítima, o enunciador reveste-o de
valores negativos pelo seu agir, negando a união, a amizade e a honestidade que são valores
cavalheirescos e religiosos. A relevância dada pelo enunciador a esses valores, reafirma o
caráter didático do conto: ensinar pelo exemplo.
É costume no Sertão, incutir, nos mais novos determinados valores, através de estórias
contadas, especialmente pelos avós, mãe, senhoras idosas e professores. Nestas estórias
veiculam valores de tradição popular.
A estrutura de dominação religiosa se faz presente quando é projetada, no texto, a
indicação do “batismo” dos irmãos, da rogativa a Deus para não morrer de sede, e do
sacrifício da morte dos filhos, uma prática inscrita no antigo testamento com animais e na
prova por que Abraão passou quando recebeu a ordem divina de matar o filho.
Deus, dentro da oração do rapaz que luta em prol da vida e da amizade, ocupa o lugar
de enunciatário, conferindo ao discurso o fluxo religioso que caracteriza o homem sertanejo.
“Fez uma rogativa a Deus pra não morrer de sede naquela montanha.”(Va)
Diante da falta do que lhe é necessário, o homem recorre ao sobrenatural que é capaz,
milagrosamente, de suprir qualquer necessidade. O apego à religião é fruto do sofrer: o
homem em perigo, passando por necessidade, clama a Deus. É comum, portanto, a crença
inefável em milagres e promessas que, mesmo não concretizáveis, solidificam uma
religiosidade que constitui a identidade cultural de um povo. Em Vb, Deus está pressuposto,
uma vez que a religiosidade flui nas atitudes de humildade, honestidade e defesa da vida do
rapaz pobre.
A serpente é projetada em Va sob a tarja de ente representativo da maldade,
personificação de Lúcifer que assume muitas imagens, daí em Vb ser projetada a imagem de
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“uma cabeça preta [...] com olhos de fogo”, e ainda, “um bicho”. A projeção acontece quando
a enunciação é de uma misteriosa voz (Va) ou dos passarinhos (Vb), respectivamente, nas duas
versões:
“– Bem, vão: o príncipe, a princesa e Marcôndio, mas no dia do casamento, o príncipe
casa com a princesa e vem uma serpente e engole todos dois nessa noite.”(Va)
“– Porque de noite, quando eles estiverem dormindo, vem um bicho e mata ela.”(Vb)
A debreagem enunciva é representada pelo fragmento que se coloca na superfície do
texto pelo próprio enunciador:
“Quando contou da serpente, que queria devorar ela, tinha matado, caiu lá fora, virou-
se todo na pedra mármore.”(Va)
“No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente.”(V a)
“[...] chegou aquela cabeça preta desse tamanho! Os olhos de fogo”.(V b)
A “serpente”, “bicho”, “cabeça preta com olhos de fogo” são designações populares
para referir-se a “Satanás”, uma figura secularmente revestida de valores negativos. No
discurso bíblico, a serpente é amaldiçoada por seduzir a mulher a destinar o homem a cometer
o ato proibido. “Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais e feras dos campos
[...]” (GÊNESE, 3-14). As pessoas acreditam que, pela astúcia, o diabo se transfigura
assumindo várias formas. É voz popular que designá-lo pelo nome próprio (Satanás, Diabo)
atrai sua presença para junto de quem fala, ou seja, ele se torna enunciatário do discurso de
quem pronuncia seus nomes, portanto é preferível criar uma linguagem eufemística para
confundi-lo. E foi esta, provavelmente, a razão que fez o enunciador chamá-lo de “serpente”,
“bicho”, “cabeça preta”. Talvez este fato tenha se originado no discurso religioso. Nas
orações, Deus é o enunciatário do homem, cuja proximidade ele deseja, invocando seu nome.
A mesma coisa pode acontecer em relação às forças diabólicas.
À princesa em Va, em momento algum, é delegada voz. No início, justifica-se porque
ela estava encantada, isto é, semelhante a uma morta, em estado letárgico, sem falar, nem
ouvir. Mesmo depois quando ela volta a seu estado normal, continua sem voz, embora no
final, esteja subentendido que o choque sofrido ao saber a notícia de morte dos filhos, a tenha
deixado doente.
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“Aí foi dar remédio a mulher pra ela ficar boa, e ficaram sendo os mesmos
amigos”.(Va)
Portanto, ela não opina, não defende os filhos, não fala. Em todas as situações, ela não
participa das decisões, colocando-se numa postura passiva diante dos fatos em Va.
A moça rica em Vb, provavelmente uma princesa, embora lhe seja delegada a voz, a
figura masculina sempre a ela próxima, sobressai-se. Mesmo fugindo do jugo paterno, ela não
fica autônoma, uma vez que são os rapazes que decidem com quem ela casará, o que ela deve
beber ou comer, sua voz não é ouvida quando acusa o amigo do rapaz rico e, ainda, não pode
proteger o(s) filho(s) contra a ação do marido. São todas atitudes subservientes, nas quais ela
não é considerada pelo seu valor, mas excluída do processo decisório.
Os atores femininos (rainha, princesa/moça rica) que são projetados no discurso,
reforçam a cultura que permeia todo sertão nordestino, de inferioridade feminina. O
enunciador usa tanto da estratégia do silêncio, ora confirmativo, ora desesperador, quanto de
uma voz sem força, desses atores em relação às atitudes masculinas, para conferir-lhe um
comportamento de submissão, passividade. É uma postura que reforça a religiosidade milenar,
cristã, encontrada no preceito bíblico “Mulheres, sede submissas a vossos maridos, porque
assim convém, no Senhor.” (COLOSSENSES, 3-18).
Neste conto A voz do povo não é a voz de Deus, como reza o adágio popular, pois o
povo destina ao rei à pratica de um ato de maldade contra o filho. O enunciador atribui ao
povo, projetado no discurso pela debreagem enunciva, valores negativos; aqui talvez a inveja
seja o motivo de o povo querer o sumiço de Marcôndio, uma vez que ele se destaca pelos
atributos de valente, forte e destemido. A projeção do povo acontece na expressão:
“Então começaram a fazer bagunça na cidade e todo mundo dizia ao rei:”(Va)
A violência é uma prática incitada pelo povo contra ele mesmo. Na tradição e na lei, é
o povo que determina o agir dos seus representantes. Dessa forma o rei representa seu povo e,
portanto, deve seguir o conselho.
Reiterando o conselho do povo, o enunciador projeta-o sob a figura de um amigo,
como a querer dizer que o rei deve escutar o povo, não só pela posição que exerce, mas
também pelos laços de amizade. Sendo amigo, o conselho é bom. O povo, na figura de amigo,
é projetado no discurso por uma debreagem enunciva:
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“Então um amigo do rei aconselhou:”(Va)
A projeção dos passarinhos no discurso ocorre por uma debreagem enunciva e por
uma debreagem enunciativa. A primeira pelo contar do enunciador:
“Aí chegaram dois passarinhos, pousaram no galho de pé de pau.[...]”(Vb)
A debreagem enunciativa acontece na delegação de voz ao rapaz pobre quando vai
contar a história que não devia.
“– O passarinho também avisou que se ela comesse aquelas uvas, morria. Eu livrei a
vida dela das uvas.”(Vb)
Passarinhos são polinizadores naturais. São eles que levam as sementes para
germinarem em terra fértil e darem continuidade à vida natural. Portanto, estabelecem uma
comunicação dos elementos da natureza entre si. São destinadores naturais de uma
competência para criar. Dessa forma, são os braços de Deus no processo de criação. Os do
texto têm uma missão profética (representam a voz de Deus), quando destinam um saber ao
rapaz, considerado a pessoa certa para ouvi-lo. O rapaz pobre, onde foi semeada a notícia, foi
capaz de guardar o segredo até o momento em que precisou usá-lo em autodefesa. A segunda
profecia se cumpriu, mas para que houvesse a retribuição do bem feito a ele pelo amigo,
(transformado em pedra mármore) era necessário que o príncipe/rapaz rico o desencantasse,
embora precisasse matar os filhos. Assemelha-se ao episódio de Abraão quando lhe é
ordenado por Deus a morte de Isaac. E do mesmo jeito que acontece no episódio bíblico,
quando Deus queria testar apenas a fidelidade de Abraão, ocorre nas duas versões quando,
sem vacilar, os rapazes obedecem a voz e matam o(s) filho(s) que, depois de mortos,
ressuscitam.
Essa função destinadora e profética do passarinho é lembrada pelo povo na expressão
popular: “Um passarinho me contou”, usada para omitir a origem da notícia.
O sistema temporal do conto se organiza a partir do tempo crônico, que é o tempo dos
acontecimentos, engendrando a enunciação a partir de fatos instalados no enunciado.
Ancoram-se os programas narrativos em atores que podem ser qualquer um de nós, em
espaços que podem ser qualquer lugar, em tempos desordenados em relação ao presente da
enunciação. Isso acontece porque o discurso desloca a narrativa para longe de um agora,
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fixando-a num então. Dessa forma, o enunciador se encontra distante do tempo da enunciação.
Predominam, no enunciado, os pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo, no contar do
enunciador e uma idéia de futuro próximo nas locuções “vou matá-lo”, “vou dar fim” ao
delegar a voz ao rei em Va. A ocorrência do presente acontece quando o enunciador projeta-se
no “eu” “Agora eu vou voltar ao príncipe” em Va e com a elocução dos interlocutores em
debreagem enunciativa de segundo grau nas duas versões, e ainda com a projeção da
enunciação do enunciador numa incitação para a interação através da função fática “(Imagine:
um pobre namorando com uma moça rica! Com o outro, o rico, podia ser. Não era?)”, em Vb.
Esse sistema temporal pode ser organizado da seguinte forma:
Passado
Presente
Passado
História dos dois rapazes
Recuperação dos fatos pelo
enunciador
História dos dois rapazes
O primeiro momento se refere ao tempo em que aconteceram os fatos da história dos
dois rapazes. Em seguida, o enunciador recupera esse passado, colocando os fatos no presente
da enunciação. Logo depois, a história dos dois rapazes é colocada noutro tempo e projetada
no passado.
Com o tempo durativo, não-acabado: “Era um rei e uma rainha” em Va, e “[...] eram
amigos desde meninos” em Vb, o discurso enunciativamente projeta uma irrealidade em que
se relatam acontecimentos concomitantes ao então, colocados no passado, instalando, depois,
uma nova realidade, através de uma debreagem enunciativa de segundo grau, “– Dê fim a
Marcôndio que a desgraça do Príncipe é Marcôndio.” e “– Você quer fugir comigo? Você tem
coragem de fugir comigo?”, em que a enunciação cria um “eu” para melhor representar o
simulacro, inaugurando o tempo histórico.
Essa presença do tempo inacabado inicial reitera a idéia de que fatos semelhantes
podem acontecer, conduzindo a uma advertência, ou exemplo, confirmando a natureza
didática do conto.
No interior do discurso, as debreagens enunciativas visam a um efeito de verdade,
quando do dialogismo entre os interlocutores. Há, ainda, na debreagem enunciativa, uma
projeção de narrativa profética.
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“Quem essa história contar em pedra mármore há de virar.” (Va)
“E quem essa história contar em pedra mármore virará .” (Vb)
Por tratar-se de uma profecia, o discurso engendra um subsistema temporal, tendo o
futuro do presente (o rapaz no futuro contará a história) funcionando como tempo que
expressa anterioridade ao presente do futuro. A partir do presente do futuro que é o tempo do
enunciador no falar profético, existe um novo futuro que ocorrerá depois do primeiro (o rapaz
transformado em pedra mármore) mantendo com o anterior uma relação de posterioridade.
Podemos sintetizar da seguinte forma:
Anterioridade
Concomitância
Posterioridade
Futuro do presente
Presente do futuro
Futuro do futuro
Narração da história pelo
rapaz
Tempo do enunciador no falar
profético
O rapaz transformado em
pedra mármore
O tempo crônico focaliza o nascimento em Va (período de infância em Vb),
crescimento e reprodução, para indicar o ciclo de vida socialmente estruturada.
“Quando o primeiro filho nasceu [...]” (Va)
“Depois que estavam grandes [...]” (Va)
“Já fazia quatro anos [...]” (Va)
“[...] eram amigos desde meninos” (Vb)
“Com uns tempos, o rapaz pegou namorar [...]” (Vb)
“Com uns tempos apresentou gravidez.” (Vb)
Os dois primeiros fragmentos de cada versão demarcam períodos temporais sem dar
limites exatos para indicar a infância e a passagem da adolescência para a idade adulta dos
dois rapazes, como Jesus que dos doze aos trinta e três anos ficou oculto. O terceiro,
entretanto, a terceira fase da vida do príncipe e do rapaz rico, em que casado teve filho(s) –
em Va, fala-se de quatro filhos, enquanto em Vb, fala-se de um filho -, estando o amigo
estagnado em condição de estátua. É aqui que o príncipe e o rapaz rico passam pelo teste que
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vai comprovar se, realmente, eles sobrepõem a amizade a tudo, até mesmo à família. Estes,
obedecendo à voz, matam o(s) filho(s), precisamente quando lhe(s) tinha grande afeto. O
conto enfim, confirma o caráter exemplar.
A espacialização, assim como temporalização deste conto popular, está dividida em
espaço lingüístico que se refere ao lugar axial do discurso, onde o enunciador se posiciona em
relação à enunciação, e o espaço tópico caracterizado pela instauração, no enunciado, de
pontos de referência do enunciador e dos interlocutores.
A narrativa é construída a partir de uma seqüência de enunciações, reiterando o caráter
popular, comprovando uma autoria coletiva que perpetua os acontecimentos no imaginário de
um povo. Ao projetar na tecitura textual “Agora eu vou voltar ao príncipe.” em Va, e a
projeção de sua própria fala em Vb, numa tentativa de retorno à enunciação, quando incita o
enunciatário a concordar com o juízo de valor que faz “(Imagine: um pobre namorando com
uma moça rica! Com o outro, o rico, podia ser. Não era?)”, o enunciador num aqui, de uma
contar que recria a partir do processo mnemônico, se refere a um lá, passado de uma
enunciação de um ente espacialmente debreado. Quando o enunciador projeta os
acontecimentos no passado, engendra um outro espaço que é o do enunciado.
Memória
Contar do enunciador
(enunciação)
Espaço lingüístico
(enunciado) Lá Aqui Lá
O espaço tópico ajuda a situar e caracterizar os atores que se projetam no enunciado.
Fixado num espaço alhures, é projetada em Va a expressão “reinado”, recuperando
mnemonicamente o espaço dos contos maravilhosos, onde figuram aventuras mirabolantes de
heroísmos e mistérios por encantamentos, permitindo, assim, a reiteração do fantástico em
que se configura a irrealidade.
O enunciador, porém, pontua para a realidade, a fantasia que caminha não mais por
reinos de reis, príncipes e princesas, colocando Marcôndio em Va, sob a figurativização de um
nome próprio para dar caráter de realidade à estória.
O reino agora, recebendo um revestimento verossímil da possibilidade em qualquer
vida, é caracterizado pelo espaço que predomina na primeira parte do conto, em que os
rapazes, responsáveis pelo início da trama, se projetam em um meta-espaço cidade, cujos
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semas caracterizadores são casa e porta. A segunda parte, o meta-espaço matas é
caracterizado por um sobrado, aparentemente abandonado dentro da montanha em Va e pé de
pau, cacimba e plantação de uva em Vb. Nestes espaços, figuram seres como feras, leão e
passarinhos, além de uma vertente de água. É neste ambiente rural, inexplorado que
Marcôndio, sozinho, se auto-afirma como valente, guerreiro e defensor do bem, atraindo o
príncipe que, numa ligação misteriosa, segue a mesma trilha, encontrando, a cada obstáculo
vencido, a certeza de que o irmão estava vivo.
“Até aqui meu irmão vai vivo.”(V a)
Essa frase repetida cinco vezes pelo príncipe projeta um efeito de sentido: não era só a
certeza de que estava o irmão vivo, era preciso a proximidade física da união com ele.
Em Vb, essa busca pelo amigo não acontece, uma vez que eles já estão viajando juntos,
porém os obstáculos são presentes e constantes, constituindo-se em desafios para o rapaz
pobre que, com coragem e bravura vence-os.
A cidade, o espaço inicial e para onde voltam depois de terem se embrenhado nas
matas, parece representar um ambiente desagradável, em que se figura o “ruim” pela mesmice
e pela falta de aventuras salutares que os façam experientes. Foi lá onde começaram a praticar
desordem, de lá veio a ordem de exterminar Marcôndio (Va) e foi de lá também que roubaram
uma moça rica e maldosa (Vb).
“– Fulano! Espie seu amigo dentro do meu quarto! Ele foi falso a você. Você disse que
ele era seu amigo! Passou a noite aqui, no meu quarto, dormindo, Fulano! Cabra
atrevido!”(Vb)
A natureza, no conto, é revestida de valores positivos. Nela, encontra-se água, frutas,
além de repouso. E maiores obstáculos a serem enfrentados quer permitirão aos sujeitos maior
experiência de vida.
“– Vamos descansar debaixo de um pé de pau para fazer um lanche.”
Era preciso deixar a cidade para aventurar-se na natureza, com a ajuda divina,
purificando-se de todo mal, com a água da vida, que sacia a sede de experiência, de
sobrevivência.
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3.1.3.2 Temas e figuras
Expressamente figurativo, o conto evidencia fatos representando o simulacro de uma
dada realidade, de onde fluem temas, cujas considerações já vêm sendo traçadas nesta análise.
Neste conto, surge o tema morte que tangencia toda a narrativa, na luta pela
sobrevivência, cuja figurativização se encontra no agir do rei e de animais perigosos sobre
Marcôndio, de Marcôndio/rapaz pobre sobre os perigos que o ameaçam e ameaçam seu irmão
e a princesa/moça rica, do príncipe sobre o(s) filho(s), como também nas ciladas armadas para
matar a moça rica em Vb.
“– Vou matá-lo porque você é quem bota meu filho no caminho da perdição. Vou dar
fim a você.”(Va)
“Quando Marcôndio entrou nas matas encontrou uma fera perigosa, com sete
cabeças.” (Va)
“Fez uma rogativa a Deus pra não morrer de sede naquela montanha.” (Va)
“Adiante encontrou um leão, uma fera muito perigosa.” (Va)
“No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente. Entraram em luta.”
(Va)
“Mulher, matei meus quatro filhinhos, mas desencantei meu irmão.” (Va)
“[...] Quando beber água daquela cacimba, ela morre.” (Vb)
“[...] Se ela comer das uvas, morre.[...] (Vb)
“– No entrar da casa dele, a porta cai e mata a moça.” (Vb)
“[...] Quando ela saiu, ele pegou a bacia botou debaixo da rede e passou o alfange no
menino.” (Vb)
À figura de patriarca do rei em Va, estão imbricadas os temas opositivos vida e morte.
Vida porque
“Ele criou as duas crianças como filho.”
O ato de “criar” é permitir-lhes a vida. Esta, em oposição à morte, pontua todo o conto:
Marcôndio e o príncipe em Va, o rapaz pobre e a moça rica em Vb são saciados com água,
recuperando uma passagem bíblica em que a samaritana roga “Senhor, dá-me dessa água, para
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eu já não ter sede, nem vir aqui tirá-la.” (JOÃO, 4-15). A água é fonte de vida em abundância,
quem beber da água da vida nunca mais sentirá sede; e os rapazes também encontraram
comida durante o tempo em que estiveram fora de casa; quebraram os encantos (a letargia, a
impossibilidade) para fazer valer a vida no mundo sensível; o agir do rapaz pobre em defesa
da vida e por último o retorno à vida do(s) filho(s) do príncipe e do rapaz rico.
Assim, a sede representa a falta de água no corpo, falta de alimento, de força e de
espiritualidade, portanto a morte corpórea e espiritual. Isso não acontece com os dois amigos
e a moça, uma vez que encontram água e alimento que lhes dão energia para enfrentar os
problemas que encontram.
“Avistou uma vertente onde bebeu muita água e ficou satisfeito.”(V a)
“As pisadas vieram até onde ele estava e depois ele acompanhou as passadas e chegou
na sala de refeição onde tinha comida na mesa de toda qualidade. Ele se serviu bem
e voltou a se deitar.” (Va)
“Avistou uma vertente, chegou lá tomou água.” (Va)
“Não via ninguém: Acompanhou, chegou na sala tinha toda qualidade de comida.”
(Va)
“[...] desencantou-se a rainha, desencantou-se tudo! Ficaram muito satisfeitos,
muito alegres!” (Va)
“Mulher, matei meus quatro filhinhos, mas desencantei meu irmão!” (Va)
“Quando ele voltou estavam, todos quatro, brincando.” (Va)
“Ela só foi beber água da terceira cacimba.”(Vb)
“Ela comeu uva mais na frente.” (Vb)
“Quando jogou, a pedra estremeceu: performou-se o amigo do jeitinho que era!” (V b)
“[...] o menino estava do jeitinho que era, normalzinho.[...]” (V b)
Ao tema da separação subjaz o tema da união que integram morte e vida
concomitantemente. As figuras que concretizam esse tema na superfície do texto são: as
viagens dos rapazes; os encantos; as ameaças de morte do rei a Marcôndio em Va, e as ciladas
de morte contra a moça em Vb.
Em Va, duas viagens são arquitetadas pelo rei e Marcôndio respectivamente: o
primeiro objetiva separar os filhos com a morte de Marcôndio; o segundo encontra, na ida
para as matas, uma forma de sobreviver à ameaça do rei. Em ambas as viagens, acontece a
92
separação dos amigos. Em Va, a separação é obra de forças sobrenaturais malignas para
separar o rapaz rico da moça rica.
O tema união é impresso na construção textual pelo desejo, principalmente do príncipe,
de querer estar sempre junto do amigo, que comunga com esta vontade, lutando,
corajosamente, pela sobrevivência e felicidade do amigo quando livra a esposa dele da morte.
“Eram muito amigos, se criaram amigos um do outro.”(Va)
“– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio é muito meu amigo e eu só gosto
de andar com ele.”(V a)
“[...] e ficaram sendo os mesmos amigos.”(V a)
“Dois rapazes um rico e outro pobre, eram amigos desde meninos.” (Vb)
“– Bem, meu amigo, você se casou. Eu vim livrar sua mulher da morte mais uma
vez.” (Vb)
Emergem também o tema da passividade em oposição à atividade que predomina nas
versões. O discurso bíblico conservador, como já foi abordado nesta análise, prega a
obediência da mulher ao marido. A passividade feminina é concretizada no afastamento da
rainha em Va, no diálogo dos dois rapazes para decidir quem fica com a princesa/moça rica
nas duas versões e na morte do(s) filho(s) do príncipe em que a mulher só foi sabedora depois
do ato em Va e em Vb em nenhum momento. Portanto, o homem tinha poder decisório total,
inclusive sobre a vida dos seus.
.
“Aí foram tratar de um acordo pra ver quem casava com a princesa.” (Va)
“– Quem vai casar é você que é príncipe.”(V a)
“– Quem vai casar é você que chegou primeiro.”(V a)
“Ele foi matou os quatro filhinhos que estavam brincando, lavou a pedra, desencantou
o irmão e correu onde estava a mulher.”(V a)
“[...] Eu roubei essa moça, que é rica, e dou pra você casar com ela. [...]”(Vb)
“[...] Pediu à mulher pra ir à cidade comprar um objeto para ele. Para enganar ela,
ouviu!” (Vb)
“(o marido esqueceu de dizer e quando ela chegou a criança já havia ressuscitado)”
(Vb)
93
Desde a presença de Deus na rogativa de Marcôndio em Va até a submissão feminina
no meio familiar, em relação ao esposo, é indício de um conteúdo católico que recobre a
narrativa do conto popular, confirmando o caráter conservador que permeia esse tipo de
literatura, dada a sua função de veiculadora dos valores arraigados numa determinada
comunidade.
3.1.3.3 Leituras temáticas
A análise discursiva das duas versões do conto analisado permite considerar as
seguintes leituras temáticas:
Primeira leitura
A união e a amizade fraternas devem prevalecer entre os homens.
Segunda leitura
Deus ajuda aos perseguidos e humilhados.
Terceira leitura
O homem deve lutar em favor da vida.
Quarta leitura
O bem sobrepõe ao mal.
Quinta leitura
Os pais têm poder sobre os filhos.
Sexta leitura
O discurso feminino é desprovido de credibilidade.
94
3.1.4 Estrutura Fundamental
A tensão dialética que predomina ocorre entre bem versus mal: de um lado
Marcôndio/rapaz pobre, princesa/moça rica, voz, passadas e os passarinhos, figurativizando o
bem e do outro, emergem o rei (Va), povo, monstro de sete cabeças, leão e serpente/cabeça
preta/ bicho, figurativizando o mal.
Bem implica não-mal e mal, não-bem. Do bem sem o mal, resulta a vida; do mal sem o
bem, a morte.
As relações tímicas que se estabelecem entre bem versus mal permitem a ordem a
seguir:
Para Marcôndio/rapaz pobre, a princesa/moça rica, voz, passadas e passarinhos:
bem vida não-mal
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
mal morte não-vida
(disfórico) (disfórica) (disfórica)
Para o rei (Va), o povo, mostro de sete cabeças, leão e serpente/cabeça preta/bicho:
bem vida não-mal
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
mal morte não-vida
(eufórico) (eufórica) (eufórica)
95
O octógono seguinte operacionaliza a tensão bem versus mal.
O conto apresenta sob a face do maravilhoso, entes representativos das forças
sobrenaturais, que permitem uma tensão dialética entre ser versus parecer.
Ser implica não-parecer, fazendo emergir o segredo. No modo do ser, colocam-se as
forças sobrenaturais, que mantêm a identidade em segredo. São as forças sobrenaturais, mas
não parecem ser.
Parecer e não-ser geram a mentira. No modo do parecer, colocam-se os passarinhos,
a serpente/cabeça preta/bicho que parecem animais, mas não são, constituindo uma mentira.
As relações tímicas da tensão ser versus parecer, permitem a seqüência dos percursos:
Para as forças sobrenaturais:
ser segredo não-parecer
(eufórico) (eufórico) (eufórico)
parecer mentira não-ser
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
Tensão dialética
bem
não-mal
mal
não-bem
vida morte
0
96
Para os passarinhos, a serpente/cabeça preta/bicho:
ser segredo não-parecer
(disfórico) (disfórico) (disfórico)
parecer mentira não-ser
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
Essa tensão pode ser operacionalizada no octógono abaixo:
Em Va, instaura-se um conflito entre dominante e dominado. O rei mantém uma
relação de poder sobre o príncipe, Marcôndio e o povo, que caracteriza uma dupla dominação
legítima: familiar em relação aos dois primeiros e política em relação ao terceiro.
A dominação legítima familiar tem por base uma relação de obediência por motivo de
hábito, pois já faz parte da tradição. Neste conto, o dominante é o rei, pai, a quem os filhos
príncipe e Marcôndio devem obediência, daí por que a relação de implicação entre os termos
dominante e não-dominado faz emergir a autoridade de pai e, entre dominado e não-
dominante faz emergir a obediência dos filhos.
Na dominação legítima política, o dominante é o rei que ocupa a posição de
autoridade sobre o povo que lhe deve obediência.
Tensão dialética
ser
não-parecer
parecer
não-ser
segredo mentira
0
97
As relações tímicas que emergem a partir dos opostos dominante versus dominado são
mostradas a seguir:
Para o rei:
Dominante autoridade não-dominado
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
Dominado obediência não-dominante
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
Para o príncipe, Marcôndio e o povo:
Dominante autoridade não-dominado
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
Dominado obediência não-dominante
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
Essa tensão dialética colocada no octógono oferece uma visão mais precisa:
Tensão dialética
dominante
não-dominado
dominado
não-dominante
obediênciaMarcôndio/príncipe/povo
autoridaderei
0
98
Outro conflito que emerge da narrativa se instaura entre a oposição passivo versus
ativo, cujo ponto comum é encontrado no meio familiar, caracterizando a relação entre as
personagens masculinas e as personagens femininas.
Ativo implica não-passivo e passivo, não-ativo. Do ativo sem o passivo, resulta o
masculino; do passivo sem o ativo, o feminino.
Desde o início da narrativa, parece não haver espaço para sugestões femininas: a
rainha não se instaura como sujeito semiótico em Va e nem ao menos aparece em Vb, e a
princesa, em nenhum momento lhe é delegada a voz em Va. Esta se reveste de uma grande
tristeza, pressuposta na afirmativa final do texto:
“Aí foi dar remédio a mulher pra ela ficar boa[...]”(V a)
Em Vb, a moça rica mostra-se passiva quando está sob o jugo paterno, e mesmo
fugindo, fica sob o jugo do marido.
Para as personagens masculinas:
Ativo masculino não-passivo
(eufórico) (eufórico) (eufórico)
Passivo feminino não-ativo
(disfórico) (disfórico) (disfórico)
Para as personagens femininas:
Ativo masculino não-passivo
(disfórico) (disfórico) (disfórico)
Passivo feminino não-ativo
(eufórico) (eufórico) (eufórico)
99
O octógono oferece uma visão mais precisa desse conflito:
Tensão Dialética
Meio Familiar
0
ativo passivo
não-passivo não-ativo
masculino feminino
100
3.2 FERNANDO O VERDADEIRO E FERNANDO O FALSO
3.2.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação
As versões foram codificadas conforme se seguem:
Va – A princesa da pedra fina: contado por Antônio Francisco da Silva, natural de catolé do
Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da Paraíba, p.70-
72, publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade Federal da
Paraíba.
Vb – Princesa da pedra fina: contado por Luzia Tereza, natural de Guarabira, PB, coletado e
organizado por Altimar de Alencar Pimentel e Myriam Gurgel Maia, Estórias de Luzia Tereza,
p. 63-66, publicado em 1995, em Brasília, DF, pela Thesaurus Editora.
Confluindo com a natureza popular, em que o autor se caracteriza pela coletividade,
deixando marcas sócio-culturais de um tempo e de um povo, quando e por onde passou, o
conto apresenta ora convergências, ora divergências segmentais, sem perder o ponto de
encontro. Vejam-se os segmentos extraídos:
Sg 1 Conversa dos três irmãos no campo
Sg 2 Desejo manifestado pelos irmãos
Sg 3 Surra sofrida pelo irmão mais velho (Manoel/Joaquim)
Sg 4 Pedido de bênção à mãe pelo rapaz
Sg 5 Partida do rapaz
Sg 6 Auxílio prestado a um cavalo e a uma raposa
Sg 7 Disposição da raposa em ajudá-lo como agradecimento por ter sido socorrida
Sg 8 Chegada do rapaz ao reinado da Princesa da Pedra Fina
Sg 9 Determinação de uma voz para o rapaz se alimentar, descansar e desencantar a
Princesa
Sg 10 Desencanto da Princesa
101
Sg 11 Casamento do rapaz com a Princesa
Sg 12 Encontro do rapaz com os irmãos/família
Sg 13 Conselho dado pela raposa ao rapaz
Sg 14 Almoço oferecido pelo rapaz à família
Sg. 15 Recordação do rapaz sobre os pedidos dos irmãos e a surra sofrida
Sg. 16 Prática do plano de morte contra os irmãos
Sg. 17 Morte dos irmãos
Sg. 18 Perdão de Joaquim concedido ao pai
QUADRO I - Sistematização mais nítida dos segmentos estudados:
Versões Segmentos
Va Vb
Sg1 X X Sg2 X X Sg3 X X Sg4 X Sg5 X X Sg6 X Sg7 X Sg8 X X Sg9 X Sg10 X X Sg11 X X Sg12 X X Sg13 X Sg14 X Sg15 X Sg16 X Sg17 X Sg18 X Total 12 14
Observa-se a partir da sistematização dos segmentos no quadro acima que a versão
codificada como Va apresenta maior número de segmentos na primeira metade da narrativa
102
(Sg1, Sg2, Sg3, Sg4, Sg5, Sg6, Sg7, Sg8, Sg10, Sg11, Sg12, Sg13), enquanto a versão Vb, na
segunda metade (Sg8, Sg9, Sg10, Sg11, Sg12, Sg14, Sg15, Sg16, Sg17, Sg18).
De um total de dezoito segmentos, Va apresenta doze segmentos e Vb apresenta
quatorze. Embora nenhuma das versões compreenda a totalidade, os textos se aproximam em
extensão com diferença apenas de dois segmentos. A alteração na presença de segmentos
semelhantes, faz emergir o caráter popular, comprovando a presença de enunciadores e não de
enunciador.
QUADRO II – Identificação dos segmentos por versões
(em ordem decrescente)
Identificação
dos segmentos
Número de versões em que
aparece Sg18 01 Sg17 01 Sg16 01 Sg15 01 Sg14 01 Sg13 01 Sg12 02 Sg11 02 Sg10 02 Sg9 01 Sg8 02 Sg7 01 Sg6 01 Sg5 02 Sg4 01 Sg3 02 Sg2 02 Sg1 02
103
3.2.2 Estruturas Narrativas
3.2.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1
Em Va o Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado por Manoel, é modalizado por um
querer aventura (OV1). O S1 é ajudado pelas forças sobrenaturais benignas que funcionam
como Adjuvantes. Como Oponentes aparecem as forças sobrenaturais malignas e os irmãos..
O programa principal do S1 pode ser representado da seguinte forma:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvantes (forças sobrenaturais benignas)
S3 OV
(Manoel) Oponente (aventura)
(forças sobrenaturais malignas /irmãos)
Para viver aventuras, o S1 viaja (OV2), ajuda os necessitados (OV3) (raposa e
cachorro). Já no reinado da Princesa da Pedra Fina, é conduzido a desencantá-la (OV4).
Orientado pela raposa, contribui para a execução do plano de morte dos irmãos (OV5). Em
seguida casa-se com a Princesa da Pedra Fina (OV6) concluindo seu percurso.
O percurso do S1 se organiza nos seguintes programas auxiliares:
S1 OV1
(aventura) S1 OV2 (viajar) S1 OV3
(ajudar aos encantados) S1 OV4
(desencanta a princesa) S1 OV5
(planejar a morte dos irmãos) S1 OV6
(casar)
104
Em Vb, o Sujeito Semiótico 1 (S1) é figurativizado por Joaquim. Seu percurso
apresenta dois momentos: aventura e perdão. No primeiro momento, ele viaja (OV2), supera
as dificuldades (OV3), arranja emprego para sobreviver (OV4) desencanta a princesa (OV5), e
casa-se com ela (OV6). No segundo momento, recebe a família (OV7), e perdoa os seus (OV8).
O percurso do S1 em Va:
AVENTURA PERDÃO
S1 OV1
(aventura) S1 OV2 S1 OV7
(viajar) (receber a família) S1 OV3 S1 OV8
(superar dificuldades) (perdoá-la) S1 OV4
(sobrevivência) S1 OV5
(desencantar a princesa) S1 OV6 (casar com ela)
O estado inicial do S1 caracteriza-se pela disjunção com seu Objeto de Valor e termina
conjunto com ele.
A seguinte frase-diagrama representa o estado de transformação (F) do S1:
F= [(S1 U OV) (S1 ∩ OV)]
O discurso do S1 se qualifica como persuasivo ao querer-ser aventureiro.
3.2.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2
O Sujeito Semiótico 2 (S2) é figurativizado em Va por João e José. Tem como Objeto
de Valor principal prejudicar o irmão. Seu Adjuvante é a malícia e seus Oponentes são as
forças sobrenaturais benignas e o rei. O S2 é modalizado por um querer-fazer mal ao irmão.
Como anti-Sujeito aparece Manoel.
105
O programa principal do S2 pode ser:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (malícia)
S2 OV
(José e João) Oponente (prejudicar o irmão)
(forças sobrenaturais benignas)
Para prejudicar o irmão, o S2 viaja (OV2), tenta sobreviver (OV3) arranjando emprego,
encontra Manoel (OV4) e convence o rei (OV5) de que ele desencanta a princesa.
Os programas auxiliares do S2 se organizam da seguinte forma:
S2 OV1 (prejudicar o irmão) S2 OV2 (viajar) S2 OV3
(arranjar emprego) S2 OV4
(encontrar Manoel) S2 OV5
(convencer o rei)
Em Vb o Sujeito Semiótico 2 (S2) é figurativizado pelo irmão mais novo e o irmão do
meio. Tem como Objeto de Valor a felicidade. O comodismo é Oponente. É modalizado por
um querer-ser feliz.
O programa principal do S2 pode ser:
Dario Dor
(Desejo)
S2 OV
(irmão mais novo e o do meio) Oponente (felicidade)
(comodismo)
106
O S2 para ser feliz casa (OV2).
O percurso do S2 se organiza da seguinte forma:
S2 OV1 (felicidade) S2 OV2 (casar)
O estado inicial do S2 caracteriza-se pela disjunção com seu Objeto e Valor e finaliza
disjunto, uma vez que não consegue o que deseja.
A frase-diagrama abaixo representa o estado de transformação (F) do S2:
F = [(S2 U OV) (S2 U OV)]
O discurso do S2 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer mal ao irmão em Va, e
ao querer-ser feliz em Vb.
3.2.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3
Figurativizado pelo pai o Sujeito Semiótico 3 (S3) é auto-motivado e deseja
permanecer pobre. Seu Objeto de Valor principal é a pobreza. O conformismo é seu
Adjuvante. Demonstrando um querer contrário ao S3, Manoel funciona como anti-Sujeito.
O programa principal do S3 pode ser representado no diagrama a seguir:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (conformismo)
S S3 OV
(Manoel (pai) (pobreza)
Conformado com a condição de ser pobre, o S3 ao ouvir expresso o desejo de Manoel
surra-o (OV2), demonstrando seu querer contrário.
107
Com apenas um programa auxiliar, o percurso do S3 se organiza da seguinte forma:
S3 OV1
(pobreza) S3 OV2 (surrar o filho)
Em Vb, o S3 figurativizado pelo pai tem como Objeto de Valor principal a autoridade.
A condição de pai é seu Adjuvante. É modalizado por um querer-ser obedecido. O percurso
do S3 é dividido em dois momentos: No primeiro, o S3 ao ouvir o desejo do filho surra-o
(OV2). No segundo, viaja (OV3) em busca de Joaquim.
O percurso do S3 em Vb é:
S3 OV1
(autoridade) S3 OV2 OV3 (surrar o filho) (viajar)
O S3 começa seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor, mas termina conjunto com
ele.
A frase-diagrama que figura o estado de transformação (F) do S3 é:
F = [(S3 U OV) (S3 ∩ OV)]
O discurso do S3 se qualifica como persuasivo ao querer-ser pobre em Va, e ao querer-
ser obedecido em Vb.
3.2.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4
O Sujeito Semiótico 4 (S4) é figurativizado pela mãe dos rapazes e instaura-se na
narrativa por um querer-fazer o filho ser protegido (OV1). É destinada pelo amor. Tem como
Oponente o esposo que é também o anti-Sujeito. Funciona como Adjuvante do S4 a condição
de mãe.
O programa principal do S4 se estrutura da seguinte forma:
108
Dario Dor
(Amor) Adjuvante (condição de mãe)
S S4 OV
(esposo) (Mãe) Oponente (proteger o filho)
(esposo)
Para proteger o filho, o S4 socorre-o no momento da surra (OV2), quer ficar junto dele
(OV3) e o abençoa (OV4) antes de ele viajar.
Os programas auxiliares do S4 podem ser assim representados:
S4 OV1
(proteção o filho) S4 OV2 (socorrê-lo) S4 OV3
(ficar junto dele) S4 OV4
(abençoá-lo)
Em Vb o S4 tem como Objeto de Valor a felicidade do filho. Instaura-se na narrativa
por um querer. É destinado pelo amor. O S4 tem como Oponente o esposo que é também o
anti-Sujeito. Funciona como Adjuvante do S4 a condição de mãe. O percurso do S4 apresenta
apenas um programa auxiliar cujo valor é viajar (OV2) em busca de Manoel.
S4 OV1
(felicidade dos filhos) S4 OV2 (viajar)
O S4 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.
O estado de transformação (F) do S4 é representado pela frase-diagrama:
109
F = [(S4 U OV) (S4 ∩ OV)]
O discurso do S4 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o filho ser protegido em
Va e ao querer-fazer o filho feliz em Vb.
3.2.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5
Sob a figurativização de rei, o S5 se instaura na narrativa por um querer-fazer o
encanto da filha ser quebrado. Impulsionado pelo desejo é auto-destinador. Ajudando ao S5 a
realizar seu desejo, aparece Manoel e as forças sobrenaturais benignas que se caracterizam
como Adjuvantes. As forças sobrenaturais malignas funcionam como Oponentes.
No programa principal do S5, podemos vislumbrar:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (rapaz/ forças sobrenaturais benignas)
S5 OV
(Rei) Oponentes (liberdade da princesa)
(forças sobrenaturais malignas)
Para libertar a princesa, o S4 pede ajuda (OV2), encontra a pessoa adequada (OV3),
pune os irmãos de Manoel (OV4) e casa a princesa(OV5) com o rapaz que a libertou.
Os programas auxiliares do S8 se organizam da seguinte forma:
S5 OV1
(liberdade da princesa) S5 OV2 (pedir ajuda) S5 OV3
(encontrar a pessoa adequada) S5 OV4
(punir os irmãos de Manoel) S5 OV5
(casar a princesa)
110
Em Vb o S5 apresenta como Objeto de Valor também a liberdade, mas agora com o
desencanto de todo reino. Além das forças sobrenaturais, também o auxiliam Joaquim e a
princesa. Diferentemente do S4 de Va, o S4 de Vb, só apresenta um programa auxiliar, cujo
valor é casar a princesa (OV2).
O percurso do S4 pode ser representado no gráfico:
S5 OV1
(desencanto de todo reino) S5 OV2 (casar a princesa)
O S5 começa disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.
O estado de transformação (F) pode ser representado pela frase-diagrama:
F= [(S5 U OV) (S5 ∩ OV)]
O S5 apresenta um discurso persuasivo ao querer-fazer o encanto ser quebrado.
3.2.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6
O Sujeito Semiótico 6 (S6), figurativizado pela princesa, se instaura na narrativa por
um querer-ser livre do encanto (OV1). Impulsionado pelo desejo, segue seu percurso ajudado
por Manoel e as forças sobrenaturais benignas - seus Adjuvantes. Seus Oponentes são as
forças sobrenaturais malignas.
O programa principal do S6 é:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (Manoel/forças sobrenaturais benignas)
S6 OV
(Princesa) Oponente (desencanto)
(forças sobrenaturais malignas)
111
O S6 casa-se (OV2) com Manoel quando se encontra livre do encanto.
O percurso do S6 segue a ordem abaixo, exposta nos programas no esquema abaixo:
S6 OV1
(desencantar-se) S6 OV2 (casar)
Em Vb, o S6 tem como Objeto de Valor o desencanto de todo o reino. Além das forças
sobrenaturais benignas, Joaquim também se apresenta como Adjuvante. E como Oponente
somente as forças sobrenaturais malignas. Com um programa auxiliar a mais que o do S6 em
Va, seu percurso se organiza da seguinte forma:
S6 OV1
(desencantar-se) S6 OV2 (desencanto dos pais) S6 OV3 (casar) Inicialmente, o S6 estava disjunto do Objeto de Valor, mas termina conjunto com ele.
O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:
F= [(S6 U OV) (S6 ∩ OV)]
O discurso do S6 se qualifica como persuasivo ao querer-ser livre do encanto.
3.2.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7
O Sujeito Semiótico 7 (S7) é figurativizado pelo cavalo e é exclusivo de Va. Tem como
Objeto de Valor principal ser o guia de Manoel. Instaura-se na narrativa por um querer-fazer.
É destinado pelas forças sobrenaturais benignas. Manoel é seu Adjuvante. A vida material é
seu Oponente, uma vez que precisa morrer para poder ajudar a Manoel.
112
O programa principal do S7 se estrutura da seguinte forma:
Dario Dor
(forças sobrenaturais) Adjuvantes (Manoel)
S7 OV
(cavalo) Oponente (ser guia)
(vida material)
Para ser o guia de Manoel, precisava testar a bondade dele (OV2) para só depois
conduzi-lo à montanha (OV3).
Veja-se o diagrama dos programas auxiliares do S7:
S7 OV1
(ser guia) S7 OV2 (testar a bondade) S7 OV3 (conduzi-lo à montanha)
O S7 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.
O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:
F= [(S7 U OV) (S7 ∩ OV) ]
O discurso do S7 se qualifica como persuasivo ao querer-ser o ajudante do rapaz na
quebra do encanto.
3.2.2.8 A propósito do Sujeito Semiótico 8
O Sujeito Semiótico 8 (S8), figurativizado pela raposa, só aparece em Va. Tem como
Objeto de Valor principal receber e dar auxílio e se instaura na narrativa por um querer ajudar
113
a Manoel. O saber é seu Adjuvante. Como seu Oponente aparece o cachorro que é também
seu anti-Sujeito.
O programa principal do S8 se estrutura da seguinte forma:
Dario Dor
(forças sobrenaturais benignas) Adjuvante (saber)
S S8 OV
(cachorro) (raposa) Oponente (auxílio)
(cachorro)
Para ajudar a Manoel, o S8 precisa testar a bondade dele (OV2) e punir os irmãos de
Manoel (OV3).
Veja-se o diagrama dos programas auxiliares do S8:
S8 OV1
(auxílio) S8 OV3 (testar a bondade) S8 OV4 (punir os irmãos)
O S8 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.
O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:
F= [(S8 U OV) (S8 ∩ OV)]
O discurso do S8 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer Manoel ser ajudado.
114
3.2.2.9 A propósito do Sujeito Semiótico 9
Figurativizado pelo cachorro, o S9 é exclusivo de Va e se instaura na narrativa por um
querer-fazer a raposa morrer. Impulsionado pelo desejo de matar, o S9 é autodestinador.
Manoel funciona como Oponente. Tem como Adjuvante a maldade.
No programa principal do S9, pode ser vislumbrado:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (maldade)
S9 OV
(Cachorro) Oponente (morte da raposa)
(Manoel)
O S9 inicia disjunto do seu Objeto de Valor que é matar a raposa e termina disjunto.
A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) do S9 é:
F= [(S9 U OV) (S9 U OV)]
O S9 apresenta um discurso persuasivo ao querer-fazer com que a raposa morra.
115
3.2.2.10 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto Fernando o verdadeiro e Fernando o falso
Sujeito
Semiótico
Versões
Figurativização
Objeto de Valor
Destinador
Anti- Destinador
Anti-
Sujeito
Adjuvante
Oponente
Modalização
Va
Manoel
Aventuras
Desejo
–
Irmãos
Forças sobrenaturais
benignas
Irmãos Forças
sobrenaturais malignas
Querer-ser
S1
Vb
Joaquim
aventuras
Desejo
–
Irmãos Pai
Forças sobrenaturais
benignas
Forças sobrenaturais
malignas
Querer-ser
Va
José e João
Prejudicar (o irmão)
Desejo
–
Manoel
Malícia
Rei/ Forças sobrenaturais
Benignas
Querer-fazer
S2
Vb
Irmão mais novo e irmão do meio
Felicidade
Desejo
–
Joaquim
Comodismo
Forças sobrenaturais
Benignas
Querer-ser
Va
Pai
Pobreza
Desejo
–
Manoel
Conformismo
–
Querer-ser
S3
Vb
Pai
Autoridade
Desejo
–
–
Condição de pai
–
Querer-ser
Va
Mãe
Proteger o filho Amor
Esposo
Condição de mãe
Esposo
Querer-fazer
S4 Vb
Mãe
Felicidade do filho
Amor
Esposo
Condição de mãe
Pobreza
Querer-fazer
Va
Rei
Liberdade da filha
Desejo
–
Manoel/rei/ forças
sobrenaturais benignas
Forças sobrenaturais
malignas
Querer-fazer
S5
Vb
Rei
Desencanto
Desejo
–
–
Forças sobrenaturais
benignas/ Joaquim/ Princesa
Forças sobrenaturais
malignas
Querer-ser
116
Va
Princesa
Desencanto
Desejo
–
–
Manoel Forças
sobrenaturais benignas
Forças
sobrenaturais Malignas
Querer-ser
S6
Vb
Princesa
Desencanto
Desejo
–
–
Joaquim Forças
sobrenaturais benignas
Forças
sobrenaturais malignas
Querer-ser
S7
Va
Cavalo
Guia
(de Manoel)
Forças Sobrenaturais
Benignas
–
–
Manoel Forças
sobrenaturais benignas
Vida material
Querer-fazer
S8 Va
Raposa
Auxílio
Forças
sobrenaturais benignas
–
Cachorro
Conhecimento
Cachorro
Querer-fazer
S9 Va
Cachorro
Morte (da raposa)
Desejo
–
–
Maldade
Manoel
Querer-fazer
117
3.2.3 Estruturas Discursivas
3.2.3.1 Relações intersubjetivas
O processo de enunciação do conto em análise é re(construído) pela rememorização e
ideologia do seu (re)criador que, sob a voz de um enunciador coletivo, instaura interlocutores
em situações dialógicas para melhor representar o simulacro.
A narrativa apresenta um enunciador debreado da enunciação que se projeta apenas
por meio de um contar em Va e, embreado da enunciação quando deixa escapar a fala
interpelando diretamente o enunciatário em Vb.
“Era um pai de família que tinha três filhos: José, João e Manoel.” (Va)
“Ele andava prevenido – ouviu!”(Vb)
Por meio do discurso popular, onde emergem vivas as condições da existência humana,
o enunciador parece querer fundamentar a tese de que a projeção de sonhos e projetos,
conjugada com a determinação e a luta pela concretização, sem negar o espírito de
solidariedade àqueles que em seu caminho surgem necessitados, representa o universo de
valores que devem ser cultivados, a exemplo da esperança, paciência e persistência daqueles
que, carentes de realizações, desejam, além da sobrevivência, qualidade de vida, felicidade e
formação humana.
O enunciador projeta nove atores, dos quais a sete delega voz, objetivando, com isso,
dar veridicção à tese que quer fundamentar. Três atores recebem nomeação própria em Va:
José, João e Manoel, e apenas um em Vb: Joaquim. Todos, no entanto, são apontados também
pelos papéis temáticos: irmão, filho, esposo, mãe; animais (cavalo, raposa, cachorro), rei, pai;
princesa. Isto mostra a universalidade e tradicionalidade dos textos. Os nomes próprios
perderam-se no caminhar dos tempos. Os atores não nomeados por substantivos próprios,
além de lhes ser conferido um caráter impessoal, representam o universo aristocrático (rei e
princesa); o familiar (pai, esposo, filho, filha, mãe); e o universo animal (cavalo, raposa,
cachorro).
Os atores são projetados no texto por uma debreagem enunciva e uma debreagem
enunciativa. A primeira emerge pelo contar do enunciador:
118
“O rei disse pra João e José:” (V a)
“[...] Às onze horas, o rapaz mais novo disse:”(Vb)
“O outro rapaz disse assim:”(Vb)
A segunda, quando o enunciador delega voz aos atores:
José
“– Ô João, Ô Manoel, se aqui agora chegasse um prato de feijão com côco, [...]”(Va)
Manoel e Joaquim são projetados na tecitura textual por uma debreagem enunciva e
uma debreagem enunciativa. A primeira projeção acontece pelo enunciar do enunciador.
“Manoel disse:” (Va)
“Joaquim, o mais velho, disse:” (Vb)
A segunda projeção acontece quando o enunciador delega voz a atores:
Raposa
“–Ô Manoel, quando você se ver no maior aperreio,[...]” (Va)
Rei
“– Agora, Joaquim, você vai se casar com minha filha.” (Vb)
Ao nomear os três irmãos em Va – José, João e Manoel/Joaquim, o enunciador focaliza
uma geração ascendente de uma dada camada social: que arraigam a cultura da sobrevivência
cotidiana, rotineira, pelo trabalho forçado e ganho pouco (José e João), ao mesmo tempo em
que rompe, pela figura de Manoel em Va e Joaquim em Vb, com o senso comum semeado pelo
Determinismo de Darwin, cujo slogan considera o homem como produto do meio.
Manoel/Joaquim representa a procura por uma realidade mais dinâmica, sendo protótipo dos
que desbravam caminhos novos, motivos que os direciona, não ao comodismo, e sim à
transformação e ao progresso. A saída deste do seio da família para aventurar-se pelo mundo
em busca de realizações, lembra o cavaleiro medieval, imbuído de valores cristãos, em busca
de formação humana, dispostos a defender até a morte a fé em Deus e a honra de sua dama.
119
Na tradicional estrutura familiar, Manoel/Joaquim representa a desobediência, a “coisa
errada”, o que o leva a ser surrado por sonhar diferente, quebrar o convencional, ou seja,
sonhar com uma realidade da qual o pai não fizera parte (riqueza) e, portanto, acredita ser
inadequada ao filho.
“Foi lá dentro, puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel.” (Va)
“Quando ouviu aquilo, o pai tirou o cinturão e deu uma surra em Joaquim.”(Vb)
O enunciador ainda, na projeção dos irmãos, tende a ressaltar que o ócio, a mesmice e
a inveja são sentimentos negativos, uma vez que podem causar malefícios ao próximo. É
preciso dar bons frutos para ser considerado bom, em consonância com o pensamento bíblico
“E toda árvore que não der fruto bom será cortada e lançada ao fogo” (LUCAS, 3-9).
“[...] quando botaram fogo, foi um estopim tão grande que o menor pedaço deles dava
pra caber dentro de um dedal. Acabaram com a vida deles.” (Va)
Em Vb não acontece o extermínio dos irmãos. No entanto, eles devem buscar trabalho
para poder sustentar a família que, diferente do irmão, se prolonga pobre:
“E vocês dois vão trabalhar para se manterem [...]”(V b)
Em Vb, os irmãos do herói são designados por Fulano e Sicrano. Os nomes são
indeterminados porque as pessoas não agiram bem, não se encaixam nos valores apreciáveis
pelo povo e o enunciador não quis apontar quem foi. Ao contrário do ator focalizado como
modelo ideal, nas duas versões que recebe nomeação própria, (Manoel/Joaquim). Mesmo
revoltado com a surra e o preconceito sofrido, o rapaz não perde a sensibilidade para a
caridade e ajuda a um cavalo e a uma raposa que aparecem em seu caminho precisando de
auxílio. Estes são animais no modo do ser, mas no modo do parecer são personificação do
bem e introduzem no conto o caráter fabuloso dos discursos, pontuando os fatos para uma
irrealidade.
A bênção que recebe da mãe parece conduzir o filho por um enredo que, mesmo
caracterizado como ficção, firma uma verdade que sobrevive a gerações: a religiosidade. O
rapaz, mesmo com atitudes que refletem rebeldia, é revestido de valores positivos, uma vez
que luta pela concretização do seu sonho com dignidade e respeito ao outro, sendo, dessa
120
forma, o exemplo a ser seguido e recebendo agradecimento, pela voz da princesa em Va e do
próprio rapaz em Vb.
“– Olha Manoel, só você me tirava daquele canto. Você desejou ver as pernas da
Moça da pedra Fina e hoje está se dando bem.” (Va)
“Desejar o que é bom, não o que é ruim.”(V b)
A mãe é projetada no texto por uma debreagem enunciva e uma debreagem
enunciativa. A debreagem enunciva acontece pelo enunciar do enunciador.
“A mãe acudiu e ele disse:” (Va)
“No outro dia Joaquim despediu-se da mãe e foi-se embora.”(Vb)
Na elocução direta, pela voz delegada ao filho que parte:
“– Ô mamãe, eu vou-me embora, não posso ficar aqui, vou-me embora.” (Va)
“– Bem meu pai e minha mãe vão morar num canto.” (Vb)
A mãe é a presença salvadora que suaviza o sofrimento do filho, entende seu desejo e
o apóia, embora sofra com sua decisão de partir. Intercede a Deus e a Virgem Maria por sua
segurança e entrega-o ao mundo, abençoando-o, na certeza de que seu pedido será atendido.
Do lado contrário, está a figura agressiva do pai que, num surto de violência e desamor, surra
o filho.
A projeção no enunciado do cavalo, caracteriza-se por uma debreagem enunciva. O
cavalo velho e sedento, mesmo alimentado, morre, renascendo forte e vigoroso a um pedido
de ajuda, sendo, portanto, um enunciatário textual de Manoel a quem retorna para ajudar. Esta
sublimação reforça a idéia da vida eterna num plano superior para os bons. O cachorro, ao
contrário, também projetado por uma debreagem enunciva, unicamente, pelo contar do
enunciador, apresenta-se como força do mal que persegue o bem.
“Quando mais na frente, estava um cachorro pegado com a raposa em tempo de
matar.” (Va)
121
No conto estão presentes a três estruturas de dominação legítima: a política (legal), a
familiar (tradicional) e a religiosa (carismática).
Na projeção do rei, enquanto representante do povo e homem rico, emerge a estrutura
de dominação legal. É aquele que ocupa uma posição de poder apoiado na lei. Enquanto pai
da princesa e representante de uma família faz emergir a estrutura de dominação tradicional.
O rei é projetado por uma debreagem enunciva, no contar do enunciador e por uma
debreagem enunciativa na delegação de voz aos atores como, respectivamente, pode ser
comprovado nos exemplos que se seguem:
“O rei mandou chamar Manoel.” (Va)
“[...] abriu a porta, lá estava o rei sentado.”(Vb)
José
“– O senhor rei tem uma filha encantada nas montanhas [...]”(Va)
Joaquim
“– Rei meu senhor, o senhor quer que eu case com sua filha?”(Vb)
A Princesa da Pedra Fina que, embora projetada, desde o início, na tecitura textual,
quando desperta o desejo do jovem Manoel, mantém-se afastada pelo encantamento que, só
no final em Va, é quebrado. Em Vb acontece no meio da estória. A princesa é o prêmio pelas
boas ações do herói que a desencanta. Sai do jugo paterno para o do esposo, quando casa com
o rapaz. O enunciador projeta-a no discurso por uma debreagem enunciva no seu próprio
contar e por uma debreagem enunciativa pelo falar dos atores. O primeiro caso pode-se
comprovar com:
“ O rei fez o casamento com a Moça da Pedra Fina.” (Va)
“[...] estava aquela princesa sentada.”(Vb)
Para o segundo caso, vejam-se os fragmentos:
Manoel
“– Vá com essa conversa pro inferno! Eu, o que desejava era ver as pernas da
Princesa da Pedra Fina.” (Va)
122
Princesa
“– Olha Manoel, só você me tirava daquele canto. Você desejou ver as pernas da
Moça da pedra Fina e hoje está se dando bem.” (Va)
O sistema temporal das versões A Princesa da Pedra Fina e Princesa da Pedra Fina
divide-se em tempo da enunciação, que é o presente de quem fala e o tempo do enunciado que
remete aos fatos narrados e engendra a enunciação a partir de referências existentes no
enunciado.
Os programas narrativos ancoram-se em tempos desordenados em relação ao tempo da
enunciação, haja vista um deslocamento dos fatos da narrativa para um alhures distante de um
agora pelo contar. Predomina no discurso, o pretérito perfeito e ocorrências menores do
pretérito imperfeito, em que o primeiro remete aos acontecimentos que se desenrolam para a
existência de uma trama realizada no passado e o segundo indica incompletude das ações que
se encontram em processo a partir de um passado não definido.
O primeiro momento se refere ao tempo em que aconteceram os fatos da história da
Princesa e do rapaz incumbido de desencantá-la. Em seguida, o enunciador recupera esse
passado, colocando os fatos no presente da enunciação. Logo depois, retorna ao passado onde
a história da Princesa e do rapaz é recolocada.
Confluindo concomitantemente com a natureza de conto, o início “Era um pai de
família [...]” em Va, “[...] estavam no roçado o pai com três filhos.” em Vb, indica uma
indefinição temporal pelo imperfeito inicial, tempo durativo, não-acabado. Além disso, o
discurso projeta a idéia de possibilidade: essa família, colocada num tempo indeterminado
pode ser qualquer uma, em qualquer tempo. Esse tempo recai sobre a condição sócio-
econômica da família.
“Eles viviam trabalhando, aperreados.” (Va)
Passado
Presente
Passado
História da Princesa da Pedra
Fina
Recuperação dos fatos pelo
enunciador
História da Princesa da Pedra
Fina
123
Outro aspecto embutido nesse tempo, quando contemplado ao lado do gerúndio
trabalhando, é a indicação de uma existência contínua sem alterações, viviam aperreados
sempre, embora trabalhassem, idéia que é quebrada com a presença do pretérito perfeito.
“Ele saiu, saiu, saiu [...]” (V a)
“Saiu, saiu pelo mundo a andar.” (Vb)
A ação de sair no passado perfeito indica um rompimento com o viviam. A repetição
opera a ênfase à mudança. Saiu do aperreio, saiu do meio familiar, saiu do só imaginar: a
continuidade foi interrompida em virtude do novo.
Ao projetar atores em circunstâncias dialógicas, o enunciador permite elocuções
diretas, ou seja, debreagens enunciativas de segundo grau para um efeito de verdade,
testemunhando o fato com falas que se instauram no presente, numa tentativa de retorno à
enunciação.
“– Não vá não meu filho. (Va)
“– Vou mamãe, abençoe-me mamãe que eu vou embora.” (Va)
“– Eu não vou comer não. E amanhã eu vou-me embora.” (Vb)
O tempo do enunciado remete a uma cronologia que focaliza a saída de Manoel e de
Joaquim do suposto campo onde vivia com a família; o caminhar vivendo experiências e em
busca de realizações; a chegada e a permanência no reinado da Princesa da Pedra Fina até o
desencanto ser efetivado.
“– Ô mamãe, eu vou-me embora [...]”(V a)
“Ele saiu, saiu, saiu... quando chegou na frente [...]”(Va)
“Quando mais na frente [...]”(V a)
“Ele saiu rua a fora e lá vai, lá vai... Quando chegou na frente avistou um reinado
muito grande, aí tomou chegada [...]”(V a)
“[...] foi-se embora.”(V b)
“Saiu, saiu pelo mundo a andar.”(Vb)
“Muito na frente chegou num lugar que nem um arruado [...]” (Vb)
124
Em Vb, Joaquim vive nova saída: sai do jardim, onde trabalhou e vai à montanha onde
a princesa está aprisionada.
“Ele saiu rua à fora e lá vai, lá vai [...]”
Partindo do pressuposto de que o enunciado é construído a partir de uma seqüência de
enunciações, uma vez que se trata de uma autoria coletiva, característica dos discursos
etnoliterários, o conto carrega, pois, de épocas pelas quais passou, de espaços e vozes várias,
valores sócio-culturais que são rememorizados em cada enunciação, sobrevivendo a gerações.
Na espacialização do conto, o enunciador se projeta num aqui implícito no seu
contrário lá, passível de percepção nos fragmentos que se seguem.
“Foi lá dentro, puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel.” (Va)
“Quando chegou lá que o rei deu fé [...]”(Va)
“Entrou naquela loca, ficou lá: [...]”(V b)
Percebendo por esse viés, pode-se intuir que o enunciador no aqui de um contar,
recupera mnemonicamente fatos fixados num lá do passado, construindo um novo espaço que
é o do enunciado. Observe-se essa seqüência temporal no quadro:
O espaço conferido pelo enunciador aos interlocutores é colocado, através de um
contar, num lá, cuja figurativização pode ser vislumbrada nas expressões abaixo. Tem-se uma
colocação espacial dos actantes num passado, confluindo com a temporalização já extraída.
“Chegaram debaixo de um pé de juazeiro e foram prosar.” (Va)
“[...] estava um cavalo velho encostado num cacimbão.” (Va)
“Quando chegou mais na frente avistou um reinado muito grande.” (Va)
“É que a princesa vivia encantada nas montanhas.” (Va)
“[...] Manoel estava muito longe da cidade.” (Va)
“Olhe, estava no roçado o pai com os três filhos.”(Vb)
Memória
Contar do enunciador
(enunciação)
Espaço lingüístico
(enunciado) Lá Aqui Lá
125
“[...] chegou assim num lugar quem nem um arruado [...] uma loca debaixo de uma
pedra [...]”(V b)
Em Vb, quando Joaquim chega ao arruado, vive uma seqüência de horas e dias,
expressas nas locuções:
“Vou passar a noite aqui[...]”
“De tardezinha [...]”
“No outro dia [...]”
“No terceiro dia [...]”
Nessa abordagem, a espacialização adquire uma organização que se projeta na
predominância temporal do conto, que é o pretérito, mas pressuposto no aqui da enunciação
na projeção dos interlocutores.
“– Ô, João, Ô Manoel, se aqui agora chegasse [...]” (Va)
“– Cate aqui um piolhinho em mim.” (Vb)
Manoel/Joaquim rompe com a tradição da família e é colocado no meta-espaço campo,
cujos semas caracterizadores são juazeiro, cacimbão em Va, roçado e loca de pedra em Vb.
Esses espaços dão a idéia de que o campo é lugar da prisão, estático, onde há limites sócio-
econômicos e culturais em oposição à cidade onde existe a liberdade de descobertas, fartura e
a mulher amada. No entanto, é nesse ambiente de difícil sobrevivência que o herói aprende a
superar as dificuldades.
“Ele foi para o banheiro tomar banho – tinha sabonete, uma toalha bonita! Joaquim
tomou banho e veio pra mesa – a mesa estava repleta de um tudo. Ele comeu à
vontade.” (Vb)
Nas duas versões, o rapaz destinado a quebrar o encanto não estava preparado para
casar, por isso precisou viver a experiência de trabalhar para desencantar a princesa, como
exercício experimental da paciência, persistência e, acima de tudo, de bondade. Assim, é
retirado de um espaço natural pé de juazeiro, cacimbão, roçado, loca de pedra para um
espaço, onde figura o sonho, palácio encantado, mas que ele consegue desencantar
126
transformando-o em cidade. É, segundo o enunciador, melhor que o campo, mas, para atingi-
lo, é preciso acreditar que ele exista.
A princesa, encantada nas montanhas, vigiada por uma serpente em Va, e presa num
espaço convertido numa loca de pedra em Vb, aprendia a resistir à tentação e à renúncia. Só
depois do aprendizado, seria possível ser desencantada por quem também havia aprendido. A
experiência iria prepará-la para o amadurecimento. É lá, no reinado que se efetivam as
mudanças tão desejadas pelo rapaz.
3.2.3.2 Temas e figuras
No conto, os temas e figuras remetem a fatos, ora fictícios, ora verossímeis, que
rememorizam o imaginário fantástico da cultura de um povo.
O tema opressão aparece vinculado à família, ao poder estatal e a situação sócio-
econômica. No agir do pai de Manoel/Joaquim que surra o filho, comparando-se a um animal
dada a agressividade com que realiza a ação, encontra-se a dominação familiar. Além dessa, a
família vivia numa situação de opressão financeira que se mostrava em contínua carência, a
situação da princesa em Va e de toda a realeza em Vb, oprimidos pela prisão do encanto e a
dominação política em Va que castiga os irmãos de Manoel. As figuras que remetem a este
tema podem ser encontradas nas expressões:
“Eles viviam trabalhando, aperreados.” (Va)
“[...] puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel.” (Va)
“É que a princesa vivia encantada nas montanhas.” (Va)
“Joaquim faz cem anos que eu vivo nesse encanto. Eu, meu pai e minha mãe.” (Vb)
Em oposição à opressão, flui o tema liberdade, intuído por Manoel/Joaquim quando
ousa expressar seu desejo de fazer outras atividades, sair da mesmice, e realizar as
experiências que o tornarão maduro para vida, quando decide ir embora. As figuras
correspondentes ao tema liberdade podem ser vislumbradas nas expressões:
“[...] Eu, o que desejava ver era as pernas da Princesa da Pedra Fina.” (Va)
“[...] eu vou-me embora.” (Va)
127
“[...] e soltou a raposa.” (Va)
“– Eu, para matar a fome, bastava deitar no colo da Princesa da Pedra Fina.” (Vb)
“– Eu não quero comer não. E amanhã eu vou-me embora pelo mundo.” (Vb)
“[...] Não foi você que desencantou minha filha, eu e a rainha? Só posso dar você para
casar com minha filha.” (Vb)
Livre, o rapaz busca a felicidade no casamento com a princesa, desejo que
inicialmente foi reprimido pelo pai. Na busca pela felicidade, faz felizes os demais que por ele
são ajudados. Nestes fatos, o conto reafirma o valor dos sentimentos maiores, sentimentos que
promovem o bem.
“[...] o rei deu fé da filha, foi uma festa muito grande.” (Va)
“[...] Você desejou ver as pernas da Moça da Pedra Fina e hoje está se dando bem.”
(Va)
“Fizeram o casamento – muita festa, muita alegria.”(V b)
A caridade é um tema fluente, especialmente nas passagens em que o rapaz auxilia o
cavalo e uma raposa em Va, esta, agradecida, retribui, dispondo-se a ajudá-lo, recuperando o
“Daí e vos será dado” (LUCAS, 6,38).
“– Vá meu filho! Que Deus e a Virgem Maria sigam seus passos.” (Va)
Na bênção dada ao filho pela mãe, emerge o tema religiosidade, a que está conectado
o tema caridade antes referido. É costume, nas famílias, os filhos pedirem a bênção aos pais
quando vão sair de casa para uma viagem seja ela, curta ou longa, como fez o rapaz, e serem
abençoados, com rogativas a divindades. Sabe-se também que é bíblica, a idéia de que a mãe
é a referência a Virgem Maria, mãe de Jesus, intercessora dos filhos. A mulher de “coração”
brando e mansidão de atitudes também corrobora a idéia sociocultural do feminino, contrária
às atitudes masculinas, onde se faz espelho a do pai, imprudente e violento, surrando o filho.
Em Vb, depois de tudo, o filho pede a bênção ao pai e a mãe, perdoando o pai pelo que fizera.
128
3.2.3.3 Leituras temáticas
As isotopias no decorrer da narrativa permitem as seguintes leituras temáticas:
Primeira leitura
A formação humana é adquirida pela experiência.
Segunda leitura
É preciso respeitar as diferenças.
Terceira leitura
A caridade é um atributo do homem bom.
Quarta leitura
A riqueza traz conforto.
Quinta leitura
O bem sobrepõe o mal.
Sexta leitura
Quem cultiva o comodismo vive limitado.
Sétima leitura
A mãe é intercessora dos filhos.
3.2.4 Estrutural Fundamental
Este nível está centrado nas relações de oposição ou de “diferença” entre dois termos,
no interior de um mesmo eixo semântico, uma vez que o conto Fernando o verdadeiro e
Fernando o falso não representa apenas diferenças puras.
129
A tensão dialética que predomina ocorre entre bem versus mal, indicando as relações
de poder entre as forças sobrenaturais do bem e as forças sobrenaturais do mal.
O bem que implica não-mal faz emergir a liberdade. Manoel/rapaz pobre, ajudado
pelas forças sobrenaturais benignas, liberta a realeza (rei, rainha e princesa) da letargia do
encanto em Va e impede a morte da moça em Vb.
A relação de implicação entre mal e não-bem faz emergir a prisão. As forças
sobrenaturais malignas encantam o rei, a rainha e a princesa em Va e armam ciladas para
matar a moça rica em Vb, como tentativa de aprisioná-las.
As relações tímicas que se estabelecem entre bem versus mal permitem a ordem a
seguir:
Para Manoel/Joaquim, rei, rainha, princesa e as forças sobrenaturais benignas:
bem liberdade não-mal
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
mal prisão não-vida
(disfórico) (disfórica) (disfórica)
Para as forças sobrenaturais malignas:
bem liberdade não-mal
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
mal prisão não-vida
(eufórico) (eufórica) (eufórica)
Observe-se esse conflito no octógono semiótico:
130
O conto apresenta sob a face do maravilhoso entes representativos das forças
sobrenaturais que permitem uma tensão dialética ser versus parecer.
Ser implica não-parecer, fazendo emergir o segredo. No modo do ser estão as forças
sobrenaturais que mantêm sua identidade em segredo. O mesmo acontece com o palácio que
se apresenta sob a forma de uma loca de pedra.
Parecer e não-ser geram a mentira. Colocados no modo do parecer, projetam-se o
cavalo, a raposa, a serpente e a loca de pedra. A imagem sob a qual se apresentam é uma
mentira.
As relações tímicas que surgem a partir da tensão ser versus parecer permitem os
seguintes percursos:
Para as forças sobrenaturais e o palácio:
ser segredo não-parecer
(eufórico) (eufórico) (eufórico)
Tensão dialética
bem
não-mal
mal
não-bem
liberdade prisão
0
131
parecer mentira não-ser
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
Para o cavalo, a raposa, a serpente e a loca de pedra:
parecer mentira não-ser
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
ser segredo não-parecer
(disfórico) (disfórico) (disfórico)
Essa tensão operacionalizada no octógono oferece uma visão mais precisa:
Tensão dialética
ser
não-parecer
parecer
não-ser
segredo mentira
0
132
Outra tensão dialética que se pode conceber da narrativa é entre os opostos riqueza
versus pobreza, cujo ponto de encontro é a sociedade. Este conflito traz á tona as relações
sócio-econômicas de desigualdade que caracterizam secularmente a humanidade. A riqueza
da minoria sobrepõe a pobreza da maioria pela qualidade de vida que a caracteriza.
A relação de implicação entre riqueza e não-pobreza faz emergir a fartura. O palácio,
ambiente real, em que figuram o rei e a princesa, é caracterizado pela fartura.
Manoel/Joaquim movido pelo desejo de mudança, caminha da pobreza para não-pobreza,
atingindo seu alvo que é a riqueza.
A pobreza sem a riqueza implica a necessidade. Essa era a característica da forma de
viver da família de Manoel/Joaquim.
Assim, as categorias tímicas que se estabelecem entre riqueza versus pobreza,
permitem observar:
Para Manoel/Joaquim, a princesa e rei:
Riqueza fartura não-pobreza
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
Pobreza necessidade não-riqueza
(disfórica) (disfórica) (disfórica)
Para a família de Manoel/Joaquim:
Riqueza fartura não-pobreza
(disfórica) (disfórica) (disfórica)
Pobreza necessidade não-riqueza
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
133
Através do octógono a visualização desse conflito se torna mais precisa:
Tensão Dialética
sociedade
pobreza
necessidade
riqueza
rapaz
fartura
não-riquezanão-pobreza
134
3.3 A MAIS BONITA
3.3.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação
As versões foram codificadas conforme se seguem:
Va – O filho do rico e o filho do pobre: contado por Maria Porcina de Brito, natural de catolé
do Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da Paraíba,
p.19-21, publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade Federal
da Paraíba.
Vb – O compadre rico e o compadre pobre: contado por Antonio Medeiros da Silva, natural de
catolé do Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da
Paraíba, p.15-18 publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade
Federal da Paraíba.
Mesmo apresentando divergências quanto à organização segmental, o conto se
caracteriza como popular pelas alterações que lhe conferem uma autoria coletiva. Observem-
se os segmentos a seguir:
Sg 1 Conversa entre os compadres: o rico e o pobre
Sg 2 Decisão de mandar os filhos viajarem pelo mundo
Sg 3 Partida dos filhos
Sg 4 Decisão do filho do pobre de seguir por uma vereda
Sg 5 Separação dos rapazes
Sg 6 Chegada do filho rico a um palácio
Sg 7 Derrota do filho do rico sobre os testes pelos quais passou
Sg 8 Decepção da princesa
Sg 9 Decepção do pai da moça
Sg 10 Prisão do filho do rico
Sg 11 Chegada do filho do pobre ao palácio
Sg 12 Vitória do filho do pobre sobre os testes pelos quais passou
135
Sg 13 Decisão do pai de que o filho do pobre casaria com a filha dele.
Sg 14 Casamento do filho do pobre com a princesa
Sg. 15 Passeio do casal e encontro com o filho do rico preso
Sg. 16 Liberdade do filho do rico
Sg. 17 Cuidados com o filho do rico
Sg. 18 Chegada dos rapazes e a princesa à casa dos pais deles
Sg. 19 Tributo ao SABER pelo filho do rico
Sg. 20 Desgosto e suicídio dos pais do rico
Sg. 21 Decisão do filho do rico de que vai estudar
Sg. 22 Felicidade na casa do compadre pobre
Sg 23 Ida de o compadre pobre morar com o filho
QUADRO I - Sistematização mais nítida dos segmentos estudados:
Versões Segmentos
Va Vb
Sg1 X X Sg2 X X Sg3 X X Sg4 X Sg5 X X Sg6 X X Sg7 X X Sg8 X Sg9 X Sg10 X X Sg11 X X Sg12 X X Sg13 X Sg14 X X Sg15 X X Sg16 X X Sg17 X X Sg18 X X Sg19 X Sg20 X X Sg21 X Sg22 X Sg23 X Total 19 19
136
Percebe-se a partir da organização acima, uma igualdade na quantidade de segmentos,
no entanto, nenhuma das versões apresenta a totalidade dos segmentos, dado o caráter
coletivo da autoria que ora adiciona, ora retira elementos.
De um total de vinte e três segmentos, ambas as versões Va e Vb apresentam dezenove.
Colocando-se na ordem decrescente tem-se:
QUADRO II – Identificação dos segmentos por versões
(em ordem decrescente)
Identificação dos
segmentos
Versões Em que aparece
Sg23 01 Sg22 01 Sg21 01 Sg20 02 Sg19 01 Sg18 02 Sg17 02 Sg16 02 Sg15 02 Sg14 02 Sg13 01 Sg12 02 Sg11 02 Sg10 02 Sg9 01 Sg8 01 Sg7 02 Sg6 02 Sg5 02 Sg4 01
3.3.2 Estruturas Narrativas
3.3.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1
Figurativizado pelo rico, o Sujeito Semiótico 1 (S1) almeja como Objeto de Valor
principal a riqueza e se instaura na narrativa pela modalização de querer-fazer o filho
137
valorizá-la. Tem como Adjuvante o filho e como Oponentes o compadre pobre e o filho.
Destinado pela própria insensatez, o S1 tem como anti-Destinador a sensatez do compadre
pobre e como anti-Sujeito o compadre pobre que deseja o objeto oposto.
O programa principal do S1 é:
Dario Dor Dor
(Insensatez) (Sensatez) Adjuvante (O próprio filho)
S S1 OV
(compadre (compadre Oponente (riqueza)
Pobre) rico) (compadre pobre e o filho do pobre)
Para valorizar a riqueza, o S1 destina o filho a viajar (OV2). O filho volta pobre, a pé
com a maca nas costas. Decepcionado, o S1 decide morrer (OV3).
Vejam-se os programas auxiliares do S1:
S1 OV (riqueza) S1 OV2 (viagem do filho) S1 OV3
(morte)
O S1 começa conjunto com seu Objeto de Valor e termina disjunto do mesmo.
Veja a frase-diagrama que representa o estado de transformação (F) do S1:
F = [(S1 ∩ OV) (S1 U OV)]
O discurso do S1 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer a riqueza ser valorizada.
Em Vb, o S1 apresenta valores iguais, não constando nenhuma alteração em seu
percurso.
138
3.3.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2
O Sujeito Semiótico 2 (S2) assume o revestimento figurativo do compadre pobre e é
motivado pela sensatez ao querer ter a sabedoria para si e para o filho (OV1). A sabedoria que
o auxilia, funciona como Adjuvante. Como Oponente aparece o compadre rico. Seu anti-
Destinador é a insensatez do compadre rico e o anti-Sujeito o compadre rico que deseja o
objeto oposto.
O programa principal do S2 se organiza da seguinte forma:
Dario Dor Dor
(Sensatez) (Insensatez) Adjuvante (Sabedoria)
S S2 OV
(compadre (compadre Oponente (Sabedoria)
Rico) pobre) (compadre rico e o filho)
Para valorizar a sabedoria o S2 decide mandar o filho viajar (OV2) pelo mundo, a fim
de comprovar este fato. Quando o filho volta, depois de muito tempo, o S2 recebe-o (OV3)
com alegria. Em seguida, vai morar com o filho (OV4).
O percurso do S2 pode ser vislumbrado nos seguintes programas:
S2 OV (Sabedoria) S2 OV2 (viagem do filho) S2 OV3
(recebê-lo) S2 OV4 (morar com ele)
O S2 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de valor e finaliza conjunto com o
mesmo.
A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação(F) é:
139
F = [(S2 U OV) (S2 ∩ OV)]
O discurso do S2 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o conhecimento ser
valorizado.
Em Vb, o S2 apresenta os mesmos valores que o S2 de Va, no entanto, o percurso
finaliza com uma festa em sua casa ao receber o filho que volta vitorioso.
3.3.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3
O Sujeito Semiótico 3 (S3) na figura do filho do rico, instaura-se na narrativa pela
modalidade do dever (fazer) comprovar que a riqueza é mais importante que a sabedoria
(OV1). O S3 é destinado pelo pai (compadre rico). Tem como Oponente a ignorância e a tolice,
uma vez que não dispõe de conhecimento de mundo necessário para viver sozinho. Seu anti-
Destinador é o compadre pobre e o anti-Sujeito é o filho do pobre.
Observe-se o programa principal do o S3:
Dario Dor Dor
(compadre rico) (compadre
Adjuvante pobre)
S S3 (riqueza) OV
(filho (filho do rico) Oponente (riqueza)
do pobre) (Ignorância/tolice)
O percurso do S3 divide-se em dois momentos: experiência e retorno. No primeiro
momento, viaja (OV2), gasta seus bens (OV3), tenta manter-se (OV4) e, durante um passeio
que faz com a princesa, elogia uma planta (OV5). De volta à casa da princesa, é preso, mas é
libertado (OV6) pelo filho do pobre. No segundo momento, regressa à casa do pai (OV7),
expressa tributo ao saber (OV8) e resolve formar-se doutor (OV9).
140
Vejam-se os programas auxiliares do percurso do S3:
EXPERIÊNCIA RETORNO
S3 OV1
(riqueza) S3 OV2 S1 OV7 (viajar) (voltar à casa dos pais) S3 OV3 S1 OV8
(gastar os bens) (tributo ao saber) S3 OV4 S1 OV9
(tentar manter-se) (formatura) S3 OV5
(elogiar uma planta) S3 OV6
(libertar-se)
O S3 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina disjunto.
O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:
F = [(S3 U OV) (S3 U OV)]
O discurso do S3 se qualifica como persuasivo ao dever-fazer o que o pai determina.
Em Vb, o S3 apresenta os mesmos valores que o S3 de Va, excetuando o OV3, o OV8 e o
OV9.
3.3.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4
O Sujeito Semiótico 4 (S4) recebe o revestimento figurativo de o filho do pobre e
instaura-se na narrativa por um dever-fazer a sabedoria (OV1) ser valorizada. Tem como
Destinador o pai. Como Adjuvante aparece a esperteza e o conhecimento que o auxiliam
durante a viagem. O Oponente é a pobreza. O compadre rico funciona como anti-Destinador e
o filho do rico como anti-Sujeito.
O programa principal a seguir sintetiza o que foi dito.
141
Dario Dor Dor
(compadre (compadre Adjuvante pobre) rico) (Conhecimento/esperteza)
S S4 OV
(filho (filho do pobre) Oponente (valorizar a sabedoria)
do rico) (Pobreza)
Para comprovar o valor da sabedoria, o S4 viaja (OV2), serve ao Cururu (OV3),
mantém bons relacionamentos (OV4) e mostra conhecimento (OV5). Um dia, passeando, viu o
amigo preso e liberta-o (OV6). Volta à casa dos pais para pedir a bênção (OV7) e leva a
família para morar com ele (OV8).
Vejam-se os programas auxiliares do percurso do S4:
S4 OV (valorizar a sabedoria) S4 OV2 (servir) S4 OV3
(bons relacionamentos) S4 OV4
(mostrar conhecimento) S4 OV5
(libertar o amigo) S4 OV6
(pedir a bênção aos pais) S4 OV7
(cuidar da família)
Em Vb, o S4, figurativizado pelo filho do pobre, apresenta os mesmos valores que o S4
de Va, com exceção do OV7 (cuidar da família).
O S4 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele,
uma vez que realizou com sucesso o que o pai desejava.
A frase-diagrama a seguir pode representar o estado de transformação (F) do S4:
F = [(S4U OV) (S4∩ OV)]
O discurso do S4 se qualifica como persuasivo ao dever-fazer a sabedoria ser
valorizada.
142
3.3.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5
O Sujeito Semiótico 5 (S5), sob o revestimento figurativo de Cururu, é destinado pelo
querer-ser livre do encanto (OV1). O filho do pobre e a princesa funcionam como Adjuvantes,
enquanto que o filho do rico como Oponente.
O programa principal do S5 é:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (filho do pobre/ Princesa)
S5 OV
(Cururu) Oponente (desencantar-se)
(filho do rico)
Para desencantar-se, o S5 precisa casar a filha (OV2) com o rapaz que tenha
conhecimento.
Observe-se o percurso do S5 no esquema a seguir:
S5 OV (desencantar-se) S5 OV2 (Casar a filha)
Diferentemente de Va, em Vb, o S5 aparece sob o revestimento figurativo de pai da
moça e, por não estar encantado, inicia seu percurso tendo como Objeto de Valor principal o
casamento da filha. Seu percurso apresenta dois momentos: no primeiro, recebe o filho do
rico (OV2), coloca-o sob testes (OV3) e por este não conseguir êxito, prende-o (OV4). No
segundo momento, depois de algum tempo, recebe o filho do pobre (OV5), coloca-o sob testes
(OV6) e escolhe-o para a filha (OV7).
Veja-se o esquema do percurso do S5:
143
S5 OV1
(casamento da filha) S5 OV2 S5 OV5 (receber o filho do rico) (receber o filho do pobre) S5 OV3 S5 OV6
(colocá-lo sob testes) (colocá-lo sob testes) S5 OV4 S5 OV7
(prendê-lo) (escolhê-lo)
O S5 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor, terminando conjunto com ele.
A frase-diagrama que representa o estado de transformação (F) do S5 é:
F = [(S5 U OV) (S5 ∩ OV)]
O discurso do S5 é persuasivo ao querer-fazer o casamento da filha em Va, e ao querer-
ser livre do encanto em Vb.
3.3.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6
O Sujeito Semiótico 6 (S6) aparece sob o revestimento figurativo de princesa e se
instaura na narrativa por um querer casar-se. Auxiliando em seu objetivo, aparece o filho do
pobre, que funciona como Adjuvante. Como Oponente, aparecem o filho do rico e o encanto
do pai.
No programa principal do S6, pode ser vislumbrado:
Dario Dor
(Desejo) Adjuvante (filho do pobre)
S6 OV
(Princesa) Oponentes (casamento)
(filho do rico/ encanto do pai)
144
O percurso do S6 divide-se em dois momentos: busca e realização. No primeiro
momento, tenta libertar o pai (OV2) que está encantado em Cururu. Na tentativa de libertá-lo,
recebe o filho do rico (OV3), coloca-o sob testes (OV4). Não encontrando nele os atributos
necessários, prende-o (OV5). No segundo momento, recebe o filho do pobre (OV6), coloca-o
sob testes semelhantes (OV7) ao do rico, liberta o pai (OV8) e escolhe-o como esposo (OV9).
Veja-se o percurso do S6 sintetizado pelos programas auxiliares:
BUSCA REALIZAÇÃO
S6 OV1
(casamento) S6 OV2 S6 OV6 (tenta libertar o pai) (receber o filho do pobre) S6 OV3 S6 OV7
(receber o filho do rico) (colocá-lo sob testes) S6 OV4 S6 OV8
(colocá-lo sob testes) (liberta o pai) S6 OV5 S6 OV9
(prendê-lo) (escolhe o filho do pobre)
Em Vb, o Sujeito Semiótico 6 (S6) é figurativizado pela moça e apresenta um percurso
consideravelmente mais curto que em Va, pois não precisa libertar o pai. Este já se encontra
desencantado. Assim, para conseguir seu Objeto de Valor principal, deseja encontrar o
homem certo (OV2).
Com apenas um programa auxiliar, o percurso do S6 fica:
S6 OV (casar) S6 OV2
(encontrar o homem certo)
O S6 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.
A frase-diagrama abaixo representa o estado de transformação do S6:
F = [(S6 U OV) (S6 ∩ OV)]
O discurso do S6 é persuasivo ao querer-fazer o encanto do pai ser quebrado em Va e
ao querer-ser casada em Vb.
145
3.3.2.7 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto A Mais Bonita
Sujeito
Semiótico
Versões
Figurativização
Objeto de Valor
Destinador
Anti-
Destinador
Anti-
Sujeito
Adjuvante
Oponente
Modalização
Va
Compadre rico
Riqueza
Insensatez
Sensatez
Compadre pobre
O próprio filho
Compadre pobre e
o filho
Querer—fazer
S1
Vb
Compadre rico
Riqueza
Insensatez
Sensatez
Compadre pobre
O próprio filho
Compadre pobre e
o filho
Querer—fazer
Va
Compadre pobre
Sabedoria
Sensatez
Insensatez
Compadre rico
Sabedoria
Compadre rico e o
filho
Querer-fazer
S2
Vb
Compadre pobre
Sabedoria
Sensatez
Insensatez
Compadre rico
Sabedoria
Compadre rico e o
filho
Querer-fazer
Va
Filho do rico
Riqueza
Pai
Compadre pobre
Filho do pobre
Riqueza
Tolice/
Ignorância
Dever-fazer
S3
Vb
Filho do rico
Riqueza
Pai
Compadre pobre
Filho do pobre
Riqueza
Tolice/
Ignorância
Dever-fazer
Va
Filho do pobre
Sabedoria
Pai
Compadre rico
Filho do rico
Esperteza/
Conhecimento
Pobreza
Dever-fazer
S4 Vb
Filho do pobre
Sabedoria
Pai
Compadre rico
Filho do rico
Esperteza/
Conhecimento
Pobreza
Dever-fazer
Va
Cururu
Desencanto
Desejo
–
–
Filho do pobre/
Princesa
Filho do rico
Querer-ser
S5
Vb
Rei
Casamento (da filha)
Desejo
–
–
Filho do pobre
Sabedoria
Filho do rico
Querer-fazer
146
Va
Princesa
Casamento
Desejo
–
–
Filho do pobre
Filho do rico
Encanto
Querer-ser
S6
Vb
Moça
Casamento
Desejo
–
–
Pai/Filho do pobre
Filho do rico
Querer-ser
147
3.3.3 Estruturas Discursivas
3.3.3.1 Relações intersubjetivas
Neste conto, o enunciador apresenta um discurso fundamentado na idéia de que, a
riqueza é efêmera e nada vale se não vier acompanhada de sabedoria. Para dar um efeito de
verdade sobre a tese que constrói, o enunciador delega voz a sete atores, apontados pelo papel
temático exercido. Veja-se: o pobre, o rico, o filho do rico, o filho do pobre, o rei encantado
em Cururu, a princesa que quer casar para desencantar o pai, e a criada. Em Va, um dos atores
é atribuído o nome de animal – Cururu – cristalizado como substantivo próprio.
A ausência de uma designação própria é uma característica do texto popular onde o
enunciador repete diferentes vozes desde épocas antigas da língua cujas origens lhe são
desconhecidas. Ele repete e recria o texto podendo-se dizer, portanto, que existe, não apenas
um enunciador, mas vários. A impessoalidade, através da representação do papel temático,
possibilita apontar para qualquer um que seja capaz de realizar ações semelhantes. Em vista
disso, é um elemento que aponta para a tradição, mas permite uma constante atualização do
texto.
Aqui o pobre é projetado na tecitura textual por uma debreagem enunciva, instaurada
por um contar do enunciador e por uma debreagem enunciativa quando o enunciador delega
voz a atores. A primeira acontece em elocuções indiretas.
“Estavam o rico e o pobre a conversar.” (Va)
“Eram dois que moravam juntos: um rico e um pobre.” (Vb)
A segunda é caracterizada pela enunciação do ator abaixo, em elocuções diretas.
O rico
“–Pois compadre, meu filho vai viajar com o seu.” (Vb)
O enunciador atribui ao compadre pobre o semema de detentor da sabedoria pela
simplicidade e humildade reveladas no agir. O pobre reconhece que o conhecimento é uma
forma de ter sempre o necessário para viver e assim orientou o filho.
148
O filho do pobre representa o testemunho dos ensinamentos do pai e é a continuidade
de sua prole. Reconhecedor de sua posição na sociedade, debruça-se sobre uma série de
atitudes que o promovem, além da agudeza e sutileza das idéias. Embora escolha caminhos
estreitos e perigosos (veredas), sabe ler, toca instrumentos musicais, tem boas maneiras, tem
poder de argumentação, atitudes que caracterizam uma pessoa conhecedora do mundo e
experiente. Foi, ainda, representado como sensível, humano e caridoso no trato com o pai da
princesa, encantado em sapo, e com a princesa. Colocado na posição de personagem principal,
o enunciador parece identificar-se com ele, revestindo-o de valores positivos e permitindo-o
ser vitorioso.
A viagem realizada pelo herói deste conto pontua para as novelas de cavalaria, em que,
imbuído de um espírito cavalheiresco, de fidelidade, de coragem e de sabedoria divina, os
cavaleiros medievais aventuravam-se em busca de experiências. O rapaz pobre detém essas
características e também viaja pelo mundo, a fim de pôr em prática os ensinamentos recebidos
pelo pai, ampliando, dessa forma, sua visão de mundo.
O compadre rico, ao contrário do pobre, é a representação da luxúria e da avareza,
daqueles que estão em busca de possuírem sempre mais. Nesse universo limitado, passa para
as gerações seguintes ignorância, arrogância e desprezo pela sabedoria. O enunciador o
reveste de valores negativos. Os exemplos seguintes são elucidativos:
“O rico dizia: que valia mais Ter do que Saber [...]”(V a)
“O dele aprontou, botou de tudo, encheu a mala chega ia gemendo de dinheiro, de
roupa, de tudo.” (Va)
O filho do rico, embora tenha sido destinado pelo pai a fazer uma viagem para
comprovar o valor da riqueza, reafirma a tese antes defendida pelo pobre. Dessa forma, são as
ações contrárias as do pobre, que o enunciador utiliza para intensificar a importância da
sabedoria.
“– Está vendo meu pai, o senhor como estava errado? O que vale mais é o Saber. Ter,
sem o Saber não vale nada.”(Va)
Embora tenha viajado com muito dinheiro, faltou-lhe habilidade para agir de maneira
acertada. Como a parábola bíblica do “filho pródigo”, gastou tudo que tinha ao ponto de
passar fome. Ignorante, sem habilidade nenhuma e, por fim, sem dinheiro, passa por agruras
149
até encontrar uma oportunidade para voltar. Somente em Va, a viagem serviu-lhe para
despertar da escuridão e da ignorância, permitindo-lhe perceber seus erros e dando-lhe
oportunidade para corrigi-los.
“– Está vendo meu pai, o senhor como estava errado? O que vale mais é o Saber. O
Ter, sem o Saber não vale nada.” (Va)
O filho do rico é projetado na tecitura textual por uma debreagem enunciva e uma
debreagem enunciativa. A primeira manisfesta-se pelo contar do enunciador:
“[...] o rico chegou numa cidade e começou a farrar e dançar;[...]”(V a)
“Saíram. O filho do compadre rico chegou [...]” (Vb)
A debreagem enunciativa é manifestada nas elocuções diretas do ator a seguir:
O rico
“– Pois compadre, meu filho vai viajar e o seu também.”(Va)
“– Eh! Lá vem meu filho, numa carruagem. “(Vb)
O pai da princesa/moça, encantado na figura de um Cururu em Va, mostra a natureza
mítica da narrativa, atribuindo-lhe um caráter fabuloso que não compromete a
verossimilhança dos demais, nem o conteúdo exemplar do conto. Mascarado de anfíbio,
animal que comumente desperta asco e fobia, foi ajudado pelo filho do pobre e por ele tratado
com respeito, como se fosse uma pessoa. Essa interação do homem com o sapo revela
também o caráter didático do conto, preparando a consciência ecológica. O homem como ser
mais importante da natureza deve amar e preservar os demais seres a seu redor para construir
a harmonia global.
“– Deus o guarde, seu doutor.”(V a)
“[...]Foi botar a janta, ele serviu o Cururu, conversou com ele.[...]”(Vb)
A princesa/moça, assim como o Cururu/pai, representam o ter aliado ao saber. Na
abordagem desses atores, há a projeção de quintas, que são propriedades, posses de alguém. É
uma valorização do espaço rural que é apontado como positivo, eufórico, habitado por
150
pessoas que possuem livro e instrumento e, portanto, detentoras de conhecimento e com
capacidade para discernir entre o bem e o mal. Estes atributos revestem estes atores de valores
positivos.
O enunciador encontra-se distante do tempo da enunciação, num então, projetado nos
pretéritos perfeito e imperfeito, cujo afastamento pode ser observado em “Estavam o rico e o
pobre a conversar.” e “Saíram os dois [...]” em Va, e em Vb “Eram dois compadres [...]”.
Esta referência faz aparecer três momentos temporais.
Passado
Presente
Passado
História do filho do rico e do
filho do pobre
Recuperação dos fatos pelo
enunciador
História do filho do rico e do
filho do pobre
O primeiro momento refere-se ao acontecimento mnemonicamente colocado no
passado. O enunciador quando recupera estes acontecimentos, constrói uma nova enunciação,
colocando-se no presente. Logo depois, a história do filho do rico e do filho do pobre é
colocada noutro tempo, quando passa a ser projetada no passado. A enunciação é sempre
pressuposta, uma vez que o agora jamais pode ser recuperado literalmente, senão deixaria de
ser enunciação.
Essa sistematização temporal engendrada a partir do discurso cria um efeito de
testemunho de uma coletividade, daí a história adquirir maior força exemplar, visto que há
vários sabedores do fato e não um único sabedor.
O tempo do enunciado é empregado para descrever o percurso tanto do filho do rico
quanto do filho do pobre em sua viagem pelo mundo, cujo objetivo era comprovar o ter (o
primeiro) e o saber (o segundo). As experiências do rico começam a ser descritas depois do
momento em que chega à casa do Cururu/pai da moça, quando são projetadas expressões de
natureza temporal do tipo: “Quando foi de noite [...]”, “Quando foi para a janta [...]” e “Já
escurecia [...]”. Após viver uma série de experiências, aparece a expressão “No outro dia [...]”.
Só depois ele vive as experiências do teste e da prisão. Preso, ele fica afastado da narrativa
que tem continuidade com o filho do pobre. Este chega à casa do Cururu/pai da moça “[...]
três dias depois [...]” em Va, e somente depois de um mês em Vb.
O filho do pobre vive experiências semelhantes ao filho do rico, porém com outras
atitudes. O tempo dessas experiências também fica indeterminado, quando é projetada a
151
expressão “No outro dia [...]”. Numa seqüência de ações que acontecem em dias e meses, o
filho do pobre casa e encontra preso o filho do rico. Passa, então,“[...] um mês.”, cuidando
dele, para irem juntos visitar os pais.
Esses tempos corroboram a idéia de que a aquisição de experiências necessita de um
período longo para ser efetivada. A formação humana precisa de tempo, além de que, o sábio
é aquele que observa as evidências, julga e comprova, para só depois, tomar iniciativas
acertadas sobre o seu projeto de vida. A princesa, assim como o Cururu/pai da moça, foram
prudentes e sensatos, pois pacientes e persistentes, entenderam que o tempo era necessário às
suas necessidades. O tempo, entretanto, operou maior transformação no filho do rico, uma vez
que o seu anterior se caracterizou pela ausência de sabedoria, enquanto que, as experiências
feitas depois, fizeram-no compreender o valor do saber e aí poder recomeçar.
Assim como ocorre na temporalização, a espacialização apresenta uma seqüência de
três espaços. O enunciador no aqui de um contar, recupera mnemonicamente fatos fixados
num lá do passado, construindo um novo espaço que é o do enunciado.
Memória
Contar do enunciador (enunciação)
Espaço lingüístico (enunciado)
Lá Aqui Lá
Na versão codificada como Vb, a posição do aqui se faz mais evidente pela projeção
do “nesta”, superficializado uma única vez: “Nesta dita casa.” A presença do “nesta” insere
os atores inscritos no espaço do enunciador, no aqui da enunciação.
A casa representa o espaço do reencontro. Os dois rapazes saem juntos, separando-se
no caminho, comunicando que a experiência de cada um deve ser feita individualmente, para
que pudessem demonstrar a própria capacidade. Só depois de superarem as dificuldades,
sozinhos, encontram-se novamente e voltam juntos para casa: o filho do rico derrotado (na
missão destinada pelo pai), mas consciente de que pode recomeçar a partir dos seus erros e os
do pai; e o filho do pobre vitorioso em sua comprovação do valor da sabedoria.
“Saíram os dois e se apartaram no caminho.”(V a)
152
O espaço “casa” (imóvel e sem aventuras) se opõe ao espaço “mundo”, onde fica a
cidade” (Va), por onde passou o filho do rico; e as “quintas” da princesa, o reinado, a casa do
Cururu e sua filha.
O ambiente “casa dos compadres” é onde figuram os atores que darão razão a trama: o
rico e seu filho; o pobre e seu filho. Nesse espaço acontece o diálogo que firma a ideologia
predominante no discurso: a riqueza só tem valor junto com a sabedoria.
Em Va, a “cidade” é o espaço por onde passa o filho do rico e deixa toda a fortuna que
conduzia, quando se envolve em diversões, bebidas e mulheres, figurando, dessa forma, um
espaço de perdição e influências negativas. Nesse lugar, acontece a primeira lição de vida que
o rapaz recebe. Este, para sobreviver, precisa partir mais uma vez.
“O rico chegou numa cidade e começou a farrar e a dançar, era nêga chega fervilhava.
Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de fome.”
O espaço seguinte é a “casa do Cururu”, habitado por ele e a filha. A “casa” “palácio”
se localiza nas “quintas” da princesa, caracterizado como o meta-espaço do discurso, uma vez
que é nele onde acontecem as transformações que conduzem à moral do conto. Tanto o filho
do rico quanto o filho do pobre ficam embreados neste espaço: o primeiro para reconhecer
que sua ignorância o conduziu à prisão, simbolizado pelo “alçapão” em Va e “chiqueiro” em
Vb; o segundo para provar que é o saber melhor que o ter, visto que promove a liberdade,
simbolizado pelo “passeio no quintal”.
“[...] foi sair na casa do Cururu que era encantado.”(Va)
“– Agora vamos olhar minhas quintas.” (Va)
“[...] ela agarrou ele e botou dentro do alçapão.” (Va)
“Um dia ela estava passeando com ele no quintal [...]”(V a)
“ O filho do compadre rico chegou num palácio muito grande.”(Vb)
“– Vamos olhar ali minhas quintas?”(Vb)
“Aí o velho preparou um chiqueiro bem grande [...]” (Vb)
Novamente projetados na casa dos pais, o filho do rico e o filho do pobre culminam
seus percursos. O enunciador, na projeção do pobre e seu filho, confirma valores positivos já
mencionados, enquanto que, na projeção do rico e seu filho, faz emergir sensações de
frustração e decepção. Estas, na visão do filho, são figurativizadas positivamente, uma vez
153
que ele reconhece seu erro e muda de atitude, mas, na do pai, negativamente, uma vez que se
suicida.
“O rapaz rico não quis mais saber de festa, de nada, foi aprender, formou-se
doutor.”(Va)
O espaço “em cima do sobrado” é determinante de carência energética, já que foi lá
onde o rico, decepcionado, subiu para destruir a própria vida e, consequentemente, com ela a
idéia de que o ter é melhor que o saber.
“Aí o velho com desgosto tão grande que teve do filho chegar naquele estado, caiu de
cima do sobrado, morreu.”(Va)
“O velho depressa subiu para o sobrado com a velha e de lá pularam de cabeça
abaixo.”(Vb)
3.3.3.2 Temas e figuras
Um tema bastante saliente na narrativa é a sabedoria. A palavra tem origem na grega
sophia e é um atributo dos sábios. Há ainda a palavra Phronesis usada por Aristóteles para
descrever a sabedoria prática, ou a habilidade para agir de maneira acertada. Para a palavra
sophia há variados conceitos, entre eles sabedoria humana e a sabedoria divina. A sabedoria
como tema emergente, no sentido de sabedoria prática, é refletida no agir do pobre quando
entrega seu filho ao mundo para que, com ela, pudesse sobreviver e encontrar estabilidade.
“–Meu filho vai com a maca nas costas e uma rodilha.”
É refletida ainda, no agir do filho pobre, dessa vez com a conotação brasileira, durante
a viagem, nas escolhas que faz. As figuras que remetem à sabedoria enquanto conhecimento
de mundo do rapaz, descrevem a educação e respeito pelo Cururu; a iniciativa em elogiar as
pernas da princesa em detrimento às “quintas” dela; além da habilidade ler livros e tocar os
instrumentos musicais que lhe foram entregues.
154
“– Deus o guarde, seu doutor.”(Va)
[...] ele serviu o Cururu, conversou com ele.”(Va)
“– Muito bonitas! Tudo muito bonito! Mas desculpe eu lhe dizer que o que achei mais
bonita foram as pernas de Vossa Excelência.”(Va)
“[...] ele leu, leu, leu, até cansar.”(Va)
“[...] ele tocou, tocou, tocou até cansar.”(Va)
“Ela entrou, sentou-se, pegou a conversar. Depressa botaram um bocado de livro em
cima da mesa e ele só agarrando os livros e lendo. (Vb)
“Ele pegava um, tocava um bocadinho num, um bocadinho n’outro.”(Vb)
Em confluência com a sabedoria humana emerge o agir do filho rico, uma vez que
reconheceu o erro do pai e consequentemente o próprio erro.
“[...] O rapaz rico não quis mais saber de festa, de nada, foi aprender, formou-se, foi
um doutor.”
A riqueza é outro tema na narrativa, cuja característica refere-se à abundância na posse
do dinheiro e propriedades imóveis. Podem-se observar, entre outras, as figuras
caracterizadoras desse tema:
“O dele aprontou, botou de tudo, encheu a mala chega ia gemendo de dinheiro, de
roupa, de tudo.”(Va)
“– Agora vamos olhar minhas quintas.”(V a)
“– Vamos olhar ali minhas quintas.”(V b)
A riqueza concebida como acúmulo de bens, neste conto, só é positiva se
acompanhada de sabedoria. Esta permite perceber a importância do conhecimento como
aprimoramento da inteligência, da capacidade mental de raciocinar, de planejar, de resolver
problemas, de compreender idéias e linguagens (inclusive a musical).
Em oposição à riqueza, surge a pobreza, cuja figurativização é a carência material das
necessidades cotidianas. As figuras que remetem à pobreza emergem a partir da imagem
inicial do pobre e seu filho, no estado de transformação do filho do rico, bem como no sentido
de carência energética no agir do rico pelo desgosto de ver o filho na pobreza.
155
“Estavam o rico e o pobre a conversar.”(Va)
“O meu vai com a maca nas costas e uma rodilha.”(V a)
“Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de fome.”(V a)
“Aí o velho com desgosto tão grande que teve do filho chegar naquele estado, caiu de
cima do sobrado, morreu.”(V a)
“Eram dois compadres que moravam juntos: um rico e um pobre.” (Vb)
“O velho depressa subiu para o sobrado com a velha e de lá pularam de cabeça
abaixo.” (Vb)
Seguindo o encadeamento lógico das ações, nesta narrativa, percebe-se que o discurso
engendra três tipos de ralações sócio-econômicas familiar. Na primeira pode-se destacar o
rico e seu filho como representação da riqueza aliada à ignorância. A segunda estrutura sócio-
econômica familiar é representada pelo pobre e seu filho, cuja herança primeira é o Saber,
caracterizada por assegurar a sobrevivência, uma vez que usando de sua sabedoria,
engenhosidade e perspicácia pôde adquirir riqueza. E por último, a terceira estrutura é
representada pelo pai da princesa/Cururu e sua filha, agrupando nesta, os dois aspectos: a
sabedoria e a riqueza. Os exemplos seguintes comprovam:
“Estavam o rico e o pobre a conversar. O rico dizia: que valia mais o Ter do que o
Saber e o pobre dizia que valia mais o Saber do que Ter.”
“O rico chegou numa cidade [...] Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de
fome.”
“O rei mandou buscar o pobre e fez o casamento do filho pobre e botaram ele numa
carruagem [...]”
A esperteza que pode ser considerada como a capacidade maliciosa de adaptar-se
habilmente a situações difíceis, tirando proveito da situação, está imbricada ao tema
conhecimento, que é a qualidade daquele que adquiriu o saber e sabe lidar com situações
sociais. Tanto o filho do rico quanto o filho do pobre demonstraram inteligência, uma vez que
escolheu o conhecimento como primordial, embora o segundo tenha necessitado de um
aprendizado para fazer essa descoberta. A esperteza também é característica dos amigos de
farra do filho do rico quando usurpam seu dinheiro, dando-lhe uma conotação disfórica.
“Tirou ele, tratou dele um mês.”(Va)
156
“– Pois eu quero que tire ele. Vou tratar dele e vou levar à casa dos pais dele pra o pai
dele saber que o que vale mais é o Saber do que o Ter.”(V b)
3.3.3.3 Leituras temáticas
Primeira leitura
A riqueza só tem valor acompanhada de sabedoria.
Segunda leitura
O testemunho dos ensinamentos dos pais são os filhos.
Terceira leitura
O mundo é a escola da vida.
Quarta leitura
A tolice é fruto da ignorância.
Quinta leitura
É sábio aquele que aprende com os erros.
Sexta leitura
O bem sobrepõe o mal.
3.3.4 Estrutural Fundamental
Ocorre, aqui, a tensão dialética entre bem versus mal que indica as relações de poder
entre a família pobre, a realeza e a família rica.
O bem implica não-mal e faz emergir a sensatez. Essa relação caracteriza tanto a
família pobre quanto a realeza que acreditam ser a sabedoria mais importante que a riqueza.
Assim, a primeira, usando de sensatez, envia o filho para comprovar essa verdade,
conduzindo como bagagem apenas o saber. E a segunda, para escolher o esposo da filha,
157
coloca dois rapazes sob teste, contemplando o filho do pobre, uma vez que demonstra ter
sabedoria.
O mal sem o bem faz emergir a insensatez. Na tentativa de valorizar a riqueza, o
compadre rico envia o filho para uma viagem pelo mundo, conduzindo muito dinheiro e
nenhum saber. Acreditava que a riqueza era suficiente para o filho superar os obstáculos. No
entanto, o rapaz perdeu tudo que tinha com diversões e foi reprovado nos testes pelos quais
passou na casa do Cururu, indo parar na prisão.
As relações tímicas que se estabelecem entre bem versus mal permitem a ordem a
seguir:
Para a família pobre e a realeza:
bem sensatez não-mal
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
mal insensatez não-bem
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
Para a família rica:
bem sensatez não-mal
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
mal insensatez não-bem
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
Essa tensão pode ser operacionalizada no octógono abaixo:
158
Predomina, ainda, a tensão dialética entre os opostos conhecimento versus ignorância,
definindo as relações de poder entre a família pobre, a realeza e a família rica. Esse conflito
traz à tona as relações sociais, determinadas pelo poder econômico que caracteriza
secularmente a humanidade.
O conhecimento implica não-ignorância, fazendo emergir a esperteza. No conto, o
pobre e seu filho representam figuras apreciáveis, dada à esperteza que lhes permitiu
engenhosidade para seguirem um percurso que teve fim com a vitória. Essa relação
caracteriza também a realeza que, usando de esperteza, submete os rapazes (rico e pobre) a
testes para que pudessem demonstrar seus conhecimentos.
A ignorância implica o não-conhecimento, o que faz emergir a tolice. Essa relação
define o rico e seu filho que tentam se sobressair através da riqueza. No entanto, não atingem
o seu valor.
Mostrando as relações tímicas que se estabelecem a partir da tensão entre sabedoria
versus ignorância, pode-se depreender:
Para a família pobre e a realeza:
Conhecimento esperteza não-ignorância
(eufórico) (eufórica) (eufórica)
Tensão dialética
bem
não-mal
mal
não-bem
sensatez insensatez
0
159
Ignorância tolice não-conhecimento
(disfórica) (disfórica) (disfórico)
Para a família rica:
Conhecimento esperteza não-ignorância
(disfórico) (disfórica) (disfórica)
Ignorância tolice não-sabedoria
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
Observe-se o octógono com a tensão referida:
Outra tensão dialética que emerge, na narrativa, instaura-se entre conhecimento de
Deus versus conhecimento de mundo, em que a junção dos dois caracteriza a sabedoria. A
família pobre e a realeza refletem ambos os conhecimentos.
A relação de implicação entre conhecimento de Deus e não-conhecimento de mundo,
gera a simplicidade. Entre conhecimento de mundo e não-conhecimento de Deus, gera a
Tensão dialética
conhecimento
não-ignorância
ignorância
não-conhecimento
esperteza tolice
0
160
perspicácia. Enquanto a família pobre e a realeza são caracterizadas pela sabedoria que
contém os contrários: conhecimento de Deus e não-conhecimento de mundo, a família do rico
é caracterizada pela ausência total de sabedoria. No entanto, o filho, caminha do não-
conhecimento de Deus para o conhecimento de Deus, quando reconhece que o saber é melhor
que o ter, como também caminha do não-conhecimento de mundo para o conhecimento de
mundo, quando usando de perspicácia, resolve estudar e se graduar.
As relações tímicas que se estabelecem entre conhecimento de Deus versus
conhecimento de mundo podem se organizar da seguinte forma:
Para a família pobre e realeza:
Simplicidade conhecimento de Deus sabedoria
(eufórica) (eufórico) (eufórica)
Perspicácia conhecimento de mundo sabedoria
(eufórica) (eufórico) (eufórica)
Para a família rica:
Simplicidade conhecimento de Deus sabedoria
(disfórica) (disfórico) (disfórica)
Perspicácia conhecimento de mundo sabedoria
(disfórica) (disfórico) (disfórica)
161
O octógono semiótico a seguir abarca com mais propriedade os percursos expostos:
Ocorre, ainda, a tensão dialética entre pobreza versus riqueza. São opostos que
coexistem e caracterizam a sociedade.
A relação de implicação entre pobreza e não-riqueza faz emergir a humildade. Essa
relação caracteriza a família do pobre que aceita seu status social.
A riqueza sem a pobreza, na narrativa, implica a ambição. Essa relação caracteriza a
família do rico que, embora sendo rico, almeja mais posses pela ação do filho. Também os
que vivem ladeados de necessidades, sonham com a riqueza, como foi o caso do filho do
pobre.
O filho do rico caminha da riqueza para a não-riqueza e para a pobreza, enquanto o
filho do pobre caminha da pobreza para a não-pobreza e para a riqueza.
A tensão pobreza versus riqueza resulta nas relações tímicas conforme mostram os
percursos:
Tensão dialética
conhecimento de Deus
não-conhecimento de mundo
conhecimento de mundo
não-conhecimento de Deus
simplicidade perspicácia
0
Sabedoria
162
Para a família pobre:
Pobreza humildade não-riqueza
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
Riqueza ambição não-pobreza
(disfórica) (disfórica) (disfórica)
Para a família rica:
Pobreza humildade não-riqueza
(disfórica) (disfórica) (disfórica)
Riqueza ambição não-pobreza
(eufórica) (eufórica) (eufórica)
O conflito das famílias aparece hierarquizado no octógono a seguir:
Tensão dialética
pobreza
não-riqueza
riqueza
não-pobreza
humildade ambição
0
163
Emerge da narrativa uma tensão dialética centrada entre ser versus parecer neste
conto, que reflete as relações de poder entre as forças do mal e as forças do bem, na figura do
rei que foi encantado de Cururu.
Ser implica não-parecer, fazendo emergir o segredo. Colocado no modo do ser,
aparece o rei que foi encantado. Assim, o encanto mantém a identidade do rei em segredo.
Parecer e não-ser gera a mentira. No modo do parecer, aparece o Cururu que é o rei
encantado, parece um cururu, mas não é. Sua imagem é uma mentira, estratégia usada pelas
forças malignas para aprisionar o rei.
As relações tímicas que surgem a partir da tensão ser versus parecer permitem os
seguintes percursos:
Para o rei:
ser segredo não-parecer
(eufórico) (eufórico) (disfórico)
parecer mentira não-ser
(disfórico) (disfórica) (disfórico)
Para o Cururu:
ser segredo não-parecer
(disfórico) (disfórico) (disfórico)
parecer mentira não-ser
(eufórico) (eufórica) (eufórico)
164
Essa tensão hierarquizada no octógono oferece uma visão mais precisa:
Tensão dialética
ser
não-parecer
parecer
não-ser
segredo mentira
0
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As narrativas que se inserem na classificação de conto apresentam grande importância
para a literatura popular. São estórias que, incoativamente, rememorizam uma cultura,
presentificando-se pelo imaginário, saberes de uma tradição, muitas vezes, em conflito com a
modernidade. O conto popular reatualiza saberes, visões de mundo de um povo, de uma
comunidade. Apoiado no mito, desperta para a fé, condição que motiva a conquista, a vitória.
Embora apresente um discurso breve, que facilita a memorização, sua estrutura narrativa é
rica em elementos do mundo natural, confluindo com o desejo dos enunciatários.
Nos três contos analisados, um rapaz aparece sob os aspectos da realidade e da
imaginação popular, exercendo o papel de protagonista. É um herói que luta honestamente
pela vida. No seu percurso, é auxiliado pelo sobrenatural, na tentativa de vencer obstáculos,
cuja face remete ao maravilhoso, como é o caso dos encantamentos. Seu perfil e sua
performance concentram valores que contribuem para a construção de uma imagem que tem
como referência a massa pobre e discriminada.
Penetrando nas subjacências dos contos, recuperam-se posturas ideológicas que
permitem emergir uma organização social pautada em doutrinas patriarcais. São narrativas
construídas sob o olhar masculino, pois são os atores masculinos que pensam, decidem, agem
e transformam a realidade vivida na ficção, garantindo sua posição de superioridade e,
servindo, dessa forma, de referência sócio-histórica para a sociedade que a concebe. O rapaz
pobre representa o modelo ideal a ser seguido: honesto, fiel e cristão. Sintetiza as forças do
bem, lutando corajosamente contra o mal.
A figura feminina das narrativas caracteriza-se como passiva na tomada de decisões,
muito embora seja presença necessária. Mãe e esposa, as mulheres dos contos surgem para
auxiliar a existência do herói e dar continuidade à prole. Ao contrário do homem, a mulher
não precisa sair de casa, desbravar o mundo, para adquirir experiências. É o caso da rainha, no
primeiro conto, que aparece só no início; da princesa encantada, que é desencantada pelo
príncipe para casar-se com ele, não podendo proteger os filhos; também, no segundo conto, da
mãe de Manoel/Joaquim que surge para abençoá-lo, e da princesa/moça rica que segue as
166
orientações recebidas pelo rapaz pobre; e, ainda, no terceiro conto, da moça que sai do jugo
paterno para ficar no jugo do esposo, e da mãe do rapaz rico que segue o marido até quando
este decide morrer.
A religiosidade aparece sob o prisma católico, da providência divina para a superação
dos obstáculos. No primeiro conto, o herói e o irmão (que também se faz herói pela imitação),
faz uma rogativa a Deus como um testemunho de fé. Deus é bom e por isso castiga aqueles
que agem infielmente: o herói, em determinados momentos, é encantado por querer o que não
é seu (princesa) e não cumprir a ordem da profecia. No segundo conto, o herói recebe a
bênção da mãe que intercede a Deus e a Virgem Maria para protegê-lo em sua viagem. E, no
terceiro conto, a religiosidade emerge na postura dos atores que detêm a sabedoria de Deus,
como é o caso da família pobre e da família real. Nos três contos, a religiosidade reitera a
posição do homem e da mulher na sociedade, além de pregar a humildade e a fé, tendo como
referência a figura de Jesus Cristo e da Virgem Maria.
A esta postura religiosa, estão conectados os defensores do bem. A caracterização do
herói de cada conto estabelece um diálogo com as novelas de cavalaria do período medieval.
São jovens revestidos de um espírito cavalheiresco, fidelidade, coragem e fé, que saem em
busca de viver algo diferente. Nos três contos, o herói que sai em busca de defender a vida,
(primeiro conto), de aventuras (segundo conto) e de sabedoria (terceiro conto), estão, na
verdade, buscando uma formação humana através de experiências vividas longe da família.
Estes estão certos da luta que travam em favor do bem e, portanto, estão dispostos a defender
valores que promovem a vida.
Os valores políticos presentes nos dois primeiros contos emergem na figura do rei e
remetem, no primeiro conto, não à realidade do mundo atual, mas ao que deveria ser, uma vez
que o rei escuta o povo e vai em busca de realizar o pedido feito, embora não comungue com
a idéia. No segundo conto, o rei premia o rapaz que beneficia a corte com a quebra do encanto,
fazendo o casamento da princesa com ele.
O primeiro grupo social do homem é a família: nesse grupo nasce e, sob os cuidados
paternos, cresce. Porém, precisa romper os limites do microcosmo (família) para ganhar
espaço no macrocosmo (sociedade). O herói dos contos rompe com a família pela necessidade
de auto-afirmar-se como capaz de sobreviver longe dessa proteção, mas levando consigo, as
primeiras orientações.
Nas narrativas, os valores infantis surgem com a presença do fantástico e do mágico.
Em O Fiel João, o herói que vence a fera de sete cabeças, acontece a paralisação de tudo
pelos encantamentos, recorrentes também em Fernando o verdadeiro e Fernando o falso,
167
como se estivessem brincando de stop. E tudo voltando ao movimento pela realização das
boas ações: o abraço como tributo à amizade, a caridade e a honestidade. Em A Mais Bonita,
o encantamento emerge na imagem personificada do Cururu, que convida o enunciatário à
consciência ecológica, além da prática das boas maneiras como um todo. Concomitantemente
se instala aqui o caráter didático. Inconscientemente as personagens brincam, mas,
conscientemente, prendem-se à busca de valores para a construção da cidadania. Este
universo das possibilidades do impossível caracteriza a imaginação de uma criança pequena
que conversa com seus amigos imaginários.
Esta pesquisa pretende incitar a continuidade do estudo científico do conto popular,
dando prioridade às inquietações de natureza sócio-cultural como representações dos valores
de um povo. Espera-se, ainda, que este trabalho contribua, de alguma maneira, para a
valorização das manifestações populares, em especial de sua utilização como ferramenta de
grande valia na reconstrução da cultura popular brasileira.
168
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176
ANEXOS
177
ANEXO A - Va – O PRÍNCIPE E O MARCÔNDIO
Era um rei e uma rainha. Nunca tinha havido família. Quando o primeiro filho nasceu,
enjeitaram uma criança na porta deles. Ele criou as duas crianças como filhos.
Depois que eles estavam grandes, batizaram, o príncipe e Marcôndio. Eram muito
amigos, se criaram amigos um do outro. Então começaram a fazer bagunça na cidade e todo
mundo dizia ao rei:
– Dê fim a Marcôndio que a desgraça do Príncipe é Marcôndio.
Mas o rei não podia dar porque eram muito amigos. Então um amigo do rei
aconselhou:
– Dê fim a Marcôndio que o príncipe melhora, fica bom.
O rei chamou o príncipe:
– Meu filho, eu quero que você vá uma viagem mas não quero ficar sozinho, quero
que você deixe Marcôndio comigo.
Ele disse:
– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio é muito meu amigo e eu só gosto
de andar com ele.
– Meu filho mas eu não posso ficar sozinho.
O príncipe fez a viagem e Marcôndio ficou. O rei disse:
– Vou matá-lo porque você é quem bota meu filho no caminho da perdição. Vou dar
fim a você.
Ele disse:
– Meu pai, não me mate! Mande me soltar dentro das matas para os bichos me comer.
Vou ainda pedir uma coisa ao senhor; deixe eu levar meu armamento que sempre costumo
andar com ele.
O rei fez o pedido de Marcôndio. Levou ele e jogou dentro das matas.
Quando Marcôndio entrou nas matas encontrou uma fera muito perigosa, com sete
cabeças. Ele lutou muito com essa fera até que matou. Saiu na frente, seguiu com muita sede.
Fez uma rogativa a Deus pra não morrer de sede naquela montanha. Adiante avistou uma
vertente onde bebeu muita água e ficou satisfeito. Adiante encontrou um leão, uma fera muito
perigosa. Travou-se outra luta e matou o leão. Seguiu a viagem dele. De noite, quando
escureceu, chegou num sobrado muito grande, um sobrado velho, grande, dentro daquela
montanha. Ele entrou, tinha uma rede armada, ele disse:
– Vou provar a noite.
178
Deitou-se na rede. Quando estava deitado, ouviu umas pisadas na sala – Mas sem ver
ninguém – As pisadas vieram até onde ele estava e depois ele acompanhou as passadas e
chegou na sala de refeição onde tinha comida na mesa de toda qualidade. Ele se serviu bem e
voltou para se deitar.
Quando estava deitado, lembrou-se que não ia passar ali a noite sem saber o que tinha
naquele sobrado. Chegou num quarto muito escuro e avistou uma princesa muito bonita!
Lembrou-se de dar um abraço nela. Quando foi se sentando perto dela, se encantou.
Agora eu vou voltar ao príncipe.
O príncipe quando chegou da viagem, procurou o irmão e o pai disse:
– Meu filho, seu irmão eu mandei dar fim a ele porque ele era sua perdição. Eu mandei
dar fim a ele.
– E como foi que o senhor matou meu irmão?
– Eu mandei soltar ele dentro das matas para as feras comer.
– Ele levou o armamento dele?
– Levou.
– Então o senhor vai me levar para o mesmo canto onde ele está.
Levaram o príncipe, soltaram no mesmo canto.
O príncipe saiu, encontrou-se com uma fera muito perigosa, com sete cabeças e matou.
– Até aqui meu irmão vai vivo.
Seguiu a viagem dele. Se viu com sede, sabia que ia morrer. Avistou uma vertente,
chegou lá tomou água.
Até aqui meu irmão vai vivo.
Continuou a viagem. Encontrou um leão muito feroz, fera perigosa! Lutaram muito
mas ele matou o leão.
Quando chegou mais adiante, avistou um sobrado velho dentro das matas. Chegou lá
tinha uma rede armada, disse:
– Até aqui meu irmão vai vivo.
Pousou na rede. Quando estava na rede, vieram as mesmas pisadas. Vieram e ele
acompanhou as pisadas. Chegou lá dentro encontrou água no banheiro, sabonete e tomou
banho.
– Até aqui meu irmão vai vivo.
Voltou de novo e se deitou na rede. Quando deu fé, as pisadas... Não via ninguém:
Acompanhou, chegou na sala tinha toda qualidade de comida.
– Até aqui meu irmão está vivo.
179
Voltou. Deitou-se na rede e ficou lá sem saber o que fazer.
– Mas eu vou procurar meu irmão.
Saiu procurando... quando encontrou o irmão lá no quarto com a princesa, disse:
– Meu irmão, você não vem falar comigo? Não vem me receber?
Ele nem se levantou. Ele partiu e deu um abraço nos dois, aí desencantou-se a rainha,
desencantou-se tudo! Ficaram muito satisfeitos, muito alegres! Aí foram tratar de um acordo
pra ver quem casava com a princesa.
O Marcôndio disse:
– Quem vai casar é você que é o príncipe.
O príncipe:
– Quem vai casar é você que chegou primeiro.
Mas eles não gostavam de teimar. Marcôndio convenceu o príncipe de casar com a
princesa.
Agora seguiram a viagem em busca da casa do reinado, e ouviram uma voz dizer:
– Aqui adiante tem um olho d’água é muito boa. Se o príncipe e a princesa beberem da
água morrem todos dois. Marcôndio bebe a água e não tem nadinha.
Quando eles chegaram na água, o príncipe disse:
– Vamos beber água?
Marcôndio disse:
– Meu irmão, não teime comigo não. Eu vou beber a água; se a água for boa, você
bebe.
Ele disse:
Ele bebeu e disse:
– Não vale nada! Não bebam!
Saíram. Seguiram a viagem. Adiante a voz tornou a dizer:
– Aqui vão: o príncipe, a princesa e o Marcôndio. Mas aqui adiante tem um pé de fruta.
A fruta é muito boa. O marcôndio come a fruta e não tem nada; mas se o príncipe comer, ele e
a princesa, morrem todos dois.
Quando eles chegaram no pé de fruta muito cheirosa, o príncipe ia comer a fruta,
Marcôndio disse:
– Não coma não, meu irmão! Deixe eu comer; se for boa, vocês comem.
Marcôndio comeu a fruta que era muito boa, disse:
– Meu irmão, não vale nada. É muito azeda, não presta para nada.
Seguiram a viagem. A voz tornou a dizer:
180
– Bem, vão: o príncipe, a princesa e Marcôndio, mas no dia do casamento, o príncipe
casa com a princesa e vem uma serpente e engole todos dois nessa noite. Se Marcôndio casar
com a princesa não tem nada. Quem essa estória contar numa pedra mármore há de virar.
Quando eles chegaram em casa, o rei recebeu eles muito satisfeito e eles contaram a
estória. O rei disse:
– Quem vai casar é você que é o príncipe.
No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente. Entraram em luta. O rei
quando viu aquela luta dentro do quarto pensou que fosse o príncipe que estava brigando com
Marcôndio. Botou a porta abaixo, o príncipe e a princesa acordaram e saltaram pro lado de
fora.
– O que é isso?
– Mas você ainda pergunta o que é isso? Uma luta dessa! Eu bem que queria dar fim a
Marcôndio mas você não deixou. Agora eu vou matar ele mesmo, que ele não presta pra viver.
Vocês brigando, uma briga dessa! Desse jeito!
Marcôndio saiu e o rei prendeu ele.
– Você agora vai morrer.
– Meu pai, antes do senhor me matar deixe eu contar a minha estória.
Aí começou a contar a estória da água, e virou numa pedra mármore até o joelho.
– Quando contou da serpente, que queria devorar ela, tinha matado, caiu lá fora, virou-
se todo na pedra mármore. O príncipe botou ele em cima de uma mesa e todo dia lavava o
irmão, enxugava, tinha o maior zelo com aquela pedra.
Já fazia quatro anos que tinha se casado. Tinha quatro filhinhos, quando uma voz lhe
veio dizer dormindo que, se ele matasse os filhinhos e lavasse a pedra com o sangue, ele
desencantava o irmão. Ele foi matou os quatro filhinhos que estavam brincando, lavou a pedra,
desencantou o irmão e correu aonde estava a mulher.
– Mulher, matei meus quatro filhinhos, mas desencantei meu irmão!
Quando ele voltou estavam, todos quatro, brincando. Aí foi dar remédio a mulher pra
ela ficar boa, e ficaram sendo os mesmos amigos.
181
ANEXO B - Vb – PEDRA MÁRMORE
Dois rapazes, um rico e outro pobre, eram amigos desde meninos. Então resolveram
sair pelo mundo. Foram embora. Andaram, andaram. Chegaram numa cidade ficaram
morando. Rapazes trabalhadores, arranjaram logo serviço.
Com uns tempos, o rapaz pobre pegou namorar com uma moça rica. (Imagine: um
pobre namorando com uma moça rica! Com o outro, o rico, podia ser. Não era?). Um dia, a
moça disse assim:
– Você nem se ocupe em me pedir a meu pai, que meu pai não dá, que você é pobre e
ele é rico. Não dá em casamento de jeito nenhum. Não dá.
– Você quer fugir comigo? Você tem coragem de fugir comigo?
– Tenho.
– Pois bem, vamos tratar o dia.
Trataram o dia. A moça tinha muito dinheiro. Prepararam três cavalos bons – um para
a moça e os outros para os dois rapazes: o pobre e o rico. Agora, ele ia casar com a moça e
depois trazer ela para a terra do pai dela. De madrugada, montaram nos cavalos e foram-se
embora. Roubaram a moça. Que fez o pobre? Chegou onde estava o amigo e disse:
– Fulano, eu vou fazer um negócio com você. Você é amigo meu desde pequeno. Eu
roubei essa moça, que é rica, e dou pra você casar com ela. Eu sou pobre, não tenho nada.
Você é rico igual a ela.
– Mas Fulano, será que ela quer?
– Olhe, Fulano, dá certinho. Seu pai é muito rico, o pai dela também é rico. Dá certo
com você. Agora eu, sou pobrezinho... Diga a ela que quer mudar eu pra você. Você diz assim:
“Fulana, você quer ser minha noiva, quer se casar comigo?” Diga que seu pai é muito rico,
você pode muito bem casar com ela. Eu sou um pobrezinho para me casar com ela.
(O pobre dizendo. Gente besta)
– Está certo.
O amigo foi falar com a moça como o outro disse. Ela aceitou a troca. Ficou com o
rico, deixou o pobre que roubou ela. Então decidiram voltar para falar com o pai da moça, que
o rico pedindo ele dava a filha em casamento. E hajam andar. Muito na frente o rapaz rico
disse:
– Vamos descansar debaixo de um pé de pau para fazer um lanche.
182
Chegaram assim num pé de pau, desceram dos cavalos, foram fazer um lanche. Depois
do lanche, o rapaz rico e a moça agarraram no sono. O outro ficou acordado. Aí chegaram
dois passarinhos, pousaram no galho do pé de pau. Um dos passarinhos disse:
– Aquele rapaz pobre furtou aquela moça rica e deu ao amigo, mas ele não se lucra
dela.
– Por quê?
– Porque amanhã, quando eles forem viajando, vão encontrar três cacimbinhas. Ela vai
pedir para beber água. Quando beber água daquela cacimba, ela morre.
– E não tem jeito?
– Jeito tem, se ela não beber água das duas primeiras cacimbas. Só se beber água da
terceira cacimba. Aí não morre não. E quem essa história contar, em pedra mármore virará.
Ficou tarde, os dois rapazes e a moça dormiram ali mesmo debaixo do pé de pau. No
outro dia de manhã seguiram viagem. Muito na frente, o sol quente, deu sede na moça.
Encontraram a primeira cacimba:
– Fulano, eu estou morrendo de sede.
O rapaz pobre disse:
– Não, Fulana, não queira essa água não que tem sujo. Essa água é sebosa.
– Mas eu morro de sede!
– Na frente você toma água.
Saíram. Na outra cacimba ela também quis beber água, ele não deixou. Ela só foi
beber água na derradeira cacimba.
Andaram, andaram. Pararam debaixo de um pé de pau para lanchar. Os dois
passarinhos chegaram:
– Ah! Ela escapou de uma, mas de outra não escapa. Ela vai querer comer um cacho
de uvas. Se ela comer das uvas, morre. E quem essa história contar, em pedra mármore virará.
O rapaz pobre ouviu aquela conversa. Depois de descansarem, os três seguiram
viagem. Muito adiante, encontraram uma plantação de uva. A moça disse:
– Eu estou com fome. Quero um cacho daquelas uvas.
O rapaz pobre, para livrar a moça, disse:
– Não, Fulana, essas uvas não prestam não. Essas uvas estão quentes. Mas na frente
você chupa uva.
Livrou a moça. Ela comeu uva mais na frente. Só quem sabia desse mistério era ele.
Anoiteceu, eles foram dormir assim debaixo dum pé de pau frondoso. No outro dia, de
manhã bem cedo, chegaram os passarinhos:
183
– O pobre roubou a moça rica e deu ao amigo, mas ele não se lucra dela.
– Por quê?
– No entrar da casa dele, a porta cai e mata a moça.
– Não tem jeito não?
–Jeito tem, se botar a porta baixo. E quem essa história contar, em pedra mármore
virará.
O pobre ouviu aquilo, saiu na carreira na frente pra botar a porta abaixo para livrar a
moça de morrer. Chegou lá, botou a porta abaixo. Quando o rapaz e a moça chegaram e
embarcaram de casa adentro não sofreram nada.
O pobrezinho foi-se embora para a casa dele e o rico ficou mais a moça para cara. O
pai dela muito satisfeito, que o rapaz era rico. Marcaram logo da data do casamento.
No dia, casaram-se a moça rica com o rapaz rico, o pobrezinho de lado. Depois do
casamento, o rapaz pobre saiu assim para um jardim, foi-se sentar debaixo de um pé de pau.
Chegaram os passarinhos:
– Aquele rapaz casou com aquela moça, mas ele não se lucra dela.
– Por quê?
– Por que de noite, quando eles estiverem dormindo, vem um bicho e mata ela.
– E não tem jeito não?
– Jeito tem, se uma pessoa ficar escondida dentro do quarto, de vigia, e quando o
bicho chegar, matar. Agora quem ficar de vigia tem que dormir pouco e ser bem vigilante. E
quem essa história contar, em pedra mármore virará.
Haja o pobrezinho imaginar como livrar a vida daquela mulher do amigo. O que era
que fazia? Foi lá dentro da casa, teve uma oportunidade – pou: debaixo da cama dos noivos!
Ficou lá escondido com um alfanje nas mãos. “Vou fazer o que o passarinho disse”.
Terminou a festa, todos foram dormir. O rapaz pobre debaixo da cama. Os noivos
agarraram no sono. Quando o pobrezinho deu fé, chegou aquela cabeça preta desse tamanho!
Os olhos de fogo! Vinha já encostando para matar a moça. Ele pá, com o alfanje, feriu aquela
cabeça! Ainda pingou um sanguezinho no rosto da moça. Aquela cabeça retirou-se e foi-se
embora. A moça levantou-se:
– Fulano! Espie seu amigo dentro do meu quarto! Ele foi falso a você. Você disse que
ele era seu amigo! Passou a noite aqui, no meu quarto, dormindo, Fulano! Cabra atrevido!
O marido alevantou-se atarantado. Não sabia de nada.
– Nada, mulher. S’aquieta, mulher! Calma. Deixe ele contar a história dele.
O rapaz pobre disse:
184
– Bem, meu amigo, eu vou lhe dizer. Olhe, eu roubei essa moça e lhe dei. Que no
caminho eu disse: “Ô meu amigo, você quer essa moça?” Você quis. Ela disse que queria.
Pois bem. No caminho, ela desejou beber água. Eu tinha ouvido um passarinho dizer que se
ela bebesse água naquelas duas primeiras cacimbas, morria. Eu não deixei ela beber água nas
duas cacimbas. Só deixei na derradeira.
Ele foi-se virando em pedra mármore. Virou-se em pedra até o joelho.
– O passarinho também avisou que se ela comesse aquelas uvas, morria. Eu livrei a
vida dela das uvas.
Virou pedra até a cintura. O amigo disse:
– Ah, meu amigo, não conte mais essa história não!
– Agora eu tenho que contar até o fim. Eu comecei, tenho que findar. Bem, meu amigo,
você se lembra de que quanto estava perto daqui eu saí na carreira na frente? Quando você
chegou em casa estava a porta abaixo.
– Foi, lembro.
– Pois bem. O passarinho avisou que você não se lucrava desta mulher, que a porta
caía em cima dela e matava. Eu livrei ela da morte.
Ele ficou virado em pedra te aqui. Olhe.
– Bem, meu amigo, você se casou. Eu vim livrar sua mulher da morte mais uma vez.
Que o passarinho avisou que você não ia viver com ela – aquela cabeça matava ela, você
ficava sozinho. Eu gosto muito de você, vim livrar sua mulher da morte.
Virou-se em pedra todinho. Ficou aquela pedrona dentro do quarto. Haja o amigo se
maldizer:
– Não tenho o que fazer!...
E ela:
– Agora não tem mais jeito. Não se importe com isso.
O rico foi viver, mais a mulher. Com uns tempos, a mulher se apresentou de gravidez.
Descansou. Quando terminou a resguardo, o homem ouviu uma voz:
– Tu queres desencantar seu amigo?
– Como é que eu posso desencantar meu amigo? Como é?
– Ah! É muito fácil. Teu filho novo. Tu chegas, pegas uma bacia virgem botas debaixo
da redinha de teu filho e rolas ele no meio. Aparas o sangue na bacia e jogas em cima da
pedra, que teu amigo desencanta.
185
Foi. O rapaz disse: “Eu não posso fazer isso com minha mulher dentro de casa”. Ele
pegou uma bacia virgem e guardou escondida dela, num canto. Pediu à mulher para ir à
cidade comprar um objeto para ele. Para enganar ela, ouviu! Ela disse:
– Está certo, marido. Depois eu vou.
Almoçaram.
– Agora tu vais.
Ele doido para desencantar o amigo. A mulher foi à rua comprar a encomenda que ele
pediu sem ter precisão. Inventou aquilo pra ela sair de casa e ele ficar sozinho com o filho.
Quando ela saiu, ele pegou a bacia botou debaixo da rede e passou o alfanje no menino. O
sangue correu, ele aparou embaixo da bacia e jogou na pedra. Quando jogou, a pedra
estremeceu: performou-se o amigo dele do jeitinho que era!
– Ô meu amigo! Não pensei de lhe ver agora!
Abraçou o amigo.
– Cadê sua mulher?
– Minha mulher foi pra rua.
– Eu queria ver sua mulher dizer que você, meu amigo, é leal, mas ela não é não.
O pobrezinho saiu, foi dar um passeio. Mais tarde a mulher estava conversando no
quarto com o marido, ele chegou:
– Oxente!
O amigo nem se lembrou que tinha rolado o filhinho.
– Eu desencantei meu amigo. Agora, meu amigo fica aqui mais eu.
– Fico não. Não é por você, é por sua mulher. Meu amigo, adeus. Até o Dia de Juízo!
Que você é amigo leal, mas ela não é não.
O amigo pobre foi-se embora. Quando ele saiu, o outro lembrou-se do filhinho:
– Ah! Eu vou onde está o menino!
Chegou na redinha, o menino estava do jeitinho que era, normalzinho. Ainda estava
mais bonito do que era.
186
ANEXO C - Va - A PRINCESA DA PEDRA FINA
Era um pai de família que tinha três filhos: José, João e Manoel. Eles viviam
trabalhando, aperreados. Chegaram debaixo do pé de juazeiro e foram prosar. José disse:
– Ô João, Ô Manoel, se aqui agora chegasse um prato de feijão de côco, eu ficava lá
em cima!
João disse:
– Você sabe de nada! Bom não é feijão com côco, bom é munguzá com feijão! Se
chegasse aqui eu ficava lá em cima!
Manoel disse:
– Vá com essa conversa pro inferno! Eu, o que desejava ver era as pernas da Princesa
da Pedra Fina.
Foi lá dentro, puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel. Deu-lhe como diabo! A
mãe acudiu e ele disse:
– Ô mamãe, eu vou-me embora, não posso ficar aqui, vou-me embora!
– Não vá não meu filho.
Ela abençoou.
– Vá meu filho! Que Deus e a Virgem Maria sigam seus passos!
Ele saiu, saiu, saiu... quando chegou na frente, estava um cavalo velho encostado num
cacimbão, morrendo de sede. Ele então pelejou pra ver como era que podia dar água aquele
cavalo. Descia de cabeça abaixo com chapéu e trazia cheio d’água. Quando chegava aonde
estava o cavalo, chegava meio, a água se derramava. E o cavalo foi bebendo, foi bebendo...
quando encheu o bucho, a sede era tão grande que ele caiu e morreu. Ele disse:
– Não tem nada não, eu vou levar pelo menos as crinas pra me lembrar dessa caridade
que fiz.
Botou no bolso as crinas do cavalo e saiu.
Quando mais na frente, estava um cachorro pegado com a raposa em tempo de matar.
Depressa ele deu no cachorro pegado com a raposa em tempo de matar. Depressa ele deu no
cachorro e soltou a raposa. Quando a raposinha se soltou, falou:
– Ô Manoel quando você se ver no maior aperreio, você diga: “Me valha raposinha!”
que eu estou pronta pra lhe valer. Manoel aquele cavalo que você deu água vai lhe servir
como seu guia. Você vá por aqui e procure o reinado da Princesa da Pedra Fina, que vai sair lá.
Vá nessa estrada. O primeiro é o da Princesa.
187
Ele saiu rua afora e lá vai, lá vai... Quando chegou mais na frente avistou um reinado
muito grande, aí tomou chegada, foi pedir um emprego e empregaram de jardineiro mas sem
ver assunto nenhum.
Os irmãos dele disseram:
– Ah, sabe papai, nós vamos atrás de Manoel. Vamos ver o que ele fez.
Saíram sem destino mas chegaram neste dito reinado e se empregaram.
Estavam empregados mas não viam Manoel porque ele trabalhava no jardim e eles
trabalhavam no sítio. Mas um dia eles se encontraram:
– Mas Manoel, você por aqui? Que reinado é esse?
– Esse reinado é o da Princesa da Pedra Fina.
Eles foram indagando... Manoel era só no jardim, não via ninguém. É que a princesa
vivia encantada nas montanhas. Quem desencantasse, casava com ela.
José disse:
– O senhor rei tem uma filha encantada nas montanhas e quem desencantar, casa com
ela.
– Casa! Eu mesmo não desencanto não, mas eu tenho um irmão que desencanta.
– E quem é?
– É Manoel, seu jardineiro.
O rei Mandou chamar Manoel.
– Manoel, você disse que desencantava minha filha que é encantada nas montanhas?
– Eu não disse não, senhor rei, mas como meus irmãos disseram, eu vou fazer.
Manoel saiu, saiu... saiu de caminho afora. Quando chegou adiante, estava a raposinha
esperando por ele:
– Manoel, eu não lhe disse que você não se acompanhasse com seus irmãos? Eu não
disse Manoel?
– Mas são meus irmãos, minha raposinha, o jeito que tem é fazer a palavra deles.
– Pois, Manoel, você vai. Eu vou lhe ensinar: você chama o cavalo pelas crinas.
Quando ele encostar, chega arriado de tudo! Você então se infinque de rua afora e não se
incomode que o cavalo vai sair lá. Ele é seu anjo da guarda. Quando você chegar no portão,
tem uma cobra e você repare: se ela estiver com os olhos fechados, você solte não entre que
ela está acordada. Agora, se ela estiver com os olhos abertos, você pode entrar que ela está
dormindo. Veja também que na venta dela tem uma chave. Você tire que é a chave de abrir o
portão. Vá ligeiro, ela está dentro do quarto trancada. Com a mesma chave, você destranca.
188
Manoel saiu. A cobra estava no portão com os olhos abertos, ele aí tirou a chave e
destrancou o portão e saiu. Adiante destrancou o quarto, tirou a princesa e empurrou na
garupa do cavalo. Trancou o quarto, e botou a chave na venta da cobra e voltou pro reinado.
Quando chegou lá que o rei deu fé da chegada da filha, foi uma festa muito grande!
Foi muito foguetão! Foi muita bomba!
Quando Manoel foi guardar o cavalo, a raposinha estava esperando.
– Manoel, você agora faz uma armação com seus irmãos porque eles querem lhe matar.
Se você não abrir do olho, eles lhe matam! Você diz ao rei que José e João tem coragem de
ficar dentro de um quarto com uma arroba de pólvora e o rei com o estopim do lado de fora,
vai tocar fogo e pra quando incendiar a pólvora, eles apagarem.
Manoel foi ao rei:
– Senhor rei, José e João disseram que tinham coragem de ficar dentro de um quarto
com uma arroba de pólvora e se o senhor tocar fogo no estopim do lado de fora, eles apagam
o fogo.
O rei disse pra João e José:
– Vocês disseram que tinham coragem de ficar dentro de um quarto com uma arroba
de pólvora e eu tocar fogo no estopim do lado de fora, vocês apagavam o fogo?
– Eu não disse não, mas como Manoel disse, nós vamos fazer.
Trancaram os dois dentro do quarto, botaram uma arroba de pólvora dentro e o
estopim fora.
Manoel estava muito longe da cidade, quando botaram fogo, foi um estopim tão
grande que o menor pedaço deles dava pra caber dentro de um dedal. Acabaram com a vida
deles.
O rei fez o casamento com a Moça da Pedra Fina. Ela disse:
– Olha Manoel, só você me tirava daquele canto. Você desejou ver as pernas da Moça
da pedra Fina e hoje está se dando bem.
189
ANEXO D - Vb – PRINCESA DA PEDRA FINA
Olhe, estavam no roçado o pai com os três filhos. Às onze horas, o rapaz mais novo
disse:
– Eu pai, eu estou com tanta fome. Agora se eu apanhasse um bocado de pipoca de
milho pra comer, num instante matava minha fome.
O outro rapaz disse assim:
– Ah! Eu também estou com fome. Mas o que matava minha fome agora era um prato
de bredo.
Joaquim, o mais velho, disse:
– Eu, para matar a fome, bastava me deitar no colo da Princesa da Pedra Fina.
Quando ele disse aquilo, o pai tirou o cinturão e deu uma surra em Joaquim. Daí a
pouco chegou a mãe dos rapazes com um bocado de pipocas torradas e um prato de bredo.
Joaquim disse:
– Eu não quero comer não. E amanhã eu vou-me embora pelo mundo.
No outro dia, Joaquim despediu-se da mãe e foi-se embora. Saiu, saiu mundo a andar.
E haja andar, haja andar. Andou, andou, andou, andou... Muito na frente, chegou assim num
lugar que nem um arruado – que nem uma rua, mas sendo de pedras só, só, só. Então, tinha
assim uma loca debaixo de uma pedra, ele disse: “Ah! Eu vou me hospedar aqui. Vou passar a
noite aqui. Vou passar a noite aqui. Isso é bem dormida de alguma onça... “Ele andava
prevenido – ouviu! – Armado. Entrou na loca, ficou lá: “Se for dormida de onça ou ela me
mata ou eu mato ela!” Ficou. De tardezinha, assim por volta das quatro horas, Joaquim ouviu
tocar a campa. Então, estabeleceu aquele palácio. De tudo tinha ali. Ele ouviu uma voz dizer:
– Joaquim, vai tomar banho, trocar de roupa para cear.
Que era hora da ceia – ouviu! E ele não via ninguém. Aquele palácio todinho
desencantado – de tudo tinha – e ele não via ninguém.
Ele foi para o banheiro tomar banho – tinha sabonete, uma toalha bonita! Joaquim
tomou banho e veio pra mesa – a mesa estava completa de um tudo. Ele comeu à vontade.
Acabou de comer, aquela voz disse assim:
– Joaquim, vai lá pro teu cantinho.
Pronto, acabou-se – desapareceu o palácio, ficou a mesma loca em que ele entrou. “Eu
estou bem aqui, estou comendo... Fico aqui, não tem nada não. “Ficou. Ficou Joaquim lá. No
outro dia, de manhã veio o café, ao meio dia o almoço e antes das quatro horas ele ouviu
novamente tocar a campa – o palácio apareceu. Ele foi, tomou banho, e depois tudo voltou a
190
ser como era antes - o palácio sumiu, ficou a mesma loca de pedra. No terceiro dia a mesma
coisa – tomou café da manhã, almoçou e às quatro horas ouviu tocar a campa e estabelecer o
palácio. Agora esse palácio tinha três quartos, um junto do outro. Joaquim tomou banho e foi
cear. Quando acabou de cear a voz disse assim:
– Joaquim, abre o primeiro quarto. A chave está na porta.
Joaquim foi lá, botou a mão na chave, abriu o quarto: Estava aquela princesa sentada.
Ela disse assim:
– Joaquim, me cate um piolho.
Joaquim pegou a catar piolho na princesa. Cantando...
– Joaquim, olhe. Quando tu achares uma croa na minha cabeça, um carocinho, tu
arranques.
Joaquim caçou na cabeça dela, caçou, caçou, chegou aqui, na croa da cabeça, fez
assim: arrancou um alfinete deste tamanho. Aí a princesa desencantou! Aquela princesa
bonita!
– Ah, Joaquim! Faltam dois dias pra tu me desencantares.
Eram três dias – ouviu! Não era tudo de uma vez não.
A princesa ficou ali mais ele palestrando, muito bem satisfeita.
– Joaquim, faz cem anos que eu vivo nesse encanto. Eu, meu pai e minha mãe. Agora,
Joaquim amanhã tu vais fazer a mesma coisa com minha mãe e depois com meu pai.
Pronto. Desapareceu o palácio, ficou só a loca de pedra. A princesa também
desapareceu. No outro dia, chegou café de manhã para Joaquim, ao meio dia o almoço e às
quatro da tarde ele ouviu outra vez a campa – o palácio desencantou-se. Joaquim tomar banho
e cear. Chegou a princesa disse assim:
– Joaquim, é hora! A chave do segundo quarto está na porta. Vá abrir.
Ele foi, fez assim: riiim! Abriu o quarto: apresentou-se a rainha! Aquela formatura
daquela pessoa. Ela disse assim:
– Cate aqui um piolhinho em mim.
O rapaz pegou a catar piolho na cabeça da rainha, pegou a catar – que a princesa havia
dito a ele que fizesse na cabeça da mãe e do pai o mesmo que fizera na dela. Ele foi caçando
na cabeça da rainha, foi caçando, caçando, arrancou! A rainha estabeleceu! Ficaram
desencantadas a princesa e a rainha. O rei ficou para o outro dia.
Aconteceu do mesmo jeito das outras noites – O palácio desapareceu, ficou a loca de
pedra, Joaquim dormiu. No outro dia, chegou o café da manhã, ao meio dia o almoço e às
191
quatro horas da tarde ele ouviu a campa tocar. Novamente surgiu o palácio. Ele foi, tomou
banho e veio cear. Acabou, chegou a princesa.
– Joaquim, está na hora de tu desencantares meu pai. A chave está na terceira porta.
Ele foi lá no terceiro quarto, fez riiim! – abriu a porta, lá estava o rei sentado. Joaquim
chegou, pegou catar a cabecinha do rei, pegou catar – aquela formatura . Encontrou um
carocinho na croa da cabeça. Arrancou assim aquele carocinho, estabeleceu tudo! Aquela
ruma de pedra tudo era casa: só, só, só. A igreja, o quartel de polícia, tudo! Era uma cidade
que tinha tudo. Aí o rei disse assim:
– Agora, Joaquim, você vai se casar com minha filha.
– Rei meu senhor, o senhor quer que eu case com sua filha? Por que não casa ela com
um príncipe por aí? Eu sou um forasteiro, não tenho nada, meu pai é pobre...
– Mas, me diga uma coisa, Joaquim. Não foi você quem desencantou minha filha, eu e
a rainha? Só possa dar você pra casar com minha filha.
Fizeram o casamento – muita festa, muita alegria. Passou, passou-se. Com muito
tempo, os dois irmãos de Joaquim casaram-se lá na terra deles, cada um com uma mocinha
pobre como eles. Um dia, o pai chamou a mulher, os filhos e as noras e disse assim:
– Vamos nos juntar e vamos atrás de Joaquim para ver se a gente dá com ele.
Saíram todos – pai, mãe, os dois irmãos e as cunhadas de Joaquim a procura dele.
Andaram, andaram. Foram, bater no reinado onde estava Joaquim. Chegaram aquelas seis
pessoas no palácio do rei. Bateram, Joaquim foi atender. Olhou assim, conheceu o pai, a mãe
e os irmãos - as duas moças, não, que ele não conhecia. Joaquim, em traje de príncipe, muito
bonito, ninguém conheceu. Ele chamou todos pro alpendre grande que tinha assim no palácio:
– Venha cá, minha gente!
(É agora)
– Venham todos para cá que eu vou mandar preparar um almoço para vocês.
Mandou uma pessoa na horta buscar bredo e preparar aquele bredo. Mandou torrar um
bocado de pipoca. Os criados prepararam o bredo e a pipoca e trouxeram para a mesa. Agora
o pai de Joaquim fazia assim:
– Oxente! O rei vai dar um almoço à gente de milho e bredo!
(Sim. Tinha uma coisa: Joaquim pegou o cinturão do pai com que tinha apanhado e
botou em cima da mesa)
– Vamos todos almoçar!
Foram todos almoçar.
192
– Está aqui um prato de bredo para Fulano. Este outro prato aqui de milho é para
Sicrano. Isto é o almoço de vocês.
Os dois rapazes ficaram assim... Só para eles dois! E o cinturão assim, em cima da
mesa. Joaquim disse assim:
– Ô princesa,vá ver três cadeiras.
A princesa foi, trouxe as cadeiras. Ele botou uma cadeira assim, outra assim – fez que
nem uma cama.
– Se sente aqui, princesa, nessa cadeira.
A princesa sentou-se. Joaquim botou a cabeça no colo dela.
– Tá vendo, meu pai? Olhe o que eu desejei naquele tempo lá no roçado! Esta aqui é a
Princesa da Pedra Fina, que eu desejei. Estou deitado no colo dela. Esse cinturãozinho aí foi o
que o senhor deu em mim. Agora, esse prato de bredo para Fulano que desejou comer bredo, e
esse de pipoca de milho pra Sicrano, que desejou comer milho. Desejar o que é bom, não o
que é ruim.
Joaquim levantou-se, tomou a bênção ao pai e a mãe, abraçou os irmãos e as cunhadas
e foi aquela alegria muito grande! Foi uma festa!
– Bem, meu pai e minha mãe vão morar num canto. E vocês dois vão trabalhar para se
manterem, que eu vou sustentar só meu pai e minha mãe. Vocês são moços, podem muito
bem trabalhar para sustentar suas mulheres.
Pronto terminou.
193
ANEXO E - Va – O FILHO DO RICO E O FILHO DO POBRE
Estavam o rico e o pobre a conversar. O rico dizia: que valia mais Ter do que Saber e
o pobre dizia que valia mais o Saber do que o Ter.
– Pois compadre, meu filho vai viajar e o seu também.
O pobre disse:
– O meu vai com a maca nas costas e a rodilha.
O dele ele aprontou, botou de tudo, encheu a mala chega ia gemendo de dinheiro, de
roupa, de tudo.
Saíram os dois e se apartaram no caminho. O rico chegou numa cidade e começou a
farrar e a dançar; era nêga chega fervilhava. Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de
fome. Enquanto ele tinha, tinha amigos, mas quando acabou com tudo, estava morrendo de
fome, sem ter nada.
O rico disse:
– Vou morrer aqui de fome, vou-me embora!
Saiu dessa cidade, andou, andou, andou, andou muito, foi sair na casa do Cururu que
era encantado. Quando chegou, o Cururu botou a cabeça na porta, ele disse:
– Virgem que bicho feio!
Saiu a princesa que era filha dele, mandou entrar, ele entrou, sentou-se, ela disse:
– O senhor sabe ler?
– Sei.
Ele não sabia nem o A. Ela foi ver um bocado de livro, ele abria, olhava, olhava...
Botava lá, cansou.
– Sabe tocar?
– Sei.
Ela foi ver um instrumento e ele só fazia olhar, não sabia tocar, não sabia de nada.
Quando foi de noite, o pai dela encantado num sapo. Se sentaram, tudo comendo, quando
estava no meio da mesa, ele apagou a luz e disse:
– Se abrace com que achar melhor.
Quando acendeu a luz, ele estava abraçado com um prato de comer.
Ela disse:
– Esse, amanhã vai para o alçapão.
Tinha um alçapão que já tinha não sei quantos.
No outro dia, ela disse:
194
– Agora vamos olhar minhas quintas.
Saiu com ele. Ela na frente e ele atrás. Atravessaram o riacho. Ela levantou a roupa até
as coxas, do joelho pra cima. Andaram, reparando as coisas. Quando chegou em casa, ela
disse:
– Achou minha quinta bonita?
– Achei muito bonita, mas o que achei mais bonito foi aquele pé de umbuzeiro florado.
– Esse bicho vai é pro alçapão...
Quando chegou em casa, ela agarrou ele e botou dentro do alçapão, onde já tinha não
sei quantos porque eram uns bestas.
Com três dias chegou o filho do pobre. Bateu na porta, quando o Cururu botou a
cabeça, ele disse:
– Deus o guarde, seu doutor!
O Cururu disse:
– Mais um rato que nessa casa entra.
Ela botou um livro pra ele ler, ele leu, leu, leu, até cansar. Sabia ler, era pobre mas
sabia. Ele foi ver os instrumentos, ele tocou, tocou, tocou, até cansar. Foi botar a janta, ele
serviu o Cururu, conversou com ele. Quando estavam no meio da mesa, ela apagou a luz:
– Agora se abrace com quem você achar melhor.
O Cururu disse:
– Ah, esse é sabido!
No outro dia disse:
– Agora vamos olhar a quinta.
Saiu com ele. Ela na frente, ele atrás.
Quando chegou no riacho, ela levantou a roupa até o joelho e atravessaram. Andou por
todo canto com ele, olhando as frutas. Quando voltaram, ela disse:
– Achou minhas frutas bonitas?
– Muito bonitas! Tudo muito bonito! Mas desculpe eu lhe dizer que o que achei mais
bonito foram as pernas de Vossa Excelência.
Quando acabaram de chegar em casa, o Cururu já tinha se desencantado. Ela então
casou com o rapaz e ficaram em casa.
Um dia ela estava passeando com ele no quintal e ele perguntou:
– E o que é aquilo?
– É um alçapão.
Foi contou a ele que muitos já tinham morrido ali:
195
– Abra aí pra eu ver.
Quando abriu, viu o amigo dele tão amarelo, já perto de morrer.
– Pois eu quero que tire ele. Vou tratar dele e vou levar á casa dos pais dele pra o pai
dele saber que o que vale mais é o Saber do o Ter.
Tirou ele, tratou dele um mês. Estava quase morto. Quando ficou bom:
– Quer ir pra casa de seu pai?
– Quero.
– Pois amanhã eu vou com minha mulher tomar a bênção aos meus pais e levo você na
carruagem.
Ele disse:
– Não senhor, eu vou a pé com a maca nas costas que é para meu pai saber que o que
vale mais é o Saber e não o Ter.
No outro dia se arrumaram entraram na carruagem e saíram bem devagarinho e ele
atrás com a maca nas costas.
Quando avistaram os pais deles que estavam juntos:
– Compadre, aquele que vem na carruagem é meu filho!
O rico disse:
– Eu sei compadre... Se for o meu, vem pra aqui e, se for seu, vai pra sua casa.
Aí, quando foi chegando perto, a carruagem foi pra casa do pobre e o rapaz rico foi pra
casa do rico.
– Está vendo meu pai, o senhor como estava errado? O que vale mais é o Saber. O Ter,
sem o Saber não vale nada.
Aí o velho com desgosto tão grande que teve do filho chegar naquele estado, caiu de
cima do sobrado, morreu. O rapaz rico não quis mais saber de festa, de nada, foi aprender,
formou-se, foi um doutor.
O filho do pobre carregou a família todinha pra morar com ele. Ficou rico pra nunca
mais trabalhar.
196
ANEXO A - Vb – O COMPADRE RICO E O COMPADRE POBRE
Eram dois compadres que moravam juntos: um rico e um pobre. Agora o rico só dava
valor à riqueza – que era rico – e o pobre só dava valor ao Saber. Era pobre mas só dava valor
ao Saber. Não dava valor a riqueza. Castigou o filho dele nas escolas para ele aprender fosse o
que fosse para se formar mil vezes em vista do filho do compadre rico.
O compadre pobre disse:
– Bem compadre rico, você disse que só tem valor a riqueza, a pobreza não tem valor:
o Saber Não tem valor, só dá valor a riqueza. Pois vamos botar nossos filhos para andar pelo
mundo. O meu com Saber e o seu com a riqueza para saber quem arranja mais coisa?
– Pois não! Vamos!
Trataram o dia da viagem dos filhos e eles fizeram a viagem. Quando chegaram num
canto tinha duas estradas. O filho do compadre rico disse:
– Bom, aqui abre duas estradas; qual é a que você quer? Você quer essa vereda ou essa
estrada?
O pobre disse:
– Não, eu sou pobre, só posso andar por vereda; você é rico pode andar pelas estradas
que pode achar muita coisa boa: palácios bons! Nas veredas só posso arranjar um roçado ou
uma roça de planta , ou a casa de um pobrezinho, eu só posso procurar minha pobreza, não
posso procurar riqueza.
Saíram. O filho do compadre rico chegou a um palácio muito grande e veio uma criada
toda decente e falou:
– Ô de fora!
Ela entrou e disse:
– Menina, tem um rapaz aí elegante, bonito! É bonito mesmo!
Aí o velho, dono da casa disse:
– Entre!
Ele entrou e as moças saíram, fizeram continência. Mas o bicho era besta! As moças
faziam continência e ele baixava a cabeça. Vivia com a cabeça baixa, não olhava pra
ninguém .
O dono da casa disse:
– Esse bicho é besta!
Quando foi para janta, botaram a janta...
– Entre menino, venha jantar!
197
Começaram a jantar. Já escurecia, a casa no escuro, acenderam as luzes.
– Apaga, apaga a luz! Apague pra ver quem está amparado.
Quando apagaram a luz; o velho abraçou-se com a velha; O irmão abraçou-se com a
irmã, mas sobrava uma que era para ele se abraçar. Como ele gostava muito de jerimum, tinha
uma tigelona de jerimum, então ele agarrou a tigela e ficou agarrado com ela.
– Acenda, acenda a luz! Para ver quem está amparado!
Estava a moça perto dele, olhando assim... ele pegado com a tigela.
– Vamos comer.
Começaram a comer e ele comendo...
– Oh jerimum bom! Mas se papai estivesse aqui e comesse uma talhada desse jerimum,
não era brincadeira não! Eu nunca vi um jerimum tão bom como esse!
– Tem uma coisa, vamos apelar para amanhã.
Quando foi no outro dia, ela trouxe um bocado de livro e botou na mesa. Ora! Ele não
sabia ler, não olhou para nenhum.
A moça disse:
– vamos olhar ali minhas quintas?
– Vamos.
Ele saiu com ela. No caminho, ela foi pegou assim a barra da saia, subiu uma coisinha,
cobrindo a batata da perna que era para ele dizer loa.
Ela andou, andou... quando chegou adiante, virou-se para ele:
– Hei, meu senhor, qual foi a coisa mais bonita que você viu aqui neste jardim?
Ele olhou assim, disse:
– Foi aquele pé de resedá.
– Ah, essa não!
Aí o velho preparou um chiqueiro bem grande e botou ele dentro. Todo dia, o comer
dele era só jerimum; só jerimum e ele dentro do chiqueiro preso. Só vivia comendo jerimum,
já estava gordo, boleado!
Depois de um mês e pouco, chegou o filho do compadre pobre. Nesta dita casa.
– Ô de casa!
– Ô de fora!
Quando chegou, que olhou, a empregada entrou e disse:
– Tem um rapaz ali fora... Tem uma coisa: ele parece que é pobre, mas tem uma coisa:
é bonito e elegante!
– Venha se sentar!
198
Ele entrou, sentou-se, pegou a conversar. Depressa botaram um bocado de livro em
cima da mesa e ele só agarrando os livros e lendo.
Disseram:
– Ah, esse vai muito bem!
Botaram um bocado de instrumentos.
Ele pegava um, tocava um bocadinho num, um bocadinho n’outro. O bicho era sabido
mesmo.
– Esse me serve.
Na hora do jantar, botaram uma tigela de jerimum, botaram de tudo que era bom em
cima da mesa e ele começou a comer por ali... não espiou nem pro jerimum.
O rei disse.
Apaga, apaga a luz pra ver quem é que está amparado!
Apagaram a luz. O rei se abraçou com a rainha, o irmão se abraçou com outro, aí ele
botou o braço no ombro da moça, que estava perto dele.
– Acenda, acenda a luz pra ver quem está amparado.
Acenderam a luz.
– Ah, muito bem! Esse vai ser meu genro!
E ela disse:
– E esse vai ser meu esposo!
Quando amanheceu o dia, ela saiu com ele ao jardim. O velho e a velha olhando.
O mesmo serviço ela fez: descobriu as batatas das pernas e saiu andando. Quando
cansou de andar, virou-se pra ele:
– Me diga uma coisa: qual a coisa mais bonita, mais elegante que você viu no meu
jardim?
– A coisa mais elegante que eu vi nesse jardim... a senhora me desculpe em dizer e o
senhor com a senhora, mas foram as batatas das pernas da minha esposa. Pode ainda não ser
mas está para ser.
O rei disse:
– Pronto! Você via ser meu genro de hoje por diante!
Foram andar, mostraram o chiqueiro onde estava o amigo dele. Quando chegou lá que viu,
disse:
– Homem, por caridade! Soltem esse pobre! Mande dar banho nele. Isso é meu amigo,
é filho do vizinho de papai! Andava com ele. O pai dele dava maior valor a riqueza. Está aí o
que a riqueza arranja. Está cevado dentro do chiqueiro.
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Trouxeram ele, e botaram os negros com os cacos de cuia e sabugo para esfregá-lo.
Deram banho, limparam, vestiram a roupa dele.
O rei mandou buscar o pobre e fez o casamento do filho pobre e botaram ele numa
carruagem para ir tomar a bênção dos pais. O filho do rico botaram no meio da carga de um
burro, como bagageiro e tiraram na frente.
Quando foram chegando em casa dos pais...
– Eh! Lá vem meu filho acolá, numa carruagem! O seu vem num burro, tangendo no
meio da carga, viu!
O compadre pobre disse:
– Não aquele que vem na carruagem é o meu filho! E aquele que vem em cima do
bagageiro é o seu!
– É nada! É o que! O meu é o da carruagem!
Que quando o rapaz foi tirando a carruagem à procura da casa do compadre pobre, o
velho de lá gritou:
– Meu filho, sua casa é aqui, meu filho!
– Não, seu filho é o que vai aí em riba desse burro.
O velho depressa subiu para o sobrado com a velha e de lá pularam de cabeça abaixo.
Quebraram o pescoço e lá mesmo se acabaram.
Na casa do compadre pobre foi uma festa muito grande que ainda hoje está rolando
por lá.
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