O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MARIA NAZARETH DE LIMA O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da significação JOÃO PESSOA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MARIA NAZARETH DE LIMA

O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da

significação

JOÃO PESSOA

2007

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MARIA NAZARETH DE LIMA

O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da

significação

Dissertação elaborada por Maria Nazareth de Lima e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semióticas verbais e sincréticas, com vistas à obtenção do grau de mestre em Letras.

Orientadora: Professora Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista.

JOÃO PESSOA

2007

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L 732 c LIMA, Maria Nazareth de. O conto na literatura popular: percurso gerativo da Significação / Maria Nazareth de Lima. – João Pessoa, 2007. 199 p.: il. Orientadora: Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista. Dissertação (mestrado) – UFPB/CCHLA 1. Semiótica. 2. Conto popular. 3. Ideologia. UFPB/BC CDU: 801.54 (043)

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MARIA NAZARETH DE LIMA

O CONTO NA LITERATURA POPULAR: percurso gerativo da

significação

Dissertação elaborada por Maria Nazareth de Lima e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semióticas verbais e sincréticas, com vistas à obtenção do grau de mestre em Letras.

Aprovada em 10 de dezembro de 2007.

Banca Examinadora

______________________________________________________ Professora Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista - UFPB

Orientadora

______________________________________________________ Professora. Dra. Maria do Socorro Silva Aragão – UFPB/UFCG

Examinadora

______________________________________________________ Professor Dr. Luciano Barbosa Justino – UEPB

Examinador

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A meus pais, por me permitirem a vida e me oportunizarem o saber, encantando-se com os vôos, mesmo que rasantes, de cada uma de suas águias, dedico.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, Força maior do Universo, que me rega de otimismo, prudência e persistência à intelectualidade acadêmica.

À minha família que, embora distante geograficamente, está presente espiritualmente pelas orações de proteção.

A Renato Mota pelo entusiasmo e paciência com que tantas vezes suavizou os obstáculos.

Às professoras Maria do Socorro Aragão e Zélia Monteiro Bora pelas sugestões valiosas, dadas no Exame de Qualificação, que ampliaram meu estudo.

Aos professores da Banca Examinadora de Defesa, por terem aceitado o convite para analisar

e opinar sobre os conceitos e idéias levantados nesta dissertação.

À coordenadora do curso de Pós-Graduação Liane Schneider, pela atenção que me dispensa sempre e pelo espírito de justiça em favor do direito dos alunos.

À amiga professora Joana Áurea, por acreditar na minha capacidade e promover o intercâmbio com a orientadora.

A Seu Álvaro Batista pelas atitudes prestativas e pelo carisma com que sempre me recebeu em sua casa.

A Antonio Fernandes e Elzimar, pelo espaço profissional que me permitiram aberto, entendendo as ausências.

Às amigas Iredja Regina e Cristina Suassuna, pela amizade, incentivo e apoio constantes.

A Socorro Cavalcante, companheira de curso, pela presença e cumplicidade constantes durante o curso.

Aos colegas e professores que dividiram comigo a intensa caminhada do mestrado.

Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a conclusão deste trabalho.

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AGRADECIMENTO ESPECIAL

À minha orientadora

Professora Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista,

pela honestidade, seriedade e capacidade com que exerce sua profissão, pela dedicação e cuidado para com seus orientandos, permitindo a estes, além de um espaço acadêmico, um espaço familiar. E agradeço, em particular, por acreditar, mesmo sem conhecer, que eu seria capaz de atender suas expectativas enquanto orientadora. Assim, com verdadeiro afeto, meus agradecimentos.

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HOMENAGEM

Ao professor

Braulio do Nascimento

Pelo sorriso acolhedor

Pela paz do olhar

Pela mansidão da voz

Pelo aperto de mão salutar

E, sobretudo por se encantar pelo contar,

E acolher outros “encantados”

No conto

Pelo conto.

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Deixa ao menos que teu olhar pouse sobre minha nudez,

Já que abriste a porta e agora vês

minha casa...

Mas quando saíres,

Não te esqueças dos olhos

Porque o que desejo é somente o olhar,

Esse sim,

Toca-me.

Graciele de Lima

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RESUMO Lidando com conteúdos da sabedoria popular, repletos de um profundo humanismo, os contos populares são importantes para os estudos antropoculturais. É nessa literatura que cada leitor se identifica com o amor, os medos, as dificuldades de ser criança, as carências (materiais e afetivas), as autodescobertas, as perdas, as buscas, as sansões, a solidão e os encontros e desencontros que povoam seu mundo real e até mesmo o fantasioso, fazendo sentido na realidade viva do cotidiano. Selecionou-se um corpus composto de aspectos caracterizadores de uma micro-estrutura, a família e uma macro-estrutura, a sociedade. Esses aspectos, revestidos do imaginário popular, engendram verdades, ao mesmo tempo, subjetivas e culturais, denunciadoras de valores que se (re)constroem através do (re)contar. Partindo da hipótese de que os contos populares apresentam valores que não caracterizam o universo infantil, procurou-se, como objetivo primeiro deste trabalho, analisá-los numa perspectiva semiótica, a fim de descobrir os microssistemas de valores instaurados nos discursos e capazes de comprovar a hipótese levantada. Para tanto, foram analisadas duas variantes de três tipos de contos populares O Fiel João, Fernando o verdadeiro e Fernando o falso e A Mais Bonita. As versões foram extraídas das coletâneas publicadas em 1995: por Pimentel e Maia (Estórias de Luiza Tereza, levantadas em Guarabira) e por Maia (Contos Populares da Paraíba, levantadas em Catolé do Rocha). Seguiu-se uma trilha metodológica constituída dos seguintes passos: realização de um estudo preliminar sobre o conto popular considerando estrutura, motivos, classificação, tipologia e identificação em obras universais; estudos teóricos sobre a semiótica; e análise do percurso gerativo da significação de cada versão dos contos referidos. Na narrativização, observaram-se as relações estabelecidas entre os sujeitos e seus objetos de valor, bem como as modalizações que os instauram. Na discursivização, foram destacadas as relações intersubjetivas e espaço-temporais de enunciação e enunciado, bem como as hipóteses levantadas pelos sujeitos sobre o universo a seu redor. Na semântica profunda, observaram-se a ideologia e sistemas de valores sustentados pelos discursos e distribuídos em relações de oposição, implicação e contraditoriedade. Nos três contos analisados, os protagonistas são rapazes de origem humilde, cujos valores são: a vida, a amizade, aventuras e sabedoria. São heróis, revestidos de qualidades excepcionais, que refletem as ideologias apreciadas pelo povo, mas que no fundo, foram criações das estruturas de dominação, com intuito de construir modelos ideais, a serem seguidos para facilitar o seu trabalho. Das análises fluíram temas como: morte, vida, separação, união, passividade, atividade, opressão, liberdade, felicidade, caridade, religiosidade, sabedoria, riqueza, pobreza, esperteza, família. Além dos temas, destacam-se os conflitos: bem versus mal; ser versus parecer; dominante versus dominado; ativo versus passivo; conhecimento versus ignorância; conhecimento de Deus versus conhecimento de mundo; riqueza versus pobreza. Assim, é caracterizado como recurso didático, moral e exemplar, embora abra espaço para o irreal, o impossível, o mito, a fim de atrair, principalmente, o olhar infantil.

Palavras-chave: Semiótica. Conto Popular. Ideologia.

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RESUMEN Trabajando con los contenidos de la sabiduría popular, repletos de un humanismo profundo, los cuentos populares son importantes para los estudios antropológicos y culturales. Es en esa literatura que cada lector se identifica con el amor, los miedos, las dificultades de ser niño, las faltas (materiales y afectivas), las auto descubiertas, las pérdidas, las búsquedas, las sanciones, la soledad y los encuentros y desencuentros que pueblan su mundo real e incluso el imaginativo, haciendo sentido en la realidad viva del cotidiano. Se seleccionó un corpus compuesto de aspectos caracterizadores de una micro-estructura, la familia y una macro-estructura, la sociedad. Esos aspectos, revestidos de lo imaginario popular, engendran verdades tanto subjetivas como culturales, denunciadoras de valores que se (re)construyen a través del (re)contar. Partiendo de la hipótesis que los cuentos populares presentan valores que no caracterizan el universo infantil, se buscó, como primer objetivo de este trabajo, analizarlos en una perspectiva de la semiótica, con la finalidad de descubrir los microsistemas de valores establecidos en los discursos, capaces de comprobar las hipótesis presentadas. Para tanto, fueron analizadas dos variantes de tres tipos de cuentos populares O fiel João, Fernando o verdadeiro e Fernando o falso e A Mais Bonita. Las versiones se extrajeron de las colecciones publicadas en 1995: por Pimentel y Maia (las Historias de Luiza Tereza, levantadas en Guarabira) y por Maia (Cuentos populares de la Paraíba, levantadas en Catolé do Rocha). Se siguió un sendero metodológico constituido por los siguientes pasos: un estudio preliminar acerca del cuento popular considerando estructura, razones, clasificación, tipología e identificación en obras universales; estudios teóricos acerca de la semiótica; y análisis del recorrido generador de la significación de cada versión de los cuentos referidos. En la narrativización, se observó las relaciones establecidas entre los sujetos y sus objetos de valor, como también las modalizaciones que los establecen. En la discursivización, se destacaron las relaciones inter-subjetivas y los espacios-temporales de la enunciación y del enunciado, así como las hipótesis levantadas por sujetos acerca del universo que lo rodea. En la semántica profunda, se observaron la ideología y los sistemas de valores sostenidos por los discursos y distribuidos en las relaciones de oposición, implicación y contradicción. En los tres cuentos analizados, los protagonistas son muchachos de origen humilde que tienen por valores: la vida, la amistad, la aventura y la sabiduría. Son héroes revestidos de cualidades excepcionales que reflejan las ideologías valoradas por el pueblo, pero que en el fondo, fueron creaciones de las estructuras de dominación con el objetivo de construir modelos ideales a ser seguidos para facilitar su trabajo. De las análisis fueron extraídos temas como: la muerte, la vida, la separación, la unión, la pasividad, la actividad, la opresión, la libertad, la felicidad, la caridad, la religiosidad, la sabiduría, la riqueza, la pobreza, la habilidad, la familia. Además de los temas, se destacaron los conflictos: el bien versus el mal; el ser versus el parecer; el dominante versus el dominado; lo activo versus lo pasivo; el conocimiento versus la ignorancia; el conocimiento de Dios versus el conocimiento de mundo; la riqueza versus la pobreza. De esta forma, se caracteriza como recurso didáctico, moral y ejemplar, aunque abra espacio para lo irreal, el imposible, el mito, con el fin de atraer, principalmente, la mirada infantil. Palabras-clave: Semiótica. Cuento Popular. Ideología.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13 1 EMBASAMENTO TEÓRICO...........................................................................................17 1.1 O SIGNO: de Platão a Peirce..................................................................................17 1.2 O SIGNO LINGÜÍSTICO..................................................................................................22 1.3 DA SIGNIFICAÇÃO..........................................................................................................24 1.3.1 Estrutura Fundamental.................................................................................................26 1.3.2 Estruturas Narrativas....................................................................................................28 1.3.3 Estruturas Discursivas...................................................................................................34 2 PREPARANDO O CORPUS..............................................................................................43 2.1 O CONTO POPULAR: conceito e estrutura.....................................................43 2.2 LEVANTAMENTO E AMOSTRAGEM..........................................................................46 2.3 TIPOLOGIA DO CONTO POPULAR ANALISADO......................................................47 2.3.1 O Fiel João......................................................................................................................47 2.3.2 Fernando o verdadeiro e Fernando o falso...................................................................51 2.3.3 A Mais Bonita.................................................................................................................55 3 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS VERSÕES DOS CONTOS POPULARES....................58 3.1 O FIEL JOÃO.....................................................................................................................58 3.1.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação.......................................58 3.1.2 Estruturas Narrativas....................................................................................................62 3.1.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1..............................................................................62 3.1.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2..............................................................................64 3.1.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3..............................................................................66 3.1.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4..............................................................................67 3.1.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5..............................................................................69 3.1.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6..............................................................................71 3.1.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7..............................................................................73 3.1.2.8 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto O Fiel João.............................75 3.1.3 Estruturas Discursivas...................................................................................................77 3.1.3.1 Relações intersubjetivas................................................................................................77 3.1.3.2 Temas e figuras.............................................................................................................90 3.1.3.3 Leituras temáticas.........................................................................................................93 3.1.4 Estrutura Fundamental.................................................................................................94 3.2 FERNANDO O VERDADEIRO E FERNANDO O FALSO...............................................100 3.2.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação........................................100 3.2.2 Estruturas Narrativas....................................................................................................103 3.2.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1.............................................................................103 3.2.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2............................................................................104 3.2.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3............................................................................106 3.2.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4............................................................................107

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3.2.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5............................................................................109 3.2.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6............................................................................110 3.2.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7............................................................................111 3.2.2.8 A propósito do Sujeito Semiótico 8............................................................................112 3.2.2.9 A propósito do Sujeito Semiótico 9............................................................................114 3.2.2.10 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto Fernando o verdadeiro e

Fernando o falso...................................................................................................115 3.2.3 Estruturas Discursivas.................................................................................................117 3.2.3.1 Relações intersubjetivas..............................................................................................117 3.2.3.2 Temas e figuras...........................................................................................................126 3.2.3.3 Leituras temáticas.......................................................................................................128 3.2.4 Estrutural Fundamental..............................................................................................128 3.3 A MAIS BONITA...............................................................................................................134 3.3.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação.....................................134 3.3.2 Estruturas Narrativas..................................................................................................136 3.3.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1............................................................................136 3.3.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2............................................................................138 3.3.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3............................................................................139 3.3.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4............................................................................140 3.3.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5............................................................................142 3.3.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6............................................................................143 3.3.2.7 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto A Mais Bonita.......................145 3.3.3 Estruturas Discursivas.................................................................................................147 3.3.3.1 Relações intersubjetivas..............................................................................................147 3.3.3.2 Temas e figuras...........................................................................................................153 3.3.3.3 Leituras temáticas.......................................................................................................156 3.3.4 Estrutural Fundamental..............................................................................................156 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................165 REFERÊNCIAS....................................................................................................................168 ANEXOS................................................................................................................................176 ANEXO A - Va– O Príncipe e o Marcôndio...........................................................................177 ANEXO B - Vb– Pedra mármore............................................................................................181 ANEXO C - Va– A Princesa da Pedra Fina............................................................................186 ANEXO D - Vb– Princesa da Pedra Fina................................................................................189 ANEXO E - Va– O filho do rico e o filho do pobre................................................................193 ANEXO F - Vb– O compadre rico e o compadre pobre.........................................................196

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INTRODUÇÃO

As manifestações populares de qualquer natureza são fontes inesgotáveis das riquezas

culturais da prática humana. Guardadas na memória e repetidas durante séculos são recebidas

pelos enunciatários “recheadas” de verdades universais, ao mesmo tempo em que se

apresentam numa roupagem fictícia fruto de uma criatividade que não tem fim.

Sob o ponto de vista antropológico, as narrativas populares, não importando o gênero,

constituem a dimensão fundamental da linguagem do homem em que figura o modo de

apropriação do mundo, na sua diversidade sócio-econômica-cultural.

A literatura dos contos infantis funciona, em muitos casos, como um dos instrumentos

de manipulação da criança quando, retratando o mundo adulto, bloqueia ou censura a ação

dos personagens infantis, seja pela veiculação dos valores da sociedade vigente, seja pela

linguagem empregada. Tendo como arquétipos narrativas consagradas pelo público de

diferentes épocas, por terem vencido tantos outros gêneros de concorrência, os contos são

considerados o paradigma de maior significação entre os textos destinados à criança.

A fantasia é um recurso sempre presente nesses contos. Com esse elemento há forte

atração, verdadeiro apelo para o universo da leitura. E a criança é o convidado especial. São

palavras, sons, imagens não-verbais que se interdinamizam na tentativa de provocar, fazer o

ouvinte sujeito. E aqui está a necessidade de se entender o uso de certos elementos

integradores dos contos, em especial, dos contos na Literatura Popular.

Lidando com conteúdos da sabedoria popular, repletos de um profundo humanismo, os

contos populares são importantes para os estudos antropoculturais. É nessa literatura que cada

leitor se identifica com o amor, os medos, as dificuldades de ser criança, as carências

(materiais e afetivas), as autodescobertas, as perdas, as buscas, as sansões, a solidão e os

encontros e desencontros que povoam seu mundo real e até mesmo o fantasioso, fazendo

sentido na realidade viva do cotidiano.

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Esta dissertação contém um estudo que intenta contemplar a variedade de imagens que

a narrativa dos contos populares constrói sobre atitudes de um povo, num determinado espaço

e época, evidenciando aspectos humanos que pertencem e/ou caracterizam determinada fase

da vida. Tentou-se, ainda, recuperar aspectos construídos no contexto sócio-cultural,

reproduzindo e interpretando fatos que sustentam valores milenares, transmitidos oralmente

de uma geração a outra.

Para ajudar nesse complexo percurso, buscaram-se fundamentos no estudo crítico e

sistematizado da Semiótica Greimasiana, cujos recursos permitiram um olhar técnico sobre a

superfície do texto, objetivando captar elementos necessários à comprovação das hipóteses. E

porque é o discurso uma simbiose de outros tantos, é que se fazem correntes as

transmodalizações, reforçando assim verdades subjacentes.

Selecionou-se um corpus composto de contos com aspectos caracterizadores de uma

micro-estrutura, a família e uma macro-estrutura, a sociedade. Esses aspectos, revestidos do

imaginário popular, engendram verdades, ao mesmo tempo, subjetivas e culturais,

denunciadoras de valores que se (re)constroem através do (re)contar.

Dessa forma, intentando alcançar os objetivos da pesquisa, foram analisadas duas

variantes de três tipos de contos populares O Fiel João, Fernando o verdadeiro e Fernando o

falso e A Mais Bonita. As versões foram extraídas das coletâneas publicadas em 1995: por

Pimentel e Maia (Estórias de Luiza Tereza, levantadas em Guarabira) e por Maia (Contos

Populares da Paraíba, levantadas em Catolé do Rocha).

A primeira narrativa se estrutura em torno de uma amizade entre um rapaz de origem

humilde e um de origem nobre, desde a infância, no seio familiar, até a vida adulta, longe da

família. A segunda narrativa volta-se para a busca de aventuras de um rapaz, também de

origem humilde, ainda adolescente que, para realizar seus sonhos e adquirir formação humana,

rompe com os laços familiares e embrenha-se no mundo. E a terceira narrativa engendra-se a

partir da coexistência de duas famílias, pertencentes a pólos sócio-culturais oponentes cujos

filhos, ainda muito jovens, saem juntos para desbravar o mundo, a fim de comprovar as

verdades implantadas no seio familiar e obterem experiência de vida. Através dessas

narrativas, foi possível perceber, de forma cuidadosa, os valores que norteiam fases da vida

humana, a exemplo da infância, adolescência e vida adulta, dada à fronteira sonho/realidade,

que se presentificam nos discursos.

Partindo da hipótese de que os contos populares apresentam valores que não

caracterizam o universo infantil, procurou-se, como objetivo primeiro, analisá-los numa

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perspectiva semiótica, a fim de descobrir os microssistemas de valores pertinentes ao universo

infantil, destacando as atitudes dos sujeitos instaurados no discurso.

A partir dessas afirmações, a pesquisa foi estruturada em três capítulos que

envolveram reflexões sobre o conto, o arcabouço teórico e análise do corpus.

O primeiro capítulo foi reservado ao estudo da teoria semiótica greimasiana que serviu

de subsídio-base para as análises. Partiu-se da investigação do signo em duas dimensões: a

filosófica, de onde se extraíram as definições (ora diática, ora triática) do signo pelos filósofos,

partindo de Platão até chegar a Peirce; e a lingüística, de que foram examinadas as visões

sincrônicas de sistema e estrutura (Saussure e Helmslev) às visões pancrônicas da semiótica

(Greimas, Courtés e Pais). A semiótica como modelo pancrônico trabalha com a significação

como processo de produção, transformação e acumulação dos signos em discurso, iniciando-

se na mente do falante e só estando concluída na do ouvinte. Trata-se, pois, de um percurso a

que chamam gerativo de sentido cujas partes constitutivas são: as estruturas narrativas,

discursivas e fundamentais.

O segundo capítulo comporta um estudo sobre o conto popular, considerando estrutura,

motivos, classificação, tipologia e identificação em obras universais e características que

definem o conto popular como tal, enfocando o maravilhoso, visto que parte do corpus

selecionado se apresenta dentro dessa classificação.

O terceiro capítulo destinou-se às análises das versões escolhidas como corpus: O

Príncipe e o Marcôndio e Pedra Mármore variantes do conto O Fiel João, A Princesa da

Pedra Fina e Princesa da Pedra Fina variantes do conto Fernando o verdadeiro e Fernando

o falso e O filho do rico e o filho do pobre e O compadre rico e o compadre pobre variantes

do conto A Mais Bonita.

Primeiramente, extraíram-se os segmentos de cada versão, observando as

convergências e divergências que fazem do conto uma manifestação popular. Foi possível

perceber a presença de determinados segmentos em uma versão que estão ausentes da outra,

embora seja possível afirmar que a estrutura-base permaneceu inalterável, permitindo ligar as

versões à invariante original. Em seguida, investigou-se o processo de narrativização do

corpus selecionado, a partir da descrição dos programas principais e auxiliares que compõem

o percurso de cada sujeito semiótico em busca de seu objeto de valor, verificando as

modalizações que o instauram e as estruturas de poder pertinentes ao discurso. Continuando o

percurso, fez-se a análise das estruturas discursivas, onde se investigaram as relações

intersubjetivas e espaço-temporais de enunciação e de enunciado. Por último, na estrutura

fundamental, observaram-se a ideologia e sistemas de valores sustentados pelos discursos.

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Nos três contos analisados, os protagonistas são rapazes de origem humilde, cujos

valores são: a vida, a amizade, aventuras e sabedoria. São heróis, revestidos de qualidades

excepcionais, que refletem as ideologias apreciadas pelo povo, mas que no fundo, foram

criações das estruturas de dominação, com intuito de construir modelos ideais, a serem

seguidos para facilitar o seu trabalho. Das análises fluíram temas como: morte, vida,

separação, união, passividade, atividade, opressão, liberdade, felicidade, caridade,

religiosidade, sabedoria, riqueza, pobreza, esperteza, família. Além dos temas, destacam-se os

conflitos: bem versus mal; ser versus parecer; dominante versus dominado; ativo versus

passivo; conhecimento versus ignorância; conhecimento de Deus versus conhecimento de

mundo; riqueza versus pobreza.

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1 EMBASAMENTO TEÓRICO

1.1 O SIGNO: de Platão a Peirce

A investigação sobre a natureza dos signos, da significação e da comunicação na

história das ciências sempre foi uma constante entre os estudiosos, desde os filósofos gregos e

latinos. No decorrer da história, os estudiosos ora concebiam o signo com três elementos, ora

com dois elementos.

Para Platão, o signo obedecia a uma estrutura triádica na qual é possível distinguir os

três momentos: ónoma (o nome), eîdos (a noção/idéia) e prágma (a coisa referente). As idéias,

para o autor, representam o conhecimento objetivo e certo – constituem realidade eterna do

universo. Ainda com relação às idéias, todos os objetos sensíveis nada são, senão reflexos ou

cópias imperfeitas, cuja realidade inferior – um mero devir – decorre da sua participação nas

idéias.

Quando afirma no diálogo Crátilo (Sobre a justeza dos signos): “[...] receio muito que

[...] seja bastante precária a tal força de atração da semelhança e que nos vejamos forçados a

recorrer a esse expediente banal, a convenção, para a correta imposição dos nomes”

(PLATÃO, 1988, p. 70), significa dizer que a verdade transmitida pelas palavras, embora com

certo grau de semelhança com as coisas a que se referem, é sempre inferior ao conhecimento

das coisas, uma vez que as palavras são instituídas por mera convenção.

O entendimento desse pensamento é a porta de entrada para a teoria semiótica. Nunca

o signo é igual à coisa à qual se refere, pois se fosse, não seria signo, seria a própria coisa.

Aristóteles idealizou o signo como uma relação de implicação, focalizando-o no

âmbito da Lógica e da Retórica. Além dessa relação de implicação, descreveu o signo como

uma proposição que leva a uma conclusão. Para ele, o signo é considerado como símbolo,

definido como signo das “afecções da alma”. Essas afecções seriam as imagens das coisas.

Os estóicos se baseiam na estrutura triádica do signo platônico, apresentando uma

nova nomenclatura para os elementos constitutivos: semaínon (a parte perceptível),

semainómenon ou lékton (o significado) e tygchánon (o objeto referido). Ligados à teoria da

lógica são, portanto, racionalistas. Para eles, os signos são classificados em comemorativos

que definem como associações anteriores aos signos e indicativos que são fatos não-evidentes.

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Fundamentados na teoria do conhecimento empirista, os epicuristas, por sua vez,

conceberam o signo mais simplificadamente: apenas com o semaínon (significante) e o

tygchánon (o objeto referido), formando uma estrutura diática. O lékton (imagem imaterial)

não é reconhecido na estrutura do signo. Nesse modelo, a origem das imagens está no objeto

físico. Essa imagem emerge a cognição do receptor sob a condição de fantasia. As duas

imagens (emitida pelo objeto e captada pelo receptor) correspondem aos dois elementos que

formam a estrutura diática do signo.

No final da Antigüidade e primórdios da Idade Média, Santo Agostinho (354 a 430)

realiza um estudo sobre o signo, concebendo-o no âmbito da Teologia, o que se estende por

toda a Idade Média. Nesse período, o mundo é concebido teocentricamente, isto é, Deus é a

origem do Universo e tudo deve prestar-Lhe homenagem. O signo, portanto, é parte dessa

realidade que rege o universo. No seu livro Doutrina Cristã, (2002, p. 85) considera os signos

(sinais) como manifestações das coisas, o “algo diferente”. Define sinal como toda coisa que,

além da impressão que produz em nossos sentidos, faz com que nos venha ao pensamento

outra idéia distinta. Considerou, ainda, a existência dos signos naturais, convencionais e

verbais. Os homens se comunicam através de sinais verbais e não-verbais: palavras, gestos e

até mesmo o paladar e o olfato. A existência do sinal se dá pelo fato de expressar alguma

coisa e por isto mesmo é sinal. As coisas são tidas como objeto de fruição (o que faz as

pessoas felizes) e objeto de utilização (o que ajuda o homem a inclinar-se para a felicidade).

Na definição de Santo Agostinho (2002, p. 44), “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela

própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso

tal objeto mereça ser amado”. Os signos podiam ser, ainda, próprios e figurados. Signos

próprios são aqueles que designam os objetos para os quais foram convencionados, ou seja, é

o sentido real. E os signos figurados (ou metafóricos) são os mesmos objetos com seu termo

próprio, mas são tomados para significar algo diferente (AGOSTINHO, 2002, p. 99).

De influência aristotélica, surgiu um novo estudo sobre o signo, entre os séculos X e

XV. Dessa vez, foram os escolásticos que reconheceram três disciplinas; a Filosofia Natural, a

Filosofia Moral e a Ciência dos Signos ou Ciência Racional, que corresponde à Lógica. O

representante maior da escolástica foi São Tomás de Aquino, que considerou o estudo dos

signos no modelo das ciências cognitivas, definindo-o como instrumento de comunicação e de

cognição. Para ele, a “palavra” (verbum) está presente no interior da alma e significa no

exterior pela voz mediante a palavra vocálica. Para sabermos o que é a “palavra interior”, é

preciso examinar o que significa a palavra vocálica. A nossa palavra é imperfeita, enquanto

que a Palavra divina é perfeitíssima. Ele distingue som de voz: voz não é qualquer som, mas o

Page 20: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

19

som animado que só se dá na medida em que se dê alma: voz, boca e hálito. É na voz que se

fixa a palavra. A palavra é uma realização específica do signo que, por sua vez, é tudo que se

dá a conhecer do outro. O signo leva o sujeito a conhecer algo diferente do próprio signo.

Este autor reconhece a existência de três naturezas intelectuais: a humana, a angélica e

a divina e, assim há três palavras. Falar, para ele, é próprio da inteligência. Então, entre a

realidade designada pela linguagem e o som da palavra falada, há um elemento essencial da

linguagem que é o conceito, a palavra interior que se forma no espírito de quem fala e que se

exterioriza pela linguagem, constituindo seu signo audível. Porém, se a palavra sonora é um

signo convencional, o conceito é um signo necessário da coisa designada: nossos conceitos se

formam por adequação com a realidade.

O “conceptus” na proposta teórica pós-estruturalista advém daí, porém a visão de

mundo era Teocêntrica – Deus como a origem de todas as coisas - conforme referido

anteriormente.

Em contraposição, no Renascimento, época caracterizada pelo Antropocentrismo,

uma vez que a humanidade se colocava como referência, recuperando valores da Antigüidade

Clássica, trocavam-se verdades religiosas e dogmáticas da Idade Média pela incerteza

libertária do conhecimento. Não mais o crer, agora o verbo é o saber. Assim, o homem passa

a ter uma visão antropocêntrica do mundo. Nesse período, a semelhança ocupou um papel

edificador no saber da cultura ocidental; conduziu a exegese e a interpretação dos textos;

estruturou os jogos dos símbolos; favoreceu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis e

guiou a arte de representá-las. Assim, a trama semântica da semelhança ocupou um espaço

mais dinâmico.

Posteriormente, refletindo sobre a semelhança, Foucault (1999, p. 24) selecionou

quatro principais figuras que estabelecem as articulações no saber da semelhança:

convenientia, aemulatio, analogia e simpatia.

A convenientia é uma semelhança que, antes de propriamente similar, está ligada à

relação de vizinhança de lugares. Quando as coisas se aproximam e se comunicam pelo

movimento, influências, paixões e propriedades, dizemos que são convenientes. Ao se

articularem, aparece uma semelhança. Esta se apresenta dupla. Semelhança de lugar, há pois,

similitude de propriedade em que “ a vizinhança não é exterior entre as coisas, mas signo de

um parentesco ao menos obscuro” (FOUCAULT, 1999, p. 24). Em seguida, a esta vizinhança,

nascem outras novas semelhanças; efeito oculto contrário ao efeito visível da proximidade. A

convenientia é a semelhança ligada ao espaço na forma de “aproximação gradativa” e

semelhança na ordem da conjunção e do afastamento.

Page 21: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

20

A aemulatio (emulação) é a segunda similitude. É a conveniência que se realiza à

distância; geminação natural das coisas. A emulação se origina inicialmente como um simples

reflexo, fugidio, distante. Os elos da emulação formam círculos concêntricos, refletidos e

rivais. A emulação em seu sentido mais comum é uma espécie de estímulo, incentivo,

sentimento que incita à igualdade. Foucault (1999, p. 27) alude a uma semelhança sem

contato como se fosse o reflexo no espelho; coisas dispersas, mas que se correspondem. Na

emulação, as duas figuras relacionadas se apossam uma da outra. O semelhante envolve o

semelhante.

A terceira similitude focalizada é a analogia, que se aproxima da convenientia e da

aemulatio. Como aemulatio, assegura o afrontamento das semelhanças pelo espaço; como

convenientia se refere aos ajustamentos de liames e de conjuntura. As similitudes que a

analogia executa são as mais discretas das relações.

A quarta e última similitude abordada pelo autor (1999, p. 33) é a simpatia. É uma

aproximação e tem o poder de atrair (simpatia) e de repelir (antipatia). Dentro do contexto

focalizado por Foucault, a simpatia age de forma livre, nenhum caminho, distância ou

encadeamento são determinados. É o princípio da mobilidade; instância do mesmo; tem o

poder de assimilar, transformar, alterar na direção do idêntico. É compensada pela figura

gêmea (antipatia) que deixa as coisas em sua solidão e impede a assimilação. Antipatia e

simpatia se equilibram de maneira a não fazerem desaparecer as coisas, preservando sua

singularidade.

Durante o Racionalismo, o sistema dos signos deixa de ser ternário (significante +

significado + objeto referido) e passa a ser binário (significante + significado). A Gramática

de Port Royal (século XVII) exclui a referência exterior ao considerar que o signo representa

a idéia de uma coisa e não a coisa em si: o signo compreende duas idéias – uma é a idéia da

coisa que representa, e outra, a idéia da coisa representada. A natureza do signo consiste em

excitar a segunda pela primeira. A revolução de Port Royal está em considerar o significante

(a coisa que representa) como uma idéia imaterial de uma dada coisa.

John Locke, considerado o maior empirista moderno, séculos XVII e XVIII, introduz

na Filosofia o termo semiotics, designando-a como o estudo dos signos em geral. Para Locke

(1991, p. 27-34), o signo é concebido como “instrumento de conhecimento”, dividido em

duas classes: idéias e palavras. As idéias representam coisas na mente do contemplador,

enquanto que palavras não representam nada, a não ser idéias na mente de quem as emite.

O signo em Locke fica incompleto tanto para palavras quanto para idéias, já que

palavras representam idéias apenas na mente do emissor e idéias, coisas apenas na mente do

Page 22: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

21

contemplador, o que torna impossível a comunicação, uma vez que idéias e palavras são

indissociáveis e precisam estar na mente de ambos interlocutores.

Na passagem do século XIX para o XX, encontra-se uma importante figura da teoria

dos signos, que é Charles Sanders Peirce. Ele foi leitor assíduo dos semioticistas escolásticos

que, por sua vez, fundamentaram-se na filosofia estóica. A semiótica peirceana é, portanto,

eminentemente triádica, sendo seus constituintes:

interpretante

representâmen objeto

que ele define da forma seguinte:

Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen (PEIRCE, 2003, p. 46).

Significa dizer que Peirce considera o signo como a representação do objeto, criando

um signo equivalente, na mente de alguém, que é o seu o interpretante. Aquilo que o signo

representa é denominado objeto. A representação caracteriza-se pela relação entre o signo e o

objeto. Representar é estar no lugar de outro, de tal forma que, para uma mente interpretante,

o signo é tratado como sendo o próprio objeto, em determinados aspectos. O termo

representação envolve, necessariamente, uma relação triádica, que é um esquema do processo

contínuo de geração dos signos. O processo representativo se define pelas relações imbricadas

que se estabelecem entre signo-objeto-interpretante, nas quais os termos atuam, determinando

ou sendo determinados pelos outros elementos da tríade.

Page 23: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

22

1.2 O SIGNO LINGÜÍSTICO

As idéias de Ferdinand de Saussure constituem o fundamento da moderna Lingüística.

As anotações, concatenadas e publicadas em 1916 por seus alunos Charles Bailly e Albert

Séchehaye com o título de Cours de Linguistique Générale, foram relevantes para a

construção da estrutura desta Ciência, como também para o estudo da Semiótica. O signo

lingüístico é definido por F. Saussure (2004, p. 80) como “uma entidade psíquica” em que se

distinguem dois elementos: significante e significado.

O significante corresponderia à imagem acústica (som), enquanto o significado

corresponderia ao conceito (pensamento). A escolha da porção acústica para o pensamento

não segue nenhuma regra preestabelecida, tem-se a arbitrariedade do signo. Essa

arbitrariedade explicaria por que um fato social pode, por si só, originar um sistema

lingüístico. Para o autor, o valor conceitual do signo (que está sob a dependência da

significação) está na propriedade que este tem de representar uma idéia. Esse valor é

encontrado a partir de dois aspectos: a dessemelhança e a semelhança. No primeiro caso, o

valor é relacionado a seu oposto, fora do campo da significação; no segundo caso, quando

relacionado com outros signos, dentro do campo da significação.

O valor do signo na sua totalidade parte das diferenças tanto do conceito quanto da

matéria. Assim, o que distingue um signo é tudo que o compõe.

Para Hjelmslev (2003, p. 54), o signo lingüístico é composto de duas grandezas:

expressão e conteúdo. Cada uma dessas grandezas é composta por uma forma e uma

substância (conhecimento que temos da língua). A forma é semelhante a uma gramática que

compreende uma morfologia e uma sintaxe. No conteúdo, a relação de dependência entre a

substância (que é semântica) e a forma (que é semêmica) dá origem ao significado.

Na função semiótica, expressão e conteúdo são os dois funtivos que estão sempre

unidos por uma relação solidária.

O autor assim afirma: “Uma expressão só é expressão porque é a expressão de um

conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma expressão” (2003, p. 54).

Dessa forma, não existe expressão sem conteúdo, nem tampouco conteúdo sem expressão. Na

expressão, a substância é fêmica e a forma é femêmica e origina o significante. A toda

substância de uma forma qualquer, o autor chamou sentido. No entanto, não se pode

confundir conteúdo com sentido, já que aquele pode existir sem este.

A proposta de Hjelmslev pode ser resumida no digrama seguinte:

Page 24: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

23

A relação entre conteúdo e expressão é arbitrária. Eis um ponto comum entre

Hjelmslev e Saussure. O pensamento é um aspecto comum a todas as línguas e indispensável

à estruturação do signo lingüístico. Saussure chamou o pensamento de significado, enquanto

Hjelmslev, de conteúdo. Para este (2003, p. 49) “Um ‘signo’ funciona, designa, significa.

Opondo-se a um não-signo, um ‘signo’ é portador de uma significação.” Quando fora do

contexto, os signos nada ou quase nada significam. Uma palavra, por exemplo, pode ser

considerada num contexto de um signo menor que ela, porém, por sua natureza significativa e

pela estrutura organizacional e relação que mantém com outros signos menores, pode

significar, de igual modo ou mais que uma palavra, quando empregada como elemento menor

de um contexto maior que sua natureza. Sobre essa idéia, o autor assim se expressa:

As palavras não são os signos últimos, irredutíveis, da linguagem, tal como podia deixá-lo supor o imenso interesse que a lingüística tradicional dedica à palavra. As palavras deixam-se analisar em partes que são igualmente portadoras de significações: radicais, sufixos de derivação e desinências flexionais. (HJELMSLE, 2003, p. 49).

Ao decompor uma palavra em seus elementos mórficos, percebemos a carga

significativa que cada morfema carrega, daí serem considerados signos. Porém, o mesmo não

pode ser dito com relação aos fonemas e às sílabas, dada a sua falta de significação e por isto

mesmo, a impossibilidade de ser signo.

Assim, Hjelmslev complementa a teoria saussuriana no que diz respeito à relação

entre o conteúdo e expressão de uma língua, propondo não mais um sistema de signos, mas

um sistema de figuras, e abrindo caminho para uma visão pancrônica da língua.

Sig

nific

ado

Conteúdo

Substância semântica

Forma semântica

Forma femêmica

Substância fêmica

Expressão

Sentido

Sentido

S

igni

fican

te

Função Semiótica

ϕσ

Page 25: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

24

1.3. DA SIGNIFICAÇÃO

É no início dos anos setenta que surge em Paris uma Escola Semiótica defendida por

Greimas, Courtés e seus discípulos. Antes, entretanto, em 1958, A. J. Greimas já havia escrito

uma primeira versão de sua Semântica, quando comprou o livro Prolegômenos a uma teoria

da linguagem de Hjelmslev, cuja leitura foi tão importante que o fez destruir quase duzentas

páginas de seus manuscritos. Parte, então, o semioticista da concepção de significação,

proposta por Hjelmslev, isto é, uma relação de dependência entre conteúdo e expressão,

complementando-a. A significação abarca o conceito de semiose, que é processo de produção,

acumulação e transformação da função semiótica em discurso. Com isso, eles aperfeiçoaram a

dicotomia diacronia/sincronia proposta por Saussure, criando a pancronia onde o sistema se

apresenta em contínua mudança (BARBOSA, 1996, p. 31-45). Acontece um processo

contínuo de auto-alimentação e auto-regulação, de formulação e reformulação do sistema e

por isso, dinâmico. O sistema produz o discurso que, por sua vez, produz o sistema de forma

contínua. A competência modifica-se de um sujeito para outro e, com relação ao mesmo

sujeito, de um discurso para outro. O sistema é ainda um conjunto de códigos e sub-códigos

que são os responsáveis pelas mudanças que acontecem no sistema. A significação se dá pelo

processo de produção, acumulação e transformação da função semiótica: informa, produz

novas grandezas, reformula a visão de mundo e, portanto, transforma (PAIS, 2002, p. 104).

Seguindo uma trajetória que tem início na mente do enunciador e só está completa na

mente do enunciatário, a significação manifesta-se e se constrói ao longo do discurso e só está

completa no percurso sintagmático do discurso por inteiro (PAIS, 1995, p. 56).

De acordo com Greimas (1975, p. 12-13) é preciso compreender que “o homem vive

num mundo significante”. O sentido então, “não se coloca, é colocado”, causa dos

questionamentos sobre o que dizer determinada palavra e/ou o que se entende por algo. Para o

autor a significação é a “transposição” de uma linguagem a outra, o que permite ser esta

possibilidade de “transcodificação”.

A significação é compreendida como um percurso gerativo constituído de três níveis:

o fundamental; o narrativo e o discursivo. Seus componentes são dispostos uns com relação

aos outros, confirmando que todo objeto semiótico é definido segundo o modo de produção.

Esses componentes, que se incluem nesse processo, se articulam entre si de acordo com um

percurso que vai do “mais simples ao mais complexo, do mais abstrato aos mais concreto”

(GREIMAS & COURTÉS, 1979 , p. 206).

Page 26: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

25

Greimas e Courtés (1979, p. 209) consideram o percurso gerativo com duas estruturas

de profundidade superpostas: sêmio-narrativas e discursivas. Os demais autores, no entanto,

consideram que só o componente semântico é associado às estruturas profundas, enquanto os

componentes fonológicos e fonemático, às estruturas de superfície.

As estruturas sêmio-narrativas constituem o nível mais abstrato e são compostas por

dois componentes (sintáxico e semântico) e dois níveis (profundo e de superfície). No

primeiro, se destacam uma sintaxe fundamental e uma semântica fundamental; no segundo,

uma sintaxe narrativa e uma semântica narrativa. Essas estruturas são definidas por referência

tanto ao conceito de língua, quanto ao de competência narrativa, uma vez que incluem, além

de uma taxionomia, um conjunto de operações elementares. As estruturas discursivas são

consideradas menos profundas e responsáveis por retomar as estruturas de superfície,

colocando-as em discurso pela enunciação. Apresenta um componente sintáxico, ou sintaxe

discursiva, encarregado da discursivização das estruturas narrativas que comporta três

subcomponentes: actorialização, temporalização e espacialização, além de um componente

semântico, ou semântica discursiva, onde são explorados os subcomponentes: tematização e

figurativização. O modelo da trajetória segundo Greimas e Courtés (1979, p. 209) pode ser

estruturado da seguinte forma:

PERCURSO GERATIVO

Componente Sintáxico

Componente Semântico

Estruturas sêmio-narrativas

Nível profundo

Nível de superfície

Sintaxefundamental

Sintaxe narrativa ede superfície Semântica narrativa

Estruturas discursivas

Sintaxe discursiva Discursivização (actorialização,temporalização,espacialização)

Semântica discursiva

(Tematização Figurativização)

Semântica fundamental

Page 27: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

26

1.3.1 Estrutura Fundamental

O nível fundamental do percurso gerativo, o primeiro do ponto de vista do enunciado,

determina o sentido primeiro a partir do qual se constrói o discurso. Apresenta princípios

lógico-conceptuais estruturados de uma sintaxe e de uma semântica fundamental.

Na SINTAXE FUNDAMENTAL, encontramos as categorias semânticas que estão na

base da construção de um texto e que abrigam as diferenças, as oposições. Mas para que seja

possível comparar dois opostos, é preciso que eles tenham algo em comum sobre o qual se

estabeleça uma diferença. A sintaxe fundamental foi apresentada, inicialmente por Greimas,

através do quadrado semiótico constituído pela relação entre os termos contrários,

contraditórios e implicativos. Os termos contrários, como o próprio nome indica, mantêm

uma relação de pressuposição recíproca. A negação de cada contrário define os contraditórios.

Cada um dos contraditórios é contrário entre si e podem estabelecer a ausência ou presença de

algum traço que são as implicações (S1.......S2 e S2......S1) 1. A significação S aparece como

eixo semântico que se opõe a S, entendido como ausência total de sentido e contraditório de

S. O eixo semântico S (substância do conteúdo) articula-se em dois semas contrários (S1

S2)2 que indicam a existência dos termos contraditórios (S1 S1 e S2 S2)

3, cujo

quadro semiótico aparece da seguinte forma:

(GREIMAS, 1975, p. 127)

1 ......... relação de implicação 2 relação de contrários 3 relação de contraditórios

Page 28: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

27

O octógono é estabelecido a partir dessa relação de contrários (S1 e S2) que sustenta a

tensão dialética do quadrado semiótico. O octógono é, na realidade, a ampliação do quadrado.

Das relações de implicação (S1+ S2 e S2 + S1) é que geram os termos complexos e a

combinação dos termos S1 e S2 os quais definem o termo neutro (ø), isto é, a ausência

semiótica. O diagrama abaixo ilustra o que foi dito:

É através do octógono que Greimas (1973, p. 184) propõe a interpretação do quadrado

semiótico, onde aparecem os meta-termos, os quais constituem a dialética entre os dois termos

simples do quadrado, gerando termos complexos.

O octógono é, portanto, a evolução do quadrado semiótico, ambos empregados como

representações sintáticas da estrutura elementar de significação.

Na SEMÂNTICA FUNDAMENTAL, determinam-se as qualificações semânticas

euforia vs disforia. Para Greimas (1979, p. 170), a euforia é o termo positivo da categoria que

serve para dar valor a microuniversos, enquanto que disforia é o termo negativo.

A aforia se coloca num universo neutro: nem eufórico, nem disfórico. Assim os textos

podem ser euforizantes, disforizantes e aforizantes.

Page 29: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

28

1.3.2 Estruturas Narrativas

O nível narrativo ou narrativização é a camada intermediária entre a estrutura

superficial e a estrutura profunda e apresenta uma sintaxe e uma semântica. Esse nível intenta

reconstituir o fazer do homem que, ao buscar os valores para sua existência sociocultural,

transforma a história e o mundo.

A SINTAXE NARRATIVA compreende o desempenho de um Sujeito que realiza um

percurso em busca de um Objeto de Valor, sendo motivado por um destinador e ajudado por

um Adjuvante ou prejudicado por um Oponente. E é por assim se organizar que a narrativa

amplia seu espaço de atuação para englobar todo o enunciado, onde se confirma a existência

de um sujeito. Batista (2001, p. 150) argumenta:

A análise da estrutura actancial de um texto permite captar sua temática e ideologia, considerando que esta não apresenta a conotação política que lhe é atribuída normalmente, mas se define pelo sistema de valores de um indivíduo, de uma cultura, de uma sociedade.

Dessa forma, quanto mais actantes e variados forem, mais ideologias são identificadas

no texto. Nesse nível pode ocorrer um actante (A1) manifestado em um ator (a1), um actante

(A) representado por vários atores (a1 ,a2, a3) e vários actantes (A1, A2, A3) representado por

um ator (a). Quando um actante (A) se manifesta no discurso por vários atores (a1 ,a2, a3)

acontece o conflito, ou seja, a tensão. Veja os três casos: sem e com conflito.

A1 A2 A3 A A1 A2 A3

a1 a2 a3 a1 a2 a3 a

(Conflito)

Considerando a estrutura actancial, que objetiva explicar o imaginário humano, é

possível identificar duas espécies de enunciados narrativos: um Sujeito (S) do fazer em busca

de um Objeto de valor (OV) e um Destinador (Dor) que destina o Objeto de valor a um

Page 30: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

29

Destinatário (Dario). Há um valor objetivo quando da relação homem/trabalho e um valor

subjetivo quando da relação homem/objeto de desejo. Esse universo coletivo é caracterizado

pelas disjunções sintagmáticas. E é representado graficamente num retângulo: Destinador (ao

lado do Anti-destinador - Dor) que incita o sujeito (ao lado do Anti-sujeito - S) a adquirir o

Objeto almejado; o Adjuvante que ajuda, física ou psicologicamente, para que o sujeito

consiga seu Objeto almejado e o Oponente, cujas ações intentam prejudicar o sujeito em sua

realização.

Dario Dor Dor

Adjuvante

S S1 OV

Oponentes

Constituído de vários programas auxiliares, para seguir o percurso, o sujeito semiótico

percorre um caminho, segundo a ordem dos fatos da narrativa, que se chama percurso do

sujeito. Veja os esquemas seguintes:

S1 OV1

S1 OV2

S1 OV3

Seguindo o percurso em busca do Objeto de Valor, o Sujeito Semiótico pode ou não

encontrar obstáculos. Encontrando, passa por momentos diferentes, tendo que tomar decisões

que têm por finalidade ultrapassar o obstáculo. Nesse caso, o gráfico vai ser representado com

quebras, tantos quantos forem os momentos. Observe.

Page 31: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

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S1 0V1

S1 0V2 S1 0V6 S1 0V10

S1 0V3 S1 0V7 S1 0V11

S1 0V4 S1 0V8 S1 0V12

S1 0V5 S1 0V9 S1 0V13

O universo individual é caracterizado pelas disjunções paradigmáticas constituído pelo

quadrado, onde se distingue a dêixis negativa da dêixis positiva.

Positiva S1 S2

_ _ S2 S1

Negativa

Desse universo resultam desdobramentos atuacionais em que cada actante desempenha

um papel em conformidade com uma das dêixis referidas. Muito saliente no conto popular as

oposições bom versus mau, onde o bom ocupa sempre a dêixis positiva e o mal ocupa sempre

a dêixis negativa, da mesma forma acontece a dicotomia herói/traidor, adjuvante/oponente,

entre outras atuações.

A função-juntiva determina o enunciado de estado que se traduz na relação sujeito e

objeto. A junção pode situar-se em duas situações contraditórias: a conjunção (posse) do

sujeito com seu Objeto de valor, e a disjunção (privação) do sujeito com seu Objeto de valor.

É representado pelo esquema:

F junção (S ∩ O) (que se lê: sujeito transformador conjunto com o objeto de valor)

F junção (S U O) (que se lê: sujeito transformador disjunto com o objeto de valor)

Page 32: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

31

A função de transformação engendra o enunciado do fazer, que corresponde à

passagem de uma relação de estado para outra (da disjunção para a conjunção e vice-versa). É

representado pelas seguintes frases-diagrama:

F = [ (S1 ∩ OV ) (S1 U OV ) ] (que se deve ler: o fazer transformador em que o

sujeito semiótico conjunto do seu objeto de valor, passa a disjunto com o mesmo).

F = [ (.S1 U OV ) (S1 ∩ OV ) ] (que se deve ler: o fazer transformador em que o

sujeito semiótico disjunto do seu objeto de valor, passa a conjunto com o mesmo).

A SEMÂNTICA NARRATIVA está voltada para os valores do sujeito semiótico. De

natureza semântico-cognitiva, esses valores são imprescindíveis para que o sujeito realize seu

percurso que o fará conjunto ao seu objeto de valor.

A modalização corresponde tanto ao enunciado do estado quanto ao enunciado do

fazer. O enunciado do estado denomina-se modalização do ser e volta-se para o sujeito modal.

O enunciado do fazer recebe o estatuto de modalização do fazer, responsável pela

competência modal do sujeito do fazer. Tanto a competência do sujeito do estado, quanto do

sujeito do fazer regem os predicativos: querer, dever, poder, saber.

Greimas (1977, p. 183) assegura que para se chegar à performance é preciso antes ter a

respectiva competência. A competência é responsável pela passagem da virtualização à

realização, onde se instaura a narrativa complexa em que aparecem quatro percursos

encadeados.

O primeiro percurso é o da manipulação, é o do fazer-fazer: um enunciado do fazer

rege outro enunciado do fazer. Nesse patamar, um sujeito manipulador (Destinador) faz com

que o sujeito manipulado (Destinatário) realize a conjunção entre um sujeito do estado e seu

objeto de valor. Nesse percurso, pode haver um sincretismo entre o sujeito manipulado e o

sujeito do estado.

A manifestação da manipulação nos discursos depende da competência do

manipulador que pode se instaurar por um saber, um poder, ou alteração modal, realizada na

competência do sujeito manipulado. Quando o sujeito manipulador se sustenta numa

dimensão pragmática e promete ao manipulado um objeto de valor positivo como, por

exemplo, “Se você for aprovado no fim do ano, te dou uma viagem a Disney.”, revela uma

tentação. Ou quando o manipulador age numa dimensão cognitiva, apresentada,

positivamente, como uma espécie de “adulação”, acontece uma sedução, por exemplo, “Você

é um menino tão inteligente e sabe se comportar, não vai tirar reprovação, não é?”. Ou

Page 33: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

32

ainda, quando aplicado no plano pragmático, fazendo acontecer uma intimidação, como

“Estude para passar de ano, senão não tem viagem nenhuma, entendeu?”. O manipulador

ameaça de privar o manipulado de algo agradável para ele. E, finalmente, no nível cognitivo,

o manipulador apresenta ao manipulado uma imagem negativa dele: “Duvido que você seja

aprovado, com essa preguiça toda!”, de forma que o manipulado tenta provar o contrário,

mostrando-lhe uma imagem positiva. Tem-se o discurso da provocação. Vejamos essas

situações resumidas no quadro:

Percursos

Competência do

Destinador-manipulador

Competência do

destinatário

Nível

Exemplo

Tentação

Poder

(positivo)

Querer-fazer

Pragmático

“Se você for aprovado no fim do ano, te dou uma

viagem a Disney”.

Sedução

Saber (positivo)

Querer-fazer

Cognitivo

“Você é um menino tão

inteligente e sabe se comportar, não vai tirar

reprovação, não é?”

Intimidação

Poder (negativo)

Dever-fazer

Pragmático

“Estude para passar de

ano, senão não tem viagem nenhuma, entendeu?”

Provocação

Saber (negativo)

Dever-fazer

Cognitivo

“Duvido que você seja

aprovado, com essa preguiça toda!”

A segunda etapa do percurso de uma narrativa complexa caracteriza a competência

modal do sujeito responsável pelas transformações. Nesta instância, são definidas quatro

modalidades: dever-fazer e querer-fazer, poder-fazer e saber-fazer.

Greimas & Courtés (1979, p. 283) colocam o dever-fazer e o querer-fazer como

virtualizantes, uma vez que indicam o desejo do sujeito. A partir do querer e do dever do

sujeito, se instaura um sujeito transformador. O poder-fazer e o saber-fazer são modalidades

atualizantes, pois qualificam o sujeito, atribuindo-lhe a capacidade para agir. Para os autores,

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o sujeito também pode apresentar modalidades negativas (não-dever, não-querer, não-saber),

impossibilitando-o de agir.

Ainda se destacam as modalidades realizantes do fazer e do ser, que correspondem à

performance do sujeito. Observemos de forma sintética essas modalidades:

Modalidades

Virtualizantes

Atualizantes

Realizantes

Dever-fazer Querer-fazer

Poder-fazer Saber-fazer

Fazer Ser

Instauração

Qualificação

Realização

E o último elemento do esquema narrativo é a sanção, que pode se apresentar sob duas

dimensões: a pragmática e a cognitiva. A primeira se sustenta sobre o fazer do sujeito que

realiza a performance. O Destinador-julgador estabelece um juízo epistêmico – do crer –

sobre a conformidade ou não, como foi atualizado no contrato inicial. Em contrapartida, o

destinatário responde com a retribuição. Por ter realizado a performance e cumprido as

obrigações contratuais, o destinatário recebe do destinador a compensação prevista, que pode

ser positiva (recompensa) , ou negativa (punição), dependendo da conformidade ou não de sua

ação.

A segunda forma de sanção se sustenta sobre o ser do sujeito e é também de natureza

epistêmica. O julgamento do Destinador-julgador é sobre a realidade da performance do

destinatário, confirmando a veracidade de suas ações. Do ponto de vista do Destinatário-

sujeito, essa sanção equivale ao reconhecimento do herói e, negativamente, à confusão do

vilão (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 390).

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34

1.3.3. Estruturas Discursivas

Preliminares

A discursivização se apresenta recoberta de papéis atuacionais manifestados por atores

que se apresentam ora disjuntos, ora conjuntos. Esses modelos atuacionais contribuem para

descrever percursos e instâncias de sentido, geradores do discurso. E por razões pragmáticas

devem ser considerados modelos de previsibilidade. A teoria do discurso tem a tarefa de

explorar as formas discursivas e os diferentes modos de articulação antes de passar para a

teoria lingüística. O conceito de texto é polissêmico porque é utilizado em diversas correntes

com concepções diferentes, conforme observa Pais (1995, p. 136). De um modo geral, os

estruturalistas, definem o discurso como o ato de fala (parole) ou algo próximo de texto como

coisa enunciada ou como enunciado.

Para a semiótica e a lingüística pós-estruturalistas, o discurso atesta um processo

dinâmico de constante produção. O discurso é o lugar da semiose (significação), daí ser o

discurso produtivo porque produz significação e informação, ou seja, funções semióticas e

metassemióticas e seus recortes culturais, organizando referentes, elaborando parcialmente

uma visão de mundo. O discurso dedutivo (variação do discurso) é mantido pela tensão

dialética entre consenso (total) e especificidade (parte do todo), sustentando-se na

comunicação intersubjetiva.

Por outro lado, o discurso produz o sistema, assim como o sistema é função do

discurso. É na discursividade onde se instaura e se renova a competência.

À SINTAXE DO DISCURSO cabe as relações intersubjetivas de espaço e de tempo

de enunciação e de enunciado. Quando se constrói um discurso-enunciado é,

pressupostamente, estabelecido um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário, o que

determina a veracidade ou não do texto. Esse acordo de confiança mútua prescreve, como o

enunciatário deve perceber o texto do ponto de vista da verdade e da realidade e como o

enunciatário deve compreender o discurso-enunciado, a partir da informação superficial,

instaurada pelos significados gerais de elementos que constituem a estrutura, isto é, o

conteúdo dito, recuperando o dizer. Segundo Benveniste (2006, p. 82), o primeiro a se

preocupar com a questão da enunciação, o processo de uso da língua como instrumento de

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enunciação pode ser observado sob três aspectos: a realização vocal; mecanismos de produção

vocal; caracteres formais da enunciação. Por realização vocal da língua entende-se o som

emitido e percebido no interior de uma fala, procedentes de atos individuais. O autor

considera a enunciação o colocar em funcionamento a língua por um ato individual de

utilização. A enunciação produz o enunciado e não o texto do enunciado. É a relação do

locutor com a língua que determina os caracteres lingüísticos da enunciação, recuperados nos

discursos examinados.

Na produção científica, há o intento à objetividade, porém uma experiência, mesmo

repetida em detalhes, jamais é a mesma. A enunciação supõe a conversação individual da

língua em discurso. É a semantização da língua que conduz à teoria do signo e à análise da

significância. Antes da enunciação, a língua é possibilidade. Depois da enunciação, ela é

efetivada numa instância do discurso. No ato individual, a língua é um processo de

apropriação do aparelho formal da língua. É instituído então um enunciador que implanta um

outro. Na enunciação, a língua é empregada para expressar uma certa relação com o mundo.

O locutor sente necessidade de referir para o outro, através do discurso, a possibilidade de co-

referir, no consenso pragmático que faz cada locutor um co-locutor. Há aqui a emergência dos

índices lingüísticos de pessoa – eu/tu e da mesma forma, os índices lingüísticos de ostensão –

este/aqui/ entre outros.

Cada tipo de enunciação tem seu modo de ser e parecer. Em determinadas enunciações,

a relação entre as pessoas eu/tu que simula a relação enunciador-enunciatário, pode aparecer

implícita ou explícita. Se a relação é explicitada, a enunciação é chamada enunciação

enunciativa. Por outro lado, quando o enunciador e o enunciatário estão implícitos no

enunciado, não havendo marca pessoal que se refira a eles, tem-se a chamada enunciação

enunciva. Além da categoria de pessoa, o enunciado mobiliza também as categorias de tempo

e de espaço. Na enunciação enunciativa, o tempo é o momento do agora e o espaço é o lugar

do aqui. Na enunciação enunciva, o tempo é o do então e o espaço é o do lá. Cada tipo de

enunciação tem seus sistemas temporais, espaciais e pessoais próprios e seus modos de

colocá-los em discurso. São formas verbais, cujo ponto de referência é sempre o tempo

presente. O autor considera o tempo um aspecto inato do pensamento. Considerando o agora

como tempo axial, podemos construir um modelo de referência em que se destacam uma

anterioridade e uma posterioridade. Da mesma forma, podemos construir outros sistemas

temporais com o tempo axial pretérito e futuro.

Fiorin (2006, p. 60) sintetiza a temporalização da seguinte forma:

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Anterioridade

Concomitância

Posterioridade

Pretérito perfeito

Presente

Futuro do presente

Futuro do presente

Presente do futuro

Futuro do futuro

Pretérito-mais-que-perfeito

Pretérito

Futuro do pretérito

Da enunciação é instaurado o presente, do presente nasce a categoria de tempo. O

presente formal explicita o presente inerente à enunciação que se renova em cada enunciação.

A enunciação também oferece as condições necessárias às grandes funções sintáticas que

influenciam, de algum modo, o comportamento do alocutário: a interrogação que incita uma

resposta; a intimidação que incita um determinado comportamento do outro; a asserção que

comunica uma certeza. Dessa forma, o que caracteriza a enunciação é a acentuação da relação

discursiva com o parceiro, que coloca em evidência o quadro figurativo da enunciação. É o

diálogo. O monólogo (diálogo interior) se origina claramente da enunciação. A transposição

do diálogo em “monólogo”, em que o EGO ou se divide em dois, ou assume dois papéis,

presta-se a figurações ou transposições psicodramáticas: conflitos do “eu profundo” e da

“consciência”.

Em Bakhtin (2004, p. 128-129), encontramos o sentido da enunciação chamado de

tema, determinado não só pelas formas lingüísticas, mas igualmente pelos elementos não

verbais da situação. Além do tema, a enunciação é dotada de uma significação, resultado de

um contexto ativo e responsivo. Só existe significação em uma palavra quando esta se coloca

enquanto traço de união entre os interlocutores. Sobre esta forma de pensar o autor esclarece:

A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro (BAKTHIN, 2004, p. 132).

O autor acredita que a língua só se realiza através do processo de enunciação, que

compreende não só a matéria lingüística, mas o contexto social em que o enunciado se

manifesta (2004, p.72). Disto decorre que o discurso é resultado de uma interação social e traz

para dentro de sua estrutura sintática e semântica outras vozes, outros discursos, igualmente,

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situados social e ideologicamente e que, além disso, ao serem citados, não perdem, de todo,

sua forma e conteúdo.

Greimas e Courtés (1979, p. 145-148) focalizam na definição de enunciação duas

maneiras diferentes de percebê-la: como estrutura não-linguística e como instância linguística.

No primeiro caso, falam de uma “situação de comunicação”, ou “situação psicossociológica”

da produção do enunciado, que essa situação permite atualizar. Essa definição aproxima-se do

ato de linguagem. No segundo caso, como o enunciado é considerado o resultado da

enunciação, esta é entendida como “instância de mediação”, um componente autônomo da

linguagem que possibilita a passagem entre a competência e a performance; entre as estruturas

virtualizantes, que atingem qualificação atualizantes, e as realizantes no enunciado.

A enunciação acolhida pelos autores é a que sustenta a segunda definição, em que a

“instância de mediação” produz o discurso. Levam em conta as diferentes instâncias,

organizadas em camadas de profundidade, constituindo o percurso gerativo global.

Consideram que:

[...] o espaço das virtualidades semióticas, cuja atualização cabe à enunciação, é o lugar de residência das estruturas sêmio-narrativas, formas que, ao se atualizarem como operações, constituem a competência semiótica do sujeito da enunciação (GREIMAS&COURTÉS, 1979, p. 146).

Assim, a enunciação é o lugar de exercício da competência semiótica, ao mesmo

tempo, a instância da instauração do sujeito. A enunciação enquanto ato, apresenta uma

“intencionalidade” interpretada como “visão de mundo”, uma relação orientada que permite o

sujeito construir o mundo enquanto objeto, simultaneamente à construção de si próprio. Nesse

sentido, tem por efeito a semiose, ou mais precisamente atos semióticos os quais chamamos

manifestação.

A efetivação da enunciação depende de três categorias eu-aqui-agora, projetados ou

não no discurso. Assim, a discursivização é o procedimento gerado de pessoa, lugar e tempo

da enunciação e, concomitantemente, referenciando pessoa, lugar e tempo no discurso, através

de uma representação actancial, espacial e temporal.

Os mecanismos de instauração das categorias do eu-aqui-agora no enunciado são a

debreagem e a embreagem. A debreagem consiste em ausentar a enunciação, ou seja, negar

um eu-aqui-agora, fazendo surgir um ele-algures-então no enunciado. Greimas (1979, p. 95)

sustenta que:

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A debreagem actancial consistirá, então, num primeiro momento, em disjungir do sujeito da enunciação e em projetar no enunciado um não-eu; a debreagem temporal, em postular um não-agora distinto do tempo da enunciação; a debreagem espacial, em opor ao lugar da enunciação um não-aqui.

A debreagem, conforme refletido acima, pode ser vislumbrada através do seguinte

esquema:

Eu Debreagem actancial não-eu = Ele

Enunciação Aqui Debreagem espacial não-aqui = Algures Enunciado

Agora Debreagem temporal não - agora = então

O mecanismo da embreagem é uma tentativa de retorno à enunciação com a suspensão

das oposições de pessoa, tempo e espaço. Assim, se a enunciação é reconstruída a partir da

recuperação dos traços deixados no enunciado, o retorno à instância da produção enunciativa,

dá margem ao desaparecimento do enunciado, impedindo, portanto, a restauração da

enunciação. Dessa forma, “Toda embreagem pressupõe, portanto, uma operação de

debreagem que lhe é logicamente anterior” (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 140).

Vejamos a possibilidade de embreagem no esquema a seguir:

Ele Embreagem actancial Não-ele = Eu

Enunciado Algures Embreagem espacial Não-algures = Aqui Enunciação

Então Embreagem temporal Não-então = Agora

Outro aspecto da organização esquemática enunciativa refere-se à existência de um

narrador e de um narratário, implícitos ou explícitos, no enunciado. São os actantes da

enunciação enunciada, diretamente delegados do enunciador e enunciatários, podendo

encontrar-se em sincretismo com um dos actantes do enunciado.

E o último momento, refere-se à hierarquização enunciativa que surge quando o

enunciador-narrador delega a voz a um actante, engendrando uma debreagem interna que

instaura o diálogo. Produz um efeito de verdade por consistir no simulacro da própria

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instância da comunicação, através da qual, faz emergir os actantes destinador e destinatário,

que exercem as funções de interlocutor e interlocutário. Veja-se essa relação no esquema:

Enunciador Instância da enunciação pressuposta Enunciatário

Narrador Debreagem de 1º Grau Narratário

Interlocutor Debreagem de 2º Grau Interlocutário

UNIVERSO DO DISCURSO

Vale salientar que o esquema acima não é fixo no discurso, da forma como se

apresenta, pode variar dependendo do universo de discurso. A debreagem e a embreagem são,

portanto, estratégias sintáticas da enunciação que servem para manipular e convencer durante

o processo de argumentação.

Pottier (1974, p. 44) criou uma curva senoidal para explicar o percurso gerativo de

significação, em que se destacam a duas faces: codificação e decodificação. A primeira face

tem sua origem na mente do enunciador (fazer persuasivo); a segunda acontece quando a

enunciação é completada na mente do enunciatário (fazer interpretativo). Durante o percurso

da enunciação acontecem várias etapas de acordo com a visão dos semioticistas.

Observe as etapas apresentadas no diagrama a seguir para um melhor entendimento de

como acontece o percurso da enunciação:

(PAIS, 1995, p. 162-181)

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40

A primeira etapa é a percepção: o enunciador é consciente dos objetos que o rodeiam,

considerados individual e concretamente.

A conceptualização é a segunda etapa. É a fase da preparação do conceptus. O

enunciador constrói em sua mente o conceito dos objetos do mundo natural. No conceptus,

estão presentes os traços semânticos: as saliências, traços que se sobressaem, óbvios; as

pregnâncias, traços virtuais acrescentados pelo enunciador; as latências, traços que, apesar de

não se mostrarem explícitos, são deduzíveis.

Barbosa (2000, p. 95-120) mostra que o conceptus se estrutura no sentido

amorfo/formado, compreendendo três naturezas: o arquiconceptus ou conceptus stritu sensu,

recorte cultural dos noemas universais, isto é, comum a todas as culturas; metaconceptus,

recorte cultural dos noemas específicos; o metametaconceptus, recorte cultural dos noemas

individuais, intencionais, modalizadores e manipulatórios. Este último diz respeito ao modo

como o sujeito se instaura na narrativa como modalizador.

A semiótica humana inicia-se na conceptualização. É o processo que sai de uma

semântica cognitiva (natural) para uma semântica lingüística (uso da língua). Não existe

semiótica completa quando o enunciatário desconhece o objeto de decodificação. Enunciador

e enunciatário(s) são responsáveis pelo acréscimo do saber.

A terceira etapa é a semiologização. Acontece a transição do cognitivo ao semiótico. É

ideológico, o enunciador deixa as marcas de seus valores de acordo com a sociedade em que

está inserido. Acontece a leximização (quinta etapa), escolha das lexias para atualização

(sexta etapa) do discurso. Aqui o discurso se adequa ao enunciatário para que possa realmente

haver comunicação.

A etapa seguinte é a semiose, produção, acumulação e transformação da significação.

Produz-se aqui o texto de ambos eor e eário. O enunciatário agora re-atualiza; re-semiotiza;

re-semiologiza; re-conceptualiza; realimente e auto-regula os seus conceitos que lhe chegam

modificados, aumentando, dessa forma, sua competência e seu saber sobre o universo em

construção.

Pais (1993, p. 60) complementa a discussão, quando mostra que a competência e o

desempenho do sujeito enunciador são definidos pelas relações entre designações, designatas

e modelos conceptuais noêmicos existentes num processo e contínua construção e

reconstrução da visão de mundo. Desta forma, trata da curva senoidal como um percurso da

cognição.

Focalizamos, neste contexto, os sujeitos assinalados por Pais (1995, p. 143-164), nesse

processo de enunciação: Sujeito-Enunciador (S’), e o Sujeito-Enunciatário (S”), além do

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sujeito que se encontra projetado no texto, o Sujeito de Enunciado (S*), que pode assumir ou

não, o mesmo posto do Sujeito Enunciador. Isto acontece porque o discurso só tem existência

como processo, pois prevê o percurso da enunciação, tendo o Sujeito-Enunciador como

produtor, ou seja, como emissor do discurso e o Sujeito-Enunciatário, como receptor, dentro

de um contexto sócio-cultural, que o envolve e que se desloca no eixo do tempo, o tempo da

História.

Além desse tempo, Pais focaliza o tempo de duração do percurso e o tempo da

enunciação, que se desdobram em tempo do emissor e tempo do receptor, ou tempo da

enunciação de codificação (T’) e o tempo da enunciação de decodificação (T”) que, mesmo

em equivalência, nunca são idênticos. Há ainda, o tempo do enunciado (T*), que é o tempo do

texto em sua completude.

Além do tempo, o autor faz uma abordagem entre os espaços e o contexto sócio-

cultural; o espaço e o contexto da enunciação e seus sujeitos: espaço do enunciador (E’) e

espaço do enunciatário (E”), projetados no texto, como o espaço do enunciado (E*).

A SEMÂNTICA DISCURSIVA é organizada a partir dos investimentos:

figurativização e tematização que correspondem a realizações dos atores como mecanismos

que promovem a coerência discursiva.

Em Semântica Estrutural, o lexema aparece como um modelo relativamente estável,

uma figura central, a partir da qual se desencadeiam certas virtualidades, certos percursos

semêmicos. O lexema é uma manifestação virtual, pois nunca se realiza como é, no discurso

manifesto. Na hora em que o discurso coloca sua isotopia semântica, o tesouro lexemático

permite a presença das figuras que são recuperadas pela memória. As figuras lexemáticas, seja

qual for sua manifestação de origem, não são objetos fechados, mas prolongam a todo instante

seus percursos semêmicos, encontrando e incorporando outras figuras, constituindo, dessa

forma, as constelações figurativas de organização própria. Manifestam-se no quadro do

enunciado e ultrapassam esse quadro formando uma rede figurativa relacional que se

desenvolve por seqüência inteira e nela constituem configurações discursivas. São as figuras

que estabelecem, em parte, a especificidade do discurso como forma de organização de

sentido (GREIMAS, 1973, p. 189). As configurações são formas de conteúdo próprias do

discurso que se organizam segundo o esquema canônico do enunciado (destinador-Objeto-

Destinatário), sendo cada termo desse esquema passível de produção de um percurso

figurativo autônomo. Outra propriedade estrutural dessas figuras é a polissemia, que permite

compreender a escolha de uma figura plurissemêmica, propondo virtualmente vários

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percursos figurativos, e pode dar lugar à organização pluriisotópica do discurso, sem que os

termos figurativos sejam contraditórios.

Além disso, pode ocorrer também percurso figurativo distintos, mas paralelos, que

introduzem variantes, permitindo a pluriisotopia (que ocorre quando uma figura única inicial

dá lugar a desenvolvimentos de significação superpostos num só discurso) e a plurivariação

(diversidade figurativa retida e disciplinada pela presença de um papel único). A importância

da plurivariação está na aparição de um papel temático. As reflexões, acerca das figuras,

permitem percebê-las como portadoras de virtualidades, que deixam prever as realizações

semêmicas frasais e os feixes possíveis de seus predicados figurativos. Não é preciso abarcar

todas as variantes, dada sua diversidade. A configuração discursiva corresponde ao papel

temático (discurso), assim como o lexema corresponde ao semema (enunciado). No domínio

da investigação temática, os percursos figurativos ultrapassam e atravessam os discursos.

Enquanto as estruturas narrativas intentam caracterizar o imaginário humano, as

configurações discursivas (motivos e temas) são fios que remetem às áreas e às comunidades

sêmio-culturais.

O papel temático é uma figura nominal. Além de tema, é também um papel, sobre um

plano lingüístico. Define-se por uma dupla redução: da configuração discursiva a um só

percurso figurativo realizado ou realizável no discurso; e redução deste percurso a um agente

competente que subsume virtualmente. Toda figura num discurso se encontra revestida de um

papel temático. Estes podem ser reconhecidos pela ajuda de terminais nos quais culmina a

presença dos papéis atuacionais. Assim, o discurso, considerado no nível da superfície surge

como o desdobramento sintagmático, com presença parcial de figuras polissêmicas, recheadas

de virtualidades múltiplas, reunidas em configurações discursivas, contínuas e confusas.

Somente as figuras, cuja denominação é atores, se encontram erigidas de papéis temáticos. O

ator é o lugar de conjunção das estruturas narrativas discursivas, do componente gramatical e

do componente semântico, porque é carregado concomitantemente de um papel atuacional e

um papel temático que lhe permitem a competência e os limites de seu fazer ou de seu ser. Ele

é também o lugar de investimento e de transformação desses papéis, pois o fazer semiótico se

realiza no quadro dos objetos narrativos, consistindo num jogo de desperdício, de

substituições e de trocas de valores, modais ou ideológicos. Dessa forma, a estrutura atoral é

topológica: decorre de estruturas narrativas e discursivas, é o lugar de sua manifestação, sem

pertencer totalmente nem a uma nem a outra.

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2. PREPARANDO O CORPUS

2.1 O CONTO POPULAR: conceito e estrutura

A cultura de um povo tem origem nos antepassados. Foi recebida pelo exercício de

atos práticos de audição de regras de conduta religiosa e social. Assim, a sabedoria tradicional

é guardada na memória, o que, no exercício verbal, consagra a cultura popular (CASCUDO,

1983, p. 686). E o conto popular é um instrumento de veiculação desses saberes.

O conto é um relato de curta duração, onde se destacam poucos personagens. No nosso

país recebe muitas designações: História da Carochinha, História de Trancoso, Histórias das

mil e uma noites, entre outras. A origem é incerta: Sellan (2005, p. 1) registra que “uns

remontam ao Egito; outros, à Índia; outros ainda apontam à Babilônia”. O que importa validar,

entretanto, é que todos os povos possuem seus contos que refletem, de algum modo, seu

imaginário, ou sua memória coletiva. É o conto oral a gênese de todas as variações de contos

populares hoje existentes.

Sabe-se, no entanto, que o interesse dos intelectuais por essa forma literária, começou

no século XVII, quando, em 1697, Charles Perrault publicou a primeira coleção de contos

populares franceses, onde se destacaram A gata borralheira, O chapeuzinho Vermelho e O

gato de Botas, com o propósito de entreter o filho do rei Luiz XIV e os freqüentadores de

salão. Esse interesse foi intensificado no século XIX, com os trabalhos dos Irmãos Grimm, na

Alemanha que tiveram consciência do valor dessas criações anônimas e as reuniram,

conservando-lhes determinadas características conferidas pelos contadores do povo.

Segundo Cascudo (1986, p. 15), o conto apresenta a multiplicidade de saberes nele

embutidos. Seu valor não se limita apenas ao emocional e delicioso, nem muito menos a uma

viagem de retorno à infância. Está mais na constituição de elementos indispensáveis às

ciências afins. Revela informações históricas, etnográficas, sociológicas, jurídicas. Dessa

forma, é um documento vivo, denunciador de costumes, idéias, mentalidades e até de

julgamentos.

Faria (2004, p. 229) relata que “Os contos populares, com sua dimensão estratégica,

trazem encobertos por trás do lúdico, um direcionamento para informar e convencer.” Dessa

fala, extraímos a idéia de que há sempre um contrato fiduciário, cuja pretensão é a adesão do

enunciatário: o público acolhe os ensinamentos veiculados no conto.

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Em conformidade com a classificação organizada por Coelho (2003, p. 172), o conto

pode ser maravilhoso e de fadas. Maravilhoso porque o núcleo das aventuras é sempre de

natureza material/social/sensorial (busca de riquezas, a satisfação do corpo, conquista do

poder, entre outros). O maravilhoso era uma fonte misteriosa e privilegiada, de onde nasceu a

literatura. Nas palavras da autora:

Desse maravilhoso nasceram personagens que possuem poderes sobrenaturais; deslocam-se, contrariando as leis da gravidade; sofrem metamorfoses contínuas; defrontam-se com forças do Bem e do Mal, personificadas; sofrem profecias que se cumprem; são beneficiadas com milagres; assistem a fenômenos que desafiam as leis da lógica, etc. (COELHO, 2003, p. 172).

Diferentemente do conto maravilhoso, Coelho (2003, p. 173) caracteriza o conto de

fada como sendo de natureza espiritual/ética/existencial. De origem céltica, esses contos

apresentam heróis e heroínas, cujas aventuras estavam ligadas ao sobrenatural, ao mistério do

além-vida e objetivavam a realização interior do homem. Esta seria a razão da presença de

uma fada, cujo nome vem da palavra latina fatum, que significa destino.

Nesses contos, o homem é limitado pela materialidade do próprio corpo e do mundo

em que vive, por isso deseja uma ajuda mágica. Assim, entre ele e suas realizações se

instalam os adjuvantes (fadas, talismãs, varinhas mágicas, entre outros) e oponentes (gigantes,

bruxas ou bruxos, feiticeiras, seres maléficos e outros). Segundo a autora (2003, p. 174):

[...] as fadas são seres imaginários, dotados de virtudes positivas e poderes sobrenaturais, que interferem na vida dos homens para auxiliá-los em situações-limite (quando nenhuma situação natural poderia valer). A partir do momento em que passam a ter comportamento negativo, transformam-se em bruxas. A beleza, a bondade e a delicadeza no trato são suas características comuns.

São constantes nessas narrativas a onipresença da metamorfose pelos encantamentos

que, geralmente, são quebrados por mulheres; o uso de talismãs que, como “num passe de

mágica” solucionam os problemas mais difíceis, ou satisfazem os desejos mais impossíveis; a

força do destino indicando que tudo parece determinado a acontecer, como uma fatalidade a

que ninguém pode escapar; o desafio do mistério ou um interdito que consiste num enigma a

ser superado pelo herói; a reiteração dos números (principalmente 3 e 7 ) ligados a crenças

nas religiões e filosofias antigas; magia e divindade que se confunde, muitas vezes, com a

providência divina, com o milagre que se acredita advir de contos representativos da

passagem da Antiguidade pagã para a modernidade cristã; e valores ético-ideológicos. Nestes

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se destacam: valores humanistas (preocupação com a sobrevivência e com a palavra dada),

oscilação entre ética maniqueísta (separação entre o bem e o mal, certo e errado), e ética

relativista (o que parece mau, termina se revelando bom, o que parece errado, termina se

mostrando certo), e a esperteza inteligente que sempre vencem a imprudência e a força bruta

(COELHO, 2003, p.177 a 180).

Quanto à estrutura, esses contos apresentam sempre uma fórmula inicial (Era uma vez )

e uma final (foram felizes para sempre.) ou expressões equivalentes. A seqüência do enredo

apresenta uma ordem inicial, seguida de uma ordem perturbada ou conflituosa, finalizando

com uma ordem restabelecida. A idéia de tempo no termo inicial, ou equivalentes é vaga e

funciona como uma indicação de que se vai passar do mundo real, para o mundo da fantasia,

onde tudo é possível. O mesmo acontece com o espaço que é figurativizado comumente por:

reino, palácio, casa, fonte, floresta, entre outras expressões de natureza genérica.

Sobre os actantes, Propp (2003, p. 135) menciona a presença de um herói com

atributos positivos e seu opositor ou anti-herói com atributos negativos. Ambos evidenciam

características da vida humana e personificam o bem e o mal, acontecendo sempre a vitória do

primeiro sobre o segundo. São comuns as ocorrências de natureza fantástico-milagrosa, como:

a intervenção de forças sobrenaturais na vida cotidiana; a adoção de formas e falas humanas

para animais irracionais; aceitação de animais e plantas enfeitiçadores dos homens; bruxas,

feiticeiros, fadas, anões, gigantes, dragões e outros.

Na abordagem de Pais (2004, p. 177), o discurso dos contos populares apresenta um

sujeito-enunciador-coletivo que surge sempre à medida que os textos são retomados, a um

tempo conservados e modificados, e transformados ao longo das gerações por pessoas

especiais como contadores e recebidos pelos sujeitos-enunciatários-ouvintes como “verdades

gerais e universais.” Por assim ser, sustenta facetas de sistemas de valores, dos sistemas de

crenças que integram o imaginário coletivo de uma comunidade humana.

Esses contos refletem os costumes de uma região e o saber dizer de um contador em

particular que, através da incoatividade mnemônica, relatam fatos fictícios do passado, mas

atualizados em virtude do espaço, tempo e pessoas do presente. Adequam elementos

conforme a receptividade dos seus ouvintes, causa por que o conto popular sofre determinadas

alterações, quer recebendo, quer perdendo elementos. E por assim ser “Quem conta um conto,

altera sempre um ponto.”

As pesquisas realizadas por Nascimento (2005, p. 17) afirmam que a migração dos

contos para o Brasil, saindo da Península Ibérica, teve início possivelmente no século XVI.

Essa cultura transplantada para o Novo Mundo, pelo branco europeu, era trazida, juntamente

Page 47: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

46

com vários outros elementos, da literatura popular. Posteriormente, chegava outra

contribuição importante: o imaginário dos escravos africanos. Seria então as misturas

portuguesa, africana e indígena, desenvolvidas por outros povos, a caracterização da tradição

brasileira.

Segundo o mesmo autor, a primeira pesquisa oral no País foi realizada por Celso de

Magalhães (1848-1878), sendo divulgada, em seus trabalhos A poesia popular brasileira, que

foi publicado no Recife (PE), no Jornal O Trabalho, de abril a outubro de 1973. Além de

romances, coletou contos como: Jesus mendigo, A madrasta, O jabuti, e A saúva. A primeira

coletânea de Contos Populares do Brasil foi elaborada por Silva Romero e, mais tarde,

ampliada por Luiz da Câmara Cascudo.

Na Paraíba, O Núcleo de Pesquisa Popular – NUPPO - desenvolveu o projeto Jornada

de Contadores de Estória da Paraíba, coordenado por Altimar de Alencar Pimentel, cujo

objetivo era a coleta, estudo e divulgação do conto popular, de que resultaram várias

coletâneas.

Foi realizado, no ano de 1982, o II Encontro de Estudo do Conto Popular em João

Pessoa, com o patrocínio do INF/UFPB/NUPPO. Os contos coletados começaram, então, a

ser objeto de estudo acadêmico.

Aragão (2004, p. 45) enumera como objetivos da pesquisa sobre o conto popular, na

Paraíba, a geração de novos mecanismos adicionais de ensino-aprendizagem para a população

rural, através da leitura de textos sobre o conhecimento popular; a motivação para a criação de

textos, a partir da realidade sócio-econômico-cultural local; a difusão da cultura e literatura

populares manifestadas em suas várias formas, utilizando-se a escola como meio veiculador

prioritário de divulgação junto à comunidade.

Assim, fixados nas terras brasileiras, o conto popular adquiriu cor local, auto-

afirmando um pluriculturalismo que se construiu ao longo do tempo, consistindo, ainda em

nossos dias, uma prática de tradição avoenga.

2.2 LEVANTAMENTO E AMOSTRAGEM

O universo de pesquisa constou de cento e dois contos, dos quais trinta e oito foram

coletados no município de Catolé do Rocha, interior do Estado, constituindo a série extensão -

Contos Populares da Paraíba – organizado por Myriam Gurgel Maia e publicado em 1995.

Page 48: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

47

Os sessenta e quatro restantes foram extraídos da obra Estórias de Luzia Tereza, V.1,

coletados, no mesmo ano, por Altimar de Alencar Pimentel e Myriam Gurgel Maia, no

município de Guarabira. Selecionou-se uma amostragem para ser analisada, constituída de

três tipos, cada um com duas variantes, num total de seis textos. Cada variante foi codificada

com a letra V (a primeira letra da palavra versão), seguida das letras “a” ou “b”, conforme se

pode ver no quadro a seguir:

Variação do conto

Código

Versões

Va

O Príncipe e o Marcôndio

O Fiel João

Vb

Pedra Mármore

Va

A Princesa da Pedra Fina

Fernando o verdadeiro e Fernando o falso

Vb Princesa da Pedra Fina

Va

O filho do rico e o filho do pobre

A Mais Bonita

Vb

O compadre rico e o compadre pobre

2.3 TIPOLOGIA DO CONTO POPULAR ANALISADO

2.3.1 O Fiel João

A narrativa centra-se na estória de um rapaz de origem humilde ligado por um

sentimento de amor fraterno a um rapaz de origem nobre da realeza. Vista como uma união

incompatível, dada à diferença de status, é posto à prova e vence difíceis obstáculos com a

ajuda de forças misteriosas que o revestem de coragem e visão profética para, com isso, poder

provar sua honestidade e fidelidade, inclusive desencantando a princesa destinada ao amigo.

Algumas versões finalizam com a vitória da amizade, porém separação dos amigos pela

viagem do pobre, noutras eles continuam vivendo juntos.

É perceptível, portanto, através dos fatos do enredo, o desejo social da implantação de

valores humanos numa sociedade que se mostra carente das relações de, por exemplo,

Page 49: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

48

honestidade e fidelidade, uma vez que é o conto popular a simbiose cultural de gerações pelas

quais passa.

Este título provém da coletânea Grimm Nº 6. Aarne/Thompson registrou como

Faithful John, tipo 516, com ocorrências dos episódios II. A fuga da princesa. III. Perigos da

viagem. IV. O criado malentendido. V. Desencantamento do criado. Esse conto tem versões

na Alemanha, Finlândia, Suécia, Estônia, Lituânia, Dinamarca, Escócia, França, Espanha,

Catalunha, Holanda, Áustria, Itália, Romênia, Hungria, Tchescolováquia, Slovênia, Iugoslávia,

Rússia, Grécia, Albânia, Arábia, Índia, Argentina, Chile, República Dominicana, Porto Rico,

Cabo Verde, Estados Unidos e Brasil. Foi exaustivamente estudado por Erich Rosch. Der

Getrave johannes, 77C, Vol. XXVII, nº 77, Helsinki, 1928, através de 147 versões. Em

Portugal, Teófilo Braga encontrou intitulado por A Bicha de Sete Cabeças em Contos

Tradicionais do Povo Português, com versão no Old Deccan Days de Miss Frere, sob o título

Rama and Luxaran e situações semelhantes em conto indiano de Kathá Sarit Ságara;

Consiglieri Pedroso Contos Populares Portugueses – Pedro e o Príncipe e Os Dois

Pedrinhos; Adolfo Coelho Contos Populares Portugueses – Pedro e Pedrito, F. Xavier

Ataíde de Oliveira Contos Tradicionais do Algarve - Pedro e Pedrito, Quem este Conto Ouvir

e Contarem Pedra Mármore se há de Tornar e O Príncipe convertido em Pedra; Luís da

Câmara Cascudo Os Melhores Contos Populares de Portugal – O Fiel Pedro, Versão do

Porto; e J. Leite de Vasconcellos Contos Populares e Lendas duas versões com o mesmo

título – O Homem de Pedra, nºs 323 e 324 – Dois Príncipes, nº 325. Nota de Alda da Silva

Soromenho e Paulo Catarão Soromenho às versões de J. Leite de Vasconcellos informa que

Bernardino Barbosa, Contos Pop. De Évora, RL, XVII; o primeiro reproduzido nos Contos

Pop. Port., de Viegas Guerreiro. Este conto tem um paralelo no Romanceiro de J. Leite de

Vasconcellos, intitulado José e a Príncipa.

No Catálogo do Conto Popular Brasileiro (CCPB*)de Bráulio do Nascimento,

publicado em 2005, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC),

encontra-se classificado no grupo: II. Contos Folclóricos Comuns, como A.Contos

Maravilhosos, tipo 516. Nascimento catalogou as versões desse conto no Brasil registradas

por: Cascudo, 1946:25-30 – O Fiel Dom José; Monteiro, 1974, II:496-99 – [João de Calais]

(v.506); Almeida, 1951, 5 – Em pedra há de virar; Gomes, 1953:162-64 – Histórias da filha

do barão; Fagundes, 1961, 18 – Os dois amigos; Paula, 1987, 27 – A estória da moça do

retrato; 73 – A moça do retrato; Pimentel, 1993, 2 – Os dois amigos; 1995, 45 – Pedra

mármore; Benjamin, 1994, 28 – Os dois amigos; Nóbrega, 1996:236-40 – O pai que tinha

doze filhos; 290-94 – Os dois amigos (v.408); Pereira, 1996:144-46 – O príncipe lagarto;

Page 50: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

49

Trigueiro & Pimentel, 1996, 28 – Dom João e Dom Quincas; Lima, 2003, 26 – A pedra

mármore (v. 408); 33 – Dom João, Dom Francisco.

O quadro a seguir condensa as informações sobre o conto analisado segundo

Nascimento:

Tipo Identificação no

CCPB*

Versões analisadas

Obras

Local

O Príncipe e o

Marcôndio

Maia

Catolé do Rocha

II. Contos folclóricos

comuns A. Contos

maravilhosos 516

Motivo: F674 - Hábil pintor**

Pedra Mármore

Pimentel

Guarabira

**Motifts: F674. Skillful painter – Antti Arrne’s – V. LXXV, nº 184.

As duas versões analisadas, embora discursivizadas de forma diversa, apresentam uma

estrutura profunda constituída de elementos comuns que permitem ligá-las ao conto O Fiel

João – tipo 516 do catálogo de Aarne/Thompson. Essa estrutura mostra a existência de uma

amizade entre um rapaz rico e um pobre desde a infância passada juntos, o afastamento do

país de origem em busca de aventura, o enfrentamento juntos das dificuldades, a fidelidade do

rapaz pobre na proteção do rico, a transformação do pobre em pedra mármore e seu posterior

desencanto realizado pelo príncipe que mata os seus para salvá-lo.

A diversificação de título de Va - O Príncipe e o Marcôndio para Vb – Pedra Mármore,

justifica-se, provavelmente, pela influência do último encanto recorrente no texto,

outorgando-lhe o caráter maravilhoso, em que figura a punição pela desobediência à

orientação superior, ao mesmo tempo em que é testado o nível de fidelidade fraterna do amigo

rico.

As duas versões analisadas podem ser vislumbradas nos resumos a seguir:

Em O Príncipe e o Marcôndio, codificado como Va, a narrativa centra-se no

nascimento do príncipe simultaneamente ao de uma criança deixada na porta da casa do rei. Já

crescidos, o príncipe e a criança que é chamada Marcôndio criam problemas na cidade. O rei

Page 51: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

50

então é aconselhado a exterminar Marcôndio, apontado pelos súditos como a causa dos

problemas. Arquiteta então uma viagem para o príncipe na intenção de ficar sozinho com

Marcôndio e poder matá-lo. Ameaçado pelo rei, Marcôndio suplica-lhe que o deixe ir embora

com seu armamento. Seu pedido é aceito e, nas matas, Marcôndio vence um monstro de sete

cabeças, roga a Deus por água e mata um leão. Segue seu caminho e encontra um sobrado

onde resolve passar a noite. Dentro, pisadas levam-no à refeição e ao descanso. Ao tentar

abraçar a princesa, é encantado.

Enquanto isso, o príncipe, ao voltar da viagem, recebe a notícia de que Marcôndio foi

embora. Parte, então, ao encontro do irmão, seguindo a mesma trilha, vence os mesmos

obstáculos (monstro, sede, leão), chegando ao sobrado onde passadas o encaminham ao banho,

à refeição e ao descanso. Resolve continuar a busca pelo irmão e o encontra no quarto, ao lado

da princesa. Tenta um diálogo que não acontece. Ao abraçá-los, quebra-se o encanto. Depois

de decidirem com quem casaria a princesa, voltam ao reino do pai deles. Uma profecia indica

os perigos por que passarão o príncipe e a princesa durante a viagem de retorno. Marcôndio os

protege. Nova profecia é anunciada sobre o casamento e morte do príncipe e da princesa. Já

no reino, para proteger o casal da morte, Marcôndio luta e vence uma serpente. O rei, ouvindo

o barulho, imagina ser os irmãos brigando. Novamente o rei ameaça matar Marcôndio que

pede para contar os fatos até ali ocorridos e, como era proibido contar, foi encantado em pedra

mármore.

Após quatro anos, a última profecia é anunciada ao príncipe: ele deve matar os quatro

filhinhos e, com o sangue, banhar a estátua, quebrando, dessa forma, o encanto. A vida é

então restabelecida com a volta de Marcôndio e a ressurreição das crianças.

Na segunda versão analisada Pedra Mármore, codificada como Vb, embora seja o

mesmo conto, considerada por estudiosos, a exemplo de Bráulio do Nascimento, apresenta

modificações no percurso figurativo. Nesta versão, a narrativa centra-se na história de dois

amigos, um rico e um pobre, que saem pelo mundo. Os dois conseguem logo emprego na

cidade. O rapaz pobre namora uma moça rica. Como o pai dela não permitiria o casamento,

resolve fugir com ela e o amigo. Decidem que a moça deve ficar com o rapaz rico. Ao

consultá-la, ela aceita. Depois de caminharem bastante, resolvem lanchar e descansar debaixo

de uma árvore, quando ouve um passarinho dizer que à frente encontrarão três cacimbas e, se

a moça beber da água das duas primeiras cacimbas, ela morrerá, a não ser que beba somente

da terceira e quem contasse aquela história se transformaria em mármore. O rapaz pobre não

permite que ela beba água das duas cacimbas. Continuam viagem e mais uma vez param.

Page 52: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

51

Nova profecia é anunciada pelo passarinho, dizendo que agora a moça ia desejar comer uvas e

quando comesse morreria. Novamente o rapaz pobre protege a moça.

Depois de uma noite de descanso debaixo de uma árvore, os passarinhos chegam e

anunciam que, quando ela entrar na casa do rei a porta cairá em cima dela. Imediatamente, o

rapaz pobre foi na frente e derrubou a porta. Quando o rapaz rico chegou nada aconteceu.

O pobre depois de proteger a moça, foi embora e ela casou com o rico. No dia do

casamento, depois do jantar, o rapaz pobre foi para o jardim e, debaixo de uma árvore, ouviu

os passarinhos dizerem que quando o casal estivesse dormindo, um bicho a mataria, mas se

tivesse alguém para vigiar e matar o bicho, ela viveria. E quem contasse a história se

transformaria em mármore.

O rapaz pobre ficou debaixo da cama, quando o bicho apareceu em forma de uma

cabeça, ele o feriu com o alfanje e o bicho desapareceu. O casal acordou e a moça acusou o

pobre de falsidade. Para livrar-se da acusação, ele contou toda a história e se transformou em

estátua.

Quando a esposa deu à luz uma criança, o rapaz rico ouviu a voz da profecia

mandando matar o filho e com o sangue banhar a estátua que desencantaria o amigo. Ele

assim fez: arquitetou a saída da esposa, e fez o que a voz determinara, desencantando o amigo.

O pobre foi embora desgostoso com a moça e quando o rico foi ver, o filho estava

vivo e ainda mais bonito na redinha.

2.3.2 Fernando o verdadeiro e Fernando o falso

A narrativa centra-se na estória de um rapaz de origem humilde que deseja romper

com a realidade em que vive, sonhando casar-se com uma mulher que lhe dê não só prazer,

mas também riqueza. Por este desejo ser visto como uma impossibilidade por sua própria

família, é impulsionado a realizá-lo, o que o faz viver uma série de obstáculos, mas com ajuda

divina, consegue realizar-se. Algumas versões finalizam com a punição dos oponentes, outras

apenas os afastam da narrativa.

Comprovando o caráter popular desse tipo de construção em que se mostram os

conflitos sociais fluindo pela criatividade e rememorização de uma autoria coletiva que não

deixa morrer os desejos de transformação, por mais que se perpetuem as diferenças, o conto

Page 53: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

52

aborda valores e crenças de um povo que serão mostrados através da análise semiótica do

conto.

Este título foi registrado por Aarne/Thompson como Ferdinand the true and

Ferdinand the false, tipo 531. Este conto é corrente em Portugal, tendo sido recolhido por F.

Xavier Ataíde de Oliveira Contos tradicionais do Algarve com o título A Princesa das Pedras

Finas e por J. Leite de Vasconcellos Contos Populares e Lendas em Viseu – A Rainha das

Pedras.

No Catálogo do Conto Popular Brasileiro (CCPB*) de Bráulio do Nascimento,

publicado em 2005, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC),

encontra-se classificado no grupo: II. Contos Folclóricos Comuns, como A.Contos

Maravilhosos, tipo 531(T67.1). Nascimento catalogou as versões desse conto no Brasil

escritas por Cascudo, 1946:77-82 – Maria Gomes (v.327A); Almeida, 1951, 118 – A princesa

da Pedra Lisa; Gomes, 1953:157-59 – Histórias do cavaleiro-de-prumo; Pimentel, 1976:78-

86 – Os amigos invejosos; 1995, 7 – A princesinha roubada; Fagundes, 1961, 12 – Joãozinho

e os couves (v.530); Aragão, 1992:32-33 – O pássaro das penas de ouro (531+506); Maia,

1995:70-72 – A princesa da Pedra Fina (531+T67.1); Silveira, 1998, 11 – João sem direção

(531+506). É um conto recorrente também em Portugal e na África.

O quadro a seguir condensa as principais informações sobre o conto analisado segundo

Nascimento:

Tipo Identificação no

CCPB*

Versões analisadas

Obras

Local

A Princesa da Pedra

Fina

Maia

Catolé do Rocha

II. Contos folclóricos

comuns A. Contos maravilhosos

531+T67.1 D231.2

Motivos: T. Sexo D. Religião

Princesa da Pedra Fina

Pimentel

Guarabira

As duas versões analisadas, embora discursivizadas diferentemente uma da outra,

apresentam na estrutura profunda, elementos comuns que permitem identificá-las como

pertencentes ao conto Fernando o verdadeiro e Fernando o falso – tipo 531 do catálogo de

Aarne/Thompson. Essa estrutura revela um afastamento da terra de origem e,

consequentemente do seio familiar, em busca de realizações, a superação de obstáculos pela

Page 54: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

53

ajuda divina, fenômenos que desafiam as leis da lógica como foi o caso do reino encantado e

a quebra desse encanto pelo rapaz que, por suas qualidades, fora destinado à difícil missão.

A semelhança do título das versões acontece, provavelmente, por ser a princesa da

pedra fina a expressão que revela a realidade onde estão embutidos os valores almejados pelo

personagem principal a exemplo de felicidade, riqueza e experiência de vida. E ainda por nela

está arraigado o caráter exemplar do conto Desejar o que é bom, não o que é ruim.

As duas versões analisadas podem ser vislumbradas nos resumos a seguir:

Em A Princesa da Pedra Fina, codificado como Va, a narrativa centra-se na figura de

três filhos de um homem pobre. Apesar de trabalharem, viviam necessitados. Um dia, os três

pararam para conversar debaixo de um juazeiro. José desejou um prato de feijão com coco.

João em contrapartida, disse que melhor era mungunzá com feijão. Manoel, depois de insultar

os irmãos, desejou ver as pernas da Princesa da Pedra Fina.

Por este desejo, Manoel sofreu uma surra do pai e foi acudido pela mãe. Resolveu ir

embora, foi abençoado pela mãe, que pediu a Deus e a Virgem Maria que o guiassem. No

caminho, encontrou um cavalo com muita sede e foi ajudá-lo, apanhando a água no cacimbão

com o chapéu. O cavalo depois de saciado, morreu de tão grande era a sede. Manoel cortou as

crinas e levou-as com ele para se lembrar da caridade que fizera.

Mais adiante, encontrou um cachorro atacando uma raposa. Salvou a raposa que,

agradecida, ofereceu ajuda para quando ele estivesse em dificuldade e disse que o cavalo a

quem ele havia ajudado era seu guia. Manoel foi trabalhar de jardineiro no reinado da

Princesa da Pedra Fina.

Os irmãos de Manoel resolveram ir atrás dele. Saíram sem direção e chegaram ao

reinado em que o irmão estava e foram trabalhar num sítio. Um dia encontraram-se com

Manoel e ficaram sabendo que ali era o reinado da Princesa da Pedra Fina. Os irmãos,

sabendo que a princesa estava encantada, foram até o rei e disseram-lhe que Manoel tinha dito

que a desencantaria. O rei foi saber se Manoel tinha dito aquilo. Manoel negou, mas se os

irmãos disseram, ele faria.

No caminho, a raposinha esperava-o para repreendê-lo por se deixar acompanhar dos

irmãos e orientou-o sobre como proceder para desencantar a princesa. Ele deveria invocar o

cavalo, montar nele e deixar que ele saberia ir, pois era o anjo da guarda de Manoel. Ao

chegar ao portão, encontraria uma serpente, se ela estivesse com os olhos fechados, voltasse,

pois ela estaria acordada, se estivesse com os olhos abertos, poderia entrar, pois ela estaria

dormindo. Antes pegasse uma chave que se encontrava no nariz dela, pois com esta chave

Page 55: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

54

abriria a porta do quarto, onde a princesa estava. Assim fez Manoel. Na volta, deixou a chave

e foi embora. Com a chegada da princesa, fizeram uma festa no reinado.

A raposa, novamente, falou com Manoel, orientando-o para ele fosse dizer ao rei que

os irmãos tinham dito que tinham coragem de ficar dentro de um quarto com uma arroba de

pólvora e, se o rei tocasse fogo, eles apagariam. O rei foi saber dos irmãos de Manoel. Eles

negaram, mas como o irmão disse, eles ficariam. Morreram despedaçados quando o rei tocou

fogo. Manoel casou com a Princesa da Pedra Fina. Ela disse que ele tinha desejado ver as

pernas dela e tinha se dado bem.

Na segunda versão analisada Princesa da Pedra Fina, codificada como Vb, o percurso

figurativo sofre alterações, visto que se trata de uma narrativa popular, sem autoria específica.

A narrativa tem início com um pai e seus três filhos no roçado. Eram onze horas quando o

mais novo desejou comer pipoca, o do meio, bredo e o mais velho desejou deitar no colo da

Princesa da Pedra Fina. Esse último desejo foi motivo para uma grande surra do pai. Em

pouco tempo, chega a mãe com as pipocas e o bredo. Joaquim, o mais velho, não quis comer.

No dia seguinte, Joaquim foi embora e chegou a um local parecido com uma rua de

pedra. Viu uma gruta e imaginou ser repouso de roceiros ou morada de uma onça. Entrou para

descansar, quando ouviu tocar a campainha. De repente, estava num palácio, guiado por uma

voz que o levou ao banho e à ceia. Quando voltou ao descanso, estava novamente na gruta.

Passou três dias recebendo o café pela manhã, almoço ao meio dia e às quatro horas da tarde,

a gruta se transformava em um palácio. No terceiro dia, o palácio tinha três quartos, a voz

então disse para Joaquim abrir a porta do primeiro quarto. Ao abrir, viu uma linda princesa

que lhe pediu para catar-lhe os piolhos e arrancar-lhe um alfinete da cabeça. Joaquim assim

fez e a princesa foi desencantada. Ela avisou que faltavam mais dois dias para concluir o

desencanto. No dia seguinte, tudo se repetiu e a princesa então lhe pediu para abrir a segunda

porta. Joaquim viu a rainha que fez os mesmos pedidos feitos pela princesa e, como a princesa,

foi desencantada.

No último dia, foi a vez do rei ser desencantado e Joaquim abriu a terceira porta. Ao

arrancar o alfinete da cabeça do rei, o que antes parecia uma rua de pedra foi transformado

numa cidade. O rei fez o casamento de Joaquim com a filha e deu uma grande festa.

O pai reuniu a família e resolveu procurar Joaquim. Chegaram ao reinado onde estava

Joaquim que os reconheceu. Estes, porém, não o reconheceram porque Joaquim estava vestido

de príncipe. Ele chamou todos ao alpendre e ofereceu pipoca, bredo e colocou o cinturão com

que seu pai lhe bateu sobre a mesa. Engendrou uma cama com três cadeiras e pediu a princesa

Page 56: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

55

que sentasse para ele colocar a cabeça no colo dela. Recordou a surra que sofreu do pai,

dizendo que era necessário desejar o que é bom, não o que é ruim. Em seguida pediu a benção

ao pai, abraçou os irmãos e as cunhadas. Reinou muita alegria e festa naquele lugar. Ainda

convidou os pais para morarem no palácio com ele.

2.3.3 A Mais Bonita

Esta narrativa está voltada para a história de dois homens compadres de classes sociais

diferentes que resolvem mandar seus filhos viajarem pelo mundo com o intuito de que eles

comprovassem o valor da riqueza e do saber, conforme a posição que defendiam. O filho do

pobre volta rico e o filho do rico volta pobre, o que causa decepção aos pais que, angustiados

se suicidam.

Pode-se inferir a partir deste conto o registro de valores fundamentados na

desigualdade social, como histórico secular de um povo movido pelo prazer efêmero das

coisas corrosivas de um lado, e de uma pequena e desacreditada massa de pessoas desejosas

do inteligível, a exemplo da sabedoria, de outro.

Este título foi registrado por Aarne/Thompson como The Most Beautiful, tipo 925.

Este conto é corrente na Estônia, França e Irlanda e Portugal.

No Catálogo do Conto Popular Brasileiro (CCPB*) de Bráulio do Nascimento,

publicado em 2005, pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC),

encontra-se classificado no grupo: II. Contos Folclóricos Comuns, como C. Novelas (contos

românticos), tipo 925. Nascimento catalogou versões desse conto no Brasil, escritas por:

Gomes, 1965:105-10 – Amante de repolhos; Paula, 1987, 49 – A estória da gata; Pimentel,

1993, 14 – Os filhos do faraó (v.551); Maia, 1995:19-21 – O filho do rico e o filho do pobre

(v. N141); Nóbrega, 1996:146-48 – O reino encantado no Araripe; 188-90 – A riqueza e o

saber (v. N141); Silva, 1998, 1 - História do rapaz que saiu pelo mundo; Silveira, 1998, 9 --

O menino da floresta; Alcoforado & Albán, 2001, 69 – A história do rico e do pobre; Lima,

2003, 62 – O ter e saber.

O quadro a seguir condensa as informações sobre o conto analisado segundo

Nascimento:

Page 57: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

56

Tipo Identificação no

CCPB*

Versões analisadas

Obras

Local

O filho do rico e o

filho do pobre

Maia

Catolé do Rocha

II. Contos folclóricos

comuns C. Novela (Contos

românticos) 925* (V. N141)

Motivo: N. Acaso e destino

O compadre rico e o

compadre pobre

Maia

Catolé do Rocha

As duas versões analisadas apresentam na estrutura profunda, elementos comuns que

permitem identificá-las ao conto A Mais Bonita – tipo 925 do catálogo de Aarne/Thompson.

Essa estrutura mostra a existência de duas famílias que caracterizam os pólos da diferença

sócio-econômica, cada uma argumentando em defesa do status que ocupa, destinando os

filhos para comprovarem suas posições.

Embora caracterizadas como novelas, dentre as várias especificidades dos contos

folclóricos comuns catalogados por Nascimento, em Va aparecem aspectos do maravilhoso

pelo encantamento.

As duas versões analisadas podem ser vislumbradas nos resumos a seguir:

A versão O filho do rico e o filho do pobre, codificada como Va, a narrativa inicia-se

com o rico defendendo o ter e o pobre defendendo o saber. O rico determina que seu filho

viaje com o filho do pobre. Durante a conversa, o pobre diz que o filho vai com a maca nas

costas e uma rodilha. O rico levou tudo o que podia precisar e muito mais.

Saíram os dois e depois cada um seguiu um caminho diferente. O rico gastou tudo que

tinha com farras. Quando se encontrou só, foi parar na casa do Cururu encantado. A princesa

o atendeu e entregou livros para ele ler e instrumentos para ele tocar. Mas ele não sabia nem

ler, nem escrever. Ela apagou a luz e disse que se abraçassem com quem achasse melhor. Ao

acender a luz, viu o rico abraçado com a comida da mesa. Depois a princesa saiu com ele para

olharem a propriedade e ao atravessar o riacho ela deixou as coxas à mostra. Perguntou o que

ele tinha achado mais bonito e ele disse que tinha sido o umbuzeiro florido e, por tudo isso,

foi preso.

O filho do pobre em sua caminhada também chega à casa do Cururu. Saudou-o, leu,

tocou, e ainda elogiou as pernas da princesa, ganhando sua simpatia. O Cururu que era o rei

encantado desencantou-se e fez o casamento da filha com o pobre. Quando, um dia,

Page 58: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

57

passeavam, viu um alçapão e perguntou o que era. Vendo o amigo preso, pediu que o soltasse.

Voltaram à casa dos pais: o que era pobre numa carruagem e o rico com a maca nas costas.

O pai do rico, vendo seu filho com a maca nas costas e o do seu compadre na

carruagem, suicidou-se. O que era pobre levou a família para morar com ele.

Assim como as demais versões observadas dos outros contos analisados, Vb, que

consiste na versão O compadre rico e o compadre pobre, também apresenta alterações no

percurso figurativo, embora haja elementos comuns. Nesta versão a narrativa conta a história

de dois compadres: um rico que só valorizava o ter e o pobre que valorizava o saber. O pobre

colocou o filho na escola e insistiu na sua aprendizagem.

Um dia, os dois conversando, o pobre decidiu que mandariam seus filhos viajarem

pelo mundo para ver quem conseguia melhores condições.

Saíram os dois e quando tiveram que se separar, o pobre foi por uma vereda e o rico

por uma estrada. Em sua estrada, o rico encontrou um palácio, onde uma criada o atendeu e

pediu que aguardasse enquanto avisava ao dono da casa. Teve uma calorosa recepção pelas

moças e o pai delas. Durante o jantar, acenderam as luzes porque escurecia, mas o dono pediu

que apagassem para ver quem estaria amparado. Quando acenderam novamente, cada um

tinha abraçado uma pessoa, só o rapaz abraçou uma tigela de jerimum. No dia seguinte,

trouxeram livros para ele ler e instrumentos para ele tocar, mas nada ele sabia. Então foram

olhar as propriedades da princesa. Durante o passeio, ela deixou mostrar um pouco das pernas.

Quando mais tarde, perguntou o que ele tinha achado mais bonito no jardim, ele respondeu

que foi o “pé de resedá”. Foi colocado num chiqueiro, sendo alimentado com jerimum.

Um mês depois, chega o pobre ao palácio e, passando pelas provas – ler, tocar e os

outros dois testes mais importantes: escolher no escuro em quem se apoiar e elogiar as pernas

da moça. Ele se saiu muito bem, uma vez que fez as escolhas certas, conquistando a simpatia

do pai da moça que o quis como genro e da moça que o quis como esposo.

Um dia passeando, viu o chiqueiro e reconheceu o filho do amigo do pai. Soltou-o e

mandou que cuidassem dele.

O rei fez o casamento do pobre com a filha e o enviou numa carruagem para pedir a

bênção aos pais. O rico foi numa carga de burro. Reconhecendo o filho no meio da carga de

burros, os pais ricos subiram no sobrado e de lá se jogaram. Na casa do pobre foi festa que se

prolongou até hoje.

Page 59: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

58

3 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS VERSÕES DOS CONTOS POPULARES

3.1 O FIEL JOÃO

3.1.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação

As versões foram codificadas conforme se seguem:

Va – O príncipe e o Marcôndio: contado por Severino Carrero, natural de Santana, município

de catolé do Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da

Paraíba, p.49-46, publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade

Federal da Paraíba.

Vb – Pedra Mármore: contado por Luzia Tereza, natural de Guarabira, PB, coletado e

organizado por Altimar de Alencar Pimentel e Myriam Gurgel Maia, Estórias de Luzia

Tereza, p. 259-264, publicado em 1995, em Brasília, DF, pela Thesaurus Editora.

É a segmentação a primeira etapa empírica para a análise semiótica do percurso

gerativo de sentido a que Barthes (1973, p. 38) considera como “recortar o texto [...] em

segmentos contíguos e em geral muito curtos (uma frase, uma porção de frase, no máximo um

grupo de três ou quatro frases)”. Porque são unidades de leitura, ele chamou de lexias,

significante textual e, por assim ser, um produto arbitrário, simplesmente um segmento

interior, de onde se percebe uma repetição de sentidos.

Por tratar-se de construções de caráter oral, as versões apresentaram segmentos ora

convergentes, ora divergentes, não afetando a estrutura conteudística da narrativa, dada à

possibilidade de reconhecimento de elementos correspondentes ao conto. A textualização foi

constituída pelos segmentos abaixo relacionados:

Sg 1 Nascimento do príncipe simultaneamente ao de Marcôndio / rapaz pobre

Sg 2 Os dois amigos saem pelo mundo

Sg 3 Os dois arranjam emprego na cidade

Page 60: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

59

Sg 4 O príncipe e Marcôndio / rapaz pobre criam problemas na cidade

Sg 5 O rei é aconselhado a exterminar Marcôndio / rapaz pobre

Sg 6 Pedido do rei para o príncipe viajar sozinho

Sg 7 Ameaça de morte do rei a Marcôndio

Sg 8 Súplica de Marcôndio ao rei

Sg 9 Vitória de Marcôndio sobre o monstro de sete cabeças

Sg 10 Súplica de Marcôndio a Deus

Sg 11 Vitória de Marcôndio sobre um leão feroz

Sg 12 Chegada de Marcôndio a um sobrado

Sg 13 Namoro do rapaz pobre com a moça rica

Sg 14 Fuga do rapaz pobre com a moça rica e o amigo

Sg. 15 Encantamento de Marcôndio

Sg. 16 Notícia dada pelo rei ao príncipe de que Marcôndio foi solto nas matas

Sg. 17 Pedido do príncipe ao rei para ir em busca de Marcôndio

Sg. 18 Vitória do príncipe sobre os três obstáculos

Sg. 19 Chegada do príncipe ao sobrado

Sg. 20 Encontro do príncipe com Marcôndio

Sg. 21 Quebra do encanto pelo abraço do príncipe

Sg. 22 Decisão de que o príncipe casará com a princesa

Sg 23 Aceitação da moça em ficar com o príncipe

Sg 24 Parada para descanso

Sg 25 Profecia dos perigos por que passaria a moça

Sg. 26 Profecia dos perigos por que passariam o príncipe e a princesa

Sg. 27 Nova profecia sobre o casamento e morte do príncipe e da princesa

Sg 28 Proteção da moça pelo rapaz pobre

Sg 29 Chegada à casa do pai do príncipe/ rapaz rico

Sg 30 Casamento do Príncipe / rapaz rico com a princesa/ moça

Sg 31 Nova profecia sobre a morte da moça

Sg 32 Vitória de Marcôndio/ rapaz pobre na luta contra a serpente/ bicho

Sg 33 Ameaça de morte do rei a Marcôndio

Sg 34 Insinuação de falsidade pela moça ao pobre

Sg 35 Encantamento de Marcôndio

Sg 36 Determinação da voz para que o príncipe/ rapaz rico quebre o encanto

Sg 37 Ressurreição do(s) filho(s) e restabelecimento da amizade entre os dois amigos.

Page 61: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

60

Sg 38 Partida do rapaz pobre

QUADRO I - Sistematização mais nítida dos segmentos estudados:

Versões Segmentos

Va Vb

Sg1 X Sg2 X Sg3 X Sg4 X Sg5 X Sg6 X Sg7 X Sg8 X Sg9 X Sg10 X Sg11 X Sg12 X Sg13 X Sg14 X Sg15 X Sg16 X Sg17 X Sg18 X Sg19 X Sg20 X Sg21 X Sg22 X X Sg23 X Sg24 X Sg25 X Sg26 X Sg27 X Sg28 X Sg29 X X Sg30 X X Sg31 X Sg32 X X Sg33 X Sg34 X Sg35 X X Sg36 X X Sg37 X X Sg38 X Total 27 18

Page 62: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

61

Observa-se a partir do quadro acima que a versão Va traz maior número de segmentos

no início da narrativa (Sg1, Sg4, Sg5, Sg6, Sg7, Sg8, Sg9, Sg10, Sg11, Sg12, Sg15, Sg16, Sg17,

Sg18, Sg19, Sg20, Sg21, Sg22) e Vb traz os do final (Sg22, Sg23, Sg24, Sg25, Sg28, Sg29, Sg30,

Sg31, Sg32, Sg34, Sg35, Sg36, Sg36, Sg37, Sg38).

De um total de trinta e oito segmentos, a versão Va apresenta vinte e sete segmentos e a versão

Vb apresenta dezoito. Nenhuma das duas versões portanto, apresenta-se completa, dado o

caráter coletivo da autoria que ora adiciona, ora retira elementos. Aqui se comprova a

afirmativa popular de que “Quem conta um conto, acrescenta um ponto”. Colocando-se na

ordem decrescente, tem-se:

QUADRO II – Identificação dos segmentos por versões

(em ordem decrescente)

Identificação dos

segmentos Versões em que

aparece Sg38 01 Sg37 02 Sg36 02 Sg35 02 Sg34 01 Sg33 01 Sg32 02 Sg31 01 Sg30 02 Sg29 02 Sg28 01 Sg27 01 Sg26 01 Sg25 01 Sg24 01 Sg23 01 Sg22 01 Sg21 01 Sg20 01 Sg19 01 Sg18 01 Sg17 01 Sg16 01 Sg15 01 Sg14 01 Sg13 01 Sg12 01 Sg11 01

Page 63: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

62

Sg10 01 Sg9 01 Sg8 01 Sg7 01 Sg6 01 Sg5 01 Sg4 01 Sg3 01 Sg2 01 Sg1 01

3.1.2 Estruturas Narrativas

3.1.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1

Em Va, o Sujeito Semiótico 1 (S1) é figurativizado por Marcôndio e se instaura na

narrativa pela modalidade de um querer-fazer. Motivado por uma autodestinação, o S1 deseja

defender a vida (dele e do irmão) – Objeto de Valor principal – já que reage contra todos que

tentam tirá-las. O rei e o povo são seus anti-Sujeitos. A coragem e as forças sobrenaturais

benignas (Deus, passadas, voz) o auxiliam na busca de seu objeto. Como anti-Destinador,

coloca-se o povo, que quer sua morte. Funcionam como Oponentes o rei que, aconselhado

pelo povo, tenta matá-lo e forças sobrenaturais malignas aqui figurativizadas por um monstro

de sete cabeças, uma profunda sede, um leão e uma serpente que tentam tirar-lhe a vida,

O programa principal do S1 pode ser assim representado:

Dario Dor Dor

(desejo) (Povo) Adjuvante (coragem/forças sobrenaturais benignas)

S S1 OV

(Rei/Povo) (Marcôndio) Oponentes (defesa da vida)

(rei/povo/forças sobrenaturais malignas)

Em Va, o percurso do S1 acontece em dois momentos: a aventura e o retorno. No

primeiro momento, sendo ameaçado pelo rei, pede-lhe para partir (OV2) com seu armamento.

Page 64: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

63

Nas matas, vence três obstáculos (OV3) – monstro, sede e leão. À frente encontra um abrigo

(OV4) e descansa. Passadas o encaminham ao alimento (OV5). Depois deseja conhecer o

sobrado (OV6). Ao chegar a um quarto, encontra uma princesa e quer abraçá-la (OV7), mas é

encantado. No segundo momento, ao ser desencantado pelo príncipe, convence-o a casar com

a princesa (OV8). Durante o caminho de volta, protege o príncipe e a princesa (OV9),

livrando-os da morte. Após o casamento, novamente protege o príncipe e a princesa, matando

uma serpente (OV10) que fora destinada a matá-los. Ao ouvir o barulho da luta do S1 com a

serpente, o rei imagina ser entre os filhos e vai à procura do S1. Encontrando-o, ameaça-o de

morte. O S1 pede para contar a estória proibida (OV11) antes de morrer, livrando-se mais uma

vez, porém se transformando em pedra mármore. Por fim, o S1 é desencantado (OV12) mais

uma vez pelo príncipe.

Os dois momentos podem ser observados no diagrama dos programas auxiliares:

AVENTURA RETORNO

S1 OV1

(defesa da vida) S1 OV2 S1 OV8 (partir) (casar o príncipe com a princesa) S1 OV3 S1 OV9

(vencer três obstáculos) (protegê-los) S1 OV4 S1 OV10

(encontrar abrigo) (matar a serpente) S1 OV5 S1 OV11

(alimento) (contar a estória) S1 OV6 S1 OV12

(conhecer o sobrado) (desencanto) S1 OV7

(abraçar a princesa)

Em Vb, o S1, é figurativizado pelo rapaz pobre que quer servir ao amigo. A amizade é

seu Objeto de Valor principal. As forças sobrenaturais benignas (Deus/voz/passarinho) e a

coragem se colocam como seus Adjuvantes e, como Oponentes, aparecem as forças

sobrenaturais malignas (bicho, sede e a fome da moça, a queda da porta). O S1 acompanhado

pelo amigo, arranja emprego (OV2), namora uma moça (OV3) e, porque o pai dela não os

aceita, foge (OV4) com ela e o amigo. No entanto, o segundo momento é igual nas duas

versões, exceto pela partida final (OV10) em Vb.

Os dois momentos podem ser observados no diagrama seguinte:

Page 65: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

64

SAÍDA RETORNO E NOVA PARTIDA S1 OV1

(amizade) S1 OV2 S1 OV5 (emprego) (casar o príncipe com a princesa) S1 OV3 S1 OV6

(namorar) (proteger a moça) S1 OV4 S1 OV7

((fugir) (matar o bicho) S1 OV8

(contar a estória) S1 OV9

(ser desencantado) S1 OV10

(partida)

O estado inicial do percurso do S1 tanto em Va como em Vb, caracteriza-se pela

conjunção com seu Objeto de Valor principal. Lutando para proteger a própria vida e a do

amigo, o S1 passa por perigos e encantamentos numa tentativa de afastá-lo do seu Objeto de

Valor, porém termina seu percurso conjunto com o mesmo.

É possível representar os estados de transformação (F) pela frase-diagrama:

F = [ (S2 ∩ OV ) (S2 U OV ) (S2 ∩ OV ) ]

O discurso do S1 se qualifica como persuasivo ao querer conservar a vida em Va, e ao

querer continuar amigos em Vb.

3.1.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2

O Sujeito Semiótico 2 (S2) em Va, figurativizado pelo Príncipe, deve fazer uma

viagem (OV1) para afastar-se da cidade, impulsionado pelo rei, seu Destinador. É sujeito de

um dever-fazer para com o rei. Tem como Adjuvante Marcôndio e o povo como Oponente.

O S2 apresenta apenas o programa principal:

Page 66: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

65

Dario Dor Dor

(Rei) (Povo) Adjuvante

(Marcôndio)

S2 OV

(Príncipe) Oponentes (uma viagem)

(povo)

Os dois rapazes, o rico e o pobre, figurativizam o Sujeito Semiótico 2 (S2) em Vb cujo

Objeto de Valor é fazer uma viagem em busca de aventuras (OV2), superar as dificuldades

(OV3) e sobreviver (OV4). Trata-se de uma autodestinação, tendo como modalidade o querer-

fazer. O adjuvante é a capacidade de trabalho e o espírito fraterno. Seus Oponentes são os

obstáculos que enfrenta durante a viagem. Trata-se de um sincretismo atoral.

O percurso do S2 em Vb pode ser esquematizado pelo seguinte esquema:

S2 OV1

(viagem) S2 OV2 (aventuras) S2 OV3

(superação de dificuldades) S2 OV4

(sobrevivência)

O estado inicial do S2 caracteriza-se pela disjunção com seu Objeto de Valor. Uma vez

que ele viaja, passa para uma conjunção final.

O estado de transformação (F) do S2 é representado pelo diagrama:

F = [(S2 U OV) (S2 ∩ OV)]

O discurso do S2 se qualifica como persuasivo ao dever-fazer (atender o pedido do rei)

em Va e ao querer-fazer em Vb.

Page 67: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

66

3.1.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3

O Sujeito Semiótico 3 (S3) em Va e em Vb apresenta o mesmo percurso, embora

figurativizados de forma diferente (Príncipe e rapaz rico). O Objeto de Valor é o status social

e para mantê-lo, ele deve casar com a moça rica, sendo destinado pelas leis sociais que o

obrigam a casar-se com uma pessoa do seu nível. O rapaz pobre é seu Adjuvante, uma vez

que lhe recorda o dever e o ajuda na execução das tarefas necessárias, inclusive, concedendo-

lhe a própria namorada que pertence à elite. As forças sobrenaturais são os Oponentes porque

se manifestam contra a aquisição do seu Objeto de Valor.

O programa principal do S3 é:

Dario Dor Dor

(sociedade) (querer próprio) Adjuvantes

(rapaz pobre)

S3 OV

(rapaz rico) Oponentes (status)

(forças sobrenaturais)

O S3 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de valor e termina conjunto com o

mesmo.

A frase-diagrama a seguir condensa o estado de transformação (F) do S3.

F = [(S3 U OV) (S3 ∩ OV)]

O discurso do S3 em ambas as versões, qualifica-se como persuasivo ao dever-fazer o

que as leis sociais determinam.

Page 68: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

67

3.1.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4

Em Va, o Sujeito Semiótico 4 (S3) figurativizado pelo Príncipe, instaura-se na narrativa

por um querer conservar a amizade do irmão – Objeto de Valor principal – visto que reage

contra a atitude do pai e de todos os demais que tentam separá-los. O rei é seu anti-Sujeito.

Marcôndio e as forças sobrenaturais benignas (Deus, passadas, voz) funcionam como

adjuvantes. Como anti-Destinador aparece o povo que aconselha o rei a separá-lo de

Marcôndio. Criando obstáculos para que o S4 não atinja seu objetivo aparece o rei que

arquiteta a separação dos filhos. As forças sobrenaturais malignas (fera, a sede, um leão e uma

serpente) funcionam pois, como Oponentes.

O programa principal do S4 fica assim organizado:

Dario Dor Dor

(Desejo) (Povo) Adjuvante

(Marcôndio/forças sobrenaturais benignas)

S S4 OV

(Rei) (Príncipe) Oponentes (amizade do irmão)

(forças sobrenaturais malignas)

O percurso do S4 é o da experiência. Voltando da viagem e recebendo a notícia do rei

de que Marcôndio partiu, resolve procurá-lo (OV2). Nas matas, vence três obstáculos (OV3) –

monstro, sede e leão. Encontra abrigo (OV4) e umas passadas o conduzem ao banho, depois à

comida. Ao encontrar o irmão, tenta estabelecer um diálogo (OV5 ) através de palavras, não

conseguindo, abraça a ambos (OV6) príncipe e princesa. O abraço faz quebrar o encanto

(OV7), trazendo Marcôndio de volta. No caminho de volta ao reino do pai, o S4 deseja

alimentar-se (OV8). Depois de quatro anos, quer desencantar o irmão/amigo (OV9) mata os

filhos (OV10) orientado por uma voz e a amizade e a vida são restabelecidas.

Veja-se e percurso do S4 no esquema abaixo:

Page 69: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

68

S4 OV1

(amizade do irmão) S4 OV2 (procurar o irmão) S4 OV3

(vencer os três obstáculos) S4 OV4

(encontrar abrigo) S4 OV5

(tentativa de diálogo) S4 OV6

(abraço) S4 OV7

(desencanto) S4 OV8

(alimentar-se) S4 OV9

(novo desencanto) S4 OV10

( matar os filhos)

Em Vb não existe modificação no percurso do S4 aqui figurativizado pelo rapaz rico.

Auxiliando o S4 na busca de seu Objeto de Valor aparecem o rapaz pobre e as forças

sobrenaturais. Com um percurso consideravelmente mais curto, O S4 deseja ouvir a estória

que o amigo precisa contar (OV2), o que faz o amigo se transformar em mármore. Tempos

depois uma voz orienta-o a desencantar o amigo (OV3) que mata o filho (OV4).

Observe-se o percurso do S4:

S4 OV1

(amizade do amigo) S4 OV2 (ouvir a estória) S4 OV3

(desencanto) S4 OV4

(matar o filho) O estado inicial do S4 caracteriza-se pela conjunção com seu Objeto de Valor e

termina conjunto com ele.

O estado de transformação (F) do S3 pode ser representado pela frase-diagrama:

F = [(S3 ∩ OV) (S3 ∩ OV)]

Page 70: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

69

O discurso do S3 se qualifica como persuasivo ao querer-ser amigo.

3.1.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5

Em Va e Vb os Sujeitos Semióticos 5 são completamente diversos.

Figurativizado pelo rei em Va, aparece o Sujeito Semiótico 5 (S5) que tem como

Objeto de Valor principal a separação dos filhos/amigos (Marcôndio e o Príncipe), e se

instaura na narrativa pela modalidade de um dever-querer-fazer Marcôndio morrer. O povo o

impulsiona a exterminar Marcôndio, funcionando pois, como Destinador. Como Adjuvante

aparece a imprudência, uma vez que não consegue discernir entre o bem e o mal decidindo-se

a atender o pedido do povo.O S4 (Príncipe ) e o S1 (Marcôndio) funcionam como anti-Sujeitos

por se posicionarem em defesa da amizade e da vida. As forças sobrenaturais benignas (Deus,

passadas, voz) impedem a obtenção do Objeto de Valor do S5.

Vejamos o programa principal do S5:

Dario Dor Dor

(Povo) (Querer do Adjuvante S1 e S4)

(Imprudência) S5 OV

( rei) Oponentes (separação)

(forças sobrenaturais benignas)

Com intenção de separar os filhos, arquiteta uma viagem para o Príncipe (OV2 ) com o

objetivo de exterminar Marcôndio (OV3). Aceitando o pedido de Marcôndio para deixá-lo ir

embora, acredita estar conseguindo separar os dois. Quando os filhos voltam para casa

juntamente com uma princesa, o S5 casa o Príncipe com a princesa (OV4). Na noite de

núpcias do Príncipe e a princesa, Marcôndio trava luta com uma serpente que veio matar o

casal e ouvindo o barulho da luta, o S5 pensa ser entre os filhos e novamente ameaça

Marcôndio (OV5) .

Page 71: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

70

Os programas auxiliares do S5 são assim representados:

S5 OV1 (separar os filhos) S5 OV2

(viagem do Príncipe) S5 OV3 (ameaça a Marcôndio) S5 OV4

(casamento do Príncipe) S5 OV4

(nova ameaça a Marcôndio)

O S5 inicia seu percurso disjunto de seu Objeto de Valor principal que é a separação

dos filhos. Durante o percurso, consegue separá-los, ficando conjunto, porém termina disjunto,

uma vez que não consegue manter a separação.

A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) é:

F = (S5 U OV) (S5 ∩ OV) (S5 U OV)]

O discurso do S5 se qualifica como persuasivo ao dever-querer-fazer o que o povo

determina.

Em Vb, o Sujeito Semiótico 5 (S5) é figurativizado pelo pai da moça, pessoa de status

social elevado. É sujeito de um querer casar a filha (OV1), e por isso é auto-destinado.

Ajudando-o a atingir seu objetivo, aparece o rapaz pobre, que funciona como Adjuvante.

Agindo contra a obtenção do Objeto de Valor do S5, colocam-se as forças sobrenaturais

malignas (a sede, a fome, a porta e o bicho) que funcionam como Oponentes.

Veja-se o programa principal do S5 em Vb é:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (rapaz pobre) S5 OV

(pai da moça) Oponentes (casamento da filha)

(forças sobrenaturais malignas)

Page 72: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

71

Sem programas auxiliares, o S5 inicia seu percurso disjunto de seu Objeto de Valor

principal e termina conjunto com ele.

A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) do S5 é:

F = (S5 U OV) (S5 ∩ OV)]

O discurso do S5 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o casamento da filha.

3.1.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6

Em Va o Sujeito Semiótico 6 (S6), figurativizado pela princesa, tem como Objeto de

Valor principal o desencanto (OV2) para poder casar-se com o Príncipe e ser mãe (OV3) e se

instaura na narrativa pela modalidade de um querer-ser livre do encanto. Os Adjuvantes são o

príncipe que a desencanta e Marcôndio que protege sua vida no caminho de volta ao reino.

Funcionando como Oponente do S6, aparecem as forças sobrenaturais malignas que a

encantou.

O programa do S6 fica assim representado:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (Marcôndio)

S6 OV

(Princesa) Oponente (Desencanto)

(Forças sobrenaturais malignas)

Os programas auxiliares do S6 são:

S6 OV1

(desencantar-se)

S6 OV2

(casar)

S6 OV3

(os filhos)

Page 73: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

72

Em Vb, o percurso do S6, figurativizado pela moça rica, é mais extenso que o do S6 em

Va. O Objeto de Valor principal muda em relação ao de Va, pois, como não precisou

desencantar-se, já inicia seu percurso com o desejo de casar-se (OV1). Para conseguir o que

deseja, o S6 arranja um namorado pobre (OV2), com quem foge (OV3). Durante a viagem,

aceita namorar o rapaz rico (OV4), sente sede (OV5) e fome (OV6). Chegando à casa do pai,

casa-se com o rapaz rico (OV7). Na noite de núpcias é protegida pelo rapaz pobre que fere um

bicho destinado a matá-la. Porém, o acusa de falsidade (OV8), uma vez que ele precisou se

esconder dentro do quarto do casal para esperar o bicho.

Os programas auxiliares são organizados, segundo o esquema a seguir:

S6 OV1

(casamento) S6 OV2 (namorar o pobre) S6 OV3

(fuga) S6 OV4

(namorar o rico) S6 OV5

(beber água) S6 OV6

(comer uvas) S6 OV7

(casar com o rico) S6 OV8

(acusar o pobre) O S6 em ambas as versões inicia seu percurso disjunto do seu objeto de valor e termina

conjunto com ele.

O estado de transformação (F) pode ser representado pela frase-diagrama:

F = [ (S6 U OV) (S6 ∩ OV) ]

O discurso do S6 é qualificado como persuasivo ao querer-ser livre do encanto em Va e

ao querer-ser casada Vb.

Page 74: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

73

3.1.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7

Em Va e Vb, os Sujeitos Semióticos são diversos.

O Sujeito Semiótico 7 (S7) em Va, é figurativizado pelo povo, tem como Objeto de

valor principal, a morte de Marcôndio. Como Adjuvantes destacam-se as forças sobrenaturais

malignas (fera de sete cabeças, a sede, o leão e a serpente) que tentam tirar a vida de

Marcôndio. As forças sobrenaturais benignas (Deus, passadas, voz) funcionam como

Oponentes do S7 e como anti-Sujeitos aparecem o S1 (Marcôndio) e o S4 (Príncipe).

No programa principal do S7, pode-se ver:

Dario Dor

(desejo) Adjuvante

(forças sobrenaturais malignas)

S S7 OV

(S1 e S2) (Povo) Oponentes (morte de Marcôndio)

(Forças sobrenaturais benignas/Marcôndio)

Em Va, o S7 inicia o percurso disjunto do seu Objeto de valor, e termina disjunto. A

frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) é:

F = [ (S7 U OV) (S7 U OV) ]

O discurso do S5 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o rei matar Marcôndio.

Os passarinhos figurativizam o Sujeito Semiótico 7 em Vb cujo Objeto de Valor é

comunicar um saber para evitar a morte da moça (OV2). Trata-se de uma autodestinação,

tendo como modalidade um saber-fazer. O Adjuvante é o conhecimento. Seus Oponentes são

as forças sobrenaturais malignas.

O programa principal do S7 em Vb é:

Page 75: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

74

Dario Dor

(desejo) Adjuvante

(conhecimento)

S7 OV

(Passarinhos) Oponentes (comunicar um saber)

(Forças sobrenaturais malignas)

O percurso do S7 em Vb, organiza-se da seguinte forma:

S7 OV1

(comunicar um saber) S7 OV2 (evitar a morte)

Em Vb, o S7 inicia o percurso conjunto do seu Objeto de valor, e termina conjunto. A

frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) é:

F = [ (S7 ∩ OV) (S7 ∩ OV) ]

O discurso do S7 em Vb se qualifica como persuasivo ao saber-fazer a comunicação à

pessoa certa.

Page 76: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

75

3.1.2.8 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto O Fiel João

Sujeito Semiótico

Versões

Figurativização

Objeto de Valor

Destinador

Anti-Destinador

Anti-Sujeito

Adjuvante

Oponente

Modalização

Va

Marcôndio

Defesa

(da vida)

Desejo

Povo

Rei

Povo

Coragem/ Forças

sobrenaturais benignas

Rei/povo/ /forças

sobrenaturais malignas

Querer-fazer

S1

Vb

Rapaz pobre

Amizade

Desejo

Coragem/ Forças

sobrenaturais benignas

forças

sobrenaturais malignas

Querer-fazer

Va

Príncipe

Viagem

Rei

Marcôndio

Povo

Querer-fazer

S2

Vb

Rapaz rico

Rapaz pobre

Viagem

Desejo

Capacidade

Espírito fraterno

Obstáculos

Querer-fazer

Va

Príncipe

Status

Sociedade

Querer próprio

Forças sobrenaturais

benignas Marcôndio

Forças

sobrenaturais malignas

Dever-fazer

S3

Vb

Rapaz rico

Status

Sociedade

Querer próprio

Forças sobrenaturais

benignas Rapaz pobre

Forças

sobrenaturais malignas

Dever-fazer

Va

Príncipe

Amizade

(do irmão)

Desejo

Povo

Rei

Marcôndio /Forças

sobrenaturais benignas

Forças sobrenaturais

malignas

Querer-ser

S4

Vb

Rapaz rico

Amizade

(do irmão)

Desejo

Forças sobrenaturais

benignas/ rapaz pobre

Forças

sobrenaturais malignas

Querer-ser

Page 77: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

76

Va

Rei

(pai do príncipe)

Separação (dos

amigos)

Povo

Querer do S1 e S4

Imprudência/

Forças

Sobrenaturais benignas

Dever-fazer

S5

Vb

Pai da moça

Casamento (a filha)

Desejo

Rapaz pobre

Força sobrenaturais

malignas

Querer-fazer

Va

Princesa

Desencanto

Desejo

Marcôndio

Forças

sobrenaturais malignas

Querer-ser

S6

Vb

Moça rica

Casamento

Desejo

Rapaz pobre

Forças

sobrenaturais malignas

Querer-ser

Va

Povo

Morte de

Marcôndio

Rei

S1(Marcôndio) S4 (Príncipe)

Forças

sobrenaturais malignas

Forças

sobrenaturais benignas

Querer-fazer

S7

Vb

Passarinhos

Comunicação (de um saber)

Desejo

Conhecimento

Forças

sobrenaturais malignas

Saber-fazer

Page 78: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

77

3.1.3 Estruturas Discursivas

3.1.3.1 Relações intersubjetivas

As versões O Príncipe e o Marcôndio e Pedra Mármore constituem um mesmo conto

popular de tradição oral que, como toda narrativa desta origem se (re)constrói pela memória e

ideologia de seu (re)criador, efetivando a coletividade da autoria, daí o fato de a variação

acontecer tanto no título quanto em determinados elementos integradores do texto.

A Va apresenta um enunciador projetado explicitamente por um “eu” embreado com a

enunciação, embora debreado do enunciado.

“Agora eu vou voltar ao príncipe.”

Em Vb, o enunciador se projeta também por uma embreagem quando deixa escapar a

fala com interpelações diretas ao enunciatário.

“(Imagine um pobre namorando uma moça rica! Com o outro o rico, podia).”

“Que fez o pobre?”

“(O pobre dizendo. Gente besta)”

“O que era que fazia?”

Aqui ele é um ator que opina sobre os fatos narrados, como se tivesse sendo escutado

por um enunciatário (também ator) que está vendo e que o escuta. Em suas interpelações, o

enunciador deixa evidente sua posição em relação ao rapaz pobre, julgando incompatível o

namoro entre ele e a moça rica, dada sua posição sócio-econômica, o que culmina por destruir

a relação entre ambos. O rapaz pobre torna-se consciente de que é incapaz de possuir a moça

rica e a entrega ao príncipe/jovem rico.

O enunciador, com um discurso carregado de marcas da oralidade e de valores sociais,

parece querer, através de um exemplo, fundamentar a posição de que a amizade pelo irmão-

amigo, aliada ao desejo de conservar a vida e a honestidade, representa, simbolicamente, a

luta pela conservação da união e amizade fraternas dos que vivem ameaçados pela morte

Page 79: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

78

como prática banal no meio familiar e social, onde se destacam crianças, adolescentes e

adultos: os sertanejos paraibanos.

Para dar veridicção a esta afirmação, o enunciador delega a voz a seis atores, dos quais

um apenas um recebe denominação própria: Marcôndio. Os demais são apontados pelos

papéis temáticos que exercem, isto é, pela função social: filho, príncipe, rei, pai, princesa,

povo, passarinho. Aos atores que não são nomeados por um substantivo próprio, é conferido

um caráter impessoal, podendo ser representado por qualquer um daqueles que vivem

conflitos semelhantes, ao mesmo tempo em que busca, através de forças incoativas da

memória, seres que caracterizam o universo aristocrático como rei, rainha, príncipe e princesa.

Em Vb, o pai da moça era, provavelmente, um rei devido à ênfase ao poder aquisitivo e a

localização espacial ser o reinado.

A designação Marcôndio, atribuída ao rapaz de origem plebéia, aparece apenas em Va,

enquanto Vb traz a designação genérica de rapaz pobre. O nome próprio pode ter se originado

de uma analogia com a palavra mármore, remetendo ao encantamento em pedra mármore (daí

o título Pedra Mármore da segunda versão) do rapaz pobre como punição por contar a estória

proibida. Com essa designação própria, o enunciador parece querer destacar a representação

dos perseguidos, porém protegidos por Deus. A Marcôndio é conferido o caráter de

personagem principal da narrativa, apesar da presença de um príncipe, a quem é,

canonicamente, atribuído esse papel. Tem como adjuvante o sobrenatural, nas figuras de Deus,

voz (profecia) e passadas, atribuindo-lhe engenhosidade, bravura, curiosidade e visão

profética, para vencer todos os obstáculos, conservando a própria vida e a do irmão e,

portanto, conservando a amizade.

Marcôndio e o rapaz pobre são projetados no texto por uma debreagem enunciva e

uma debreagem enunciativa. A primeira é caracterizada pelo contar do enunciador, numa

elocução indireta:

“Depois que eles estavam grandes, batizaram, o príncipe e Marcôndio.”(V a)

“Dois rapazes, um rico e outro pobre [...]”(V b)

A segunda é caracterizada pela enunciação dos atores abaixo explicitados, em

elocuções diretas:

Príncipe

“– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio [...]”(V a)

Page 80: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

79

Rei

“– Meu filho, eu quero que vá uma viagem mas não quero ficar sozinho, quero que

você deixe Marcôndio comigo.”(Va)

Povo

“– Dê fim a Marcôndio que a desgraça do Príncipe é Marcôndio.”(V a)

Passarinho

“– Aquele rapaz pobre furtou aquela moça [...]”(Vb)

A nomeação Marcôndio parece ser uma estratégia do enunciador para focalizar no

palco do discurso, aquele que dá razão à existência do enunciado. Colocá-lo como perseguido

e defensor é caracterizar, simbolicamente, as pessoas humildes, que acreditam no cultivo da

amizade e união fraternas, além de conferir-lhe a verdadeira valentia: lutar honestamente pelo

bem da vida.

O mistério (que envolve os irmãos), os dois encantamentos (vividos por Marcôndio), a

ressurreição (vivida pelos filhos do príncipe) e um passarinho falante, reforçam, através do

imaginário fantástico de um povo, de um grupo social, verdades da fé: Marcôndio era

coadjuvado por forças sobrenaturais, vencendo os obstáculos mais intensos, comparando-se a

um Hércules que vence o monstro Hidra e um leão. É forte porque crê em Deus:

“Fez uma rogativa a Deus para não morrer de sede naquela montanha.”(Va)

Ao ser caracterizado por atitudes de humildade e luta pela vida, Marcôndio/rapaz

pobre é revestido de valores positivos. É ele que serve de exemplo para uma vida honesta.

Mesmo quando suas atitudes convergem para a prática de matar, o enunciador retira-lhe o

semema de maldade, atribuindo-lhe o de defensor da vida:

“Ele lutou muito com essa fera até que matou.”(V a)

“Travou-se outra luta e matou o leão.”(Va)

“No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente. Entraram em luta.”(V a)

“Ele pá, com o alfanje, feriu aquela cabeça.”(Vb)

Page 81: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

80

Os fragmentos mostram que o humilde rapaz foi induzido a lutar, brigar, ferir e matar,

mas para, além de autodefesa, sobretudo proteger outras pessoas que, como ele, eram

perseguidas.

O Príncipe e o rapaz rico são projetados no discurso por uma debreagem enunciva e

uma debreagem enunciativa. A primeira pelo contar do enunciador:

“Depois que eles estavam grandes, batizaram, o príncipe e Marcôndio.(Va)”

“Dois rapazes, um rico e outro pobre, [...]”(Vb)

A segunda pela voz que o enunciador delega aos atores:

Marcôndio

“– Quem vai casar é você que é príncipe.”(V a)

Povo

“– Dê fim a Marcôndio que a desgraça do príncipe é Marcôndio.”( Va)

Passarinhos

“– O pobre roubou a moça rica e deu ao amigo rico, mas ele não se lucra dela.”(Vb)

O afastamento do príncipe em Va por meio de uma viagem, provavelmente, é uma

estratégia do enunciador para que se inicie o conflito em defesa da vida. Com a saída do

príncipe, Marcôndio entra em cena. Esse afastamento (viagem) lembra as novelas de cavalaria,

quando o homem parte em busca de aventuras para formar-se. Aqui, certamente, para

completar a formação humana dos rapazes. A primeira parte do texto é caracterizada,

predominantemente, pelo agir do rei, o pai adotivo, contra Marcôndio e de Marcôndio em

confronto com o querer do rei e sobre os demais atores que confluem com a vontade do

monarca. O enunciador dá a Marcôndio a oportunidade de auto-afirmar-se como pessoa

íntegra, esquivando-se de ser morto pelo próprio pai, mesmo sem se rebelar contra ele.

Marcôndio é afastado duas vezes da narrativa. A primeira vez ( só em Va) acontece

quando deseja abraçar a princesa encantada. O enunciador, neste momento, impede a

Marcôndio o contato com a princesa, que é destinada ao príncipe. A segunda vez acontece

tanto em Va quanto em Vb, está sendo punido por não seguir as orientações devidas: de não

contar a estória proibida. Neste momento, o mágico é um recurso lúdico de atração infantil,

Page 82: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

81

dada à natureza ingênua e curiosa dessa fase da vida humana, em que o impossível perde

espaço para dar lugar às possibilidades da imaginação. A luta honesta de Marcôndio, em

favor da vida, recorda o cristão medieval que tinha ciência de estar vivendo no meio do

combate entre o bem e o mal, na luta de São Miguel4 com Satanás. O rapaz, assim como o

cristão daquela época (que aceitava ser forte ou fraco; rico ou pobre; guerreiro ou trabalhador;

religioso ou leigo), aceita seu lugar social de pobre e é consciente da batalha que está travando

contra o mal.

O rei em Va, pai, incumbido de matar o filho adotado, é projetado no discurso por uma

debreagem enunciva pela voz do enunciador e por uma debreagem enunciativa quando o

enunciador delega a voz a alguns atores.

Vejam-se fragmentos do texto que comprovem a debreagem enunciva:

“Era um rei e uma rainha.”

A debreagem enunciativa:

Marcôndio

“– Meu pai, não me mate!”

Príncipe

“– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio é muito meu amigo e eu só gosto

de andar com ele.”

As três estruturas de dominação legítima estão presentes no conto: a política (legal), a

familiar (tradicional) e a religiosa (carismática).

A estrutura de dominação política emerge com a projeção do rei que é também rico, o

monarca representante do povo. Aquele que, embora numa posição de poder, age conforme a

vontade dos outros. A vontade própria não influencia na tomada de decisões, uma vez que

precisa agradar seu povo. O rei assume a vontade do povo como se fosse a própria.

“[...] e todo mundo dizia ao rei:”(Va)

“Então um amigo do rei aconselhou:”(V a)

4 São Miguel, o Arcanjo de Deus na batalha contra Lúcifer e os anjos rebeldes (Apoc 12,7-8), é o primeiro Anjo honrado pelos fiéis, honrado como "o príncipe da milícia celeste"

Page 83: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

82

Assim funciona a sociedade: em virtude da posição (status) que ocupa, apresenta um

agir que não lhe é próprio. É uma forma de aculturação quando acontece a negação dos

atributos de um eu pela implantação dos atributos do outro.

A segunda estrutura, a familiar, é caracterizada pelo rei/homem rico, rainha, príncipe,

Marcôndio (filho adotivo) e a princesa que, com o príncipe, construirá outra família composta,

além deles, pelo(s) filho(s).

Ao rei, o enunciador também confere o poder de dominação tradicional, instaurando-o

como pai, chefe da família: o rei tem poder sobre os filhos, que lhe devem obediência, até

quando estes decidem buscar sua liberdade, saindo de casa para lutar pela sobrevivência.

Mesmo atribuindo ao rei uma dupla dominação legítima, o enunciador reveste-o de

valores negativos pelo seu agir, negando a união, a amizade e a honestidade que são valores

cavalheirescos e religiosos. A relevância dada pelo enunciador a esses valores, reafirma o

caráter didático do conto: ensinar pelo exemplo.

É costume no Sertão, incutir, nos mais novos determinados valores, através de estórias

contadas, especialmente pelos avós, mãe, senhoras idosas e professores. Nestas estórias

veiculam valores de tradição popular.

A estrutura de dominação religiosa se faz presente quando é projetada, no texto, a

indicação do “batismo” dos irmãos, da rogativa a Deus para não morrer de sede, e do

sacrifício da morte dos filhos, uma prática inscrita no antigo testamento com animais e na

prova por que Abraão passou quando recebeu a ordem divina de matar o filho.

Deus, dentro da oração do rapaz que luta em prol da vida e da amizade, ocupa o lugar

de enunciatário, conferindo ao discurso o fluxo religioso que caracteriza o homem sertanejo.

“Fez uma rogativa a Deus pra não morrer de sede naquela montanha.”(Va)

Diante da falta do que lhe é necessário, o homem recorre ao sobrenatural que é capaz,

milagrosamente, de suprir qualquer necessidade. O apego à religião é fruto do sofrer: o

homem em perigo, passando por necessidade, clama a Deus. É comum, portanto, a crença

inefável em milagres e promessas que, mesmo não concretizáveis, solidificam uma

religiosidade que constitui a identidade cultural de um povo. Em Vb, Deus está pressuposto,

uma vez que a religiosidade flui nas atitudes de humildade, honestidade e defesa da vida do

rapaz pobre.

A serpente é projetada em Va sob a tarja de ente representativo da maldade,

personificação de Lúcifer que assume muitas imagens, daí em Vb ser projetada a imagem de

Page 84: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

83

“uma cabeça preta [...] com olhos de fogo”, e ainda, “um bicho”. A projeção acontece quando

a enunciação é de uma misteriosa voz (Va) ou dos passarinhos (Vb), respectivamente, nas duas

versões:

“– Bem, vão: o príncipe, a princesa e Marcôndio, mas no dia do casamento, o príncipe

casa com a princesa e vem uma serpente e engole todos dois nessa noite.”(Va)

“– Porque de noite, quando eles estiverem dormindo, vem um bicho e mata ela.”(Vb)

A debreagem enunciva é representada pelo fragmento que se coloca na superfície do

texto pelo próprio enunciador:

“Quando contou da serpente, que queria devorar ela, tinha matado, caiu lá fora, virou-

se todo na pedra mármore.”(Va)

“No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente.”(V a)

“[...] chegou aquela cabeça preta desse tamanho! Os olhos de fogo”.(V b)

A “serpente”, “bicho”, “cabeça preta com olhos de fogo” são designações populares

para referir-se a “Satanás”, uma figura secularmente revestida de valores negativos. No

discurso bíblico, a serpente é amaldiçoada por seduzir a mulher a destinar o homem a cometer

o ato proibido. “Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais e feras dos campos

[...]” (GÊNESE, 3-14). As pessoas acreditam que, pela astúcia, o diabo se transfigura

assumindo várias formas. É voz popular que designá-lo pelo nome próprio (Satanás, Diabo)

atrai sua presença para junto de quem fala, ou seja, ele se torna enunciatário do discurso de

quem pronuncia seus nomes, portanto é preferível criar uma linguagem eufemística para

confundi-lo. E foi esta, provavelmente, a razão que fez o enunciador chamá-lo de “serpente”,

“bicho”, “cabeça preta”. Talvez este fato tenha se originado no discurso religioso. Nas

orações, Deus é o enunciatário do homem, cuja proximidade ele deseja, invocando seu nome.

A mesma coisa pode acontecer em relação às forças diabólicas.

À princesa em Va, em momento algum, é delegada voz. No início, justifica-se porque

ela estava encantada, isto é, semelhante a uma morta, em estado letárgico, sem falar, nem

ouvir. Mesmo depois quando ela volta a seu estado normal, continua sem voz, embora no

final, esteja subentendido que o choque sofrido ao saber a notícia de morte dos filhos, a tenha

deixado doente.

Page 85: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

84

“Aí foi dar remédio a mulher pra ela ficar boa, e ficaram sendo os mesmos

amigos”.(Va)

Portanto, ela não opina, não defende os filhos, não fala. Em todas as situações, ela não

participa das decisões, colocando-se numa postura passiva diante dos fatos em Va.

A moça rica em Vb, provavelmente uma princesa, embora lhe seja delegada a voz, a

figura masculina sempre a ela próxima, sobressai-se. Mesmo fugindo do jugo paterno, ela não

fica autônoma, uma vez que são os rapazes que decidem com quem ela casará, o que ela deve

beber ou comer, sua voz não é ouvida quando acusa o amigo do rapaz rico e, ainda, não pode

proteger o(s) filho(s) contra a ação do marido. São todas atitudes subservientes, nas quais ela

não é considerada pelo seu valor, mas excluída do processo decisório.

Os atores femininos (rainha, princesa/moça rica) que são projetados no discurso,

reforçam a cultura que permeia todo sertão nordestino, de inferioridade feminina. O

enunciador usa tanto da estratégia do silêncio, ora confirmativo, ora desesperador, quanto de

uma voz sem força, desses atores em relação às atitudes masculinas, para conferir-lhe um

comportamento de submissão, passividade. É uma postura que reforça a religiosidade milenar,

cristã, encontrada no preceito bíblico “Mulheres, sede submissas a vossos maridos, porque

assim convém, no Senhor.” (COLOSSENSES, 3-18).

Neste conto A voz do povo não é a voz de Deus, como reza o adágio popular, pois o

povo destina ao rei à pratica de um ato de maldade contra o filho. O enunciador atribui ao

povo, projetado no discurso pela debreagem enunciva, valores negativos; aqui talvez a inveja

seja o motivo de o povo querer o sumiço de Marcôndio, uma vez que ele se destaca pelos

atributos de valente, forte e destemido. A projeção do povo acontece na expressão:

“Então começaram a fazer bagunça na cidade e todo mundo dizia ao rei:”(Va)

A violência é uma prática incitada pelo povo contra ele mesmo. Na tradição e na lei, é

o povo que determina o agir dos seus representantes. Dessa forma o rei representa seu povo e,

portanto, deve seguir o conselho.

Reiterando o conselho do povo, o enunciador projeta-o sob a figura de um amigo,

como a querer dizer que o rei deve escutar o povo, não só pela posição que exerce, mas

também pelos laços de amizade. Sendo amigo, o conselho é bom. O povo, na figura de amigo,

é projetado no discurso por uma debreagem enunciva:

Page 86: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

85

“Então um amigo do rei aconselhou:”(Va)

A projeção dos passarinhos no discurso ocorre por uma debreagem enunciva e por

uma debreagem enunciativa. A primeira pelo contar do enunciador:

“Aí chegaram dois passarinhos, pousaram no galho de pé de pau.[...]”(Vb)

A debreagem enunciativa acontece na delegação de voz ao rapaz pobre quando vai

contar a história que não devia.

“– O passarinho também avisou que se ela comesse aquelas uvas, morria. Eu livrei a

vida dela das uvas.”(Vb)

Passarinhos são polinizadores naturais. São eles que levam as sementes para

germinarem em terra fértil e darem continuidade à vida natural. Portanto, estabelecem uma

comunicação dos elementos da natureza entre si. São destinadores naturais de uma

competência para criar. Dessa forma, são os braços de Deus no processo de criação. Os do

texto têm uma missão profética (representam a voz de Deus), quando destinam um saber ao

rapaz, considerado a pessoa certa para ouvi-lo. O rapaz pobre, onde foi semeada a notícia, foi

capaz de guardar o segredo até o momento em que precisou usá-lo em autodefesa. A segunda

profecia se cumpriu, mas para que houvesse a retribuição do bem feito a ele pelo amigo,

(transformado em pedra mármore) era necessário que o príncipe/rapaz rico o desencantasse,

embora precisasse matar os filhos. Assemelha-se ao episódio de Abraão quando lhe é

ordenado por Deus a morte de Isaac. E do mesmo jeito que acontece no episódio bíblico,

quando Deus queria testar apenas a fidelidade de Abraão, ocorre nas duas versões quando,

sem vacilar, os rapazes obedecem a voz e matam o(s) filho(s) que, depois de mortos,

ressuscitam.

Essa função destinadora e profética do passarinho é lembrada pelo povo na expressão

popular: “Um passarinho me contou”, usada para omitir a origem da notícia.

O sistema temporal do conto se organiza a partir do tempo crônico, que é o tempo dos

acontecimentos, engendrando a enunciação a partir de fatos instalados no enunciado.

Ancoram-se os programas narrativos em atores que podem ser qualquer um de nós, em

espaços que podem ser qualquer lugar, em tempos desordenados em relação ao presente da

enunciação. Isso acontece porque o discurso desloca a narrativa para longe de um agora,

Page 87: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

86

fixando-a num então. Dessa forma, o enunciador se encontra distante do tempo da enunciação.

Predominam, no enunciado, os pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo, no contar do

enunciador e uma idéia de futuro próximo nas locuções “vou matá-lo”, “vou dar fim” ao

delegar a voz ao rei em Va. A ocorrência do presente acontece quando o enunciador projeta-se

no “eu” “Agora eu vou voltar ao príncipe” em Va e com a elocução dos interlocutores em

debreagem enunciativa de segundo grau nas duas versões, e ainda com a projeção da

enunciação do enunciador numa incitação para a interação através da função fática “(Imagine:

um pobre namorando com uma moça rica! Com o outro, o rico, podia ser. Não era?)”, em Vb.

Esse sistema temporal pode ser organizado da seguinte forma:

Passado

Presente

Passado

História dos dois rapazes

Recuperação dos fatos pelo

enunciador

História dos dois rapazes

O primeiro momento se refere ao tempo em que aconteceram os fatos da história dos

dois rapazes. Em seguida, o enunciador recupera esse passado, colocando os fatos no presente

da enunciação. Logo depois, a história dos dois rapazes é colocada noutro tempo e projetada

no passado.

Com o tempo durativo, não-acabado: “Era um rei e uma rainha” em Va, e “[...] eram

amigos desde meninos” em Vb, o discurso enunciativamente projeta uma irrealidade em que

se relatam acontecimentos concomitantes ao então, colocados no passado, instalando, depois,

uma nova realidade, através de uma debreagem enunciativa de segundo grau, “– Dê fim a

Marcôndio que a desgraça do Príncipe é Marcôndio.” e “– Você quer fugir comigo? Você tem

coragem de fugir comigo?”, em que a enunciação cria um “eu” para melhor representar o

simulacro, inaugurando o tempo histórico.

Essa presença do tempo inacabado inicial reitera a idéia de que fatos semelhantes

podem acontecer, conduzindo a uma advertência, ou exemplo, confirmando a natureza

didática do conto.

No interior do discurso, as debreagens enunciativas visam a um efeito de verdade,

quando do dialogismo entre os interlocutores. Há, ainda, na debreagem enunciativa, uma

projeção de narrativa profética.

Page 88: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

87

“Quem essa história contar em pedra mármore há de virar.” (Va)

“E quem essa história contar em pedra mármore virará .” (Vb)

Por tratar-se de uma profecia, o discurso engendra um subsistema temporal, tendo o

futuro do presente (o rapaz no futuro contará a história) funcionando como tempo que

expressa anterioridade ao presente do futuro. A partir do presente do futuro que é o tempo do

enunciador no falar profético, existe um novo futuro que ocorrerá depois do primeiro (o rapaz

transformado em pedra mármore) mantendo com o anterior uma relação de posterioridade.

Podemos sintetizar da seguinte forma:

Anterioridade

Concomitância

Posterioridade

Futuro do presente

Presente do futuro

Futuro do futuro

Narração da história pelo

rapaz

Tempo do enunciador no falar

profético

O rapaz transformado em

pedra mármore

O tempo crônico focaliza o nascimento em Va (período de infância em Vb),

crescimento e reprodução, para indicar o ciclo de vida socialmente estruturada.

“Quando o primeiro filho nasceu [...]” (Va)

“Depois que estavam grandes [...]” (Va)

“Já fazia quatro anos [...]” (Va)

“[...] eram amigos desde meninos” (Vb)

“Com uns tempos, o rapaz pegou namorar [...]” (Vb)

“Com uns tempos apresentou gravidez.” (Vb)

Os dois primeiros fragmentos de cada versão demarcam períodos temporais sem dar

limites exatos para indicar a infância e a passagem da adolescência para a idade adulta dos

dois rapazes, como Jesus que dos doze aos trinta e três anos ficou oculto. O terceiro,

entretanto, a terceira fase da vida do príncipe e do rapaz rico, em que casado teve filho(s) –

em Va, fala-se de quatro filhos, enquanto em Vb, fala-se de um filho -, estando o amigo

estagnado em condição de estátua. É aqui que o príncipe e o rapaz rico passam pelo teste que

Page 89: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

88

vai comprovar se, realmente, eles sobrepõem a amizade a tudo, até mesmo à família. Estes,

obedecendo à voz, matam o(s) filho(s), precisamente quando lhe(s) tinha grande afeto. O

conto enfim, confirma o caráter exemplar.

A espacialização, assim como temporalização deste conto popular, está dividida em

espaço lingüístico que se refere ao lugar axial do discurso, onde o enunciador se posiciona em

relação à enunciação, e o espaço tópico caracterizado pela instauração, no enunciado, de

pontos de referência do enunciador e dos interlocutores.

A narrativa é construída a partir de uma seqüência de enunciações, reiterando o caráter

popular, comprovando uma autoria coletiva que perpetua os acontecimentos no imaginário de

um povo. Ao projetar na tecitura textual “Agora eu vou voltar ao príncipe.” em Va, e a

projeção de sua própria fala em Vb, numa tentativa de retorno à enunciação, quando incita o

enunciatário a concordar com o juízo de valor que faz “(Imagine: um pobre namorando com

uma moça rica! Com o outro, o rico, podia ser. Não era?)”, o enunciador num aqui, de uma

contar que recria a partir do processo mnemônico, se refere a um lá, passado de uma

enunciação de um ente espacialmente debreado. Quando o enunciador projeta os

acontecimentos no passado, engendra um outro espaço que é o do enunciado.

Memória

Contar do enunciador

(enunciação)

Espaço lingüístico

(enunciado) Lá Aqui Lá

O espaço tópico ajuda a situar e caracterizar os atores que se projetam no enunciado.

Fixado num espaço alhures, é projetada em Va a expressão “reinado”, recuperando

mnemonicamente o espaço dos contos maravilhosos, onde figuram aventuras mirabolantes de

heroísmos e mistérios por encantamentos, permitindo, assim, a reiteração do fantástico em

que se configura a irrealidade.

O enunciador, porém, pontua para a realidade, a fantasia que caminha não mais por

reinos de reis, príncipes e princesas, colocando Marcôndio em Va, sob a figurativização de um

nome próprio para dar caráter de realidade à estória.

O reino agora, recebendo um revestimento verossímil da possibilidade em qualquer

vida, é caracterizado pelo espaço que predomina na primeira parte do conto, em que os

rapazes, responsáveis pelo início da trama, se projetam em um meta-espaço cidade, cujos

Page 90: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

89

semas caracterizadores são casa e porta. A segunda parte, o meta-espaço matas é

caracterizado por um sobrado, aparentemente abandonado dentro da montanha em Va e pé de

pau, cacimba e plantação de uva em Vb. Nestes espaços, figuram seres como feras, leão e

passarinhos, além de uma vertente de água. É neste ambiente rural, inexplorado que

Marcôndio, sozinho, se auto-afirma como valente, guerreiro e defensor do bem, atraindo o

príncipe que, numa ligação misteriosa, segue a mesma trilha, encontrando, a cada obstáculo

vencido, a certeza de que o irmão estava vivo.

“Até aqui meu irmão vai vivo.”(V a)

Essa frase repetida cinco vezes pelo príncipe projeta um efeito de sentido: não era só a

certeza de que estava o irmão vivo, era preciso a proximidade física da união com ele.

Em Vb, essa busca pelo amigo não acontece, uma vez que eles já estão viajando juntos,

porém os obstáculos são presentes e constantes, constituindo-se em desafios para o rapaz

pobre que, com coragem e bravura vence-os.

A cidade, o espaço inicial e para onde voltam depois de terem se embrenhado nas

matas, parece representar um ambiente desagradável, em que se figura o “ruim” pela mesmice

e pela falta de aventuras salutares que os façam experientes. Foi lá onde começaram a praticar

desordem, de lá veio a ordem de exterminar Marcôndio (Va) e foi de lá também que roubaram

uma moça rica e maldosa (Vb).

“– Fulano! Espie seu amigo dentro do meu quarto! Ele foi falso a você. Você disse que

ele era seu amigo! Passou a noite aqui, no meu quarto, dormindo, Fulano! Cabra

atrevido!”(Vb)

A natureza, no conto, é revestida de valores positivos. Nela, encontra-se água, frutas,

além de repouso. E maiores obstáculos a serem enfrentados quer permitirão aos sujeitos maior

experiência de vida.

“– Vamos descansar debaixo de um pé de pau para fazer um lanche.”

Era preciso deixar a cidade para aventurar-se na natureza, com a ajuda divina,

purificando-se de todo mal, com a água da vida, que sacia a sede de experiência, de

sobrevivência.

Page 91: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

90

3.1.3.2 Temas e figuras

Expressamente figurativo, o conto evidencia fatos representando o simulacro de uma

dada realidade, de onde fluem temas, cujas considerações já vêm sendo traçadas nesta análise.

Neste conto, surge o tema morte que tangencia toda a narrativa, na luta pela

sobrevivência, cuja figurativização se encontra no agir do rei e de animais perigosos sobre

Marcôndio, de Marcôndio/rapaz pobre sobre os perigos que o ameaçam e ameaçam seu irmão

e a princesa/moça rica, do príncipe sobre o(s) filho(s), como também nas ciladas armadas para

matar a moça rica em Vb.

“– Vou matá-lo porque você é quem bota meu filho no caminho da perdição. Vou dar

fim a você.”(Va)

“Quando Marcôndio entrou nas matas encontrou uma fera perigosa, com sete

cabeças.” (Va)

“Fez uma rogativa a Deus pra não morrer de sede naquela montanha.” (Va)

“Adiante encontrou um leão, uma fera muito perigosa.” (Va)

“No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente. Entraram em luta.”

(Va)

“Mulher, matei meus quatro filhinhos, mas desencantei meu irmão.” (Va)

“[...] Quando beber água daquela cacimba, ela morre.” (Vb)

“[...] Se ela comer das uvas, morre.[...] (Vb)

“– No entrar da casa dele, a porta cai e mata a moça.” (Vb)

“[...] Quando ela saiu, ele pegou a bacia botou debaixo da rede e passou o alfange no

menino.” (Vb)

À figura de patriarca do rei em Va, estão imbricadas os temas opositivos vida e morte.

Vida porque

“Ele criou as duas crianças como filho.”

O ato de “criar” é permitir-lhes a vida. Esta, em oposição à morte, pontua todo o conto:

Marcôndio e o príncipe em Va, o rapaz pobre e a moça rica em Vb são saciados com água,

recuperando uma passagem bíblica em que a samaritana roga “Senhor, dá-me dessa água, para

Page 92: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

91

eu já não ter sede, nem vir aqui tirá-la.” (JOÃO, 4-15). A água é fonte de vida em abundância,

quem beber da água da vida nunca mais sentirá sede; e os rapazes também encontraram

comida durante o tempo em que estiveram fora de casa; quebraram os encantos (a letargia, a

impossibilidade) para fazer valer a vida no mundo sensível; o agir do rapaz pobre em defesa

da vida e por último o retorno à vida do(s) filho(s) do príncipe e do rapaz rico.

Assim, a sede representa a falta de água no corpo, falta de alimento, de força e de

espiritualidade, portanto a morte corpórea e espiritual. Isso não acontece com os dois amigos

e a moça, uma vez que encontram água e alimento que lhes dão energia para enfrentar os

problemas que encontram.

“Avistou uma vertente onde bebeu muita água e ficou satisfeito.”(V a)

“As pisadas vieram até onde ele estava e depois ele acompanhou as passadas e chegou

na sala de refeição onde tinha comida na mesa de toda qualidade. Ele se serviu bem

e voltou a se deitar.” (Va)

“Avistou uma vertente, chegou lá tomou água.” (Va)

“Não via ninguém: Acompanhou, chegou na sala tinha toda qualidade de comida.”

(Va)

“[...] desencantou-se a rainha, desencantou-se tudo! Ficaram muito satisfeitos,

muito alegres!” (Va)

“Mulher, matei meus quatro filhinhos, mas desencantei meu irmão!” (Va)

“Quando ele voltou estavam, todos quatro, brincando.” (Va)

“Ela só foi beber água da terceira cacimba.”(Vb)

“Ela comeu uva mais na frente.” (Vb)

“Quando jogou, a pedra estremeceu: performou-se o amigo do jeitinho que era!” (V b)

“[...] o menino estava do jeitinho que era, normalzinho.[...]” (V b)

Ao tema da separação subjaz o tema da união que integram morte e vida

concomitantemente. As figuras que concretizam esse tema na superfície do texto são: as

viagens dos rapazes; os encantos; as ameaças de morte do rei a Marcôndio em Va, e as ciladas

de morte contra a moça em Vb.

Em Va, duas viagens são arquitetadas pelo rei e Marcôndio respectivamente: o

primeiro objetiva separar os filhos com a morte de Marcôndio; o segundo encontra, na ida

para as matas, uma forma de sobreviver à ameaça do rei. Em ambas as viagens, acontece a

Page 93: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

92

separação dos amigos. Em Va, a separação é obra de forças sobrenaturais malignas para

separar o rapaz rico da moça rica.

O tema união é impresso na construção textual pelo desejo, principalmente do príncipe,

de querer estar sempre junto do amigo, que comunga com esta vontade, lutando,

corajosamente, pela sobrevivência e felicidade do amigo quando livra a esposa dele da morte.

“Eram muito amigos, se criaram amigos um do outro.”(Va)

“– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio é muito meu amigo e eu só gosto

de andar com ele.”(V a)

“[...] e ficaram sendo os mesmos amigos.”(V a)

“Dois rapazes um rico e outro pobre, eram amigos desde meninos.” (Vb)

“– Bem, meu amigo, você se casou. Eu vim livrar sua mulher da morte mais uma

vez.” (Vb)

Emergem também o tema da passividade em oposição à atividade que predomina nas

versões. O discurso bíblico conservador, como já foi abordado nesta análise, prega a

obediência da mulher ao marido. A passividade feminina é concretizada no afastamento da

rainha em Va, no diálogo dos dois rapazes para decidir quem fica com a princesa/moça rica

nas duas versões e na morte do(s) filho(s) do príncipe em que a mulher só foi sabedora depois

do ato em Va e em Vb em nenhum momento. Portanto, o homem tinha poder decisório total,

inclusive sobre a vida dos seus.

.

“Aí foram tratar de um acordo pra ver quem casava com a princesa.” (Va)

“– Quem vai casar é você que é príncipe.”(V a)

“– Quem vai casar é você que chegou primeiro.”(V a)

“Ele foi matou os quatro filhinhos que estavam brincando, lavou a pedra, desencantou

o irmão e correu onde estava a mulher.”(V a)

“[...] Eu roubei essa moça, que é rica, e dou pra você casar com ela. [...]”(Vb)

“[...] Pediu à mulher pra ir à cidade comprar um objeto para ele. Para enganar ela,

ouviu!” (Vb)

“(o marido esqueceu de dizer e quando ela chegou a criança já havia ressuscitado)”

(Vb)

Page 94: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

93

Desde a presença de Deus na rogativa de Marcôndio em Va até a submissão feminina

no meio familiar, em relação ao esposo, é indício de um conteúdo católico que recobre a

narrativa do conto popular, confirmando o caráter conservador que permeia esse tipo de

literatura, dada a sua função de veiculadora dos valores arraigados numa determinada

comunidade.

3.1.3.3 Leituras temáticas

A análise discursiva das duas versões do conto analisado permite considerar as

seguintes leituras temáticas:

Primeira leitura

A união e a amizade fraternas devem prevalecer entre os homens.

Segunda leitura

Deus ajuda aos perseguidos e humilhados.

Terceira leitura

O homem deve lutar em favor da vida.

Quarta leitura

O bem sobrepõe ao mal.

Quinta leitura

Os pais têm poder sobre os filhos.

Sexta leitura

O discurso feminino é desprovido de credibilidade.

Page 95: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

94

3.1.4 Estrutura Fundamental

A tensão dialética que predomina ocorre entre bem versus mal: de um lado

Marcôndio/rapaz pobre, princesa/moça rica, voz, passadas e os passarinhos, figurativizando o

bem e do outro, emergem o rei (Va), povo, monstro de sete cabeças, leão e serpente/cabeça

preta/ bicho, figurativizando o mal.

Bem implica não-mal e mal, não-bem. Do bem sem o mal, resulta a vida; do mal sem o

bem, a morte.

As relações tímicas que se estabelecem entre bem versus mal permitem a ordem a

seguir:

Para Marcôndio/rapaz pobre, a princesa/moça rica, voz, passadas e passarinhos:

bem vida não-mal

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

mal morte não-vida

(disfórico) (disfórica) (disfórica)

Para o rei (Va), o povo, mostro de sete cabeças, leão e serpente/cabeça preta/bicho:

bem vida não-mal

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

mal morte não-vida

(eufórico) (eufórica) (eufórica)

Page 96: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

95

O octógono seguinte operacionaliza a tensão bem versus mal.

O conto apresenta sob a face do maravilhoso, entes representativos das forças

sobrenaturais, que permitem uma tensão dialética entre ser versus parecer.

Ser implica não-parecer, fazendo emergir o segredo. No modo do ser, colocam-se as

forças sobrenaturais, que mantêm a identidade em segredo. São as forças sobrenaturais, mas

não parecem ser.

Parecer e não-ser geram a mentira. No modo do parecer, colocam-se os passarinhos,

a serpente/cabeça preta/bicho que parecem animais, mas não são, constituindo uma mentira.

As relações tímicas da tensão ser versus parecer, permitem a seqüência dos percursos:

Para as forças sobrenaturais:

ser segredo não-parecer

(eufórico) (eufórico) (eufórico)

parecer mentira não-ser

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

Tensão dialética

bem

não-mal

mal

não-bem

vida morte

0

Page 97: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

96

Para os passarinhos, a serpente/cabeça preta/bicho:

ser segredo não-parecer

(disfórico) (disfórico) (disfórico)

parecer mentira não-ser

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

Essa tensão pode ser operacionalizada no octógono abaixo:

Em Va, instaura-se um conflito entre dominante e dominado. O rei mantém uma

relação de poder sobre o príncipe, Marcôndio e o povo, que caracteriza uma dupla dominação

legítima: familiar em relação aos dois primeiros e política em relação ao terceiro.

A dominação legítima familiar tem por base uma relação de obediência por motivo de

hábito, pois já faz parte da tradição. Neste conto, o dominante é o rei, pai, a quem os filhos

príncipe e Marcôndio devem obediência, daí por que a relação de implicação entre os termos

dominante e não-dominado faz emergir a autoridade de pai e, entre dominado e não-

dominante faz emergir a obediência dos filhos.

Na dominação legítima política, o dominante é o rei que ocupa a posição de

autoridade sobre o povo que lhe deve obediência.

Tensão dialética

ser

não-parecer

parecer

não-ser

segredo mentira

0

Page 98: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

97

As relações tímicas que emergem a partir dos opostos dominante versus dominado são

mostradas a seguir:

Para o rei:

Dominante autoridade não-dominado

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

Dominado obediência não-dominante

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

Para o príncipe, Marcôndio e o povo:

Dominante autoridade não-dominado

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

Dominado obediência não-dominante

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

Essa tensão dialética colocada no octógono oferece uma visão mais precisa:

Tensão dialética

dominante

não-dominado

dominado

não-dominante

obediênciaMarcôndio/príncipe/povo

autoridaderei

0

Page 99: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

98

Outro conflito que emerge da narrativa se instaura entre a oposição passivo versus

ativo, cujo ponto comum é encontrado no meio familiar, caracterizando a relação entre as

personagens masculinas e as personagens femininas.

Ativo implica não-passivo e passivo, não-ativo. Do ativo sem o passivo, resulta o

masculino; do passivo sem o ativo, o feminino.

Desde o início da narrativa, parece não haver espaço para sugestões femininas: a

rainha não se instaura como sujeito semiótico em Va e nem ao menos aparece em Vb, e a

princesa, em nenhum momento lhe é delegada a voz em Va. Esta se reveste de uma grande

tristeza, pressuposta na afirmativa final do texto:

“Aí foi dar remédio a mulher pra ela ficar boa[...]”(V a)

Em Vb, a moça rica mostra-se passiva quando está sob o jugo paterno, e mesmo

fugindo, fica sob o jugo do marido.

Para as personagens masculinas:

Ativo masculino não-passivo

(eufórico) (eufórico) (eufórico)

Passivo feminino não-ativo

(disfórico) (disfórico) (disfórico)

Para as personagens femininas:

Ativo masculino não-passivo

(disfórico) (disfórico) (disfórico)

Passivo feminino não-ativo

(eufórico) (eufórico) (eufórico)

Page 100: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

99

O octógono oferece uma visão mais precisa desse conflito:

Tensão Dialética

Meio Familiar

0

ativo passivo

não-passivo não-ativo

masculino feminino

Page 101: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

100

3.2 FERNANDO O VERDADEIRO E FERNANDO O FALSO

3.2.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação

As versões foram codificadas conforme se seguem:

Va – A princesa da pedra fina: contado por Antônio Francisco da Silva, natural de catolé do

Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da Paraíba, p.70-

72, publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade Federal da

Paraíba.

Vb – Princesa da pedra fina: contado por Luzia Tereza, natural de Guarabira, PB, coletado e

organizado por Altimar de Alencar Pimentel e Myriam Gurgel Maia, Estórias de Luzia Tereza,

p. 63-66, publicado em 1995, em Brasília, DF, pela Thesaurus Editora.

Confluindo com a natureza popular, em que o autor se caracteriza pela coletividade,

deixando marcas sócio-culturais de um tempo e de um povo, quando e por onde passou, o

conto apresenta ora convergências, ora divergências segmentais, sem perder o ponto de

encontro. Vejam-se os segmentos extraídos:

Sg 1 Conversa dos três irmãos no campo

Sg 2 Desejo manifestado pelos irmãos

Sg 3 Surra sofrida pelo irmão mais velho (Manoel/Joaquim)

Sg 4 Pedido de bênção à mãe pelo rapaz

Sg 5 Partida do rapaz

Sg 6 Auxílio prestado a um cavalo e a uma raposa

Sg 7 Disposição da raposa em ajudá-lo como agradecimento por ter sido socorrida

Sg 8 Chegada do rapaz ao reinado da Princesa da Pedra Fina

Sg 9 Determinação de uma voz para o rapaz se alimentar, descansar e desencantar a

Princesa

Sg 10 Desencanto da Princesa

Page 102: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

101

Sg 11 Casamento do rapaz com a Princesa

Sg 12 Encontro do rapaz com os irmãos/família

Sg 13 Conselho dado pela raposa ao rapaz

Sg 14 Almoço oferecido pelo rapaz à família

Sg. 15 Recordação do rapaz sobre os pedidos dos irmãos e a surra sofrida

Sg. 16 Prática do plano de morte contra os irmãos

Sg. 17 Morte dos irmãos

Sg. 18 Perdão de Joaquim concedido ao pai

QUADRO I - Sistematização mais nítida dos segmentos estudados:

Versões Segmentos

Va Vb

Sg1 X X Sg2 X X Sg3 X X Sg4 X Sg5 X X Sg6 X Sg7 X Sg8 X X Sg9 X Sg10 X X Sg11 X X Sg12 X X Sg13 X Sg14 X Sg15 X Sg16 X Sg17 X Sg18 X Total 12 14

Observa-se a partir da sistematização dos segmentos no quadro acima que a versão

codificada como Va apresenta maior número de segmentos na primeira metade da narrativa

Page 103: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

102

(Sg1, Sg2, Sg3, Sg4, Sg5, Sg6, Sg7, Sg8, Sg10, Sg11, Sg12, Sg13), enquanto a versão Vb, na

segunda metade (Sg8, Sg9, Sg10, Sg11, Sg12, Sg14, Sg15, Sg16, Sg17, Sg18).

De um total de dezoito segmentos, Va apresenta doze segmentos e Vb apresenta

quatorze. Embora nenhuma das versões compreenda a totalidade, os textos se aproximam em

extensão com diferença apenas de dois segmentos. A alteração na presença de segmentos

semelhantes, faz emergir o caráter popular, comprovando a presença de enunciadores e não de

enunciador.

QUADRO II – Identificação dos segmentos por versões

(em ordem decrescente)

Identificação

dos segmentos

Número de versões em que

aparece Sg18 01 Sg17 01 Sg16 01 Sg15 01 Sg14 01 Sg13 01 Sg12 02 Sg11 02 Sg10 02 Sg9 01 Sg8 02 Sg7 01 Sg6 01 Sg5 02 Sg4 01 Sg3 02 Sg2 02 Sg1 02

Page 104: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

103

3.2.2 Estruturas Narrativas

3.2.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1

Em Va o Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado por Manoel, é modalizado por um

querer aventura (OV1). O S1 é ajudado pelas forças sobrenaturais benignas que funcionam

como Adjuvantes. Como Oponentes aparecem as forças sobrenaturais malignas e os irmãos..

O programa principal do S1 pode ser representado da seguinte forma:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvantes (forças sobrenaturais benignas)

S3 OV

(Manoel) Oponente (aventura)

(forças sobrenaturais malignas /irmãos)

Para viver aventuras, o S1 viaja (OV2), ajuda os necessitados (OV3) (raposa e

cachorro). Já no reinado da Princesa da Pedra Fina, é conduzido a desencantá-la (OV4).

Orientado pela raposa, contribui para a execução do plano de morte dos irmãos (OV5). Em

seguida casa-se com a Princesa da Pedra Fina (OV6) concluindo seu percurso.

O percurso do S1 se organiza nos seguintes programas auxiliares:

S1 OV1

(aventura) S1 OV2 (viajar) S1 OV3

(ajudar aos encantados) S1 OV4

(desencanta a princesa) S1 OV5

(planejar a morte dos irmãos) S1 OV6

(casar)

Page 105: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

104

Em Vb, o Sujeito Semiótico 1 (S1) é figurativizado por Joaquim. Seu percurso

apresenta dois momentos: aventura e perdão. No primeiro momento, ele viaja (OV2), supera

as dificuldades (OV3), arranja emprego para sobreviver (OV4) desencanta a princesa (OV5), e

casa-se com ela (OV6). No segundo momento, recebe a família (OV7), e perdoa os seus (OV8).

O percurso do S1 em Va:

AVENTURA PERDÃO

S1 OV1

(aventura) S1 OV2 S1 OV7

(viajar) (receber a família) S1 OV3 S1 OV8

(superar dificuldades) (perdoá-la) S1 OV4

(sobrevivência) S1 OV5

(desencantar a princesa) S1 OV6 (casar com ela)

O estado inicial do S1 caracteriza-se pela disjunção com seu Objeto de Valor e termina

conjunto com ele.

A seguinte frase-diagrama representa o estado de transformação (F) do S1:

F= [(S1 U OV) (S1 ∩ OV)]

O discurso do S1 se qualifica como persuasivo ao querer-ser aventureiro.

3.2.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2

O Sujeito Semiótico 2 (S2) é figurativizado em Va por João e José. Tem como Objeto

de Valor principal prejudicar o irmão. Seu Adjuvante é a malícia e seus Oponentes são as

forças sobrenaturais benignas e o rei. O S2 é modalizado por um querer-fazer mal ao irmão.

Como anti-Sujeito aparece Manoel.

Page 106: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

105

O programa principal do S2 pode ser:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (malícia)

S2 OV

(José e João) Oponente (prejudicar o irmão)

(forças sobrenaturais benignas)

Para prejudicar o irmão, o S2 viaja (OV2), tenta sobreviver (OV3) arranjando emprego,

encontra Manoel (OV4) e convence o rei (OV5) de que ele desencanta a princesa.

Os programas auxiliares do S2 se organizam da seguinte forma:

S2 OV1 (prejudicar o irmão) S2 OV2 (viajar) S2 OV3

(arranjar emprego) S2 OV4

(encontrar Manoel) S2 OV5

(convencer o rei)

Em Vb o Sujeito Semiótico 2 (S2) é figurativizado pelo irmão mais novo e o irmão do

meio. Tem como Objeto de Valor a felicidade. O comodismo é Oponente. É modalizado por

um querer-ser feliz.

O programa principal do S2 pode ser:

Dario Dor

(Desejo)

S2 OV

(irmão mais novo e o do meio) Oponente (felicidade)

(comodismo)

Page 107: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

106

O S2 para ser feliz casa (OV2).

O percurso do S2 se organiza da seguinte forma:

S2 OV1 (felicidade) S2 OV2 (casar)

O estado inicial do S2 caracteriza-se pela disjunção com seu Objeto e Valor e finaliza

disjunto, uma vez que não consegue o que deseja.

A frase-diagrama abaixo representa o estado de transformação (F) do S2:

F = [(S2 U OV) (S2 U OV)]

O discurso do S2 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer mal ao irmão em Va, e

ao querer-ser feliz em Vb.

3.2.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3

Figurativizado pelo pai o Sujeito Semiótico 3 (S3) é auto-motivado e deseja

permanecer pobre. Seu Objeto de Valor principal é a pobreza. O conformismo é seu

Adjuvante. Demonstrando um querer contrário ao S3, Manoel funciona como anti-Sujeito.

O programa principal do S3 pode ser representado no diagrama a seguir:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (conformismo)

S S3 OV

(Manoel (pai) (pobreza)

Conformado com a condição de ser pobre, o S3 ao ouvir expresso o desejo de Manoel

surra-o (OV2), demonstrando seu querer contrário.

Page 108: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

107

Com apenas um programa auxiliar, o percurso do S3 se organiza da seguinte forma:

S3 OV1

(pobreza) S3 OV2 (surrar o filho)

Em Vb, o S3 figurativizado pelo pai tem como Objeto de Valor principal a autoridade.

A condição de pai é seu Adjuvante. É modalizado por um querer-ser obedecido. O percurso

do S3 é dividido em dois momentos: No primeiro, o S3 ao ouvir o desejo do filho surra-o

(OV2). No segundo, viaja (OV3) em busca de Joaquim.

O percurso do S3 em Vb é:

S3 OV1

(autoridade) S3 OV2 OV3 (surrar o filho) (viajar)

O S3 começa seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor, mas termina conjunto com

ele.

A frase-diagrama que figura o estado de transformação (F) do S3 é:

F = [(S3 U OV) (S3 ∩ OV)]

O discurso do S3 se qualifica como persuasivo ao querer-ser pobre em Va, e ao querer-

ser obedecido em Vb.

3.2.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4

O Sujeito Semiótico 4 (S4) é figurativizado pela mãe dos rapazes e instaura-se na

narrativa por um querer-fazer o filho ser protegido (OV1). É destinada pelo amor. Tem como

Oponente o esposo que é também o anti-Sujeito. Funciona como Adjuvante do S4 a condição

de mãe.

O programa principal do S4 se estrutura da seguinte forma:

Page 109: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

108

Dario Dor

(Amor) Adjuvante (condição de mãe)

S S4 OV

(esposo) (Mãe) Oponente (proteger o filho)

(esposo)

Para proteger o filho, o S4 socorre-o no momento da surra (OV2), quer ficar junto dele

(OV3) e o abençoa (OV4) antes de ele viajar.

Os programas auxiliares do S4 podem ser assim representados:

S4 OV1

(proteção o filho) S4 OV2 (socorrê-lo) S4 OV3

(ficar junto dele) S4 OV4

(abençoá-lo)

Em Vb o S4 tem como Objeto de Valor a felicidade do filho. Instaura-se na narrativa

por um querer. É destinado pelo amor. O S4 tem como Oponente o esposo que é também o

anti-Sujeito. Funciona como Adjuvante do S4 a condição de mãe. O percurso do S4 apresenta

apenas um programa auxiliar cujo valor é viajar (OV2) em busca de Manoel.

S4 OV1

(felicidade dos filhos) S4 OV2 (viajar)

O S4 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.

O estado de transformação (F) do S4 é representado pela frase-diagrama:

Page 110: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

109

F = [(S4 U OV) (S4 ∩ OV)]

O discurso do S4 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o filho ser protegido em

Va e ao querer-fazer o filho feliz em Vb.

3.2.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5

Sob a figurativização de rei, o S5 se instaura na narrativa por um querer-fazer o

encanto da filha ser quebrado. Impulsionado pelo desejo é auto-destinador. Ajudando ao S5 a

realizar seu desejo, aparece Manoel e as forças sobrenaturais benignas que se caracterizam

como Adjuvantes. As forças sobrenaturais malignas funcionam como Oponentes.

No programa principal do S5, podemos vislumbrar:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (rapaz/ forças sobrenaturais benignas)

S5 OV

(Rei) Oponentes (liberdade da princesa)

(forças sobrenaturais malignas)

Para libertar a princesa, o S4 pede ajuda (OV2), encontra a pessoa adequada (OV3),

pune os irmãos de Manoel (OV4) e casa a princesa(OV5) com o rapaz que a libertou.

Os programas auxiliares do S8 se organizam da seguinte forma:

S5 OV1

(liberdade da princesa) S5 OV2 (pedir ajuda) S5 OV3

(encontrar a pessoa adequada) S5 OV4

(punir os irmãos de Manoel) S5 OV5

(casar a princesa)

Page 111: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

110

Em Vb o S5 apresenta como Objeto de Valor também a liberdade, mas agora com o

desencanto de todo reino. Além das forças sobrenaturais, também o auxiliam Joaquim e a

princesa. Diferentemente do S4 de Va, o S4 de Vb, só apresenta um programa auxiliar, cujo

valor é casar a princesa (OV2).

O percurso do S4 pode ser representado no gráfico:

S5 OV1

(desencanto de todo reino) S5 OV2 (casar a princesa)

O S5 começa disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.

O estado de transformação (F) pode ser representado pela frase-diagrama:

F= [(S5 U OV) (S5 ∩ OV)]

O S5 apresenta um discurso persuasivo ao querer-fazer o encanto ser quebrado.

3.2.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6

O Sujeito Semiótico 6 (S6), figurativizado pela princesa, se instaura na narrativa por

um querer-ser livre do encanto (OV1). Impulsionado pelo desejo, segue seu percurso ajudado

por Manoel e as forças sobrenaturais benignas - seus Adjuvantes. Seus Oponentes são as

forças sobrenaturais malignas.

O programa principal do S6 é:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (Manoel/forças sobrenaturais benignas)

S6 OV

(Princesa) Oponente (desencanto)

(forças sobrenaturais malignas)

Page 112: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

111

O S6 casa-se (OV2) com Manoel quando se encontra livre do encanto.

O percurso do S6 segue a ordem abaixo, exposta nos programas no esquema abaixo:

S6 OV1

(desencantar-se) S6 OV2 (casar)

Em Vb, o S6 tem como Objeto de Valor o desencanto de todo o reino. Além das forças

sobrenaturais benignas, Joaquim também se apresenta como Adjuvante. E como Oponente

somente as forças sobrenaturais malignas. Com um programa auxiliar a mais que o do S6 em

Va, seu percurso se organiza da seguinte forma:

S6 OV1

(desencantar-se) S6 OV2 (desencanto dos pais) S6 OV3 (casar) Inicialmente, o S6 estava disjunto do Objeto de Valor, mas termina conjunto com ele.

O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:

F= [(S6 U OV) (S6 ∩ OV)]

O discurso do S6 se qualifica como persuasivo ao querer-ser livre do encanto.

3.2.2.7 A propósito do Sujeito Semiótico 7

O Sujeito Semiótico 7 (S7) é figurativizado pelo cavalo e é exclusivo de Va. Tem como

Objeto de Valor principal ser o guia de Manoel. Instaura-se na narrativa por um querer-fazer.

É destinado pelas forças sobrenaturais benignas. Manoel é seu Adjuvante. A vida material é

seu Oponente, uma vez que precisa morrer para poder ajudar a Manoel.

Page 113: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

112

O programa principal do S7 se estrutura da seguinte forma:

Dario Dor

(forças sobrenaturais) Adjuvantes (Manoel)

S7 OV

(cavalo) Oponente (ser guia)

(vida material)

Para ser o guia de Manoel, precisava testar a bondade dele (OV2) para só depois

conduzi-lo à montanha (OV3).

Veja-se o diagrama dos programas auxiliares do S7:

S7 OV1

(ser guia) S7 OV2 (testar a bondade) S7 OV3 (conduzi-lo à montanha)

O S7 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.

O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:

F= [(S7 U OV) (S7 ∩ OV) ]

O discurso do S7 se qualifica como persuasivo ao querer-ser o ajudante do rapaz na

quebra do encanto.

3.2.2.8 A propósito do Sujeito Semiótico 8

O Sujeito Semiótico 8 (S8), figurativizado pela raposa, só aparece em Va. Tem como

Objeto de Valor principal receber e dar auxílio e se instaura na narrativa por um querer ajudar

Page 114: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

113

a Manoel. O saber é seu Adjuvante. Como seu Oponente aparece o cachorro que é também

seu anti-Sujeito.

O programa principal do S8 se estrutura da seguinte forma:

Dario Dor

(forças sobrenaturais benignas) Adjuvante (saber)

S S8 OV

(cachorro) (raposa) Oponente (auxílio)

(cachorro)

Para ajudar a Manoel, o S8 precisa testar a bondade dele (OV2) e punir os irmãos de

Manoel (OV3).

Veja-se o diagrama dos programas auxiliares do S8:

S8 OV1

(auxílio) S8 OV3 (testar a bondade) S8 OV4 (punir os irmãos)

O S8 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.

O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:

F= [(S8 U OV) (S8 ∩ OV)]

O discurso do S8 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer Manoel ser ajudado.

Page 115: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

114

3.2.2.9 A propósito do Sujeito Semiótico 9

Figurativizado pelo cachorro, o S9 é exclusivo de Va e se instaura na narrativa por um

querer-fazer a raposa morrer. Impulsionado pelo desejo de matar, o S9 é autodestinador.

Manoel funciona como Oponente. Tem como Adjuvante a maldade.

No programa principal do S9, pode ser vislumbrado:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (maldade)

S9 OV

(Cachorro) Oponente (morte da raposa)

(Manoel)

O S9 inicia disjunto do seu Objeto de Valor que é matar a raposa e termina disjunto.

A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação (F) do S9 é:

F= [(S9 U OV) (S9 U OV)]

O S9 apresenta um discurso persuasivo ao querer-fazer com que a raposa morra.

Page 116: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

115

3.2.2.10 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto Fernando o verdadeiro e Fernando o falso

Sujeito

Semiótico

Versões

Figurativização

Objeto de Valor

Destinador

Anti- Destinador

Anti-

Sujeito

Adjuvante

Oponente

Modalização

Va

Manoel

Aventuras

Desejo

Irmãos

Forças sobrenaturais

benignas

Irmãos Forças

sobrenaturais malignas

Querer-ser

S1

Vb

Joaquim

aventuras

Desejo

Irmãos Pai

Forças sobrenaturais

benignas

Forças sobrenaturais

malignas

Querer-ser

Va

José e João

Prejudicar (o irmão)

Desejo

Manoel

Malícia

Rei/ Forças sobrenaturais

Benignas

Querer-fazer

S2

Vb

Irmão mais novo e irmão do meio

Felicidade

Desejo

Joaquim

Comodismo

Forças sobrenaturais

Benignas

Querer-ser

Va

Pai

Pobreza

Desejo

Manoel

Conformismo

Querer-ser

S3

Vb

Pai

Autoridade

Desejo

Condição de pai

Querer-ser

Va

Mãe

Proteger o filho Amor

Esposo

Condição de mãe

Esposo

Querer-fazer

S4 Vb

Mãe

Felicidade do filho

Amor

Esposo

Condição de mãe

Pobreza

Querer-fazer

Va

Rei

Liberdade da filha

Desejo

Manoel/rei/ forças

sobrenaturais benignas

Forças sobrenaturais

malignas

Querer-fazer

S5

Vb

Rei

Desencanto

Desejo

Forças sobrenaturais

benignas/ Joaquim/ Princesa

Forças sobrenaturais

malignas

Querer-ser

Page 117: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

116

Va

Princesa

Desencanto

Desejo

Manoel Forças

sobrenaturais benignas

Forças

sobrenaturais Malignas

Querer-ser

S6

Vb

Princesa

Desencanto

Desejo

Joaquim Forças

sobrenaturais benignas

Forças

sobrenaturais malignas

Querer-ser

S7

Va

Cavalo

Guia

(de Manoel)

Forças Sobrenaturais

Benignas

Manoel Forças

sobrenaturais benignas

Vida material

Querer-fazer

S8 Va

Raposa

Auxílio

Forças

sobrenaturais benignas

Cachorro

Conhecimento

Cachorro

Querer-fazer

S9 Va

Cachorro

Morte (da raposa)

Desejo

Maldade

Manoel

Querer-fazer

Page 118: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

117

3.2.3 Estruturas Discursivas

3.2.3.1 Relações intersubjetivas

O processo de enunciação do conto em análise é re(construído) pela rememorização e

ideologia do seu (re)criador que, sob a voz de um enunciador coletivo, instaura interlocutores

em situações dialógicas para melhor representar o simulacro.

A narrativa apresenta um enunciador debreado da enunciação que se projeta apenas

por meio de um contar em Va e, embreado da enunciação quando deixa escapar a fala

interpelando diretamente o enunciatário em Vb.

“Era um pai de família que tinha três filhos: José, João e Manoel.” (Va)

“Ele andava prevenido – ouviu!”(Vb)

Por meio do discurso popular, onde emergem vivas as condições da existência humana,

o enunciador parece querer fundamentar a tese de que a projeção de sonhos e projetos,

conjugada com a determinação e a luta pela concretização, sem negar o espírito de

solidariedade àqueles que em seu caminho surgem necessitados, representa o universo de

valores que devem ser cultivados, a exemplo da esperança, paciência e persistência daqueles

que, carentes de realizações, desejam, além da sobrevivência, qualidade de vida, felicidade e

formação humana.

O enunciador projeta nove atores, dos quais a sete delega voz, objetivando, com isso,

dar veridicção à tese que quer fundamentar. Três atores recebem nomeação própria em Va:

José, João e Manoel, e apenas um em Vb: Joaquim. Todos, no entanto, são apontados também

pelos papéis temáticos: irmão, filho, esposo, mãe; animais (cavalo, raposa, cachorro), rei, pai;

princesa. Isto mostra a universalidade e tradicionalidade dos textos. Os nomes próprios

perderam-se no caminhar dos tempos. Os atores não nomeados por substantivos próprios,

além de lhes ser conferido um caráter impessoal, representam o universo aristocrático (rei e

princesa); o familiar (pai, esposo, filho, filha, mãe); e o universo animal (cavalo, raposa,

cachorro).

Os atores são projetados no texto por uma debreagem enunciva e uma debreagem

enunciativa. A primeira emerge pelo contar do enunciador:

Page 119: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

118

“O rei disse pra João e José:” (V a)

“[...] Às onze horas, o rapaz mais novo disse:”(Vb)

“O outro rapaz disse assim:”(Vb)

A segunda, quando o enunciador delega voz aos atores:

José

“– Ô João, Ô Manoel, se aqui agora chegasse um prato de feijão com côco, [...]”(Va)

Manoel e Joaquim são projetados na tecitura textual por uma debreagem enunciva e

uma debreagem enunciativa. A primeira projeção acontece pelo enunciar do enunciador.

“Manoel disse:” (Va)

“Joaquim, o mais velho, disse:” (Vb)

A segunda projeção acontece quando o enunciador delega voz a atores:

Raposa

“–Ô Manoel, quando você se ver no maior aperreio,[...]” (Va)

Rei

“– Agora, Joaquim, você vai se casar com minha filha.” (Vb)

Ao nomear os três irmãos em Va – José, João e Manoel/Joaquim, o enunciador focaliza

uma geração ascendente de uma dada camada social: que arraigam a cultura da sobrevivência

cotidiana, rotineira, pelo trabalho forçado e ganho pouco (José e João), ao mesmo tempo em

que rompe, pela figura de Manoel em Va e Joaquim em Vb, com o senso comum semeado pelo

Determinismo de Darwin, cujo slogan considera o homem como produto do meio.

Manoel/Joaquim representa a procura por uma realidade mais dinâmica, sendo protótipo dos

que desbravam caminhos novos, motivos que os direciona, não ao comodismo, e sim à

transformação e ao progresso. A saída deste do seio da família para aventurar-se pelo mundo

em busca de realizações, lembra o cavaleiro medieval, imbuído de valores cristãos, em busca

de formação humana, dispostos a defender até a morte a fé em Deus e a honra de sua dama.

Page 120: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

119

Na tradicional estrutura familiar, Manoel/Joaquim representa a desobediência, a “coisa

errada”, o que o leva a ser surrado por sonhar diferente, quebrar o convencional, ou seja,

sonhar com uma realidade da qual o pai não fizera parte (riqueza) e, portanto, acredita ser

inadequada ao filho.

“Foi lá dentro, puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel.” (Va)

“Quando ouviu aquilo, o pai tirou o cinturão e deu uma surra em Joaquim.”(Vb)

O enunciador ainda, na projeção dos irmãos, tende a ressaltar que o ócio, a mesmice e

a inveja são sentimentos negativos, uma vez que podem causar malefícios ao próximo. É

preciso dar bons frutos para ser considerado bom, em consonância com o pensamento bíblico

“E toda árvore que não der fruto bom será cortada e lançada ao fogo” (LUCAS, 3-9).

“[...] quando botaram fogo, foi um estopim tão grande que o menor pedaço deles dava

pra caber dentro de um dedal. Acabaram com a vida deles.” (Va)

Em Vb não acontece o extermínio dos irmãos. No entanto, eles devem buscar trabalho

para poder sustentar a família que, diferente do irmão, se prolonga pobre:

“E vocês dois vão trabalhar para se manterem [...]”(V b)

Em Vb, os irmãos do herói são designados por Fulano e Sicrano. Os nomes são

indeterminados porque as pessoas não agiram bem, não se encaixam nos valores apreciáveis

pelo povo e o enunciador não quis apontar quem foi. Ao contrário do ator focalizado como

modelo ideal, nas duas versões que recebe nomeação própria, (Manoel/Joaquim). Mesmo

revoltado com a surra e o preconceito sofrido, o rapaz não perde a sensibilidade para a

caridade e ajuda a um cavalo e a uma raposa que aparecem em seu caminho precisando de

auxílio. Estes são animais no modo do ser, mas no modo do parecer são personificação do

bem e introduzem no conto o caráter fabuloso dos discursos, pontuando os fatos para uma

irrealidade.

A bênção que recebe da mãe parece conduzir o filho por um enredo que, mesmo

caracterizado como ficção, firma uma verdade que sobrevive a gerações: a religiosidade. O

rapaz, mesmo com atitudes que refletem rebeldia, é revestido de valores positivos, uma vez

que luta pela concretização do seu sonho com dignidade e respeito ao outro, sendo, dessa

Page 121: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

120

forma, o exemplo a ser seguido e recebendo agradecimento, pela voz da princesa em Va e do

próprio rapaz em Vb.

“– Olha Manoel, só você me tirava daquele canto. Você desejou ver as pernas da

Moça da pedra Fina e hoje está se dando bem.” (Va)

“Desejar o que é bom, não o que é ruim.”(V b)

A mãe é projetada no texto por uma debreagem enunciva e uma debreagem

enunciativa. A debreagem enunciva acontece pelo enunciar do enunciador.

“A mãe acudiu e ele disse:” (Va)

“No outro dia Joaquim despediu-se da mãe e foi-se embora.”(Vb)

Na elocução direta, pela voz delegada ao filho que parte:

“– Ô mamãe, eu vou-me embora, não posso ficar aqui, vou-me embora.” (Va)

“– Bem meu pai e minha mãe vão morar num canto.” (Vb)

A mãe é a presença salvadora que suaviza o sofrimento do filho, entende seu desejo e

o apóia, embora sofra com sua decisão de partir. Intercede a Deus e a Virgem Maria por sua

segurança e entrega-o ao mundo, abençoando-o, na certeza de que seu pedido será atendido.

Do lado contrário, está a figura agressiva do pai que, num surto de violência e desamor, surra

o filho.

A projeção no enunciado do cavalo, caracteriza-se por uma debreagem enunciva. O

cavalo velho e sedento, mesmo alimentado, morre, renascendo forte e vigoroso a um pedido

de ajuda, sendo, portanto, um enunciatário textual de Manoel a quem retorna para ajudar. Esta

sublimação reforça a idéia da vida eterna num plano superior para os bons. O cachorro, ao

contrário, também projetado por uma debreagem enunciva, unicamente, pelo contar do

enunciador, apresenta-se como força do mal que persegue o bem.

“Quando mais na frente, estava um cachorro pegado com a raposa em tempo de

matar.” (Va)

Page 122: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

121

No conto estão presentes a três estruturas de dominação legítima: a política (legal), a

familiar (tradicional) e a religiosa (carismática).

Na projeção do rei, enquanto representante do povo e homem rico, emerge a estrutura

de dominação legal. É aquele que ocupa uma posição de poder apoiado na lei. Enquanto pai

da princesa e representante de uma família faz emergir a estrutura de dominação tradicional.

O rei é projetado por uma debreagem enunciva, no contar do enunciador e por uma

debreagem enunciativa na delegação de voz aos atores como, respectivamente, pode ser

comprovado nos exemplos que se seguem:

“O rei mandou chamar Manoel.” (Va)

“[...] abriu a porta, lá estava o rei sentado.”(Vb)

José

“– O senhor rei tem uma filha encantada nas montanhas [...]”(Va)

Joaquim

“– Rei meu senhor, o senhor quer que eu case com sua filha?”(Vb)

A Princesa da Pedra Fina que, embora projetada, desde o início, na tecitura textual,

quando desperta o desejo do jovem Manoel, mantém-se afastada pelo encantamento que, só

no final em Va, é quebrado. Em Vb acontece no meio da estória. A princesa é o prêmio pelas

boas ações do herói que a desencanta. Sai do jugo paterno para o do esposo, quando casa com

o rapaz. O enunciador projeta-a no discurso por uma debreagem enunciva no seu próprio

contar e por uma debreagem enunciativa pelo falar dos atores. O primeiro caso pode-se

comprovar com:

“ O rei fez o casamento com a Moça da Pedra Fina.” (Va)

“[...] estava aquela princesa sentada.”(Vb)

Para o segundo caso, vejam-se os fragmentos:

Manoel

“– Vá com essa conversa pro inferno! Eu, o que desejava era ver as pernas da

Princesa da Pedra Fina.” (Va)

Page 123: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

122

Princesa

“– Olha Manoel, só você me tirava daquele canto. Você desejou ver as pernas da

Moça da pedra Fina e hoje está se dando bem.” (Va)

O sistema temporal das versões A Princesa da Pedra Fina e Princesa da Pedra Fina

divide-se em tempo da enunciação, que é o presente de quem fala e o tempo do enunciado que

remete aos fatos narrados e engendra a enunciação a partir de referências existentes no

enunciado.

Os programas narrativos ancoram-se em tempos desordenados em relação ao tempo da

enunciação, haja vista um deslocamento dos fatos da narrativa para um alhures distante de um

agora pelo contar. Predomina no discurso, o pretérito perfeito e ocorrências menores do

pretérito imperfeito, em que o primeiro remete aos acontecimentos que se desenrolam para a

existência de uma trama realizada no passado e o segundo indica incompletude das ações que

se encontram em processo a partir de um passado não definido.

O primeiro momento se refere ao tempo em que aconteceram os fatos da história da

Princesa e do rapaz incumbido de desencantá-la. Em seguida, o enunciador recupera esse

passado, colocando os fatos no presente da enunciação. Logo depois, retorna ao passado onde

a história da Princesa e do rapaz é recolocada.

Confluindo concomitantemente com a natureza de conto, o início “Era um pai de

família [...]” em Va, “[...] estavam no roçado o pai com três filhos.” em Vb, indica uma

indefinição temporal pelo imperfeito inicial, tempo durativo, não-acabado. Além disso, o

discurso projeta a idéia de possibilidade: essa família, colocada num tempo indeterminado

pode ser qualquer uma, em qualquer tempo. Esse tempo recai sobre a condição sócio-

econômica da família.

“Eles viviam trabalhando, aperreados.” (Va)

Passado

Presente

Passado

História da Princesa da Pedra

Fina

Recuperação dos fatos pelo

enunciador

História da Princesa da Pedra

Fina

Page 124: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

123

Outro aspecto embutido nesse tempo, quando contemplado ao lado do gerúndio

trabalhando, é a indicação de uma existência contínua sem alterações, viviam aperreados

sempre, embora trabalhassem, idéia que é quebrada com a presença do pretérito perfeito.

“Ele saiu, saiu, saiu [...]” (V a)

“Saiu, saiu pelo mundo a andar.” (Vb)

A ação de sair no passado perfeito indica um rompimento com o viviam. A repetição

opera a ênfase à mudança. Saiu do aperreio, saiu do meio familiar, saiu do só imaginar: a

continuidade foi interrompida em virtude do novo.

Ao projetar atores em circunstâncias dialógicas, o enunciador permite elocuções

diretas, ou seja, debreagens enunciativas de segundo grau para um efeito de verdade,

testemunhando o fato com falas que se instauram no presente, numa tentativa de retorno à

enunciação.

“– Não vá não meu filho. (Va)

“– Vou mamãe, abençoe-me mamãe que eu vou embora.” (Va)

“– Eu não vou comer não. E amanhã eu vou-me embora.” (Vb)

O tempo do enunciado remete a uma cronologia que focaliza a saída de Manoel e de

Joaquim do suposto campo onde vivia com a família; o caminhar vivendo experiências e em

busca de realizações; a chegada e a permanência no reinado da Princesa da Pedra Fina até o

desencanto ser efetivado.

“– Ô mamãe, eu vou-me embora [...]”(V a)

“Ele saiu, saiu, saiu... quando chegou na frente [...]”(Va)

“Quando mais na frente [...]”(V a)

“Ele saiu rua a fora e lá vai, lá vai... Quando chegou na frente avistou um reinado

muito grande, aí tomou chegada [...]”(V a)

“[...] foi-se embora.”(V b)

“Saiu, saiu pelo mundo a andar.”(Vb)

“Muito na frente chegou num lugar que nem um arruado [...]” (Vb)

Page 125: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

124

Em Vb, Joaquim vive nova saída: sai do jardim, onde trabalhou e vai à montanha onde

a princesa está aprisionada.

“Ele saiu rua à fora e lá vai, lá vai [...]”

Partindo do pressuposto de que o enunciado é construído a partir de uma seqüência de

enunciações, uma vez que se trata de uma autoria coletiva, característica dos discursos

etnoliterários, o conto carrega, pois, de épocas pelas quais passou, de espaços e vozes várias,

valores sócio-culturais que são rememorizados em cada enunciação, sobrevivendo a gerações.

Na espacialização do conto, o enunciador se projeta num aqui implícito no seu

contrário lá, passível de percepção nos fragmentos que se seguem.

“Foi lá dentro, puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel.” (Va)

“Quando chegou lá que o rei deu fé [...]”(Va)

“Entrou naquela loca, ficou lá: [...]”(V b)

Percebendo por esse viés, pode-se intuir que o enunciador no aqui de um contar,

recupera mnemonicamente fatos fixados num lá do passado, construindo um novo espaço que

é o do enunciado. Observe-se essa seqüência temporal no quadro:

O espaço conferido pelo enunciador aos interlocutores é colocado, através de um

contar, num lá, cuja figurativização pode ser vislumbrada nas expressões abaixo. Tem-se uma

colocação espacial dos actantes num passado, confluindo com a temporalização já extraída.

“Chegaram debaixo de um pé de juazeiro e foram prosar.” (Va)

“[...] estava um cavalo velho encostado num cacimbão.” (Va)

“Quando chegou mais na frente avistou um reinado muito grande.” (Va)

“É que a princesa vivia encantada nas montanhas.” (Va)

“[...] Manoel estava muito longe da cidade.” (Va)

“Olhe, estava no roçado o pai com os três filhos.”(Vb)

Memória

Contar do enunciador

(enunciação)

Espaço lingüístico

(enunciado) Lá Aqui Lá

Page 126: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

125

“[...] chegou assim num lugar quem nem um arruado [...] uma loca debaixo de uma

pedra [...]”(V b)

Em Vb, quando Joaquim chega ao arruado, vive uma seqüência de horas e dias,

expressas nas locuções:

“Vou passar a noite aqui[...]”

“De tardezinha [...]”

“No outro dia [...]”

“No terceiro dia [...]”

Nessa abordagem, a espacialização adquire uma organização que se projeta na

predominância temporal do conto, que é o pretérito, mas pressuposto no aqui da enunciação

na projeção dos interlocutores.

“– Ô, João, Ô Manoel, se aqui agora chegasse [...]” (Va)

“– Cate aqui um piolhinho em mim.” (Vb)

Manoel/Joaquim rompe com a tradição da família e é colocado no meta-espaço campo,

cujos semas caracterizadores são juazeiro, cacimbão em Va, roçado e loca de pedra em Vb.

Esses espaços dão a idéia de que o campo é lugar da prisão, estático, onde há limites sócio-

econômicos e culturais em oposição à cidade onde existe a liberdade de descobertas, fartura e

a mulher amada. No entanto, é nesse ambiente de difícil sobrevivência que o herói aprende a

superar as dificuldades.

“Ele foi para o banheiro tomar banho – tinha sabonete, uma toalha bonita! Joaquim

tomou banho e veio pra mesa – a mesa estava repleta de um tudo. Ele comeu à

vontade.” (Vb)

Nas duas versões, o rapaz destinado a quebrar o encanto não estava preparado para

casar, por isso precisou viver a experiência de trabalhar para desencantar a princesa, como

exercício experimental da paciência, persistência e, acima de tudo, de bondade. Assim, é

retirado de um espaço natural pé de juazeiro, cacimbão, roçado, loca de pedra para um

espaço, onde figura o sonho, palácio encantado, mas que ele consegue desencantar

Page 127: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

126

transformando-o em cidade. É, segundo o enunciador, melhor que o campo, mas, para atingi-

lo, é preciso acreditar que ele exista.

A princesa, encantada nas montanhas, vigiada por uma serpente em Va, e presa num

espaço convertido numa loca de pedra em Vb, aprendia a resistir à tentação e à renúncia. Só

depois do aprendizado, seria possível ser desencantada por quem também havia aprendido. A

experiência iria prepará-la para o amadurecimento. É lá, no reinado que se efetivam as

mudanças tão desejadas pelo rapaz.

3.2.3.2 Temas e figuras

No conto, os temas e figuras remetem a fatos, ora fictícios, ora verossímeis, que

rememorizam o imaginário fantástico da cultura de um povo.

O tema opressão aparece vinculado à família, ao poder estatal e a situação sócio-

econômica. No agir do pai de Manoel/Joaquim que surra o filho, comparando-se a um animal

dada a agressividade com que realiza a ação, encontra-se a dominação familiar. Além dessa, a

família vivia numa situação de opressão financeira que se mostrava em contínua carência, a

situação da princesa em Va e de toda a realeza em Vb, oprimidos pela prisão do encanto e a

dominação política em Va que castiga os irmãos de Manoel. As figuras que remetem a este

tema podem ser encontradas nas expressões:

“Eles viviam trabalhando, aperreados.” (Va)

“[...] puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel.” (Va)

“É que a princesa vivia encantada nas montanhas.” (Va)

“Joaquim faz cem anos que eu vivo nesse encanto. Eu, meu pai e minha mãe.” (Vb)

Em oposição à opressão, flui o tema liberdade, intuído por Manoel/Joaquim quando

ousa expressar seu desejo de fazer outras atividades, sair da mesmice, e realizar as

experiências que o tornarão maduro para vida, quando decide ir embora. As figuras

correspondentes ao tema liberdade podem ser vislumbradas nas expressões:

“[...] Eu, o que desejava ver era as pernas da Princesa da Pedra Fina.” (Va)

“[...] eu vou-me embora.” (Va)

Page 128: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

127

“[...] e soltou a raposa.” (Va)

“– Eu, para matar a fome, bastava deitar no colo da Princesa da Pedra Fina.” (Vb)

“– Eu não quero comer não. E amanhã eu vou-me embora pelo mundo.” (Vb)

“[...] Não foi você que desencantou minha filha, eu e a rainha? Só posso dar você para

casar com minha filha.” (Vb)

Livre, o rapaz busca a felicidade no casamento com a princesa, desejo que

inicialmente foi reprimido pelo pai. Na busca pela felicidade, faz felizes os demais que por ele

são ajudados. Nestes fatos, o conto reafirma o valor dos sentimentos maiores, sentimentos que

promovem o bem.

“[...] o rei deu fé da filha, foi uma festa muito grande.” (Va)

“[...] Você desejou ver as pernas da Moça da Pedra Fina e hoje está se dando bem.”

(Va)

“Fizeram o casamento – muita festa, muita alegria.”(V b)

A caridade é um tema fluente, especialmente nas passagens em que o rapaz auxilia o

cavalo e uma raposa em Va, esta, agradecida, retribui, dispondo-se a ajudá-lo, recuperando o

“Daí e vos será dado” (LUCAS, 6,38).

“– Vá meu filho! Que Deus e a Virgem Maria sigam seus passos.” (Va)

Na bênção dada ao filho pela mãe, emerge o tema religiosidade, a que está conectado

o tema caridade antes referido. É costume, nas famílias, os filhos pedirem a bênção aos pais

quando vão sair de casa para uma viagem seja ela, curta ou longa, como fez o rapaz, e serem

abençoados, com rogativas a divindades. Sabe-se também que é bíblica, a idéia de que a mãe

é a referência a Virgem Maria, mãe de Jesus, intercessora dos filhos. A mulher de “coração”

brando e mansidão de atitudes também corrobora a idéia sociocultural do feminino, contrária

às atitudes masculinas, onde se faz espelho a do pai, imprudente e violento, surrando o filho.

Em Vb, depois de tudo, o filho pede a bênção ao pai e a mãe, perdoando o pai pelo que fizera.

Page 129: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

128

3.2.3.3 Leituras temáticas

As isotopias no decorrer da narrativa permitem as seguintes leituras temáticas:

Primeira leitura

A formação humana é adquirida pela experiência.

Segunda leitura

É preciso respeitar as diferenças.

Terceira leitura

A caridade é um atributo do homem bom.

Quarta leitura

A riqueza traz conforto.

Quinta leitura

O bem sobrepõe o mal.

Sexta leitura

Quem cultiva o comodismo vive limitado.

Sétima leitura

A mãe é intercessora dos filhos.

3.2.4 Estrutural Fundamental

Este nível está centrado nas relações de oposição ou de “diferença” entre dois termos,

no interior de um mesmo eixo semântico, uma vez que o conto Fernando o verdadeiro e

Fernando o falso não representa apenas diferenças puras.

Page 130: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

129

A tensão dialética que predomina ocorre entre bem versus mal, indicando as relações

de poder entre as forças sobrenaturais do bem e as forças sobrenaturais do mal.

O bem que implica não-mal faz emergir a liberdade. Manoel/rapaz pobre, ajudado

pelas forças sobrenaturais benignas, liberta a realeza (rei, rainha e princesa) da letargia do

encanto em Va e impede a morte da moça em Vb.

A relação de implicação entre mal e não-bem faz emergir a prisão. As forças

sobrenaturais malignas encantam o rei, a rainha e a princesa em Va e armam ciladas para

matar a moça rica em Vb, como tentativa de aprisioná-las.

As relações tímicas que se estabelecem entre bem versus mal permitem a ordem a

seguir:

Para Manoel/Joaquim, rei, rainha, princesa e as forças sobrenaturais benignas:

bem liberdade não-mal

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

mal prisão não-vida

(disfórico) (disfórica) (disfórica)

Para as forças sobrenaturais malignas:

bem liberdade não-mal

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

mal prisão não-vida

(eufórico) (eufórica) (eufórica)

Observe-se esse conflito no octógono semiótico:

Page 131: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

130

O conto apresenta sob a face do maravilhoso entes representativos das forças

sobrenaturais que permitem uma tensão dialética ser versus parecer.

Ser implica não-parecer, fazendo emergir o segredo. No modo do ser estão as forças

sobrenaturais que mantêm sua identidade em segredo. O mesmo acontece com o palácio que

se apresenta sob a forma de uma loca de pedra.

Parecer e não-ser geram a mentira. Colocados no modo do parecer, projetam-se o

cavalo, a raposa, a serpente e a loca de pedra. A imagem sob a qual se apresentam é uma

mentira.

As relações tímicas que surgem a partir da tensão ser versus parecer permitem os

seguintes percursos:

Para as forças sobrenaturais e o palácio:

ser segredo não-parecer

(eufórico) (eufórico) (eufórico)

Tensão dialética

bem

não-mal

mal

não-bem

liberdade prisão

0

Page 132: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

131

parecer mentira não-ser

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

Para o cavalo, a raposa, a serpente e a loca de pedra:

parecer mentira não-ser

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

ser segredo não-parecer

(disfórico) (disfórico) (disfórico)

Essa tensão operacionalizada no octógono oferece uma visão mais precisa:

Tensão dialética

ser

não-parecer

parecer

não-ser

segredo mentira

0

Page 133: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

132

Outra tensão dialética que se pode conceber da narrativa é entre os opostos riqueza

versus pobreza, cujo ponto de encontro é a sociedade. Este conflito traz á tona as relações

sócio-econômicas de desigualdade que caracterizam secularmente a humanidade. A riqueza

da minoria sobrepõe a pobreza da maioria pela qualidade de vida que a caracteriza.

A relação de implicação entre riqueza e não-pobreza faz emergir a fartura. O palácio,

ambiente real, em que figuram o rei e a princesa, é caracterizado pela fartura.

Manoel/Joaquim movido pelo desejo de mudança, caminha da pobreza para não-pobreza,

atingindo seu alvo que é a riqueza.

A pobreza sem a riqueza implica a necessidade. Essa era a característica da forma de

viver da família de Manoel/Joaquim.

Assim, as categorias tímicas que se estabelecem entre riqueza versus pobreza,

permitem observar:

Para Manoel/Joaquim, a princesa e rei:

Riqueza fartura não-pobreza

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

Pobreza necessidade não-riqueza

(disfórica) (disfórica) (disfórica)

Para a família de Manoel/Joaquim:

Riqueza fartura não-pobreza

(disfórica) (disfórica) (disfórica)

Pobreza necessidade não-riqueza

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

Page 134: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

133

Através do octógono a visualização desse conflito se torna mais precisa:

Tensão Dialética

sociedade

pobreza

necessidade

riqueza

rapaz

fartura

não-riquezanão-pobreza

Page 135: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

134

3.3 A MAIS BONITA

3.3.1 Organização textual das versões analisadas e segmentação

As versões foram codificadas conforme se seguem:

Va – O filho do rico e o filho do pobre: contado por Maria Porcina de Brito, natural de catolé

do Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da Paraíba,

p.19-21, publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade Federal

da Paraíba.

Vb – O compadre rico e o compadre pobre: contado por Antonio Medeiros da Silva, natural de

catolé do Rocha, coletado e organizado por Myriam Gurgel Maia, Contos Populares da

Paraíba, p.15-18 publicado em 1995, na capital do Estado – João Pessoa, pela Universidade

Federal da Paraíba.

Mesmo apresentando divergências quanto à organização segmental, o conto se

caracteriza como popular pelas alterações que lhe conferem uma autoria coletiva. Observem-

se os segmentos a seguir:

Sg 1 Conversa entre os compadres: o rico e o pobre

Sg 2 Decisão de mandar os filhos viajarem pelo mundo

Sg 3 Partida dos filhos

Sg 4 Decisão do filho do pobre de seguir por uma vereda

Sg 5 Separação dos rapazes

Sg 6 Chegada do filho rico a um palácio

Sg 7 Derrota do filho do rico sobre os testes pelos quais passou

Sg 8 Decepção da princesa

Sg 9 Decepção do pai da moça

Sg 10 Prisão do filho do rico

Sg 11 Chegada do filho do pobre ao palácio

Sg 12 Vitória do filho do pobre sobre os testes pelos quais passou

Page 136: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

135

Sg 13 Decisão do pai de que o filho do pobre casaria com a filha dele.

Sg 14 Casamento do filho do pobre com a princesa

Sg. 15 Passeio do casal e encontro com o filho do rico preso

Sg. 16 Liberdade do filho do rico

Sg. 17 Cuidados com o filho do rico

Sg. 18 Chegada dos rapazes e a princesa à casa dos pais deles

Sg. 19 Tributo ao SABER pelo filho do rico

Sg. 20 Desgosto e suicídio dos pais do rico

Sg. 21 Decisão do filho do rico de que vai estudar

Sg. 22 Felicidade na casa do compadre pobre

Sg 23 Ida de o compadre pobre morar com o filho

QUADRO I - Sistematização mais nítida dos segmentos estudados:

Versões Segmentos

Va Vb

Sg1 X X Sg2 X X Sg3 X X Sg4 X Sg5 X X Sg6 X X Sg7 X X Sg8 X Sg9 X Sg10 X X Sg11 X X Sg12 X X Sg13 X Sg14 X X Sg15 X X Sg16 X X Sg17 X X Sg18 X X Sg19 X Sg20 X X Sg21 X Sg22 X Sg23 X Total 19 19

Page 137: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

136

Percebe-se a partir da organização acima, uma igualdade na quantidade de segmentos,

no entanto, nenhuma das versões apresenta a totalidade dos segmentos, dado o caráter

coletivo da autoria que ora adiciona, ora retira elementos.

De um total de vinte e três segmentos, ambas as versões Va e Vb apresentam dezenove.

Colocando-se na ordem decrescente tem-se:

QUADRO II – Identificação dos segmentos por versões

(em ordem decrescente)

Identificação dos

segmentos

Versões Em que aparece

Sg23 01 Sg22 01 Sg21 01 Sg20 02 Sg19 01 Sg18 02 Sg17 02 Sg16 02 Sg15 02 Sg14 02 Sg13 01 Sg12 02 Sg11 02 Sg10 02 Sg9 01 Sg8 01 Sg7 02 Sg6 02 Sg5 02 Sg4 01

3.3.2 Estruturas Narrativas

3.3.2.1 A propósito do Sujeito Semiótico 1

Figurativizado pelo rico, o Sujeito Semiótico 1 (S1) almeja como Objeto de Valor

principal a riqueza e se instaura na narrativa pela modalização de querer-fazer o filho

Page 138: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

137

valorizá-la. Tem como Adjuvante o filho e como Oponentes o compadre pobre e o filho.

Destinado pela própria insensatez, o S1 tem como anti-Destinador a sensatez do compadre

pobre e como anti-Sujeito o compadre pobre que deseja o objeto oposto.

O programa principal do S1 é:

Dario Dor Dor

(Insensatez) (Sensatez) Adjuvante (O próprio filho)

S S1 OV

(compadre (compadre Oponente (riqueza)

Pobre) rico) (compadre pobre e o filho do pobre)

Para valorizar a riqueza, o S1 destina o filho a viajar (OV2). O filho volta pobre, a pé

com a maca nas costas. Decepcionado, o S1 decide morrer (OV3).

Vejam-se os programas auxiliares do S1:

S1 OV (riqueza) S1 OV2 (viagem do filho) S1 OV3

(morte)

O S1 começa conjunto com seu Objeto de Valor e termina disjunto do mesmo.

Veja a frase-diagrama que representa o estado de transformação (F) do S1:

F = [(S1 ∩ OV) (S1 U OV)]

O discurso do S1 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer a riqueza ser valorizada.

Em Vb, o S1 apresenta valores iguais, não constando nenhuma alteração em seu

percurso.

Page 139: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

138

3.3.2.2 A propósito do Sujeito Semiótico 2

O Sujeito Semiótico 2 (S2) assume o revestimento figurativo do compadre pobre e é

motivado pela sensatez ao querer ter a sabedoria para si e para o filho (OV1). A sabedoria que

o auxilia, funciona como Adjuvante. Como Oponente aparece o compadre rico. Seu anti-

Destinador é a insensatez do compadre rico e o anti-Sujeito o compadre rico que deseja o

objeto oposto.

O programa principal do S2 se organiza da seguinte forma:

Dario Dor Dor

(Sensatez) (Insensatez) Adjuvante (Sabedoria)

S S2 OV

(compadre (compadre Oponente (Sabedoria)

Rico) pobre) (compadre rico e o filho)

Para valorizar a sabedoria o S2 decide mandar o filho viajar (OV2) pelo mundo, a fim

de comprovar este fato. Quando o filho volta, depois de muito tempo, o S2 recebe-o (OV3)

com alegria. Em seguida, vai morar com o filho (OV4).

O percurso do S2 pode ser vislumbrado nos seguintes programas:

S2 OV (Sabedoria) S2 OV2 (viagem do filho) S2 OV3

(recebê-lo) S2 OV4 (morar com ele)

O S2 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de valor e finaliza conjunto com o

mesmo.

A frase-diagrama que pode representar o estado de transformação(F) é:

Page 140: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

139

F = [(S2 U OV) (S2 ∩ OV)]

O discurso do S2 se qualifica como persuasivo ao querer-fazer o conhecimento ser

valorizado.

Em Vb, o S2 apresenta os mesmos valores que o S2 de Va, no entanto, o percurso

finaliza com uma festa em sua casa ao receber o filho que volta vitorioso.

3.3.2.3 A propósito do Sujeito Semiótico 3

O Sujeito Semiótico 3 (S3) na figura do filho do rico, instaura-se na narrativa pela

modalidade do dever (fazer) comprovar que a riqueza é mais importante que a sabedoria

(OV1). O S3 é destinado pelo pai (compadre rico). Tem como Oponente a ignorância e a tolice,

uma vez que não dispõe de conhecimento de mundo necessário para viver sozinho. Seu anti-

Destinador é o compadre pobre e o anti-Sujeito é o filho do pobre.

Observe-se o programa principal do o S3:

Dario Dor Dor

(compadre rico) (compadre

Adjuvante pobre)

S S3 (riqueza) OV

(filho (filho do rico) Oponente (riqueza)

do pobre) (Ignorância/tolice)

O percurso do S3 divide-se em dois momentos: experiência e retorno. No primeiro

momento, viaja (OV2), gasta seus bens (OV3), tenta manter-se (OV4) e, durante um passeio

que faz com a princesa, elogia uma planta (OV5). De volta à casa da princesa, é preso, mas é

libertado (OV6) pelo filho do pobre. No segundo momento, regressa à casa do pai (OV7),

expressa tributo ao saber (OV8) e resolve formar-se doutor (OV9).

Page 141: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

140

Vejam-se os programas auxiliares do percurso do S3:

EXPERIÊNCIA RETORNO

S3 OV1

(riqueza) S3 OV2 S1 OV7 (viajar) (voltar à casa dos pais) S3 OV3 S1 OV8

(gastar os bens) (tributo ao saber) S3 OV4 S1 OV9

(tentar manter-se) (formatura) S3 OV5

(elogiar uma planta) S3 OV6

(libertar-se)

O S3 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina disjunto.

O estado de transformação (F) é representado pela frase-diagrama:

F = [(S3 U OV) (S3 U OV)]

O discurso do S3 se qualifica como persuasivo ao dever-fazer o que o pai determina.

Em Vb, o S3 apresenta os mesmos valores que o S3 de Va, excetuando o OV3, o OV8 e o

OV9.

3.3.2.4 A propósito do Sujeito Semiótico 4

O Sujeito Semiótico 4 (S4) recebe o revestimento figurativo de o filho do pobre e

instaura-se na narrativa por um dever-fazer a sabedoria (OV1) ser valorizada. Tem como

Destinador o pai. Como Adjuvante aparece a esperteza e o conhecimento que o auxiliam

durante a viagem. O Oponente é a pobreza. O compadre rico funciona como anti-Destinador e

o filho do rico como anti-Sujeito.

O programa principal a seguir sintetiza o que foi dito.

Page 142: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

141

Dario Dor Dor

(compadre (compadre Adjuvante pobre) rico) (Conhecimento/esperteza)

S S4 OV

(filho (filho do pobre) Oponente (valorizar a sabedoria)

do rico) (Pobreza)

Para comprovar o valor da sabedoria, o S4 viaja (OV2), serve ao Cururu (OV3),

mantém bons relacionamentos (OV4) e mostra conhecimento (OV5). Um dia, passeando, viu o

amigo preso e liberta-o (OV6). Volta à casa dos pais para pedir a bênção (OV7) e leva a

família para morar com ele (OV8).

Vejam-se os programas auxiliares do percurso do S4:

S4 OV (valorizar a sabedoria) S4 OV2 (servir) S4 OV3

(bons relacionamentos) S4 OV4

(mostrar conhecimento) S4 OV5

(libertar o amigo) S4 OV6

(pedir a bênção aos pais) S4 OV7

(cuidar da família)

Em Vb, o S4, figurativizado pelo filho do pobre, apresenta os mesmos valores que o S4

de Va, com exceção do OV7 (cuidar da família).

O S4 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele,

uma vez que realizou com sucesso o que o pai desejava.

A frase-diagrama a seguir pode representar o estado de transformação (F) do S4:

F = [(S4U OV) (S4∩ OV)]

O discurso do S4 se qualifica como persuasivo ao dever-fazer a sabedoria ser

valorizada.

Page 143: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

142

3.3.2.5 A propósito do Sujeito Semiótico 5

O Sujeito Semiótico 5 (S5), sob o revestimento figurativo de Cururu, é destinado pelo

querer-ser livre do encanto (OV1). O filho do pobre e a princesa funcionam como Adjuvantes,

enquanto que o filho do rico como Oponente.

O programa principal do S5 é:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (filho do pobre/ Princesa)

S5 OV

(Cururu) Oponente (desencantar-se)

(filho do rico)

Para desencantar-se, o S5 precisa casar a filha (OV2) com o rapaz que tenha

conhecimento.

Observe-se o percurso do S5 no esquema a seguir:

S5 OV (desencantar-se) S5 OV2 (Casar a filha)

Diferentemente de Va, em Vb, o S5 aparece sob o revestimento figurativo de pai da

moça e, por não estar encantado, inicia seu percurso tendo como Objeto de Valor principal o

casamento da filha. Seu percurso apresenta dois momentos: no primeiro, recebe o filho do

rico (OV2), coloca-o sob testes (OV3) e por este não conseguir êxito, prende-o (OV4). No

segundo momento, depois de algum tempo, recebe o filho do pobre (OV5), coloca-o sob testes

(OV6) e escolhe-o para a filha (OV7).

Veja-se o esquema do percurso do S5:

Page 144: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

143

S5 OV1

(casamento da filha) S5 OV2 S5 OV5 (receber o filho do rico) (receber o filho do pobre) S5 OV3 S5 OV6

(colocá-lo sob testes) (colocá-lo sob testes) S5 OV4 S5 OV7

(prendê-lo) (escolhê-lo)

O S5 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor, terminando conjunto com ele.

A frase-diagrama que representa o estado de transformação (F) do S5 é:

F = [(S5 U OV) (S5 ∩ OV)]

O discurso do S5 é persuasivo ao querer-fazer o casamento da filha em Va, e ao querer-

ser livre do encanto em Vb.

3.3.2.6 A propósito do Sujeito Semiótico 6

O Sujeito Semiótico 6 (S6) aparece sob o revestimento figurativo de princesa e se

instaura na narrativa por um querer casar-se. Auxiliando em seu objetivo, aparece o filho do

pobre, que funciona como Adjuvante. Como Oponente, aparecem o filho do rico e o encanto

do pai.

No programa principal do S6, pode ser vislumbrado:

Dario Dor

(Desejo) Adjuvante (filho do pobre)

S6 OV

(Princesa) Oponentes (casamento)

(filho do rico/ encanto do pai)

Page 145: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

144

O percurso do S6 divide-se em dois momentos: busca e realização. No primeiro

momento, tenta libertar o pai (OV2) que está encantado em Cururu. Na tentativa de libertá-lo,

recebe o filho do rico (OV3), coloca-o sob testes (OV4). Não encontrando nele os atributos

necessários, prende-o (OV5). No segundo momento, recebe o filho do pobre (OV6), coloca-o

sob testes semelhantes (OV7) ao do rico, liberta o pai (OV8) e escolhe-o como esposo (OV9).

Veja-se o percurso do S6 sintetizado pelos programas auxiliares:

BUSCA REALIZAÇÃO

S6 OV1

(casamento) S6 OV2 S6 OV6 (tenta libertar o pai) (receber o filho do pobre) S6 OV3 S6 OV7

(receber o filho do rico) (colocá-lo sob testes) S6 OV4 S6 OV8

(colocá-lo sob testes) (liberta o pai) S6 OV5 S6 OV9

(prendê-lo) (escolhe o filho do pobre)

Em Vb, o Sujeito Semiótico 6 (S6) é figurativizado pela moça e apresenta um percurso

consideravelmente mais curto que em Va, pois não precisa libertar o pai. Este já se encontra

desencantado. Assim, para conseguir seu Objeto de Valor principal, deseja encontrar o

homem certo (OV2).

Com apenas um programa auxiliar, o percurso do S6 fica:

S6 OV (casar) S6 OV2

(encontrar o homem certo)

O S6 inicia seu percurso disjunto do seu Objeto de Valor e termina conjunto com ele.

A frase-diagrama abaixo representa o estado de transformação do S6:

F = [(S6 U OV) (S6 ∩ OV)]

O discurso do S6 é persuasivo ao querer-fazer o encanto do pai ser quebrado em Va e

ao querer-ser casada em Vb.

Page 146: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

145

3.3.2.7 Quadro – Resumo das Estruturas Narrativas do conto A Mais Bonita

Sujeito

Semiótico

Versões

Figurativização

Objeto de Valor

Destinador

Anti-

Destinador

Anti-

Sujeito

Adjuvante

Oponente

Modalização

Va

Compadre rico

Riqueza

Insensatez

Sensatez

Compadre pobre

O próprio filho

Compadre pobre e

o filho

Querer—fazer

S1

Vb

Compadre rico

Riqueza

Insensatez

Sensatez

Compadre pobre

O próprio filho

Compadre pobre e

o filho

Querer—fazer

Va

Compadre pobre

Sabedoria

Sensatez

Insensatez

Compadre rico

Sabedoria

Compadre rico e o

filho

Querer-fazer

S2

Vb

Compadre pobre

Sabedoria

Sensatez

Insensatez

Compadre rico

Sabedoria

Compadre rico e o

filho

Querer-fazer

Va

Filho do rico

Riqueza

Pai

Compadre pobre

Filho do pobre

Riqueza

Tolice/

Ignorância

Dever-fazer

S3

Vb

Filho do rico

Riqueza

Pai

Compadre pobre

Filho do pobre

Riqueza

Tolice/

Ignorância

Dever-fazer

Va

Filho do pobre

Sabedoria

Pai

Compadre rico

Filho do rico

Esperteza/

Conhecimento

Pobreza

Dever-fazer

S4 Vb

Filho do pobre

Sabedoria

Pai

Compadre rico

Filho do rico

Esperteza/

Conhecimento

Pobreza

Dever-fazer

Va

Cururu

Desencanto

Desejo

Filho do pobre/

Princesa

Filho do rico

Querer-ser

S5

Vb

Rei

Casamento (da filha)

Desejo

Filho do pobre

Sabedoria

Filho do rico

Querer-fazer

Page 147: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

146

Va

Princesa

Casamento

Desejo

Filho do pobre

Filho do rico

Encanto

Querer-ser

S6

Vb

Moça

Casamento

Desejo

Pai/Filho do pobre

Filho do rico

Querer-ser

Page 148: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

147

3.3.3 Estruturas Discursivas

3.3.3.1 Relações intersubjetivas

Neste conto, o enunciador apresenta um discurso fundamentado na idéia de que, a

riqueza é efêmera e nada vale se não vier acompanhada de sabedoria. Para dar um efeito de

verdade sobre a tese que constrói, o enunciador delega voz a sete atores, apontados pelo papel

temático exercido. Veja-se: o pobre, o rico, o filho do rico, o filho do pobre, o rei encantado

em Cururu, a princesa que quer casar para desencantar o pai, e a criada. Em Va, um dos atores

é atribuído o nome de animal – Cururu – cristalizado como substantivo próprio.

A ausência de uma designação própria é uma característica do texto popular onde o

enunciador repete diferentes vozes desde épocas antigas da língua cujas origens lhe são

desconhecidas. Ele repete e recria o texto podendo-se dizer, portanto, que existe, não apenas

um enunciador, mas vários. A impessoalidade, através da representação do papel temático,

possibilita apontar para qualquer um que seja capaz de realizar ações semelhantes. Em vista

disso, é um elemento que aponta para a tradição, mas permite uma constante atualização do

texto.

Aqui o pobre é projetado na tecitura textual por uma debreagem enunciva, instaurada

por um contar do enunciador e por uma debreagem enunciativa quando o enunciador delega

voz a atores. A primeira acontece em elocuções indiretas.

“Estavam o rico e o pobre a conversar.” (Va)

“Eram dois que moravam juntos: um rico e um pobre.” (Vb)

A segunda é caracterizada pela enunciação do ator abaixo, em elocuções diretas.

O rico

“–Pois compadre, meu filho vai viajar com o seu.” (Vb)

O enunciador atribui ao compadre pobre o semema de detentor da sabedoria pela

simplicidade e humildade reveladas no agir. O pobre reconhece que o conhecimento é uma

forma de ter sempre o necessário para viver e assim orientou o filho.

Page 149: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

148

O filho do pobre representa o testemunho dos ensinamentos do pai e é a continuidade

de sua prole. Reconhecedor de sua posição na sociedade, debruça-se sobre uma série de

atitudes que o promovem, além da agudeza e sutileza das idéias. Embora escolha caminhos

estreitos e perigosos (veredas), sabe ler, toca instrumentos musicais, tem boas maneiras, tem

poder de argumentação, atitudes que caracterizam uma pessoa conhecedora do mundo e

experiente. Foi, ainda, representado como sensível, humano e caridoso no trato com o pai da

princesa, encantado em sapo, e com a princesa. Colocado na posição de personagem principal,

o enunciador parece identificar-se com ele, revestindo-o de valores positivos e permitindo-o

ser vitorioso.

A viagem realizada pelo herói deste conto pontua para as novelas de cavalaria, em que,

imbuído de um espírito cavalheiresco, de fidelidade, de coragem e de sabedoria divina, os

cavaleiros medievais aventuravam-se em busca de experiências. O rapaz pobre detém essas

características e também viaja pelo mundo, a fim de pôr em prática os ensinamentos recebidos

pelo pai, ampliando, dessa forma, sua visão de mundo.

O compadre rico, ao contrário do pobre, é a representação da luxúria e da avareza,

daqueles que estão em busca de possuírem sempre mais. Nesse universo limitado, passa para

as gerações seguintes ignorância, arrogância e desprezo pela sabedoria. O enunciador o

reveste de valores negativos. Os exemplos seguintes são elucidativos:

“O rico dizia: que valia mais Ter do que Saber [...]”(V a)

“O dele aprontou, botou de tudo, encheu a mala chega ia gemendo de dinheiro, de

roupa, de tudo.” (Va)

O filho do rico, embora tenha sido destinado pelo pai a fazer uma viagem para

comprovar o valor da riqueza, reafirma a tese antes defendida pelo pobre. Dessa forma, são as

ações contrárias as do pobre, que o enunciador utiliza para intensificar a importância da

sabedoria.

“– Está vendo meu pai, o senhor como estava errado? O que vale mais é o Saber. Ter,

sem o Saber não vale nada.”(Va)

Embora tenha viajado com muito dinheiro, faltou-lhe habilidade para agir de maneira

acertada. Como a parábola bíblica do “filho pródigo”, gastou tudo que tinha ao ponto de

passar fome. Ignorante, sem habilidade nenhuma e, por fim, sem dinheiro, passa por agruras

Page 150: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

149

até encontrar uma oportunidade para voltar. Somente em Va, a viagem serviu-lhe para

despertar da escuridão e da ignorância, permitindo-lhe perceber seus erros e dando-lhe

oportunidade para corrigi-los.

“– Está vendo meu pai, o senhor como estava errado? O que vale mais é o Saber. O

Ter, sem o Saber não vale nada.” (Va)

O filho do rico é projetado na tecitura textual por uma debreagem enunciva e uma

debreagem enunciativa. A primeira manisfesta-se pelo contar do enunciador:

“[...] o rico chegou numa cidade e começou a farrar e dançar;[...]”(V a)

“Saíram. O filho do compadre rico chegou [...]” (Vb)

A debreagem enunciativa é manifestada nas elocuções diretas do ator a seguir:

O rico

“– Pois compadre, meu filho vai viajar e o seu também.”(Va)

“– Eh! Lá vem meu filho, numa carruagem. “(Vb)

O pai da princesa/moça, encantado na figura de um Cururu em Va, mostra a natureza

mítica da narrativa, atribuindo-lhe um caráter fabuloso que não compromete a

verossimilhança dos demais, nem o conteúdo exemplar do conto. Mascarado de anfíbio,

animal que comumente desperta asco e fobia, foi ajudado pelo filho do pobre e por ele tratado

com respeito, como se fosse uma pessoa. Essa interação do homem com o sapo revela

também o caráter didático do conto, preparando a consciência ecológica. O homem como ser

mais importante da natureza deve amar e preservar os demais seres a seu redor para construir

a harmonia global.

“– Deus o guarde, seu doutor.”(V a)

“[...]Foi botar a janta, ele serviu o Cururu, conversou com ele.[...]”(Vb)

A princesa/moça, assim como o Cururu/pai, representam o ter aliado ao saber. Na

abordagem desses atores, há a projeção de quintas, que são propriedades, posses de alguém. É

uma valorização do espaço rural que é apontado como positivo, eufórico, habitado por

Page 151: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

150

pessoas que possuem livro e instrumento e, portanto, detentoras de conhecimento e com

capacidade para discernir entre o bem e o mal. Estes atributos revestem estes atores de valores

positivos.

O enunciador encontra-se distante do tempo da enunciação, num então, projetado nos

pretéritos perfeito e imperfeito, cujo afastamento pode ser observado em “Estavam o rico e o

pobre a conversar.” e “Saíram os dois [...]” em Va, e em Vb “Eram dois compadres [...]”.

Esta referência faz aparecer três momentos temporais.

Passado

Presente

Passado

História do filho do rico e do

filho do pobre

Recuperação dos fatos pelo

enunciador

História do filho do rico e do

filho do pobre

O primeiro momento refere-se ao acontecimento mnemonicamente colocado no

passado. O enunciador quando recupera estes acontecimentos, constrói uma nova enunciação,

colocando-se no presente. Logo depois, a história do filho do rico e do filho do pobre é

colocada noutro tempo, quando passa a ser projetada no passado. A enunciação é sempre

pressuposta, uma vez que o agora jamais pode ser recuperado literalmente, senão deixaria de

ser enunciação.

Essa sistematização temporal engendrada a partir do discurso cria um efeito de

testemunho de uma coletividade, daí a história adquirir maior força exemplar, visto que há

vários sabedores do fato e não um único sabedor.

O tempo do enunciado é empregado para descrever o percurso tanto do filho do rico

quanto do filho do pobre em sua viagem pelo mundo, cujo objetivo era comprovar o ter (o

primeiro) e o saber (o segundo). As experiências do rico começam a ser descritas depois do

momento em que chega à casa do Cururu/pai da moça, quando são projetadas expressões de

natureza temporal do tipo: “Quando foi de noite [...]”, “Quando foi para a janta [...]” e “Já

escurecia [...]”. Após viver uma série de experiências, aparece a expressão “No outro dia [...]”.

Só depois ele vive as experiências do teste e da prisão. Preso, ele fica afastado da narrativa

que tem continuidade com o filho do pobre. Este chega à casa do Cururu/pai da moça “[...]

três dias depois [...]” em Va, e somente depois de um mês em Vb.

O filho do pobre vive experiências semelhantes ao filho do rico, porém com outras

atitudes. O tempo dessas experiências também fica indeterminado, quando é projetada a

Page 152: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

151

expressão “No outro dia [...]”. Numa seqüência de ações que acontecem em dias e meses, o

filho do pobre casa e encontra preso o filho do rico. Passa, então,“[...] um mês.”, cuidando

dele, para irem juntos visitar os pais.

Esses tempos corroboram a idéia de que a aquisição de experiências necessita de um

período longo para ser efetivada. A formação humana precisa de tempo, além de que, o sábio

é aquele que observa as evidências, julga e comprova, para só depois, tomar iniciativas

acertadas sobre o seu projeto de vida. A princesa, assim como o Cururu/pai da moça, foram

prudentes e sensatos, pois pacientes e persistentes, entenderam que o tempo era necessário às

suas necessidades. O tempo, entretanto, operou maior transformação no filho do rico, uma vez

que o seu anterior se caracterizou pela ausência de sabedoria, enquanto que, as experiências

feitas depois, fizeram-no compreender o valor do saber e aí poder recomeçar.

Assim como ocorre na temporalização, a espacialização apresenta uma seqüência de

três espaços. O enunciador no aqui de um contar, recupera mnemonicamente fatos fixados

num lá do passado, construindo um novo espaço que é o do enunciado.

Memória

Contar do enunciador (enunciação)

Espaço lingüístico (enunciado)

Lá Aqui Lá

Na versão codificada como Vb, a posição do aqui se faz mais evidente pela projeção

do “nesta”, superficializado uma única vez: “Nesta dita casa.” A presença do “nesta” insere

os atores inscritos no espaço do enunciador, no aqui da enunciação.

A casa representa o espaço do reencontro. Os dois rapazes saem juntos, separando-se

no caminho, comunicando que a experiência de cada um deve ser feita individualmente, para

que pudessem demonstrar a própria capacidade. Só depois de superarem as dificuldades,

sozinhos, encontram-se novamente e voltam juntos para casa: o filho do rico derrotado (na

missão destinada pelo pai), mas consciente de que pode recomeçar a partir dos seus erros e os

do pai; e o filho do pobre vitorioso em sua comprovação do valor da sabedoria.

“Saíram os dois e se apartaram no caminho.”(V a)

Page 153: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

152

O espaço “casa” (imóvel e sem aventuras) se opõe ao espaço “mundo”, onde fica a

cidade” (Va), por onde passou o filho do rico; e as “quintas” da princesa, o reinado, a casa do

Cururu e sua filha.

O ambiente “casa dos compadres” é onde figuram os atores que darão razão a trama: o

rico e seu filho; o pobre e seu filho. Nesse espaço acontece o diálogo que firma a ideologia

predominante no discurso: a riqueza só tem valor junto com a sabedoria.

Em Va, a “cidade” é o espaço por onde passa o filho do rico e deixa toda a fortuna que

conduzia, quando se envolve em diversões, bebidas e mulheres, figurando, dessa forma, um

espaço de perdição e influências negativas. Nesse lugar, acontece a primeira lição de vida que

o rapaz recebe. Este, para sobreviver, precisa partir mais uma vez.

“O rico chegou numa cidade e começou a farrar e a dançar, era nêga chega fervilhava.

Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de fome.”

O espaço seguinte é a “casa do Cururu”, habitado por ele e a filha. A “casa” “palácio”

se localiza nas “quintas” da princesa, caracterizado como o meta-espaço do discurso, uma vez

que é nele onde acontecem as transformações que conduzem à moral do conto. Tanto o filho

do rico quanto o filho do pobre ficam embreados neste espaço: o primeiro para reconhecer

que sua ignorância o conduziu à prisão, simbolizado pelo “alçapão” em Va e “chiqueiro” em

Vb; o segundo para provar que é o saber melhor que o ter, visto que promove a liberdade,

simbolizado pelo “passeio no quintal”.

“[...] foi sair na casa do Cururu que era encantado.”(Va)

“– Agora vamos olhar minhas quintas.” (Va)

“[...] ela agarrou ele e botou dentro do alçapão.” (Va)

“Um dia ela estava passeando com ele no quintal [...]”(V a)

“ O filho do compadre rico chegou num palácio muito grande.”(Vb)

“– Vamos olhar ali minhas quintas?”(Vb)

“Aí o velho preparou um chiqueiro bem grande [...]” (Vb)

Novamente projetados na casa dos pais, o filho do rico e o filho do pobre culminam

seus percursos. O enunciador, na projeção do pobre e seu filho, confirma valores positivos já

mencionados, enquanto que, na projeção do rico e seu filho, faz emergir sensações de

frustração e decepção. Estas, na visão do filho, são figurativizadas positivamente, uma vez

Page 154: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

153

que ele reconhece seu erro e muda de atitude, mas, na do pai, negativamente, uma vez que se

suicida.

“O rapaz rico não quis mais saber de festa, de nada, foi aprender, formou-se

doutor.”(Va)

O espaço “em cima do sobrado” é determinante de carência energética, já que foi lá

onde o rico, decepcionado, subiu para destruir a própria vida e, consequentemente, com ela a

idéia de que o ter é melhor que o saber.

“Aí o velho com desgosto tão grande que teve do filho chegar naquele estado, caiu de

cima do sobrado, morreu.”(Va)

“O velho depressa subiu para o sobrado com a velha e de lá pularam de cabeça

abaixo.”(Vb)

3.3.3.2 Temas e figuras

Um tema bastante saliente na narrativa é a sabedoria. A palavra tem origem na grega

sophia e é um atributo dos sábios. Há ainda a palavra Phronesis usada por Aristóteles para

descrever a sabedoria prática, ou a habilidade para agir de maneira acertada. Para a palavra

sophia há variados conceitos, entre eles sabedoria humana e a sabedoria divina. A sabedoria

como tema emergente, no sentido de sabedoria prática, é refletida no agir do pobre quando

entrega seu filho ao mundo para que, com ela, pudesse sobreviver e encontrar estabilidade.

“–Meu filho vai com a maca nas costas e uma rodilha.”

É refletida ainda, no agir do filho pobre, dessa vez com a conotação brasileira, durante

a viagem, nas escolhas que faz. As figuras que remetem à sabedoria enquanto conhecimento

de mundo do rapaz, descrevem a educação e respeito pelo Cururu; a iniciativa em elogiar as

pernas da princesa em detrimento às “quintas” dela; além da habilidade ler livros e tocar os

instrumentos musicais que lhe foram entregues.

Page 155: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

154

“– Deus o guarde, seu doutor.”(Va)

[...] ele serviu o Cururu, conversou com ele.”(Va)

“– Muito bonitas! Tudo muito bonito! Mas desculpe eu lhe dizer que o que achei mais

bonita foram as pernas de Vossa Excelência.”(Va)

“[...] ele leu, leu, leu, até cansar.”(Va)

“[...] ele tocou, tocou, tocou até cansar.”(Va)

“Ela entrou, sentou-se, pegou a conversar. Depressa botaram um bocado de livro em

cima da mesa e ele só agarrando os livros e lendo. (Vb)

“Ele pegava um, tocava um bocadinho num, um bocadinho n’outro.”(Vb)

Em confluência com a sabedoria humana emerge o agir do filho rico, uma vez que

reconheceu o erro do pai e consequentemente o próprio erro.

“[...] O rapaz rico não quis mais saber de festa, de nada, foi aprender, formou-se, foi

um doutor.”

A riqueza é outro tema na narrativa, cuja característica refere-se à abundância na posse

do dinheiro e propriedades imóveis. Podem-se observar, entre outras, as figuras

caracterizadoras desse tema:

“O dele aprontou, botou de tudo, encheu a mala chega ia gemendo de dinheiro, de

roupa, de tudo.”(Va)

“– Agora vamos olhar minhas quintas.”(V a)

“– Vamos olhar ali minhas quintas.”(V b)

A riqueza concebida como acúmulo de bens, neste conto, só é positiva se

acompanhada de sabedoria. Esta permite perceber a importância do conhecimento como

aprimoramento da inteligência, da capacidade mental de raciocinar, de planejar, de resolver

problemas, de compreender idéias e linguagens (inclusive a musical).

Em oposição à riqueza, surge a pobreza, cuja figurativização é a carência material das

necessidades cotidianas. As figuras que remetem à pobreza emergem a partir da imagem

inicial do pobre e seu filho, no estado de transformação do filho do rico, bem como no sentido

de carência energética no agir do rico pelo desgosto de ver o filho na pobreza.

Page 156: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

155

“Estavam o rico e o pobre a conversar.”(Va)

“O meu vai com a maca nas costas e uma rodilha.”(V a)

“Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de fome.”(V a)

“Aí o velho com desgosto tão grande que teve do filho chegar naquele estado, caiu de

cima do sobrado, morreu.”(V a)

“Eram dois compadres que moravam juntos: um rico e um pobre.” (Vb)

“O velho depressa subiu para o sobrado com a velha e de lá pularam de cabeça

abaixo.” (Vb)

Seguindo o encadeamento lógico das ações, nesta narrativa, percebe-se que o discurso

engendra três tipos de ralações sócio-econômicas familiar. Na primeira pode-se destacar o

rico e seu filho como representação da riqueza aliada à ignorância. A segunda estrutura sócio-

econômica familiar é representada pelo pobre e seu filho, cuja herança primeira é o Saber,

caracterizada por assegurar a sobrevivência, uma vez que usando de sua sabedoria,

engenhosidade e perspicácia pôde adquirir riqueza. E por último, a terceira estrutura é

representada pelo pai da princesa/Cururu e sua filha, agrupando nesta, os dois aspectos: a

sabedoria e a riqueza. Os exemplos seguintes comprovam:

“Estavam o rico e o pobre a conversar. O rico dizia: que valia mais o Ter do que o

Saber e o pobre dizia que valia mais o Saber do que Ter.”

“O rico chegou numa cidade [...] Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de

fome.”

“O rei mandou buscar o pobre e fez o casamento do filho pobre e botaram ele numa

carruagem [...]”

A esperteza que pode ser considerada como a capacidade maliciosa de adaptar-se

habilmente a situações difíceis, tirando proveito da situação, está imbricada ao tema

conhecimento, que é a qualidade daquele que adquiriu o saber e sabe lidar com situações

sociais. Tanto o filho do rico quanto o filho do pobre demonstraram inteligência, uma vez que

escolheu o conhecimento como primordial, embora o segundo tenha necessitado de um

aprendizado para fazer essa descoberta. A esperteza também é característica dos amigos de

farra do filho do rico quando usurpam seu dinheiro, dando-lhe uma conotação disfórica.

“Tirou ele, tratou dele um mês.”(Va)

Page 157: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

156

“– Pois eu quero que tire ele. Vou tratar dele e vou levar à casa dos pais dele pra o pai

dele saber que o que vale mais é o Saber do que o Ter.”(V b)

3.3.3.3 Leituras temáticas

Primeira leitura

A riqueza só tem valor acompanhada de sabedoria.

Segunda leitura

O testemunho dos ensinamentos dos pais são os filhos.

Terceira leitura

O mundo é a escola da vida.

Quarta leitura

A tolice é fruto da ignorância.

Quinta leitura

É sábio aquele que aprende com os erros.

Sexta leitura

O bem sobrepõe o mal.

3.3.4 Estrutural Fundamental

Ocorre, aqui, a tensão dialética entre bem versus mal que indica as relações de poder

entre a família pobre, a realeza e a família rica.

O bem implica não-mal e faz emergir a sensatez. Essa relação caracteriza tanto a

família pobre quanto a realeza que acreditam ser a sabedoria mais importante que a riqueza.

Assim, a primeira, usando de sensatez, envia o filho para comprovar essa verdade,

conduzindo como bagagem apenas o saber. E a segunda, para escolher o esposo da filha,

Page 158: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

157

coloca dois rapazes sob teste, contemplando o filho do pobre, uma vez que demonstra ter

sabedoria.

O mal sem o bem faz emergir a insensatez. Na tentativa de valorizar a riqueza, o

compadre rico envia o filho para uma viagem pelo mundo, conduzindo muito dinheiro e

nenhum saber. Acreditava que a riqueza era suficiente para o filho superar os obstáculos. No

entanto, o rapaz perdeu tudo que tinha com diversões e foi reprovado nos testes pelos quais

passou na casa do Cururu, indo parar na prisão.

As relações tímicas que se estabelecem entre bem versus mal permitem a ordem a

seguir:

Para a família pobre e a realeza:

bem sensatez não-mal

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

mal insensatez não-bem

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

Para a família rica:

bem sensatez não-mal

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

mal insensatez não-bem

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

Essa tensão pode ser operacionalizada no octógono abaixo:

Page 159: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

158

Predomina, ainda, a tensão dialética entre os opostos conhecimento versus ignorância,

definindo as relações de poder entre a família pobre, a realeza e a família rica. Esse conflito

traz à tona as relações sociais, determinadas pelo poder econômico que caracteriza

secularmente a humanidade.

O conhecimento implica não-ignorância, fazendo emergir a esperteza. No conto, o

pobre e seu filho representam figuras apreciáveis, dada à esperteza que lhes permitiu

engenhosidade para seguirem um percurso que teve fim com a vitória. Essa relação

caracteriza também a realeza que, usando de esperteza, submete os rapazes (rico e pobre) a

testes para que pudessem demonstrar seus conhecimentos.

A ignorância implica o não-conhecimento, o que faz emergir a tolice. Essa relação

define o rico e seu filho que tentam se sobressair através da riqueza. No entanto, não atingem

o seu valor.

Mostrando as relações tímicas que se estabelecem a partir da tensão entre sabedoria

versus ignorância, pode-se depreender:

Para a família pobre e a realeza:

Conhecimento esperteza não-ignorância

(eufórico) (eufórica) (eufórica)

Tensão dialética

bem

não-mal

mal

não-bem

sensatez insensatez

0

Page 160: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

159

Ignorância tolice não-conhecimento

(disfórica) (disfórica) (disfórico)

Para a família rica:

Conhecimento esperteza não-ignorância

(disfórico) (disfórica) (disfórica)

Ignorância tolice não-sabedoria

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

Observe-se o octógono com a tensão referida:

Outra tensão dialética que emerge, na narrativa, instaura-se entre conhecimento de

Deus versus conhecimento de mundo, em que a junção dos dois caracteriza a sabedoria. A

família pobre e a realeza refletem ambos os conhecimentos.

A relação de implicação entre conhecimento de Deus e não-conhecimento de mundo,

gera a simplicidade. Entre conhecimento de mundo e não-conhecimento de Deus, gera a

Tensão dialética

conhecimento

não-ignorância

ignorância

não-conhecimento

esperteza tolice

0

Page 161: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

160

perspicácia. Enquanto a família pobre e a realeza são caracterizadas pela sabedoria que

contém os contrários: conhecimento de Deus e não-conhecimento de mundo, a família do rico

é caracterizada pela ausência total de sabedoria. No entanto, o filho, caminha do não-

conhecimento de Deus para o conhecimento de Deus, quando reconhece que o saber é melhor

que o ter, como também caminha do não-conhecimento de mundo para o conhecimento de

mundo, quando usando de perspicácia, resolve estudar e se graduar.

As relações tímicas que se estabelecem entre conhecimento de Deus versus

conhecimento de mundo podem se organizar da seguinte forma:

Para a família pobre e realeza:

Simplicidade conhecimento de Deus sabedoria

(eufórica) (eufórico) (eufórica)

Perspicácia conhecimento de mundo sabedoria

(eufórica) (eufórico) (eufórica)

Para a família rica:

Simplicidade conhecimento de Deus sabedoria

(disfórica) (disfórico) (disfórica)

Perspicácia conhecimento de mundo sabedoria

(disfórica) (disfórico) (disfórica)

Page 162: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

161

O octógono semiótico a seguir abarca com mais propriedade os percursos expostos:

Ocorre, ainda, a tensão dialética entre pobreza versus riqueza. São opostos que

coexistem e caracterizam a sociedade.

A relação de implicação entre pobreza e não-riqueza faz emergir a humildade. Essa

relação caracteriza a família do pobre que aceita seu status social.

A riqueza sem a pobreza, na narrativa, implica a ambição. Essa relação caracteriza a

família do rico que, embora sendo rico, almeja mais posses pela ação do filho. Também os

que vivem ladeados de necessidades, sonham com a riqueza, como foi o caso do filho do

pobre.

O filho do rico caminha da riqueza para a não-riqueza e para a pobreza, enquanto o

filho do pobre caminha da pobreza para a não-pobreza e para a riqueza.

A tensão pobreza versus riqueza resulta nas relações tímicas conforme mostram os

percursos:

Tensão dialética

conhecimento de Deus

não-conhecimento de mundo

conhecimento de mundo

não-conhecimento de Deus

simplicidade perspicácia

0

Sabedoria

Page 163: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

162

Para a família pobre:

Pobreza humildade não-riqueza

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

Riqueza ambição não-pobreza

(disfórica) (disfórica) (disfórica)

Para a família rica:

Pobreza humildade não-riqueza

(disfórica) (disfórica) (disfórica)

Riqueza ambição não-pobreza

(eufórica) (eufórica) (eufórica)

O conflito das famílias aparece hierarquizado no octógono a seguir:

Tensão dialética

pobreza

não-riqueza

riqueza

não-pobreza

humildade ambição

0

Page 164: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

163

Emerge da narrativa uma tensão dialética centrada entre ser versus parecer neste

conto, que reflete as relações de poder entre as forças do mal e as forças do bem, na figura do

rei que foi encantado de Cururu.

Ser implica não-parecer, fazendo emergir o segredo. Colocado no modo do ser,

aparece o rei que foi encantado. Assim, o encanto mantém a identidade do rei em segredo.

Parecer e não-ser gera a mentira. No modo do parecer, aparece o Cururu que é o rei

encantado, parece um cururu, mas não é. Sua imagem é uma mentira, estratégia usada pelas

forças malignas para aprisionar o rei.

As relações tímicas que surgem a partir da tensão ser versus parecer permitem os

seguintes percursos:

Para o rei:

ser segredo não-parecer

(eufórico) (eufórico) (disfórico)

parecer mentira não-ser

(disfórico) (disfórica) (disfórico)

Para o Cururu:

ser segredo não-parecer

(disfórico) (disfórico) (disfórico)

parecer mentira não-ser

(eufórico) (eufórica) (eufórico)

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164

Essa tensão hierarquizada no octógono oferece uma visão mais precisa:

Tensão dialética

ser

não-parecer

parecer

não-ser

segredo mentira

0

Page 166: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

165

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas que se inserem na classificação de conto apresentam grande importância

para a literatura popular. São estórias que, incoativamente, rememorizam uma cultura,

presentificando-se pelo imaginário, saberes de uma tradição, muitas vezes, em conflito com a

modernidade. O conto popular reatualiza saberes, visões de mundo de um povo, de uma

comunidade. Apoiado no mito, desperta para a fé, condição que motiva a conquista, a vitória.

Embora apresente um discurso breve, que facilita a memorização, sua estrutura narrativa é

rica em elementos do mundo natural, confluindo com o desejo dos enunciatários.

Nos três contos analisados, um rapaz aparece sob os aspectos da realidade e da

imaginação popular, exercendo o papel de protagonista. É um herói que luta honestamente

pela vida. No seu percurso, é auxiliado pelo sobrenatural, na tentativa de vencer obstáculos,

cuja face remete ao maravilhoso, como é o caso dos encantamentos. Seu perfil e sua

performance concentram valores que contribuem para a construção de uma imagem que tem

como referência a massa pobre e discriminada.

Penetrando nas subjacências dos contos, recuperam-se posturas ideológicas que

permitem emergir uma organização social pautada em doutrinas patriarcais. São narrativas

construídas sob o olhar masculino, pois são os atores masculinos que pensam, decidem, agem

e transformam a realidade vivida na ficção, garantindo sua posição de superioridade e,

servindo, dessa forma, de referência sócio-histórica para a sociedade que a concebe. O rapaz

pobre representa o modelo ideal a ser seguido: honesto, fiel e cristão. Sintetiza as forças do

bem, lutando corajosamente contra o mal.

A figura feminina das narrativas caracteriza-se como passiva na tomada de decisões,

muito embora seja presença necessária. Mãe e esposa, as mulheres dos contos surgem para

auxiliar a existência do herói e dar continuidade à prole. Ao contrário do homem, a mulher

não precisa sair de casa, desbravar o mundo, para adquirir experiências. É o caso da rainha, no

primeiro conto, que aparece só no início; da princesa encantada, que é desencantada pelo

príncipe para casar-se com ele, não podendo proteger os filhos; também, no segundo conto, da

mãe de Manoel/Joaquim que surge para abençoá-lo, e da princesa/moça rica que segue as

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166

orientações recebidas pelo rapaz pobre; e, ainda, no terceiro conto, da moça que sai do jugo

paterno para ficar no jugo do esposo, e da mãe do rapaz rico que segue o marido até quando

este decide morrer.

A religiosidade aparece sob o prisma católico, da providência divina para a superação

dos obstáculos. No primeiro conto, o herói e o irmão (que também se faz herói pela imitação),

faz uma rogativa a Deus como um testemunho de fé. Deus é bom e por isso castiga aqueles

que agem infielmente: o herói, em determinados momentos, é encantado por querer o que não

é seu (princesa) e não cumprir a ordem da profecia. No segundo conto, o herói recebe a

bênção da mãe que intercede a Deus e a Virgem Maria para protegê-lo em sua viagem. E, no

terceiro conto, a religiosidade emerge na postura dos atores que detêm a sabedoria de Deus,

como é o caso da família pobre e da família real. Nos três contos, a religiosidade reitera a

posição do homem e da mulher na sociedade, além de pregar a humildade e a fé, tendo como

referência a figura de Jesus Cristo e da Virgem Maria.

A esta postura religiosa, estão conectados os defensores do bem. A caracterização do

herói de cada conto estabelece um diálogo com as novelas de cavalaria do período medieval.

São jovens revestidos de um espírito cavalheiresco, fidelidade, coragem e fé, que saem em

busca de viver algo diferente. Nos três contos, o herói que sai em busca de defender a vida,

(primeiro conto), de aventuras (segundo conto) e de sabedoria (terceiro conto), estão, na

verdade, buscando uma formação humana através de experiências vividas longe da família.

Estes estão certos da luta que travam em favor do bem e, portanto, estão dispostos a defender

valores que promovem a vida.

Os valores políticos presentes nos dois primeiros contos emergem na figura do rei e

remetem, no primeiro conto, não à realidade do mundo atual, mas ao que deveria ser, uma vez

que o rei escuta o povo e vai em busca de realizar o pedido feito, embora não comungue com

a idéia. No segundo conto, o rei premia o rapaz que beneficia a corte com a quebra do encanto,

fazendo o casamento da princesa com ele.

O primeiro grupo social do homem é a família: nesse grupo nasce e, sob os cuidados

paternos, cresce. Porém, precisa romper os limites do microcosmo (família) para ganhar

espaço no macrocosmo (sociedade). O herói dos contos rompe com a família pela necessidade

de auto-afirmar-se como capaz de sobreviver longe dessa proteção, mas levando consigo, as

primeiras orientações.

Nas narrativas, os valores infantis surgem com a presença do fantástico e do mágico.

Em O Fiel João, o herói que vence a fera de sete cabeças, acontece a paralisação de tudo

pelos encantamentos, recorrentes também em Fernando o verdadeiro e Fernando o falso,

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167

como se estivessem brincando de stop. E tudo voltando ao movimento pela realização das

boas ações: o abraço como tributo à amizade, a caridade e a honestidade. Em A Mais Bonita,

o encantamento emerge na imagem personificada do Cururu, que convida o enunciatário à

consciência ecológica, além da prática das boas maneiras como um todo. Concomitantemente

se instala aqui o caráter didático. Inconscientemente as personagens brincam, mas,

conscientemente, prendem-se à busca de valores para a construção da cidadania. Este

universo das possibilidades do impossível caracteriza a imaginação de uma criança pequena

que conversa com seus amigos imaginários.

Esta pesquisa pretende incitar a continuidade do estudo científico do conto popular,

dando prioridade às inquietações de natureza sócio-cultural como representações dos valores

de um povo. Espera-se, ainda, que este trabalho contribua, de alguma maneira, para a

valorização das manifestações populares, em especial de sua utilização como ferramenta de

grande valia na reconstrução da cultura popular brasileira.

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REFERÊNCIAS

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ANEXOS

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ANEXO A - Va – O PRÍNCIPE E O MARCÔNDIO

Era um rei e uma rainha. Nunca tinha havido família. Quando o primeiro filho nasceu,

enjeitaram uma criança na porta deles. Ele criou as duas crianças como filhos.

Depois que eles estavam grandes, batizaram, o príncipe e Marcôndio. Eram muito

amigos, se criaram amigos um do outro. Então começaram a fazer bagunça na cidade e todo

mundo dizia ao rei:

– Dê fim a Marcôndio que a desgraça do Príncipe é Marcôndio.

Mas o rei não podia dar porque eram muito amigos. Então um amigo do rei

aconselhou:

– Dê fim a Marcôndio que o príncipe melhora, fica bom.

O rei chamou o príncipe:

– Meu filho, eu quero que você vá uma viagem mas não quero ficar sozinho, quero

que você deixe Marcôndio comigo.

Ele disse:

– Meu pai, eu não deixo Marcôndio que Marcôndio é muito meu amigo e eu só gosto

de andar com ele.

– Meu filho mas eu não posso ficar sozinho.

O príncipe fez a viagem e Marcôndio ficou. O rei disse:

– Vou matá-lo porque você é quem bota meu filho no caminho da perdição. Vou dar

fim a você.

Ele disse:

– Meu pai, não me mate! Mande me soltar dentro das matas para os bichos me comer.

Vou ainda pedir uma coisa ao senhor; deixe eu levar meu armamento que sempre costumo

andar com ele.

O rei fez o pedido de Marcôndio. Levou ele e jogou dentro das matas.

Quando Marcôndio entrou nas matas encontrou uma fera muito perigosa, com sete

cabeças. Ele lutou muito com essa fera até que matou. Saiu na frente, seguiu com muita sede.

Fez uma rogativa a Deus pra não morrer de sede naquela montanha. Adiante avistou uma

vertente onde bebeu muita água e ficou satisfeito. Adiante encontrou um leão, uma fera muito

perigosa. Travou-se outra luta e matou o leão. Seguiu a viagem dele. De noite, quando

escureceu, chegou num sobrado muito grande, um sobrado velho, grande, dentro daquela

montanha. Ele entrou, tinha uma rede armada, ele disse:

– Vou provar a noite.

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Deitou-se na rede. Quando estava deitado, ouviu umas pisadas na sala – Mas sem ver

ninguém – As pisadas vieram até onde ele estava e depois ele acompanhou as passadas e

chegou na sala de refeição onde tinha comida na mesa de toda qualidade. Ele se serviu bem e

voltou para se deitar.

Quando estava deitado, lembrou-se que não ia passar ali a noite sem saber o que tinha

naquele sobrado. Chegou num quarto muito escuro e avistou uma princesa muito bonita!

Lembrou-se de dar um abraço nela. Quando foi se sentando perto dela, se encantou.

Agora eu vou voltar ao príncipe.

O príncipe quando chegou da viagem, procurou o irmão e o pai disse:

– Meu filho, seu irmão eu mandei dar fim a ele porque ele era sua perdição. Eu mandei

dar fim a ele.

– E como foi que o senhor matou meu irmão?

– Eu mandei soltar ele dentro das matas para as feras comer.

– Ele levou o armamento dele?

– Levou.

– Então o senhor vai me levar para o mesmo canto onde ele está.

Levaram o príncipe, soltaram no mesmo canto.

O príncipe saiu, encontrou-se com uma fera muito perigosa, com sete cabeças e matou.

– Até aqui meu irmão vai vivo.

Seguiu a viagem dele. Se viu com sede, sabia que ia morrer. Avistou uma vertente,

chegou lá tomou água.

Até aqui meu irmão vai vivo.

Continuou a viagem. Encontrou um leão muito feroz, fera perigosa! Lutaram muito

mas ele matou o leão.

Quando chegou mais adiante, avistou um sobrado velho dentro das matas. Chegou lá

tinha uma rede armada, disse:

– Até aqui meu irmão vai vivo.

Pousou na rede. Quando estava na rede, vieram as mesmas pisadas. Vieram e ele

acompanhou as pisadas. Chegou lá dentro encontrou água no banheiro, sabonete e tomou

banho.

– Até aqui meu irmão vai vivo.

Voltou de novo e se deitou na rede. Quando deu fé, as pisadas... Não via ninguém:

Acompanhou, chegou na sala tinha toda qualidade de comida.

– Até aqui meu irmão está vivo.

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Voltou. Deitou-se na rede e ficou lá sem saber o que fazer.

– Mas eu vou procurar meu irmão.

Saiu procurando... quando encontrou o irmão lá no quarto com a princesa, disse:

– Meu irmão, você não vem falar comigo? Não vem me receber?

Ele nem se levantou. Ele partiu e deu um abraço nos dois, aí desencantou-se a rainha,

desencantou-se tudo! Ficaram muito satisfeitos, muito alegres! Aí foram tratar de um acordo

pra ver quem casava com a princesa.

O Marcôndio disse:

– Quem vai casar é você que é o príncipe.

O príncipe:

– Quem vai casar é você que chegou primeiro.

Mas eles não gostavam de teimar. Marcôndio convenceu o príncipe de casar com a

princesa.

Agora seguiram a viagem em busca da casa do reinado, e ouviram uma voz dizer:

– Aqui adiante tem um olho d’água é muito boa. Se o príncipe e a princesa beberem da

água morrem todos dois. Marcôndio bebe a água e não tem nadinha.

Quando eles chegaram na água, o príncipe disse:

– Vamos beber água?

Marcôndio disse:

– Meu irmão, não teime comigo não. Eu vou beber a água; se a água for boa, você

bebe.

Ele disse:

Ele bebeu e disse:

– Não vale nada! Não bebam!

Saíram. Seguiram a viagem. Adiante a voz tornou a dizer:

– Aqui vão: o príncipe, a princesa e o Marcôndio. Mas aqui adiante tem um pé de fruta.

A fruta é muito boa. O marcôndio come a fruta e não tem nada; mas se o príncipe comer, ele e

a princesa, morrem todos dois.

Quando eles chegaram no pé de fruta muito cheirosa, o príncipe ia comer a fruta,

Marcôndio disse:

– Não coma não, meu irmão! Deixe eu comer; se for boa, vocês comem.

Marcôndio comeu a fruta que era muito boa, disse:

– Meu irmão, não vale nada. É muito azeda, não presta para nada.

Seguiram a viagem. A voz tornou a dizer:

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– Bem, vão: o príncipe, a princesa e Marcôndio, mas no dia do casamento, o príncipe

casa com a princesa e vem uma serpente e engole todos dois nessa noite. Se Marcôndio casar

com a princesa não tem nada. Quem essa estória contar numa pedra mármore há de virar.

Quando eles chegaram em casa, o rei recebeu eles muito satisfeito e eles contaram a

estória. O rei disse:

– Quem vai casar é você que é o príncipe.

No dia do casamento Marcôndio foi lá brigar com a serpente. Entraram em luta. O rei

quando viu aquela luta dentro do quarto pensou que fosse o príncipe que estava brigando com

Marcôndio. Botou a porta abaixo, o príncipe e a princesa acordaram e saltaram pro lado de

fora.

– O que é isso?

– Mas você ainda pergunta o que é isso? Uma luta dessa! Eu bem que queria dar fim a

Marcôndio mas você não deixou. Agora eu vou matar ele mesmo, que ele não presta pra viver.

Vocês brigando, uma briga dessa! Desse jeito!

Marcôndio saiu e o rei prendeu ele.

– Você agora vai morrer.

– Meu pai, antes do senhor me matar deixe eu contar a minha estória.

Aí começou a contar a estória da água, e virou numa pedra mármore até o joelho.

– Quando contou da serpente, que queria devorar ela, tinha matado, caiu lá fora, virou-

se todo na pedra mármore. O príncipe botou ele em cima de uma mesa e todo dia lavava o

irmão, enxugava, tinha o maior zelo com aquela pedra.

Já fazia quatro anos que tinha se casado. Tinha quatro filhinhos, quando uma voz lhe

veio dizer dormindo que, se ele matasse os filhinhos e lavasse a pedra com o sangue, ele

desencantava o irmão. Ele foi matou os quatro filhinhos que estavam brincando, lavou a pedra,

desencantou o irmão e correu aonde estava a mulher.

– Mulher, matei meus quatro filhinhos, mas desencantei meu irmão!

Quando ele voltou estavam, todos quatro, brincando. Aí foi dar remédio a mulher pra

ela ficar boa, e ficaram sendo os mesmos amigos.

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ANEXO B - Vb – PEDRA MÁRMORE

Dois rapazes, um rico e outro pobre, eram amigos desde meninos. Então resolveram

sair pelo mundo. Foram embora. Andaram, andaram. Chegaram numa cidade ficaram

morando. Rapazes trabalhadores, arranjaram logo serviço.

Com uns tempos, o rapaz pobre pegou namorar com uma moça rica. (Imagine: um

pobre namorando com uma moça rica! Com o outro, o rico, podia ser. Não era?). Um dia, a

moça disse assim:

– Você nem se ocupe em me pedir a meu pai, que meu pai não dá, que você é pobre e

ele é rico. Não dá em casamento de jeito nenhum. Não dá.

– Você quer fugir comigo? Você tem coragem de fugir comigo?

– Tenho.

– Pois bem, vamos tratar o dia.

Trataram o dia. A moça tinha muito dinheiro. Prepararam três cavalos bons – um para

a moça e os outros para os dois rapazes: o pobre e o rico. Agora, ele ia casar com a moça e

depois trazer ela para a terra do pai dela. De madrugada, montaram nos cavalos e foram-se

embora. Roubaram a moça. Que fez o pobre? Chegou onde estava o amigo e disse:

– Fulano, eu vou fazer um negócio com você. Você é amigo meu desde pequeno. Eu

roubei essa moça, que é rica, e dou pra você casar com ela. Eu sou pobre, não tenho nada.

Você é rico igual a ela.

– Mas Fulano, será que ela quer?

– Olhe, Fulano, dá certinho. Seu pai é muito rico, o pai dela também é rico. Dá certo

com você. Agora eu, sou pobrezinho... Diga a ela que quer mudar eu pra você. Você diz assim:

“Fulana, você quer ser minha noiva, quer se casar comigo?” Diga que seu pai é muito rico,

você pode muito bem casar com ela. Eu sou um pobrezinho para me casar com ela.

(O pobre dizendo. Gente besta)

– Está certo.

O amigo foi falar com a moça como o outro disse. Ela aceitou a troca. Ficou com o

rico, deixou o pobre que roubou ela. Então decidiram voltar para falar com o pai da moça, que

o rico pedindo ele dava a filha em casamento. E hajam andar. Muito na frente o rapaz rico

disse:

– Vamos descansar debaixo de um pé de pau para fazer um lanche.

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Chegaram assim num pé de pau, desceram dos cavalos, foram fazer um lanche. Depois

do lanche, o rapaz rico e a moça agarraram no sono. O outro ficou acordado. Aí chegaram

dois passarinhos, pousaram no galho do pé de pau. Um dos passarinhos disse:

– Aquele rapaz pobre furtou aquela moça rica e deu ao amigo, mas ele não se lucra

dela.

– Por quê?

– Porque amanhã, quando eles forem viajando, vão encontrar três cacimbinhas. Ela vai

pedir para beber água. Quando beber água daquela cacimba, ela morre.

– E não tem jeito?

– Jeito tem, se ela não beber água das duas primeiras cacimbas. Só se beber água da

terceira cacimba. Aí não morre não. E quem essa história contar, em pedra mármore virará.

Ficou tarde, os dois rapazes e a moça dormiram ali mesmo debaixo do pé de pau. No

outro dia de manhã seguiram viagem. Muito na frente, o sol quente, deu sede na moça.

Encontraram a primeira cacimba:

– Fulano, eu estou morrendo de sede.

O rapaz pobre disse:

– Não, Fulana, não queira essa água não que tem sujo. Essa água é sebosa.

– Mas eu morro de sede!

– Na frente você toma água.

Saíram. Na outra cacimba ela também quis beber água, ele não deixou. Ela só foi

beber água na derradeira cacimba.

Andaram, andaram. Pararam debaixo de um pé de pau para lanchar. Os dois

passarinhos chegaram:

– Ah! Ela escapou de uma, mas de outra não escapa. Ela vai querer comer um cacho

de uvas. Se ela comer das uvas, morre. E quem essa história contar, em pedra mármore virará.

O rapaz pobre ouviu aquela conversa. Depois de descansarem, os três seguiram

viagem. Muito adiante, encontraram uma plantação de uva. A moça disse:

– Eu estou com fome. Quero um cacho daquelas uvas.

O rapaz pobre, para livrar a moça, disse:

– Não, Fulana, essas uvas não prestam não. Essas uvas estão quentes. Mas na frente

você chupa uva.

Livrou a moça. Ela comeu uva mais na frente. Só quem sabia desse mistério era ele.

Anoiteceu, eles foram dormir assim debaixo dum pé de pau frondoso. No outro dia, de

manhã bem cedo, chegaram os passarinhos:

Page 184: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

183

– O pobre roubou a moça rica e deu ao amigo, mas ele não se lucra dela.

– Por quê?

– No entrar da casa dele, a porta cai e mata a moça.

– Não tem jeito não?

–Jeito tem, se botar a porta baixo. E quem essa história contar, em pedra mármore

virará.

O pobre ouviu aquilo, saiu na carreira na frente pra botar a porta abaixo para livrar a

moça de morrer. Chegou lá, botou a porta abaixo. Quando o rapaz e a moça chegaram e

embarcaram de casa adentro não sofreram nada.

O pobrezinho foi-se embora para a casa dele e o rico ficou mais a moça para cara. O

pai dela muito satisfeito, que o rapaz era rico. Marcaram logo da data do casamento.

No dia, casaram-se a moça rica com o rapaz rico, o pobrezinho de lado. Depois do

casamento, o rapaz pobre saiu assim para um jardim, foi-se sentar debaixo de um pé de pau.

Chegaram os passarinhos:

– Aquele rapaz casou com aquela moça, mas ele não se lucra dela.

– Por quê?

– Por que de noite, quando eles estiverem dormindo, vem um bicho e mata ela.

– E não tem jeito não?

– Jeito tem, se uma pessoa ficar escondida dentro do quarto, de vigia, e quando o

bicho chegar, matar. Agora quem ficar de vigia tem que dormir pouco e ser bem vigilante. E

quem essa história contar, em pedra mármore virará.

Haja o pobrezinho imaginar como livrar a vida daquela mulher do amigo. O que era

que fazia? Foi lá dentro da casa, teve uma oportunidade – pou: debaixo da cama dos noivos!

Ficou lá escondido com um alfanje nas mãos. “Vou fazer o que o passarinho disse”.

Terminou a festa, todos foram dormir. O rapaz pobre debaixo da cama. Os noivos

agarraram no sono. Quando o pobrezinho deu fé, chegou aquela cabeça preta desse tamanho!

Os olhos de fogo! Vinha já encostando para matar a moça. Ele pá, com o alfanje, feriu aquela

cabeça! Ainda pingou um sanguezinho no rosto da moça. Aquela cabeça retirou-se e foi-se

embora. A moça levantou-se:

– Fulano! Espie seu amigo dentro do meu quarto! Ele foi falso a você. Você disse que

ele era seu amigo! Passou a noite aqui, no meu quarto, dormindo, Fulano! Cabra atrevido!

O marido alevantou-se atarantado. Não sabia de nada.

– Nada, mulher. S’aquieta, mulher! Calma. Deixe ele contar a história dele.

O rapaz pobre disse:

Page 185: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

184

– Bem, meu amigo, eu vou lhe dizer. Olhe, eu roubei essa moça e lhe dei. Que no

caminho eu disse: “Ô meu amigo, você quer essa moça?” Você quis. Ela disse que queria.

Pois bem. No caminho, ela desejou beber água. Eu tinha ouvido um passarinho dizer que se

ela bebesse água naquelas duas primeiras cacimbas, morria. Eu não deixei ela beber água nas

duas cacimbas. Só deixei na derradeira.

Ele foi-se virando em pedra mármore. Virou-se em pedra até o joelho.

– O passarinho também avisou que se ela comesse aquelas uvas, morria. Eu livrei a

vida dela das uvas.

Virou pedra até a cintura. O amigo disse:

– Ah, meu amigo, não conte mais essa história não!

– Agora eu tenho que contar até o fim. Eu comecei, tenho que findar. Bem, meu amigo,

você se lembra de que quanto estava perto daqui eu saí na carreira na frente? Quando você

chegou em casa estava a porta abaixo.

– Foi, lembro.

– Pois bem. O passarinho avisou que você não se lucrava desta mulher, que a porta

caía em cima dela e matava. Eu livrei ela da morte.

Ele ficou virado em pedra te aqui. Olhe.

– Bem, meu amigo, você se casou. Eu vim livrar sua mulher da morte mais uma vez.

Que o passarinho avisou que você não ia viver com ela – aquela cabeça matava ela, você

ficava sozinho. Eu gosto muito de você, vim livrar sua mulher da morte.

Virou-se em pedra todinho. Ficou aquela pedrona dentro do quarto. Haja o amigo se

maldizer:

– Não tenho o que fazer!...

E ela:

– Agora não tem mais jeito. Não se importe com isso.

O rico foi viver, mais a mulher. Com uns tempos, a mulher se apresentou de gravidez.

Descansou. Quando terminou a resguardo, o homem ouviu uma voz:

– Tu queres desencantar seu amigo?

– Como é que eu posso desencantar meu amigo? Como é?

– Ah! É muito fácil. Teu filho novo. Tu chegas, pegas uma bacia virgem botas debaixo

da redinha de teu filho e rolas ele no meio. Aparas o sangue na bacia e jogas em cima da

pedra, que teu amigo desencanta.

Page 186: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

185

Foi. O rapaz disse: “Eu não posso fazer isso com minha mulher dentro de casa”. Ele

pegou uma bacia virgem e guardou escondida dela, num canto. Pediu à mulher para ir à

cidade comprar um objeto para ele. Para enganar ela, ouviu! Ela disse:

– Está certo, marido. Depois eu vou.

Almoçaram.

– Agora tu vais.

Ele doido para desencantar o amigo. A mulher foi à rua comprar a encomenda que ele

pediu sem ter precisão. Inventou aquilo pra ela sair de casa e ele ficar sozinho com o filho.

Quando ela saiu, ele pegou a bacia botou debaixo da rede e passou o alfanje no menino. O

sangue correu, ele aparou embaixo da bacia e jogou na pedra. Quando jogou, a pedra

estremeceu: performou-se o amigo dele do jeitinho que era!

– Ô meu amigo! Não pensei de lhe ver agora!

Abraçou o amigo.

– Cadê sua mulher?

– Minha mulher foi pra rua.

– Eu queria ver sua mulher dizer que você, meu amigo, é leal, mas ela não é não.

O pobrezinho saiu, foi dar um passeio. Mais tarde a mulher estava conversando no

quarto com o marido, ele chegou:

– Oxente!

O amigo nem se lembrou que tinha rolado o filhinho.

– Eu desencantei meu amigo. Agora, meu amigo fica aqui mais eu.

– Fico não. Não é por você, é por sua mulher. Meu amigo, adeus. Até o Dia de Juízo!

Que você é amigo leal, mas ela não é não.

O amigo pobre foi-se embora. Quando ele saiu, o outro lembrou-se do filhinho:

– Ah! Eu vou onde está o menino!

Chegou na redinha, o menino estava do jeitinho que era, normalzinho. Ainda estava

mais bonito do que era.

Page 187: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

186

ANEXO C - Va - A PRINCESA DA PEDRA FINA

Era um pai de família que tinha três filhos: José, João e Manoel. Eles viviam

trabalhando, aperreados. Chegaram debaixo do pé de juazeiro e foram prosar. José disse:

– Ô João, Ô Manoel, se aqui agora chegasse um prato de feijão de côco, eu ficava lá

em cima!

João disse:

– Você sabe de nada! Bom não é feijão com côco, bom é munguzá com feijão! Se

chegasse aqui eu ficava lá em cima!

Manoel disse:

– Vá com essa conversa pro inferno! Eu, o que desejava ver era as pernas da Princesa

da Pedra Fina.

Foi lá dentro, puxou uma corda e tacou no lombo de Manoel. Deu-lhe como diabo! A

mãe acudiu e ele disse:

– Ô mamãe, eu vou-me embora, não posso ficar aqui, vou-me embora!

– Não vá não meu filho.

Ela abençoou.

– Vá meu filho! Que Deus e a Virgem Maria sigam seus passos!

Ele saiu, saiu, saiu... quando chegou na frente, estava um cavalo velho encostado num

cacimbão, morrendo de sede. Ele então pelejou pra ver como era que podia dar água aquele

cavalo. Descia de cabeça abaixo com chapéu e trazia cheio d’água. Quando chegava aonde

estava o cavalo, chegava meio, a água se derramava. E o cavalo foi bebendo, foi bebendo...

quando encheu o bucho, a sede era tão grande que ele caiu e morreu. Ele disse:

– Não tem nada não, eu vou levar pelo menos as crinas pra me lembrar dessa caridade

que fiz.

Botou no bolso as crinas do cavalo e saiu.

Quando mais na frente, estava um cachorro pegado com a raposa em tempo de matar.

Depressa ele deu no cachorro pegado com a raposa em tempo de matar. Depressa ele deu no

cachorro e soltou a raposa. Quando a raposinha se soltou, falou:

– Ô Manoel quando você se ver no maior aperreio, você diga: “Me valha raposinha!”

que eu estou pronta pra lhe valer. Manoel aquele cavalo que você deu água vai lhe servir

como seu guia. Você vá por aqui e procure o reinado da Princesa da Pedra Fina, que vai sair lá.

Vá nessa estrada. O primeiro é o da Princesa.

Page 188: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

187

Ele saiu rua afora e lá vai, lá vai... Quando chegou mais na frente avistou um reinado

muito grande, aí tomou chegada, foi pedir um emprego e empregaram de jardineiro mas sem

ver assunto nenhum.

Os irmãos dele disseram:

– Ah, sabe papai, nós vamos atrás de Manoel. Vamos ver o que ele fez.

Saíram sem destino mas chegaram neste dito reinado e se empregaram.

Estavam empregados mas não viam Manoel porque ele trabalhava no jardim e eles

trabalhavam no sítio. Mas um dia eles se encontraram:

– Mas Manoel, você por aqui? Que reinado é esse?

– Esse reinado é o da Princesa da Pedra Fina.

Eles foram indagando... Manoel era só no jardim, não via ninguém. É que a princesa

vivia encantada nas montanhas. Quem desencantasse, casava com ela.

José disse:

– O senhor rei tem uma filha encantada nas montanhas e quem desencantar, casa com

ela.

– Casa! Eu mesmo não desencanto não, mas eu tenho um irmão que desencanta.

– E quem é?

– É Manoel, seu jardineiro.

O rei Mandou chamar Manoel.

– Manoel, você disse que desencantava minha filha que é encantada nas montanhas?

– Eu não disse não, senhor rei, mas como meus irmãos disseram, eu vou fazer.

Manoel saiu, saiu... saiu de caminho afora. Quando chegou adiante, estava a raposinha

esperando por ele:

– Manoel, eu não lhe disse que você não se acompanhasse com seus irmãos? Eu não

disse Manoel?

– Mas são meus irmãos, minha raposinha, o jeito que tem é fazer a palavra deles.

– Pois, Manoel, você vai. Eu vou lhe ensinar: você chama o cavalo pelas crinas.

Quando ele encostar, chega arriado de tudo! Você então se infinque de rua afora e não se

incomode que o cavalo vai sair lá. Ele é seu anjo da guarda. Quando você chegar no portão,

tem uma cobra e você repare: se ela estiver com os olhos fechados, você solte não entre que

ela está acordada. Agora, se ela estiver com os olhos abertos, você pode entrar que ela está

dormindo. Veja também que na venta dela tem uma chave. Você tire que é a chave de abrir o

portão. Vá ligeiro, ela está dentro do quarto trancada. Com a mesma chave, você destranca.

Page 189: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

188

Manoel saiu. A cobra estava no portão com os olhos abertos, ele aí tirou a chave e

destrancou o portão e saiu. Adiante destrancou o quarto, tirou a princesa e empurrou na

garupa do cavalo. Trancou o quarto, e botou a chave na venta da cobra e voltou pro reinado.

Quando chegou lá que o rei deu fé da chegada da filha, foi uma festa muito grande!

Foi muito foguetão! Foi muita bomba!

Quando Manoel foi guardar o cavalo, a raposinha estava esperando.

– Manoel, você agora faz uma armação com seus irmãos porque eles querem lhe matar.

Se você não abrir do olho, eles lhe matam! Você diz ao rei que José e João tem coragem de

ficar dentro de um quarto com uma arroba de pólvora e o rei com o estopim do lado de fora,

vai tocar fogo e pra quando incendiar a pólvora, eles apagarem.

Manoel foi ao rei:

– Senhor rei, José e João disseram que tinham coragem de ficar dentro de um quarto

com uma arroba de pólvora e se o senhor tocar fogo no estopim do lado de fora, eles apagam

o fogo.

O rei disse pra João e José:

– Vocês disseram que tinham coragem de ficar dentro de um quarto com uma arroba

de pólvora e eu tocar fogo no estopim do lado de fora, vocês apagavam o fogo?

– Eu não disse não, mas como Manoel disse, nós vamos fazer.

Trancaram os dois dentro do quarto, botaram uma arroba de pólvora dentro e o

estopim fora.

Manoel estava muito longe da cidade, quando botaram fogo, foi um estopim tão

grande que o menor pedaço deles dava pra caber dentro de um dedal. Acabaram com a vida

deles.

O rei fez o casamento com a Moça da Pedra Fina. Ela disse:

– Olha Manoel, só você me tirava daquele canto. Você desejou ver as pernas da Moça

da pedra Fina e hoje está se dando bem.

Page 190: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

189

ANEXO D - Vb – PRINCESA DA PEDRA FINA

Olhe, estavam no roçado o pai com os três filhos. Às onze horas, o rapaz mais novo

disse:

– Eu pai, eu estou com tanta fome. Agora se eu apanhasse um bocado de pipoca de

milho pra comer, num instante matava minha fome.

O outro rapaz disse assim:

– Ah! Eu também estou com fome. Mas o que matava minha fome agora era um prato

de bredo.

Joaquim, o mais velho, disse:

– Eu, para matar a fome, bastava me deitar no colo da Princesa da Pedra Fina.

Quando ele disse aquilo, o pai tirou o cinturão e deu uma surra em Joaquim. Daí a

pouco chegou a mãe dos rapazes com um bocado de pipocas torradas e um prato de bredo.

Joaquim disse:

– Eu não quero comer não. E amanhã eu vou-me embora pelo mundo.

No outro dia, Joaquim despediu-se da mãe e foi-se embora. Saiu, saiu mundo a andar.

E haja andar, haja andar. Andou, andou, andou, andou... Muito na frente, chegou assim num

lugar que nem um arruado – que nem uma rua, mas sendo de pedras só, só, só. Então, tinha

assim uma loca debaixo de uma pedra, ele disse: “Ah! Eu vou me hospedar aqui. Vou passar a

noite aqui. Vou passar a noite aqui. Isso é bem dormida de alguma onça... “Ele andava

prevenido – ouviu! – Armado. Entrou na loca, ficou lá: “Se for dormida de onça ou ela me

mata ou eu mato ela!” Ficou. De tardezinha, assim por volta das quatro horas, Joaquim ouviu

tocar a campa. Então, estabeleceu aquele palácio. De tudo tinha ali. Ele ouviu uma voz dizer:

– Joaquim, vai tomar banho, trocar de roupa para cear.

Que era hora da ceia – ouviu! E ele não via ninguém. Aquele palácio todinho

desencantado – de tudo tinha – e ele não via ninguém.

Ele foi para o banheiro tomar banho – tinha sabonete, uma toalha bonita! Joaquim

tomou banho e veio pra mesa – a mesa estava completa de um tudo. Ele comeu à vontade.

Acabou de comer, aquela voz disse assim:

– Joaquim, vai lá pro teu cantinho.

Pronto, acabou-se – desapareceu o palácio, ficou a mesma loca em que ele entrou. “Eu

estou bem aqui, estou comendo... Fico aqui, não tem nada não. “Ficou. Ficou Joaquim lá. No

outro dia, de manhã veio o café, ao meio dia o almoço e antes das quatro horas ele ouviu

novamente tocar a campa – o palácio apareceu. Ele foi, tomou banho, e depois tudo voltou a

Page 191: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

190

ser como era antes - o palácio sumiu, ficou a mesma loca de pedra. No terceiro dia a mesma

coisa – tomou café da manhã, almoçou e às quatro horas ouviu tocar a campa e estabelecer o

palácio. Agora esse palácio tinha três quartos, um junto do outro. Joaquim tomou banho e foi

cear. Quando acabou de cear a voz disse assim:

– Joaquim, abre o primeiro quarto. A chave está na porta.

Joaquim foi lá, botou a mão na chave, abriu o quarto: Estava aquela princesa sentada.

Ela disse assim:

– Joaquim, me cate um piolho.

Joaquim pegou a catar piolho na princesa. Cantando...

– Joaquim, olhe. Quando tu achares uma croa na minha cabeça, um carocinho, tu

arranques.

Joaquim caçou na cabeça dela, caçou, caçou, chegou aqui, na croa da cabeça, fez

assim: arrancou um alfinete deste tamanho. Aí a princesa desencantou! Aquela princesa

bonita!

– Ah, Joaquim! Faltam dois dias pra tu me desencantares.

Eram três dias – ouviu! Não era tudo de uma vez não.

A princesa ficou ali mais ele palestrando, muito bem satisfeita.

– Joaquim, faz cem anos que eu vivo nesse encanto. Eu, meu pai e minha mãe. Agora,

Joaquim amanhã tu vais fazer a mesma coisa com minha mãe e depois com meu pai.

Pronto. Desapareceu o palácio, ficou só a loca de pedra. A princesa também

desapareceu. No outro dia, chegou café de manhã para Joaquim, ao meio dia o almoço e às

quatro da tarde ele ouviu outra vez a campa – o palácio desencantou-se. Joaquim tomar banho

e cear. Chegou a princesa disse assim:

– Joaquim, é hora! A chave do segundo quarto está na porta. Vá abrir.

Ele foi, fez assim: riiim! Abriu o quarto: apresentou-se a rainha! Aquela formatura

daquela pessoa. Ela disse assim:

– Cate aqui um piolhinho em mim.

O rapaz pegou a catar piolho na cabeça da rainha, pegou a catar – que a princesa havia

dito a ele que fizesse na cabeça da mãe e do pai o mesmo que fizera na dela. Ele foi caçando

na cabeça da rainha, foi caçando, caçando, arrancou! A rainha estabeleceu! Ficaram

desencantadas a princesa e a rainha. O rei ficou para o outro dia.

Aconteceu do mesmo jeito das outras noites – O palácio desapareceu, ficou a loca de

pedra, Joaquim dormiu. No outro dia, chegou o café da manhã, ao meio dia o almoço e às

Page 192: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

191

quatro horas da tarde ele ouviu a campa tocar. Novamente surgiu o palácio. Ele foi, tomou

banho e veio cear. Acabou, chegou a princesa.

– Joaquim, está na hora de tu desencantares meu pai. A chave está na terceira porta.

Ele foi lá no terceiro quarto, fez riiim! – abriu a porta, lá estava o rei sentado. Joaquim

chegou, pegou catar a cabecinha do rei, pegou catar – aquela formatura . Encontrou um

carocinho na croa da cabeça. Arrancou assim aquele carocinho, estabeleceu tudo! Aquela

ruma de pedra tudo era casa: só, só, só. A igreja, o quartel de polícia, tudo! Era uma cidade

que tinha tudo. Aí o rei disse assim:

– Agora, Joaquim, você vai se casar com minha filha.

– Rei meu senhor, o senhor quer que eu case com sua filha? Por que não casa ela com

um príncipe por aí? Eu sou um forasteiro, não tenho nada, meu pai é pobre...

– Mas, me diga uma coisa, Joaquim. Não foi você quem desencantou minha filha, eu e

a rainha? Só possa dar você pra casar com minha filha.

Fizeram o casamento – muita festa, muita alegria. Passou, passou-se. Com muito

tempo, os dois irmãos de Joaquim casaram-se lá na terra deles, cada um com uma mocinha

pobre como eles. Um dia, o pai chamou a mulher, os filhos e as noras e disse assim:

– Vamos nos juntar e vamos atrás de Joaquim para ver se a gente dá com ele.

Saíram todos – pai, mãe, os dois irmãos e as cunhadas de Joaquim a procura dele.

Andaram, andaram. Foram, bater no reinado onde estava Joaquim. Chegaram aquelas seis

pessoas no palácio do rei. Bateram, Joaquim foi atender. Olhou assim, conheceu o pai, a mãe

e os irmãos - as duas moças, não, que ele não conhecia. Joaquim, em traje de príncipe, muito

bonito, ninguém conheceu. Ele chamou todos pro alpendre grande que tinha assim no palácio:

– Venha cá, minha gente!

(É agora)

– Venham todos para cá que eu vou mandar preparar um almoço para vocês.

Mandou uma pessoa na horta buscar bredo e preparar aquele bredo. Mandou torrar um

bocado de pipoca. Os criados prepararam o bredo e a pipoca e trouxeram para a mesa. Agora

o pai de Joaquim fazia assim:

– Oxente! O rei vai dar um almoço à gente de milho e bredo!

(Sim. Tinha uma coisa: Joaquim pegou o cinturão do pai com que tinha apanhado e

botou em cima da mesa)

– Vamos todos almoçar!

Foram todos almoçar.

Page 193: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

192

– Está aqui um prato de bredo para Fulano. Este outro prato aqui de milho é para

Sicrano. Isto é o almoço de vocês.

Os dois rapazes ficaram assim... Só para eles dois! E o cinturão assim, em cima da

mesa. Joaquim disse assim:

– Ô princesa,vá ver três cadeiras.

A princesa foi, trouxe as cadeiras. Ele botou uma cadeira assim, outra assim – fez que

nem uma cama.

– Se sente aqui, princesa, nessa cadeira.

A princesa sentou-se. Joaquim botou a cabeça no colo dela.

– Tá vendo, meu pai? Olhe o que eu desejei naquele tempo lá no roçado! Esta aqui é a

Princesa da Pedra Fina, que eu desejei. Estou deitado no colo dela. Esse cinturãozinho aí foi o

que o senhor deu em mim. Agora, esse prato de bredo para Fulano que desejou comer bredo, e

esse de pipoca de milho pra Sicrano, que desejou comer milho. Desejar o que é bom, não o

que é ruim.

Joaquim levantou-se, tomou a bênção ao pai e a mãe, abraçou os irmãos e as cunhadas

e foi aquela alegria muito grande! Foi uma festa!

– Bem, meu pai e minha mãe vão morar num canto. E vocês dois vão trabalhar para se

manterem, que eu vou sustentar só meu pai e minha mãe. Vocês são moços, podem muito

bem trabalhar para sustentar suas mulheres.

Pronto terminou.

Page 194: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

193

ANEXO E - Va – O FILHO DO RICO E O FILHO DO POBRE

Estavam o rico e o pobre a conversar. O rico dizia: que valia mais Ter do que Saber e

o pobre dizia que valia mais o Saber do que o Ter.

– Pois compadre, meu filho vai viajar e o seu também.

O pobre disse:

– O meu vai com a maca nas costas e a rodilha.

O dele ele aprontou, botou de tudo, encheu a mala chega ia gemendo de dinheiro, de

roupa, de tudo.

Saíram os dois e se apartaram no caminho. O rico chegou numa cidade e começou a

farrar e a dançar; era nêga chega fervilhava. Acabou com tudo que tinha e ficou morrendo de

fome. Enquanto ele tinha, tinha amigos, mas quando acabou com tudo, estava morrendo de

fome, sem ter nada.

O rico disse:

– Vou morrer aqui de fome, vou-me embora!

Saiu dessa cidade, andou, andou, andou, andou muito, foi sair na casa do Cururu que

era encantado. Quando chegou, o Cururu botou a cabeça na porta, ele disse:

– Virgem que bicho feio!

Saiu a princesa que era filha dele, mandou entrar, ele entrou, sentou-se, ela disse:

– O senhor sabe ler?

– Sei.

Ele não sabia nem o A. Ela foi ver um bocado de livro, ele abria, olhava, olhava...

Botava lá, cansou.

– Sabe tocar?

– Sei.

Ela foi ver um instrumento e ele só fazia olhar, não sabia tocar, não sabia de nada.

Quando foi de noite, o pai dela encantado num sapo. Se sentaram, tudo comendo, quando

estava no meio da mesa, ele apagou a luz e disse:

– Se abrace com que achar melhor.

Quando acendeu a luz, ele estava abraçado com um prato de comer.

Ela disse:

– Esse, amanhã vai para o alçapão.

Tinha um alçapão que já tinha não sei quantos.

No outro dia, ela disse:

Page 195: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

194

– Agora vamos olhar minhas quintas.

Saiu com ele. Ela na frente e ele atrás. Atravessaram o riacho. Ela levantou a roupa até

as coxas, do joelho pra cima. Andaram, reparando as coisas. Quando chegou em casa, ela

disse:

– Achou minha quinta bonita?

– Achei muito bonita, mas o que achei mais bonito foi aquele pé de umbuzeiro florado.

– Esse bicho vai é pro alçapão...

Quando chegou em casa, ela agarrou ele e botou dentro do alçapão, onde já tinha não

sei quantos porque eram uns bestas.

Com três dias chegou o filho do pobre. Bateu na porta, quando o Cururu botou a

cabeça, ele disse:

– Deus o guarde, seu doutor!

O Cururu disse:

– Mais um rato que nessa casa entra.

Ela botou um livro pra ele ler, ele leu, leu, leu, até cansar. Sabia ler, era pobre mas

sabia. Ele foi ver os instrumentos, ele tocou, tocou, tocou, até cansar. Foi botar a janta, ele

serviu o Cururu, conversou com ele. Quando estavam no meio da mesa, ela apagou a luz:

– Agora se abrace com quem você achar melhor.

O Cururu disse:

– Ah, esse é sabido!

No outro dia disse:

– Agora vamos olhar a quinta.

Saiu com ele. Ela na frente, ele atrás.

Quando chegou no riacho, ela levantou a roupa até o joelho e atravessaram. Andou por

todo canto com ele, olhando as frutas. Quando voltaram, ela disse:

– Achou minhas frutas bonitas?

– Muito bonitas! Tudo muito bonito! Mas desculpe eu lhe dizer que o que achei mais

bonito foram as pernas de Vossa Excelência.

Quando acabaram de chegar em casa, o Cururu já tinha se desencantado. Ela então

casou com o rapaz e ficaram em casa.

Um dia ela estava passeando com ele no quintal e ele perguntou:

– E o que é aquilo?

– É um alçapão.

Foi contou a ele que muitos já tinham morrido ali:

Page 196: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

195

– Abra aí pra eu ver.

Quando abriu, viu o amigo dele tão amarelo, já perto de morrer.

– Pois eu quero que tire ele. Vou tratar dele e vou levar á casa dos pais dele pra o pai

dele saber que o que vale mais é o Saber do o Ter.

Tirou ele, tratou dele um mês. Estava quase morto. Quando ficou bom:

– Quer ir pra casa de seu pai?

– Quero.

– Pois amanhã eu vou com minha mulher tomar a bênção aos meus pais e levo você na

carruagem.

Ele disse:

– Não senhor, eu vou a pé com a maca nas costas que é para meu pai saber que o que

vale mais é o Saber e não o Ter.

No outro dia se arrumaram entraram na carruagem e saíram bem devagarinho e ele

atrás com a maca nas costas.

Quando avistaram os pais deles que estavam juntos:

– Compadre, aquele que vem na carruagem é meu filho!

O rico disse:

– Eu sei compadre... Se for o meu, vem pra aqui e, se for seu, vai pra sua casa.

Aí, quando foi chegando perto, a carruagem foi pra casa do pobre e o rapaz rico foi pra

casa do rico.

– Está vendo meu pai, o senhor como estava errado? O que vale mais é o Saber. O Ter,

sem o Saber não vale nada.

Aí o velho com desgosto tão grande que teve do filho chegar naquele estado, caiu de

cima do sobrado, morreu. O rapaz rico não quis mais saber de festa, de nada, foi aprender,

formou-se, foi um doutor.

O filho do pobre carregou a família todinha pra morar com ele. Ficou rico pra nunca

mais trabalhar.

Page 197: O Conto na Literatura Popular: percurso gerativo da significação

196

ANEXO A - Vb – O COMPADRE RICO E O COMPADRE POBRE

Eram dois compadres que moravam juntos: um rico e um pobre. Agora o rico só dava

valor à riqueza – que era rico – e o pobre só dava valor ao Saber. Era pobre mas só dava valor

ao Saber. Não dava valor a riqueza. Castigou o filho dele nas escolas para ele aprender fosse o

que fosse para se formar mil vezes em vista do filho do compadre rico.

O compadre pobre disse:

– Bem compadre rico, você disse que só tem valor a riqueza, a pobreza não tem valor:

o Saber Não tem valor, só dá valor a riqueza. Pois vamos botar nossos filhos para andar pelo

mundo. O meu com Saber e o seu com a riqueza para saber quem arranja mais coisa?

– Pois não! Vamos!

Trataram o dia da viagem dos filhos e eles fizeram a viagem. Quando chegaram num

canto tinha duas estradas. O filho do compadre rico disse:

– Bom, aqui abre duas estradas; qual é a que você quer? Você quer essa vereda ou essa

estrada?

O pobre disse:

– Não, eu sou pobre, só posso andar por vereda; você é rico pode andar pelas estradas

que pode achar muita coisa boa: palácios bons! Nas veredas só posso arranjar um roçado ou

uma roça de planta , ou a casa de um pobrezinho, eu só posso procurar minha pobreza, não

posso procurar riqueza.

Saíram. O filho do compadre rico chegou a um palácio muito grande e veio uma criada

toda decente e falou:

– Ô de fora!

Ela entrou e disse:

– Menina, tem um rapaz aí elegante, bonito! É bonito mesmo!

Aí o velho, dono da casa disse:

– Entre!

Ele entrou e as moças saíram, fizeram continência. Mas o bicho era besta! As moças

faziam continência e ele baixava a cabeça. Vivia com a cabeça baixa, não olhava pra

ninguém .

O dono da casa disse:

– Esse bicho é besta!

Quando foi para janta, botaram a janta...

– Entre menino, venha jantar!

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Começaram a jantar. Já escurecia, a casa no escuro, acenderam as luzes.

– Apaga, apaga a luz! Apague pra ver quem está amparado.

Quando apagaram a luz; o velho abraçou-se com a velha; O irmão abraçou-se com a

irmã, mas sobrava uma que era para ele se abraçar. Como ele gostava muito de jerimum, tinha

uma tigelona de jerimum, então ele agarrou a tigela e ficou agarrado com ela.

– Acenda, acenda a luz! Para ver quem está amparado!

Estava a moça perto dele, olhando assim... ele pegado com a tigela.

– Vamos comer.

Começaram a comer e ele comendo...

– Oh jerimum bom! Mas se papai estivesse aqui e comesse uma talhada desse jerimum,

não era brincadeira não! Eu nunca vi um jerimum tão bom como esse!

– Tem uma coisa, vamos apelar para amanhã.

Quando foi no outro dia, ela trouxe um bocado de livro e botou na mesa. Ora! Ele não

sabia ler, não olhou para nenhum.

A moça disse:

– vamos olhar ali minhas quintas?

– Vamos.

Ele saiu com ela. No caminho, ela foi pegou assim a barra da saia, subiu uma coisinha,

cobrindo a batata da perna que era para ele dizer loa.

Ela andou, andou... quando chegou adiante, virou-se para ele:

– Hei, meu senhor, qual foi a coisa mais bonita que você viu aqui neste jardim?

Ele olhou assim, disse:

– Foi aquele pé de resedá.

– Ah, essa não!

Aí o velho preparou um chiqueiro bem grande e botou ele dentro. Todo dia, o comer

dele era só jerimum; só jerimum e ele dentro do chiqueiro preso. Só vivia comendo jerimum,

já estava gordo, boleado!

Depois de um mês e pouco, chegou o filho do compadre pobre. Nesta dita casa.

– Ô de casa!

– Ô de fora!

Quando chegou, que olhou, a empregada entrou e disse:

– Tem um rapaz ali fora... Tem uma coisa: ele parece que é pobre, mas tem uma coisa:

é bonito e elegante!

– Venha se sentar!

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Ele entrou, sentou-se, pegou a conversar. Depressa botaram um bocado de livro em

cima da mesa e ele só agarrando os livros e lendo.

Disseram:

– Ah, esse vai muito bem!

Botaram um bocado de instrumentos.

Ele pegava um, tocava um bocadinho num, um bocadinho n’outro. O bicho era sabido

mesmo.

– Esse me serve.

Na hora do jantar, botaram uma tigela de jerimum, botaram de tudo que era bom em

cima da mesa e ele começou a comer por ali... não espiou nem pro jerimum.

O rei disse.

Apaga, apaga a luz pra ver quem é que está amparado!

Apagaram a luz. O rei se abraçou com a rainha, o irmão se abraçou com outro, aí ele

botou o braço no ombro da moça, que estava perto dele.

– Acenda, acenda a luz pra ver quem está amparado.

Acenderam a luz.

– Ah, muito bem! Esse vai ser meu genro!

E ela disse:

– E esse vai ser meu esposo!

Quando amanheceu o dia, ela saiu com ele ao jardim. O velho e a velha olhando.

O mesmo serviço ela fez: descobriu as batatas das pernas e saiu andando. Quando

cansou de andar, virou-se pra ele:

– Me diga uma coisa: qual a coisa mais bonita, mais elegante que você viu no meu

jardim?

– A coisa mais elegante que eu vi nesse jardim... a senhora me desculpe em dizer e o

senhor com a senhora, mas foram as batatas das pernas da minha esposa. Pode ainda não ser

mas está para ser.

O rei disse:

– Pronto! Você via ser meu genro de hoje por diante!

Foram andar, mostraram o chiqueiro onde estava o amigo dele. Quando chegou lá que viu,

disse:

– Homem, por caridade! Soltem esse pobre! Mande dar banho nele. Isso é meu amigo,

é filho do vizinho de papai! Andava com ele. O pai dele dava maior valor a riqueza. Está aí o

que a riqueza arranja. Está cevado dentro do chiqueiro.

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Trouxeram ele, e botaram os negros com os cacos de cuia e sabugo para esfregá-lo.

Deram banho, limparam, vestiram a roupa dele.

O rei mandou buscar o pobre e fez o casamento do filho pobre e botaram ele numa

carruagem para ir tomar a bênção dos pais. O filho do rico botaram no meio da carga de um

burro, como bagageiro e tiraram na frente.

Quando foram chegando em casa dos pais...

– Eh! Lá vem meu filho acolá, numa carruagem! O seu vem num burro, tangendo no

meio da carga, viu!

O compadre pobre disse:

– Não aquele que vem na carruagem é o meu filho! E aquele que vem em cima do

bagageiro é o seu!

– É nada! É o que! O meu é o da carruagem!

Que quando o rapaz foi tirando a carruagem à procura da casa do compadre pobre, o

velho de lá gritou:

– Meu filho, sua casa é aqui, meu filho!

– Não, seu filho é o que vai aí em riba desse burro.

O velho depressa subiu para o sobrado com a velha e de lá pularam de cabeça abaixo.

Quebraram o pescoço e lá mesmo se acabaram.

Na casa do compadre pobre foi uma festa muito grande que ainda hoje está rolando

por lá.