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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS (UFSCar)
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS (CECH)
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA (PPGS)
TAIN REIS DE SOUZA
PROPRIEDADE E RENDA FUNDIRIA:
CONFIGURAES CONTEMPORNEAS DO RURAL PAULISTA.
So CarlosJulho, 2013
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TAIN REISDE SOUZA
PROPRIEDADE E RENDA FUNDIRIA: CONFIGURAESCONTEMPORNEAS DO RURAL PAULISTA.
Dissertao apresentada, como requisito para obteno do Ttulo
de Mestre, ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia, da
Universidade Federal de So Carlos (UFSCar)
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Constante Martins
So Carlos2013
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT daBiblioteca Comunitria da UFSCar
R375prReis de Souza, Tain.
Propriedade e renda fundiria : configuraescontemporneas do rural paulista / Tain Reis de Souza. --So Carlos : UFSCar, 2013.
134 f.
Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de SoCarlos, 2013.
1. Sociologia rural. 2. Renda fundiria. 3. Questo agrria.4. Posse da terra. 5. Metamorfoses do rural. I. Ttulo.
CDD: 307.72 (20a)
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AGRADECIMENTOS
(...) somos seno um ecoMaurice Halbwachs
Durante a elaborao dessa dissertao me pareceu estranha a to comum frase: o
trabalho do pesquisador um trabalho solitrio. Claro que a elaborao do texto algo
de responsabilidade do pesquisador em si, mas como no considerar cada pequena
contribuio das pessoas que cruzaram nosso caminho? Assim, neste espao busco de
uma forma bem singela agradecer queles que cruzaram meu caminho durante o
processo de realizao da dissertao.
Em primeiro lugar, pessoas sem as quais esse trabalho no existiria: os interlocutores
do trabalho de campo executado durante a graduao, realizado na cidade de So
Manuel/SP. Foi por meio de suas falas que o to explcito, mas tambm to
invisibilizado, processo de arrendamento canavieiro me veio tona como tema de
pesquisa. Interlocutores esses que durante o mestrado tambm contriburam bastante.
Todo o pessoal do Sindicato Rural Patronal sou-lhes grata pela disposio e boa vontade
com aquela pobre mestranda perdida! Ao corpo da Casa da Agricultura tambm
agradeo muito. Sem citar nomes, deixo aqui meu muitssimo obrigado a todos e todasque aceitaram ser entrevistados e se dispuseram muitas vezes a abrir suas casas para me
receber. Sou grata a todos principalmente por aceitarem compartilhar comigo suas
realidades. Um agradecimento muito especial famlia de Pratnia, que me acolheu de
uma forma to positiva que me senti em casa! Sem a contribuio deles muito do
trabalho sequer seria possvel, em todos os sentidos, pois aquela vontade de resistncia
que me motivou tanto - e o cafezinho tambm, claro!
Contudo, o trabalho no se restringiu ao municpio de So Manuel. Foi em Barra
Bonita que pousei (como se diz no interior paulista) durante a pesquisa de campo, local
em que encontrei a senhora mais menina do mundo: Dona Cida, me alojou, me ajudou,
me inspirou. Muito obrigado mesmo! E, foi tambm na vizinhana que encontrei outra
grande ajuda. Agradeo profundamente ao vizinho que, alm de torcer comigo pelo
Corinthians na Libertadores da Amrica, me levou aos recnditos da Usina Razen.
Tentava sempre que andava pelas ruas de Barra Bonita achar o melhor ngulo para tirar
uma foto bem de longe da fumaa que saia da Usina; graas ao sr. Donizeti pude v-la
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de perto, conhecer a gigantesca estrutura de uma usina, ver os treminhes que iam e
vinham com cana e mais cana. Ao pessoal da Teckma (Donizeti, Welton e Eduardo),
que me abriu possibilidades de contatos dentro da usina e foi muito paciente me
explicando como funcionava tudo aquilo: muito obrigada mesmo!!
Ainda em Barra Bonita, devo muitos agradecimentos ao agrnomo responsvel pela
Casa da Agricultura, que sempre esteve disposio para tirar minhas dvidas. A todos
na Associao dos Fornecedores de Cana (AFIBB), desde o presidente, tesoureiro,
corpo tcnico agrcola, secretria, todos foram bastante abertos minha constante
presena e me situaram no espao da produo canavieira do municpio, muito
obrigada.
Claro que este trabalho tambm no seria possvel sem a importantssima
contribuio de meu orientador, Prof. Dr. Rodrigo Constante Martins. Foi um ano antes
de entrar no mestrado que em sua aula de Sociologia Rural me deparei com o tema da
renda fundiria, foi a partir de muitas conversas com o mesmo que foi elaborado o
projeto de mestrado e sob sua orientao que esta dissertao se realizou. E orientao
aqui no sentido stricto sensu, foi mesmo um guia. Sou grata por me mostrar uma luz
quando estava me debatendo no escuro! Aos colegas do grupo de estudos Ruralidades,
Ambiente e Sociedade (RURAS) que debateram meus textos, sempre apontando
questes pertinentes, obrigada!
Agradeo especialmente Prof. Dr Maria Aparecida de Moraes Silva, que nas
reunies do grupo de pesquisa do CNPQ Terra, Trabalho e Migraes e nas aulas do
mini-curso de Histria Oral sempre me inspirou a ver no trabalho sociolgico muito
mais a produo de um trabalho de crtica do que apenas de um trabalho cientfico, uma
cincia crtica! Agradeo imensamente tambm pelas contribuies feitas no exame de
qualificao, sem as quais essa dissertao com certeza perderia muito. Aos colegas
desse grupo, obrigado por compartilhar essa vontade de fazer...
Agradeo aos amigos da turma de mestrado que deram seus pitacos importantssimos
para que o texto de dissertao no ficasse to aberto (nem to fechado). E mais ainda
aos amigos de fora do mestrado, que me impediram de entrar em pnico e sempre
tinham a hora certa de me convidar para aquela cervejinha! Especificamente agradeo
Ktia e Cris, pela ajuda no texto de qualificao e Marisa e ao Rafa pelas correesde portugus e normas da ABNT da verso final da dissertao.
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Durante o difcil perodo de trabalho de campo e de escrita desta dissertao, devo
agradecer muito ao querido Ivan Acua, que em Barra Bonita me alimentou (enchendo
a dispensa com comida e meu corao com confiana e alegria) e que em So Carlos me
cobrou rigidamente a manter o foco. E com sua contribuio para adquirir o meio
material primordial para esse trabalho (o computador) pude escrever mais tranquila.
Lindo, muito obrigado mesmo!
Mas, tudo s foi possvel por conta de uma pessoa em particular. Ah, essa sim
responsvel no s por esse trabalho, mas por todas as coisas s quais dediquei o meu
melhor: minha mezinha! A voc gratido pouco. Sem voc, eu no seria ... Sou
porque tu s. Obrigadapor tudo!
Por fim, devo agradecer a CAPES por tornar tudo possvel, j que sem a bolsa de
mestrado minha subsistncia seria invivel. Ao Programa de Ps-Graduao em
Sociologia (PPGS) da UFSCar, que de formas distintas, seja por meio das disciplinas ou
das atividades extra-curriculares, me incentivou a produzir este trabalho. Especialmente
Prof Maria Ins Rauter Mancuso, que contribuiu bastante com suas observaes no
exame de qualificao. Devo agradecer tambm ao Prof. Dr. Pedro Ramos, da
UNICAMP, pela participao na banca de defesa desta dissertao, sua contribuio me
atentou para questes importantes. Um economista que dialoga com a sociologia deve
ser parabenizado, j que o conhecimento se constri em conjunto e com diversas
perspectivas, a voc Prof. Pedro, muito obrigada!
Se pudesse agradeceria a muito mais pessoas, mas penso que posso deixar essa
sensao boa de corao repleto para o cosmos. Desde o motorista do nibus que me
levava de Barra Bonita para So Manuel dia aps dia, atendente da padaria que eu
tomava o cafezinho no fim da tarde, ao taxista que escrevia poesias sobre o rio Tiet;
todos que cruzaram meu caminho fazem parte disso de alguma forma, ento, transbordo
essa gratido a todos!
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RESUMO
O objetivo do presente trabalho foi compreender as atuais relaes de arrendamento deterra para a produo canavieira no municpio de So Manuel e de Barra Bonita
SP, tendo como hiptese norteadora que a atual relao entre propriedade e rendafundiria mantm a questo agrria como tema pertinente na compreenso do que sedenominou como novo rural brasileiro e que as atuais relaes sociais de produo e
propriedade presentes no espao rural tambm so expresses das metamorfoses dorural contemporneo. A partir dos objetivos da pesquisa, optou-se por uma metodologiade base qualitativa, contando com observao direta e assistemtica, e entrevistas deroteiro semiestruturado. Foi realizada reviso bibliogrfica, que perpassou temas comoquesto agrria no Brasil, novas ruralidades e renda fundiria. Na pesquisa documentalfoi realizado levantamento dos registros institucionais municipais sobre os usos do solo,identificando os gneros produzidos e a quantidade e tamanho dos estabelecimentos
rurais. No trabalho de campo foram entrevistados pequenos proprietrios rurais quearrendam ou j arrendaram - parcial ou integralmente - suas terras para o cultivocanavieiro, e representantes dos principais rgos rurais municipais. Foi relatado que
por conta da grande demanda regional de cana de acar e das dificuldades namanuteno de outros cultivos, a maioria dos produtores passou a se dedicar produode cana de acar. Essa transio se deu no decorrer dos anos 60 e 70 - justamente
perodo de maior ao do Estado sobre o setor canavieiro, com a poltica de crditos eoutros incentivos. Posteriormente, com a necessidade de mecanizao da colheita e douso de tecnologias mais avanadas, a manuteno de pequenos fornecedores de cana setornou mais dificultosa. Por conta disso, e tambm devido ao envelhecimento dos
produtores e da falta de interesse dos herdeiros em manter a produo, o arrendamento
das propriedades para as usinas ou para grandes produtores de cana se mostrou comouma soluo. No decorrer da pesquisa descobriu-se que na realidade no se trata dearrendamento e sim de parceria agrcola. No caso estudado pequenos proprietrioscedem suas terras para uma grande unidade agroindustrial sucroalcooleira, para quem a
parceria, e no a compra das terras, se torna mais vantajosa. Afirma-se que nesse caso aparceria agrcola no aparece como um resqucio de relaes passadas, mas comoexpresso de relaes metamorfoseadas. Com a presena quase total de propriedadesarrendadas, rara a existncia de pequenos produtores rurais; so, de fato, pequenos
proprietrios rurais, que h anos sequer moram nas propriedades. Os proprietriosdetm o ttulo da terra, mas o exercem apenas em sua face jurdica. A propriedadeeconmica do solo, isto , a apropriao do excedente econmico da terra, das usinas
parceiras. Este tema no s est presente no rural contemporneo, como tambm sinalde suas metamorfoses. Como considerao final, pode-se dizer que frente stransformaes pelas quais o espao rural tem passado nas ultimas dcadas, a questo darenda fundiria aparece como um fator a mais, que deve ser considerado. O debate quevem pautando as transformaes dos espaos rurais no coloca em questo a presenada renda fundiria nem mesmo da questo agrria. De tal sorte que as alteraesreferentes s relaes entre propriedade e renda fundiria so parte dos espaos rurais eapontam tambm as metamorfoses do rural contemporneo.
Palavras chave: renda fundiria, metamorfose do rural, questo agrria.
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ABSTRACT
The objective of this study was to understand the current relations of rent of land forsugarcane production in So Manuel and Barra Bonita - SP, with the guiding hypothesisthat the current relationship between property and land rent keeps the agrarian questionas pertinent issue in the understanding of what is termed as a new brazilian rural andthat the current social relations of production and property present in rural areas are alsoexpressions of the contemporary rural metamorphoses. From the research objectives, itwas decided for a methodology of qualitative basis, with direct observation andunsystematic, and semi-structured interviews. The literature was reviewed, which
pervaded themes as agrarian question in Brazil, new ruralities and land rent. Indocumentary research was conducted survey of municipal institutional records of theland uses, identifying genres produced and the quantity and size of farms. During thefieldwork were interviewed small farmers who rent or have rented - partially or
completely - their lands for growing sugarcane, and representatives of the main rurallocal institutions. It was reported that due to the great regional demand of sugarcane andthe difficulties in maintaining other crops, most growers began to devote himself to the
production of sugarcane. This transition took place in the 60 and 70 - precisely theperiod of greatest State action on the sugarcane industry, with the policy of credits andother incentives. Later, with the need for mechanical harvesting and the use of moreadvanced technology, the maintenance of small sugarcane suppliers became moredifficult. For this reason, and also due to the aging of the producers and the lack ofinterest of the heirs to maintain production, the rent of properties for mills or major
producers of sugarcane appeared as a "solution". During the research it was discoveredthat in fact it not rent of land, but agricultural partnership. In the case studied
smallholder cede their land for a large sugarcane agribusiness unit, for whom thepartnership, and not the purchase of the land, it becomes more advantageous. It is statedthat in this case the partnership do not appear as a remnant of past relationships, but asan expression of relations metamorphosed. With the presence of almost total rent
properties is rare to have smallholder farmers, they are, in fact, small owners, who foryears even live in the properties. The owners hold title of the land, but only in the legalform. The economic property of the soil, in other words, the appropriation of theeconomic excess of land, belongs to the mill partner. This theme is not only present incontemporary rural, but also a sign of its metamorphoses. As a final consideration it can
be said that facing the transformations which the rural past has in recent decades, theissue of land rent appears as one more factor that should be considered. The debate that
has guided the transformation of rural areas does not question the presence of land rent -even the agrarian question. In such a way that the changes concerning the relations
between property and land rent are part of the rural areas and also point themetamorphosis of the contemporary rural.
Keywords: land rent, rural metamorphoses, agrarian question.
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 : Populao total - So Manuel e Barra Bonita, 1990-2000-2010 ............................. 21
Tabela 2: Distribuio dos estabelecimentos agrcolas por unidade de produo e rea.So Manuel - 1995-2008 .......................................................................................................... 28
Tabela 3: Distribuio dos estabelecimentos agrcolas por unidade de produo e rea.
Barra Bonita1995-2008. ....................................................................................................... 29
Tabela 4: Cultivo vegetal por unidades de produo e rea cultivada. So Manuel
1995-2008 ................................................................................................................................. 31
Tabela 5: Cultivo vegetal por unidade de produo e rea cultivada. Barra Bonita
1995-2008 ................................................................................................................................. 33
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Estado de So Paulo localizao dos municpios de So Manuel e Barra
Bonita ....................................................................................................................................... 18Figura 2: Mapa do cultivo da cana de acar (2012)So Manuel (1) e Barra Bonita (2) ..... 35
Figura 3: Passeio de barco no Rio Tiet. Barra Bonita. ........................................................... 98
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SUMRIO
APRESENTAO ................................................................................................................... 11
O nascimento da pesquisa......................................................................................................... 11Fazendo a pesquisa ................................................................................................................... 13
Organizao do texto ................................................................................................................ 16
1 UMA QUESTO DE SOBREVIVNCIA? A IMPORTNCIA DA RENDA
FUNDIRIA EM SO MANUEL E BARRA BONITA ........................................................ 18
1.1 FUNDAO E DEMOGRAFIA ....................................................................................... 18
1.2 ESTRUTURA FUNDIRIA .............................................................................................. 22
1.2.1 Breves consideraes sobre o papel do Estado ............................................................... 231.2.2 Caracterizao fundiria e produtiva ............................................................................... 27
1.3 OS PEQUENOS PROPRIETRIOS ................................................................................. 39
2 A PARCERIA DO ARRENDAMENTO E A RENDA DOS PARCEIROS - FORMA
E CONTEDO DA RENDA FUNDIRIA ............................................................................ 45
2.1 A PARCERIAIN LOCUS.................................................................................................. 47
2.2 O CONTEDO DA PARCERIA AGRCOLA ................................................................. 52
3 MAR DE CANA: A POSSE, O USO E A LEMBRANA DA TERRA ............................. 653.1 PROPRIEDADE JURDICA E PROPRIEDADE ECONMICA DA TERRA ............... 67
3.2 ESPOLIAO DA MEMRIA ........................................................................................ 72
4 RURAL - UM ESPAO SEM VIDA? ................................................................................. 83
4.1 AS NOVAS RURALIDADES ........................................................................................... 85
4.2 DEFINIES DO RURAL O RURAL COMO ESPAO DE VIDA E
CATEGORIA DE PENSAMENTO ......................................................................................... 88
4.3 A QUESTO AGRRIA NO RURAL METAMORFOSEADO - OS CASOS DE
SO MANUEL E BARRA BONITA ...................................................................................... 93
5 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 105
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 110
APNDICES .......................................................................................................................... 115
APNDICE ACADERNO DE FOTOS ............................................................................. 116
APNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA .................................................................... 124
APNDICE C - CARACTERIZAO DOS PROPRIETRIOS PARCEIROS ................. 126
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APRESENTAO
O nascimento da pesquisa
A ideia desta pesquisa fruto de uma observao emprica que ocorreu durante a
realizao da pesquisa de iniciao cientfica da presente autora. Foi observado em
relatos de pequenos e mdios produtores rurais do municpio de So Manuel, interior
paulista, a recorrncia e predominncia de terras arrendadas para a produo de cana
(REIS, 2010) 1. Isto , a maior parte das propriedades rurais j no era mais destinada ao
plantio de caf ou outras culturas tradicionais do municpio; a cultura canavieira semostrava cada vez mais presente. Contudo, no se tratava de um cultivo realizado pelos
proprietrios de terra e sim pelas usinas sucroalcooleiras da regio, por meio de
arrendamento. Dessa forma, os proprietrios passaram a se ocupar em outras atividades
que no a produo agrcola.
Ainda na pesquisa de iniciao cientfica, foi percebido que as configuraes
contemporneas do espao rural eram debatidas, no mbito da sociologia, pelo espectro
das novas ruralidades e do desenvolvimento territorial. Tais temas apontavam para uma
superao do vis setorial agrcola nos espaos rurais, mostrando a emergncia de novos
atores sociais e novas atividades, que no se relacionavam necessariamente com a
produo agrcola. Contudo, a partir da observao emprica de So Manuel, percebeu-
se que o vis setorial agrcola se mostrava presente na organizao social do municpio.
E mais, a presena do arrendamento de terras parecia ser um fator crucial nessa
organizao.
Destaca-se que os estudos acerca da renda fundiria proposta por Marx (1983)
realizados durante a disciplina de Sociologia Rural, ofertada pelo Prof. Dr. Rodrigo
Constante Martins, foi de fundamental importncia para a construo do problema de
pesquisa. Por meio dessa disciplina surgiram algumas questes, por exemplo: como a
renda fundiria impacta os territrios rurais atualmente? Como o debate das novas
ruralidades dialoga com tal realidade? A superao do vis setorial agrcola pressupe a
1Relatos coletados no trabalho de iniciao cientfica intitulado Territrio e novas arenas de poder norural paulista: um estudo de caso, sob orientao do Prof. Dr. Rodrigo Constante Martins, vinculado ao
projeto Jovem Pesquisador FAPESP - A distino social na governana da gua e do desenvolvimentorural. Posteriormente, o trabalho deu origem monografia e questo de pesquisa para o projeto demestrado da presente autora.
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superao da questo agrria? Se o agricultor se mantm como ator pertinente para a
compreenso do espao rural, qual seu papel no contexto atual, principalmente frente s
demandas locais?
Diante das indagaes supracitadas, surgiu a hiptese norteadora deste trabalho,
que a de que a atual relao entre propriedade e renda fundiria mantm o estatuto da
questo agrria como pertinente para a compreenso do que se designou como novo
rural brasileiro, e que as atuais relaes sociais de produo presentes no espao rural e
os processos que envolvem a questo fundiria so, tambm, expresses das
metamorfoses do rural contemporneo. O tema das metamorfoses do rural tambm
vinha sendo amadurecido desde a participao da presente autora no XX Encontro
Nacional da ANPOCS, onde o orientador deste trabalho coordenou um Grupo de
Trabalho sobre tal temtica.
Buscando colocar a hiptese da pesquisa prova, o trabalho teve como objetivo
analisar as relaes atuais de arrendamento de terra para a produo canavieira nos
municpios de So Manuel e de Barra Bonita, no estado de So Paulo, interpretando as
possveis articulaes entre renda fundiria e propriedade de terra. Acredita-se que os
casos dos municpios de So Manuel e de Barra Bonita podem corroborar para a
compreenso de tais questes, o primeiro pelo o que foi observado no prprio
depoimento de atores locais acerca da expanso do arrendamento, e o segundo pela
grande expresso na produo sucroalcooleira do estado de So Paulo e, sobretudo, por
ambos estarem interligados na relao da produo canavieira. Esses municpios se
localizam no centro do estado de So Paulo, regio que passou por importantes
processos relacionados questo agrria brasileira, como a marcante monocultura
latifundiria cafeeira, a posterior modernizao da agricultura e a ascenso da cultura
canavieira e dos complexos agroindustriais.
Como objetivos especficos, buscou-se:- identificar os usos da rea agrcola nos municpios de So Manuel e de Barra
Bonita, atentando para a quantidade de estabelecimentos e gnero da produo;
- identificar outras modalidades de uso da terra e dos recursos naturais para alm da
atividade agrcola e;
- identificar os agentes sociais (lanando mo de categorias como gerao e origem)
envolvidos no arrendamento de terra para a produo canavieira.
Destaca-se que no municpio de So Manuel grande parte da produo canavieiraincorpora a demanda da Usina Razen, de Barra Bonita. Nos ltimos 40 anos o
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municpio de Barra Bonita-SP (vizinho de So Manuel) se destacou como um
importante polo da produo sucroalcooleira do Brasil, contando com uma Usina que
tem a segunda maior capacidade de moagem de cana-de-acar do mundo. A presena
de uma grande unidade agroindustrial do setor no municpio foi fator decisivo nos
rumos tomados pela expanso da agricultura regional na segunda metade do sculo XX
(MARTINS, 2006, p.300). A cultura canavieira correspondia em 2003 a 93% da
explorao agrcola do municpio, e 60% do quadro de funcionrios da unidade
agroindustrial referida trabalhavam diretamente no plantio/colheita da cana. Alm disso,
os fornecedores que possuam rea agrcola de at 80 hectares arrendavam suas terras
para a Usina (MARTINS, 2006). O municpio tambm conta com a presena histrica
do turismo rural, em razo do reservatrio da Usina Hidreltrica e de sua eclusa. Por
esta razo, torna-se ainda mais relevante o estudo deste municpio, uma vez que este se
insere no contexto de novas ruralidades e mantm de alguma forma, uma questo
agrria fixada no territrio.
Diante do observado no municpio de So Manuel e dada a importncia da
produo sucroalcooleira do municpio de Barra Bonita, seu consequente impacto
regional e sua importncia no turismo rural, que o insere no debate das novas
ruralidades, explica-se a delimitao de ambos os municpios como base emprica desta
pesquisa. Nas ultimas trs dcadas, as relaes de produo e de propriedade fundiria
se complexificaram a tal ponto que tais elementos no podem mais ser vistos de forma
estanque. Este trabalho prope que a renda fundiria pode ter uma funo balizadora
entre esses elementos.
Fazendo a pesquisa
A partir dos objetivos da pesquisa, optou-se por uma metodologia de base
qualitativa, contando com observao direta e assistemtica, e entrevistas de roteiro
semiestruturado. Foi realizada reviso bibliogrfica, que perpassou desde o debate
clssico brasileiro sobre a questo agrria at a atualidade das novas ruralidades.
Destaca-se tambm, o uso da teoria da renda fundiria de Marx para a compreenso
sobre como o arrendamento se situa no territrio em questo. relevante esclarecer que
a renda fundiria no o arrendamento em si, sendo essa apenas uma de suas
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expresses. A renda fundiria aparece como parcela da mais-valia, apropriada pelo
proprietrio de terra.
A partir desse levantamento, se realizou pesquisa documental dos registros
institucionais municipais sobre os usos do solo, identificando os gneros produzidos e a
quantidade e tamanho dos estabelecimentos2. Estabeleceu-se a delimitao temporal a
partir da dcada de 1990 para efeito deste trabalho, uma vez que foi neste perodo que
se deu o fim do Instituto de lcool e Acar IAA, que resultou na mudana da
interveno estatal no setor canavieiro.
Posteriormente, foi feita a pesquisa de campo, que buscou identificar os atores
envolvidos nas relaes de arrendamento. Para tal finalidade contou-se com o sistema
de redes, proposto por Martins (2000), para o contato com os entrevistados. Por meio
de idas prvias a campo, tal sistema permitiu a identificao dos agentes sociais com
relaes sociais amplas, denominados elementos-polo. Esses corroboram com a
pesquisa no pela grande densidade informacional que possuem, mas sim pelo potencial
de inserir o pesquisador no espao social dos entrevistados escolhidos, justamente por
conta da amplitude de relaes. No caso desta pesquisa, os elementos-polo eram
representantes dos principais rgos relacionados com a produo agropecuria
municipal, Casas da Agricultura de So Manuel e Barra Bonita, Sindicato Patronal
Rural de So Manuel e Associao de Fornecedores de Cana de Barra Bonita.
Para a investigao no que tange s relaes de arrendamento em perspectiva
sociolgica, o roteiro de entrevista3 se estruturou sobre o objetivo de compreender o
perfil das famlias que arrendam, as motivaes para o arrendamento e as
representaes acerca da relao atual entre propriedade e renda fundiria. A
composio do universo amostral foi feita a partir da tcnica da densidade
informacional dos agentes sociais proposta por Patton (2002), ou seja, a partir do tipo
de informao que os agentes poderiam prover para o propsito da pesquisa.Assim, uma vez que as informaes passaram a coincidir, deu-se por completo o
universo amostral.
A insero em campo foi, em partes, tranquila. Em So Manuel, j havia contato
prvio com os representantes dos rgos ligados a produo agropecuria - Casa da
2 importante destacar que houve uma grande dificuldade na obteno de dados estatsticos dosmunicpios em questo, uma vez que outros rgos censitrios (Fundao Seade e IBGE) registram dadosdiferentes em relao estrutura fundiria e mesmo aos cultivos. Optou-se pelos dados municipais por
conta da proximidade com o produtor rural que a metodologia usada requer.3O roteiro de entrevista se encontra no Apndice B
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Agricultura e Sindicato Rural - por conta da pesquisa de campo j realizada em 2010,
durante a iniciao cientfica. Apesar disso, foi realizado um trabalho de reinsero
alguns meses antes da ida efetiva a campo. Em Barra Bonita, o esforo de pr-campo
estabeleceu redes com os rgos do municpio, Casa da Agricultura e Associao de
Fornecedores de Cana - AFIBB. O pr-campo, realizado em fevereiro de 2012, contou
com financiamento da FAPESP, por meio do projeto do orientador. Com esse
financiamento foi possvel a hospedagem em So Manuel e a realizao do
deslocamento entre esse e o municpio de Barra Bonita. O trabalho de pr-campo durou
um pouco mais de uma semana, tempo suficiente para reativar redes do perodo da
pesquisa de iniciao cientfica e concomitantemente criar redes novas em Barra Bonita.
A pesquisa de campo durou em torno de um ms e meio, perodo no qual a presente
autora residiu no municpio de Barra Bonita. A partir do contato com os membros do
Sindicato Rural e da Casa da Agricultura de So Manuel e da Associao de
Fornecedores de Cana de Barra Bonita se obteve os primeiros contatos com
proprietrios arrendadores. Cada um dos entrevistados indicava outros, e assim por
diante. Apesar de ter havido grande ajuda por parte da Casa da Agricultura de Barra
Bonita no que tange a questes de ordem tcnica, no foi possvel nenhuma indicao
de entrevistados. Esse um fato interessante quando contextualizado, j que a atual
situao dessa Casa da Agricultura precria, contando com pouco contato com os
produtores rurais e baixa infraestrutura.
Foram 19 os entrevistados4, dentre os quais 13 so arrendadores. Deste total, 05
arrendam para a Usina So Manoel, 05 para a Usina Razen e 03 para outros
fornecedores. Alm disso, foram entrevistados tambm 02 ex-arrendadores, 01
fornecedor arrendatrio, 01 agrnomo responsvel pela Casa da Agricultura de Barra
Bonita, 01 ex-funcionrio da Usina Razen responsvel pela parte industrial e 01
funcionrio da Usina Razen responsvel pelo setor de arrendamento. Houve tambmconversas informais com mais um arrendador da Usina Razen que tem propriedade em
So Manuel, e com o agrnomo responsvel pela Casa da Agricultura de So Manuel.
necessrio destacar que os municpios se diferenciaram significativamente no que
diz respeito recepo dos entrevistados com a pesquisadora. Em So Manuel houve
muitas recusas de entrevistas, desconfiana em relao aos objetivos da pesquisa e at
mesmo entrevistas desmarcadas. Mesmo os prprios agentes dos rgos relacionados
4A caracterizao dos interlocutores que se relacionam diretamente com a questo da renda fundiria(arrendadores, fornecedor arrendatrio, ex-arrendadores) consta no Apndice C.
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produo agropecuria sinalizavam que os produtores do municpio eram medrosos e
assustados. Acredita-se que isso se deva ao fato de ter havido, em meados dos anos
90, uma fraude na cooperativa de caf municipal, o que resultou no prejuzo de muitos
dos produtores rurais e gerou uma maior desconfiana da parte dos mesmos com
pessoas de fora. Por outro lado, em contato com a Associao de Produtores Rurais de
Pratnia (municpio vizinho a So Manuel, que era pertencente a ele at 1997) houve
grande facilidade e apoio por parte de uma famlia de produtores rurais.
Em Barra Bonita houve grande apoio por parte dos entrevistados, tanto para ceder
seus relatos, como para indicar outros entrevistados. O contato com o responsvel pelo
setor de arrendamento da Usina Razen, por exemplo, s foi possvel graas grande
cooperao de um dos entrevistados. A prpria visita a essa usina s foi possvel por um
acaso: um funcionrio terceirizado era vizinho da presente autora e se props a ajudar,
viabilizando a visita usina. Houve apenas uma situao constrangedora com um dos
entrevistados, que pediu que se desligasse o gravador e tentou barganhar o acesso a um
contrato de arrendamento.
Uma srie de dificuldades ocorreu durante a realizao da pesquisa de campo, tanto
de ordem prtica, como alimentao e locomoo, e tambm de ordem terica,
justamente pela invisibilidade do tema da renda fundiria nos estudos contemporneos
sobre o rural. Assim, foi mais difcil compreender o processo que vem ocorrendo em
So Manuel e em Barra Bonita. Espera-se que este trabalho possa contribuir com isso.
Organizao do texto
O texto est organizado em quatro captulos. No primeiro, so expostos os
processos de formao dos municpios em questo, em vista da prpria construo da
questo agrria em So Paulo e sua atual estrutura fundiria. Com carter maisdescritivo, sero apresentados alguns dados sobre a organizao fundiria e produtiva
dos municpios. Neste captulo j se apresentam os primeiros dados de campo,
principalmente aqueles que tangem importncia da renda fundiria - e do
arrendamento - para os entrevistados. Contudo, a questo da renda fundiria ser mais
bem discorrida no captulo seguinte.
Uma vez compreendido no primeiro captulo qual o quadro fundirio e a
importncia do arrendamento nos municpios estudados, no segundo captulo se buscouapresentar a forma que esse tipo de renda fundiria toma em So Manuel e em Barra
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Bonita. Conta-se, brevemente, com a contribuio de Marx sobre o tema. O objetivo,
nesse caso, foi compreender de que forma a renda fundiria est fixada naqueles
territrios atualmente, como se escolhem as terras, como se do os contratos, como a
relao entre arrendador e arrendatrio, etc.
O terceiro captulo buscou apresentar algumas consequncias dessa forma de renda
fundiria presente em So Manuel e Barra Bonita. Foi exposta a diferena entre a
propriedade jurdica e a propriedade econmica da terra. Alm disso, pode-se
compreender tambm de que forma a organizao fundiria baseada no arrendamento
repercute na memria dos pequenos proprietrios rurais dos municpios em questo,
trazendo a luz o processo de espoliao da lembrana.
No quarto captulo, foi tratado de que forma a discusso terica acerca das novas
ruralidades pode dialogar com as dinmicas fundirias atuais dos territrios em questo,
a partir do recorte proposto por Wanderley (2009), no qual o rural caracterizado como
um espao de vida. Buscou-se apontar o que h de novo na conjuntura estudada,
atentando que as atuais relaes entre renda fundiria e propriedade so tambm
expresses das metamorfoses do rural contemporneo. Destaca-se que neste captulo
no se buscou resolver a questo o que o rural, mas apontar um aspecto que se
mostra relevante nesse espao. A questo agrria, entendida como as relaes sociais de
produo, permanece ento como elemento a ser levado em considerao na anlise dos
espaos rurais.
No que tange ao debate sobre a renda fundiria, apresentado no segundo captulo,
quele sobre a propriedade jurdica e econmica da terra, do terceiro captulo, e mesmo
sobre a permanncia da questo agrria, ficam ainda neste trabalho algumas
indefinies. Essas se posicionam de maneira estratgica, como forma de apontar que a
realidade social no esttica. Entende-se que, a sociologia rural, ainda que seja parte
de uma cincia, no constitui uma disciplina meramente acadmica, mas ao contrrio,nasceu e se desenvolveu sob a presso das necessidades e problemas suscitados pelo
desenvolvimento da prpria sociedade (SOLARI, 1976, p.04). Por isso a escolha pelo
tema de pesquisa, uma vez que este se mostra como uma realidade latente dos espaos
rurais.
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1 UMA QUESTO DE SOBREVIVNCIA? A IMPORTNCIA DA RENDAFUNDIRIA EM SO MANUEL E BARRA BONITA
Este captulo busca apresentar uma caracterizao dos municpios estudados a
partir de sua fundao histrica, demografia e estrutura fundiria e produtiva. Aqui j se
contar com alguns relatos da pesquisa de campo, debatendo a importncia da renda
fundiria nos municpios estudados. Os municpios de So Manuel e Barra Bonita se
localizam no centro do estado de So Paulo.
Figura 1: Estado de So Paulolocalizao dos municpios de So Manuel e Barra Bonita
Legenda: Limite municpios So Manuel e Barra BonitaFonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
1.1 FUNDAO E DEMOGRAFIA
A populao da regio onde mais tarde se localizaria So Manuel e Barra Bonita
foi constituda, a princpio, por bandeirantes que passavam pelo rio Tiet e,
posteriormente, por escravos e descendentes de imigrantes europeus, formadores de
mo-de-obra na cafeicultura do final do sculo XIX, incio do sculo XX. A ocupao
do territrio onde hoje se localiza So Manuel se deu em meados de 1840, quando da
doao das primeiras terras por fazendeiros da regio para a construo da primeira
capela. Em geral, as terras ali eram advindas de posses registradas a partir da Lei de
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Terras, em 1850, havendo tambm algumas sesmarias. Com o passar do tempo, outros
proprietrios doavam alqueires para a Capela, tendo inclusive um grupo de senhoras
realizado grande doao para a compra do sino. A fundao de So Manuel ficou datada
a partir do registro mais prximo de doao de terras, em 17 de junho de 1870. A
plantao de caf marcou a regio desde 1865, tendo presena da mo de obra
escravizada e, posteriormente, imigrante italiana. O trabalho escravo cumpria a funo
de fora produtiva de baixo custo, atendendo a demanda do contexto por mo de obra
(FURTADO, 1961). A mo de obra imigrante vem no contexto da mudana na matriz
econmica. As dinmicas da cadeia produtiva do caf (exportao) engendraram uma
srie de modificaes sociais, como a urbanizao e industrializao, gestando um
mercado consumidor que, para se manter, precisava tambm de mo de obra assalariada
(SIMONSEN, 1930). O municpio teve o auge de sua produo cafeeira em 1930,
atingindo 30 milhes de ps de caf. A produo permaneceu no decorrer do tempo, at
1975, quando uma forte geada resultou na falncia de muitos produtores.
A histria de Barra Bonita no muito diferente da de So Manuel. Essa regio
j recebia grande fluxo de bandeirantes desde a poca das colonizaes, devido s
facilidades de navegao pelo rio Tiet. Era comum que se deixasse pessoas no caminho
das bandeiras para a formao de roados, geralmente prximos foz de afluentes
menores. No sculo XIX passavam pelo Tiet em direo a Minas Gerais e Gois. Com
a Lei de Terras, os posseiros passaram a ter que registrar seus imveis junto Parquia
que resultou, em 1856, nos primeiros registros de propriedades na regio que seria o
municpio de Barra Bonita. Apesar de a data de fundao da cidade ser de 1883,
quando da doao de terras feita por um vereador de Ja, os registros apontam para o
ano de 1886 como o ano oficial de fundao de Barra Bonita. Isso, devido associao
mercantil entre o vereador e um produtor de Poos de Caldas na construo da primeira
Casa de Comrcio e da igreja matriz, que marcaram a constituio da cidade. Ofundador da cidade j era proprietrio de fazenda cafeicultora em Ja, tendo levado o
cultivo tambm para Barra Bonita no comeo do sculo XX. No perodo entre 1880 e
1900, a produo cafeeira no Brasil praticamente triplicou - principalmente pela
disponibilidade de terras subocupadas (FURTADO, 1961). Foi esse mesmo fundador o
responsvel pela vinda dos imigrantes, italianos e espanhis, que deu incio abertura
para o plantio de caf e a criao de gado. Concomitante cafeicultura surgiram as
olarias, que se desenvolveram com facilidade devido ao fcil acesso argila na rearibeirinha. J na dcada de 1920, houve a instalao da Estrada de Ferro Barra Bonita e,
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a partir de 1940, surgiram novas indstrias, houve a ampliao do mercado imobilirio e
incentivo cultura da cana-de-acar. Tudo isso contribuiu para que a agricultura se
consolidasse como carro chefe no referido perodo, caracterizado pela crescente
demanda de mo-de-obra, crescimento econmico e desenvolvimento do comrcio.
As modificaes na distribuio das atividades produtivas brasileiras
contriburam para as transformaes ocorridas no sculo XIX. Caio Prado Junior (1994)
apontou que essas modificaes resultaram de dois fatores, o primeiro seria o
deslocamento da primazia econmica das regies agrcolas do Nordeste para o Sudeste
(Rio de Janeiro e So Paulo). O segundo fator a decadncia das lavouras mais
tradicionais, como a cana-de-acar, o tabaco e o algodo, concomitante com a
ascenso do cultivo de caf, que, at ento, era um gnero de pouca importncia na
economia brasileira. Mas, depois que o caf desponta como principal produo, quase
todos os maiores fatos econmicos, sociais e polticos do Brasil, desde meados do
sculo passado [XIX]at o terceiro decnio do atual [1930], se desenrolaram em funo
da lavoura cafeeira. (PRADO JR., 1994, p.167).
Destaca-se que Barra Bonita contou, entre os anos de 1950 e 1970, com um
rearranjo na sua estrutura fundiria, devido implantao da Usina Hidreltrica em
1960, que levou a uma inundao para a implantao do reservatrio, deslocando a
populao e alagando reas de produo agropecuria. As bases do processo de
capitalizao da agricultura da rea de influncia do reservatrio de Barra Bonita esto,
em grande medida, vinculadas implementao da Usina Hidreltrica na regio
(MARTINS, 2000, p.58).
Mais recentemente, a populao passou a ser constituda por migrantes de vrias
regies do Brasil, atrados pela agroindstria canavieira. Barra Bonita conta atualmente
com 35.248 habitantes; no perodo de 1991 at 2000 teve um crescimento populacional
de 1, 64%, mas um pequeno decrscimo no perodo de 2000 a 2010 (-0,05%). Noprimeiro momento, a populao total era de 29.814 habitantes, passando para 35.439 na
dcada de 2000, e a 35.248 em 2010. Por seu turno, So Manuel, conforme o Censo de
2000, conta com 38.327 habitantes, tendo tido um crescimento populacional de 1,42%
no perodo de 1991 at 2000 e de 0,49% de 2001 at 20105.
5Dados da Fundao Seade, Disponveis em: Acesso em: fevereiro, 2012.
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Tabela 1 : Populao total - So Manuel e Barra Bonita, 1990-2000-2010
So Manuel Barra Bonita
1990 34.496 29.814
2000 36.502 35.439
2010 38.327 35.248Fonte: Adaptado de Fundao Seade.
Ambos os municpios so marcados pela baixa industrializao. So Manuel
conta com algumas indstrias, na rea txtil, de aquecedores solar e cervejeira. A
indstria de maior destaque a Usina So Manoel (sucroalcooleira), maior empregadora
do municpio. Essa unidade foi fundada em 1949 e, ainda hoje, permanece sob direo
da mesma famlia fundadora. Atualmente, produz cerca de 240 mil toneladas de acar
e 150 milhes de litros de etanol por ano, tendo em sua colheita cerca de 3,4 milhes detoneladas de cana-de-acar. Em Barra Bonita, tambm uma usina sucroalcooleira a
maior empregadora do municpio. Contudo, neste municpio, no h presena
significativa de outras indstrias. Ambas as cidades contam com forte presena do
comrcio, entretanto, principalmente em Barra Bonita, a predominncia da produo
sucroalcooleira.
Os municpios contam com a presena de Usinas sucroalcooleiras desde a
segunda metade do sculo XX, sendo que a Usina Razen (Barra Bonita) atualmente a
segunda maior do mundo em capacidade de moagem de cana-de-acar. Esta usina foi
fundada em 1943 por um grupo familiar6. Seus donos j possuam uma usina no
municpio de Piracicaba desde a dcada anterior. A presena desta unidade
agroindustrial foi determinante para o desenvolvimento agrcola da regio (MARTINS,
2006). Em meados da dcada de 1980, houve uma grande expanso, sendo incorporada
ao Grupo COSAN, que pertencia tambm a um membro da famlia Ometto, o qual j
dirigia a Usina Costa Pinto e Santa Brbara, em Piracicaba. No decorrer da dcada de
1990 o Grupo COSAN incorporou e desativou diversas usinas e passou a ter
participao na guas do Tiet Agropecuria Ltda, Estaleiro Diamante Ltda - que
contava com pontos de embarque no rio Tiet-Paran e frota hidroviria prpria e,
adquiriu a concesso de um dos terminais aucareiros do porto de Santos. A partir do
ano 2000 passa a se relacionar societariamente com grupos internacionais
6
O Grupo Ometto administrava um conglomerado de indstrias sucroalcooleiras no estado de So Pauloe, em 1943, a Usina Costa Pinto adquiriu propriedades em Barra Bonita, que at ento eram fazendasprodutoras de caf. Em 1949 foi fundada a Usina da Barra S/A Acar e lcool.
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(NASCIMENTO, 2001) e em 2010, foi realizada uma joint venture7com uma empresa
multinacional petrolfera (Shell) para a produo de etanol, acar e energia eltrica a
partir do bagao da cana-de-acar. Atualmente, a usina tem em torno de 80 mil
hectares plantados, produz aproximadamente 10 milhes de sacas (60kg) de acar e
mi mais de 6 milhes de toneladas de cana por safra8.
1.2 ESTRUTURA FUNDIRIA
O sculo XIX se mostrou um momento histrico relevante para a anlise aqui
proposta. O fim do regime de sesmarias (1822) gerou um aumento significativo no
nmero de posseiros. A posterior proibio do trfico negreiro (1850) e, no Sudeste, a
substituio da mo-de-obra escravizada pela imigrante, configuraram um quadro em
que o livre acesso terra seria problemtico para a classe dos grandes proprietrios.
Uma vez que o Estado era controlado por esta classe social, em 1850 se promulgou a
Lei de Terras, em que as terras devolutas passariam posse do Estado e sua aquisio se
daria apenas por compra. Assim, posseiros, agregados, ex-escravos e imigrantes
necessariamente precisariam trabalhar nas grandes fazendas para acumular algum
capital e adquirir terra. Produziu-se, ento, um cenrio em que o acesso terra passou a
se dar diante da oferta compulsria de trabalho; a terra se tornara uma mercadoria
(MARTINS, 1995).
A formao brasileira, desde o perodo colonial, configurou um pas dependente
do mercado externo, com um carter eminentemente mercantil. Tal quadro da economia
agrria foi crucial para a posterior formao das classes sociais rurais e urbanas
(FERNANDES, 1981), e deixou a explorao agrcola do territrio marcada por
elementos que se tornariam estruturais em nossa formao econmica, como o
latifndio e a prtica monocultura (RAMOS, 1999). Com o passar do tempo, a
deficincia das normas contribuiu para o crescimento da desigualdade da distribuio da
7 A caracterstica essencial do contrato de joint venture a realizao de um projeto comum,empreendimento cuja durao pode ser curta ou longa, porm com prazo determinado. a celebrao deum contrato entre duas ou mais empresas, que se associam, criando ou no uma nova empresa pararealizar uma atividade econmica produtiva ou de servios, com fins lucrativos. MIRANDA, M.B.,MALUF, C.A. O contrato de joint venture como instrumento jurdico de internacionalizao das
empresas. Disponvel em: Acesso em: agosto, 2012.8Valores adquiridos por meio de entrevista com ex-funcionrio do setor industrial da usina.
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propriedade da terra (SALINAS, 2009, p.76). Guedes (1993) aponta que a
interveno estatal que garante a viabilidade da agricultura capitalista - adequando a
estrutura fundiria s necessidades do prprio capital.
1.2.1 Breves consideraes sobre o papel do Estado
O Estado teve historicamente um papel de mediao na gerao e reproduo
econmica e poltica do capitalismo na agricultura. Mesmo a doao de sesmarias no
perodo colonial j atuava no sentido de estabelecer um padro exclusivista e
concentrador de posse de terra, desde ento com uma produo voltada para o mercado
externo (GUEDES, 1993, WANDERLEY, 1985).
Neto (1997) afirma que a partir de 1930 o setor agrrio deixa de ter sua
predominncia dentro da esfera de poder do pas, e a agricultura se encontra
subordinada. Nesse sentido, para a compreenso da interveno do Estado preciso
atentar para os embates e o conflito de interesses entre as classes capitalistas, agrria e
industrial. O Estado cumpriria o papel de guardio da ordem capitalista, da prpria
reproduo do capital. Com seu aparato jurdico, legitima-se como mediador das
classes. O Estado se configura como
um aparelho de dominao de classe, surgido no processo de luta,refletindo as contradies da estrutura econmica; porm (...) goza decerta autonomia em relao classe dominante e portador de poderde interferir tambm na infra-estrutura. Essa interferncia aparece soba forma de mediao supraclasse, aparentemente sem tomar posioentre elas, e s vezes, at com posio contrria da burguesia, masque, em ltima anlise, almeja a manuteno do status quo. E essaatuao na estrutura se d por medidas de poltica, que so osinstrumentos de interveno do Estado (NETO, 1997, p. 120).
Apesar dos conflitos entre as classes capitalistas, a acumulao de capital do
setor agrrio se manteve garantida pelo Estado. Guedes (1993) sinaliza que a disputa
pelo controle da terra , de fato, uma disputa pela apropriao do sobre-trabalho, que
se transfere aos diferentes agentes detentores dela, conforme uma intrincada relao de
poder, na qual no est ausente o Estado, e da qual, alis, ele promotor (GUEDES,
1993, p.27). Por meio de sua poltica fundiria e agrcola, o Estado tem agido na via de
garantir o direito propriedade privada, e o favorecimento da entrada do capital no
campo. A partir da dcada de 1960 a poltica agrcola do pas era focada no crdito
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subsidiado. O objetivo deste tipo de poltica era garantir ao setor agrcola a acumulao
atravs da transferncia de mais valia do Estado para o setor, sem mexer no mecanismo
dos preos (NETO, 1997).
No perodo da ditadura militar se criou o Estatuto da Terra (Lei 4504/1964) que,
para alm de ser uma lei de reforma agrria, visava muito mais o desenvolvimento rural
alinhado com a modernizao da agricultura. Mostrava-se mais como um instrumento
de controle e administrao dos conflitos no campo, do que uma forma de promover a
redistribuio fundiria (MARTINS, 1999). Leis e decretos posteriores buscaram
incorporar adaptaes para lidar com o problema agrrio brasileiro.
Os planos econmicos governamentais do perodo militar eram centrados, em
resumo, na produo de alimentos, de matrias-primas e produtos exportveis, junto
com o aumento da produo e da produtividade. Nesse sentido, a modernizao da
agricultura se torna pauta dos investimentos governamentais no setor agrcola, com a
agricultura deixando de ser vista como entrave ao desenvolvimento do pas. A partir da
metade da dcada de 1960, com o Plano Econmico de Desenvolvimento (1968-1970) e
o Plano de Metas e Bases para a Ao do Governo (1970-1973) houve o fortalecimento
das polticas de crdito rural e de industrializao da agricultura. Em um dos planos
econmicos do governo Mdici, mostrava-se clara a estratgia de desenvolver uma
agricultura moderna no centro-sul do Brasil, estimulando a agroindstria (NETO, 1997).
Aps a consolidao do processo de industrializao na dcada de 50, o terreno
estava preparado para a industrializao da agricultura (produo de defensivos
agrcolas, adubo, tratores, etc.) (GRAZIANO DA SILVA, 1983; 1996). O Estado teve
um papel crucial neste momento, pois orientava sua ao no sentido da modernizao da
agricultura,
visando integr-la ao novo circuito produtivo liderado pela indstriade insumo e processamento de matria-prima [...] Surge assim umnovo padro agrcola, orientado fundamentalmente para a integraovertical e para o incremento da produo atravs do aumento daprodutividade (GRAZIANO DA SILVA, 1996, p.23).
Durante esse perodo foram elaborados diversos mecanismos de interveno
estatal, como a poltica de preos mnimos, de crdito rural, de extenso e de pesquisa
(NETO, 1997). Segundo Martins (2000), a modernizao da agricultura apresentada
pelo Estado se relacionava com subsdios para a mecanizao e incrementosagroqumicos, j que a poltica de crditos exigia esse pacote tecnolgico, favorecendo
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projetos de grande escala. Esse tipo de projeto produzia transformaes de ordem tanto
tcnicas quanto fundirias, resultando numa substituio da fora de trabalho e na
concentrao de terras, isto , movimentou os capitais no sentido de uma reproduo
ampliada base da excludncia progressiva sobre a terra e a renda (MARTINS, 2000,
p.52).
No setor canavieiro a interveno estatal teve um papel fundamental, no qual
teve de dar conta dos conflitos internos ao complexo na primeira metade do sculo XX,
entre a produo nordestina e a paulista. Conforme Ramos (1999) a interveno estatal
tornou-se um fator decisivo das formas e dos desdobramentos futuros da expanso
canavieira, marcando o seu crescimento. Com a criao do CPDA - Comisso de Defesa
da Produo de Acar, em 1931 e a do IAA - Instituto de lcool e Acar, em 1933, o
Estado estabilizou os preos do acar no mercado interno e fixou cotas de produo e
comercializao de acar por usinas. Alm disso, definia Planos Anuais de Safra e
tinha o monoplio sobre as exportaes de acar. As polticas deste perodo para setor
canavieiro resultaram em
um processo de concentrao e centralizao, que tinha um duplocarter: industrial, pelo fechamento de engenhos e concentrao deproduo em usinas de maior porte; fundirio, por meio das aquisies
de terras feitas pelas usinas e usineiros que conseguiam se sobreporaos demais (RAMOS, 1999. p.92)
Em 1941 foi criado o Estatuto da Lavoura Canavieira, tendo como objetivo
principal estabelecer critrios de delimitao da posio do fornecedor de cana,
impedindo que as usinas moessem mais de 60% de cana prpria. Este Estatuto se
configurava como uma tentativa de defesa dos senhores de engenho, que ainda eram
uma classe dominante, frente ao ganho de poder dos usineiros. O documento legal dava
um peso poltico maior para os fornecedores, que eram herdeiros da tradio poltica
dos senhores de engenho (RAMOS, 1999, p.98). Outros documentos posteriores
tambm buscaram regulamentar as relaes entre as classes do complexo canavieiro. O
prprio IAA atuou no sentido de conter a expanso do avano da produo aucareira
no estado de So Paulo, que se desenvolvia a passos largos em comparao ao
concorrente nacional e tradicional produtor de cana-de-acar, Pernambuco.
Por conta da disponibilidade de terras (antes ocupadas com a produo de caf),
a introduo da cana-de-acar em So Paulo no precisou necessariamente evidenciar
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a estrutura fundiria concentrada; os proprietrios foram aos poucos se tornando
usineiros. As alteraes no Estatuto da Lavoura Canavieira (flexibilizao em relao ao
uso de cana prpria e de constituio de novas usinas) tambm garantiram a expanso
do complexo canavieiro paulista.
Na dcada de 1960 houve a criao do PLANALSUCAR, que gerou condies
favorveis expanso da produo de cana-de-acar, que tambm se encontrava
favorecida pelo bloqueio internacional Cuba. J em 1975 o Estado criou outro pacote
de medidas que no s favoreceu, mas transformou a produo canavieira em So
Paulo, o PROALCOOL. Junto com outros rgos governamentais o Estado era
responsvel pela fixao dos preos dos combustveis, determinao do financiamento
para instalao de novas usinas, entre outros. Foi no final da dcada de 1980 que
surgiram as primeiras aes de desregulamentao do setor (quebra do monoplio do
Estado na exportao do acar, fim da fixao de cotas de comercializao por usinas,
etc.), processo que se radicalizou com o fim do IAA na dcada de 1990. Dessa forma,
no houve mais uma poltica agrcola focada especificamente no setor canavieiro.
A partir desse perodo criaram-se novas entidades, de carter civil e privado,
para organizao do setor, como, por exemplo, a NICA Unio da Agroindstria
Canavieira de So Paulo, e o CONSECANAConselho de Produtores de Cana, Acar
e lcool de So Paulo, entre outras. O CONSECANA, inclusive, foi responsvel pela
criao de um novo clculo para o pagamento da matria prima, diferente daquele
proposto pelo extinto IAA. Pode-se dizer que ao mesmo tempo em que houve um
processo de desregulamentao e de diminuio da interveno estatal no setor
sucroalcooleiro, houve, tambm, a criao de novas formas de regulamentao, as
quais servirame servempara manter alguns dos muitos privilgios que as empresas
do setor tiveram at a dcada de 1990 (NASCIMENTO, 2001, p.60).
Nascimento (2001, p.62) afirma que
antes do processo de desregulamentao, o setor sucroalcooleiroorganizava-se sob a forma de um cartel encoberto pelo manto doEstado hoje passou a organizar-se como um cartel propriamente dito,sem a presena do Estado, mas com seu beneplcito.
O Estado aparece tambm como um agente nos espaos rurais, representado por
suas polticas e por seus representantes locais (WANDERLEY, 2009). Destaca-se que,
por detrs do registro legal da propriedade das terras, pode-se perceber um intrincado
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jogo jurdico produzido para reforar a ao das classes dominantes (SILVA, 1999,
p.28). Justamente por isso que se pode dizer que as leis no so neutras, so imbricadas
nos fenmenos culturais, econmicos e polticos.
1.2.2 Caracterizao fundiria e produtiva
A lei federal 8629/93, que dispe sobre a reforma agrria, distingue o tamanho
das propriedades em pequenas (1-4 mdulos), mdias (4-15 mdulos) e grandes (acima
de 15 mdulos) (BRASIL, 2009). Contudo, a deciso sobre o tamanho de cada mdulo
municipal. No municpio de So Manuel, cada mdulo tem 16 hectares, e em Barra
Bonita, 14 hectares. Para a exposio da estrutura fundiria se fez o uso de umapesquisa municipal, o LUPALevantamento das Unidades de Produo Agropecuria9.
A delimitao temporal da presente pesquisa a partir da dcada de 90 (perodo de
mudana da interveno estatal no setor canavieiro, advindo do fim do IAA Instituto
de lcool e Acar), contudo o primeiro LUPA s foi realizado em 1995.
Apesar de a legislao federal estabelecer a diviso por mdulos, nos dados do
LUPA a contagem de tamanho das propriedades se d de forma diferenciada, sendo
feita a partir de intervalos dobrados (0ha a 50ha, 50ha a 100ha, 100ha a 200ha, e assimpor diante). Seguem abaixo os dados aproximados sobre tamanho de propriedades:
9 Uma UPA definida como: conjunto de propriedades agrcolas contguas e pertencentes ao(s)
mesmo(s) proprietrio(s); localizadas inteiramente dentro de um mesmo municpio, inclusive dentro dopermetro urbano; com rea total igual ou superior a 0,1ha; no destinada exclusivamente para lazer. Emprincpio, uma UPA significa exatamente o mesmo que um imvel rural. Ela se afasta desse conceitosomente nas seguintes situaes: quando o imvel rural se estende por mais de um municpio (considera-se cada uma das partes em municpio diferente como uma UPA); quando no foi possvel levantar o
imvel rural como tal, sendo necessrio reparti-lo ou agrup-lo com outros. Disponvel em: Acesso em: fevereiro, 2012.
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Tabela 2: Distribuio dos estabelecimentos agrcolas por unidade de produo e rea. SoManuel - 1995-2008
1995/1996 2007/2008
Tamanho
propriedade
Mdulos(hectares)
UPA's % rea(hectares)
% UPAs % rea(hectares)
%
PequenaPropriedade
1 a 4 (16-64)
232
(at 50ha)62 3.209,5 6
283
(at 50ha)62 4.079,1 7
Mdia propriedade
4 a 15 (64-240)
77
(at 200ha)20 8.001,2 15
83
(at 200ha)18 8.594 16
Grandepropriedade
Acima de 15 (>240)
66(>200ha)
18 41.345,6 7960
(>200ha)13 40.184,1 76
Total 375100
52.556,3 100 45610
052.857,2 100
Fonte: Adaptado de So Paulo (2008).
Houve, nestes 12 anos, um aumento no nmero de unidades de produo
agropecuria UPAs e na extenso destinada produo agropecuria, contudo esse
aumento se deu nas pequenas e mdias propriedades. O que caracteriza uma unidade de
produo agropecuria , justamente, sua delimitao no permetro rural municipal10.
Uma vez que a cidade conta atualmente com 426 UPAs, mais da metade delas (62%) se
concentra em pequenas propriedades. Alm disso, o territrio total do municpio de
66.600 hectares (666km), sendo que 52.857,20ha so de unidades de produo
agropecuria, isto , 79% do municpio de So Manuel destinado produoagropecuria. A situao se intensifica no municpio de Barra Bonita.
10
Destaca-se a uma marca da no superao do vis setorial agrcola, j que nos marcos legais aruralidade pressupe produo agropecuria. O debate sobre novo rural e desenvolvimento territorial ruralser retomado no 4 captulo.
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Tabela 3: Distribuio dos estabelecimentos agrcolas por unidade de produo e rea. BarraBonita1995-2008.
1995/1996 2007/2008
Tamanho
propriedade
Mdulos(hectares)
UPA's % rea(hectares)
% UPAs % rea(hectares)
%
PequenaPropriedade
1 a 4 (14-56)
228
(at 50ha)86 2.978,2 22,7
219
(at 50ha)85 2.923,7 22
Mdia propriedade
4 a 15 (56-210)
20
(at 200ha)7 1.864,2 14,2
19
(at 200ha)7 1.785 14
Grandepropriedade
Acima de 15 (>210)
16
(>200ha)6 8.223,2 62,9
19
(>200ha)7 8.031,4 63
Total 264100
13.065,3 100 257100
12.740 100
Fonte: Adaptao de So Paulo (2008).
No municpio de Barra Bonita, da rea de 15.020ha, ou seja, 150,2 km,
12.740ha so atualmente destinados produo agropecuria11. Isto quer dizer que
84,8% do territrio de Barra Bonita destinado produo agropecuria, sendo que a
maior parte da produo canavieira. Do total de 257 unidades de produo, 219 se
enquadram em pequenas propriedades, contudo so as grandes propriedades que
ocupam a maior extenso em hectares, ou seja, 85% das unidades de produo
agropecuria fazem parte das pequenas propriedades, contudo, ocupam apenas 22% do
territrio das UPAs. Por outro lado, 7% das UPAs se apresentam em grandespropriedades ocupando 63% da totalidade do territrio das UPAs.
Apesar de a caracterizao de uma unidade de produo agropecuria se dar,
especificamente, por se encontrar fora do permetro urbano, alguns entrevistados
alegaram que suas propriedades se localizam dentro deste permetro.
11 relevante apontar que houve uma diminuio na quantidade de unidades de produo agropecuria. Oagrnomo responsvel pela Casa da Agricultura municipal relatou que esse fenmeno pode ser fruto de
erros na coleta do primeiro LUPA, em 1995. Contudo, tambm disse ser possvel que tenha ocorridoanexao de reas, isto , que burocraticamente diversas propriedades de mesmo dono sejam anexadascomo apenas uma propriedade.
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A partir dos dados do LUPA tambm foi possvel sistematizar os dados sobre o
cultivo vegetal. As tabelas a seguir apresentam a juno das informaes sobre cultivos
vegetais por unidade de produo agropecuria (UPA) e por hectares ocupados em cada
tipo de cultivo, a partir do total da rea agrcola. Foram escolhidas as culturas com
maior expresso municipal.
As tabelas contam com dados tanto acerca das unidades de produo envolvidas
em determinados tipos de cultivos como da extenso de rea ocupada por cada
produo. importante apontar que as UPAs podem ter mais de um cultivo vegetal,
assim, a somatria das UPAs no resultar no total de unidades de produo municipal.
Isto quer dizer que uma mesma unidade de produo pode ter tanto cana de acar
como braquiria12, ou caf, e assim por diante. Dessa maneira, essa mesma unidade
entrar na contagem de ambas as culturas, por isso importante atentar para a rea
ocupada em cada cultura. A rea diz respeito no a extenso total das UPAs ocupadas
em cada cultivo, mas sim ao total da rea ocupada por cada cultivo.
Outro dado apresentado o total da rea agrcola, que se refere somatria das
culturas apresentadas (as de maior expresso) e de outros cultivos menores. Destaca-se
que a porcentagem das reas destinadas a cada cultivo diz respeito ao total da rea
agrcola e no ao total das reas das UPAs. Essa organizao dos dados foi feita no
intuito de expor tanto a dimenso dos cultivos a partir da quantidade das unidades de
produo quanto a partir da comparao em relao a rea de cultivo agrcola.
12Braquiria um tipo de gramnea (capim) para pastagens de gado bovino.
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Tabela 4: Cultivo vegetal por unidades de produo e rea cultivada. So Manuel1995-20081995/1996 2007/2008
Cultura UPA %rea ocupada
(ha)% UPA %
rea ocupada(ha)
%
Cana de acar 152 40,5 27.972,163,4
165 36,232.447,5 69,4
Eucalipto 72 19,2 1.842,9 4,2 73 16,1 2.681 5,7
Braquiria 168 44,8 11.485,1 26,5 278 60,9 7.865,1 16,8
Caf 127 33,8 1.744,6 4 148 32,4 1.546,9 3,3
Outras culturas13 156 41,6 1.033,2 2,4 88 19,22.212,4 4,7
Total reaagrcola
- - 44.077,9 100 - - 46.752,9 100
Total reaUPAs 375 100 52.556,3 - 456 100 52.857,6 -
Fonte: Adaptado de So Paulo (2008).
A partir da tabela acima nota-se que apesar de a rea total de unidades de
produo agropecuria ser em 1995/1996 de 52.556,3 ha, apenas 44.077,9 ha so
destinados produo agrcola, desse total, 63,4% dedicado ao plantio de cana de
acar. A diferena entre os valores das reas quer dizer que nem toda a rea ocupada
pelas UPAs destinada produo agrcola, podendo ser desde reas de preservao
permanente, reas de vivncia (casas rurais) ou ocupadas com outras atividades que no
o cultivo agrcola. Em 2007/2008 houve um pequeno aumento na rea ocupada pelas
UPAs e tambm aumento da rea agrcola municipal (46.752,9 ha).
Percebe-se que no perodo de 1995/1996, 40,5% das unidades de produo
contavam com a cultura canavieira, sendo que o cultivo de caf e de braquiria tambm
eram expressivos. J em 2007/2008, 36,2% das UPAs cultivavam cana de acar, isto ,
na proporo em relao ao perodo anterior, houve declnio. Houve aumento
significativo tambm nas unidades de produo destinadas ao cultivo de braquiria,
contudo, na proporo em relao rea agrcola total nota-se a reduo. Isso quer dizer
que por mais eu tenha aumentado o nmero de propriedades destinadas para tal cultivo,
a rea ocupada por elas no foi expressiva no total da rea agrcola. No caso da
braquiria ocorreu o inverso da cana de acar, que contou com reduo de UPAs, mas
aumento de rea, sendo 69,4% no total da rea agrcola.
13 Em So Manuel essas outras culturas so: laranja, milho, outras gramneas para pastagem, feijo,alface, abacate, entre outros.
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Diferente de So Manuel, em Barra Bonita h uma menor diversificao dos
cultivos.
Tabela 5: Cultivo vegetal por unidade de produo e rea cultivada. Barra Bonita1995-2008
1995/1996 2007/2008
Cultura UPA %
reaocupada
(ha)% UPA %
reaocupada
(ha)%
Cana deacar
248 93,9 10.836,5 96,2 251 97,6 10.528,5 92,9
Eucalipto 15 5,7 215,9 1,9 16 6,2 184 1,7
Braquiria 02 0,7 122,8 1,1 11 4,2 87,6 0,7
Caf 02 0,7 25 0,2 01 0,4 03 0,02Outras
culturas1426 9,9 57,6 0,5 46 17,8 525 4,6
Totalrea
agrcola- - 11.257,8 100 - - 11.328,1 100
TotalreaUPAs
264 100 13.065,6 257 100 12.740
Fonte: Adaptado de So Paulo (2008).
Observa-se tambm em Barra Bonita que o total da rea das unidades de
produo agropecuria diferencia-se do total de rea agrcola. destacvel que, neste
municpio, a rea destinada s unidades de produo agropecuria teve uma diminuio
de 325,6 hectares15. Apesar disso, houve aumento na rea destinada produo agrcola.
O plantio canavieiro manteve-se como sendo o mais expressivo no municpio.
Do perodo de 1995/1996 para o de 2007/2008 houve aumento na quantidade de
unidades de produo que contavam com a cultura de cana de acar, passando de
93,9% para 97,6%. Entretanto, ocorreu reduo na rea ocupada, que tomava 96,9% darea total agrcola em 1995/1996 e 92,9% no perodo seguinte. Isso pode refletir que um
maior nmero de pequenas propriedades passaram a se dedicar a tal cultivo, no
representando um aumento na rea total agrcola.
14 Em Barra Bonita essas culturas so: laranja, milho, mandioca, goiaba e outras gramneas parapastagem.15Foi relatado pelo agrnomo da Casa da Agricultura que essa diferena pode ser devido a erros na coleta
de dados do primeiro LUPA (1995/1996). Principalmente por conta de unidades de produo que seencontram em divisas municipais, que contabilizao a rea total, apesar de parte da rea pertencer aoutro municpio.
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Em comparao com outras culturas, percebe-se que a braquiria foi a que
contou com aumento significativo na quantidade de unidades de produo ocupadas,
passando 0,7% para 4,2%. Porm, na proporo com a rea agrcola total, houve ligeira
reduo, mesmo processo que ocorreu em So Manuel. O caf tambm contou com
reduo, quando comparado com a rea total agrcola; ocupava antes 0,2% (valor j
baixo) e em 2007/2008, 0,02%. Neste perodo apenas uma propriedade conta a esse
cultivo.
Em relao s outras culturas, percebe-se aumento significativo, tanto na
quantidade de UPAs destinadas quanto na proporo em relao rea agrcola. Em
1995/1996, 9,9% das unidades de produo contavam outras culturas, ocupando apenas
0,5% da rea agrcola total. Em 2007/2008 eram 17,8% das UPAs, ocupando 4,6% da
rea agrcola total. Isso quer dizer que houve uma maior diversificao cultural nesse
perodo, o que pode refletir tambm o abandono de reas de cana e a opo por outros
tipos de cultivos. Dentre essas culturas, a que teve nmero mais expressivo foi a de
outras pastagens para gado. possvel que tenha havido situao similar a So Manuel,
onde o abandono da cana repercutiu em um maior nmero de arrendamentos de terras
para a pecuria bovina. Alves e Assumpo (2002) perceberam no municpio de Araras
tambm essa tendncia da transio de terras destinadas a cana de acar para a
pecuria.
observvel atualmente a amplitude do plantio canavieiro, seja em relao a
quantidade de unidades de produo que contam com tal cultivo, seja em relao rea
total de produo agrcola. Em So Manuel, 36,2% das UPAs so destinadas cana,
ocupando 69,4% da rea total agrcola do municpio. Em Barra Bonita a cana
predominante; so 97,6% das unidades de produo que contam com tal cultivo,
tomando 92,9% da rea agrcola municipal. Pensando no territrio total do municpio,
48,7% plantio de cana de acar em So Manuel, e em Barra Bonita, 70,1%. Talcenrio pode ser observado na figura 2:
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Figura 2: Mapa do cultivo da cana de acar (2012)So Manuel (1) e Barra Bonita (2)
(1)
(2)
Fonte:Canasat/INPE
Legenda:
Limite municpio
Cana reformada - lavouras de cana de ano-e-meio que foram reformadas no ano safra anterior e
que esto disponveis para colheita na safra corrente;
Cana em fase de soca - lavouras de cana que j passaram por mais de um corte.
Cana em reforma - lavouras de cana que no sero colhidas devido reforma com cana planta
de ano-e-meio ou por serem destinadas a outro uso.
A partir da figura 2, fica clara a extenso do plantio canavieiro nos municpiosem questo. As partes em branco nas figuras so aquelas que no contam com o plantio
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de cana de acar, podendo ser o centro urbano das cidades, tambm reas de outros
cultivos, reas de preservao ou cursos dgua. Na regio Sudeste, e no estado de So
Paulo especificamente, a produo canavieira vinha se desenvolvendo desde o comeo
do sculo passado e acompanhou todas as modificaes que o setor passou; desde o
Plano de Melhoramento da Agroindstria Aucareira (PLANALSUCAR) nos anos 60,
passando pelo programa Pro-lcool nos anos 70, e por sua posterior crise nos anos 80.
Na dcada de 1990, ocorreu uma mudana na interveno estatal (principalmente por
conta do fim do Instituto de Acar e lcool IAA), criando um cenrio mais
desregulamentado para o setor sucroalcooleiro (ALVES e ASSUMPO, 2002). Foi
relatado pelos interlocutores que de fato houve um aumento do cultivo de cana de
acar a partir da dcada de 1990.
Um dado apresentado por todos entrevistados institucionais, foi que a maioria
das propriedades arrendada para a produo de cana de acar, seja esse arrendamento
feito para as usinas de cada municpio, seja para outros fornecedores maiores. O
representante da Associao de Fornecedores de Cana estimou que mais da metade da
rea plantada de cana de acar que vai para a Usina Razen16 fruto de arrendamento.
So poucos fornecedores e poucas reas que so propriedades dessa usina. Em So
Manuel, tambm alto o ndice de arrendamento, mas foi informado por um
funcionrio da Usina Razen, que mantm certo contato com a Usina So Manoel, que a
poltica dessa unidade agroindustrial de ter o controle do processo de produo. Isto ,
preferem ter reas prprias ou arrendadas a ter fornecedores. O representante do
Sindicato Rural do municpio confirmou que so muito poucos fornecedores, em
comparao com a grande quantidade de proprietrios que arrendaram.
Percebe-se no caso de Barra Bonita, que a prpria Casa da Agricultura no
realiza muitas atividades, uma vez que a maioria dos proprietrios arrendaram suas
propriedades para a produo canavieira. Por conta disso, a Usina quem realiza amanuteno nas propriedades. Mesmo os fornecedores de cana no procuram
assistncia da Casa da Agricultura, uma vez que obtm auxlio da Associao de
Fornecedores de Cana. O agrnomo responsvel por este rgo municipal relata que sua
funo acaba sendo basicamente burocrtica, pois no h demanda para outro tipo de
atividade.
16A unidade de Barra Bonita dessa usina (que conta com 24 unidades no total, localizadas no interior de
So Paulo,Rio de Janeiro, Minas Gerais e Esprito Santo) utiliza cana plantada em diversos municpios daregio (Barra Bonita, Igarau do Tiet, Macatuba, So Manuel, Areipolis, Lenis Paulista, Torrinha,Ja, Pederneiras, Bocana, Dois Crregos, Santa Maria da Serra e Brotas).
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[...] dentro da Casa de Agricultura, ela vai trabalhar de acordo com ademanda que tem na regio. Aqui... em outras cidades eu trabalheicom outras demandas, aqui a minha demanda mais documentao,uma leitura prtica do que tcnica do campo. [...] Queimar cana,
precisa vir aqui para ajustar o PEQ (plano de eliminao dequeimadas), autorizar o corte... Mas como predominante a cana eessa cana atendida pela Associao [AFIBB], ento eu tenho muita
pouca procura pelas questes tcnicas, mais documentao mesmo,financiamento, atualizao dos dados da propriedade que tem quefazer, recolhimento de data de vacina, que t na campanha agora.Mas mais a parte interna aqui mesmo. Gado... as vezes eu lido umpouquinho, mais o pessoal de fora que me conhece e pergunta. Masaqui mesmo no tem muito gado de leite no, um pouquinho de gadode corte, que no demanda muita assistncia tcnica.Douglas, agrnomo Casa da Agricultura Barra Bonita
Em So Manuel foi falado sobre a questo de que, com o arrendamento, outras
reas da propriedade (paiol, curral, etc) ficaram abandonadas, por no serem mais
utilizadas. Poucos ainda moram nas propriedades rurais, a maioria se dirigiu para a
cidade e, quem arrendou a terra por completo, nem em So Manuel permaneceu.
Toda a parte de infra estrutura das propriedades se perderam com otempo, depois de 30 anos, 40 anos que a pessoa t arrendando. Se
perderam no tempo, ento voc j no tem mais casa de colono, aenergia eltrica, quem no continuou morando na propriedade, tendo
outra atividade pra manter, os ladres roubaram transformador,roubara a fiao, as casas comearam a cair, a prpria usinadesmanchou casas de sede pra plantar cana onde era sedeantigamente, ento, a infraestrutura de So Manuel no existe maisem propriedade rural. Existe terra, e muitas vezes voc perde ataonde que a propriedade sua.Pedro, 61 anos, So Manuel, eng. Agrnomo, diretor Sindicato RuralPatronal de So Manuel e produtor rural. Arrendador para Usina SoManoel.
A maioria dos proprietrios que permaneceram no municpio aposentada e,
ocasionalmente, se ocupa de outras atividades, como o comrcio. H, principalmenteem pequenas propriedades que no foram integralmente arrendadas, o plantio de caf,
milho e pasto. H tambm o plantio de eucalipto, e o arrendamento para o mesmo. Foi
relatado por este mesmo entrevistado que: Se a Usina parasse de arrendar ia quebrar
muita gente, porque isso desestrutura a propriedade. As consequncias da
predominncia do arrendamento canavieiro sero mais bem debatidas no terceiro
captulo.
So justamente as pequenas e mdias propriedades as que mais optam por
arrendarem suas terras. Muitos dos proprietrios eram produtores, fornecedores de cana.
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Por no terem condies de financiar a mecanizao, arrendam. Conforme relato do
responsvel pelo setor de arrendamento da Usina Razen,
[...] hoje tem que ser plantio mecanizado, colheita mecanizada.
Colheita mecanizada sem queimar ainda, a j comea a usartecnologia de ponta, socar com GPS, colher com GPS, contrrio dissovoc no vai ter viso das ruas. [...] Essa tecnologia o fornecedor novai ter n, pelo menos o pequeno. [...] Vai ficando invivel. Ento aideia as pequenas propriedades arrendar todas. E alguns j vaialm, eles j vende a propriedade pra entrar em outro ramo, em outraatividade.
Entrevistadora: Voc que t mais em contato com o pessoal que tarrendando, voc percebe se quem t arrendando mais so os
pequenos, so os mdios, ou isso uma coisa que no importa tanto?Diogo: Os pequenos, os pequenos at porque eles no aguentam tocardo jeito que t indo. E os grandes eles arrenda pra aumentar o
volume de rea porque o ganho deles t achatando. Ento tem que tervolume pra ter uma mdia, ento eles conseguem fazer. Porque eles jto perto da propriedade deles, o pequeno do lado, eles arrendam.Diogo, Tcnico agrcola, funcionrio setor de arrendamento/UsinaRazen.
Foi exposto que, para manter o controle do processo produtivo, ou seja, para se
manter enquanto fornecedor, o proprietrio necessita de uma economia de escala.
[...] as coisas vo ficando to complexas, do ponto de vista tcnico,tecnolgico, de infra-estrutura, que voc acaba delegando essasresponsabilidade queles que realmente tem condies de ter umainfraestrutura e tal. Porque a agricultura no remuneradora, esse o negcio. Ela s remuneradora de um ponto pra cima, a economiade escala.Flvio, 64 anos, Eng. Agrnomo, membro da diretoria da Associaode Fornecedores de cana (AFIBB), produtor rural. Arrendador para aUsina Razen.
Essa percepo foi mencionada por vrios entrevistados, em ambos os
municpios. Esse era um quadro j apontado por Alves e Assumpo (2002), para quem
a mecanizao exigiria uma escala operacional de reas de 500 hectares, no mnimo. Osautores mostraram a inviabilidade da manuteno de fornecedores com reas pequenas e
mdias como consequncia da implantao da mecanizao no processo produtivo
canavieiro.
A cultura da cana somente se prestava, economicamente, a grandesplantaes, j para desbravar convenientemente o terreno, tornava-senecessrio o esforo reunido de muitos trabalhadores; no era empresapara pequenos proprietrios isolados. Isto feito, a plantao, a colheitae o transporte do produto at os engenhos onde se preparava o acar
s se tornava rendoso quando realizado em grandes volumes. Nestas
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condies, o pequeno proprietrio no podia subsistir. (PRADO JR,1994, p.33)
Este trecho se refere ocupao das capitanias hereditrias com a cana de acar
no sculo XVI. J se passaram cinco sculos e parece que a condio do pequenoprodutor no mudou tanto. As condies atuais so outras, mas no sumo, se trata de um
cultivo para exportao que requer um tipo de estrutura que o pequeno produtor no
tem. No lugar da mo de obra, a demanda atual a tecnologia de ponta, no lugar do
engenho, esto as grandes unidades agroindustriais, ao invs de s acar, se produz
etanol, diversos tipos diferentes de acar, energia, levedura, entre outros. A
organizao produtiva que se deu nos primrdios da ocupao do Brasil foi crucial para
a configurao atual do pas (FERNANDES, 1981; PRADO JR, 1994; FURTADO,
1961), mas a repercusso dessa herana colonial se d em formas complexas.
Justamente por isso se torna importante compreender este processo.
1.3 OS PEQUENOS PROPRIETRIOS
Acima foi exposta uma breve retomada histrica da questo agrria nos
municpios em questo, marcados pela monocultura exportadora cafeicultora desde suafundao. Contando com a mo de obra escravocrata e imigrante, e as consequncias da
crise do caf, a organizao fundiria se deu, antes em Barra Bonita, e depois em So
Manuel, em torno de uma unidade de produo sucroalcooleira. A expanso da
produo canavieira se fez dentro das fazendas de caf. Dentro das grandes
propriedades fundirias, pequenos produtores, pessoas livres e de classes pobres,
pagavam pelo uso do solo por meio do arrendamento (RAMOS, 1999). A queda dos
preos de caf e a ascenso da cultura do algodo em So Paulo so elementosrelevantes no surgimento do arrendamento (CALDEIRA, 1950).
Por meio dos dados do LUPA, foi possvel perceber como este tipo de
organizao resultou na atual configurao da estrutura fundiria dos municpios.
Torna-se relevante, ento, compreender qual a percepo dos agentes locais acerca da
grande presena canavieira. Mais especificamente, se buscou compreender como se d a
articulao entre essas grandes unidades agroindustriais e os pequenos proprietrios,
atentando exatamente para a questo da renda fundiria envolvendo os atores
relacionados produo agropecuria.
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