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Sábado 17 .8 .2013 l Prosa l O GLOBO l 5

| Livros, autores e ideias fora das prateleiras |

Obomevelhopós-modernismo

“Opós-modernismo é o

canivete suíçodos con-ceitos críticos”, senten-ciou uns anos atrás ocrítico americanoLouisMenand. Poderí-

amos adaptar a frase, levando ametáfora da ta-bacaria chique aumsupermercadoqualquer: oBombril da crítica. Faz de tudo umpouco e temlá sua serventia nos momentos de aperto. Co-monão se trata porémdeumartigo de cozinha,suas 1001 definições criam um problema des-conhecido pelos comerciantes e consumidoresde palha de aço, o da inoperância por excessode utilidades. Já nos anos 1990, o filósofo prag-matista Richard Rorty constatava (pragmatica-mente) que o termo era usado em referência atantas coisas que havia o risco de não servir pa-ra falar demais nada. Em2008, o pensador itali-ano Giorgio Agamben publicou um livrinho in-titulado “O que é o contemporâneo?” (editadoaqui no ano seguinte pela Argos, com traduçãode Vinícius Nicastro Honesko), lançando umnovo conceito de espectro amplo para alívio deimpasses intelectuais. É injusto reduzir a ummodismo a voga do belo ensaio de Agamben,masnãohádúvidas dequepelomenos empar-te ela envolve uma tentativa de resposta àexaustão prevista por Rorty.Uma forma possível de se retornar hoje ao

conceito de pós-modernismo é pensar o seusentido dentro de contextos específicos nosquais ele continua a demarcar não apenas al-guns parâmetros de pesquisa e debate acadê-mico, mas o próprio imaginário, identidade easpirações de uma certa comunidade cultural.Caso emquestão: o enorme campo gravitacio-nal de livros, sites e revistas, especialmentemas não apenas nos EUA, cujas indagações,cismas, bravatas, controvérsias, fantasias ge-racionais etc. continuam a orbitar em veloci-dades e trajetórias variáveis em torno da figu-ra do escritor americano David Foster Walla-ce, morto em 2008.Desde que FosterWallace se enforcou em sua

casa em Claremont, Califórnia, cinco anosatrás, nenhum escritor foi capaz de substituí-lo

no papel duplo de teórico e diretor de consciên-cia (com má vontade talvez se pudesse resumir:ideólogo) que ele assumiu para inúmeros leito-res, escritores, críticos e aspirantes em geral à vi-da literária durante sua última década de vida. Otítulo do obituário de Foster Wallace no “NewYork Times” era: “Escritor pós-moderno é encon-tradomorto em casa”. A inscrição desse rótulo nomarco inicial de sua posteridade é uma ironiaperfeita para um escritor que fez da ironia o cen-tro de sua brilhante crítica à influência da ficçãopós-moderna sobre os autores da própria gera-ção. Entre vários rascunhos, revisões e retomadasdessa crítica em artigos e entrevistas, para não fa-lar dos próprios textos de ficção, o lugar em queFoster Wallace a desenvolveu de maneira maisdetalhada e direta foi um longo e hoje célebre en-saio intitulado “Eunibus pluram: televisão e a fic-ção dos EUA”, publicado em 1993 na “Review ofContemporaryFiction” e compiladonacoletâneade ensaios “A supposedly fun thing I’ll never doagain” (algo do tipo: “Uma coisa supostamentedivertida que nunca farei de novo”; Little, Brown,1997). Por aqui, um trecho do texto saiu em 2010na revista “Serrote”, do Instituto Moreira Salles,com tradução de Sérgio Rodrigues (até agora sóforam lançados no Brasil dois livros de FosterWallace, umvolumedecontos eoutrode ensaios,

ambos pela Companhia das Letras).Os textos de Foster Wallace (DFW para os ínti-

mos, sejameles críticos, admiradores oudevotos)têm um virtuosismo de menino prodígio, comsua proliferação desnorteante de referências, gui-nadas inesperadas de frase e enredo, histórias se-cundárias e notas de rodapé. Em seus ensaios, aerudição e a agilidade intelectual se combinam auma sensibilidade moral aguçada, mas muitasvezes conduzemadilemasque têmalgode infan-til, no seu apego apolarizações esquemáticas queparecemuma análise obsessiva de todas as variá-veis envolvidas numa daquelas pegadinhas filo-sóficas do tipo “o que você faria se...”. Algo dissoestá presente em “E unibus pluram”, onde ele sevolta sobre umde seus temas recorrentes, o lugarda literatura nomundo atual. O ensaio traça comfôlego impressionante um panorama das rela-ções entre literatura e culturademassa (e, comoosubtítulo adianta, emparticular aTV)do final dosanos 1950 ao início dos 1990 nos EUA, e reúne i-números exemplos da precisão implacável deFoster Wallace como crítico cultural.O argumento básico de Foster Wallace é que a

ironia era o procedimento principal da literaturapós-moderna nos EUApara expor a hipocrisia datelevisão e reagir a seu efeito corrosivo sobre a vi-da americana. Autores como Thomas Pynchon,

DonDeLillo,WilliamGaddis, Robert Coover te-riam se validoda ironia para expor o ridículo e amá-fé do sentimentalismo simplista que dava otomdos programas televisivos, adoçando o car-dápio conservador e consumista que a TV ofe-recia anestesicamente a uma sociedade envol-vida em conflitos sociais profundos. Essa forçacrítica da ironia se perderia no entanto a partirdomomento, por volta dos anos 1980, emque atelevisão começa a ironizar a si própria, e ame-talinguagem, a auto-referência, o lixo que ri daprópria vulgaridade se tornam mais um ele-mento no pacote de produtos televisivos. A per-gunta de FosterWallace então é qual seria a res-posta crítica possível da literatura a esse ambi-ente cultural degradado, e é na passagemdodi-agnóstico à prédica que o ensaio soa menosconvincente: “Os próximos ‘rebeldes’ literáriosnessepaís podemmuitobememergir comoumbando estranho de anti-rebeldes (...) que tra-tem de velhos, bons e antiquados problemas eemoções humanos na vida dos EUA com reve-rência e convicção”. Em vez de correr o risco doescândalo e da censura, como os rebeldes pós-modernos, autores que corressem o risco “dobocejo, do virar de olhos, do sorriso antenado,das cutucadinhas, das paródias de ironistas ha-bilidosos, do ‘Ó que banal!’”.Se o título do obituário do “New York Times”

parecemesmo portanto uma justiça irônica, elenão é totalmente equivocado como esse trechopoderia sugerir, pois a crítica de Foster Wallaceao pós-modernismo é a de um conhecedor (eadmirador) profundo, e emsuaprópriaobra fic-cional ele desenvolveu uma resposta muitomais complexa e ambígua aos problemas apon-tados no ensaio do que sugere a homilia em fa-vor dos “bons e velhos” problemas humanos.Muitosnoentantopreferiramseguir apregação.Como talvez esteja se tornando ummau há-

bito dessa coluna, porém, fica para o mês quevem aquilo que no começo do texto se preten-dia fazer: uma rediscussão da crítica de FosterWallace à ironia pós-moderna a partir da lei-tura de um livro de 1976 recentemente repu-blicado nos EUA, o romance “Speedboat”, daamericana Renata Adler (inédito no Brasil). l

PROCURA SEMIGUELCONDE

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“Sou uma nuance”. Esta auto-definição de Nietzschemarca muito bem o caráterradicalmente paradoxal desua obra. Como bem acen-tuaram os brilhantes estu-

dos de Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche é umpensador que se instala demododeliberado en-tre antagonismos insolúveis. Além disso, maisdo que uma tensão entre Apolo e Dionísio, seupensamento inaugura um novo modo de lidarcom a verdade: a interpretação infinita.A revolução deNietzsche não temprecedentes.

Esse novo modo de pensar integra a pluralidadede perspectivas que constroem aquilo que cha-mamos de verdade. E vai além: relativiza a pró-pria condiçãodo sujeito que valida essasmesmasperspectivas. O desconstrucionismo de JacquesDerrida emuitas vertentes do pensamento do sé-culoXXeXXI estariam innucenaspáginasdocri-ador de Zaratustra.Mas e se acrescentarmos a esse princípio inter-

pretativo a hipótese, também sustentada por Ni-etzsche, de que a verdade seja umamulher? Doislançamentos da Editora Nau partem da descons-trução e das teorias de gêneros para reavivar aagonística alegre existente entreNietzsche,Derri-da e o tema do feminino.Um é “Esporas: os estilos de Nietzsche”, livro

originado de uma conferência proferida por Der-rida em 1972, com tradução de Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Outro é o ótimo estudodeCarla Rodrigues, intitulado “Duas palavras pa-ra o feminino: hospitalidade e responsabilidade— Sobre ética e política em Jacques Derrida”. Asduas obras dialogam entre si justamente a partirdo tema do feminino.

FALA E FALO PATERNOS REVERBERANDO NA ESCRITAMas comoo pensamento deDerrida e sua leiturade Nietzsche possibilitam essa abordagem? Co-moDerrida deixa claro em suas análises dos con-ceitos de phármakon e de khôra, nos diálogos“Fedro” e “Timeu de Platão”, respectivamente, ametafísica consiste na tomada de decisão diantede termos estruturalmente indecidíveis.Assim, metafísica é toda decisão da linguagem

adotada em relação a alternativas excludentes in-demonstráveis: ser ou não ser, finito ou infinito,mortal ou imortal. E, comometafísica, incapazdepensar a complexidade do mundo contemporâ-neo. Uma escrita pós-metafísica seria aquela ca-paz de semanter tensionada emuma zona de in-

decidibilidade em relação a essas polaridades.Em outras palavras: seria uma escrita feminina.O fechamento racional (logos) é o modo pelo

qual a linguagemreatualiza a faladopai e criaumliame natural entre voz e verdade, entre a presen-ça física do falante e a verdade dos enunciados.Criou-se o que Derrida chama de metafísica dapresença. Portanto, todametafísica é um fono-fa-lo-logo-centrismo. Uma lógica fálica apoiada emumracionalismo fonocêntrico que privilegia a fa-la e a presença em detrimento da escrita e dopensamento in absentia. Nesse jogo, a escrita setransformou na presença-fantasma de um paiausente. Por meio dela, o arquivo humano, emsua infinita heterogênese e em sua incontornáveldisseminação, continuou ao longo de milêniossendo vivido como ausência, castração, falta deum dado de consciência presencial. O pensa-mento metafísico, que orientou o Ocidente, terianascido do recalque de um parricídio simbólico.A fala e o falo paternos continuaram reverberan-do demodo fantasmal na escrita, chancelando-acom uma negatividade incurável.O gigante empreendimento de Derrida consis-

te em refazer o percurso do pensamento ociden-tal não mais a partir dos seus centros emissoresde sentido,mas simdas franjas e bordas de enun-ciados indecidíveis. Criou uma odisseia da mar-

ginalidade intelectual que inclui todas as vozesausentes do festimmasculino da razão e abando-nadas pela paternidade arcaica dos signos.A racionalidade éomododeapropriação equi-

çá de expropriação que o pensamento e a lingua-gem empreendem sobre o mundo. Apenas umaescrita que incorpore o devir-mulher em seu ca-ráter inapreensível seráportadoradamarca inde-cidível da verdade. Derrida detecta emNietzscheessa escrita filosófica sui generis. E é dessas pre-missas que Carla Rodrigues parte para analisar olegado de Derrida para refletir sobre os gêneros.A partir dos principais aportes epistemológicos

da desconstrução, Carla renomeia o próprio sen-tido do vocabulário político que norteia o debatesobre gêneros. E o faz reendereçando de modosuplementar palavras amadas por Derrida aolongo de toda sua vida: alteridade, dom, justiça,lei, perdão, amizade, soberania e, sobretudo, hos-pitalidade e responsabilidade.Esse é umdos pontosmais fecundos de seu es-

tudo, pois consegue superar diversas aporias dasdefinições de feminino quando estas recorrem apressupostos biológicos. Ao pensar o gênero co-mo um processo de pura différance, um infinitodiferimento, também consegue escapar às tenta-çõesdedemarcar a singularidade feminina apar-tir de contrastes com o masculino, o que a faria

refém de um regime de identidade prévio. Tam-pouco se contenta em reservar para o feminino olugar vago de uma neutralidade ontológica.Masoque seria entãoo feminino?Umdospon-

tos altos do estudo de Carla é a reconstituição dodiálogo de Derrida com um de seus mais assí-duos amigos e interlocutores: Emmanuel Lévi-nas. Pensador da diferença ontológica a partir deuma alteridade radical, apenas o Outro nos sin-gulariza. Senãoháética semoconfronto comumprimeiro rosto e sem os vestígios de sua epifaniainscritos emnós, não há singularização semumaface alheia que desenhe os contornos de nossasfisionomias, sejamos homens oumulheres.Nesses termos, toda teoria de diferenciação

que pressuponha uma identidade substancialanterior, à qual o movimento de diferenciação sedirija, seráuma teoriametafísica, aindaquea ser-viço de causas feministas. Nesse ponto salta aosolhos a importância do horizonte de reflexão deCarla. Tanto do ponto de vista político e socioló-gico quantonoquediz respeito à demandadedi-reitos e à própria legitimação conceitual das mu-lheres e do feminino nomundo atual.A leitura que Derrida faz de Nietzsche e a que

Carla faz deDerrida encenamopróprio princípiodiferencial da escrita comoumaapropriação ina-cabada. Além disso, brindam-nos com um re-lâmpago em comum. Em ambas, podemos en-tender o feminino como omovimento centrífugoquea verdade realiza emdireçãoa zonasde inde-terminação. Esse êxodo ocorre justamente paraque a verdade seja aindamais verdadeira.Nesse caso, não se trata de pensar o feminino

deDeus, como o fez a psicologia analítica, eivadade resquícios metafísicos. Mas sim de pensarDeus como omodo absoluto do feminino. E o fe-minino comoum infinito processo de diferencia-ção, para sempre em aberto. Ao definir-se comouma nuance, Nietzsche estaria então se definin-do como uma mulher? Provavelmente não. Em-bora nada nos impeça de aventar essa hipótese.Prefiro, porém, outra interpretação. Ao se defi-

nir assim, Nietzsche estaria se definindo como opróprio Deus se definiria a si mesmo. O que ébastante plausível em se tratando deNietzsche. Eo que é bastante provável em se tratando de umDeus que hospeda e acolhe todos os seus órfãos.Ou seja: toda a Humanidade. l

O femininoemNietzscheeDerridaDuas obrasmostramo tema como importante ponto de contato entreas reflexões promovidas pelo pensador alemão e pelo autor francês

FILOSOFIA

RODRIGOPETRONIO

FABIO SEIXO/7-6-2001

Derrida. Conferência dada pelo filósofo em 1972 e livro sobre sua abordagem do feminino são lançados agora no Brasil

Rodrigo Petronio é autor, organizador e editor dediversas obras; mestre em Teoria da Literatura eemFilosofia daReligião

Esporas — Os estilos deNietzscheJacquesDerridaFILOSOFIATradução de RafaelHaddock-Lobo eCarla Rodrigues. NauEditora, 112 páginas.

R$ 36. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Duas palavras parao feminino:hospitalidaderesponsabilidadeCarlaRodriguesFILOSOFIANau Editora, 224páginas.

R$ 39,50. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Product: OGloboProsaeVerso PubDate: 17-08-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_E User: Schinaid Time: 08-16-2013 00:56 Color: CMYK