Resenha Prosa e Verso

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Sábado 17.8.2013 l Prosa l O GLOBO l 5 | Livros, autores e ideias fora das prateleiras | O bom e velho pós-modernismo “O pós-modernismo é o canivete suíço dos con- ceitos críticos” , senten- ciou uns anos atrás o crítico americano Louis Menand. Poderí- amos adaptar a frase, levando a metáfora da ta- bacaria chique a um supermercado qualquer: o Bombril da crítica. Faz de tudo um pouco e tem lá sua serventia nos momentos de aperto. Co- mo não se trata porém de um artigo de cozinha, suas 1001 definições criam um problema des- conhecido pelos comerciantes e consumidores de palha de aço, o da inoperância por excesso de utilidades. Já nos anos 1990, o filósofo prag- matista Richard Rorty constatava (pragmatica- mente) que o termo era usado em referência a tantas coisas que havia o risco de não servir pa- ra falar de mais nada. Em 2008, o pensador itali- ano Giorgio Agamben publicou um livrinho in- titulado “O que é o contemporâneo?” (editado aqui no ano seguinte pela Argos, com tradução de Vinícius Nicastro Honesko), lançando um novo conceito de espectro amplo para alívio de impasses intelectuais. É injusto reduzir a um modismo a voga do belo ensaio de Agamben, mas não há dúvidas de que pelo menos em par- te ela envolve uma tentativa de resposta à exaustão prevista por Rorty. Uma forma possível de se retornar hoje ao conceito de pós-modernismo é pensar o seu sentido dentro de contextos específicos nos quais ele continua a demarcar não apenas al- guns parâmetros de pesquisa e debate acadê- mico, mas o próprio imaginário, identidade e aspirações de uma certa comunidade cultural. Caso em questão: o enorme campo gravitacio- nal de livros, sites e revistas, especialmente mas não apenas nos EUA, cujas indagações, cismas, bravatas, controvérsias, fantasias ge- racionais etc. continuam a orbitar em veloci- dades e trajetórias variáveis em torno da figu- ra do escritor americano David Foster Walla- ce, morto em 2008. Desde que Foster Wallace se enforcou em sua casa em Claremont, Califórnia, cinco anos atrás, nenhum escritor foi capaz de substituí-lo no papel duplo de teórico e diretor de consciên- cia (com má vontade talvez se pudesse resumir: ideólogo) que ele assumiu para inúmeros leito- res, escritores, críticos e aspirantes em geral à vi- da literária durante sua última década de vida. O título do obituário de Foster Wallace no “New York Times” era: “Escritor pós-moderno é encon- trado morto em casa” . A inscrição desse rótulo no marco inicial de sua posteridade é uma ironia perfeita para um escritor que fez da ironia o cen- tro de sua brilhante crítica à influência da ficção pós-moderna sobre os autores da própria gera- ção. Entre vários rascunhos, revisões e retomadas dessa crítica em artigos e entrevistas, para não fa- lar dos próprios textos de ficção, o lugar em que Foster Wallace a desenvolveu de maneira mais detalhada e direta foi um longo e hoje célebre en- saio intitulado “E unibus pluram: televisão e a fic- ção dos EUA” , publicado em 1993 na “Review of Contemporary Fiction” e compilado na coletânea de ensaios “A supposedly fun thing I’ll never do again” (algo do tipo: “Uma coisa supostamente divertida que nunca farei de novo”; Little, Brown, 1997). Por aqui, um trecho do texto saiu em 2010 na revista “Serrote” , do Instituto Moreira Salles, com tradução de Sérgio Rodrigues (até agora só foram lançados no Brasil dois livros de Foster Wallace, um volume de contos e outro de ensaios, ambos pela Companhia das Letras). Os textos de Foster Wallace (DFW para os ínti- mos, sejam eles críticos, admiradores ou devotos) têm um virtuosismo de menino prodígio, com sua proliferação desnorteante de referências, gui- nadas inesperadas de frase e enredo, histórias se- cundárias e notas de rodapé. Em seus ensaios, a erudição e a agilidade intelectual se combinam a uma sensibilidade moral aguçada, mas muitas vezes conduzem a dilemas que têm algo de infan- til, no seu apego a polarizações esquemáticas que parecem uma análise obsessiva de todas as variá- veis envolvidas numa daquelas pegadinhas filo- sóficas do tipo “o que você faria se...” . Algo disso está presente em “E unibus pluram, onde ele se volta sobre um de seus temas recorrentes, o lugar da literatura no mundo atual. O ensaio traça com fôlego impressionante um panorama das rela- ções entre literatura e cultura de massa (e, como o subtítulo adianta, em particular a TV) do final dos anos 1950 ao início dos 1990 nos EUA, e reúne i- números exemplos da precisão implacável de Foster Wallace como crítico cultural. O argumento básico de Foster Wallace é que a ironia era o procedimento principal da literatura pós-moderna nos EUA para expor a hipocrisia da televisão e reagir a seu efeito corrosivo sobre a vi- da americana. Autores como Thomas Pynchon, Don DeLillo, William Gaddis, Robert Coover te- riam se valido da ironia para expor o ridículo e a má-fé do sentimentalismo simplista que dava o tom dos programas televisivos, adoçando o car- dápio conservador e consumista que a TV ofe- recia anestesicamente a uma sociedade envol- vida em conflitos sociais profundos. Essa força crítica da ironia se perderia no entanto a partir do momento, por volta dos anos 1980, em que a televisão começa a ironizar a si própria, e a me- talinguagem, a auto-referência, o lixo que ri da própria vulgaridade se tornam mais um ele- mento no pacote de produtos televisivos. A per- gunta de Foster Wallace então é qual seria a res- posta crítica possível da literatura a esse ambi- ente cultural degradado, e é na passagem do di- agnóstico à prédica que o ensaio soa menos convincente: “Os próximos ‘rebeldes’ literários nesse país podem muito bem emergir como um bando estranho de anti-rebeldes (...) que tra- tem de velhos, bons e antiquados problemas e emoções humanos na vida dos EUA com reve- rência e convicção” . Em vez de correr o risco do escândalo e da censura, como os rebeldes pós- modernos, autores que corressem o risco “do bocejo, do virar de olhos, do sorriso antenado, das cutucadinhas, das paródias de ironistas ha- bilidosos, do ‘Ó que banal!’” . Se o título do obituário do “New York Times” parece mesmo portanto uma justiça irônica, ele não é totalmente equivocado como esse trecho poderia sugerir, pois a crítica de Foster Wallace ao pós-modernismo é a de um conhecedor (e admirador) profundo, e em sua própria obra fic- cional ele desenvolveu uma resposta muito mais complexa e ambígua aos problemas apon- tados no ensaio do que sugere a homilia em fa- vor dos “bons e velhos” problemas humanos. Muitos no entanto preferiram seguir a pregação. Como talvez esteja se tornando um mau há- bito dessa coluna, porém, fica para o mês que vem aquilo que no começo do texto se preten- dia fazer: uma rediscussão da crítica de Foster Wallace à ironia pós-moderna a partir da lei- tura de um livro de 1976 recentemente repu- blicado nos EUA, o romance “Speedboat” , da americana Renata Adler (inédito no Brasil). l PROCURA SE MIGUEL CONDE [email protected] “S ou uma nuance” . Esta auto- definição de Nietzsche marca muito bem o caráter radicalmente paradoxal de sua obra. Como bem acen- tuaram os brilhantes estu- dos de Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche é um pensador que se instala de modo deliberado en- tre antagonismos insolúveis. Além disso, mais do que uma tensão entre Apolo e Dionísio, seu pensamento inaugura um novo modo de lidar com a verdade: a interpretação infinita. A revolução de Nietzsche não tem precedentes. Esse novo modo de pensar integra a pluralidade de perspectivas que constroem aquilo que cha- mamos de verdade. E vai além: relativiza a pró- pria condição do sujeito que valida essas mesmas perspectivas. O desconstrucionismo de Jacques Derrida e muitas vertentes do pensamento do sé- culo XX e XXI estariam in nuce nas páginas do cri- ador de Zaratustra. Mas e se acrescentarmos a esse princípio inter- pretativo a hipótese, também sustentada por Ni- etzsche, de que a verdade seja uma mulher? Dois lançamentos da Editora Nau partem da descons- trução e das teorias de gêneros para reavivar a agonística alegre existente entre Nietzsche, Derri- da e o tema do feminino. Um é “Esporas: os estilos de Nietzsche” , livro originado de uma conferência proferida por Der- rida em 1972, com tradução de Rafael Haddock- Lobo e Carla Rodrigues. Outro é o ótimo estudo de Carla Rodrigues, intitulado “Duas palavras pa- ra o feminino: hospitalidade e responsabilidade — Sobre ética e política em Jacques Derrida” . As duas obras dialogam entre si justamente a partir do tema do feminino. FALA E FALO PATERNOS REVERBERANDO NA ESCRITA Mas como o pensamento de Derrida e sua leitura de Nietzsche possibilitam essa abordagem? Co- mo Derrida deixa claro em suas análises dos con- ceitos de phármakon e de khôra, nos diálogos “Fedro” e “Timeu de Platão” , respectivamente, a metafísica consiste na tomada de decisão diante de termos estruturalmente indecidíveis. Assim, metafísica é toda decisão da linguagem adotada em relação a alternativas excludentes in- demonstráveis: ser ou não ser, finito ou infinito, mortal ou imortal. E, como metafísica, incapaz de pensar a complexidade do mundo contemporâ- neo. Uma escrita pós-metafísica seria aquela ca- paz de se manter tensionada em uma zona de in- decidibilidade em relação a essas polaridades. Em outras palavras: seria uma escrita feminina. O fechamento racional (logos) é o modo pelo qual a linguagem reatualiza a fala do pai e cria um liame natural entre voz e verdade, entre a presen- ça física do falante e a verdade dos enunciados. Criou-se o que Derrida chama de metafísica da presença. Portanto, toda metafísica é um fono-fa- lo-logo-centrismo. Uma lógica fálica apoiada em um racionalismo fonocêntrico que privilegia a fa- la e a presença em detrimento da escrita e do pensamento in absentia. Nesse jogo, a escrita se transformou na presença-fantasma de um pai ausente. Por meio dela, o arquivo humano, em sua infinita heterogênese e em sua incontornável disseminação, continuou ao longo de milênios sendo vivido como ausência, castração, falta de um dado de consciência presencial. O pensa- mento metafísico, que orientou o Ocidente, teria nascido do recalque de um parricídio simbólico. A fala e o falo paternos continuaram reverberan- do de modo fantasmal na escrita, chancelando-a com uma negatividade incurável. O gigante empreendimento de Derrida consis- te em refazer o percurso do pensamento ociden- tal não mais a partir dos seus centros emissores de sentido, mas sim das franjas e bordas de enun- ciados indecidíveis. Criou uma odisseia da mar- ginalidade intelectual que inclui todas as vozes ausentes do festim masculino da razão e abando- nadas pela paternidade arcaica dos signos. A racionalidade é o modo de apropriação e qui- çá de expropriação que o pensamento e a lingua- gem empreendem sobre o mundo. Apenas uma escrita que incorpore o devir-mulher em seu ca- ráter inapreensível será portadora da marca inde- cidível da verdade. Derrida detecta em Nietzsche essa escrita filosófica sui generis. E é dessas pre- missas que Carla Rodrigues parte para analisar o legado de Derrida para refletir sobre os gêneros. A partir dos principais aportes epistemológicos da desconstrução, Carla renomeia o próprio sen- tido do vocabulário político que norteia o debate sobre gêneros. E o faz reendereçando de modo suplementar palavras amadas por Derrida ao longo de toda sua vida: alteridade, dom, justiça, lei, perdão, amizade, soberania e, sobretudo, hos- pitalidade e responsabilidade. Esse é um dos pontos mais fecundos de seu es- tudo, pois consegue superar diversas aporias das definições de feminino quando estas recorrem a pressupostos biológicos. Ao pensar o gênero co- mo um processo de pura différance, um infinito diferimento, também consegue escapar às tenta- ções de demarcar a singularidade feminina a par- tir de contrastes com o masculino, o que a faria refém de um regime de identidade prévio. Tam- pouco se contenta em reservar para o feminino o lugar vago de uma neutralidade ontológica. Mas o que seria então o feminino? Um dos pon- tos altos do estudo de Carla é a reconstituição do diálogo de Derrida com um de seus mais assí- duos amigos e interlocutores: Emmanuel Lévi- nas. Pensador da diferença ontológica a partir de uma alteridade radical, apenas o Outro nos sin- gulariza. Se não há ética sem o confronto com um primeiro rosto e sem os vestígios de sua epifania inscritos em nós, não há singularização sem uma face alheia que desenhe os contornos de nossas fisionomias, sejamos homens ou mulheres. Nesses termos, toda teoria de diferenciação que pressuponha uma identidade substancial anterior, à qual o movimento de diferenciação se dirija, será uma teoria metafísica, ainda que a ser- viço de causas feministas. Nesse ponto salta aos olhos a importância do horizonte de reflexão de Carla. Tanto do ponto de vista político e socioló- gico quanto no que diz respeito à demanda de di- reitos e à própria legitimação conceitual das mu- lheres e do feminino no mundo atual. A leitura que Derrida faz de Nietzsche e a que Carla faz de Derrida encenam o próprio princípio diferencial da escrita como uma apropriação ina- cabada. Além disso, brindam-nos com um re- lâmpago em comum. Em ambas, podemos en- tender o feminino como o movimento centrífugo que a verdade realiza em direção a zonas de inde- terminação. Esse êxodo ocorre justamente para que a verdade seja ainda mais verdadeira. Nesse caso, não se trata de pensar o feminino de Deus, como o fez a psicologia analítica, eivada de resquícios metafísicos. Mas sim de pensar Deus como o modo absoluto do feminino. E o fe- minino como um infinito processo de diferencia- ção, para sempre em aberto. Ao definir-se como uma nuance, Nietzsche estaria então se definin- do como uma mulher? Provavelmente não. Em- bora nada nos impeça de aventar essa hipótese. Prefiro, porém, outra interpretação. Ao se defi- nir assim, Nietzsche estaria se definindo como o próprio Deus se definiria a si mesmo. O que é bastante plausível em se tratando de Nietzsche. E o que é bastante provável em se tratando de um Deus que hospeda e acolhe todos os seus órfãos. Ou seja: toda a Humanidade. l O feminino em Nietzsche e Derrida Duas obras mostram o tema como importante ponto de contato entre as reflexões promovidas pelo pensador alemão e pelo autor francês FILOSOFIA RODRIGO PETRONIO FABIO SEIXO/7-6-2001 Derrida. Conferência dada pelo filósofo em 1972 e livro sobre sua abordagem do feminino são lançados agora no Brasil Rodrigo Petronio é autor, organizador e editor de diversas obras; mestre em Teoria da Literatura e em Filosofia da Religião Esporas — Os estilos de Nietzsche Jacques Derrida FILOSOFIA Tradução de Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Nau Editora, 112 páginas. R$ 36 ................................................................................ Duas palavras para o feminino: hospitalidade responsabilidade Carla Rodrigues FILOSOFIA Nau Editora, 224 páginas. R$ 39,50 ......................................................................

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Sábado 17 .8 .2013 l Prosa l O GLOBO l 5

| Livros, autores e ideias fora das prateleiras |

Obomevelhopós-modernismo

“Opós-modernismo é o

canivete suíçodos con-ceitos críticos”, senten-ciou uns anos atrás ocrítico americanoLouisMenand. Poderí-

amos adaptar a frase, levando ametáfora da ta-bacaria chique aumsupermercadoqualquer: oBombril da crítica. Faz de tudo umpouco e temlá sua serventia nos momentos de aperto. Co-monão se trata porémdeumartigo de cozinha,suas 1001 definições criam um problema des-conhecido pelos comerciantes e consumidoresde palha de aço, o da inoperância por excessode utilidades. Já nos anos 1990, o filósofo prag-matista Richard Rorty constatava (pragmatica-mente) que o termo era usado em referência atantas coisas que havia o risco de não servir pa-ra falar demais nada. Em2008, o pensador itali-ano Giorgio Agamben publicou um livrinho in-titulado “O que é o contemporâneo?” (editadoaqui no ano seguinte pela Argos, com traduçãode Vinícius Nicastro Honesko), lançando umnovo conceito de espectro amplo para alívio deimpasses intelectuais. É injusto reduzir a ummodismo a voga do belo ensaio de Agamben,masnãohádúvidas dequepelomenos empar-te ela envolve uma tentativa de resposta àexaustão prevista por Rorty.Uma forma possível de se retornar hoje ao

conceito de pós-modernismo é pensar o seusentido dentro de contextos específicos nosquais ele continua a demarcar não apenas al-guns parâmetros de pesquisa e debate acadê-mico, mas o próprio imaginário, identidade easpirações de uma certa comunidade cultural.Caso emquestão: o enorme campo gravitacio-nal de livros, sites e revistas, especialmentemas não apenas nos EUA, cujas indagações,cismas, bravatas, controvérsias, fantasias ge-racionais etc. continuam a orbitar em veloci-dades e trajetórias variáveis em torno da figu-ra do escritor americano David Foster Walla-ce, morto em 2008.Desde que FosterWallace se enforcou em sua

casa em Claremont, Califórnia, cinco anosatrás, nenhum escritor foi capaz de substituí-lo

no papel duplo de teórico e diretor de consciên-cia (com má vontade talvez se pudesse resumir:ideólogo) que ele assumiu para inúmeros leito-res, escritores, críticos e aspirantes em geral à vi-da literária durante sua última década de vida. Otítulo do obituário de Foster Wallace no “NewYork Times” era: “Escritor pós-moderno é encon-tradomorto em casa”. A inscrição desse rótulo nomarco inicial de sua posteridade é uma ironiaperfeita para um escritor que fez da ironia o cen-tro de sua brilhante crítica à influência da ficçãopós-moderna sobre os autores da própria gera-ção. Entre vários rascunhos, revisões e retomadasdessa crítica em artigos e entrevistas, para não fa-lar dos próprios textos de ficção, o lugar em queFoster Wallace a desenvolveu de maneira maisdetalhada e direta foi um longo e hoje célebre en-saio intitulado “Eunibus pluram: televisão e a fic-ção dos EUA”, publicado em 1993 na “Review ofContemporaryFiction” e compiladonacoletâneade ensaios “A supposedly fun thing I’ll never doagain” (algo do tipo: “Uma coisa supostamentedivertida que nunca farei de novo”; Little, Brown,1997). Por aqui, um trecho do texto saiu em 2010na revista “Serrote”, do Instituto Moreira Salles,com tradução de Sérgio Rodrigues (até agora sóforam lançados no Brasil dois livros de FosterWallace, umvolumedecontos eoutrode ensaios,

ambos pela Companhia das Letras).Os textos de Foster Wallace (DFW para os ínti-

mos, sejameles críticos, admiradores oudevotos)têm um virtuosismo de menino prodígio, comsua proliferação desnorteante de referências, gui-nadas inesperadas de frase e enredo, histórias se-cundárias e notas de rodapé. Em seus ensaios, aerudição e a agilidade intelectual se combinam auma sensibilidade moral aguçada, mas muitasvezes conduzemadilemasque têmalgode infan-til, no seu apego apolarizações esquemáticas queparecemuma análise obsessiva de todas as variá-veis envolvidas numa daquelas pegadinhas filo-sóficas do tipo “o que você faria se...”. Algo dissoestá presente em “E unibus pluram”, onde ele sevolta sobre umde seus temas recorrentes, o lugarda literatura nomundo atual. O ensaio traça comfôlego impressionante um panorama das rela-ções entre literatura e culturademassa (e, comoosubtítulo adianta, emparticular aTV)do final dosanos 1950 ao início dos 1990 nos EUA, e reúne i-números exemplos da precisão implacável deFoster Wallace como crítico cultural.O argumento básico de Foster Wallace é que a

ironia era o procedimento principal da literaturapós-moderna nos EUApara expor a hipocrisia datelevisão e reagir a seu efeito corrosivo sobre a vi-da americana. Autores como Thomas Pynchon,

DonDeLillo,WilliamGaddis, Robert Coover te-riam se validoda ironia para expor o ridículo e amá-fé do sentimentalismo simplista que dava otomdos programas televisivos, adoçando o car-dápio conservador e consumista que a TV ofe-recia anestesicamente a uma sociedade envol-vida em conflitos sociais profundos. Essa forçacrítica da ironia se perderia no entanto a partirdomomento, por volta dos anos 1980, emque atelevisão começa a ironizar a si própria, e ame-talinguagem, a auto-referência, o lixo que ri daprópria vulgaridade se tornam mais um ele-mento no pacote de produtos televisivos. A per-gunta de FosterWallace então é qual seria a res-posta crítica possível da literatura a esse ambi-ente cultural degradado, e é na passagemdodi-agnóstico à prédica que o ensaio soa menosconvincente: “Os próximos ‘rebeldes’ literáriosnessepaís podemmuitobememergir comoumbando estranho de anti-rebeldes (...) que tra-tem de velhos, bons e antiquados problemas eemoções humanos na vida dos EUA com reve-rência e convicção”. Em vez de correr o risco doescândalo e da censura, como os rebeldes pós-modernos, autores que corressem o risco “dobocejo, do virar de olhos, do sorriso antenado,das cutucadinhas, das paródias de ironistas ha-bilidosos, do ‘Ó que banal!’”.Se o título do obituário do “New York Times”

parecemesmo portanto uma justiça irônica, elenão é totalmente equivocado como esse trechopoderia sugerir, pois a crítica de Foster Wallaceao pós-modernismo é a de um conhecedor (eadmirador) profundo, e emsuaprópriaobra fic-cional ele desenvolveu uma resposta muitomais complexa e ambígua aos problemas apon-tados no ensaio do que sugere a homilia em fa-vor dos “bons e velhos” problemas humanos.Muitosnoentantopreferiramseguir apregação.Como talvez esteja se tornando ummau há-

bito dessa coluna, porém, fica para o mês quevem aquilo que no começo do texto se preten-dia fazer: uma rediscussão da crítica de FosterWallace à ironia pós-moderna a partir da lei-tura de um livro de 1976 recentemente repu-blicado nos EUA, o romance “Speedboat”, daamericana Renata Adler (inédito no Brasil). l

PROCURA SEMIGUELCONDE

[email protected]

“Sou uma nuance”. Esta auto-definição de Nietzschemarca muito bem o caráterradicalmente paradoxal desua obra. Como bem acen-tuaram os brilhantes estu-

dos de Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche é umpensador que se instala demododeliberado en-tre antagonismos insolúveis. Além disso, maisdo que uma tensão entre Apolo e Dionísio, seupensamento inaugura um novo modo de lidarcom a verdade: a interpretação infinita.A revolução deNietzsche não temprecedentes.

Esse novo modo de pensar integra a pluralidadede perspectivas que constroem aquilo que cha-mamos de verdade. E vai além: relativiza a pró-pria condiçãodo sujeito que valida essasmesmasperspectivas. O desconstrucionismo de JacquesDerrida emuitas vertentes do pensamento do sé-culoXXeXXI estariam innucenaspáginasdocri-ador de Zaratustra.Mas e se acrescentarmos a esse princípio inter-

pretativo a hipótese, também sustentada por Ni-etzsche, de que a verdade seja umamulher? Doislançamentos da Editora Nau partem da descons-trução e das teorias de gêneros para reavivar aagonística alegre existente entreNietzsche,Derri-da e o tema do feminino.Um é “Esporas: os estilos de Nietzsche”, livro

originado de uma conferência proferida por Der-rida em 1972, com tradução de Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Outro é o ótimo estudodeCarla Rodrigues, intitulado “Duas palavras pa-ra o feminino: hospitalidade e responsabilidade— Sobre ética e política em Jacques Derrida”. Asduas obras dialogam entre si justamente a partirdo tema do feminino.

FALA E FALO PATERNOS REVERBERANDO NA ESCRITAMas comoo pensamento deDerrida e sua leiturade Nietzsche possibilitam essa abordagem? Co-moDerrida deixa claro em suas análises dos con-ceitos de phármakon e de khôra, nos diálogos“Fedro” e “Timeu de Platão”, respectivamente, ametafísica consiste na tomada de decisão diantede termos estruturalmente indecidíveis.Assim, metafísica é toda decisão da linguagem

adotada em relação a alternativas excludentes in-demonstráveis: ser ou não ser, finito ou infinito,mortal ou imortal. E, comometafísica, incapazdepensar a complexidade do mundo contemporâ-neo. Uma escrita pós-metafísica seria aquela ca-paz de semanter tensionada emuma zona de in-

decidibilidade em relação a essas polaridades.Em outras palavras: seria uma escrita feminina.O fechamento racional (logos) é o modo pelo

qual a linguagemreatualiza a faladopai e criaumliame natural entre voz e verdade, entre a presen-ça física do falante e a verdade dos enunciados.Criou-se o que Derrida chama de metafísica dapresença. Portanto, todametafísica é um fono-fa-lo-logo-centrismo. Uma lógica fálica apoiada emumracionalismo fonocêntrico que privilegia a fa-la e a presença em detrimento da escrita e dopensamento in absentia. Nesse jogo, a escrita setransformou na presença-fantasma de um paiausente. Por meio dela, o arquivo humano, emsua infinita heterogênese e em sua incontornáveldisseminação, continuou ao longo de milêniossendo vivido como ausência, castração, falta deum dado de consciência presencial. O pensa-mento metafísico, que orientou o Ocidente, terianascido do recalque de um parricídio simbólico.A fala e o falo paternos continuaram reverberan-do demodo fantasmal na escrita, chancelando-acom uma negatividade incurável.O gigante empreendimento de Derrida consis-

te em refazer o percurso do pensamento ociden-tal não mais a partir dos seus centros emissoresde sentido,mas simdas franjas e bordas de enun-ciados indecidíveis. Criou uma odisseia da mar-

ginalidade intelectual que inclui todas as vozesausentes do festimmasculino da razão e abando-nadas pela paternidade arcaica dos signos.A racionalidade éomododeapropriação equi-

çá de expropriação que o pensamento e a lingua-gem empreendem sobre o mundo. Apenas umaescrita que incorpore o devir-mulher em seu ca-ráter inapreensível seráportadoradamarca inde-cidível da verdade. Derrida detecta emNietzscheessa escrita filosófica sui generis. E é dessas pre-missas que Carla Rodrigues parte para analisar olegado de Derrida para refletir sobre os gêneros.A partir dos principais aportes epistemológicos

da desconstrução, Carla renomeia o próprio sen-tido do vocabulário político que norteia o debatesobre gêneros. E o faz reendereçando de modosuplementar palavras amadas por Derrida aolongo de toda sua vida: alteridade, dom, justiça,lei, perdão, amizade, soberania e, sobretudo, hos-pitalidade e responsabilidade.Esse é umdos pontosmais fecundos de seu es-

tudo, pois consegue superar diversas aporias dasdefinições de feminino quando estas recorrem apressupostos biológicos. Ao pensar o gênero co-mo um processo de pura différance, um infinitodiferimento, também consegue escapar às tenta-çõesdedemarcar a singularidade feminina apar-tir de contrastes com o masculino, o que a faria

refém de um regime de identidade prévio. Tam-pouco se contenta em reservar para o feminino olugar vago de uma neutralidade ontológica.Masoque seria entãoo feminino?Umdospon-

tos altos do estudo de Carla é a reconstituição dodiálogo de Derrida com um de seus mais assí-duos amigos e interlocutores: Emmanuel Lévi-nas. Pensador da diferença ontológica a partir deuma alteridade radical, apenas o Outro nos sin-gulariza. Senãoháética semoconfronto comumprimeiro rosto e sem os vestígios de sua epifaniainscritos emnós, não há singularização semumaface alheia que desenhe os contornos de nossasfisionomias, sejamos homens oumulheres.Nesses termos, toda teoria de diferenciação

que pressuponha uma identidade substancialanterior, à qual o movimento de diferenciação sedirija, seráuma teoriametafísica, aindaquea ser-viço de causas feministas. Nesse ponto salta aosolhos a importância do horizonte de reflexão deCarla. Tanto do ponto de vista político e socioló-gico quantonoquediz respeito à demandadedi-reitos e à própria legitimação conceitual das mu-lheres e do feminino nomundo atual.A leitura que Derrida faz de Nietzsche e a que

Carla faz deDerrida encenamopróprio princípiodiferencial da escrita comoumaapropriação ina-cabada. Além disso, brindam-nos com um re-lâmpago em comum. Em ambas, podemos en-tender o feminino como omovimento centrífugoquea verdade realiza emdireçãoa zonasde inde-terminação. Esse êxodo ocorre justamente paraque a verdade seja aindamais verdadeira.Nesse caso, não se trata de pensar o feminino

deDeus, como o fez a psicologia analítica, eivadade resquícios metafísicos. Mas sim de pensarDeus como omodo absoluto do feminino. E o fe-minino comoum infinito processo de diferencia-ção, para sempre em aberto. Ao definir-se comouma nuance, Nietzsche estaria então se definin-do como uma mulher? Provavelmente não. Em-bora nada nos impeça de aventar essa hipótese.Prefiro, porém, outra interpretação. Ao se defi-

nir assim, Nietzsche estaria se definindo como opróprio Deus se definiria a si mesmo. O que ébastante plausível em se tratando deNietzsche. Eo que é bastante provável em se tratando de umDeus que hospeda e acolhe todos os seus órfãos.Ou seja: toda a Humanidade. l

O femininoemNietzscheeDerridaDuas obrasmostramo tema como importante ponto de contato entreas reflexões promovidas pelo pensador alemão e pelo autor francês

FILOSOFIA

RODRIGOPETRONIO

FABIO SEIXO/7-6-2001

Derrida. Conferência dada pelo filósofo em 1972 e livro sobre sua abordagem do feminino são lançados agora no Brasil

Rodrigo Petronio é autor, organizador e editor dediversas obras; mestre em Teoria da Literatura eemFilosofia daReligião

Esporas — Os estilos deNietzscheJacquesDerridaFILOSOFIATradução de RafaelHaddock-Lobo eCarla Rodrigues. NauEditora, 112 páginas.

R$ 36. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Duas palavras parao feminino:hospitalidaderesponsabilidadeCarlaRodriguesFILOSOFIANau Editora, 224páginas.

R$ 39,50. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Product: OGloboProsaeVerso PubDate: 17-08-2013 Zone: Nacional Edition: 1 Page: PAGINA_E User: Schinaid Time: 08-16-2013 00:56 Color: CMYK