UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
ANA PAULA LIMA DE ALBUQUERQUE
O ENSINO DO CANTO POPULAR EM DUAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS: UM ESTUDO SOBRE AS
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA UnB E DA UFMG
CAMPINAS 2017
ANA PAULA LIMA DE ALBUQUERQUE
O ENSINO DO CANTO POPULAR EM DUAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS: UM ESTUDO SOBRE AS
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DA UnB E DA UFMG
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, como um requisito para obtenção do título de Mestra em Música. Área de Concentração: Música: Teoria, Criação e Prática.
Orientadora: Profa. Dra. Regina Machado
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA PAULA LIMA DE ALBUQUERQUE, E ORIENTADA PELA Profa. Dra. REGINA MACHADO.
CAMPINAS
2017
A
Maria, minha filha amada, minha estrela-guia.
A Aldeniza, minha mãe amada, por ter me ensinado a valorizar
todas as oportunidades que ela não teve.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Regina Machado, minha grande inspiração para trilhar o caminho acadêmico, pelos ensinamentos valiosos, pela paciência e sensibilidade com que me acolheu e me direcionou. Ao programa de Pós-Graduação do IA – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professores e funcionários. À Universidade Federal da Bahia (UFBA), pelo apoio. À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo apoio parcial nesta pesquisa. Aos professores Alexei Queiroz e Clara Sandroni, por toda generosidade com que me acolheram em suas aulas e pelas preciosas informações para a realização desta pesquisa. Aos professores Daniella Gramani, Valéria Leite e Luciano Simões pelas informações e atenção. A Sandra Loureiro, pela inestimável ajuda, carinho na revisão e formatação do trabalho e por suas contribuições valiosas. A Paula Dellazzana, pela amizade e ajuda nos momentos de dificuldade, além das valiosas discussões que enriqueceram este trabalho e a pesquisadora. Aos meus colegas pesquisadores do grupo VOX MUNDI. Aos meus alunos, que me ensinam e impulsionam na minha busca À minha irmã Ana Lúcia Albuquerque, pelo apoio incondicional. À minha filha, Maria, pelo amor, companheirismo e alegria que acalmam a minha alma.
RESUMO
A presente investigação versa sobre o currículo de canto popular, a partir da análise da inserção do ensino da música popular nas universidades públicas brasileiras. Busca apresentar um estudo acerca da forma como o ensino do canto popular vem sendo sistematizado, além de discorrer sobre a concepção didático-pedagógica do canto popular, apresentando um histórico da inserção dessa modalidade de ensino, suas propostas curriculares e como os professores desenvolvem suas metodologias e elegem seus conteúdos. Como ponto de partida, é exposta uma breve descrição do primeiro curso de música popular a oferecer o ensino do canto popular na universidade pública, a Unicamp. Para delinear um contexto mais amplo, são citados os cursos ofertados nas demais universidades, porém com diferentes graus de aprofundamento quanto à sua estrutura e a seu funcionamento, detendo-se particularmente na análise de como ocorre na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e na Universidade de Brasília (UnB). Para tanto, por meio de entrevistas com os professores das duas universidades, foi descrita a organização de cada curso, no que concerne aos currículos articulados às práticas desenvolvidas por cada professor entrevistado para, assim, chegar a algumas conclusões significativas, como o reconhecimento da importância da diversidade cultural nos currículos e da valorização da nossa cultura. Palavras-chave: Universidade de Brasília. Universidade Federal de Minas Gerais. Música - Currículo. Canto popular. Música Popular – Brasil – Instrução e estudo. Universidades e faculdades públicas - Brasil.
ABSTRACT
The present research deals with how the popular singing curriculum is organized, based on the analysis of the insertion of popular music education in Brazilian public universities, and seeks to present a study about how popular singing has been taught and systematized. It also discusses the didactic-pedagogical concepts of popular singing education, presenting a history of the insertion of this teaching modality, its curricular proposals, and how professors develop their methodologies and choose their contents. As a starting point, there is a brief description of the first undergraduate course in Popular Music that introduced popular singing in a Public University, the one offered at Unicamp. To include a broader context, the courses offered in the other universities are mentioned, but with different degrees of deepening regarding their structures and functioning focusing particularly on the analysis of how it occurs in the Federal University of Minas Gerais (UFMG) and the University of Brasília (UnB). In order to do so, through interviews with two professors of these two universities, the organization of each course was described, presenting the curricula linked to the practices developed by each professor interviewed. Finally, significant conclusions emerged from this analysis, such as the recognition of the importance of cultural diversity in curricula and the appreciation of our national culture. . Keywords: Universidade de Brasília. Universidade Federal de Minas Gerais. Music - Curricula. Popular singing. Popular music – Brazil – Instruction and study. Public universities and colleges - Brazil.
Lista de Ilustrações
Gráfico 1 - Evolução da oferta de ensino do canto popular.......................... 36
Figura 1 - Quadro comparativo dos cursos de música popular que oferecem
canto popular ................................................................................................ 37 Gráfico 2 – Localização e distribuição regional das instituições onde o canto
popular vem sendo ensinado no Brasil.......................................................... 37 Quadro 1 - Ementa da disciplina “Instrumento Suplementar Canto Popular
1”.................................................................................................................... 67
Quadro 2 - Ementa da disciplina “Instrumento Suplementar Canto Popular
2”.................................................................................................................... 67
Quadro 3 - Ementa da disciplina “Instrumento Principal Canto Popular 1”... 70
Quadro 4 - Ementa da disciplina “Instrumento Principal Canto Popular 2”... 71
Quadro 5 - Ementa da disciplina “Instrumento Principal Canto Popular 3”... 71
Quadro 6 - Ementa da disciplina “Instrumento Principal Canto Popular 4”... 71
Quadro 7 - Ementa da disciplina “Instrumento Principal Canto Popular 5”... 72
Quadro 8 - Ementa da disciplina “Instrumento Principal Canto Popular 6”... 72
Quadro 9 - Ementa da disciplina “Performance de Instrumento ou Canto
A”.................................................................................................................... 74
Quadro 10 - Ementa da disciplina “Performance de Instrumento ou Canto
B”.................................................................................................................... 75
Quadro 11 - Ementa da disciplina “Performance de Instrumento ou Canto
C”.................................................................................................................... 75
Quadro 12 - Ementa da disciplina “Performance de Instrumento ou Canto
D”.................................................................................................................... 76
Lista de Abreviaturas CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica
CONSEPE Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão
EAD Educação a distância
IA Instituto de Artes
IFPE Instituto Federal de Pernambuco
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
FAP Faculdade de Artes do Paraná
GEV-RJ Grupo de Estudos da Voz do Rio de Janeiro
IFPE Instituto Federal de Pernambuco
LEM Linguagem e Estruturação Musical
MEC Ministério da Educação
MPB Música Popular Brasileira
Reuni Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais UAB Universidade Aberta do Brasil
UFC Universidade Federal do Ceará
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPEL Universidade Federal de Pelotas
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSCar Universidade Federal de São Carlos
UFSJ Universidade Federal de São João del-Rei
UnB Universidade de Brasília
Unespar Universidade Estadual do Paraná
Unicamp Universidade Estadual de Campinas
UNILA Universidade Federal da Integração Latino-Americana
UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
TCC Trabalho de Conclusão de Curso
Sumário
Introdução .................................................................................................... 13 Delimitação do problema e objetivos ..................................................................... 16
1. A música popular no cenário musical acadêmico ............................... 17 1.1 O canto popular nas universidades públicas brasileiras ................................. 19 1.3. Abordagem das teorias do currículo ............................................................... 23 1.4. A metodologia e os métodos de coleta de dados ........................................... 26
1.4.1 Sujeitos ............................................................................................................................ 31 2. Panorama atual do ensino do canto popular ........................................ 35
2.1 O canto popular como habilitação específica na Unicamp .............................. 39 2.2 O canto popular como “Instrumento”: uma habilitação em execução nos cursos de Bacharelado em Música Popular .......................................................... 42 2.2.1 Universidade Estadual do Paraná (Unespar) ............................................... 42 2.2.2 Universidade Federal da Bahia (UFBA) ....................................................... 43 2.2.3 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) .......................................... 45 2.3 O canto popular como “disciplina” e “habilitação” nos cursos de Licenciatura em Música ............................................................................................................. 46 2.3.1 Universidade Federal da Paraíba (UFPB) .................................................... 47 2.3.2 Universidade de Brasília (UnB) .................................................................... 50 2.3.3 Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) ..................................... 51 2.3.4 Instituto Federal de Pernambuco - campus Belo Jardim (IFPE) .................. 53 2.3.5 Universidade Federal do Ceará (UFC) ......................................................... 55 2.4 O Canto Popular a Distância na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) ............................................................................................................... 56 2.5 Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) .................... 57
3. Análise das entrevistas ........................................................................... 59 3.1 O que se entende como canto popular: opiniões docentes ............................ 60 3.2 Concepção dos professores sobre o currículo de canto popular .................... 62
3.2.1 Fundamentos dos conteúdos no currículo: discussão a partir das ementas e conteúdos programáticos ........................................................................................................................... 66
3.2.1.1 As disciplinas do curso de Licenciatura em Música da UnB .......................... 68 3.2.1.2 As disciplinas do curso de Bacharelado em Música Popular da UFMG ......... 75
3.2.2 Áreas de conhecimento envolvidas ................................................................................. 78 3.2.3 Critérios para estruturação, seleção e organização dos conteúdos ................................ 80
3.3 Concepção didático-pedagógica dos docentes ............................................... 83 3.3.1 Como desenvolvem suas metodologias .......................................................................... 85 3.3.2 Como o professor avalia .................................................................................................. 92
4. Conclusão ................................................................................................ 95 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 100 APÊNDICES ................................................................................................ 105 ANEXOS ...................................................................................................... 142
Nas experiências cotidianas miúdas, nas brechas, nas frestas e fissuras, nas reexistências afirmativas, nas transgressões, nas rasuras,
nas rebeldias e nas traições cotidianas, nas opacidades, na clandestinidade, nas diversas micro-ousadias,
nas epifanias que irrompem, acontecem ações instituintes. Plurais, muitas vezes não normatizadas,
podemos falar mais uma vez de experiências curriculares que se instituem como temporalidades outras,
realizações curriculares outras, bricolagem outras. Fachos de luz caminhando e iluminando situações curriculares,
fundando uma heterogeneidade que queremos cada vez mais ampliada, cada vez mais irredutível, cada vez mais socialmente referenciada e que
pode nascer de con-versações socialmente engendradas. " (Roberto Sidnei Macedo, 2013)
13
Introdução
A música popular brasileira é reconhecida internacionalmente por
sua qualidade e diversidade, tendo se tornado uma das mais relevantes
manifestações culturais do país. No entanto, há cerca de 30 anos, a
universidade pública brasileira oferecia somente o ensino da música erudita1,
de origem europeia, mais precisamente a música de concerto e de câmara.
Nas universidades, o que mais se aproximava do Brasil, no ensino da música,
eram as obras dos compositores do período nacionalista, a exemplo de Heitor
Villa-Lobos. Ao focalizarmos a história da produção e ensino de música no
Brasil, encontramos algumas concepções musicais oriundas das vanguardas
europeias, introduzidas nas universidades brasileiras, como, por exemplo, o
dodecafonismo2 e o serialismo3.4 A partir do final dos anos 1930, com a
chegada do compositor, musicólogo e professor alemão, posteriormente
naturalizado brasileiro, Hans Joachim Koellreuter, em 1937, somaram-se
àquelas propostas musicais a ideia de uma música que considerasse
elementos diatônicos e populares. Na Universidade Federal da Bahia (UFBA),
no final dos anos 60, um grupo se organizou em torno dessas ideias,
fundando o Grupo de Compositores da Bahia5. Nessa mesma época, em
1O primeiro curso de música popular do Brasil surgiu em 1989, na Unicamp. 2 Dodecafonismo é uma técnica de estruturação musical que utiliza uma série de doze sons de alturas diferentes, ou seja, uma permutação da escala cromática, como principal elemento unificador (BRITO, 2001, p. 141). 3 Serialismo é uma técnica de estruturação musical. Maneira de estruturar a composição baseando-se na ordenação serial de vários ou todos os parâmetros musicais utilizados na obra (BRITO, 2001, p. 140). 4 "O movimento Música Viva foi criado no Brasil, em 1938, por obra de H. J. Koellreutter, sendo suas primeiras realizações e atividades efetivamente concretizadas no ano seguinte. Assim, desde 1939 e ao longo de toda a década de 40, vemos desenvolver-se um movimento pioneiro de renovação, tendo por meta instaurar uma nova ordem no meio musical, inicialmente no Rio de Janeiro e após em São Paulo. Suas principais características definem-se pelo ineditismo de propostas na área cultural, atualidade do pensamento musical, convergência com tendências estéticas, filosóficas e políticas da vanguarda internacional e assim gerador de dinamismo junto ao ambiente da época". KATER, Carlos. Música Viva. Disponível em: http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portugues/revista12-mat13.pdf. Acesso em: 08 fev. 2017. 5 O Grupo de Compositores da Bahia foi criado por Ernst Widmer, na Universidade Federal da Bahia, na época, Universidade da Bahia, inspirado nas concepções e no pensamento educacional e musical de Koellreutter, que criou os Seminários Livres de Música, entre 1954 e 1962, espaço de fomento do pensamento de vanguarda da música erudita na Bahia. Após a saída de Koellreuter da Bahia, em 1963, Widmer assumiu o ensino de composição e o cargo de diretor substituto dos Seminários. "A respeito do ensino de composição, ele assim
14
1963, surgia, na cidade de Santos, em São Paulo, o movimento “Música
Nova”, cujos compositores propunham pesquisas sobre microtonalidade,
música concreta e música eletroacústica6.
Dessa forma, percebemos que as universidades brasileiras, ao
longo de sua trajetória, dialogaram, timidamente, em alguns momentos, com
elementos musicais populares, embora não tenham estabelecido a
possibilidade efetiva do ensino de música popular. Somente em 1989, com a
criação do curso de Música Popular na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), surgiu o primeiro curso voltado para o canto popular no âmbito da
universidade pública no Brasil.
Desde então, entre outros fatores, que serão detalhados adiante, o
ensino formal do canto popular vem se consolidando, impulsionado por um
grande interesse pela temática da canção nos últimos anos e pela crescente
demanda pelo ensino formal dessa modalidade.
Assim, a presente investigação versa sobre o currículo de canto
popular a partir da análise da inserção do ensino da música popular nas
universidades públicas. Como ponto de partida, apresentaremos uma breve
descrição do primeiro curso de música popular a oferecer o ensino do canto
popular na universidade pública, a Unicamp. Posteriormente, apresentaremos
as demais universidades públicas que oferecem essa formação, seja como
“habilidade específica”, nos cursos de bacharelado em música popular, ou
como disciplina, nos cursos de licenciatura em música. São também citados
os cursos ofertados nas demais universidades, porém com diferentes graus
de aprofundamento quanto à sua estrutura e a seu funcionamento.
se expressou já no final de sua vida: essa postura que, de certa forma, reflete as ideias assentadas por Koellreutter, já se encontra na 'Declaração de Princípios do Grupo de Compositores da Bahia', um documento datado de 30 de novembro de 1966, elaborado por Jamary Oliveira e Milton Gomes para ser inserido no programa de um concerto do Grupo. Em seu famoso Parágrafo único – 'Estamos contra todo e qualquer princípio declarado' –, a atitude rebelde, iconoclasta, tanto se justifica na ideologia de ensino plantada por Koellreutter e Widmer nos Seminários Livres de Música, quanto no palco dos acontecimentos políticos e sociais da época." NOGUEIRA, Ilza. A criação musical em diálogo com o contexto político-cultural: o caso do Grupo de Compositores da Bahia. Disponivel em: < http://rbm.musica.ufrj.br/edicoes/rbm24-2/rbm24-2-06.pdf>. Acesso em: 8 fev. 2017. 6 “No final dos anos cinquenta, um grupo de jovens compositores e músicos de Santos começou a trabalhar com essa orientação, à luz de diretrizes europeias, e em 1963 lançou um manifesto que marcou época. Era o grupo Música Nova, integrado por Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira, Damiano Cozzela, Rogério Duprat e Júlio Medaglia”. (MARIZ, 2005, p. 331).
15
Justifica-se esta pesquisa por considerarmos que se trata de uma área recente no âmbito da universidade pública brasileira, que demanda
investigações. Acreditamos ser relevante descrever e investigar como está
ocorrendo essa inserção nos principais cursos de graduação em música que
oferecem a disciplina de canto popular, seja nos cursos de Bacharelado ou
de Licenciatura. A discussão proposta neste trabalho é fruto da inquietação
sobre o ensino do canto popular pautado nas experiências vivenciadas pela
autora em sala de aula, como professora de canto popular no curso de
Bacharelado em Música Popular da UFBA. Assim, esta investigação também
justifica-se pela crescente demanda dos professores de canto popular, que
mais do que nunca percebem a importância de aprofundar esse estudo como
forma de ampliar os horizontes e possibilidades dos sujeitos, enquanto
intérpretes e artistas, bem como na formação de novos professores de canto
popular. Portanto, são emergentes essas reflexões e discussões sobre a
efetividade das formações e sobre as contribuições para o desenvolvimento
desses sujeitos implicados no contexto de formação do canto popular.
Acreditamos na relevância deste trabalho no atual contexto, na medida em
que observamos uma ampliação dos conceitos referentes ao estudo da
música popular, o que reflete na criação e abertura das universidades para
essa modalidade de ensino. Apesar da discussão sobre o tema já existir há
algum tempo, Green (apud COUTO, 2006) afirma que apenas recentemente
as estratégias de ensino da música popular estão efetivamente mudando.
Nesse sentido, afirma que:
Compreender os contextos nos quais a música popular acontece, bem como suas formas de transmissão de conhecimentos, práticas, valores, filosofia e conceitos, torna-se de suma importância para que o trabalho do professor e o uso dessa música sejam significativos. Nesse sentido, o que passa a ter maior importância não é apenas o “ produto” em si, ou seja, o conteúdo; o que realmente importa é o “ processo”, ou seja a “ autenticidade da aprendizagem musical”. (p. 90).
De forma geral, a concepção por trás desse movimento de inserção da
música popular nos cursos de música está relacionada à crescente demanda
por um ensino de música mais alinhado com a realidade nacional.
16
Delimitação do problema e objetivos
Conforme o ensino do canto popular vem crescendo no âmbito
acadêmico brasileiro, algumas inquietações se colocam diante da
estruturação dos currículos e formação dos futuros cantores e professores de
canto popular. Dentre elas, enfatizamos a forma como os currículos vêm
sendo construídos, e como os professores têm desenvolvido suas
metodologias.
Desse modo, o objetivo da presente dissertação é traçar um
panorama sobre o ensino do canto popular na universidade pública, detendo-
se particularmente na análise de como ele ocorre na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e na Universidade de Brasília (UnB). Para tanto, por
meio de entrevistas com os professores das duas universidades, buscamos
descrever como se organiza o curso, no que concerne aos currículos
articulados às praticas desenvolvidas por cada um. Como objetivos
específicos, a presente dissertação investiga como o canto popular vem
sendo ensinado e sistematizado na universidade pública brasileira; discorre
ainda sobre a concepção didático-pedagógica do ensino do canto popular,
apresentando um histórico da inserção dessa modalidade de ensino, suas
propostas curriculares e como os professores desenvolvem suas
metodologias e elegem seus conteúdos.
17
1. A música popular no cenário musical acadêmico
No Brasil o ensino da música popular chega à universidade pública no final da década de 1980, na Unicamp, iniciativa pioneira que vem
impulsionada por um momento de interesse e valorização mundial sobre o
assunto. Em sua pesquisa sobre os procedimentos do ensino do canto
popular na Unicamp, Queiroz (2009) apresenta um histórico sobre o
surgimento desse primeiro curso de música popular no Brasil, através de
entrevistas com alguns dos professores fundadores do curso. Nesse sentido,
Queiroz (2009) verificou que a ideia de criar um curso de música popular
surgiu em 1987, nos encontros do “Grupo de Estudos da Música Popular”, do
qual faziam parte os professores Ney Carrasco, Eduardo Andrade, Valter
Krausher, Paulo Pugliese, Ricardo Goldemberg e Rafael dos Santos, os
quais mantinham encontros semanais para pensar e estruturar as ideias do
curso, que teve seu início em 1989. A música popular, segundo Egg (2013), apesar de ser a que
mais circula, conquista público e constrói significado para as pessoas nos
espaços comerciais (fonográficos, rádio, cinema), vinha sendo
historicamente ignorada pelo ambiente acadêmico. No século XX, a
academia se dedicou a consolidar e ampliar o modelo clássico de ensino da
música europeia, mesmo com o desenvolvimento de novas modalidades de
produção, circulação e os novos modelos de criação que surgiram ao longo
do tempo:
O mais cotidiano dos objetos de consumo da sociedade moderna não figurava de modo relevante, nem mesmo como objeto de pesquisa de determinadas áreas do conhecimento, como as ciências sociais, comunicação ou estudos da linguagem. (Jornal da Unicamp, 2006, p. 23)7.
7 Considerações de Edgar Morin, Jornal da Unicamp, 2006, p. 23. Disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/jornalPDF/ju339pg23.pdf . Acesso em: 15 jun. 2016
18
A esse respeito, Barbosa (1998) afirma:
A educação poderia ser o mais eficiente caminho para estimular a consciência cultural do indivíduo, começando pelo reconhecimento e apreciação da cultura local. Contudo, a educação formal no Terceiro Mundo Ocidental foi completamente dominada pelos códigos culturais europeus e, mais recentemente, pelo código cultural norte-americano branco. A cultura indígena só é tolerada na escola sob a forma de folclore, de curiosidade e esoterismo; sempre como uma cultura de segunda categoria [...] Somente no século vinte, os movimentos de descolonização e de liberação criaram a possibilidade política para que os povos que tinham sido dominados reconhecessem sua própria cultura e seus próprios valores. (p. 13).
Mesmo que todas as concepções de música possam ser
consideradas culturalmente equivalentes, percebe-se no senso comum essa
dicotomia entre o erudito e o popular, que tem uma tradição histórica, a
hierarquia entre alta cultura – ou erudita - e a cultura popular. Para Marín
(2009, p.128), “assumir a interculturalidade como perspectiva possibilita-nos
o reconhecimento e a valorização de outros sistemas culturais, para além de
toda a hierarquização, em um contexto de complementaridade”. Não se trata
de anular ou excluir a tradição europeia, mas reconhecer, valorizar e
fortalecer as tradições locais, considerando a questão da hibridação entre
culturas.
Afinal, estamos tratando de música popular, que nasceu e
floresceu a partir de um ambiente próprio, formado por muitas referências, de
diversas origens. Essa discussão passa pela questão de que não se defende
nenhum suposto “purismo” cultural, artístico, estético e educativo, mas um
equilíbrio de forças, em relação à produção artística e cultural local, no
sentido de abrir espaço para uma reflexão que seja de inclusão e não de
exclusão. Marín (2009) relaciona a proposição da interculturalidade com a
descolonização do poder e do saber, fundamental para reconhecer que
existem outras visões de mundo e múltiplos conhecimentos que também são
válidos.
Nesse sentido, surge a necessidade de se compreender as
experimentações no campo de ensino do canto popular e as tendências que
apontam para a criação e desenvolvimento de metodologias e formas de
19
ensino-aprendizagem mais adequadas à nossa realidade cultural. Nesse
contexto, insere-se esta reflexão sobre o ensino da música popular na
academia, com base no reconhecimento das diversas identidades envolvidas
no processo formativo, na consciência cultural e na apreciação do saber
local. Quijano (2005) esclarece sobre essa busca nas ciências sociais latino-
americanas:
A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como eurocentrismo8. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América. (p. 115).
Especificamente no Brasil, podemos destacar referências a
estudos sobre cultura e dominação em obras de Darcy Ribeiro e Milton
Santos, por exemplo, embora o conceito de descolonização tenha sido visto
como uma especificidade do debate latino-americano nas ciências sociais,
que compreende o questionamento à matriz colonial do poder/ser/saber. Para
Marín (2009), uma primeira condição para elaborar a análise da
descolonização do saber é através do conceito de interculturalidade9, onde
não haja diferenciação entre cultura “alta” e “baixa”, com base na
revalorização das línguas e culturas locais e sua inserção no contexto global.
1.1 O canto popular nas universidades públicas brasileiras
Na universidade pública brasileira o ensino do canto popular vem
sendo praticado há 27 anos, a partir da criação do primeiro curso de música
popular em 1989, na Unicamp. No entanto, somente nos últimos anos essa
8Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. (Quijano, 2005). 9 Interculturalidade - "Intercultural significa a interação entre as diferentes culturas” (Barbosa, 2003).
20
modalidade de ensino passou a integrar os programas de outras
universidades públicas do país.
Vários fatores contribuíram para a inclusão do canto popular
como objeto de ensino nos meios acadêmicos. Dentre eles, podemos citar
o momento de efervescência das pesquisas acadêmicas em torno da
canção em diversas áreas do conhecimento, o que levou à consolidação da
temática da canção nos meios acadêmicos, com a publicação de diversas
pesquisas e eventos, tais como a elaboração da Teoria Semiótica da
Canção de Luiz Tatit, e eventos como o “Encontro da Palavra Cantada”.
A “Semiótica da Canção”, foi criada em 1994 por Luiz Tatit e, de
acordo com Machado (2012), essa é, até agora, a mais expressiva
comprovação do reconhecimento nos meios acadêmicos da importância da
canção. Essa teoria tem servido de base para diversos estudos
desenvolvidos por pesquisadores como Dietrich (2003), Coelho (2007) e
Segretto (2015), que têm trabalhado a partir da “Semiótica da Canção”
abordando, além da própria canção, elementos de arranjo, por exemplo.
Nesse contexto, destacamos os que foram desenvolvidos por Machado
(2007 e 2012), tratando da gestualidade da voz na canção popular, em
seus trabalhos de mestrado e tese de doutoramento, nos quais, aplicando a
semiótica da canção, inicia uma estruturação analítica e acrescenta
terminologia descritiva do comportamento vocal, analisando algumas das
principais vozes do Brasil com base na escuta de fonogramas.
Já o “Encontro da Palavra Cantada”10, com edições em 2000, 2006
e 2011, no Rio de Janeiro, foi organizado objetivando a criação de um espaço
no qual especialistas11 das diferentes áreas de conhecimento pudessem
dialogar sobre suas pesquisas em torno da palavra cantada. Com o despertar
desse interesse pelo objeto da canção, o canto popular ganha voz como
tema acadêmico, através de um processo que foi, pouco a pouco, dando
visibilidade ao estudo da música popular como elemento importante da
História, como resume Egg (2013):
10 O Encontro da Palavra Cantada deu origem a publicações, com artigos dos pesquisadores participantes, em cada uma das edições. 11 Semiologistas, sociólogos, filósofos, antropólogos, cantores, etnomusicologos, professores de canto, historiadores, músicos, pedagogos, por exemplo.
21
O ensino da música popular chegou à academia através das ciências sociais, dentro de um processo de renovação metodológica no campo da história. O surgimento de revistas especializadas, departamentos de estudos e cursos acadêmicos voltados para a música popular, bem como uma ciência que vai desenvolvendo metodologia própria, derivada das combinações de história, sociologia e antropologia, demonstra essa nova tendência. (EGG, 2013).
Outro fator que possivelmente contribuiu para a inclusão da
música popular, e consequentemente do canto popular, na universidade, foi a
criação do Programa do Governo Federal de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (Reuni)12 . Nesse clima de restruturação, percebeu-se a necessidade da
criação e desenvolvimento de metodologias e formas de ensino-
aprendizagem mais coerentes com nossa realidade cultural, musical,
artística, mesmo sem deixar de levar em conta outras referências mais
consolidadas enquanto estudo sistematizado, como aquelas relacionadas à
cultura europeia ou mesmo estadunidense.
De acordo com Queiroz (2009), fatores como a importância da
canção para a música popular garantem a presença do canto popular nos
currículos dos novos cursos quase que automaticamente. Nesse sentido,
Queiroz (2009) entrevistou diversas pessoas questionando se era possível
pensar o curso de música popular sem canto popular, e, nos depoimentos
colhidos por ele, constatou que há uma crença de que o canto é
12 “O Reuni faz parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e foi instituído em 6 de abril de 2007, pelo Decreto Presidencial n. 6.096, sob o pressuposto do importante papel das universidades federais no desenvolvimento econômico e social do país. Sua principal finalidade é reduzir as desigualdades sociais com relação ao acesso e à permanência no ensino superior. Para tanto, conforme consta nesse Decreto, o Governo Federal cogitou alcançar, em cinco anos, a meta de 30% de jovens, entre 18 e 24 anos, matriculados no ensino superior. Em 2007, esse percentual se encontrava na casa dos 13,1%, ou seja, 86,9% dos brasileiros, entre 18 e 24 anos, não cursavam esse nível de ensino. O Reuni estabeleceu também a meta de elevar a taxa de conclusão média em cursos de graduação para 90% e a relação de um professor para dezoito alunos de graduação em cursos presenciais. Ainda de acordo com o Decreto Presidencial n. 6.096, de 24 de abril de 2007, foram traçados objetivos de ampliação do acesso à educação superior por meio de promoção do aumento das vagas em cursos de graduação, de oferta de cursos noturnos e de ocupação de vagas ociosas. Propôs o incentivo às inovações pedagógicas e o combate à evasão como estratégias de elevação das condições de permanência e sucesso dos alunos nesse nível de ensino”. LIMA, Edileusa Esteves e MACHADO, Lucília Regina de Souza. Reuni e Expansão Universitária na UFMG de 2008 a 2012. Educ. Real. [online]. 2016, vol.41, n.2, pp.383-406. ISSN 0100-3143. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-623654765. Acesso em: 02 fev. 2017.
22
imprescindível, pois “a expressão central da música popular é a canção13”, o
que demonstra que o conhecimento da música para muitas pessoas ocorre
através da música cantada.
A efetiva criação de novos cursos e a abertura das universidades
federais para a inclusão do Bacharelado em Música Popular, como ocorreu
na UFBA e na UFMG, só se concretizaram em 2009, dentro do processo do
Reuni. Esse processo também beneficiou a Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), com o curso de música popular oferecido no formato de curso
sequencial14, no qual a disciplina canto popular passa a integrar o currículo
do curso de Licenciatura em Música, fato que também ocorre na UnB, onde a
tramitação para implementação do curso de música popular está em
andamento e a disciplina vem sendo ofertada desde 2010, no curso de
Licenciatura em Música.
Podemos verificar que depois do surgimento do primeiro curso de
música popular na universidade pública brasileira, em 1989, na Unicamp,
passaram-se nove anos para que surgisse o Bacharelado em Música
Popular, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO),
seguido pelo curso da Faculdade de Artes do Paraná (FAP), em 2003, que
em 2013 passa a fazer parte da Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
Após a inciativa da Unicamp e dos cursos da UNIRIO e FAP, em
pesquisa recente no site do Ministério da Educação (MEC),15 encontramos a
oferta do ensino da música popular nas seguintes universidades públicas do
país: UFMG, UFBA, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Dessas instituições listadas,
apenas três universidades não contemplam o ensino especifico do canto
popular, embora ofereçam o curso de música popular: UNIRIO, UFPEL e
UFRGS.
Um terceiro fator que podemos mencionar e que contribuiu para a
oferta do canto popular na universidade foi a crescente demanda pelo ensino
formal dessa modalidade. Podemos verificar que uma grande parcela dos
profissionais que atua hoje nas universidades como professores de canto 13 CARRASCO (Informação verbal) apud QUEIROZ (2009). 14 Os cursos sequenciais são cursos de nível superior, em uma formação específica numa dada "área de saber" e não numa "área de conhecimento e nas suas habilitações". 15 http://emec.mec.gov.br
23
popular, se constitui de um grupo de pessoas que buscaram a universidade e
tiveram que estudar o canto erudito por não encontrarem alternativa.
Podemos exemplificar essa tendência na fala do diretor da Escola
de Música da UFBA, Heinz Karl Schwebel, que, em entrevista ao Impressão
Digital16 , afirmou que a criação do Curso de Música Popular na Bahia
atendeu a uma demanda histórica da classe musical de Salvador, por um
acesso formal ao ensino da música popular. Schwebel observou ainda que a
demanda reprimida por tantos anos resultou numa procura muito superior, se
relacionada aos índices padrões de outros cursos de música.
Como participante ativa da iniciativa de inclusão da música popular
na UFBA, enquanto docente dessa instituição verificamos, nesse processo, a
grande demanda pelo ensino do canto popular. Podemos destacar dois
fatores relevantes nessa tendência: a crescente competitividade no mercado
de trabalho e a busca por aprimoramento técnico musical e vocal.
1.3. Abordagem das teorias do currículo
Buscamos o estudo da teoria crítica do currículo para ampliar a
compreensão sobre currículo e as suas relações entre conhecimento, poder
e identidade social. Segundo Silva (2011), mesmo com as contribuições
dessa teoria ainda existem questionamentos, através da teorização social
cultural pós-estruturalista, às concepções entre saber e poder, onde o
poder ainda se sobrepõe à organização do conhecimento. O autor
relaciona a teorização social e o campo do currículo com o aporte do pós-
estruturalismo e dos estudos culturais.
As teorias da reprodução social, por exemplo, mostraram-nos como a distribuição desigual do conhecimento, através do currículo e da escola, constituem mecanismos centrais do processo de produção e reprodução de desigualdade social. Perspectivas mais culturalistas, como a de Bourdieu, por exemplo, contribuíram para nos fazer compreender como as desigualdades escolares escondem fundamentais relações entre cultura e poder. (SILVA, 2011, p. 185).
16 Entrevista realizada por alunos de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UFBA (FACOM), com o Diretor da Escola de Música da UFBA. Disponivel em: < http://impressaodigital126.com.br/?p=890 >. Acesso em: 30 jun. 2015.
24
Nesse sentido, Cunha (2006) também aponta para a falta de
questionamentos ao currículo. As formas e os métodos de ensinar eram o
foco, mas o que ensinar não estava em questão, até as teorias da
reprodução, desenvolvidas no campo da sociologia da educação,
contribuírem para essa mudança de paradigma.
Silva (2011, p. 189) define o currículo como uma atividade
produtiva em dois sentidos: construímos e somos construídos por ele, ou
seja: “o que nós, professores e estudantes, fazemos com as coisas e
também aquilo que as coisas que fazemos, fazem a nós [...] o currículo é a
construção de nós mesmos como sujeitos”, e complementa:
[...] o currículo nos constrói como sujeitos particulares, específicos [...] não é, assim, uma operação meramente cognitiva [...] pode ser visto como um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, constitui-nos como sujeitos – e sujeitos também muito particulares [...] não está envolvido num processo de transmissão ou de revelação, mas num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do indivíduo como um sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo posicionamento no interior das diversas divisões sociais. (p. 189-190).
As narrativas do currículo legitimam os conhecimentos,
representam e também excluem, valorizam e desvalorizam, instituem os
cânones. O saber e o poder correspondem, segundo Silva (2011, p. 189),
dentro da visão foucaultiana, ao conhecimento e dominação,
respectivamente. “Currículo e poder estão mutuamente implicados”:
O poder está inscrito no currículo através das divisões entre saberes e narrativas inerentes ao processo de seleção do conhecimento e das resultantes divisões entre os diferentes grupos sociais. Aquilo que divide e, portanto, aquilo que inclui/exclui, isso é o poder. Aquilo que divide o currículo – que diz o que é conhecimento e o que não é – e aquilo que essa divisão divide – que estabelece desigualdades entre indivíduos e grupos sociais – isso é precisamente poder. (SILVA, 2011, p. 191).
Refletir sobre os atos de currículo pode nos responder acerca de
como a sistematização se organiza no currículo e se traduz no ato curricular,
no sentido de método. No campo do ensino do canto popular, temos um
conjunto de professores que estão sistematizando de forma diferente o
ensino do canto popular na universidade:
25
Atos de currículos nos possibilitam compreender como os currículos e os atores curriculantes mudam, como mudam seus significantes, ou como conservam, de alguma maneira, suas concepções e práticas, como definem as situações curriculares e têm pontos de vista sobre as suas questões, como entram em contradição, produzem ambivalências, paradoxos e derivas [...] atos de currículo como conceito-acontecimento, como conceito-dispositivo, radicaliza o entendimento e apresenta dispositivos conceituais para aprofundarmos nossos convencimentos da emergência do currículo como uma construção social incessante e interessada. Orienta nossa práticas para percebê-las como instituintes, passíveis de crítica, compreensão cultural e histórica. (MACEDO, 2013, p. 24).
Segundo Macedo (2013), os atos de currículo carregam e criam os
etnométodos 17 para interpretar e agir com o conteúdo do currículo; se
renovam no campo curricular como instituintes culturais e servem tanto para
a compreensão das práticas quanto para a análise curricular. Os atos de
currículo e seus etnométodos criam as condições fundantes para intervenção
dos processos, compreensão das concepções e construções curriculares.
Referem-se à capacidade de descrever, entender e analisar como se
instituem os currículos.
Para Macedo (2013), a ideia emergente de etnocurrículos tem
como propostas: a desconstrução colonizadora com que os currículos são
feitos e o processo de inclusão de atores sociais importantes nessa
construção. Os alunos deixam de ser apenas portadores de sentido e
passam a ser também criadores de sentido, na construção curricular, através
de seus processos de aprendizagem, dando-lhes possibilidade
emancipacionista.
Nesse sentido, Macedo (2013) acredita que a página da tradição
de se pensarfazer-currículo-para-o-outro-sem-o-outro possa ser transformada
pelos processos formativos etnoimplicados em pensarfazer-currículo-com-o-
outro, intercriticamente.
17 Conceito forjado pela etnometodologia, os etnométodos são compreendidos como métodos que os atores sociais produzem ao compreender e interferir com suas ações nas realidades que habitam, para todos os fins práticos. Neles estão presentes capacidades de descritibilidade, inteligibilidade e analisibilidade com as quais esses atores instituem as ordens sociais nas quais estão envolvidos. (MACEDO, 2013, p. 431).
26
1.4. A metodologia e os métodos de coleta de dados
Como fonte de dados foram acessados os currículos dos cursos
onde a disciplina está inserida, os planos de curso das disciplinas voltadas
para essa formação e entrevistas com os professores dos cursos escolhidos.
Outro recurso utilizado foi a observação de um ciclo de aulas, nas quais
buscou-se compreender como cada professor desenvolve sua metodologia.
Foram analisados os currículos das disciplinas de canto popular em duas
universidades de dois estados do Brasil, para que assim pudéssemos, de
alguma maneira, dimensionar a forma como a disciplina vem sendo
organizada, pensada e desenvolvida pelos professores.
Portanto, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, por
meio da qual foi possível fazer entrevistas semiestruturadas (APÊNDICE A)
com os professores dos cursos pesquisados, e uma análise documental das
propostas curriculares dos respectivos cursos. Visto que ainda são poucas as
publicações e referências nesse campo de ensino, o presente estudo possui
caráter exploratório. Através do levantamento bibliográfico, da análise
documental dos currículos e dos planos de aula atuais e das entrevistas
(APÊNDICE B) com os professores, pretendemos compreender de que forma
está ocorrendo essa formação.
A abordagem qualitativa para o presente estudo se justifica pela
característica do objeto, sua complexidade e, sobretudo, pelo aspecto
subjetivo que lhe é subjacente. Portanto, nossa escolha recaiu sobre o
método de pesquisa exploratória, visando problematizar mais do que
encontrar respostas, incluindo como instrumentos de coleta de dados as
entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio, com docentes que atuam
no campo de ensino do canto popular, e a observação direta da prática
pedagógica em um ciclo de aulas. Com base nos dados coletados, buscamos
discutir a metodologia de ensino-aprendizagem, buscando contribuir para um
pensamento reflexivo sobre a prática pedagógica do canto popular. Também
procuramos verificar como esses experimentos estão acontecendo, como se
organizam os conteúdos e como as experiências dos professores estão
27
articuladas aos conteúdos programáticos, em termos não apenas dos itens
dos currículos, mas também dos planejamentos de suas aulas.
Assim, registramos o processo de cada professor, suas
experiências, verificando como esses docentes sistematizam as técnicas de
ensino de canto popular, descrevendo as metodologias desenvolvidas,
observando de que forma cada um trabalha aspectos como a materialidade
da voz, a performance, a gestualidade e o corpo. Dessa forma, descrevemos
como cada professor realiza esse ofício, com o objetivo de incluir diferentes
perspectivas e traçar um mapeamento dessa diversidade.
É importante perceber que o aluno já vem com uma formação
prévia, preconceitos, predisposições em aprender e não aprender, em ser
seletivo e direcionar seus interesses. Nessa interação é que acontece a
materialização do currículo. Nesse sentido:
Arroyo (2011) fala-nos da experiência social como produtora de conhecimento, de como a tradição curricular separou de forma hierárquica e antinômica conhecimentos e experiências, valorizando o primeiro a partir de sua identificação vinculada às cosmovisões que se hegemonizaram em nossa sociedade, a exemplo do conhecimento livresco cientificamente legitimado. (Arroyo apud MACEDO, 2013, p. 23-24).
A escolha pela pesquisa exploratória como método desta pesquisa
deveu-se à prerrogativa de poder ampliar a visão sobre o problema que
necessitamos investigar, focalizando a realidade de modo complexo e
contextualizado. Assim, concluímos que uma investigação acerca das
práticas pedagógicas de professores não pode ser abordada apenas numa
perspectiva quantitativa de pesquisa, buscando correlações entre causa e
efeito, como afirma Gil (2008): As pesquisas exploratórias têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores. De todos os tipos de pesquisa, estas são as que apresentam menor rigidez no planejamento. [...] Pesquisas exploratórias são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato. (p. 27).
28
Para a análise do ensino do canto popular na universidade pública,
é importante considerar que existem particularidades em cada caso
estudado, visto que o canto popular está inserido em um curso de
Licenciatura em Música, na UnB, e em um curso de Bacharelado em Música
Popular, na UFMG. A UnB, por exemplo, oferta uma disciplina de canto
popular no curso de Licenciatura, apresentando necessidades e público
diverso daquele encontrado na UFMG, que oferta o curso específico de
música popular. Além disso, trata-se de uma área recentemente inserida na
academia e, portanto, ainda em fase de experimentações. Assim, isso reflete
no modo como optamos por conduzir a presente pesquisa. A abordagem
qualitativa tem sido frequentemente utilizada em estudos voltados para a
compreensão da vida humana, sobretudo nas ciências sociais. Essa
abordagem tem tido diferentes interpretações ao longo da história do
pensamento científico, mas pode-se dizer que constitui estudos descritivos
que buscam mais compreender e descrever do que trazer respostas aos
problemas de pesquisa.
A pesquisa documental utiliza fontes que ainda não tiveram um
tratamento analítico contido nelas mesmas. Para Gil (2008), “os documentos
podem ser reelaborados de acordo com os objetos da pesquisa e as fontes
são muito mais diversificadas e dispersas”. Nesta pesquisa, acessamos os
currículos e projetos pedagógicos dos cursos investigados com o intuito de
utilizá-los como base para os demais conteúdos analisados.
Para uma análise dos planos de curso e o estabelecimento de uma
relação com as observações em sala de aula, trabalhamos com o conceito-
dispositivo de ato de currículo18, ou seja, o currículo que não está expresso
nos programas, nos planos de aula, mas no que se realiza em sala de aula:
É assim que a ideia de ato de currículo realça a processualidade criativa do currículo, sua instituinte materialidade, mais ainda de tudo, a responsabilização/particividade como concebeu, há mais de um século, Mikhail Bakhtin na sua filosofia do ato. Ato de currículo, como um conceito-dispositivo, levando em conta a práxis curricular, é um conceito-chave, um gesto ético-politico, um potente analisador da práxis curricular. (MACEDO, 2013, p. 19)
18 Conceito-dispositivo de ato de currículo significa pensar no currículo como um dispositivo educacional, resultante da multicriação implicada de atores sociais, via seus pertencimentos e suas afirmações socialmente referenciadas. (MACEDO, 2013).
29
O currículo escrito é o roteiro onde temos um conjunto de disciplinas
que são distribuídas numa certa sequência, as disciplinas precedendo uma a
outra, sendo, dessa forma, o currículo é considerado como uma maneira de
organizar um conjunto de disciplinas, com uma configuração mais identificada
com uma matriz curricular. Contudo, ele é de fato o que vai acontecer entre o
script escrito e a sala de aula, e se realiza no embate da relação do professor
com o aluno, no ambiente da escola.
Assim, analisamos currículos de diferentes universidades e
diferentes cursos com o objetivo principal de compreender como os
curriculantes 19 atuam no processo de ensino-aprendizagem, que está
propenso a alterações nas interações e nas experimentações que podem
apontar um novo direcionamento pedagógico: Estabelece-se aqui o aprender com a diferença enquanto ela quer se afirmar diferente e alterar como diferença, mesmo que o bem comum social e culturalmente referenciado seja algo a ser conquistado como processo emancipacionista, sem, entretanto, aceitarmos neste movimento qualquer conclusão integrativa, qualquer pretenso amálgama curricular sem face. Falar de bem comum socialmente referenciado não significa aceitarmos voltar ao forjado homogêneo, à desejada unicidade educacional que pauta a ideia de uma pretensa e impensável sociedade sem diferença, e uma educação para todos organizada por uma burocracia homogeneizante. (MACEDO, 2013, p.17).
Para efeito desta pesquisa, procuramos entender como se
apresenta a proposta didática de cada professor, a forma como ele planeja,
avalia e medeia os conteúdos. Também como esses professores interagem
com os alunos e se utilizam uma concepção e ação mais tecnicista ou
conteudista, por exemplo.
As entrevistas foram analisadas à luz do método da análise de
conteúdo de Laurence Bardin (2011), com base em uma concepção de
entrevista não diretiva ou centrada na pessoa, em que algumas condições
são estabelecidas. Bardin entende que o entrevistador deve ter uma atitude
de consideração positiva e incondicional, na qual deve tentar colocar-se a
19 Criadores de atos de currículos.
30
partir do ponto de vista do entrevistado e no seu quadro de referência,
buscando não aplicar juízo de valor ou desvalorização, em uma atitude de
empatia. Ainda segundo a autora, a entrevista deve desenvolver-se segundo
a lógica própria do entrevistado, sendo as únicas limitações as instruções em
relação ao tema que interessa ao entrevistador, e a presença deste como
interlocutor. Deve haver uma pré-formação mínima, ou seja, não utilizando
questionários pré-formados, e deve apresentar um caráter de improvisação
devido a uma relativa autonomia, certa unidade e coerência, ou seja, cada
entrevista deve formar um todo original e singular, porém comparável às
outras, devido à padronização da questão inicial, uma focalização do
conteúdo na relação (subjetiva) do locutor com o “objeto” do discurso
(representação, atitude etc.), uma elaboração do pensamento aqui e agora,
ligada à elaboração da palavra (BARDIN, 2011, p. 220-221).
Bardin (2011) afirma também que devemos selecionar as unidades
de significação, que são as respostas que têm sentido para a pesquisa. As
categorias são elencadas através das falas dos entrevistados, que vão
compor o corpus para o processo geral de análise, em suas diferentes
etapas, que são a análise temática e a análise da enunciação. A análise
temática precede a análise da enunciação e a complementa. A análise da
enunciação é desenvolvida em vários níveis: nível das sequências, das
proposições e dos elementos atípicos. A interpretação vai ocorrer
confrontando-se os diferentes indicadores propostos pela pesquisa e
refletidos nas questões propostas pela entrevista:
A análise temática: é transversal, isto é, recorta o conjunto das entrevistas por meio de uma grade de categorias projetada sobre os conteúdos. Não se têm em conta a dinâmica e a organização, mas a frequência dos temas extraídos do conjunto dos discursos, considerados dados segmentáveis e comparáveis. A análise da enunciação: cada entrevista é estudada em si mesma com uma totalidade organizada e singular. Trata-se do estudo dos casos. A dinâmica própria de cada produção é analisada e os diferentes indicadores adaptam-se à irredutibilidade de cada locutor. (BARDIN, 2011, p. 222-223).
Nesse sentido, o discurso vai ser analisado com base em uma
perspectiva em construção, através da qual são confrontados os elementos
constitutivos do pensamento, da ação, das motivações e desejos dos
31
entrevistados, transversalizados pelo que é proposto como contextualização
e provocação do entrevistador:
Ora, uma produção de palavra é um processo. A análise da enunciação considera que na altura da produção da palavra é feito um trabalho, é elaborado um sentido e são operadas transformações. O discurso não é transposição cristalina de opiniões, de atitudes e de representações que existam de modo cabal antes da passagem à forma linguageira. O discurso não é um produto acabado mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, de incoerências, de imperfeições. Isto é particularmente evidente nas entrevistas em que a produção é ao mesmo tempo espontânea e constrangida pela situação. (BARDIN, 2011, p. 218).
De acordo com Bardin (2011), a análise de conteúdo pode ser
considerada como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações” e
não apenas um instrumento. Na verdade, trata-se de um conjunto de
possibilidades e técnicas de análise que vão assumir diferentes
configurações e que podem ser adaptadas às mais diversas propostas
investigativas no campo do discurso e das comunicações. “Enquanto esforço
de interpretação, a análise de conteúdo oscila entre os dois polos do rigor da
objetividade e da fecundidade da subjetividade.” (p.15).
1.4.1 Sujeitos
Para representar os dois tipos de cursos e modalidades de ensino
em que a disciplina canto popular está inserida, através das opiniões
docentes, selecionamos a UnB e a UFMG. Tal escolha deveu-se ao fato de
cada uma dessas universidades representar um tipo de curso: uma
oferece um bacharelado, a outra, uma licenciatura. Em relação às demais
universidades que oferecem formação em canto popular, consideramos
não ser adequado escolher a Unicamp, por ter como professora de canto
popular a Dra. Regina Machado, orientadora desta pesquisa. Dos três
cursos de bacharelado em música popular que oferecem essa formação,
na UFBA temos a questão desta pesquisadora atuar como a professora
32
de canto popular. Na Unespar, vimos que os trabalhos acadêmicos
desenvolvidos no campo do ensino pela professora da instituição, Liane
Guariente, tem um direcionamento para o canto coral, pois configura outro
campo de atuação diferente daquele que buscamos enfocar no presente
trabalho.
Dos cinco cursos de licenciatura em música que oferecem a
formação em canto popular, também não escolhemos a UFPB, já que a
professora Daniella Gramani, que seria o sujeito pesquisado, embora
tenha vasta experiência como cantora de música popular, centra o seu
interesse sobre temas muito específicos: sua monografia de
especialização traz reflexões sobre o Fandango do Paraná e em seu
mestrado disserta sobre o aprendizado da rabeca. A UFSJ também não
entrou na pesquisa no campo das opiniões docentes, ao levamos em
consideração o fato da professora do curso, Valéria Braga, não possuir
mestrado ou pesquisa na área do canto ou canto popular. Na IFPE, as
duas professoras de canto popular, Katarina Menezes de Lourenço e
Maria Rejane Campelo Silva, não possuem mestrado nem trabalhos
acadêmicos publicados na área do canto popular. Na UFC, a inclusão do
canto popular foi implantada muito recentemente.
Na UFSCar, o canto popular é oferecido apenas na modalidade
de educação a distância, portanto, diferenciando-se do modelo presencial
que procuramos observar.20 Ressaltamos que a modalidade EAD, para o
ensino do canto, traz outras implicações, que levariam a muitas outras
questões para estudo e poderiam desviar a pesquisa para outro lugar de
investigação que, neste momento, não seria do nosso interesse.
A Universidade Federal de Integração Latino-Americana
(UNILA) apresenta uma particularidade que dificultaria o tipo de análise
que estamos fazendo, requerendo um trabalho bem mais extenso, pois a
formação compreende paralelamente duas vertentes de estilo do canto: o
lírico e o popular.
20 Esse curso da UFSCar foi o primeiro curso de graduação a distância em canto popular a ser criado em uma universidade pública brasileira.
33
Na UnB, o canto popular é uma disciplina inserida no curso de
Licenciatura em Música, nas modalidades EAD e presencial, com o objetivo
principal de formar professores de canto popular. Já na UFMG, o canto
popular é uma opção de formação no curso de Bacharelado em Música
Popular. Assim, com essa escolha, acreditamos que contemplamos duas
leituras diferentes dessa inserção, que são suficientes para nos permitir
refletir sobre a situação do ensino do canto popular nas universidades
públicas brasileiras, a partir do recorte realizado.
Os sujeitos que compõem nossa pesquisa são dois professores de
canto popular em duas universidades públicas do país: UnB e UFMG, como
dito anteriormente. Como critérios de seleção, além dos diferentes campos
de atuação de cada um, tivemos a representatividade e a atuação dos
referidos professores no cenário educacional brasileiro e em modalidades
diferentes de curso, sendo um do curso de Bacharelado em Música Popular e
o outro do curso de Licenciatura em Música. Concorreu para essa escolha, o
fato dos dois professores possuírem trabalhos acadêmicos sobre o ensino do
canto popular. A professora Clara Sandroni desenvolveu a dissertação
“Práticas de ensino de canto popular urbano brasileiro no Grupo de Estudos
da Voz (GEV- RJ) e seus desdobramentos”, em 201321, orientada pelo
professor Dr. José Alberto Salgado Filho. O professor Alexei Queiroz
desenvolveu a dissertação “Canto Popular; pensamentos e procedimentos de
ensino na Unicamp”, em 200922, sob orientação da professora Dra. Aci
Taveira Meyer.
Alexei Queiroz é professor do curso de Licenciatura em Música, na
UnB, desde 2010. Relata que fez o concurso uma semana após sua defesa
de mestrado na Unicamp. Sua experiência na docência foi como monitor de
algumas disciplinas. Enquanto fazia a graduação, ministrou aulas em escolas
particulares e também oficinas livres. Na UnB, vem trabalhando com as
disciplinas Canto Instrumento Principal, Canto Suplementar, História da MPB
21 SANDRONI, Clara. Práticas de ensino de canto popular urbano brasileiro no grupo de estudos da voz (GEV-RJ) e seus desdobramentos. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, 2013. 22 QUEIROZ, Alexei Alves de. Canto popular e procedimentos de ensino na UNICAMP. Dissertação de mestrado. Campinas, 2009.
34
e Linguagem e Estruturação Musical (LEM). Como cantor, Alexei Queiroz
possui dois discos gravados, todos com canções compostas por ele.
Começou cantando música popular brasileira com os amigos, trabalhando
composições próprias. Em sua trajetória artística, passeou por diversos
gêneros e estilos musicais, como rock, reggae, samba, música latino-
americana, música caribenha. Declara que nos últimos anos deixou um
pouco os palcos e tem se dedicado exclusivamente às aulas. Atualmente seu
foco artístico tem se direcionado ao trabalho como escritor. Possui graduação
em Música Popular e mestrado em música pela Unicamp. Antes da formação
em música, graduou-se em Ciências da Computação.
Clara Sandroni, professora da UFMG desde 2015, leciona as
disciplinas Performance, Prática de Conjunto, Improvisação Vocal, Grupo
Vocal, Produção Musical e Grandes Grupos Instrumentais. Possui graduação
em Música Popular e mestrado em Etnomusicologia pela UNIRIO.
Atualmente é doutoranda em Etnomusicologia na UNIRIO. Sua vida
profissional como professora de canto popular iniciou-se em 1991, mesmo
ano em que começou a integrar o GEV-RJ, grupo existente há mais de 25
anos. Sandroni afirma que o grupo foi responsável pelo desenvolvimento de
sua formação docente e por ter lhe proporcionado o estudo de tudo
relacionado à didática e pedagogia vocal. Além de atuar como professora
particular, também atuou como professora convidada, por alguns anos
seguidos, em festivais de música de Curitiba, Itajaí e Londrina. Na UFMG,
vem ministrando as disciplinas Performance em Canto Popular - que é a
matéria obrigatória para os alunos que fazem vestibular para Canto Popular -,
Prática de Conjunto para Cantor e Banda, Grupo Vocal para Canto Popular,
Grandes Grupos Instrumentais - Canto Popular, Produção Musical e
Improvisação Vocal. Clara Sandroni tem uma sólida carreira como cantora
profissional iniciada em 1981, com 11 discos gravados, entre esses consta
sua experiência com o grupo de samba “Lira Carioca”, com o qual gravou
quatro discos. Destaca como um momento marcante em sua carreira a
participação no disco de Milton Nascimento, Encontro e Despedidas, gravado
em 1985. Mais tarde, teve Milton Nascimento como convidado em seu disco
de 1990, cantando “Um Índio”. Gravou com outros grandes nomes da música
popular brasileira, como Zé Renato, Paulo Baiano, Maurício Carrilho e
35
Marcos Sacramento e com o guitarrista americano Al Di Meola. Sua carreira
sempre foi muito centrada no Rio de Janeiro, mas viajou pelo Brasil como
participante do projeto Pixinguinha, em 1987. Em 1991, participou do projeto
Basf Chrome Music, com Milton Nascimento e Paulo Moura. Seu trabalho
também é reconhecido internacionalmente, principalmente na França, país
onde fez várias turnês. Tem como instrumento principal o violão, e em seu
álbum Cassiopéia, gravou violão em cinco canções. Paralelamente, estudou
por 17 anos com a professora de canto Clarisse Szajnbrum. Evidencia que
com essa professora não se falava ou se dividia esteticamente o tipo de
canto. A referida professora era especialista no estilo Barroco, mas dava aula
de canto popular. Durante o trabalho com a professora Clarisse Szajnbrum,
Clara afirma que nunca trabalhou nada além do repertório da música popular.
36
2. Panorama atual do ensino do canto popular
Como dito anteriormente, o ensino do canto popular no Brasil vem
sendo ofertado em nove universidades públicas sendo elas: a Unicamp, a
Unespar, a UFBA, a UFMG, a UnB, a UFPB, a UFSJ, o IFPE - campus Belo
Jardim -, a UFC, a UFSCar e a UNILA. Vem sendo oferecida, como
disciplina, em modalidades diferenciadas de ensino e formação, para o cantor
e para o professor de canto, nos currículos dos cursos de Bacharelado em
Música Popular; como “instrumento” e como uma habilitação, nos cursos de
Licenciatura em Música. Apenas na Unicamp o canto popular se configura
enquanto habilidade específica nessa formação, no contexto da universidade
pública, no país.
O ensino do canto popular é oferecido, no quadro geral, em quatro
diferentes modalidades de cursos, sendo elas: Bacharelado em Música Voz –
Música Popular (Habilitação), Bacharelado em Música Popular (Execução),
Licenciatura em Música (como disciplina), além da modalidade experimental
de ensino de canto, integrando o popular e o erudito, o Bacharelado em
Práticas Interpretativas em Canto. Dentre essas modalidades, destacamos
duas propostas de ensino por sua originalidade no contexto dos cursos que
oferecem o canto popular: a UNILA, que propõe em seu currículo a
integração das formações em canto lírico e canto popular; e o formato de
aulas de educação a distância, na UFSCAR e UnB.
O canto popular era inicialmente oferecido pela Unicamp como
uma disciplina que integrava a grade do curso de Bacharelado em Música
Popular. Contudo, após uma reformulação curricular em 2009, o canto
popular passou a ser uma das habilitações do currículo único do curso de
música do Instituto de Artes (IA).
O canto popular como uma opção de “instrumento”, no currículo
dos cursos de Bacharelado em Música Popular, vem sendo oferecido na
Unespar, desde 2003, na UFMG, desde 2009, e na UFBA, desde 2010.
No currículo dos cursos de Licenciatura em Música, o canto
popular figura como “disciplina” na UFSJ, desde 2008; UFPB, desde 2009;
UNB, desde 2010, em formato presencial e EAD; no IFPE (campus Belo
37
Jardim), desde 2013; na UFC, desde 2016; e na UFSCar, desde 2007 na
modalidade de educação a distância; além do curso de Bacharelado em
Práticas Interpretativas em Canto, UNILA, desde 2012.
Gráfico 1 – Evolução da oferta de ensino do canto popular
Como podemos observar no Gráfico 1, o ensino do canto popular,
após a criação do primeiro curso na Unicamp, tem se expandido para outras
universidades lentamente, e se intensifica no ano de 2010 com a abertura de
quatro novos cursos, todos beneficiados pelo projeto de reestruturação das
universidades, o Reuni, que abre suas portas para o ensino da música
popular. Outro aspecto importante que destacamos é que de um total de
nove cursos de bacharelado em música popular existentes no Brasil, apenas
cinco oferecem o canto popular como opção de formação.
1989
1994
1999
2004
2009
2014
38
Figura 1 - Quadro comparativo dos cursos de música popular que oferecem
canto popular
Música Popular Canto Popular
Unicamp Unicamp
UNIRIO -
Unespar Unespar
UFBA UFBA
UFMG UFMG
UFCE – SAXOFONE -
UFGRS -
UFPEL -
UFPB – SEQUENCIAL UFPB
O quadro anterior não representa a oferta geral do ensino de
canto popular, visto que muitas das universidades que oferecem essa
disciplina o fazem através dos cursos de licenciatura.
Gráfico 2 – Localização e distribuição regional das instituições onde o canto
popular vem sendo ensinado no Brasil
Centro-‐Oeste
Nordeste
Norte
Sudeste
Sul
39
Como ainda são poucos os cursos que oferecem a formação em
canto popular, ainda não é possível fazer uma observação crítica sobre a
distribuição regional das instituições na quais o canto popular vem sendo
ensinado no Brasil.
Note-se no Gráfico 2, que na Região Norte não existe ainda
representação na universidade pública para o canto popular. Nas outras
regiões temos uma representação ainda pequena e concentrada nas capitais,
mas já significativa.
2.1 O canto popular como habilitação específica na Unicamp
O curso de música oferecido pela Unicamp possui currículo único
com quatro habilitações de bacharelado, sendo elas: Composição,
Instrumento, Música Popular, Regência Plena e Regência Coral.
Recentemente, no ano de 2015, o curso de Licenciatura em Música, que
também integrava esse currículo foi desmembrado por uma demanda do
CEE/SP.
A reformulação que unificou o curso de música na Unicamp foi
implementada no ano de 2008, pois, até então, todos os estudantes
cumpriam um único currículo para cada modalidade. Uma das grandes
preocupações declaradas do curso é oferecer ao aluno as ferramentas
necessárias para a sua atuação profissional, em todas as especialidades
possíveis da música popular, seja como instrumentista, cantor, arranjador ou
produtor musical.
A forma de ingresso regular no curso é através de vestibular
nacional, onde anualmente são ofertadas duas vagas para os estudantes de
canto popular. As outras formas de ingresso podem ocorrer através das
vagas remanescentes disponibilizadas a partir do segundo semestre, por
meio do reingresso de alunos graduados em outros cursos do IA. Existe
também um processo seletivo para vagas adicionais para estudantes
conveniados pelo MEC e para vaga de cortesia ofertada a estudantes
estrangeiros, refugiados ou asilados.
40
O canto popular, que antes figurava como uma das disciplinas ou
instrumento do curso de Bacharelado em Música Popular, passa a ser uma
habilitação, Voz – Música Popular, após uma reformulação curricular
proporcionada pela reforma curricular implantada em 2012.
O canto popular começou sob o comando da professora Luciana
Souza e, após sua saída, permaneceu um período sem professor, como
relata, em entrevista, o professor José Roberto Zan: “Por algum tempo, o
ensino do canto popular na Unicamp ficou meio experimental com a
professora Adriana e outros do canto erudito. [...] Regina Machado, foi quem
mais sistematizou, até agora, o ensino do canto popular.” 23 (Informação
verbal).
Sobre os procedimentos pedagógicos que Regina Machado
efetivou na cátedra de canto popular, Mariz (2013) afirma que:
No inicio dos anos 2000, assumiu a cadeira de canto popular na mesma Unicamp, onde se graduara, e se dedicou a estruturar um curso específico para este tipo de canto, que comanda até hoje. O método de ensino criado e adotado por Regina Machado já formou inúmeros cantores importantes do cenário de música popular brasileira. (MARIZ, 2013, p.134).
A Habilitação Voz - Música Popular, da Unicamp, ainda é o único
curso especifico de canto popular, no contexto da universidade pública no
Brasil, tendo como professora Regina Machado, desde 2002. Uma das 22
habilitações oferecidas aos estudantes vinculados à matriz curricular do curso
de música da Unicamp, reconhecido pela portaria MEC n° 911 de 31/07/1995
e renovado pela Portaria CEE/GP n° 18 de 14/01/2014. Para graduar-se
nesse curso, o aluno deverá obter o total de 174 créditos, correspondentes a
2.610 horas de atividades supervisionadas, que poderão ser integralizadas
em oito semestres, conforme proposta oferecida pela unidade para o
cumprimento do currículo pleno, sendo o prazo máximo de integralização de
12 semestres, de acordo com as Grades Curriculares do Núcleo Comum do
Curso de Música/Voz – Música Popular (ANEXOS A e B).
Além das disciplinas comuns a todos os estudantes, o estudante
23 Professor José Roberto Zan, em entrevista concedida em 23 de junho de 2015.
41
de Voz - Música Popular deverá cumprir as disciplinas específicas de voz e
música popular e cumprir 24 créditos com disciplinas que, além de música,
podem ser dos currículos de artes cênicas, dança, artes plásticas, pedagogia,
cinema, ou qualquer outra oferecida pela Unicamp.
As principais disciplinas para a formação em Voz – Música Popular
são: Voz I a Voz VIII; Canto na Música Popular - I ao VII; e Tópicos Especiais
em Música Popular - I ao IV. As ementas das disciplinas Voz I a VIII incluem
o estudo ordenado e progressivo do instrumento. Nas disciplinas Canto na
Música Popular de I ao VII é traçado um estudo histórico e técnico do
desenvolvimento da voz na canção popular brasileira, realizado a partir da
escuta de fonogramas desde o início do século XX até a metade dos anos
1940, passando pela chamada Época de Ouro da música popular brasileira;
dos anos 1946 a 1962, período reconhecido como sendo de renovação do
samba-canção e surgimento da bossa nova; fonogramas produzidos e
veiculados nos anos 1960, período reconhecido pela realização dos Festivais
da Canção, da Jovem Guarda e do Tropicalismo; dos conteúdos cancionais
na obra do chamado Clube da Esquina; estudo progressivo e sistemático do
repertório referente à musica caipira e ao samba paulista; e do repertório que
caracteriza a vanguarda paulista, bem como a produção alternativa de
música na cidade de São Paulo, nos anos 1980; canção popular produzida
nos países da América Latina, com enfoque especial para Argentina, Chile,
Cuba, Peru e México. Nas disciplinas de tópicos especiais, que traz como
ementa geral o estudo programado de assunto relevante em área específica
da música, os objetivos gerais de preparar os alunos para o trabalho artístico
coletivo, considerando a formação de uma consciência crítica e da
necessidade de compartilhamento de forças criativas, são trabalhados: a
ocupação cênica a partir da aplicação da Teoria dos Six Viewpoints,
desenvolvida pela coreógrafa Mary Overlie; a capacidade de improvisação
livre, partindo das Sequências Minimais; e a capacidade crítica, a partir da
leitura de textos relativos ao fazer artístico. Todas as disciplinas específicas
42
para a formação do cantor popular são ministradas pela professora Dra.
Regina Machado24.
A Unicamp atualmente mantém grupos de pesquisa, cujos
objetivos incluem assuntos relacionados à música popular: a) Música
Popular: história, produção e linguagem; b) Vox Mundi – grupo de estudos da
voz popular midiatizada, erudita e dos povos tradicionais; c) Musilinc – grupo
de pesquisas sobre música, linguagem e cultura25.
2.2 O canto popular como “Instrumento”: uma habilitação em execução nos cursos de Bacharelado em Música Popular
O canto popular é oferecido nos cursos de Bacharelado em Música
na FAP, da Unespar, na UFBA e na UFMG. Nessas três instituições a
disciplina é oferecida na grade curricular como uma opção de instrumento
para habilitação em execução.
2.2.1 Universidade Estadual do Paraná (Unespar)
O curso de Bacharelado em Música Popular da Unespar teve seu
início no ano de 2003. Sua proposta pedagógica é fundamentada nas
dimensões reflexiva e técnica dos conhecimentos musicais, buscando
capacitar instrumentista, compositor de trilhas musicais, arranjador, produtor
musical, crítico, pesquisador, diretor de conjuntos instrumentais e vocais.
A forma de ingresso anual no curso é através de vestibular
nacional, onde são ofertadas vinte vagas para os estudantes de música
popular. Com objetivo principal voltado para o mercado de trabalho, o curso
procura habilitar seus alunos ao desenvolvimento de uma atividade
profissional de nível superior.
24 Disponível em: http://www.dac.unicamp.br/sistemas/catalogos/grad/catalogo2017/cursos/cur22.html. Acesso em: 31 jan. 2017. 25 Disponível em:https://www.iar.unicamp.br/pesquisa/grupos-de-pesquisa. Acesso em: 31 jan. 2017.
43
Em artigo, Egg (2013), docente dessa instituição, conclui que a
institucionalização da música popular na academia ainda precisa avançar,
enfatizando a falta de estruturação. Declara que, “dentro dos departamentos
de música, a música popular ainda é um patinho feio”.
Entretanto, as cunhas estão inseridas, e cabe a cada um de nós trabalhar para aumentar as “rachaduras” nesse edifício que se construiu em torno da música como expressão da cultura aristocrática europeia. Para isso podemos nos inspirar nos historiadores, sociólogos e antropólogos, que já vêm há mais tempo se dedicando a pensar que o que aconteceu no mundo real merece atenção, tanto mais quanto maior circulação tenha tido. Ou seja, não dá mais para deixar a música popular de fora como assunto de pesquisa e de ensino de música. (EGG, 2013).
Para graduar-se nesse curso o aluno deverá obter o total de 3.232
horas, divididas em prática, teoria e atividades complementares, que poderão
ser cursadas em no mínimo oito e no máximo 12 semestres. Entre as
disciplinas ofertadas nesse curso, identificamos: Expressão Vocal, Canto
Solista I, Canto Solista II, Canto Solista III e Canto Solista IV, como sendo
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