UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
ROGÉRIO NOVAKOSKI FERREIRA ALVES
MUDANÇAS NOS PROGRAMAS FUNCIONAIS DAS RESIDÊNCIAS DA ELITE PAULISTANA DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XX
São Paulo 2015
ROGÉRIO NOVAKOSKI FERREIRA ALVES
MUDANÇAS NOS PROGRAMAS FUNCIONAIS DAS RESIDÊNCIAS DA ELITE PAULISTANA DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XX
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Roberto Righi
São Paulo 2015
A474m Alves, Rogério Novakoski Ferreira. Mudanças nos Programas Funcionais das Residências da Elite
Paulistana do Século XVIII ao Século XX / Rogério Novakoski Ferreira
Alves - 2015.
209 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidaded
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.
Bibliografia: f. 177 – 183.
1. Casa. 2. Programa funcional. 3 Elite. 4. São Paulo. I. Título. CDD 728
Ao Thiago
Meus sinceros agradecimentos ao
professor Roberto Righi por sua
dedicada e atenciosa orientação.
Agradeço à minha esposa e aos
meus pais pelo amor, apoio e
incentivo para a realização deste
trabalho.
Agradeço a Jesus por mais uma
conquista.
RESUMO
No período colonial, a elite da sociedade vivia no cinturão rural e dirigia-se eventualmente à cidade de São Paulo para participar da vida social. No século XVIII, as famílias mais ricas passaram a construir seus sobrados ao lado dos casebres dos mamelucos, residências sempre construídas em taipa de pilão, mas com partidos arquitetônicos e programas funcionais diferenciados. Na segunda metade do século XIX, com a economia do café e a implantação das ferrovias na cidade e na região, São Paulo desenvolveu-se de maneira rápida, com grandes transformações urbanas, sociais e na arquitetura. A elite passou a ser cada vez mais urbana e mais influenciada pela cultura europeia. A burguesia cafeeira e seus casarões de alvenaria do final do século XIX e início do XX eram residências baseadas em uma nova decoração e no programa funcional europeu, base do ecletismo. Também sucederam as mansões neocoloniais, em busca de uma identidade nacional. No segundo quartel do século XX, as casas modernistas foram construídas com uma arquitetura internacional, voltada às inovações tecnológicas. Esse processo trouxe importantes transformações na forma e no programa das residências. Em suma, este trabalho analisa as mudanças nos programas funcionais e modelos arquitetônicos residenciais da elite paulistana, desde o período colonial até os projetos de mansões modernistas anteriores à exposição “Brazil Builds”, no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), em 1943.
Palavras-chave: casa. programa funcional. elite. São Paulo.
ABSTRACT
During the colonial period, the high society citizens of São Paulo used to live in the rural area and eventually went to the city to participate of the social life. In the XVIIII century, the wealthiest families started to construct their two or three store-houses beside the mamelukes’ huts, but these residences though made in rammed earth (taipa de pilão), had differentiated functional programs and architectural patterns. In the second half of the XIX century, with the profitable coffee culture and the implantation of railways in the city and its surroundings, São Paulo developed quickly with big urban, social and architectural changes. The high society became more urban and was more influenced by the European culture. The coffee bourgeoisie and their masonry mansions of the end of the nineteenth and the beginning of the twentieth centuries were based in the Eclectic movement with new interior designs and European functional programs. In the second quarter of the XX century, the more modern houses were built based on international architectural pattern, with technological advances. This process brought important transformations in the style and in the program of the residences. In conclusion, this work analyses the changes in the functional programs and architectural patterns of the houses of the high society in São Paulo since the colonial period till projects of modernist mansions prior to the “Brazil Builds” exhibition in MoMA (Museum of Modern Art in New York), in 1943.
Keywords: house. functional program. high society. São Paulo.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: RODRIGUES, José Wasth. Documentário Arquitetônico. 5ª Ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1990, p.11. Figura 02: REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011, p. 29. Figura 03: REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011, p. 29. Figura 04: Gravura “Uma Sala de Estar em São Paulo” do pintor Thomas Ender de 1817. http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Thomas_Ender_-_Sala_de_Estar_em_S%C3%A3o_Paulo.jpg – copiada em 27-04-2014. Figura 05: Fotografia do autor, 2013. Figura 06: Fotografia do autor, 2013. Figura 07: Fotografia do autor, 2013. Figura 08: Fotografia de Caio Prado Jr. HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 74. Figura 09: Desenho do cartunista Belmonte. AMARAL, Edmundo. Rótulas e Manilhas – Evoluções do Passado Paulista. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 1932. http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0354b.htm - copiada em 27-09-2014. Figura 10: Fotografia de Guilherme Gaensly, 1902. http://www.euemeuchapeu.com.br/cidade/a-paulista-que-nunca-foi-dos-baroes/#.VDM252ddWSo - copiada em 21-08-2014.
Figura 11: Desenho elaborado no escritório de Ramos de Azevedo, no início do século XX. LEMOS, Carlos. Alvenaria Burguesa: breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. São Paulo: Nobel, 1989, p. 98. Figura 12: Desenho elaborado no escritório de Ramos de Azevedo, no início do século XX. LEMOS, Carlos. Alvenaria Burguesa: breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. São Paulo: Nobel, 1989, p. 98. Figura 13: LEMOS, Carlos. A República Ensina a Morar (melhor). São Paulo: Hucitec, 1999a, p. 63. Figura 14: LEMOS, Carlos. A República Ensina a Morar (melhor). São Paulo: Hucitec, 1999a, p. 62. Figura 15: Desenho assinado por Luís Pucci e Giulio Micheli, 1892. Arquivo Histórico Municipal “Washington Luís” DPH/SMC/PMSP – São Paulo HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 120. Figura 16: Fotografia de Guilherme Gaensly, 1904. HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 120. Figura 17: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 118. Figura 18: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 118. Figura 19: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 118.
Figura 20: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 118. Figura 21: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 126. Figura 22: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 127. Figura 23: Fotografia de Otto Rudolf Quaas, 1900. Acervo do Instituto Moreira Salles. http://www.pinterest.com/pin/327214729148371189/ - copiada em 25-09-2014. Figura 24: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 152. Figura 25: SCHPUN, Mônica Raisa. Regionalistas e Cosmopolitas : As amigas Olivia Guedes Penteado e Carlota Pereira de Queiroz. In Artelogie, n.2, 2011. http://cral.in2p3.fr/artelogie/spip.php?article81 – copiada em 03-10-2014. Figura 26: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 154. Figura 27: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 154. Figura 28: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 200.
Figura 29: Sem autor http://cafehistoria.ning.com/photo/residencia-de-horacio-sabino?context=latest – copiada em 03-10-2014. Figura 30: Desenho do Arquivo Histórico de São Paulo – A cidade e seus documentos São Paulo, 1903. http://www.arquiamigos.org.br/expo/2011ahsp/1889-1930-primeira-republica/1903-projeto-resid-horacio-sabino.html. – copiada em 03-10-2014. Figura 31: Desenho do Arquivo Histórico de São Paulo – A cidade e seus documentos São Paulo, 1903. http://www.arquiamigos.org.br/expo/2011ahsp/1889-1930-primeira-republica/1903-projeto-resid-horacio-sabino.html. – copiada em 03-10-2014. Figura 32: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 200. Figura 33: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 200. Figura 34: Fotografia do Arquivo de Sylvia Laraya Kawall. Jornal “O Estado de S.Paulo”, São Paulo. http://topicos.estadao.com.br/fotos-sobre-horacio-sabino – copiada em 03-10-2014. Figura 35: Sem autor Estadão, São Paulo. http://topicos.estadao.com.br/fotos-sobre-horacio-sabino – copiada em 03-10-2014. Figura 36: Sem autor http://projetobrasilfranca.wordpress.com/2010/06/14/vila-penteado-a-maior-mansao-art-nouveau-do-brasil-sao-paulo - copiada em 08-11-2014.
Figura 37: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 190. Figura 38: Fotografia do autor, 2014. Figura 39: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 190. Figura 40: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 191. Figura 41: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 194. Figura 42: HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 194. Figura 43: Fotografia do autor, 2014. Figura 44: Fotografia do autor, 2014. Figura 45: Fotografia do autor, 2014. Figura 46: SEGAWA, Hugo. Prelúdio da Metrópole – Arquitetura e Urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 115. Figura 47: Revista “Cigarra” – capa, edição 3, 1914. https://patinadotempo.wordpress.com/2010/01/19/cigarra-natal-rio-grande-do-norte-1928-30/ - copiada em 04-04-2015.
Figura 48: FARIAS, Claudio Lamas de, AYROSA, Eduardo, CARVALHO, Gabriela, ABRAMOVITZ, José, FRAIHA, Silvia. Eletrodomésticos – Origens, História & Design no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fraiha, 2006, p. 61. Figura 49: Revista “Cigarra” - propaganda http://martaiansen.blogspot.com.br/2012_07_01_archive.html - copiada em 04-04-2015. Figura 50: MINDLIN, Henrique. Organização Racional da Cozinha. In: Acrópole, n.2. São Paulo: 1938, p. 21. Figura 51: MINDLIN, Henrique. Organização Racional da Cozinha. In: Acrópole, n.2. São Paulo: 1938, p. 22. Figura 52: Revista “Acrópole”, n.6. São Paulo: 1938, p.16. Figura 53: Revista “Acrópole”, n.6. São Paulo: 1938, p.17. Figura 54: Revista “Acrópole”, n.6. São Paulo: 1938, p.17. Figura 55: Revista “Acrópole”, n.34. São Paulo: 1941, p.355. Figura 56: Revista “Acrópole”, n.34. São Paulo: 1941, p.356. Figura 57: Revista “Acrópole”, n.34. São Paulo: 1941, p.357. Figura 58: Revista “Acrópole”, n.34. São Paulo: 1941, p.357. Figura 59: Revista “Acrópole”, n.46. São Paulo: 1942, p.388. Figura 60: Revista “Acrópole”, n.46. São Paulo: 1942, p.388. Figura 61: Revista “Acrópole”, n.46. São Paulo: 1942, p.388.
Figura 62: Revista “Acrópole”, n.46. São Paulo: 1942, p.390.
Figura 63: Revista “Acrópole”, n.66. São Paulo: 1943, p.159.
Figura 64: Revista “Acrópole”, n.66. São Paulo: 1943, p.160.
Figura 65: Revista “Acrópole”, n.66. São Paulo: 1943, p.160.
Figura 66: Desenhos de Le Corbusier https://histarq.wordpress.com/2012/11/24/le-corbusier-1a-parte-1919-1932/ - copiada em 16-04-2015.
Figura 67: Revista “Acrópole”, n.1. São Paulo: 1938, p.22.
Figura 68: Revista “Acrópole”, n.1. São Paulo: 1938, p.26.
Figura 69: Revista “Acrópole”, n.1. São Paulo: 1938, p.22.
Figura 70: Revista “Acrópole”, n.1. São Paulo: 1938, p.24.
Figura 71: Revista “Acrópole”, n.10. São Paulo: 1939, p.25.
Figura 72: Revista “Acrópole”, n.10. São Paulo: 1939, p.41.
Figura 73: Revista “Acrópole”, n.10. São Paulo: 1939, p.40.
Figura 74: Revista “Acrópole”, n.10. São Paulo: 1939, p.44.
Figura 75: Revista “Acrópole”, n.10. São Paulo: 1939, p.44.
Figura 76: Revista “Acrópole”, n.16. São Paulo: 1939, p.25.
Figura 77: Revista “Acrópole”, n.16. São Paulo: 1939, p.30.
Figura 78: Revista “Acrópole”, n.16. São Paulo: 1939, p.30.
Figura 79: Revista “Acrópole”, n.16. São Paulo: 1939, p.27.
Figura 80: Revista “Acrópole”, n.16. São Paulo: 1939, p.26.
Figura 81: PETROSINO, Maurício Miguel. João Batista Vilanova Artigas – residências unifamiliares: a produção arquitetônica de 1937 a 1981. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo. São Paulo: 2009, p.243. Figura 82: PETROSINO, Maurício Miguel. João Batista Vilanova Artigas – residências unifamiliares: a produção arquitetônica de 1937 a 1981. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo. São Paulo: 2009, p.242. Figura 83: Jornal Folha de S.Paulo http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/23225-gregori-warchavchik - copiada em 20-05-2015. Figura 84: LIRA, José. Ruptura e Construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. SciELO - Scientific Electronic Library Online. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013.
Figura 85: LIRA, José. Ruptura e Construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. SciELO - Scientific Electronic Library Online. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013.
Figura 86: LIRA, José. Ruptura e Construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. SciELO - Scientific Electronic Library Online. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 17
1 AS CASAS COLONIAIS .................................................................................... 21
1.1 A OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO PLANALTO DE PIRATININGA ................ 21
1.2 A URBANIZAÇÃO COM CASEBRES E SOBRADOS ..................................... 24
1.3 A CASA BANDEIRISTA .................................................................................. 27
1.4 A CASA RURAL E A MIGRAÇÃO MINEIRA ................................................... 28
1.5 O PROGRAMA DO SOBRADO COLONIAL ................................................... 31
1.6 A ARQUITETURA DA CASA E A RUA ........................................................... 41
1.7 ORGANOGRAMA PADRÃO DO SOBRADO COLONIAL ............................... 47
2 AS CASAS ECLÉTICAS.................................................................................... 48
2.1 AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS, ECONÔMICAS E CULTURAIS ............. 48
2.2 AS TRANSFORMAÇÕES URBANAS ............................................................. 50
2.3 O USO DO TIJOLO ......................................................................................... 55
2.4 AS ARQUITETURAS NEOCLÁSSICA E ECLÉTICA ...................................... 56
2.5 A HIGIENE E O ESPAÇO HABITACIONAL .................................................... 62
2.6 O PROGRAMA DA CASA TÉRREA ............................................................... 65
2.7 O PROGRAMA DO PALACETE ...................................................................... 70
2.8 ORGANOGRAMA PADRÃO DA CASA TÉRREA ........................................... 78
2.9 ORGANOGRAMA PADRÃO DO PALACETE ................................................. 79
2.10 CASOS DE RESIDÊNCIAS ECLÉTICAS ...................................................... 80
2.10.1 Residência da senhora Marguerita Marchesini .......................................... 80
2.10.2 Residência de José Fernandes Pinto ......................................................... 82
2.10.3 Palacete do Conselheiro Antônio da Silva Prado ....................................... 84
2.10.4 Palacete de Inácio e Olívia Penteado ........................................................ 89
2.10.5 Palacete de Horácio Sabino ....................................................................... 93
2.10.6 Palacete de Antônio Álvares Penteado ...................................................... 98
3 AS CASAS NEOCOLONIAIS .......................................................................... 106
3.1 O CAFÉ, A INDÚSTRIA E A CIDADE MODERNA ........................................ 106
3.2 A NOVA FISIONOMIA DA METRÓPOLE PAULISTA ................................... 107
3.3 A ARQUITETURA NEOCOLONIAL EM SÃO PAULO .................................. 110
3.4 A RACIONALIZAÇÃO DA ARQUITETURA ................................................... 112
3.5 O AMERICAN WAY OF LIFE ........................................................................ 114
3.6 O PROGRAMA DA CASA NEOCOLONIAL .................................................. 118
3.7 ORGANOGRAMA PADRÃO DA CASA NEOCOLONIAL .............................. 127
3.8 CASOS DE RESIDÊNCIAS NEOCOLONIAIS RACIONALIZADAS .............. 128
3.8.1 Residência do senhor Ismael Brandão ....................................................... 128
3.8.2 Residência do senhor Sylvio Suplicy .......................................................... 131
3.8.3 Residência do senhor Caio Pinheiro .......................................................... 134
3.8.4. Residência do senhor Jacob Klabin Lafer ................................................. 137
4 AS CASAS MODERNISTAS ........................................................................... 141
4.1 A ARQUITETURA MODERNISTA EM SÃO PAULO .................................... 141
4.2 O PROGRAMA DA CASA MODERNISTA .................................................... 149
4.3 ORGANOGRAMA PADRÃO DA CASA MODERNISTA ................................ 151
4.4 CASOS DE RESIDÊNCIAS MODERNISTAS ............................................... 152
4.4.1 Residência do senhor G. Haberkamp......................................................... 152
4.4.2 Residência do senhor Alexandre Tito Labat ............................................... 156
4.4.3 Residência do senhor Jayme de Albuquerque Cavalcanti ......................... 159
4.4.4 Residência do senhor Nicolau Scarpa Jr. ................................................... 162
4.5 A CASA DE WARCHAVCHIK DA RUA SANTA CRUZ ................................. 165
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 171
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 177
17
INTRODUÇÃO
A configuração arquitetônica da moradia revela os aspectos da vida
privada do morador, suas necessidades, detalhes da organização familiar, sua
relação com a cidade onde mora, seu contato com culturas nacionais e
estrangeiras e o uso de sua casa como forma de expressão social. A casa é a
arquitetura mais íntima do homem, o seu abrigo e a construção cultural de uma
determinada sociedade, manifestada na organização de seus ambientes, na
disposição do mobiliário e através de fragmentos da cultura material, exigidos
conforme o seu programa de necessidades.
Esta pesquisa tem como objetivo o estudo do programa funcional da casa
da elite social paulistana na cidade de São Paulo, desde os sobrados do século
XVIII, até as mansões modernistas da primeira metade do século XX. Ela está
vinculada diretamente à história dinâmica da cidade, às transformações
socioeconômicas, urbanísticas e tecnológicas de São Paulo e às influências
culturais de seus imigrantes. É um trabalho com foco no estudo do programa
funcional do espaço arquitetônico dos sobrados, palacetes e mansões da elite
paulistana, porém revelando, ainda, muitos outros aspectos da história de São
Paulo. Já existem algumas pesquisas que mostram a ligação da arquitetura com a
sua história urbanística, social, econômica e cultural, mas sempre valorizando
muito mais o aspecto plástico da arquitetura. Este trabalho busca o enfoque no
programa funcional arquitetônico, em seus aspectos espaciais, sociais e
antropológicos, sem deixar de citar, também, as técnicas construtivas e os
partidos arquitetônicos, como fatores contribuintes e determinantes na
caracterização desses programas.
É importante salientar que há poucos livros e trabalhos acadêmicos na
área da Arquitetura focados na pesquisa dos programas funcionais e suas
mudanças ao longo do tempo. Esta pesquisa surgiu de um interesse antigo do
autor em estudar os motivos capazes de transformar o espaço residencial da elite
social paulistana, de forma radical, como aconteceu, e compreender as
consequências formais e funcionais dentro de um período amplo, pesquisa essa
18
que permitisse a observação e a comparação das diversas alterações no interior
das casas e no modo de vida de seus moradores.
A escolha da “elite paulistana” justifica-se pelo interesse em pesquisar o
programa das casas construídas através da arquitetura erudita em São Paulo,
sem abrir espaço para um estudo mais profundo da arquitetura e dos programas
de casebres, mucambos, casas de operários, cortiços, entre outros, apesar da
devida importância da arquitetura popular na história da cidade.
Neste trabalho, o termo “elite” refere-se a um grupo situado em uma
posição hierárquica superior, dentro de uma determinada organização social, com
maior poder de decisão política, econômica e cultural, por isso mesmo capaz de
formar, transformar e difundir opiniões que sirvam como referência a toda a
sociedade1. Em São Paulo, a elite do século XVIII era formada pelos grandes
comerciantes e pelos fazendeiros de açúcar, chamados de “senhores de
engenho”; no século XIX, pelos “barões do café”; no século XX, pelos grandes
fazendeiros e pela burguesia industrial.
O trabalho tem início com a descrição do desenvolvimento da região do
Planalto de Piratininga, a partir da chegada dos jesuítas, em 1554, para, assim,
melhor explicar a formação da cidade, da sociedade, e as influências da
arquitetura rural nas primeiras construções urbanas; e finaliza com a análise do
programa funcional das casas modernistas, até o ano 1943, quando ocorre a
exposição “Brazil Builds” no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), e a
arquitetura modernista brasileira passa a seguir novos rumos, com um caráter
mais progressista.
A metodologia da pesquisa é bibliográfica e documental, pautada em
levantamentos e análises de trabalhos nas áreas da Arquitetura, do Urbanismo, da
Sociologia e da Antropologia; fotografias, desenhos técnicos; visitas a residências
de grande importância histórica; e montagens de organogramas para
comparações de programas funcionais de diferentes épocas.
1 Esse conceito de “elite” baseia-se na obra “The Power Elite” (1956), do sociólogo norte-americano Charles
Wright Mills.
19
As pesquisas feitas na revista “Acrópole”, da edição n.1, de 1938, até a
edição n.152, de 1950, foram de grande importância para o trabalho, em especial,
na elaboração dos capítulos 3 e 4.
O primeiro capítulo, “As Casas Coloniais”, descreve o contexto histórico
do surgimento da cidade de São Paulo; o aparecimento das casas bandeiristas e
as primeiras casas urbanas; a influência dos migrantes mineiros na arquitetura e
nos costumes paulistanos; e a compreensão dos programas funcionais dos
sobrados coloniais urbanos. Esses sobrados, pertencentes às famílias mais
abastadas do século XVIII, surgem em uma fase de pobreza da cidade, e pouco
se distinguiam dos casebres em qualidade, tanto no interior como no exterior da
residência.
O segundo capítulo, “As Casas Ecléticas”, trata de grandes mudanças na
arquitetura residencial da elite, ocorridas no final do século XIX, devido ao
enriquecimento com o café; a implantação de ferrovias e o desenvolvimento da
economia; o trabalho da mão de obra imigrante; o uso difundido do tijolo nas
construções; as arquiteturas neoclássica e eclética; a importância da higiene e da
salubridade na arquitetura residencial; as mudanças na legislação urbana; a
compreensão dos programas funcionais das casas térreas e dos palacetes, com
comparações ao programa colonial; e a apresentação de exemplos arquitetônicos
relevantes desse período.
O terceiro capítulo, “As Casas Neocoloniais”, mostra um momento, no
século XX, em que o país buscava a sua identidade nacional e, por isso, evocava
a arquitetura colonial em oposição às influências europeias do século XIX. Nesse
mesmo momento, há o crescimento da indústria e a necessidade de
racionalização da arquitetura. O capítulo trata, também, do surgimento da
burguesia industrial; da popularização do art decó; das influências norte-
americanas; do surgimento dos eletrodomésticos; da compreensão dos programas
funcionais da casa neocolonial, com comparações aos programas anteriores; e da
apresentação de importantes projetos arquitetônicos desse período.
O quarto capítulo, “As Casas Modernistas”, descreve um momento
cronologicamente paralelo ao do capítulo anterior, porém focando o surgimento de
20
uma nova arquitetura e um novo conceito espacial, criados por Le Corbusier, e
defendidos pelos jovens arquitetos de São Paulo. Ainda que não aceitos pela
burguesia tradicional da cidade, foram apoiados por alguns representantes
vanguardistas da burguesia industrial e por uma elite intelectual. O capítulo
termina com a compreensão dos programas funcionais da casa modernista, com
comparações aos programas anteriores; a apresentação de exemplos
arquitetônicos relevantes desse período; e uma análise do programa funcional da
“Casa de Warchavchik”, na rua Santa Cruz.
No quinto capítulo, “Considerações finais”, são feitos os comentários de
finalização do trabalho, após um breve resumo e uma análise das oposições
marcantes nos diferentes programas funcionais da residência da elite paulistana,
durante os três séculos estudados.
21
1. As casas coloniais
“Há em São Paulo algumas casas verdadeiramente ricas; mas, em geral, as fortunas não são muito consideráveis.” - Auguste de Saint-Hilaire
1.1 A ocupação territorial do planalto de Piratininga
No ano de 1554, um grupo de jesuítas portugueses, comandado pelos
padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, chegou ao planalto paulista,
auxiliado por João Ramalho, com o objetivo de catequizar os índios que viviam na
região localizada entre os rios Tietê, Anhangabaú e Tamanduateí. Esses jesuítas
contaram com a total aprovação do cacique Tibiriçá, líder de uma das aldeias
próximas, dado o interesse dos índios em ter acesso às técnicas e ferramentas de
trato da terra dos brancos, maior que pelo cristianismo.
Para efetivar o trabalho de catequese, índios e religiosos construíram um
colégio, marco inicial da futura Vila de São Paulo, que se desenvolveu em uma
colina rodeada de várzeas, como uma típica aldeia portuguesa (LEMOS, 1999b).
A região agradava aos jesuítas não somente pela semelhança com o clima ibérico,
mas por ser uma terra de muitos campos férteis e água fresca, pastos com
variedade de alimentos para o gado, os cavalos e os porcos. Também havia
árvores com muitas frutas, algumas conhecidas nos campos de Portugal,
conforme relatos e descrições do Padre José de Anchieta em suas cartas à corte
(BRUNO, 1991).
A ocupação das novas terras na região deu-se de forma bem dispersa, ou
seja, através de diversos aldeamentos, o que se explica pela geografia da região,
com relevo de muitos aclives, vales e riachos. Inicialmente, a organização urbana
foi se desenvolvendo da mesma forma em toda a colônia, centrada administrativa
e eclesiasticamente nas paróquias, cada uma dominada por uma igreja.
Mas o fato de se desenvolver em um planalto de difícil acesso, pela
dificuldade de subir a Serra do Mar, fez com que a capital da província de São
Paulo, no período colonial, se tornasse uma cidade desconectada do litoral e
22
isolada do resto do país. Esse relativo isolamento da região, até o início do século
XVIII, prejudicou o seu desenvolvimento econômico, que se mantinha por meio de
lavouras de subsistência, através do trabalho forçado do índio, e também fez com
que os paulistas desenvolvessem traços culturais muito próprios, encontrados até
mesmo na peculiaridade da arquitetura da região.
No ano de 1681, o Marquês de Cascais, donatário da Capitania de São
Vicente, transferiu sua capital para a Vila de São Paulo, que foi instalada, em
1683, com muita alegria da população, grandes comemorações e festejos
públicos.
Porém, a pobreza dos moradores locais, que não podiam comprar
escravos negros africanos, e a necessidade de mão de obra na região fizeram
com que se iniciassem as atividades dos bandeirantes, que se dispersaram pelo
interior do país em busca de índios para o trabalho da lavoura. Esses
desbravadores abandonaram suas terras no planalto não só à procura de mão de
obra, mas também de ouro e diamantes. Pelo caminho, esses moradores
nômades do planalto foram deixando seus rastros e, próximos aos riachos, era
comum encontrar casebres simples e provisórios de taipa de pilão ou adobe,
cobertos de palha (BRUNO, 1991).
Apesar de todas as dificuldades, a vila cresceu e, em 1711, a Vila de São
Paulo foi elevada à categoria de cidade. Entretanto, toda a região do planalto
paulista seguia com sua base econômica na agricultura de subsistência e, pela
raridade da moeda, era comum haver muitos negócios através de trocas de
animais e alimentos da terra, como mandioca, açúcar, trigo, algodão, milho,
laranja, limão, marmelo, jabuticaba, entre outros. Os inventários dos primeiros
paulistas acusavam pequena quantidade de importações e completa ausência de
luxo (MORSE, 1970, p.32 e 33). Portanto, São Paulo estava longe de ser um
empório comercial.
Para se chegar à cidade de São Paulo, era necessário muito esforço na
luta contra todas as dificuldades do caminho: o acesso à serra em trilhas
perigosas ladeadas de precipícios abruptos, os ataques dos índios, a fome e as
doenças, obstáculos esses que levaram a imigração europeia a um rigoroso
23
processo seletivo (MORSE, 1970, p.30). Tais condições de vida determinaram,
mais tarde, a formação de uma sociedade em moldes mais democráticos,
diferente daquela que estava sendo estabelecida mais ao norte da colônia.
Assim, desde o início do século XVI, os paulistas eram conhecidos por
seu jeito de “bicho do mato”, de caráter voluntarioso, pragmático, destemido,
valente, lutador, rebelde e desconfiado de novas ideologias. Com o passar do
tempo, os colonos da região não aceitaram a ideia centralizadora dos jesuítas no
desenvolvimento urbano através do povoamento em núcleos ao redor do colégio e
de suas igrejas. Seguiram em outra direção, preferindo a distribuição sobre os
terrenos vastos do planalto, montando suas fazendas, acompanhados por seus
escravos índios e mamelucos (SAIA, 1995, p.31).
Os paulistas se opuseram com êxito aos esquemas jesuíticos de núcleos sagrados, utópicos, bem como ao seu uso de terra como instrumento de conquista e acumulação de poder. Para isso, desenvolveram um padrão de povoamento rural dispersivo, que manteve baixo o valor da terra, deu relevo aos séquitos de mamelucos e guerreiros
índios e tornou o centro urbano um núcleo principalmente simbólico (MORSE, 1970, p.29).
Nesse cenário, na cidade de São Paulo, em processo de formação, do
século XVI ao século XVIII, foram se fixando colonos brancos mais abastados,
mamelucos, escravos indígenas e, mais tarde, negros. As casas na área urbana
foram se organizando próximas à Câmara Municipal e às igrejas. Muitas outras
casas foram dispersas pela área rural ao redor do centro urbano. Surgiram o
comércio e as trocas de produtos, realizadas através dos deslocamentos das
tropas e, mais tarde, na área rural, os engenhos de açúcar que marcaram a
segunda metade do século XVIII.
Em 1765, o governo-central enviou a São Paulo Dom Luís Antônio de
Sousa Botelho Mourão, mais conhecido como “Morgado de Mateus”, com a função
de governar a região. Essa atitude tinha como meta alterar a característica local
ainda pobre e pouco povoada, além de fortalecer o domínio português na marinha
do sul e em todas as divisas com ocupação espanhola.
Morgado de Mateus iniciou o governo reagrupando a população em novas
cidades ao redor do centro urbano e incentivou a agricultura e o comércio de
24
tropas na região. Trouxe, também, novas ferramentas e tecnologias de plantio e
estimulou a produção de cana-de-açúcar no planalto paulista, visando ao comércio
internacional, pois o consumo de açúcar na Europa e a quebra de produção nas
colônias francesas desse período favoreceram ali o cultivo de cana-de-açúcar
(SETÚBAL, 2004a). Pela fertilidade do solo de “terra roxa”, a região logo se
transformou em uma grande produtora de açúcar do país.
Então, a partir dessa segunda metade do século XVIII, o chamado
“quadrilátero”, região compreendida pelas cidades de Piracicaba, Mogi-Guaçu,
Jundiaí e Sorocaba, ficou conhecido como a grande indústria produtora de açúcar
da região. Os antigos fazendeiros do planalto, bem como os novos produtores de
açúcar, passaram a ser chamados de “senhores de engenho”, tornando-se
conhecidos por suas grandes propriedades e pela produção de açúcar, rapadura,
melado e aguardente.
1.2 A urbanização com casebres e sobrados
No centro urbano, a quantidade de casas ao redor do colégio dos jesuítas
e das igrejas foi aumentando vagarosamente, dando forma à região central da
cidade durante o período colonial. Os moradores da área urbana construíam
normalmente casas mais simples que as rurais. As casas construídas por jesuítas
para o abrigo de índios continuavam com um aspecto bem primitivo, feitas com
paus roliços e telhado de palha, como as ocas, porém havia também casas em
taipa de pilão e de mão, e telhado com telhas de canal de cerâmica. Além desses
modelos mais simples, foram aparecendo alguns sobrados na região,
pertencentes às famílias mais abastadas de São Paulo.
Mesmo assim, era ainda mais comum encontrar, na região, casas de
índios, mamelucos, tropeiros e aventureiros, que construíam moradias
propositalmente provisórias, que não lhes custava substituir por outras parecidas,
depois de alguns poucos anos.
25
Os fazendeiros foram preenchendo toda a área rural com suas grandes
propriedades e, com isso, o resto da população foi, com o tempo, estabelecendo-
se no centro urbano e em pequenas propriedades agrícolas próximas a ele. Dessa
forma, notavam-se claramente dois tipos bem diferenciados de casa na área
urbana: o casebre popular e o sobrado da classe dominante.
Afonso Brás, que é considerado por muitos o primeiro “arquiteto” da
cidade, quando ainda era chamada vila, no século XVI, construiu, com seus
auxiliares, algumas casas para os índios na região urbana, já preocupado em
seguir um alinhamento dessas casas (BRUNO, 1991).
Com o passar do tempo, o poder municipal passou a controlar o desenho
das casas para o cumprimento de alguns gabaritos estéticos aprovados pela
Câmara Municipal, o que indicava um crescimento mais acelerado da cidade na
área urbana. As casas seguiam um modelo com fachadas pequenas, pois os lotes
eram estreitos e compridos, com uma porta de entrada direta à sala e uma, duas
ou mais janelas, conforme a vontade e condição do morador. Esse padrão cuidava
não somente do desenho da fachada, mas também do tamanho do lote e da
implantação da casa no terreno.
Assim, a cidade de São Paulo foi crescendo segundo um claro padrão
português em seu desenho urbano, com casas construídas em taipa de pilão e
taipa de mão seguindo um alinhamento frontal bem definido, paredes laterais nos
limites de seus terrenos, e todas com um quintal nos fundos (REIS FILHO, 2011).
Não havia recuos e jardins frontais. As fachadas alinhadas delimitavam a transição
do espaço privativo da casa para o espaço público, a rua, onde caminhavam
moradores da região e vários animais soltos. A parede externa da fachada era em
taipa de pilão, com espessuras que variavam de quarenta a sessenta centímetros,
pintadas na cor branca com cal ou tabatinga (de cor branca, um pouco amarelada)
(SAIA, 1995, p.80). As cores das fachadas costumavam ser claras: brancas,
amareladas ou até rosadas, e era comum a madeira das portas e janelas ser
pintada de verde ou azul.
Até o início do século XVIII, apesar do crescimento da região, São Paulo
ainda era uma cidade pequena e rústica, sem ter uma contribuição relevante no
26
desenvolvimento do país (MORSE, 1970, p.38). Porém, já se notavam algumas
mudanças em relação à sociedade dos séculos anteriores. A figura do fazendeiro
bandeirante, valente e dominador, foi dando lugar à do novo fazendeiro dos
engenhos de açúcar nas áreas rurais e à do comerciante esperto e bom
negociador no centro urbano da cidade (MORSE, 1970). Com o crescimento do
comércio no século XVIII, a cidade passou a ser habitada por diversos tipos de
comerciantes: seleiros, ferreiros, sapateiros, marceneiros, artesãos, tecelões,
entre muitos outros.
Novas rotas fluviais e terrestres surgiram, favorecendo ainda mais o
comércio e a exportação dos produtos da região, e o período das bandeiras foi
sendo substituído pelo período das tropas de mulas. Também, nessa época, os
negros começaram a aparecer em maior quantidade em São Paulo, passando a
ser muito utilizados no trabalho de mineração e no serviço doméstico nas casas
dos grandes proprietários.
Os finais de semana e outras datas especiais de comemoração eram dias
em que esses senhores de engenho e suas famílias visitavam o centro urbano da
região. Passavam alguns dias em seus sobrados com o intuito de comprar sal,
trigo, artigos manufaturados, roupas, escravos negros, bem como participar de
eventos religiosos e políticos da região.
Em regra geral os sobrados urbanos começaram nos meados do século XVIII, raros entre os humildes casarios de um só piso. Mas eram casas de taipa de pilão, que não costumavam ser pequeninas e, entre a maioria de porta e janela, sobressaíam as de uma porta e duas janelas e as de porta entre muitas janelas. [...] Mas, embora se repita que os senhores rurais tinham boas casas de morada nas fazendas e engenhos, deixando de caprichar nas das vilas, isso não se estende aos meados e final deste período. Eles gostavam da casa térrea da fazenda, às vezes com o pequeno sobrado devido ao desnível da frente, mas apreciavam também os seus sobradões das ruas de procissão
em povoado. (MOURA, 1999, p.18).
27
1.3 A casa bandeirista
Antes da chegada dos jesuítas, a arquitetura local, assim como a de todo
o país, era vernácula e indígena. A morada do índio na região caracterizava-se por
algumas madeiras roliças estruturais fincadas na terra e outras funcionando como
vigas definidoras de uma abóboda coberta de palha. Era a morada conhecida
como oca, um espaço fresco e escuro, limitado por paredes com poucas e
pequenas aberturas, mas com um sistema bem eficaz de ventilação. Esse modelo
arquitetônico de moradia foi, aos poucos, sendo substituído pelo modelo
conhecido hoje como “casa bandeirista”.
O termo “bandeirista” refere-se à cultura mameluca, ao uso e às
atividades exercidas por esse mestiço da região de São Paulo (SAIA, 1995;
LEMOS, 1999b). A expressão “casa bandeirista” é usada para referir-se às
construções residenciais rurais paulistas do período colonial, de cultura mameluca,
com paredes em taipa de pilão e telhado com estrutura de madeira e telhas de
canal em cerâmica. Essas casas possuíam um partido arquitetônico simples, com
planta quadrada ou retangular, diferentemente do desenho circular ou elíptico da
oca, e seguiram padrão estético e de organização espacial com poucas alterações
desde o século XVI até o início do século XVIII.
O modelo da casa bandeirista era caracterizado pelo sincretismo da
moradia indígena e ibérica, porém o seu programa foi orientado, em seu interior,
pela direção cristã dos portugueses, que não toleravam as circulações e
acomodações promíscuas dos índios (LEMOS, 1999b).
É bem provável que a técnica construtiva de taipa de pilão tenha sido
trazida ao Brasil pelos portugueses e muito adotada na região de São Paulo, onde
não havia jazidas de carbonato de cálcio para a produção de cal. Assim, era
impossível a fabricação de argamassas e alvenarias. Na época, era também difícil
o transporte desses materiais até a região devido à inexistência de caminhos
adequados e veículos para o transporte. Dessa forma, naquele período de
pobreza, a técnica construtiva em taipa de pilão foi aceita e difundida pelo fato de
ser viável, bem eficiente e também barata (LEMOS, 1999b, p.39). Por isso, ficou
28
conhecida, no país, por ser a técnica padrão de uso dos paulistas, que foram por
isso chamados de “bons taipeiros”.
1.4 A casa rural e a migração mineira
O professor e pesquisador Carlos Lemos costuma comparar a casa
bandeirista a uma “esfinge semidecifrada” (LEMOS, 1999b, p.20), pela dificuldade
em se estudar sua arquitetura e seus programas de necessidade, devido aos
poucos “restos arquitetônicos” incompletos que dela se têm, além dos raros
documentos em textos e desenhos disponíveis.
Mas, mesmo com essa escassez de dados, pode-se concluir que a casa
bandeirista de São Paulo não teve quase nenhuma alteração desde o início do
século XVI até a primeira metade do século XVIII, no aspecto da técnica
construtiva, do partido arquitetônico e do programa de necessidades da casa.
(LEMOS, 1999b). Essa observação é importante, pois demonstra que a sociedade
dessa época passou mais de dois séculos por uma estabilidade sociocultural,
econômica e tecnológica.
Os colonos brancos, moradores mais abastados de São Paulo no início
do período colonial, chamados também de fazendeiros, tinham suas grandes
famílias formadas pelo fazendeiro patriarcal, sua esposa, cerca de dez ou mais
filhos, alguns agregados, hóspedes viajantes e escravos indígenas e negros. As
escravas concebiam também, normalmente, filhos de seus senhores (MORSE,
1970).
Essas famílias, no século XVI, moravam em fazendas ao redor do centro
urbano de São Paulo. Eram grandes propriedades rurais com ocupações bem
fragmentadas, geralmente constituídas pela construção principal, a casa onde
residia a família do fazendeiro, e outras com diferentes funções, dispersas pelo
terreno, formadas por construções onde dormiam os escravos, por depósitos de
vários tipos de cereais, por paióis, moinhos de trigo ou milho, a área do monjolo, o
29
galinheiro, o curral, a moenda, entre outras construções, conforme a necessidade
dos serviços na fazenda (LEMOS, 1999b).
Nessa época, a fazenda era o abrigo principal da elite do planalto de
Piratininga. Era ali que a família morava e cuidava do seu plantio de subsistência e
dos seus animais; onde os fazendeiros recebiam os tropeiros e os acolhiam no
quarto de hóspedes; e onde também faziam trocas e compras debaixo do telhado
dos alpendres das casas.
Essa hospitalidade dos fazendeiros significava muito mais que um ato
bom e cordial, como diz Carlos Lemos: “era uma obrigação social que garantia a
sobrevivência da comunidade” (LEMOS, 1999b, p.30). Porém, lembrando que
esse fazendeiro de São Paulo tinha um caráter de “bicho do mato” desconfiado e
era o chefe de uma grande família inserida em uma sociedade patriarcal rígida,
não permitia que as mulheres ficassem no alpendre ou próximas de qualquer
abertura da casa, expostas aos olhares dos “estranhos”, como eram chamados,
na época, os visitantes desconhecidos. Isso justificava muito bem o desenho
“fechado” da casa bandeirista, com a presença de suas alcovas e poucas
aberturas de portas e janelas.
Na casa rural, o alpendre dava acesso também à capela, onde o
fazendeiro recebia o padre para os eventos religiosos da família. A grande
distância em relação ao centro urbano impedia a ida frequente à igreja, daí a
capela ser um espaço comum e fundamental inserido no programa da casa rural.
A religião dos fazendeiros portugueses e dos mamelucos, tanto os
moradores da área rural quanto da urbana, era muito importante e estava bem
ligada ao temor ao desconhecido e abstrato, e também à precariedade da vida na
região, às dificuldades do cotidiano e à sobrevivência. As crenças eram meio
cristãs e meio indígenas, principalmente para os caipiras mamelucos. Aos poucos,
as forças da natureza foram sendo substituídas pela fé cristã, porém, para eles,
não bastavam os cantos e as orações, como para a maioria dos portugueses. Era
necessário, também, dançar como os antecessores indígenas (SETÚBAL, 2004b).
Como isso não era permitido dentro das igrejas, muitos deles saíam em
30
procissões, folias e festas. Na noite de São João, erguiam o mastro e dançavam
ao redor da fogueira, conforme os antigos rituais e cerimônias indígenas.
O centro urbano, nos séculos XVI e XVII, era desprezado pela população
paulista, principalmente pela elite da sociedade. Porém, os fazendeiros tinham
suas casas na área urbana para utilizá-las em ocasiões especiais, como festas
religiosas ou reuniões políticas da Câmara Municipal. Nos outros dias, essas
casas ficavam abandonadas, sem muita importância para eles. A elite da
sociedade paulistana demorou a ter seus sobrados urbanos e, quando isso
aconteceu, eles não surgiram com tanta exuberância como alguns que já existiam
em outras cidades do país. Tinham a simplicidade da arquitetura bandeirista, e era
comum não terem mais que um pavimento superior.
No século XVIII, o trabalho nos engenhos de produção de açúcar,
rapadura, melado e aguardente promoveu o aumento da população negra no
planalto paulista e a consequente inclusão de novos rituais religiosos e algumas
mudanças culturais no cotidiano da população colonial. Alguns negros realizavam
cultos religiosos clandestinos com rituais de feitiçaria, outros realizavam cultos
abertos ao redor do chafariz da Misericórdia, local de reunião dos escravos negros
(MORSE, 1970). Mesmo assim, pelo fato de os negros terem chegado tarde à
composição da comunidade paulista, pouco contribuíram para a vida cotidiana e
para a cultura da região, muito marcada ainda pela grande influência branca e
mameluca.
O enriquecimento da classe social dos produtores de açúcar teve
consequências em toda a região: o crescimento maior na área urbana e nas vilas
ao redor, o aumento do consumo e das atividades dos comerciantes, a introdução
do trabalho artesanal doméstico e o aumento da compra de escravos negros.
Então, a partir da segunda metade do século XVIII, esse novo cenário passou a
interessar também aos mineiros que, desiludidos com o esgotamento do ouro em
suas terras, começaram a migrar para a região de São Paulo.
A mudança da função da fazenda bandeirista para o engenho de açúcar e
a instalação de grande número de mineiros no planalto provocaram algumas
alterações na arquitetura rural, mas pouco na arquitetura das casas urbanas. Com
31
a cultura mineira, chegou ao centro de São Paulo a técnica de construção em
taipa de mão, ou pau a pique, já muito usada nas terras das Minas Gerais.
Trouxeram, também, o uso da estrutura de “gaiola” (LEMOS, 1999b), pois haviam
aprendido a execução da técnica de “gaiolas” em madeira com os engenheiros
militares portugueses, que desenvolveram esse novo método estrutural para
proteger melhor as edificações, depois do terrível terremoto ocorrido em Lisboa,
no ano de 1755. Porém, com o passar do tempo, as técnicas paulistas e mineiras
misturaram-se, e muitas construções do final do século XVIII passaram a utilizar
grossas paredes externas em taipa de pilão e paredes internas e divisórias em
taipa de mão. Além dessas técnicas construtivas, com os mineiros apareceram,
também, o forro de madeira, as sacadas mais salientes e o desenho curvo das
vergas sobre as portas e janelas, quebrando um pouco o aspecto rude e de linhas
rígidas bandeiristas dos sobrados e casebres urbanos da época.
1.5 O programa do sobrado colonial
O programa dos sobrados apresentava poucas diferenças em relação ao
dos casebres. Aliás, era um programa funcional muito parecido em todo o país
(REIS FILHO, 2011). Isso se explica pelo desenho estreito e comprido das casas e
pela implantação de residências geminadas com telhados de duas águas no
modelo urbano português. Era difícil fugir ao modelo padrão formado por uma sala
de receber (ou sala de visitas), logo à entrada, acessível através da porta
principal; um corredor que saía dessa sala e acessava os dormitórios sem janelas,
chamados também de alcovas ou camarinhas; e, ao fundo, a varanda, espaço de
transição para o quintal. Esse modelo era bem semelhante, em sua organização,
às casas bandeiristas.
Os sobrados eram casas urbanas de propriedade dos fazendeiros e
comerciantes abastados. Sua arquitetura permitia que o morador deixasse todo o
pavimento térreo para usá-lo como um estabelecimento comercial.
32
Fig.1 – Modelos de fachadas dos sobrados coloniais de São Paulo reproduzidos pelo
historiador José Wasth Rodrigues (1990).
a) Padrão mais simples b) Padrão senhorial com sacada de ferro e esteios para luminárias c) Padrão com último andar em forma de água-furtada d) Padrão com dois andares (modelo muito raro em São Paulo) e) Padrão com quatro águas no telhado e quatro águas furtadas dispostas em
cruz
33
Caso o morador não fosse um comerciante, deixava normalmente o espaço térreo
vazio (REIS FILHO, 2011), pronto para acomodar seus escravos e seus animais.
O acesso da rua à edificação era por algumas portas que se abriam para a loja e
por outra porta, de onde saía um corredor lateral que ia até o fundo do terreno e
também levava a uma escada que permitia o acesso ao pavimento superior.
Nesse piso superior, outro corredor ligava a sala de visitas, localizada à frente da
casa, à varanda ou “sala de viver”, aos fundos. Anexo à varanda no piso superior
ou sob um telheiro no quintal, havia um espaço destinado somente à preparação e
cozimento dos alimentos, a cozinha. Na área central, entre a sala de visitas e a
varanda, o corredor era ladeado pelas portas de acesso às alcovas. Ao fundo do
terreno, assim como nos casebres, ficava o quintal.
Fig.2 – Perspectiva modelo do sobrado
34
PLANTA PAVIMANTO TÉRREO PLANTA PAVIMENTO SUPERIOR
Fig.3 – Plantas do pavimento térreo, à esquerda, e do pavimento superior, à direita.
Legenda:
1 – loja 2 – corredor 3 – sala de visitas 4 – alcova 5 – varanda (ou sala de viver) 6 – cozinha e serviços
A sala de visitas (ou sala de receber, como era mais conhecida nos
casebres) tinha a função social de receber os amigos convidados e os visitantes
“estranhos”, bem como o ambiente onde aconteciam as comemorações da família,
os almoços e jantares especiais.
35
A entrada nesses espaços da casa não permitia o acesso físico e visual
do visitante ao setor privativo e de serviços da casa. Em dias de visitas, as
mulheres recolhiam-se em suas alcovas ou na varanda, ao fundo da casa, para se
esconderem dos olhos abusados dos visitantes “estranhos”.
A pequena casa urbana e a da roça, no entanto, têm ambas em seus organogramas funcionais, absoluta identidade – possuíam os mesmos critérios de morar no que dizia respeito à segregação da mulher, dona de uma área indevassável pelos estranhos. O resguardo da família era fundamental na organização do programa, como atestam conhecidos depoimentos dos séculos XVIII e XIX, quando se referem às práticas muito
antigas da sociedade apartada de todos (LEMOS, 1999b, p.21).
Alguns comerciantes mais humildes, principalmente os artesãos, usavam
a sala de recepção também como um espaço de trabalho. Porém, aqueles mais
abastados tinham a condição de construir os seus sobrados e podiam separar
melhor a área de trabalho da área social da casa.
Durante os três primeiros séculos de São Paulo, o interior dos sobrados,
assim como das demais casas urbanas ou casas rurais, foi desprovido de luxos e
requintes. As casas, em geral, tinham poucas mobílias, e as poucas que havia
tinham prioridade em seu aspecto funcional, constituindo-se em “caixas” de
madeira, baús, poucas mesas e cadeiras, bufetes, catres ou camas. Nas salas de
visitas, apesar de seu caráter social, não havia mobiliários bonitos e luxuosos.
Porém, nos sobrados da cidade do final do século XVIII, já era comum encontrar-
se um sofá com assento de palha e três ou quatro cadeiras dispostas em alas
rigorosamente paralelas. Quando havia visitas das quais as mulheres podiam
participar, os homens sentavam-se nas cadeiras, e as senhoras, nos sofás
(BRUNO, 1991).
Os sobrados tinham o pavimento térreo em terra batida, assim como nos
casebres, mas o pavimento superior era um assoalho estruturado por grossos
barrotes de madeira. A madeira preferida dos forros e assoalhos era, por sua
durabilidade, a canela-preta.
As alcovas eram pequenas, abafadas e escuras. Por estarem no centro
da casa, longe das portas e janelas, e pela necessidade do resguardo das moças
e senhoras da casa, elas não eram ambientes agradáveis e tinham suas funções
36
de descanso e resguardo. Nas alcovas ocorria também a limpeza íntima dos
corpos dos moradores, que era feita através de tinas e jarros de água e com
panos molhados.
Essas alcovas tinham normalmente forros de madeira e, acima deles,
funcionava um espaço de depósito da casa.
Era muito comum, em casas urbanas ou rurais, a existência de alguns
quartos de hóspedes. Nos sobrados, as alcovas e quartos de hóspedes ficavam
no pavimento superior, e os quartos dos escravos sempre no piso térreo.
Até o século XVII, as mulheres dormiam em catres, e os homens, em
redes. Na região de São Paulo, ainda uma região muito pobre nesse período
colonial, as camas apareceram somente na metade do século XVII, como símbolo
Fig.4 – Gravura “Uma Sala de Estar em São Paulo” do pintor Thomas Ender de 1817, registrando o
despojamento de móveis e objetos no ambiente. Próximos às janelas, existem blocos fixos funcionando como bancos de uso das moças e senhoras da casa para a observação do movimento na rua através das rótulas.
37
de riqueza e poder (DONATO, 2005). As redes, influência do modo de vida dos
índios, eram utilizadas não somente nas alcovas, mas também nas varandas das
casas urbanas e rurais. Seus ganchos eram presos em estruturas de madeira
separadas das paredes da casa, pois a taipa de pilão não era capaz de reter os
pontos de fixação.
A varanda dos sobrados era constituída por espaços grandes, geralmente
com o seu comprimento igual à largura do terreno da casa. Tinha funções muito
importantes, pois era não somente um espaço de transição, mas também de
preparação e cozimento dos alimentos. Era, ainda, utilizada pela família como um
ambiente de convivência, para sentar-se à mesa e alimentar-se no dia a dia, daí
ser chamada também de “sala de viver”. Em alguns inventários pesquisados no
período colonial, foram encontradas descrições de algumas tripeças2 nessas
varandas, principalmente nas casas rurais. Eram peças utilizadas no ato de cozer
(LEMOS, 1999b; SAIA, 1995), e a sua montagem na varanda ou no quintal
permitia que o cozimento dos alimentos não ocorresse em um local único da casa.
Porém as varandas não possuíam nenhuma peça fixa de uso para o cozimento,
como um fogão ou uma lareira. Eram apenas espaços de apoio à cozinha e
deveriam ser ótimas para essa função devido à sua ventilação uma vez que
tinham janelas voltadas ao quintal ou eram espaços bem vazados, com somente
um guarda-corpo de balaústres simples em madeira de canela-preta. Essa
madeira, muito utilizada em todo o período colonial nas casas bandeiristas,
passou, então, a ser muito rara no século XVIII. Daí para frente foi necessário o
uso alternativo de madeiras inferiores na construção de casas, como
principalmente a peroba, a arindiúva e a maçaranduba (SAIA, 1995).
As varandas eram um espaço muito utilizado pelas mulheres da casa,
pois lá elas estavam protegidas e escondidas dos olhares de visitantes, um lugar
de onde elas podiam vigiar as crianças nos quintais e também realizar muitos dos
seus serviços domésticos.
2 Na casa bandeirista, a “tripeça” costumava ser uma estrutura triangular de blocos de terra apoiados no chão,
usada como base para as panelas de cerâmica.
38
O trabalho da mulher colonial, até o século XVIII, estava vinculado a tudo
que era doméstico e familiar: administrar a casa, preparar alimentos, cuidar das
crianças e vigiá-las. Ou seja, enquanto o homem cuidava do exterior, ela cuidava
de tudo que pertencia ao interior da casa. Tanto nas varandas das casas de
engenho, quanto nos sobrados urbanos da época, era comum encontrar as
senhoras, as mocinhas e as escravas reunidas ali para trabalhar ou conversar.
Porém, nesses momentos, era normal que houvesse uma divisão espacial entre
as mulheres brancas e as negras (LEMOS,1999b). Na varanda sempre havia
mesas e bancos de madeira, e lá se produzia artesanato caseiro, panos de
algodão, roupas, redes, chapéus de feltro, sabão, óleo de combustível, xaropes,
remédios e utensílios diversos para uso doméstico; preparavam-se doces e
realizavam-se diversos outros trabalhos relacionados à produção de alimentos na
cozinha.
No final do século XVIII, o cozimento de alimentos nas casas urbanas
deixou de ser ambulante ou de acontecer fora do corpo da casa, como faziam os
índios, e passou a ocorrer em um único local, a cozinha, sempre localizada ao
lado da varanda, muitas vezes como um “puxado” da casa e sob um telheiro.
Os portugueses pouco contribuíram no desenho da cozinha paulista e na
organização desse espaço dentro da casa colonial. Enquanto os portugueses
estavam acostumados ao uso do “fogão-lareira” dentro da casa para cozer seus
alimentos e aquecer os ambientes, os índios estavam acostumados a montar suas
fogueiras fora de suas ocas (LEMOS, 1976). Os índios faziam fogueiras dentro de
suas ocas somente com a função de enfumaçar a área interna e expelir os
insetos, mas a preparação dos alimentos acontecia sempre fora. Porém, como
afirma Carlos Lemos em sua obra “Cozinhas, etc.” (1976), esse hábito não foi algo
tão difícil de ser absorvido pelos portugueses, pois eles já conheciam esse
costume dos mouros de cozinhar ao relento nas terras ibéricas, e também o calor
tropical favorecia o retiro de qualquer aparelho de aquecimento da área central da
casa.
39
O lugar do fogo caseiro, antes de tudo, sempre foi em função do clima. Na Europa, fria e temperada, o lar3, centro primordial da família, ocupou lugar privilegiado na habitação. O português, do Norte ou do Sul, veio acostumado ao lume e ao trafogueiro internos, à trempe e à lareira da “casa de estar e comer”. No trópico, passou a cozinhar no quintal, conforme a usança indígena, e comer na varanda fresca. O índio, por sua vez, que cozinhava ao relento, no interior da morada rústica acendia o fogo fumacento de madeira verde, de cascas especiais, para defender-se dos mosquitos atormentadores. Ambos os povos conheciam o fogo dentro de casa: um na sua terra de origem, talvez por causa do frio, e o outro, para aproveitar a fumaça incômoda, mas útil. O português logo se esqueceu do fogo interno para aquecimento e aproveitou a fogueira externa do índio –
pois aqui o fogo entre quatro paredes lhe era insuportável (LEMOS, 1976, p.51 e 52).
Além disso, o serviço culinário estava diretamente ligado ao trabalho
escravo, o que também favoreceu o maior afastamento possível da cozinha em
relação à zona de habitação das casas coloniais, principalmente dos sobrados.
Enquanto os casebres mantinham suas cozinhas dentro da casa, como um
espaço de grande importância, os sobrados da elite social expulsavam a cozinha
para o fundo da casa e pouco se preocupavam com a qualidade da construção
desses ambientes. Suas paredes eram mal feitas e mal acabadas, bem diferentes
do resto da casa. Enquanto o caipira mameluco se reunia com a família e seus
amigos ao redor do fogo para conversar, os colonos e comerciantes abastados
afastavam-se do fogão e da cozinha da casa, utilizada somente por seus
escravos.
Nessas cozinhas do século XVIII, podiam-se encontrar utensílios de ferro,
latão, cobre, estanho, porcelana, madeira e alguns poucos em prata. Objetos em
vidro ainda eram raríssimos (DONATO, 2005). Se os portugueses não
contribuíram tanto para a arquitetura e organização desse espaço, pelo menos
trouxeram certos utensílios para a cozinha paulista e brasileira, além de
contribuições para o cardápio.
Existem alguns objetos de cozinha herdados dos índios e que, até hoje,
podem ser encontrados em uso nas cidades do interior paulista. O jirau4 é um
3 A palavra “lar”, utilizada no texto de Carlos Lemos, tem uma ligação direta com a palavra “lareira” e
expressa o calor sentimental e físico da casa. Essas duas palavras têm suas raízes no nome do deus romano
Lares, que protegia as famílias e era simbolizado pelo fogo aceso dentro de suas casas. 4 O jirau é uma grade de varas sobre esteios fixados no chão, usado, principalmente, para assar ou secar a
carne sob o sol, ou para defumá-la sobre o fogo da lenha e conservá-la por mais tempo.
40
exemplo desses objetos da cultura indígena, que foi absorvido pelos portugueses
e utilizado em suas cozinhas para a defumação da carne (LEMOS, 1976).
Na cozinha, para os serviços de preparação dos alimentos e limpeza dos
utensílios, é indispensável a água. Por isso, era fundamental que fosse buscada
em rios, riachos e chafarizes próximos e armazenada em potes para o uso diário.
A limpeza de objetos da casa, em geral, era feita ao fundo da casa, no quintal, ao
lado do “puxado” da cozinha. A água era guardada também para a higiene
pessoal, feita em gamelas e grandes bacias de latão, principalmente nos banhos
das mulheres e crianças, dentro de suas próprias alcovas. Os homens, na maioria
das vezes, banhavam-se nos riachos da região.
No quintal, era comum haver a latrina ou “casinha”, um espaço pequeno,
discreto e fechado, com um buraco no piso de terra para os moradores deixarem
ali os seus dejetos.
Os quintais dos sobrados eram áreas muito importantes aos moradores,
pois representavam a raiz da vida rural dentro de sua propriedade. Eram áreas
reservadas para hortas e pomares, e também locais onde as crianças brincavam
sob o controle de suas mães, dentro do perímetro da casa. Eram delineados por
cercados, que preservavam os fundos da casa, protegendo suas plantações e
impedindo que os seus animais fugissem (LEMOS, 1999b).
A fragmentação dos espaços de serviço ao fundo dos sobrados
transformou o quintal também em uma área de grande circulação dos escravos
para a distribuição dos mantimentos, a preparação da farinha de mandioca e o
tratamento dos animais domésticos. Era comum encontrar, no quintal, construções
avulsas com funções de depósito, despensa, galinheiro, quarto para os escravos e
pequenas cozinhas. Entretanto, todas elas eram sempre mal feitas, escondidas e
desprezadas pelos moradores dos sobrados (LEMOS, 1976).
41
1.6 A arquitetura da casa e a rua
Uma novidade no programa da casa do século XVIII foi o surgimento de
uma ligação direta da rua com o quintal. Anteriormente, no início da cidade, os
quintais não eram totalmente cercados e protegidos e, por esse motivo, havia
muitos animais soltos pelas ruas. Porém, a partir da segunda metade do século
XVIII, com o aumento da densidade demográfica urbana, as construções
passaram a ficar mais concentradas, a cidade mais fechada sobre si mesma, e os
muros de taipa foram garantindo o fechamento dos quintais (LEMOS, 1999b).
Dessa maneira, as novas casas começaram a ser construídas de forma geminada
em seus dois flancos, e a passagem da rua ao quintal, para o transporte de água,
mantimentos, animais e para o tráfego dos escravos, passou a ocorrer através de
um corredor de ligação “rua-quintal”, ou através de passagens obrigatórias pelas
portas dos cômodos do pavimento térreo, pois nem sempre havia esse corredor
na casa.
Uma outra novidade que apareceu nos sobrados do século XVIII foram as
sacadas ou balcões, peças que surgiram não somente por uma simples imposição
do partido arquitetônico, mas, principalmente, por uma nova necessidade de
abertura à área externa de maneira segura, criando, assim, um “posto de
observação” voltado à rua.
O centro urbano foi crescendo, e as ruas passaram a ter uma função mais
ampla do que simplesmente uma via de transporte, tornando-se locais da cidade
onde aconteciam os principais eventos públicos: festividades, procissões,
julgamentos e enforcamentos. Além disso, as ruas começaram a ser muito mais
usadas pela população como pontos de encontro no dia a dia. No início do século
XVIII, elas passaram a ter para a sociedade uma importância maior, inexistente
nos dois séculos anteriores. Então, as ruas de terra, danificadas pelas águas das
chuvas, sujas de lixo e excrementos de animais, repletas de ervas daninhas e
cheias de buracos, começaram a incomodar a população e os vereadores da
cidade. Cerimônias públicas e procissões eram prejudicadas pelo piso irregular e
pela sujeira, e era difícil caminhar à noite pelas ruas, quase sem nenhuma
42
iluminação e repletas de buracos. Dessa forma, através do poder municipal, a
sociedade começou a preocupar-se de maneira especial com essas áreas
públicas. Assim, os moradores passaram a ter um zelo maior pela parte da rua
frontal à sua casa, enxergando-a como continuação de sua própria moradia, e a
Câmara Municipal determinou a pavimentação das vias públicas, inicialmente com
pedras brutas (BRUNO, 1991). Como consequência desse novo significado das
vias públicas, as sacadas começaram a surgir no século XVIII, e passaram a ser
interessantes como “postos de observação” do movimento das ruas, da vida alheia
e dos principais eventos da cidade que ali ocorriam. Passou a ser chique e
atraente ter sacadas nas salas de visitas abrindo-se às ruas e, quanto mais
importante e movimentada fosse a rua da casa, maior atração e interesse oferecia
ao seu proprietário e visitantes.
Faz-se necessário explicitar que o termo “sacada” é usado para identificar
uma plataforma suspensa, “puxada” do perímetro da edificação, saliente à fachada
da casa e protegida por um guarda-corpo. Também é chamada de “balcão” ou
“varanda”. Quando as sacadas aparecem interligadas, constituindo um corredor de
circulação externa, dando acesso a algumas portas paralelas, forma-se, então, a
“galeria”.
Em São Paulo, por todo o século XVIII, as sacadas foram construídas
com piso de madeira, suportado por cachorros também de madeira, desenhados
nas pontas dos grossos barrotes que formavam a estrutura para o assoalho do
piso superior e saíam além do plano da fachada para suportar a sacada.
Possuíam um guarda-corpo em madeira, preferencialmente de canela-preta,
estruturado por balaústres ou treliças e, em algumas situações, suportando acima
dele um painel de muxarabis, cobrindo todo o resto do vão até a altura do beiral.
43
Fig.5 e 6 – Janela com abertura para fora (figura à esquerda) e sacada com guarda-corpo treliçado (figura à direita) de casas coloniais da região urbana central de Santana de Parnaíba, São Paulo.
Fig.7 – Fachada de um sobrado colonial da região urbana central de Santana de Parnaíba,
São Paulo. Uma das poucas peças coloniais residenciais ainda existentes hoje, na região.
44
O muxarabi era um anteparo de origem mourisca, trazido ao Brasil por
portugueses ou espanhóis, formado por treliças de madeira para uma vedação,
que favorecia a circulação do ar e barrava os excessos dos raios solares e os
olhares indiscretos dos transeuntes das ruas (MELLO, 1973). Dessa forma, os
muxarabis permitiam aos moradores da casa, principalmente às mulheres, o uso
da sacada como um “ponto de observação”, permitindo a visão de fora e
impedindo a de dentro.
O uso de rótulas nas janelas e dos muxarabis em algumas sacadas
indicava uma cerimônia social parecida com aquela existente nas residências
rurais, onde se usava o alpendre como um “filtro” para a casa. Esse padrão de
sociabilidade caracterizava as tradições comportamentais daquela sociedade
patriarcal e também se refletia nas roupas das mulheres de elite, com a imagem
retórica de ócio e pudor, além do uso de capas e véus resguardando as idas à
igreja (MARINS, 2001, p.73).
Fig.8 – Sobrado colonial do século XVIII, que pertenceu ao casal da aristocracia paulistana Martinho e Veridiana da Silva Prado, construído na rua da Consolação.
45
Frequentemente, entretanto, as mulheres não se mostravam, nem à mesa, diante dos hóspedes masculinos; saíam à rua sob a vigilância masculina, e usualmente para fins religiosos. Com poucas soirées e sem as rajadas de manias e modas estrangeiras a soprarem pela cidade, as moças casavam-se com apenas 13 a 14 anos e ocupavam-se
em casa a fazer bordados, rendas, doces, e à noite, a tocar violão e cantar (MORSE, 2001, p.60 e 61).
O sistema patriarcal queria as mulheres, sobretudo as moças, as meninotas, as donzelas, dormindo nas camarinhas ou alcovas de feitio árabe: quartos sem janela, no interior da casa, onde não chegasse nem sequer o reflexo do olhar pegajento dos donjuans, tão mais afoitos nas cidades que no interior. Queria que elas, mulheres, pudessem espiar a rua, sem ser vistas por nenhum atrevido: através das rótulas, das gelosias, dos ralos de convento, pois só aos poucos é que as varandas se abriram para a rua e apareceram os palanques, esses mesmos recatados, cobertos de trepadeiras (FREYRE, 2004, p.317).
Além das sacadas, era também comum encontrar nas fachadas,
principalmente dos sobrados, os mirantes. Eram pequenas janelas situadas abaixo
dos frechais, sob os beirais voltados à rua, vãos característicos da arquitetura
Fig.9 – Sacada com muxarabi desenhada,
em 1932, pelo cartunista Belmonte.
46
bandeirista, que indicavam a presença de um sótão sobre a área social da casa,
usado como mais um espaço de depósito.
Pode-se ver, no organograma apresentado a seguir, características
típicas desses sobrados coloniais do século XVIII, com destaque: à posição
central das alcovas na casa, sendo, por isso, sempre um ambiente fechado e
escuro; à importância da varanda também como um espaço de convivência
familiar e de circulação da casa, além de sua função de apoio à cozinha; à
existência de sobreposição de funções na maioria dos ambientes; e à necessidade
de um pavimento térreo e outro superior, como recurso de segregação,
fundamental para a convivência de duas camadas extremas da sociedade sob o
mesmo teto.
47
1.7 Organograma padrão do sobrado colonial
48
2. As casas ecléticas
“Eis me em São Paulo, na terra de Azevedo, na bela cidade das névoas e das mantilhas, no solo que casa Heidelberg com a Andaluzia.” – Castro Alves
2.1 As transformações econômicas, sociais e culturais
Na passagem do século XVIII para o XIX, o açúcar era um dos mais
importantes produtos na economia da região de São Paulo. As cidades do
“quadrilátero”, a oeste, e as cidades ao norte e noroeste de São Paulo
continuavam recebendo muitos migrantes mineiros vindos das terras decadentes
do ouro. Eles chegavam, tomavam posse de seus lotes e ocupavam-se com
plantios de subsistência e criações de gado nas terras ao redor da cidade de São
Paulo.
O café já existia em algumas áreas rurais do país desde as primeiras
décadas do século XVIII e foi se disseminando por todo o século, porém o seu
consumo ficava restrito ao seu local de produção. Nas últimas décadas do século
XVIII, começou a ter uma importância econômica maior, e a procura mundial pelo
produto brasileiro, principalmente por parte dos norte-americanos, aumentou
bastante (MORSE, 1970). Portanto, o século XIX, na cidade de São Paulo, foi
marcado pela chegada do café e pelas transformações urbanas decorrentes do
crescimento econômico por ele provocado.
Com o desenvolvimento da cultura cafeeira na região de São Paulo,
sobretudo nas áreas do Vale do Paraíba e no Oeste Paulista5, no século XIX,
surgiram dois novos problemas que passaram a colocar em risco o acelerado
crescimento da lavoura do café: a escassez da mão de obra escrava e a grande
distância entre as áreas de plantio e o porto de Santos. Para resolver esses
problemas, foi necessário pensar em algo ainda inédito no país: a mão de obra
livre e o transporte ferroviário (SETÚBAL, 2004a).
5 O nome conhecido como “Oeste Paulista” refere-se à região oeste ao Vale do Paraíba e não à área do estado
de São Paulo.
49
Na verdade, esses e outros problemas começaram a aparecer por uma
razão muito clara: a nova escala de produção econômica nunca antes
experimentada pelos paulistas. Esse momento criou, então, novos grupos de
interesses, novas ideias e aspirações próprias, destoantes daquelas das
oligarquias existentes da época. E o Estado, com todas as suas características
tradicionais, não era mais capaz de atender às novas expectativas políticas e
econômicas dentro daquele contexto transformador (SETÚBAL, 2004a).
Assim sendo, surgiu a ideia republicana baseada no interesse desses
novos grupos econômicos, formados principalmente pelos grandes cafeicultores
paulistas, interessados em abolir o trabalho escravo e, consequentemente, abolir a
monarquia. Dessa forma, os grandes fazendeiros do planalto paulista pensaram
em descentralizar o poder e beneficiar os seus próprios negócios, incluindo
impostos sobre a exportação do café e revertendo-os às elites das regiões
tradicionais (SETÚBAL, 2004a).
Portanto, ainda que toda essa região do planalto estivesse há quase três
séculos inserida em um pacato cenário, o século XIX foi marcado por grandes
mudanças, que fizeram a cidade de São Paulo dar um grande salto em sua
história e transformar-se no mais importante núcleo econômico do país.
A elite dirigente passou a preocupar-se com o desenvolvimento de um
sistema educacional capaz de formar uma classe responsável pelas atividades
político-administrativas e pelos negócios econômicos de São Paulo,
principalmente após a independência do país, em 1822. Assim, em 1828, ocorreu
a inauguração da Academia de Direito, que passou a ser o centro intelectual e vital
da cidade. Como disse o historiador Richard Morse (1970): “(A academia) atraía
alunos e professores de todo o país e de fora. Com estes vieram necessidades e
atitudes que iriam lançar o fermento na comunidade introvertida”.
Com a criação da academia, surgiram novos costumes, novas ideias
políticas e novos espaços culturais: teatros, jornais, livrarias, bailes, cafés e outros
pontos de reunião para a comunidade, além daquelas igrejas já existentes. Os
novos estudantes e intelectuais da cidade defendiam o crescimento de São Paulo
e colocavam-se contra alguns conceitos antigos e tradicionais da aristocracia
50
colonial, defendendo também a abolição dos escravos. Pela primeira vez na
história da cidade, a vida cultural e letrada estava se desvinculando do universo
limitado da igreja. Essa população de estudantes, flutuante e transitória na cidade,
criava choques com as autoridades policiais e espantava alguns moradores
tradicionais que insistiam em permanecer alheios ao “corpo da comunidade
acadêmica”. Porém, mesmo tendo sido um processo lento, a presença dinâmica
dos estudantes contribuiu, na primeira metade do século XIX, para a maior
produção de livros na cidade, muitos deles de autoria de alunos e professores da
Academia de Direito. E surgiram, também, os primeiros jornais diários (BRUNO,
1991).
2.2 As transformações urbanas
Nessa época, a maioria dos estudantes não era de São Paulo, por isso,
em geral, moravam em repúblicas, e a quantidade de espaços de moradia passou
a ser mais um problema na cidade. A população crescia e exigia uma província
maior, que acompanhasse o ritmo da nova época.
O impulso à modernização da sociedade, em todos os seus sentidos,
aconteceu também pela implantação da estrada de ferro, em 1867, pela
companhia inglesa The São Paulo Railway, ligando a estação da Luz e toda a
região cafeicultora ao porto de Santos. Além dessa ferrovia, foram construídas,
logo depois, a ferrovia Sorocabana, ao lado da estação da Luz, e a estrada de
ferro São Paulo–Rio de Janeiro, no bairro do Brás. A implantação dessas ferrovias
somente foi possível por causa do dinamismo da economia provocado pela
produção cafeeira. Com a sua construção, o planalto paulista deixou de ser uma
área isolada e escondida das demais regiões do interior paulista e do porto de
Santos, facilitando muito o contato com a Corte, no Rio de Janeiro, e,
consequentemente, com a Europa.
51
Com as novas ferrovias atuando como importante precipitante, os muitos agentes catalisadores que se tinham infiltrado na pequena cidade provinciana e pós-colonial, estavam, em 1870, a ponto de dar vazão a suas forças de crescimento. A incipiente expansão da metrópole, com tudo o que representava para os costumes, mentalidades e
almas dos paulistanos, estava a ponto de começar. (MORSE, 1970, p.209).
A expansão ferroviária contribuiu para o crescimento da cidade. Também
a aplicação de novos padrões urbanísticos e arquitetônicos caracterizados por
novas diretrizes de higienização do espaço urbano e novos conceitos de
modernidade desempenharam um papel decisivo. Foi criado um serviço de
limpeza contando com carroças para a coleta do lixo produzido nas casas mais
pobres. Começaram a ser tomadas medidas, na Câmara, para que houvesse um
melhor traçado e nivelamento dos pequenos e antigos largos dos tempos coloniais
(BRUNO, 1991).
A nova cidade passou a revelar-se com um desenho de ruas mais largas
e iluminadas, casas recuadas das vias de circulação e uma estética arquitetônica
diferenciada da colonial, marcada agora por construções mais ventiladas, um
partido arquitetônico influenciado por traços europeus e uma decoração
sofisticada.
Novas posturas aprovadas entre 1853 e 1857 pelo poder público
mostraram preocupações com o direito da rua: foi proibido amarrar animais nas
esquinas e batentes das portas das casas da Sé e Santa Ifigênia. Também ficou
estabelecido que as rótulas de portas, meias-portas e janelas não se podiam abrir
para fora; e proibiu-se, também, que trabalhadores, como alfaiates, sapateiros,
entre outros, exercessem seu ofício nas áreas de passeio, atrapalhando, assim, a
circulação dos transeuntes (BRUNO, 1991).
Naquela época, a cidade de São Paulo assistiu a uma grande mudança
em sua paisagem urbana, através da implantação de novos loteamentos, frutos do
parcelamento das chácaras existentes ao redor do centro urbano, com a formação
de novos bairros para a elite cafeeira, como Campos Elíseos e Higienópolis, e
para os novos trabalhadores nos bairros do Ipiranga, Brás, Vila Prudente, entre
outros.
52
O núcleo urbano, que pouco ultrapassava no começo do século dezenove os limites do “triângulo” tradicional, foi se ampliando em algumas direções, forçando o recuo das chácaras e dos matagais que dominavam até então certas zonas circunvizinhas. O acréscimo de população impôs então o retalhamento das terras de algumas dessas chácaras para formação de ruas e de largos ou edificações de casas. Ganharam ao mesmo tempo feição mais acentuadamente urbana bairros que até o começo do oitocentismo se caracterizavam, antes de mais nada, com áreas tomadas pelos sítios e
as casas de campo (BRUNO, 1991, p.556).
Todo esse crescimento físico representava o progresso material. João
Teodoro Xavier de Matos, que assumiu a presidência do país, no período de 1872
a 1875, incentivou bastante o embelezamento da cidade de São Paulo e as
transformações urbanas convergentes à nova mentalidade positivista da época.
Entretanto, a expansão da cidade ocorria de forma rápida, mas sem o
planejamento necessário. As únicas ruas para abertura de novos terrenos eram
produto de um sistema novo de vias retas com dezesseis metros de largura e
novas praças quadradas. Esse desenho em “xadrez” teve como resultado uma
cidade desarticulada e despreparada para conter o trânsito da época, cada vez
mais intenso. Várias ruas foram abertas, novas ligações entre bairros surgiram,
muitos alargamentos de ruas foram feitos e novos bairros foram criados, tudo isso
exigindo muitas desapropriações e demolições de edificações antigas. As ruas do
“triângulo” central da cidade receberam os primeiros paralelepípedos, porém a
largura estreita dessas ruas antigas já incomodava os moradores locais. (MORSE,
1970).
Em 1877, foi contratado o engenheiro Jules Martin para construir um
viaduto de cento e oitenta metros de comprimento sobre o vale do Anhangabaú,
para fazer a conexão do centro da cidade ao Morro do Chá, cuja chácara estava
sendo subdividida em lotes. Esse viaduto foi chamado de Viaduto do Chá,
inaugurado em 1892. Ele passou, então, a ligar o centro da cidade a novos bairros
ao redor e a funcionar como uma “válvula de segurança” para os
congestionamentos no “triângulo” central da cidade (MORSE, 1970).
Todas essas transformações que ocorriam no final do século
incentivavam os fazendeiros a transferirem as suas moradas para a capital.
Proprietários de grandes chácaras próximas ao “triângulo” central, os alemães
Frederico Glette, Martin Buchard e Victor Nothmann passaram a desfazer-se de
53
suas propriedades para lucrar bem mais com o arruamento e o loteamento dessas
áreas, transformadas nos bairros aristocráticos de Campos Elíseos e Higienópolis.
Os herdeiros de Antônio Pinto do Rego Freitas venderam também, por volta de
1893, a chácara que foi arruada e loteada, dando origem à formação da Vila
Buarque (MORSE, 1970).
A São Paulo Railway induziu a formação de uma faixa industrial,
margeando o rio Tamanduateí, criando, consequentemente, novos bairros mais
planos, que comportaram também as residências dos operários das novas
indústrias que surgiram na época.
A alta sociedade passou a viver em seus sobrados e utilizá-los de forma
mais frequente, e o centro da cidade passou a ser frequentado como área de
encontros para socialização, com discussões sobre questões políticas e negócios
comerciais. Portanto, cada vez mais, era necessário que o fazendeiro e o
comerciante do planalto paulista se abrissem a novos contatos, reuniões e
eventos da cidade, de forma bem diferente daquele fazendeiro “bicho do mato” da
era colonial. Até o final do século XIX, São Paulo não era ainda uma cidade de
importante papel na comercialização do café, pois os pontos principais de
entroncamento da malha ferroviária eram Campinas e Jundiaí, de onde o produto
saía direto para Santos. No entanto, a capital desempenhava importantes funções
estratégicas no financiamento da produção. Em São Paulo concentravam-se os
estabelecimentos bancários, dando origem a um mercado de capitais que foi
decisivo para o futuro financiamento da industrialização (SETÚBAL, 2004a).
O comércio varejista concentrava-se em duas ruas principais da cidade: a
rua da Quitanda e a rua das Casinhas (atual rua do Tesouro), onde aconteciam,
principalmente, vendas de farinha, arroz, milho, toicinho, carne seca, frutas secas,
hortaliças e grãos cultivados nas chácaras e sítios da área rural do planalto
(SETÚBAL, 2004a).
Na metade do século XIX, São Paulo já tinha o melhor sistema de água e
esgoto do país, superior até mesmo ao da cidade do Rio de Janeiro, porém ele
ainda não era suficiente para o grande número de moradores (BRUNO, 1991). O
abastecimento de água ainda não satisfatório na cidade era outro problema que
54
precisava ser resolvido. A captação de água ocorria nos chafarizes da cidade,
porém a aglomeração de pessoas em disputa nesses locais passou a ser motivo
de desordem e brigas, com a necessidade de um policiamento mais fortalecido.
Nessa época, a qualidade da água era muito ruim. Os tanques municipais que
serviam aos chafarizes da cidade eram abastecidos pelas vertentes do morro do
Caaguaçu, onde não havia fiscalização nenhuma, e muitas pessoas tomavam
banho, lavavam roupas e, até mesmo, animais mortos apareciam boiando nas
águas (BRUNO, 1991). Diante desse problema, nas últimas décadas do século
XIX, o poder público comprometeu-se a melhorar a qualidade da água com a
ajuda de engenheiros ingleses que orientaram a construção e a instalação de
novos tubos hidráulicos, caixas d’água e chafarizes para a cidade.
Ainda considerando a infraestrutura, no ano de 1872, os lampiões de
querosene da cidade foram substituídos pela iluminação a gás, servida pela
companhia São Paulo Gas Company, de Londres. Em 1888, já havia iluminação
elétrica nas ruas, instaladas por uma empresa húngara (MORSE, 1970, p.245).
A cidade crescia com seus problemas e preocupações. Mais pessoas,
mais casas, indústrias e lojas, pertencentes principalmente aos negociantes
estrangeiros. São Paulo começou a ter novas doenças e crimes, passou a ser
uma outra cidade, muito diferente daquela província do período colonial. Deixou
de lado o transporte de tropeiros em trilhas perigosas e buscou uma comunicação
mais fácil, confortável e lucrativa, como comentam, a seguir, os professores
Benedito Lima de Toledo e Carlos Lemos.
São Paulo estava deixando de ser uma cidade de tropeiros. Agora, o café chegava a Santos mais rapidamente. A viagem da fazenda para a capital é rápida e confortável. Será possível, sem grande transtorno, passar parte do ano em São Paulo e, talvez por que não?, morar na capital. O trem que desceu carregado de café pode agora subir com material de construção para se fazer uma casa igual àquela vista em alguma capital europeia. É possível morar com
desafogo e conforto na capital. Como na sede de fazenda, como na Europa (TOLEDO, 2012, p.77). O fazendeiro do café, por fim, definiu-se como um agricultor diferenciado, mais parecendo homem de cidade, e logo na segunda geração realmente tornou-se um ser urbano, sempre com outras ocupações, e foi igualmente médico, advogado, engenheiro, banqueiro, jornalista, especulador na bolsa e industrial. Frequentemente com um pé na Corte. Foi também político, influindo nos destinos do recém-fundado Império. Com isso
55
veio a engrossar a fidalguia chegada com Dom João VI, fornecendo à história os
chamados “barões do café” (LEMOS, 1999b, p.136).
As cidades com estações ferroviárias recebiam as novidades de forma
mais rápida. Portanto, no setor construtivo, São Paulo passou a receber não só
objetos decorativos da Europa, como também diferentes materiais para
construção e novos trabalhadores livres: os imigrantes europeus.
2.3 O uso do tijolo
A taipa de pilão foi, em São Paulo, a técnica construtiva considerada
nobre e a mais utilizada durante os séculos coloniais. Com a chegada dos
mineiros, no século XVIII, a taipa de mão passou também a ser muito utilizada.
Ambas as técnicas construtivas tiveram grande importância praticamente até o
final do século XIX. A alvenaria de tijolos conquistou vagarosamente o habitante
do planalto paulista, que se convenceu primeiramente da excelência da técnica e,
depois, da alteração estética que ela proporcionava. Inicialmente, mesmo usando
a nova técnica construtiva, era muito difícil distinguir a terra socada do tijolo, nas
paredes das casas.
A abolição da escravatura, provavelmente, foi o golpe final no uso das
taipas. Pode-se dizer, também, que o café foi responsável direto pela chegada e
pela popularização do tijolo em São Paulo. Somente ele permitia obras de
construção rápida e durável para o beneficiamento do café, como aquedutos,
muros de arrimo e calçamento de terreiros para secagem dos grãos (LEMOS,
1989; 1999b). Desde o início do século XVII, os paulistas já conheciam o tijolo de
barro, porém ele era utilizado somente em situações muito especiais. A partir da
metade do século XIX, o tijolo passou a ser, muitas vezes, uma peça importada da
Europa e, somente ao final do século, surgiram olarias ao lado das pequenas
fábricas de telha canal de cerâmica ao redor de São Paulo.
Por outro lado, se antes faltava cal para a produção de cimento, foram
então instalados fornos para a queima do calcário da região, com a fabricação de
56
cal em cidades próximas, como Sorocaba e Santana de Parnaíba. No final do
século, com a estrada de ferro, São Paulo passou a receber também sacos de
cimento da Alemanha e da Inglaterra, e, consequentemente, apareceram anúncios
de imigrantes alemães e italianos, que constituíam a mão de obra especializada
para o uso da nova técnica (LEMOS, 1999b).
Portanto, demorou, mas já a partir de 1870, as taipas eram vistas como
técnicas construtivas rústicas, antiquadas e feias, e os artífices estrangeiros, com
suas técnicas consideradas “mais civilizadas” pela sociedade, passaram a difundir
o uso do tijolo e a dominar o ramo das construções (MORSE, 1970).
As técnicas italianas do uso do tijolo foram as que dominaram a cidade
nas primeiras décadas de expansão da técnica, com um estilo já bem diferenciado
daquele dos pedreiros portugueses. Porém, essa diferença era, inicialmente,
apenas de ordem técnica. As mudanças estéticas causadas pelo uso do tijolo
realmente apareceram mais tarde, ao final do século, quando os novos
fazendeiros e comerciantes ricos da cidade passaram a aceitar o novo modelo
arquitetônico europeu, mais suntuoso.
Somente no último quartel do século XIX, o uso dos tijolos acabou
conquistando e convencendo os paulistas. Porém, mesmo aceitando a nova
técnica, a maioria dos moradores da cidade de São Paulo ainda buscava manter a
plástica das taipas, sem a preocupação de usufruir das vantagens que a alvenaria
de tijolos poderia proporcionar. Por exemplo, apesar do uso dos tijolos, a distância
entre os vãos das janelas era mantida como antes, isto é, ainda era importante
conservar o partido arquitetônico colonial (LEMOS, 1999b).
2.4 As arquiteturas neoclássica e eclética
No ano de 1816, a convite de D. João VI, veio ao Brasil um grupo de
artistas e artífices franceses, liderado por Joachim Lebreton. A vinda desse grupo
ficou conhecida como a Missão Artística Francesa. Eles trouxeram ao Brasil
princípios artísticos e culturais aplicados na França na época da Revolução e do
57
Império, que ficaram conhecidos como Neoclassicismo. Esse movimento cultural
surgiu na Europa no início do século XVIII, com base nos ideais do Iluminismo e
como reação contrária aos excessos criados pelo barroco e o rococó, renovando o
interesse pela cultura da antiguidade clássica (BRUAND, 2010).
A Missão Artística Francesa apresentou o Neoclassicismo na cidade do
Rio de Janeiro, e essa expressão cultural foi bem aceita, pois passou a simbolizar
a modernidade da época e a imagem de um novo país, após a conquista da
liberdade sobre o poder de Portugal (LEMOS, 1989).
A arquitetura neoclássica propunha a retomada de formas renascentistas
das arquiteturas grega e romana e a utilização de desenhos regulares,
geométricos e simétricos dentro das normas clássicas e rígidas de Vitrúvio: era
uma arquitetura constituída por abóbodas, cúpulas, platibandas, cornijas e
frontões triangulares.
Em São Paulo, esse novo movimento cultural veio com atraso em relação
ao Rio de Janeiro e, quando chegou, foi recebido com certa resistência, pois o
planalto paulista acolhia uma sociedade ainda bem tradicional, dominada por
grandes comerciantes e fazendeiros cafeicultores conservadores. Para os
paulistas, de modo geral, era difícil substituir a estética colonial de séculos e
também trocar a técnica construtiva da taipa pela da alvenaria de tijolos.
Durante toda a primeira metade do século XIX, a cidade de São Paulo
manteve o mesmo padrão estético, a técnica construtiva e as necessidades
domésticas da casa colonial. Ao longo das ruas, no centro da cidade,
aglomeravam-se os sobrados de um andar e, alguns raros, de dois andares. Ao
longo das ladeiras de acesso à região central, crescia o número de casas térreas
da população mais humilde. Porém, sobrados e casebres continuavam sendo
construídos em taipa de pilão e taipa de mão (MORSE, 1970).
Rótulas e muxarabis foram retirados das fachadas das casas no Rio de
Janeiro e em outras muitas cidades do país por ordem da Corte, no início do
século XIX, mas, em São Paulo, esses elementos marcantes da arquitetura
colonial mantiveram-se presentes por todo o século e desafiaram as posturas
58
municipais por razões climáticas, sociais e psíquicas (MORSE, 1970), contribuindo
também para a resistência ao novo partido arquitetônico neoclássico.
Se em São Paulo foi demorada a substituição da técnica construtiva e a
aceitação das alterações do partido arquitetônico, demorou também a percepção
da necessidade de mudanças no programa interno das casas. Essas mudanças
só aconteceram nas últimas duas décadas do século XIX, devido à grande
presença dos imigrantes na cidade e à chegada do Ecletismo.
Como diz Carlos Lemos (1989): esse novo estilo presente na arquitetura
paulista, o estilo eclético, era a arquitetura neoclássica desregrada e despoliciada.
Não havia, na época, respeito à autenticidade da arquitetura nacional, pois era
tudo copiado da Europa e produzido pela mão de obra imigrante de maneira livre à
imaginação (LEMOS, 1989).
Hoje, quase não existe mais registro de casas originais nesse modelo
descrito na cidade de São Paulo, a não ser através de algumas poucas
fotografias. Porém, Carlos Lemos afirma, com certeza, que se têm como exemplos
dessa arquitetura as casas encontradas em cidades próximas a São Paulo.
Acontece que tudo foi inexoravelmente demolido, quando a cidade de taipa foi totalmente substituída pela cidade de tijolos. Não sobrou um registro sequer, a não ser as fotos de Militão. No entanto, temos convicção de que as afirmativas referentes às casas de Campinas, Taubaté ou São Luis do Paraitinga, por exemplo, são extensíveis às casas de São Paulo, mesmo porque nunca tivemos notícia de alguma singularidade
própria do morar paulistano por essa época (LEMOS, 1999, p.222).
O Ecletismo é um termo referente ao último quartel do século XIX, que
passou a significar “bom gosto” e “modernidade”, ambos baseados na nova
estética erudita e civilizada produzida na Europa daquela época.
Na arquitetura, o Ecletismo refere-se aos estilos surgidos durante o século
XIX, que exibiam combinações de elementos presentes nas arquiteturas clássica,
medieval, renascentista, barroca, entre outros estilos históricos, sem o
compromisso de seguir as normas estéticas das arquiteturas passadas (SEGAWA,
2010) e aproveitando os últimos avanços tecnológicos da engenharia e da
59
Revolução Industrial, como por exemplo, os primeiros usos de estruturas em ferro
forjado nas construções.
Esse estilo arquitetônico era o modelo praticado pela Escola de Belas
Artes (École des Beaux Arts) de Paris, nessa época, a referência artística no
mundo. E, se os fazendeiros e comerciantes do início do século XIX haviam sido
resistentes à arquitetura neoclássica, a nova geração da burguesia paulistana e os
imigrantes da cidade estavam de olhos voltados para Paris e adotaram o
Ecletismo como o modelo arquitetônico ideal e do “bom gosto”.
Esse novo gosto, repleto de novidades, começou a chegar através de
novos mobiliários, tecidos finos, papéis de parede, porcelanas, cristais, objetos
decorativos e novos equipamentos, como os fogões de ferro, considerados mais
econômicos. Também as geladeiras para a conservação dos alimentos; as
luminárias a gás; e as peças sanitárias em porcelana inglesa, esmaltadas e
ornamentadas com ladrilhos do repertório art nouveau. (LEMOS, 1999b).
Assim, a exemplo da França e toda a Europa daquela época, o Ecletismo
trouxe à casa da elite paulistana uma decoração bem diferente de tudo que havia
antes, numa busca de intimidade e conforto para seus moradores. Essa casa do
final do século XIX passou a ter o seu interior mais valorizado e, com isso,
surgiram novos móveis com desenhos mais funcionais, novos materiais e
tecnologias decorrentes da Revolução Industrial (DEJEAN, 2012). Conforme
palavras de Carlos Lemos (1999b, p.252): “A casa tradicional recebeu entre suas
taipas velhas as novidades do gosto novo. A modernização começou pelo interior
das moradias. De dentro para fora".
O conforto, o luxo e a privacidade passaram a ser fundamentais dentro da
casa, similar à burguesia francesa da época, que representava o “modo ideal” e
“moderno” de se viver, já disseminado por vários países da Europa desde os fins
do século XVII (DEJEAN, 2012).
A prova mais evidente de que a maneira de viver estava passando por uma revolução foi o fato de o francês ter se tornado a primeira língua moderna a desenvolver um vocabulário relativo ao conceito de conforto. As primeiras indicações de que a mudança pairava no ar surgiram nos anos 1670; duas palavras ganharam destaque e, embora não
60
fossem novas, começaram a ser usadas de modo diferente: o adjetivo commode (cômodo) e o substantivo commodité (comodidade) originalmente indicavam conveniência e limpeza, sobretudo na esfera pública; serviços públicos como a limpeza das cidades eram commodités originais. Da década de 1671 em diante, essas palavras passaram a ser cada vez mais usadas no âmbito doméstico, para se referir à higiene pessoal e para designar tudo o que promovesse a sensação de conforto e bem-estar
(DEJEAN, 2012, p.16).
Os edifícios públicos da cidade logo foram reconstruídos sob a visão da
arquitetura eclética, e o principal nome na construção desses novos edifícios foi o
engenheiro-arquiteto Ramos de Azevedo. As igrejas antigas, feitas em taipa de
pilão, segundo os rudes moldes coloniais, como a Igreja de Santa Ifigênia, a Igreja
de São Bento, a Igreja da Sé6 e outras da época, desapareceram para dar lugar a
novas construções com feições europeias consagradas, de acordo com o novo
modelo que a cidade buscava assumir (BRUNO, 1991).
Assim, nas últimas décadas do século XIX, não somente por uma questão
estética, que buscava imitar o “bom gosto” europeu, mas também pela
necessidade do uso de novas técnicas construtivas, que faziam dos edifícios
construções mais resistentes ao tempo, a cidade de São Paulo foi praticamente
reconstruída em alvenaria de tijolos, perdendo muitos monumentos arquitetônicos
dos séculos anteriores.
O escritor José de Alcântara Machado comentou, em seu livro “Vida e
Morte do Bandeirista”, que as igrejas coloniais paulistanas não se equiparavam às
europeias na perfeição das linhas, no vistoso porte e nem mesmo na duração do
edifício, pela ausência do granito e outros elementos nobres e resistentes. Daí,
então, a necessidade da reconstrução ou reforma de quase todas (BRUNO, 1991).
Em 1896, na noite de 13 de março, um forte vendaval foi responsável por
rachar as paredes em taipa de pilão da igrejinha do Colégio dos Jesuítas e
danificar sua estrutura em madeira e seu telhado, exigindo a demolição do edifício,
6 No momento da demolição da antiga Igreja da Sé, foram retiradas largas e grossas tábuas de canela-preta do
assoalho, muito disputadas pelos moradores da região para a construção de mobiliários das suas casas
(BRUNO, 1991).
61
que já destoava das novas construções ao redor, por sua arquitetura antiga e
singela (BRUNO, 1991).
As reformas, porém, não se fizeram só nas igrejas e nos conventos. Também nas casas particulares. Ao lado das demolições e das edificações numerosas, em fins do século passado (fins do século XIX). Em 1884, Dona Veridiana Prado mandou edificar na colina de Santa Cecília, dentro de um belo parque, o seu elegante palacete, dando o exemplo a outras pessoas abastadas que começaram a edificar palácios nos subúrbios paulistanos. Arquitetos hábeis, como Ramos de Azevedo e Tomás Bezzi – escreveu Teodoro
Sampaio – foram mobilizados para esses empreendimentos. (BRUNO, 1991, p.929).
A “modernização” da casa paulistana realmente começou de dentro para
fora, mas, no início do século XX, esse novo modelo eclético já se revelava no
exterior das casas e se expunha às ruas da cidade, chamando a atenção pela
semelhança com a “paisagem urbana europeia”.
Na obra “Histórias e Tradições da Cidade de São Paulo”, Ernani Silva
Bruno (1991) comenta que escritores estrangeiros e viajantes, no início do século
XX, registraram, em seus textos, as transformações da cidade e a chegada do
novo estilo eclético, chamado, na época, por Monteiro Lobato, de “carnaval
arquitetônico”. Segundo os registros do francês Paul Walle, em seu livro sobre a
cidade de São Paulo “Au Pays de l’Or Rouge”, lançado em 1921, o novo bairro de
Higienópolis reunia tudo o que a cidade possuía de mais rico e mais distinto, um
grande número de casas suntuosas e luxuosas, porém também algumas
construções de gosto bizarro. O escritor Christopher Andrews fez comentários
sobre a nova cidade e suas vilas bonitas e extravagantes. O jornalista francês Max
Leclerc, em sua visita a São Paulo, na época da proclamação da República, já
havia registrado, em suas “Cartas do Brasil”, a presença de novos edifícios
caracterizados pela solidez e pela “moda europeia”. O jornalista argentino Manuel
Bernardez, em seu livro “El Brasil”, lançado em 1908, fez comentários sobre o luxo
das casas paulistanas. O italiano Nicolau Fanuele, em 1910, registrou, em seu
livro “Il Brasile”, a nova paisagem paulistana, que parecia a cidade de Nice e
algumas cidades italianas (BRUNO, 1991).
O Ecletismo em São Paulo, devido à forte presença de imigrantes
europeus, mostrava-se, assim, de maneira bem diversificada, com uma arquitetura
62
de linhas inspiradas em motivos alemães, ingleses, normandos, suecos e,
principalmente, italianos (BRUNO, 1991). Esse caráter da arquitetura paulistana
procurava apagar o estilo caipira, ou o “não-europeu”, em busca da vanguarda
europeia, que se diferenciava, na época, de outros centros urbanos do Brasil pelas
formas bizarras, exóticas e desordenadas, devido à liberdade do Ecletismo e à
diversidade cultural, presentes em São Paulo ao final do século XIX. Foi um estilo
adotado pelos novos fazendeiros e ricos comerciantes da cidade, manifestado
através de chalés suíços e palacetes luxuosos, que haviam chegado para atestar
a nova riqueza do café e a consequente frequência dos passeios à Europa dessa
elite social paulistana.
A riqueza proporcionada pelo cultivo do café nas terras paulistas acabou por alterar substancialmente muitos costumes e práticas culturais ali existentes. Da arquitetura aos objetos domésticos, dos modos de vestir aos de falar, pode-se dizer que o século XIX foi um período de verdadeira revolução, no qual traços comportamentais vindos do passado indígena, do período sertanista e dos tempos áureos do açúcar foram rapidamente justapostos ou mestiçados à intensa europeização permitida pelas imensas fortunas exportadoras, pela rapidez dos trens e, especialmente, pela entrada maciça de dezenas
de etnias de imigrantes (Paulo César Garcez Marins - SETÚBAL, 2004b, p.133).
2.5 A higiene e o espaço habitacional
Esse período pós-colonial produziu grandes e radicais mudanças no
desenho da cidade, na área cultural e na economia, pois recebeu novos
moradores e manifestou novos modos de viver da população, refletidos em
alterações na arquitetura residencial.
A transição da economia colonial para a economia exportadora capitalista
passou a definir, de forma mais clara, as diferenças de classes sociais e,
consequentemente, as diferenças entre os partidos arquitetônicos e os programas
residenciais (LEMOS, 1989). Como disse o pesquisador Carlos Lemos (1999b,
p.134): “o café foi um verdadeiro divisor de águas na vida cultural em geral e na
civilização material em particular de São Paulo”.
63
Entre os anos de 1886 e 1900, a população da cidade de São Paulo
quintuplicou, passando de 44.030 para 239.820 habitantes, e o número de
edificações triplicou (MORSE, 1970). Surgiram novas formas de moradia: cortiços
e casas de operários para o uso da classe baixa do proletariado paulistano, e as
casas térreas e palacetes para as classes média e alta da sociedade.
A antiga arquitetura das casas coloniais, com sua baixa ventilação interna
e iluminação debilitada, e o crescimento acelerado da quantidade de cortiços na
cidade contribuíram para as péssimas condições de higiene em São Paulo e para
o consequente surgimento de novas doenças. A cidade via crescer o número de
cortiços, principalmente na região da Igreja da Sé e no bairro de Santa Ifigênia,
habitados por ex-escravos, ex-lavradores e imigrantes europeus.
(O cortiço-padrão) era formado por uma série de pequenas moradias em torno de um pátio ao qual vinha ter, da rua, um corredor longo e estreito. A moradia média abrigava de 4 a 6 pessoas, embora suas dimensões raramente excedessem 3 metros por 5 ou 6, com uma altura de 3 a 3,5 metros. Os móveis existentes ocupavam um terço do espaço. O cubículo de dormir não tinha luz nem ventilação; superlotado, à noite era hermeticamente fechado. Exceto nos cômodos de pessoas naturais do norte da Europa, o soalho ficava tão incrustado de lama, que não se viam as tábuas; a umidade do solo onde elas repousavam fazia descascar o papel ordinário e liso das paredes. Estas e os tetos eram pretos de sujeira de moscas e da fumaça do fogão que a chaminé mal feita e
mal conservada não eliminava convenientemente (MORSE,1970, p.264).
Em questão de higiene, no final do século XIX, a luz do sol foi descoberta
como um excelente bactericida. O “Serviço Sanitário”, através do Código de 1911,
passou a exigir com rigor o combate à umidade residencial proveniente do solo,
bem como a proteção contra os ventos úmidos. Os projetos passaram a dar
importância aos recuos e à elevação do piso da casa, criando espaços vazios no
subsolo, conhecidos como porões.
Essas exigências do chamado “Código Sanitário” foram logo depois
endossadas pela Prefeitura da cidade na luta contra os problemas de
insalubridade da época, com uma cobrança maior dos projetos arquitetônicos
residenciais. Também era de grande interesse da Prefeitura e do Estado cuidar da
higiene do espaço urbano e doméstico para impedir a difusão das doenças e criar
condições para atrair capitais, mãos de obra e técnicos estrangeiros à cidade de
São Paulo (HOMEM, 2010).
64
Novas regiões da cidade, como o bairro de Higienópolis e a Avenida
Paulista, possuíam lotes bem amplos, favorecendo a implantação do tipo
“chácara” e casa do tipo “palacete”. A Avenida Paulista foi pioneira na garantia da
exclusividade dos palacetes, através da implantação de uma lei que obrigava as
construções a respeitarem um recuo mínimo de dez metros em relação ao
alinhamento das calçadas e recuo lateral de dois metros (HOMEM, 2010). Essas
novas regiões, destinadas às camadas sociais mais abastadas, já possuíam
serviços de transporte com bondes a tração animal, rede de água, esgoto e
iluminação adequada.
Essa revolução na concepção das casas, no final do século XIX, deveu-se
não somente às novas preocupações e conceitos de higiene da habitação, mas
também à possibilidade de uso de novos materiais e técnicas construtivas.
Fig.10 – Avenida Paulista com suas primeiras residências vista da torre do palacete de Adam Ditrik von Bülow, em 1902.
65
Chegaram à cidade barricas de cimento e cal, e materiais importados, como tijolos
laminados ingleses, ladrilhos, mosaicos, azulejos, telhas de Marselha, placas de
mármore e ardósia, chapas de ferro onduladas e galvanizadas, chapas de zinco
puro e latão de cobre, gradis de ferro forjado ou fundido, canos, tubos, manilhas,
papéis de parede, vidros planos lisos ou lapidados, dobradiças, fechaduras,
maçanetas, tintas, betumes e mastiques. A utilização do tijolo possibilitava a
construção de arcos, abobadilhas, vãos maiores e mais próximos uns dos outros,
favorecendo, assim, iluminação e ventilação mais eficientes. As chapas de cobre
ou zinco permitiam a instalação de calhas nos telhados para a condução das
águas pluviais. Assim, os telhados puderam assumir desenhos recortados e
afastamentos laterais dos lotes vizinhos, facilitando o contato dos ambientes
internos com a área externa da casa (LEMOS, 1993).
Os imigrantes, devido à sua origem e cultura, sempre que podiam
construir as suas próprias casas, aplicavam esses afastamentos laterais do
terreno, dando a importância necessária à ventilação e à entrada da luz do sol no
interior de suas casas. Dessa forma, eles foram considerados precursores da
solução das questões de higiene na construção residencial (LEMOS, 1993).
2.6 O programa da casa térrea
Duas importantes inovações na arquitetura das casas paulistanas, no final
do século XIX, foram o porão e o recuo lateral. A inserção do porão no subsolo
passou a evidenciar que o edifício era somente residencial e, por isso, havia essa
preocupação em elevar o piso de madeira para eliminar a umidade vinda da terra
para dentro de seus ambientes. Além disso, a existência do porão também passou
a elevar as janelas frontais da casa em relação ao nível das ruas, evitando que
elas ficassem muito expostas aos olhares externos. Os porões passaram a ter
ambientes usados para alojamento de empregados, depósitos e, em alguns casos,
para serviços da casa, como, por exemplo, a cozinha (REIS FILHO, 2011).
66
Essas novas casas térreas com porões mantinham o seu alinhamento
sobre o limite das vias públicas, porém, depois, surgiu o afastamento lateral,
modificando a relação entre os alinhamentos da edificação e do lote, mais uma
inovação devida ao valor dado ao “higienismo”, através da ventilação, iluminação
e conforto aos habitantes. O recuo lateral passou a existir somente em um dos
lados, e, quanto maior a casa, maior era o recuo e seu jardim. A fachada possuía
um desenho com janelas ou portas-balcão das salas de visitas voltadas para as
ruas e, abaixo dessas aberturas, os óculos de acesso ao porão no subsolo. Na
lateral do recuo, ficava o portão de ferro no alinhamento da via pública, para a
entrada no lote da casa.
O uso da alvenaria de tijolos nas novas construções permitia também
portas e janelas maiores, condizentes com os novos valores e preocupações da
época.
Diferentemente da casa colonial, esse modelo de casa do final do século
XIX demonstrava uma preocupação maior com os ambientes sociais. Ao entrar
pelo portão metálico principal, havia uma escada com um patamar de
aproximadamente um metro de altura, e uma ou duas portas que davam acesso à
sala de visita, ou até mesmo ao gabinete7 (conhecido também como escritório,
estúdio ou closet) e à sala de jantar. A ligação desses ambientes podia ser feita
também através de um corredor interno ou simplesmente por portas que os
interligavam diretamente. Ao fundo dessa área social havia o corredor interno para
o qual abriam as portas dos quartos, dentro da área privativa da casa e, ao fim do
corredor, a copa e a cozinha. Esta última possuía uma porta de acesso ao quintal,
através de uma escada com um patamar de serviço ao fundo da casa. No quintal,
em algumas casas, apareceram as edículas, como dormitórios para os serviçais.
Porém, tal opção não conquistou inicialmente boa parte da burguesia paulistana,
que preferia alojar suas criadas dentro da casa, em um quarto ao lado da cozinha,
e tratá-las como agregadas da família. Dessa forma, por várias décadas,
permaneceram as “zonas de serviço”, formadas por quartos de criadas nos porões
7 O gabinete era um espaço típico das casas da burguesia paulistana no final do século XIX, que funcionava
como um ambiente de trabalho para contabilidade e administração da casa e dos negócios, e também exibia
aos visitantes da casa a qualidade intelectual da família, muito valorizada nessa época pela alta sociedade.
67
ou em anexos à cozinha, dentro da casa, mas sempre vinculados ao quintal
(LEMOS, 1976).
Nas salas de visitas era ainda comum encontrar as sacadas voltadas às
ruas, uma vez que as vias públicas de São Paulo mantinham o seu movimento e a
sua importância social. Além disso, a preocupação em “proteger” o espaço interno
da casa e resguardar suas mulheres não era mais tão rígida como antes, na
primeira metade do século XIX. As “moças”, principalmente, passaram a
frequentar mais as sacadas, não somente como simples “ponto de observação”,
mas também com o interesse de se expor e se apresentar à sociedade. Essa nova
postura feminina, utilizando sacadas e varandas como pontos de exposição,
segundo Gilberto Freyre (2004), marcou uma importante vitória da mulher da
época sobre o ciúme sexual do homem e uma das transigências do sistema
patriarcal.
Essa mudança nos valores patriarcais das famílias da classe média-alta
da sociedade paulistana revelou-se, também, através das novas formas de
circulação no interior da casa. A circulação deixou de ocorrer somente por um eixo
interno e escuro, como nas casas coloniais, passando a acontecer também
através de um “corredor-varanda”, expondo salas e quartos à área lateral externa
da casa. Nesse “corredor-varanda”, os pais fiscalizavam o namoro de suas filhas,
e a família recebia ali os seus convidados e realizava os seus saraus
(VERÍSSIMO, BITTAR, 1999). Então, se nos sobrados coloniais as varandas se
localizavam ao fundo da casa com funções de transição da área íntima à área de
serviço, apoio ao serviço da cozinha e como ambiente de reclusão da mulher, o
“corredor-varanda” do final do século XIX tornou-se um espaço muito mais social,
como área de extensão dos primeiros ambientes da casa. A possibilidade dessa
nova circulação externa através do “corredor-varanda” e do jardim lateral passou a
ser fundamental para a iluminação e ventilação residencial, exigidas pela
sociedade da época, e factíveis devido às novas tecnologias que permitiram os
recortes dos telhados.
Como vimos, o primeiro esquema de circulação doméstica foi substituído por aquele cujo partido é caracterizado pelo corredor lateral descoberto, patrocinador de ar e luz aos
68
cômodos intermediários. Esta nova solução realmente foi um rompimento com a tradição – agora, os novos conceitos da higiene da habitação estavam sendo atendidos graças à renovação tecnológica aplicada ao desenho do telhado. O telhado é que sempre comandou as decisões relativas à segurança, à satisfação da função de abrigo, vinculando a planta às suas possíveis variações formais. Somente a partir dos recentes recursos técnicos, telhas planas de Marselha, rufos e calhas de cobre, rincões protegidos adequadamente, condutores, gárgulas e buzinotes, é que os telhados passaram a ser movimentados, tornando-se independentes de compromissos com as
coberturas vizinhas (LEMOS,1989, p.96).
As salas de visitas, de jantar, gabinetes e outros salões passaram a ter
móveis europeus no estilo neoclássico, recebidos tardiamente: cadeiras, poltronas
e sofás de tiras de palha trançada e madeira de jacarandá e madeira óleo,
inspirados no mobiliário francês dos reinados de Luís Felipe e Napoleão III; mesas
de centro com tampos de mármore branco, consoles, relógios, estatuetas, lustres
e castiçais de metal; louças, cristais e porcelanas inglesas expostas em
aparadores guarda-louça e cristaleiras; cartas, documentos, fotografias da família
e retratos a óleo fixados sobre os papéis de parede importados (SETÚBAL,
2004b). Tudo isso acontecia segundo o estilo de decoração francês do século XIX,
revelando o luxo e o “bom gosto” da família, além de contar um pouco da sua
história.
Os quartos deixaram de ser apertados, fechados e escuros, como as
alcovas. Eles se abriram para as varandas e se tornaram também um ambiente
social, onde as moças recebiam suas amigas, faziam suas reuniões e
conversavam durante horas. Porém eles ainda permaneciam no centro da casa,
ladeando a circulação interna e fazendo a passagem da área social à área de
serviço da casa, como antes. Era comum encontrar, nos quartos, móveis como
camas requintadas com espaldar alto, cômodas com tampo de pedra e espelho,
penteadeiras e armários guarda-roupa, que apareceram na cidade somente ao
final do século XIX (SETÚBAL, 2004b). Nessa época, era normal ainda o antigo
hábito de utilizar quartos separados, independentes, para o casal. A relação
sexual entre os parceiros de casamento consistia em algo obrigatório entre ambas
as partes, mas era um momento marcado com antecedência em um dos quartos,
pois exigia o uso de trajes adequados (VERÍSSIMO, BITTAR, 1999).
69
Essas casas mais sofisticadas eram de proprietários abastados,
geralmente fazendeiros de café ou pessoas que viviam de renda (REIS FILHO,
2011). Seus moradores passaram a depender de serviçais mais refinados,
pessoas que acompanhavam também o desenvolvimento tecnológico e a
mudança dos ambientes da casa. Por exemplo: nas casas com instalações
hidráulicas foi desprezado o serviço braçal do escravo negro. Sendo assim, o
emprego de trabalhadores remunerados, geralmente imigrantes, passou a ser
mais interessante. A implantação do banheiro também era novidade nesse modelo
de casa térrea sobre o porão. Ele era instalado ao fundo das casas, no setor de
serviços, ao lado da cozinha, devido ao uso de uma mesma parede com
instalações hidráulicas comuns a ambos os ambientes. Ao final do século XIX,
com a influência de novos materiais vindos da Europa, como tubulações, torneiras,
peças esmaltadas e louças inglesas, e com a valorização da vida social, passou-
se a requerer uma preocupação maior com o corpo. O banheiro tornou-se um
espaço necessário às famílias mais abastadas, e condizente com sua rotina
social. Não bastava mais adaptar as alcovas para a limpeza do corpo, com o uso
da latrina ou “casinha”, no quintal. A média-alta sociedade aprovou as invenções
europeias, que chegaram para ficar. Não era mais moderno e, muito menos
higiênico, sobrepor as funções do quarto e do banheiro em um mesmo ambiente.
A copa era um ambiente novo e típico dessas casas térreas. Ela foi
inspirada na arquitetura europeia e apareceu com uma estratégia parecida à das
antigas varandas dos sobrados coloniais. Tinha a função de centro distribuidor e
de apoio à cozinha. Nas casas mais populares e modestas, a copa podia funcionar
como uma “sala de jantar”, mas, nas casas da elite burguesa, a copa e a sala de
jantar eram ambientes separados e diferentes (LEMOS, 1976). Na casa das
famílias mais abastadas, era o local onde a copeira lavava os utensílios da mesa
de refeições, a pajem alemã preparava a “papinha” do nenê, as senhoras
preparavam os doces, e a área separadora entre a família e a cozinheira (LEMOS,
1976). Era um ambiente revestido de azulejos até a metade das paredes, com
pisos em cerâmicas hexagonais, ladrilhos ou assoalhos, com janelas de belas
cortinas, com um lavatório de uso exclusivo fixado na parede, uma mesa de
70
madeira ao centro e uma passagem aberta à cozinha ou, às vezes, através de um
largo recorte em arco na parede (LEMOS, 1976; VERÍSSIMO, BITTAR, 1999).
A cozinha mantinha sua mesma função de antes, como nas casas
coloniais, porém, agora, devia se apresentar de maneira mais bonita, limpa e
organizada, pois fazia parte do corpo da casa, anexada ao lado da copa e próxima
à sala de jantar. Possuía seus revestimentos em piso e paredes semelhantes aos
da copa: azulejos, cerâmicas e ladrilhos hidráulicos. Era comum encontrar, nas
cozinhas do final do século XIX, fogões à lenha ou a carvão, pois o gás ainda era
utilizado somente para a iluminação das principais ruas nos bairros novos da elite.
E agora, também, a fumaça da cozinha podia ser expelida por uma chaminé,
possível de ser construída com o uso da alvenaria de tijolos.
O quintal tinha a sua importância para a criação de galinhas, o plantio da
horta e do pomar, o corte da lenha, a torrefação do café, a implantação da cisterna
e da bomba d’água, a instalação dos varais para secagem da roupa lavada e para
as brincadeiras das crianças nos limites da casa.
2.7 O programa do palacete
O palacete foi o modelo de residência da mais alta classe social
paulistana, da virada do século XIX para o XX, que surgiu no momento em que a
indústria e o comércio se destacaram de tal forma, que tiraram a exclusividade do
café como fonte de enriquecimento da classe dominante (LEMOS, 1989). Os
proprietários desses palacetes eram fazendeiros cafeicultores, comissários,
banqueiros, investidores da construção civil, pioneiros da indústria, além de
grandes comerciantes e empresários.
Esse tipo de residência surgiu quando se levantava uma nova cidade. Era
construída em alvenaria de tijolos, provinda dos capitais de um grupo dominante
na economia, na política e na cultura do Estado de São Paulo, e instalada em
71
bairros elegantes da capital, como Campos Elísios, Liberdade, Santa Cecília,
Higienópolis e a Avenida Paulista, preferida pela elite industrial (HOMEM, 2010).
Os palacetes eram mansões de telhados recortados ao estilo europeu da
época, e com ambientes bem decorados e pés-direitos altos. Eram casas luxuosas
e imponentes, simbolizando, de forma bem explícita na arquitetura, o poder
econômico do proprietário.
O programa desse novo estilo residencial trouxe novidades relevantes:
um novo sistema de implantação da casa no lote, afastando a construção principal
de todos os limites do terreno, e uma nova forma de circulação e distribuição dos
ambientes internos, seguindo o modelo residencial da burguesia francesa da
época. Porém, para que ocorressem essas mudanças espaciais, houve, antes, a
necessidade de uma alteração no modo de vida da elite paulistana (HOMEM,
2010).
Essa nova elite paulistana do final do século XIX procurava um vínculo
cultural maior com a Europa, principalmente com a França, pois os europeus eram
o exemplo de “civilizados”, “modernos” e elegantes. Ser civilizado era ter civilité
(HOMEM, 2010). Tal modelo europeu fez com que a elite paulistana imitasse os
franceses na decoração e na etiqueta, e viesse a apreciar a moda, a literatura, a
arquitetura e a filosofia francesa. Tudo isso passou a aumentar também o
preconceito com o modo de vida “caipira” do resto da sociedade paulistana.
Assim, os empresários do café trouxeram de Paris os primeiros modelos
de palacetes. Eram modelos diversos, mas todos com implantações inspiradas
nas villas e nos hôtels privés8 (HOMEM, 2010).
O palacete, seguindo o modo de vida francês, propunha um programa
basicamente composto por funções bem definidas de estar e serviço no pavimento
térreo, e funções íntimas de repouso no pavimento superior. Era comum também
haver a edícula para serviçais e cocheiras nos fundos do terreno, bem como um
sótão para abrigar um quarto de hóspedes ou para criados mais íntimos da
família. O porão continuava existindo como recurso contra a umidade e, muitas
8 Villas e hôtels privés eram os nomes dados às residências burguesas francesas mais ricas da época. Villas
eram modelos suburbanos, e hôtels privés, urbanos (HOMEM, 2010).
72
vezes, como um espaço para serviços, adegas, depósitos e, em alguns casos, até
mesmo para cozinha.
O grande jardim que cercava a casa, no estilo “villa”, era composto por
parques fronteiros, pomares, árvores frutíferas isoladas, hortaliças, pombais e
galinheiros, criando uma paisagem próxima à das chácaras semiurbanas dos
arredores da cidade, lembrando a vida rural das fazendas, e afastando o edifício
da rua, aumentando, assim, a separação entre o espaço da privacidade e o
domínio público.
Porém, no palacete paulistano, em que pesasse a sua proposta de renovação, também persistiam elementos da morada tradicional paulista, tais como a sala de jantar mais ampla do que os demais cômodos, em posição centralizada e próxima à cozinha, o gabinete e um quarto independente para hóspedes, ambos na parte fronteira da casa térrea e do sobrado. Fora, havia a entrada de serviços e, nos fundos, horta, pomar ou algumas árvores frutíferas, forno, lenheiro, e até poço, córrego ou desvio do curso de um rio. As edículas da moradia francesa, como casa do porteiro e as cocheiras, foram reproduzidas no palacete, onde, contudo, as construções destinadas a acomodar os criados e o tipo de instalação utilizada para os tanques evocavam as antigas senzalas e o
os telheiros dos quintais. (HOMEM, 2010, p.14).
Logo ao entrar no palacete, era comum ter acesso ao vestíbulo (ou hall,
em inglês), espaço típico do modo de distribuição francesa, que funcionava como
um saguão de transição, na entrada social da casa, para o acesso aos demais
ambientes, criando, assim, uma circulação que dificultava o cruzamento ou o
contato entre proprietários, visitantes e serviçais da casa. No vestíbulo havia
móveis e cabides, onde os visitantes deixavam seus casacos, chapéus e outros
objetos, para adentrarem o interior da casa de forma mais confortável.
O vestíbulo era o portal de entrada da casa e o espaço responsável por
transmitir a “primeira impressão” aos visitantes e convidados. Sendo assim, devia
ser sempre um local muito fino e elegante. Sobre o piso de madeira havia poucos
móveis, mas sempre sóbrios e esbeltos, como porta-chapéus, cabides, poltronas,
cadeiras e mesas com porta-canetas e folhas de papel, para se deixarem
mensagens aos proprietários. Os revestimentos de parede sempre também muito
sóbrios, em tinta, lambris de madeira ou papéis de parede. Ainda, compondo a
decoração, peças ornamentais raras, trazidas de viagens ao exterior.
73
Do vestíbulo era possível acessar os ambientes sociais, como o gabinete,
a sala de visitas, a sala das senhoras, a sala de bilhar, o fumoir9, outros salões e a
sala de jantar. Desta, acessava-se a copa, depois a cozinha e o quarto da criada,
ambos, muitas vezes, localizados abaixo, no porão.
O vestíbulo também permitia o acesso à escada, que levava tanto ao
porão quanto aos pavimentos superiores, onde ficavam os ambientes mais íntimos
da casa: quartos de dormir, banheiros, quarto de costura, rouparias e boudoirs10.
O gabinete, usado somente pelo homem e trancado a chaves, era o local
onde ele exercia suas atividades de contabilidade, leituras, orações, ou onde
recebia convidados especiais. Era comum encontrar o gabinete ao lado do
dormitório do proprietário, mas, nos palacetes paulistanos, sempre se localizava
logo na entrada residencial, assim como nas casas térreas.
Em São Paulo, o escritório localizava-se sempre na frente da casa, com entrada independente. Ao mesmo tempo em que era reconhecido como o lugar de absoluta independência masculina, a sua localização acentuava a ligação do homem com o espaço externo. Se era no escritório que o marido lia sossegadamente seu jornal ou alguns de seus inúmeros livros escolhidos ali mesmo da biblioteca, estudava ou cuidava da administração de seu patrimônio, sem correr o risco de interrupções, era também no escritório que ele recebia amigos e fazia acertos que envolviam a família ou os negócios.
(CARVALHO, 2008, p.138).
O espaço do gabinete possuía normalmente um mobiliário simples e
sólido sobre um assoalho de madeira bem encerado e sem tapetes. Ali ficavam
estantes de livros envidraçadas, uma mesa de madeira ampla e quadrada,
cadeiras e poltronas de couro. Nas paredes, via-se sempre uma pintura com cores
claras ou um papel de parede sem muitos desenhos e ornamentos, e muitos livros
exibidos em estantes ao longo dessas paredes, juntamente com quadros de
familiares e armas penduradas (CARVALHO, 2008).
O setor de “estar” da casa era o mais bem cuidado. As salas exibiam
móveis franceses e ingleses, peças de arte vindas do exterior e os ornamentos
9 Fumoir era a “sala para fumar”, utilizada pelos homens da casa e seus convidados. 10 Boudoir era o “quarto de vestir” usado para a troca de roupas, e onde as “senhoras” guardavam as suas
roupas íntimas.
74
mais belos e sofisticados da casa, representando o poder econômico, o “bom
gosto” e o cosmopolitismo da família.
Ao lado da sala de visitas, encontravam-se outras salas complementares
com funções sociais, como o fumoir e a sala de bilhar, utilizadas em reuniões
masculinas, e a sala das senhoras. Em festas, reuniões e eventos sociais, homens
e mulheres dividiam-se entre as salas da casa para conversas mais conflituosas
de temas políticos e empreendimentos cafeeiros, ou assuntos sobre arte, literatura
e experiências em viagens, em conversas entre as mulheres. O surgimento da
sala das senhoras, na composição da casa, representava a valorização da mulher
na família e a conquista de sua posição na sociedade.
Era comum encontrar, na sala de visitas, um excesso de móveis, tais
como cadeiras, poltronas, banquetas, sofás, mesas, e muitos objetos ornamentais
em bronze, prata, cristal e porcelana, cortinas, tapetes e toldos de renda e seda.
Nas paredes da sala de visitas e das demais salas complementares, havia sempre
pinturas coloridas a óleo e papéis de parede coloridos com temas florais, além de
muitos espelhos. Os forros costumavam ser bem ornamentados, com a presença
de sancas e lustres de cristal belga. O piano não podia faltar, era uma peça
fundamental como elemento decorativo e representativo da cultura musical dos
moradores.
A sala de jantar possuía menos objetos decorativos e um mobiliário inglês,
mais pesado e desprovido de muitas curvas e ornamentos. Móveis simples e mais
sólidos significavam “bom gosto” em uma sala de jantar. Apesar de ser sempre
organizada e controlada pela mulher, a sala de jantar simbolizava a tradição
familiar e a estabilidade financeira, representada pela figura masculina, que, desde
o período colonial, era responsável pelas atividades externas à casa e pela
subsistência da família, como explica a historiadora Vânia Carneiro de Carvalho:
O homem, mantenedor da família e sua linhagem, está associado à função provedora. A ele é outorgada simbolicamente a responsabilidade pelo alimento (e não pelo seu processamento e apresentação à mesa). Como chefe da casa, a categoria masculina será constituída em torno de objetos que concentram sentidos como estabilidade, segurança, força, tradição e respeito. Móveis robustos, pesados, confeccionados em madeira nobre, escura, tratada de forma rústica, com superfícies pouco reflexivas (não
75
polidas) integram-se às demais características da sala de jantar (CARVALHO, 2008, p.120).
Por essa importância e pelo costume de receber uma grande família com
agregados em mesas enormes, nos horários de refeição, a sala de jantar sempre
teve uma área generosa dentro da planta arquitetônica dos palacetes, localizando-
se no centro espacial, em uma região privilegiada da casa.
Próxima à sala de jantar, em direção aos fundos da casa, encontrava-se a
copa. Com a mesma função à da casa térrea, a copa vinha substituir a varanda
dos sobrados coloniais e funcionava como apoio à cozinha. A copa mantinha as
paredes altas da casa, porém revestidas somente até a metade em azulejos, os
pisos em cerâmicas, ladrilhos hidráulicos ou assoalhos, e uma grande mesa de
madeira ao centro, usada na preparação dos alimentos. Nas situações em que a
cozinha se encontrava no porão, na copa havia um “monta-pratos”, comum em
casas europeias da época, funcionando como um elevador para o transporte de
louças e alimentos.
A cozinha ficava no porão ou no fundo da casa, próxima ao quintal.
Porém, em qualquer das opções, ela já fazia parte do corpo da casa e não era
mais um puxado mal feito ou um espaço segregado e isolado ao fundo do terreno,
como nos tempos coloniais.
Com a abolição da escravatura, a chegada de materiais manufaturados, a
presença da “empregada imigrante” nas casas mais abastadas e a inserção da
cozinha no corpo da casa, passou a ser mais frequente a presença da “dona da
casa” dentro da cozinha. Além disso, a cozinha passou a ser um ambiente mais
bonito, limpo, ventilado e agradável, revestido de azulejos no mínimo até um metro
e meio de altura nas paredes, e com ladrilhos hidráulicos e cerâmicas no piso.
A água corrente já era comum nos palacetes, e o gás, antes utilizado
somente na iluminação, começou a ser usado nos palacetes para a utilização dos
fogões a gás, substituindo os fogões à lenha.
Os hábitos alimentares transformaram-se e adotaram os modos à
francesa. Foram incorporados licores importados, produtos defumados e frutas
cristalizadas, principalmente nas festas e jantares de eventos sociais. Conforme o
76
modelo francês, diminuiu-se a quantidade de alimentos servida e aumentaram-se
os utensílios, como copos, taças e talheres específicos para determinado tipo de
bebida ou comida (VERÍSSIMO, BITTAR, 1999).
No porão, podiam-se encontrar, ao lado da cozinha, despensas, depósitos
e uma adega. Quando a cozinha estava no pavimento térreo, ela compunha o
setor de serviço da casa, juntamente com a copa, um banheiro, uma despensa e
um quarto para a “criada”, sempre próximo à porta de saída para o quintal.
Através da escada principal, no vestíbulo, ficava o acesso ao primeiro
pavimento do palacete. Esse pavimento representava a privacidade e a intimidade
da família e, por isso, era de acesso exclusivo. Aí ficavam os quartos de dormir,
banheiros, quarto de costura, rouparias e outros ambientes íntimos de utilização
da família.
Os quartos dos palacetes não somente permitiam entrada de luz e
ventilação pelas janelas, mas também valorizavam a abertura às belas paisagens
do jardim ao redor da casa. Eram espaços com assoalho de madeira e paredes
pintadas ou em papel decorativo, com pouco mobiliário para evitar o acúmulo de
poeira, composto por camas, mesas de cabeceira, cadeiras, toucadores, divãs,
escrivaninhas, criados-mudos, guarda-roupas e cômodas. Em muitas casas
também havia o quarto de hóspedes, situado mais comumente no sótão ou no
pavimento térreo.
O banheiro próximo ao quarto era símbolo de conforto. Os banheiros
passaram a ser completos, adequados para garantir que ali fossem exercidas
todas as atividades de higiene pessoal. A presença da banheira foi mais uma
novidade da época, por isso os banheiros passaram a localizar-se de forma
estratégica na casa, para que a água, nas novas tubulações em cobre, pudesse
passar pelo aquecimento do fogão, na cozinha, e chegasse quente até eles. Um
pouco mais tarde, chegariam os aquecedores independentes das banheiras.
A chegada dos aquecedores a gás e das banheiras permitiu a independência e o maior conforto dos banheiros, que se uniram definitivamente aos w.c. em um só compartimento. O palacete passou a contar com três banheiros completos: um no térreo, na zona de serviço, um no andar superior e o terceiro no porão ou nas edículas. Mas persistiam os penicos, guardados nos criados-mudos, assim como nos quartos de toilette,
transformados em estar íntimo das senhoras. (HOMEM, 2010, p.205).
77
A conquista da privacidade e a necessidade de menos mobilidade na
casa, com o uso das novas tecnologias, significavam conforto e “modernidade”,
pois representavam um modo de vida oposto ao daquele “acaipirado” do período
colonial, quando os espaços residenciais possuíam funções sobrepostas.
Diferentes funções em um mesmo ambiente era símbolo de pobreza e de algo
ultrapassado para a classe burguesa.
78
2.8 Organograma padrão da casa térrea
79
2.9 Organograma padrão do palacete
80
2.10 Casos de residências ecléticas
A seguir, serão apresentados seis casos de residências ecléticas da elite
social paulistana, projetados na virada do século XIX para o XX. Esses seis casos,
duas casas térreas e quatro palacetes, foram selecionados por serem
representantes significativos do estilo eclético residencial de São Paulo.
Porém, como escreveu o professor Carlos Lemos em um de seus livros
(1999a), é impossível estabelecer, com precisão, separações nítidas entre as
categorias residenciais. Realmente, é difícil enxergar uma linha divisória entre as
casas de moradores da classe média-alta e da classe alta. Prova disso é o caso 2,
projeto que se utiliza das características mescladas da casa térrea e do palacete.
O primeiro caso possui uma organização padrão das casas térreas, o
segundo tem um desenho de “transição” entre os modelos, e os quatro últimos são
palacetes escolhidos por terem sido elaborados por quatro diferentes projetistas
importantes da época: Ramos de Azevedo, Victor Dubugras, Luigi Pucci e Carlos
Ekman. Apesar de suas nítidas diferenças plásticas, eles mantêm semelhanças na
organização dos espaços e no programa.
2.10.1 Residência da senhora Margherita Marchesini
Na planta da residência da senhora Margherita Marchesini, projetada pelo
escritório de Ramos de Azevedo, e construída nos primeiros anos do século XX,
existe a implantação opcional da cozinha no porão e o seu acesso através de uma
escada ligando-a ao térreo, chamado de “service” (substituído depois por “copa”).
Observa-se, também, o uso do “monta-pratos” para facilitar o contato e os
trabalhos nos dois ambientes (LEMOS, 1989). No pavimento térreo dessa casa,
havia uma série de ambientes sociais ligados por um corredor interno: a sala de
visitas, o gabinete e o “salão nobre”, ao final do corredor, separando dois quartos.
O “salão nobre” era um ambiente usado para a realização de jantares importantes
81
Fig.11 – Fachada da casa de Margherita Marchesini
e eventos sociais da família. Nessa casa, a sala de jantar ficava no porão, como
característica típica de um ambiente mais simples e íntimo da casa.
.
PAVIMENTO SUBSOLO
Fig.12 – Plantas dos pavimentos subsolo, à esquerda, e do
térreo, à direita.
Legenda:
1 – cozinha 2 – despensa 3 – quarto da criada 4 – acesso ao térreo 5 – sala de jantar 6 – corredor lateral 7 – sala de visitas 8 – gabinete 9 – quarto 10 – banheiro 11 – service
12 – salão nobre
82
2.10.2 Residência de José Fernandes Pinto
Essa casa foi construída, em 1896, na esquina da rua Aurora com a rua
Guaianases. Ela é um caso interessante por apresentar um programa com mistura
de características da casa térrea e do palacete burguês (LEMOS, 1999a).
Assim como na casa da senhora Margherita Marchesini, essa residência é
alinhada à rua e com uma entrada lateral. Porém, possui um vestíbulo, logo à
entrada, espaço típico dos palacetes.
É curioso notar, ao fundo da casa, um banheiro com funções divididas em
dois ambientes: “sala de banho” e “latrina” (water closet). Também é interessante
a existência de duas salas de jantar: a primeira, maior e mais próxima aos quartos
de hóspedes, parece pertencer ao setor social da casa e ser utilizada para a
circulação diária e refeições especiais; e a segunda parece ser um ambiente mais
íntimo, para o uso cotidiano dos moradores da casa.
Fig.13 – Fachada da residência de José Fernandes Pinto
83
Fig.14 – Planta do pavimento térreo da casa de
José Fernandes Pinto
Legenda:
1 – varanda 2 – vestíbulo 3 – gabinete 4 – salão 5 – quarto 6 – sala de jantar 7 – copa 8 – banheiro – water closet 9 – banheiro - sala de banho 10 – quarto da criada 11 – cozinha 12 - despensa
84
2.10.3 Palacete do Conselheiro Antônio da Silva Prado
(Chácara do Carvalho)
Antônio da Silva Prado, filho de Martinho e Veridiana da Silva Prado,
importantes membros da aristocracia cafeeira paulistana, contratou, em 1890, o
capomastro (mestre de obra) fiorentino Luigi Pucci para o projeto neo-
renascentista e a construção de seu palacete, que ocorreu dois anos depois, na
alameda Barão de Limeira em esquina com a alameda Eduardo Prado, no bairro
da Barra Funda, onde o proprietário morou com sua família até o ano de 1929.
A família tinha um prestígio tão grande dentro da sociedade e em todo o
país, que chegou a hospedar os reis da Bélgica, em 1920, durante uma visita ao
Brasil. Sendo assim, não somente por sua riqueza e importância social, a família
ostentava um grande palacete também pela quantidade de pessoas que ali
moravam. Chegou a abrigar sessenta pessoas.
Ele foi construído com um pavimento térreo, dois pavimentos acima e
ainda um porão. Os ambientes de higiene pessoal, as salas de banho, foram
construídos na área do jardim, fora do corpo do edifício principal. Nessa residência
era comum o uso dos urinóis dentro dos quartos, e isso justifica a pouca
quantidade de banheiros no programa (HOMEM, 2010). Outro item interessante é
a ausência de um grande vestíbulo central, substituído por um espaço de entrada
e um eixo-corredor principal. Esses dois itens chamam a atenção, porque se
desviam dos objetivos de conforto, higiene e sofisticação comuns da época.
No projeto, estava previsto um elevador para o transporte entre o
escritório e o quarto do conselheiro, porém esse elevador foi instalado no corredor,
próximo à escada principal (HOMEM, 2010).
85
Fig.15 – Desenho da fachada principal da Chácara do Carvalho
Fig.16 – Fotografia registrada em 1904, com vista da fachada principal e da lateral do palacete.
86
Legenda:
1 – entrada 2 – sala de espera 3 – salão de baile / nave da capela / biblioteca 4 – passagem 5 – sala de orquestra /altar 6 – sala de bilhar 7 – ante-sala 8 – sala de reunião 9 - fumoir 10 – sala de jantar 11 – copa 12 – despensa 13 – cozinha 14 – cozinha 15 – refeitório 16 – sala do piano 17 – escada de serviço 18 – quarto 19 – escada social 20 – banheiro – water closet 21 – hall 22 – mictório 23 - banheiro – water closet 24 - banheiro 25 – biblioteca 26 - elevador
Fig.17 – Implantação do edifício no terreno e desenho
do jardim
Fig.18 – Planta do pavimento térreo
87
Legenda:
1 – cozinha 2 – quarto com banheira 3 – banheiro – water closet
4 – escritório 5 – boudoir 6 – sala de costura 7 – quarto do Conselheiro 8 – quarto do casal Carlos e Hermínia 9- quarto de Marcos Monteiro de Barros 10 – quarto de Silvio da Silva Prado 11 – quarto de Maria Eugênia Monteiro de Barros 12 – quarto de Antonieta Prado Arinos Fig.19 – Planta do primeiro pavimento
Fig.20 – Planta do segundo pavimento
Legenda:
1 – terraço 2 – torres descobertas 3 – quarto 4 – sala de estudo/ piano 5 – quarto de brinquedos 6 – banheiro – water closet 7 – claraboia
88
Fig.21 – Salão de baile
Fig.22 – Sala de jantar
89
2.10.4 Palacete de Inácio e Olívia Penteado
Inácio Penteado era um importante fazendeiro e exportador de café da
época, e Olívia era filha de outro conhecido fazendeiro da região, por isso o casal
e seu palacete marcaram história na sociedade paulistana.
O palacete foi projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, e construído
no ano de 1895, na esquina das ruas Conselheiro Nébias e Duque de Caxias, no
bairro de Campos Elíseos, utilizando materiais importados da Itália (HOMEM,
2010).
O palacete foi implantado no alinhamento das duas ruas, e, assim, a
entrada social encontrava-se protegida da rua e voltada ao jardim, algo difícil de
se ver na época.
A entrada dava acesso a um corredor que ladeava as portas do gabinete
e do quarto de hóspedes, e terminava, ao centro da casa, em um vestíbulo
octogonal de pé-direito duplo e iluminado por uma claraboia, com características
formais típicas de um espaço exclusivo de distribuição através de oito acessos.
Outro aspecto interessante é o desenho bem definido do “retângulo” do
setor de serviço, com um banheiro para o uso da governanta da casa, o único
banheiro do pavimento térreo.
Apesar de não existir mais a planta do pavimento superior, é importante a
apresentação desse projeto, devido a suas características diferenciadas.
90
Fig.23 – Palacete do casal Inácio e Olívia Penteado
91
Fig.25 – Planta do pavimento térreo
Legenda:
1 – entrada 2 – vestíbulo 3 – quarto de hóspedes 4 – rouparia 5 – escritório 6 – salão nobre 7 – sala das senhoras 8 – sala de jantar 9- copa 10 – cozinha 11 –despensa 12 – quarto da governante 13 – banheiro da governante
Fig.24 – Implantação do edifício no terreno
92
Fig.23 – Salão nobre
Fig.23 – Salão nobre
Fig.26 – Salão nobre
Fig.27 – Canto da sala de jantar
93
2.10.5 Palacete de Horácio Sabino
(Vila Horácio Sabino)
A Vila Horácio Sabino foi um palacete que pertenceu ao casal Horácio
Sabino e América Milliet, construído em 1903, dentro do quarteirão cercado pela
Avenida Paulista e a rua Augusta, alameda Santos e rua Padre João Manuel.
O palacete foi projetado pelo arquiteto argentino Victor Dubugras, no puro
estilo art nouveau, como parte de uma série de casas projetadas pelo arquiteto,
caracterizadas por salas de jantar e varandas semicirculares. (HOMEM, 2010).
A organização da casa ao “estilo francês” ficava evidente pela divisão
bem definida dos setores funcionais e pelo uso da copa, como espaço divisor da
área social e da cozinha. É interessante notar a existência de banheiros somente
no pavimento superior e a presença de um jardim de inverno, não tão comum nos
palacetes da época, mas muito usado como um espaço de reunião da família
Sabino.
Horácio Sabino era um excelente músico, pianista e compositor, portanto
passava não só horas de seu dia em seu piano de cauda, localizado na sala de
visitas, como também no final das noites e durante festas e eventos oferecidos
aos amigos da sociedade (HOMEM, 2010).
Na casa havia, também, um porão habitável com os ambientes de
despensa, adega, lavanderia, um respiradouro e uma sala de brinquedos para as
crianças. No enorme jardim, ficavam edículas para moradia das famílias do
copeiro e do motorista (HOMEM, 2010).
94
Fig.28 – Implantação do edifício no terreno
Fig.29 – Fachada principal do edifício vista da Avenida Paulista
95
Fig.30 – Desenhos das fachadas no projeto de Victor Dubugras
Fig.31 – Desenhos das plantas no projeto de Victor Dubugras
96
Fig.32 – Planta do pavimento térreo
Fig. 33 – Planta do pavimento superior
Legenda:
1 – entrada 2 – vestíbulo 3 – sala de visitas 4 – sala de jantar 5 – jardim de inverno 6 – saleta 7 – copa 8 – sala de costura / refeição das crianças 9- cozinha 10 – quarto da criada 11 –despensa
Legenda:
1 – escritório 2 – quarto 3 – quarto do casal com acesso ao terraço 4 – quarto de vestir 5 – toilette 6 – banheiro – banho e water closet 7 – alpendre 8 – terraço lateral
97
Fig.34 – Jardim de inverno com vitral ao estilo art nouveau
Fig.35 – Varanda frontal em curva, no desenho art nouveau, com
acesso à sala de jantar
98
2.10.6 Palacete de Antônio Álvares Penteado
(Vila Penteado)
A Vila Penteado foi um palacete que pertenceu ao casal Antônio Álvares
Penteado e Ana Franco de Lacerda Álvares Penteado, projetado por Carlos
Ekman. Situado no bairro de Higienópolis, no quarteirão delimitado pelas ruas
Itambé, Maranhão, Sabará e a avenida Higienópolis, onde se localizava a entrada
principal.
Antônio Álvares Penteado foi um grande fazendeiro de café. Na cidade de
Santa Cruz das Palmeiras, era dono de uma fazenda que chegou a ter 750.000
pés de café. Depois, na cidade de São Paulo, focou seu trabalho como empresário
em outras áreas comerciais e industriais.
A casa da Vila Penteado tem um desenho simétrico, dividido por um eixo
central marcado por um alpendre na entrada social, um grande vestíbulo e um
escritório, aberto aos fundos.
Maria Cecília Naclério Homem salienta que esse palacete era “quase um
hotel” (2010). Realmente, ele abrigava, além dos proprietários, outros dois filhos
solteiros em sua ala esquerda; e outra família, do filho Antônio Prado Jr., na ala
direita. Além disso, estava sempre aberto a outros filhos, genros, noras, netos e
sobrinhos residentes próximos da região. O casal proprietário costumava também
receber muitos amigos em eventos, como bailes e espetáculos teatrais, realizados
no grande vestíbulo, característico do estilo art nouveau em seu modelo austríaco
(HOMEM, 2010).
Dessa forma, as duas plantas a seguir demonstram, em suas duas alas,
um setor social próximo ao eixo central da casa com ligações às áreas privativas
dos quartos e escadas de acessos ao pavimento superior e ao porão, com adegas
e depósitos e, aos fundos, os ambientes do setor de serviço e acessos ao jardim.
Assim, percebe-se, nesse projeto, que a função social do vestíbulo é tão
importante, ou mais, quanto à de circulação e distribuição. Outro item interessante,
encontrado também nesse projeto, é a pequena quantidade de salas de banho e
99
water closet comparados ao tamanho enorme da casa e à quantidade de pessoas
que ali habitavam ou frequentavam o local.
A Vila Penteado é a última remanescente das residências no estilo art
nouveau da cidade de São Paulo e, desde 1948, é ocupada pela Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (HOMEM, 2010).
Fig.36 – Foto da fachada do palacete voltada à rua Maranhão.
100
Fig.38 – Foto atual (2014) da fachada do palacete voltada ao fundo do terreno (antiga fachada
principal), com o acesso residencial feito através do alpendre.
Fig.37 – Implantação do edifício no terreno
101
Fig.39 – Planta do pavimento térreo
Legenda:
1 – alpendre 2 – vestíbulo 3 – pequeno salão 4 – quarto de vestir 5 – grande salão 6 – escritório 7 – gabinete 8 – sala de bilhar 9 – toilette 10 – banheiro – banho e water closet 11 – banheiro – banho e water closet
12 – sala de jantar 13 – dormitório 14 – despensa 15 – copa 16 – copeiro 17 – quarto da criada 18 – cozinha 19 – galinheiro 20 – serviço 21 – lenheiro 22 - water closet
102
Fig.40 – Planta do pavimento superior
Legenda:
1 – quarto do casal principal 2 – dormitório 3 – toilette
4 – rouparia 5 – despejo 6 – quarto da criada 7 – banheiro 8 – saleta 9 – sala de estudos
103
Fig.41 – Sala de jantar
Fig.42 – Vestíbulo
104
Fig.43 – Foto atual (2014) da área do vestíbulo
105
Fig.44 – Foto atual (2014) de pintura em uma das paredes do
vestíbulo, fazendo referência à indústria nacional.
Fig.45 – Foto atual (2014) da porta externa para acesso ao porão
106
3. As casas neocoloniais
“Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que funcionava. Para isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e postes.” – Oswald de Andrade
3.1 O café, a indústria e a cidade moderna
Entre os anos de 1890 e 1900, o estado de São Paulo teve um grande
crescimento na quantidade de produtores de café: o número passou de 220 mil
para 520 mil. Esse aumento não ocorreu somente no Brasil, gerando a saturação
do mercado mundial do café, com a consequente queda brusca de seu valor.
Muitos fazendeiros endividados perderam a segurança do investimento na área
rural, e tanto os proprietários de fazendas quanto os trabalhadores da terra
passaram a interessar-se pelo crescente mercado industrial (MORSE, 1970).
Assim, a cidade de São Paulo iniciou o século XX recebendo, além de
novos imigrantes, também migrantes da área rural. Esse movimento fez com que
São Paulo continuasse crescendo em todas as suas direções, em busca de novas
áreas industriais nas periferias da cidade, localizadas nas proximidades das linhas
férreas, onde havia terrenos com maiores espaços e menores preços para a
instalação de indústrias e vilas operárias residenciais. Essa distribuição
demográfica incentivou a geração de uma sociedade urbana mais híbrida e
heterogênea na cidade. (MORSE, 1970).
Na primeira década do século XX, com o aumento dos bairros operários,
as diferenças sociais mostravam-se cada vez mais claras e definidas, não
somente na localização espacial-urbana e nas diferentes arquiteturas das casas,
mas também nos conflitos, tensões e choques de interesses.
De um lado o luxo, de outro a pobreza. A crescente riqueza ostentada pela cidade de São Paulo nas décadas finais do século XIX estabelecia um agudo paradoxo com a precariedade das condições de vida a que estava submetida a maior parte de seus habitantes. Descontentamento e revoltas, coletivas ou individuais, passaram a inserir na metrópole nascente, faceando a efervescência do comércio ou a europeização dos bairros residenciais das elites. Os movimentos operários, por exemplo, apesar de se intensificarem apenas a partir da primeira década do século XX, já esboçavam os
107
primeiros sinais de sublevação contra as condições de trabalho ou a discriminação a que
sobretudo os numerosos italianos estavam submetidos. (Paulo César Garcez Marins – orgs. CAMPOS, GAMA, SACCHETTA, 2004, p.68)
Guerras e depressões internacionais estimularam o crescimento da
indústria em todo o Brasil, e São Paulo passou a ser o foco dessa industrialização
e a cidade mais importante do país. Os principais motivos que levaram a essa
situação foram: a existência da rede de estradas de ferro que ligava São Paulo ao
porto de Santos; um mercado acessível e populoso; o acesso fácil da matéria
prima nacional e estrangeira; a grande quantidade de mão de obra; a facilidade de
obtenção de energia elétrica; e uma classe empresarial com capital necessário
para grandes investimentos, conquistado no auge do café (MORSE, 1970).
Mesmo com o sucesso da capital paulista no setor industrial, o estado de
São Paulo continuava tendo no café o principal produto da economia agrícola,
apesar de, a partir da segunda década do século, muitos fazendeiros paulistas já
terem abandonado a monocultura cafeeira e investido em outros produtos como:
laranja, algodão, arroz, feijão, amendoim, milho, batata, mandioca, mamona, entre
outros.
3.2 A nova fisionomia da metrópole paulista
O crescimento da cidade repercutia naturalmente na quantidade de
automóveis e edificações. Em 1918, a cidade possuía pouco menos de 60 mil
edificações; em 1928, esse número chegou a quase 100 mil (BRUNO, 1991).
Desde o início do século XX, São Paulo tinha sua área central
caracterizada pelo comércio varejista. Essa área comercial estava em pleno
crescimento e expansão por toda a cidade, não somente pelo aumento da
população, mas pela ampliação do poder de consumo das elites. A cidade cresceu
também com novos bairros residenciais finos e seus casarões e continuava se
108
expandindo no sentido leste, nas áreas do Brás, da Mooca e suas vizinhanças,
como consequência natural do desenvolvimento industrial.
O novo século iniciou com Higienópolis sendo o bairro mais luxuoso e
elegante e o ponto de encontro da elite paulistana. A Avenida Paulista continuava
sendo o mais belo boulevard da cidade, repleto de belíssimos palacetes, que
atestavam a prosperidade econômica da cidade, deixando maravilhados até
mesmo os visitantes europeus.
Porém, o crescimento acelerado de São Paulo mantinha os problemas e
as preocupações de uma metrópole, como já ocorria desde os fins do século
anterior. A cidade continuava em busca de soluções para seus problemas, como:
necessidades de transporte, pavimentação, iluminação elétrica pública e particular
e serviços de água e esgoto. No entanto, o novo século exigia soluções urgentes e
drásticas, e havia a necessidade de projetos de intervenção urbana para atualizá-
la e dotá-la de infraestrutura digna de uma grande metrópole moderna.
Esse conjunto de projetos de intervenção fez nascer o primeiro plano
urbanístico de São Paulo, que tinha como foco inicial a valorização da região do
Anhangabaú, na primeira década do século (SIMÕES JÚNIOR, 2003).
A valorização de áreas centrais simbolizava a modernidade dos grandes
centros urbanos e constituía uma característica comum nas mais importantes
cidades do país e do mundo naquela época. O vale do Anhangabaú era o espaço
que refletia a paisagem moderna e cosmopolita da cidade, e as recentes
construções do Viaduto do Chá e do Teatro Municipal fortaleciam essa paisagem
(SIMÕES JÚNIOR, 2003).
A expansão no sentido oeste, com o surgimento de novos bairros
aristocratas, também favorecia a despolarização do centro da cidade, onde o vale
do Anhangabaú funcionava como um espaço de ligação ao “centro novo”.
Assim sendo, o projeto publicado, em 1906, pelo vereador Augusto Carlos
da Silva Teles, ficou conhecido como “os melhoramentos de São Paulo”. Esse
trabalho teve a participação de vários profissionais arquitetos, urbanistas e
engenheiros, tanto do Brasil como do exterior.
109
Além da transformação da região do vale, foram apresentadas propostas
de melhorias no sistema viário da cidade, de criação de novos espaços abertos,
de controle das áreas de expansão urbana e uma preocupação estética geral,
baseada em cidades europeias, sobretudo francesas e inglesas.
Fig.46 – Propaganda de terrenos no bairro Jardim América com
valorização à paisagem do campo e ao conforto, lançada em 1928, no jornal “O Estado de S. Paulo”.
110
Na sequência temporal, durante a Primeira Grande Guerra, as
construções residenciais na cidade quase pararam. Mas, a partir do fim dessa
guerra, apareceram novos loteamentos afastados do centro de São Paulo,
destinados às famílias mais abastadas. Bairros como Pacaembu, Alto da Lapa,
Perdizes, Mirandópolis, Jardim Europa e Jardim América vendiam a imagem de
loteamentos com uma “paisagem do campo”, um “ar saudável”, muito conforto e
status, sem deixar de lado a importância da proximidade ao centro comercial da
cidade.
Nesse período pós-guerra, outros símbolos de status passaram a ser
determinantes para a sociedade paulistana: a utilização da energia elétrica nas
residências, o acesso à rede de bondes elétricos e o uso do automóvel, que, além
de um importante meio de transporte, passou a ser visto também como um
símbolo de riqueza.
3.3 A arquitetura neocolonial em São Paulo
Na segunda década do século XX, os palacetes ecléticos continuavam
sendo minoria na cidade, pois realmente representavam a arquitetura de uma
elite. Apesar disso, eles se apresentavam ainda como peças influentes para as
classes inferiores, que os viam como modelos ideais de arquitetura, decoração e
do modo de vida de seus proprietários. No entanto, esse estilo arquitetônico das
residências da elite paulistana passou a demonstrar algumas transformações
devido à dificuldade de acesso aos materiais construtivos europeus e à mão de
obra de qualidade. A decoração no modelo eclético também já manifestava o seu
desgaste (HOMEM, 2010).
Diante disso, começou a surgir, como novidade, a arquitetura
neocolonial11 em São Paulo. Esse estilo fazia parte ainda do movimento eclético,
11 Segundo Carlos Lemos (1989), o uso do termo “neocolonial” é recente e, na época, o estilo era conhecido
simplesmente como “colonial”.
111
porém com a proposta de resgatar a arquitetura e a decoração da época colonial,
de origem portuguesa, sendo praticado de maneira tímida e pontual na construção
de residências da elite paulistana durante a Primeira Guerra (LEMOS, 1996).
Porém, na década de 20, o estilo neocolonial foi difundido e conquistou a alta e a
média classe social paulistana. O movimento neocolonial demonstrava a vontade,
na época pós-guerra, de criar uma identidade arquitetônica no país, perante um
contexto de transformações da sociedade e da cultura material, em reação aos
muitos anos de importação de diversos estilos europeus. O espírito nacionalista
era comum não só na cidade de São Paulo, mas em todo o país e na América, e
passou a manifestar-se na construção de edificações que buscavam uma
arquitetura identificadora da nacionalidade (SEGAWA, 2010). O partido
arquitetônico relembrava a imagem da arquitetura do período colonial com seus
beirais largos, cachorros bem desenhados, sacadas, treliças, telhas de canal,
frontões curvilíneos, vergas em arco, belos painéis de azulejos, entre outras
características do período colonial, somadas a atualizações, tais como o uso da
alvenaria de tijolos e dos telhados com planos mais recortados.
Em São Paulo foram construídos importantes exemplares neocoloniais
por Victor Dubugras, como a residência do Sr. Eugênio Du Val, na rua
Albuquerque Lins, no bairro Higienópolis; a residência de Carlos Whately, no
bairro Jardim América; e a residência do Sr. Ferdinand Pierre, na Avenida
Paulista. Outro exemplo foi a residência projetada pelo arquiteto português
Ricardo Severo para o banqueiro Numa de Oliveira, também na Avenida Paulista.
Todas essas residências foram construídas na segunda década, logo após o final
da Primeira Grande Guerra (LEMOS, 1989).
Segundo o professor Carlos Lemos (1989), deve-se repartir igualmente o
mérito da introdução do novo estilo arquitetônico na cidade a esses dois
arquitetos. Entretanto, para Yves Bruand (2010), esse mérito pertence somente ao
arquiteto Ricardo Severo.
O marco de lançamento do movimento neocolonial foi realmente a
conferência "A Arte Tradicional no Brasil", realizada em 1914, na Sociedade de
Cultura Artística de São Paulo, por Ricardo Severo. No entanto, para Carlos
112
Lemos, Dubugras ignorou o mostruário de elementos de composição das
construções históricas, registrados por José Wasth Rodrigues, e “renovou” o
barroco resgatado por Ricardo Severo, criando, assim, um estilo colonial
“modernizado”, copiado por muitos outros arquitetos da época.
É de autoria de Victor Dubugras uma das mais belas e interessantes
obras públicas de São Paulo, construída no estilo neocolonial, em 1919: o Largo
da Memória.
3.4 A racionalização da arquitetura
A partir da segunda década do século XX, logo após a Primeira Guerra,
devido à dificuldade de acessos a materiais construtivos e à mão de obra de
qualidade, a produção de residências no padrão eclético “tradicional francês”
diminuiu bastante, e o modelo neocolonial passou a mostrar-se mais simples, com
detalhes de ornamentação “barroca” optativos e, por isso, ele se difundia mais
facilmente por toda a cidade e também em seu entorno.
Nessa época, o programa funcional dos casarões da burguesia, na
arquitetura eclética, em todos os seus estilos formais europeus, não mostrava
grandes alterações, e seguia os mesmos padrões de organização dos casarões
do século anterior (LEMOS, 1989). Porém, o tamanho da casa diminuiu bastante.
Essa racionalização da arquitetura fez com que os ambientes ficassem mais
compactos e mais bem planejados. Além disso, a área social da casa diminuiu,
pois a vida social da nova burguesia dessa época passava a acontecer, cada vez
mais, fora de casa. Sendo assim, muitos ambientes da área social passaram a
perder a sua função e desapareceram.
Ocorreram mudanças em relação a nomes de ambientes e elementos
arquitetônicos com a influência do cinema norte-americano, que introduziu uma
nova terminologia: a palavra “living-room” passou a ser usada na identificação do
espaço de “estar”; o “w.c.” (water closet) passou a substituir o nome “latrina”; e
113
surgiram também termos como “bay window” e “bungalow” (adaptado depois, na
língua portuguesa, como “bangalô”); e a palavra “hall” passou a substituir
definitivamente a palavra “vestíbulo” (LEMOS, 1994).
A racionalização dos espaços internos e dos volumes na arquitetura da
década de 30 alinhava-se com um novo movimento artístico da época: o art decó.
Esse movimento já era conhecido pelos europeus desde 1925, a partir da
Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida em
Paris, mas demorou um pouco mais para chegar ao Brasil. A arquitetura art decó
caracterizava-se por linhas verticais, rigor geométrico e escalonamento de planos,
criando volumes sobrepostos.
O concreto armado, que até então havia sido muito pouco usado na
arquitetura brasileira, passou a ser empregado de forma mais frequente. Na
década de 30, o seu uso facilitou a criação arquitetônica dentro dos novos padrões
estéticos e, desde então, passou a ser muito importante na construção de casas
da classe média e edifícios públicos, mesmo que coberto e escondido por outros
revestimentos considerados mais nobres.
A popularização do art decó fez diminuir a aplicação do partido
neocolonial nas construções da classe média em São Paulo. O contexto da época
demonstrava a valorização e a necessidade de uma arquitetura bem mais
funcional, ajustada às novas ideias de Le Corbusier, que já havia apresentado, na
Europa, um conceito revolucionário de casa e uma nova forma de morar. Assim, o
art decó manifestou-se como uma verdadeira “ponte” entre o Ecletismo e o
Modernismo, denominado também Futurismo ou Protomodernismo.
No entanto, o art decó era visto somente em edifícios públicos e
residências da classe média. A casa neocolonial, mesmo que de forma mais
simplificada e racionalizada, continuou sendo a opção arquitetônica preferida da
elite paulistana durante toda a primeira metade do século XX, e seu partido
arquitetônico caracterizava e identificava os bairros mais nobres da cidade de São
Paulo.
114
3.5 O american way of life
As primeiras décadas do século XX foram suficientes para trazer à cidade
e à sociedade paulistana novidades e transformações revolucionárias, com
consequências óbvias e inevitáveis ao modo de vida cotidiano.
A utilização residencial da energia elétrica, primeiramente nas casas de
famílias mais abastadas, trouxe a possibilidade do uso de equipamentos que
mudariam o dia a dia e o ritmo da vida doméstica em São Paulo e outras
metrópoles brasileiras. Eis alguns deles: o ferro elétrico, popularizado ao final da
Primeira Guerra Mundial, o rádio e o ventilador, na década de 20; a geladeira
elétrica (ou refrigerador elétrico), o aspirador de pó, a enceradeira, o secador de
cabelo e a batedeira de bolo, na década de 30; o liquidificador e o fogão elétrico,
na década de 40; e a máquina de lavar, o fogão a gás e a televisão, que seriam
realmente usados somente a partir da década de 50. (FARIAS, AYROSA,
CARVALHO, ABRAMOVITZ, FRAIHA, 2006; LEMOS, 1996). Quase todos esses
equipamentos eram importados da Europa e dos Estados Unidos, eram caros e,
por isso, de uso comum somente nas casas da elite paulistana.
O alto custo dos produtos estrangeiros, aliado às dificuldades de importação durante a guerra, motivou alguns empreendedores a investir na produção nacional desses artefatos para o lar. O estilo de vida do consumidor brasileiro também se modificava. Os costumes europeus importados até os anos 40 eram cada vez mais substituídos pela influência do american way of life, que chegava através do cinema, do rádio, jornais, revistas e, mais
tarde através da televisão (FARIAS, AYROSA, CARVALHO, ABRAMOVITZ, FRAINHA, 2006, p.67).
Ser “moderno”, nessa época, era seguir o modelo da maneira de viver da
alta classe norte-americana. O modo de vida “à francesa” foi vagarosamente
perdendo seu encanto, principalmente para as novas gerações. Os costumes
norte-americanos, as máquinas, os carros e os aparelhos eletrodomésticos eram
retratados por meios de comunicação, ainda inexistentes no século anterior.
Revistas de grande reprodução, tais como “Revista Feminina” e “Cigarra”,
passaram a ser importantes meios de divulgação dos novos códigos sociais para a
115
família moderna, que tinham como público leitor principal a mulher da classe social
alta.
Fig.47 – Capa da revista “Cigarra”, edição 3, do ano de 1914, mostrando a
imagem da “mulher moderna”: uma boa dona de casa e boa esposa, mas preocupada também com a moda e sem receio de expor a sua sensualidade.
116
Fig.48 – Essa propaganda de geladeira buscava atrair a atenção da elite,
através de desenhos de pessoas bem vestidas e um texto curto, fazendo conexão com um espaço da cidade muito frequentado por essa classe social, o teatro.
117
Além de informações de como ser uma “boa dona de casa”, ser uma “boa
esposa” e dicas para educar os filhos, essas revistas traziam fotos de pessoas
ricas e influentes da sociedade, além de artigos sobre decoração, moda, arte,
etiqueta, propagandas de produtos de limpeza, equipamentos elétricos e tudo
mais que fosse importante ao lar da “mulher moderna”.
Esses artigos e propagandas, em meios de comunicação focados a
interesses exclusivamente femininos, demonstravam as novas conquistas da
mulher na sociedade da década de 20 e a influência da cultura norte-americana. A
mulher passou a ter uma importância maior como estabilizadora da família e
administradora das atividades domésticas, bem como uma liberdade maior dentro
e fora de casa.
Nessa mesma época, nas famílias menos abastadas, o homem foi
perdendo o seu destaque como o único provedor da casa.
As mudanças no comportamento feminino ocorridas ao longo das três primeiras décadas deste século incomodaram conservadores, deixaram perplexos os desavisados, estimularam debates entre os mais progressistas. Afinal, era muito recente a presença das moças das camadas médias e altas, as chamadas “de boa família”, que se aventuravam sozinhas pelas ruas da cidade para abastecer a casa para tudo o que se
fizesse necessário (Marina Maluf e Maria Lúcia Mott – SEVCENKO (org.), 1998, p.368).
Fig.49 – Propaganda na revista “Cigarra”, em 1914, mostrando a necessidade do uso de produtos
eletrodomésticos para se possuir uma casa moderna, valorizada pela higiene e pelo conforto.
118
Nesse período de industrialização, intensificação do comércio, novas
opções de lazer e de serviços, o modo de viver mudou não somente dentro de
casa, na estrutura familiar, mas também fora dela, com a frequência em cafés,
restaurantes, teatros, cinemas e clubes (MORSE,1970). Esse novo costume,
adotado pela elite social e intelectual de São Paulo, levou a vida social a sair de
dentro da casa para ocorrer em espaços atrativos e elegantes da cidade. Assim, ir
ao cinema e ao teatro passou a ser importante não somente no aspecto cultural,
mas também no social. Portanto, locais como esses, para “ver e ser visto”,
passaram a ser interessantes tanto aos homens quanto às mulheres.
3.6 O programa da casa neocolonial
No programa das casas neocoloniais racionalizadas da primeira metade
do século XX, alterações ocorreram devido às mudanças na vida social da elite
paulistana, às influências norte-americanas e ao uso dos eletrodomésticos.
Como novidade, na área externa da casa, nas primeiras décadas, já
surgiu uma área coberta para o estacionamento do automóvel ao lado da porta de
entrada ou à frente da casa, conforme as residências da elite norte-americana.
Essa opção permitia ao proprietário mostrar à sociedade o seu automóvel, em vez
de escondê-lo ao fundo da casa.
Uma varanda, muitas vezes chamada de “terraço”, era comum na entrada
principal dessas casas, como já se via em casas ecléticas de décadas anteriores.
Ela dava acesso direto à sala de visitas, que se tornou o único ambiente social da
casa voltado à recepção de visitantes. Porém, na década de 20, a elite paulistana
já tinha a sua vida social ocorrendo muito mais fora de casa do que dentro e, por
isso, a sala de visitas raramente era aberta e utilizada. Com o tempo, pela
necessidade de racionalização, esse espaço passou a ser reutilizado, porém como
119
um ambiente de uso cotidiano da família. Assim, o termo “sala de visitas” passou a
ser substituído por “sala de estar”.
A sala de estar dava acesso à sala de jantar e, na década de 20, nas
casas mais abastadas da cidade, era nesse ambiente que a família passou a ouvir
o rádio, aparelho criado no início do século para uso militar. O rádio reunia a
família na sala de jantar para ouvir rádio-novelas, notícias culturais e científicas,
recitais de poesia, músicas, programas educacionais e propagandas, ainda tudo
voltado somente ao público da alta classe social, que podia ter acesso a esse
aparelho. Inicialmente, o estilo musical que se ouvia era apenas música clássica e
óperas (FARIAS, AYROSA, CARVALHO, ABRAMOVITZ, FRAINHA, 2006). Alguns
anos depois, quando foi acoplado à vitrola, o rádio substituiu o piano, sempre
presente nas antigas casas ecléticas da elite paulistana.
O rádio aperfeiçoou-se e logo foi acoplado às vitrolas de 78 rotações e de agulhas de aço cambiáveis periodicamente. Assim, o som eletrônico começou a dominar o lazer doméstico, substituindo o piano com muito proveito porque era acessível a qualquer momento do dia ou da noite, ao contrário dos outros instrumentos musicais dependentes
da boa vontade dos intérpretes da família (LEMOS, 1996, p.67).
O mobiliário requintado europeu continuava presente nas salas de estar e
de jantar, no entanto, com o passar dos anos, a necessidade de espaços mais
simplificados e racionalizados buscou também um padrão de mobiliário com linhas
mais retas e de formas geométricas, ao estilo art decó, sem a preocupação
exagerada com a ostentação. Passou a ser comum, na sala de estar, o uso de
lareiras, mais como uma peça decorativa do que funcional, além de luminárias
europeias e de quadros e tapetes, também importados, com imagens de
paisagens românticas (VERÍSSIMO, BITTAR, 1999).
A ligação direta entre as salas de estar e de jantar era feita através de
paredes com grandes passagens em arcos, o que contribuía para a impressão de
uma área social mais ampla, permitindo a difusão do som do rádio e da vitrola por
todo o setor social.
Porém, nem sempre essas salas eram ligadas diretamente. Em alguns
projetos, a partir da década de 30, o hall passou a ter uma função de espaço
120
“divisor” de ambas, além de manter a sua antiga função de espaço “distribuidor”, já
que nele se localizava a escada de acesso ao pavimento superior, onde ficava o
setor privativo da casa.
A partir da década de 50, com o surgimento dos primeiros aparelhos
televisores no Brasil, restritos somente à alta classe social, instalados nas salas de
estar, ocorreu uma importante mudança no desenho do setor social das casas da
elite da época. Houve a necessidade de eliminar totalmente a parede e quaisquer
outros obstáculos visuais que separavam a sala de estar da sala de jantar, para
que aqueles que se alimentavam na mesa de jantar também tivessem acesso às
imagens da televisão. Dessa forma, a sala de estar uniu-se definitivamente à sala
de jantar e tornou-se o espaço mais usado no dia a dia da família. A antiga “sala
de visitas” desapareceu por completo, transformando-se, na verdade, em um living
room. Com o passar dos anos, a televisão popularizou-se, e essas alterações
espaciais tornaram-se necessárias também nas residências da classe média.
A televisão foi a responsável pelas fundamentais alterações na vida íntima das famílias, com óbvios reflexos na organização espacial, o que o rádio fora incapaz de efetuar. O rádio foi importante, mas como ele podia ser ouvido de qualquer lugar, não exigia necessariamente alterações no programa de necessidades e tampouco providências espaciais de caráter arquitetônico. A televisão ao contrário, além de ouvida, também era vista, pedindo acomodações apropriadas, porque fixa o espectador num determinado lugar e por muito tempo. Logo de início, a televisão invadiu a sala de visitas, transformando-a verdadeiramente num living room. E foi responsável por enormes mudanças no mobiliário, permitindo aos designers, aos decoradores e aos moveleiros novas concepções de projeto, agora tendo uma tônica principal: o conforto, exigência até
então secundária e atrelada acessoriamente às razões de estilos (LEMOS, 1996, p.72).
A escada, quase sempre presente no hall, dava acesso a um hall
superior, responsável pela distribuição aos quartos, toucador12, quarto de costura,
banheiro, entre outros ambientes privativos da casa.
Dentro dos quartos, ocorreram alterações somente em relação ao
mobiliário que, assim como em toda a casa, passou a ter linhas retas e formas
geométricas, substituindo as antigas formas rebuscadas.
12 O toucador era um ambiente comum nas casas ecléticas como um espaço usado para se vestir, pentear os
cabelos, maquiar-se e adornar-se, sempre com o auxílio de um espelho em uma penteadeira.
121
Percebe-se, também, a preocupação dos arquitetos da época em
posicionar os quartos e alguns outros espaços sociais dentro do lote, de maneira a
receber a iluminação solar durante a maior parte do dia.
O banheiro do pavimento superior, a partir da década de 20, já se
mostrava completo: com a função conjunta de sala de banho e de water closet. No
pavimento inferior, era mais comum encontrar apenas um water closet.
A copa ainda continuava a ser um importante espaço de apoio à cozinha,
assim como um ambiente de separação entre o setor social e o de serviço. Em
alguns exemplos de casas mais simplificadas e compactas, podia-se ver a
eliminação da copa, mas eram casos muito raros. Até mesmo em casas da classe
média paulistana encontrava-se a copa, porém com outras funções: era ali o
principal espaço para a alimentação e a convivência diária dessas famílias.
A cozinha sofreu grandes mudanças estéticas e funcionais no decorrer
das décadas da primeira metade do século XX. A industrialização, a preocupação
com a racionalização espacial e a chegada dos eletrodomésticos transformaram
as necessidades desse ambiente e, por isso, a partir da década de 30, novas
operações ocorriam na cozinha e exigiam um espaço de trabalho mais eficiente,
como já se via nas cozinhas europeia e norte-americana.
Para atender às novas operações da cozinha, os eletrodomésticos
precisavam também estar em harmonia com um mobiliário mais ergonômico e
contínuo, compondo um ambiente que facilitasse a utilização dos novos
equipamentos e a circulação dentro desse espaço. Nele, todo o trabalho deveria
produzir o máximo em quantidade e qualidade, exigir o mínimo esforço, com o
menor desperdício de tempo possível, de acordo com os ideais “modernos”.
No entanto, essas transformações puderam ser possíveis, inicialmente,
apenas em casas da alta classe paulistana, pois, para o funcionamento da
“cozinha racionalizada”, era necessário não somente um projeto interno do
ambiente, mas o acesso a uma infraestrutura urbana que permitisse o seu
funcionamento, através do abastecimento hidráulico, elétrico e de gás.
O fogão a gás foi logo adotado pelas famílias burguesas, porém sem se
desfazer do fogão à lenha, ainda opção de uso no cozimento de alguns alimentos.
122
A geladeira (ou refrigerador) passou a ser indispensável. Com ela, tornou-se
possível armazenar alimentos e comprar mais, conforme o modo de vida norte-
americano (VERÍSSIMO, BITTAR, 1999). Dessa forma, o planejamento e a
organização dos móveis da cozinha eram sempre pensados a partir da localização
de três pontos: pia, fogão a gás e geladeira.
Quanto a essas mudanças na “nova cozinha”, Maria Cecília Naclério
Homem escreveu um artigo para a Revista Pós, com o título de “O Princípio da
Racionalidade e a Gênese da Cozinha Moderna”, como se lê nos textos a seguir:
Definia-se, assim, a cozinha racional: aquela que é especialmente organizada e ocupa um espaço reduzido, em vista da economia de tempo e de energia humana. Deve ser clara, arejada e bem iluminada por janelas e luzes noturnas, e ter aspecto alegre. Considera três grandes centros de atividades: armazenamento e conservação; limpeza e preparo; cozimento e serviço, apresentando-os em perfeita conexão entre si, mediante a melhor disponibilidade do equipamento e das janelas, além de relacioná-los com as peças que compõem a habitação. O trabalho será simplificado pela disposição e pela automação dos aparelhos auxiliares. Móveis e aparelhos se integram às superfícies contínuas e compactas, contidos todos em um espaço menor e mais bem utilizado, apto a atender à necessidade de economia de passos e de movimentos do usuário
(HOMEM, 2003, p.126).
Nesse momento, em que a cozinha passava a ser vista de maneira
diferente, havendo uma preocupação mais racional em sua organização e no uso
de novos equipamentos por seus moradores, ocorria, também, uma preocupação
maior, dos órgãos municipais, em relação à higiene. Por isso, o fogão a gás
passou a ser visto, pela burguesia paulistana, como um equipamento essencial,
por ser mais limpo e funcional. No entanto, ele se tornou um produto realmente
popular somente a partir da década de 50, com a aplicação do serviço de
distribuição e troca de botijões de gás nas áreas menos favorecidas da cidade.
O primeiro fogão a gás foi instalado em 1902, no Palácio do Governo. Segundo artigo de Lúcia Seixas, publicado no jornal O Globo, até a década de 30, quem quisesse ter em casa o conforto de um fogão a gás precisava alugá-lo da The San Paulo Gas Company, firma inglesa estabelecida em São Paulo desde 1872, com o objetivo de instalar o serviço de iluminação pública a gás nas ruas da cidade. Com a chegada da iluminação elétrica, essa companhia se voltou para o consumo doméstico do gás para cozinhas e calefação. Os modelos mais antigos eram muito parecidos com os fogões à lenha e a maioria provinha da Inglaterra. As casas mais ricas do começo do século não se desfizeram logo dos fogões à lenha, mantidos ao lado dos mais recentes. (...) Pouco antes da Segunda Grande Guerra, uma iniciativa pioneira abria uma nova etapa na
123
história da cozinha. Em 1937, Ernesto Igel, imigrante austríaco radicado no Rio de Janeiro, teve a ideia de engarrafar o gás para utilizá-lo como combustível de fogões e de aquecedores domésticos, a exemplo do que já se fazia em países da Europa, nos Estados Unidos e na Argentina. Para tanto, aproveitou o gás butano, deixado em reserva pelos alemães para o abastecimento dos zepelins que faziam o voo de carreira entre o Brasil e a Alemanha. O sistema de engarrafamento de gás seria dependente do fogão a botijão e do serviço de distribuição e troca dos botijões. Estes seriam levados pela Ultragaz, Liquigás e outras congêneres, às zonas não urbanizadas. Limpo, barato e versátil, o engarrafamento do gás liquefeito do petróleo, o GLP, atingiria mais pessoas do que os serviços de distribuição de eletricidade, de água encanada e de coleta de lixo ou
tratamento de esgoto (HOMEM, 2003, p.134).
Desde as primeiras décadas do século XX, revistas voltadas ao público
feminino das famílias mais abastadas sempre procuraram mostrar a importância
de uma cozinha limpa, bem organizada e repleta de novos utensílios importados
de última geração, para facilitar o trabalho da mulher, porém foi só a partir da
década de 30 que estudos realizados por arquitetos fortaleceram essa ideia. Na
Revista Acrópole, uma das principais revistas sobre arquitetura do país (1938 –
1971), na edição de junho de 1938, Henrique Mindlin, arquiteto e professor da
Universidade Mackenzie, escreveu o importante artigo “Organização Racional da
Cozinha”. Nele o autor demonstrava a necessidade de uma cozinha bem
planejada, através da disposição de seus móveis e de estudos sobre a circulação
de seus usuários. Nesse mesmo artigo, Henrique Mindlin também explicou como o
sucesso de um ambiente racionalmente projetado poderia contribuir para a difusão
dos conceitos da arquitetura modernista, defendida por ele e por outros jovens
arquitetos da época.
O resultado, na prática, do uso de uma cozinha racionalmente organizada compensa amplamente os esforços expedidos na sua elaboração: o trabalho da dona de casa torna-se mais fácil, mais agradável e mais rápido; além disso, o argumento da eficiência permite a redução da área destinada à cozinha, com consequente diminuição do preço da construção. E mais que isso, pode-se dizer que o estudo cuidadoso da cozinha é o meio mais direto de levar ao conhecimento do grande público alguns princípios da arquitetura moderna, demonstrando como, através do estudo rigoroso das suas funções, um local, geralmente feio e desagradável, pode ser transformado em uma peça agradável, convidativa, que eleva o nível do trabalho caseiro e lhe dá um conforto
compatível com o progresso material do nosso tempo (MINDLIN, 1938, p.22).
124
Fig.50 – Planta e vistas do estudo de composição do mobiliário da cozinha, realizado pelo
arquiteto Henrique Mindlin, e apresentado no artigo “Organização Racional da Cozinha”, na edição de junho de 1938 da revista “Acrópole”.
125
Fig.51 – Plantas sobre o estudo da circulação ideal e funcional para a cozinha “moderna”,
realizado pelo arquiteto Henrique Mindlin, e apresentado no artigo “Organização Racional da Cozinha”, na edição de junho de 1938 da revista “Acrópole”.
126
Na década de 50, o cinema apresentou a “cozinha americana”: modelo de
cozinha integrado à área social da casa. Esse arranjo não foi bem aceito pelos
brasileiros de uma forma geral, muito menos pela elite da sociedade. Alguns
estudos justificam essa reação devido ao fato de a culinária brasileira ser repleta
de muitas frituras e odores de temperos fortes, como se vê no livro “500 Anos da
Casa Brasileira” (1999), de Francisco Veríssimo e William S. M. Bittar. No entanto,
sempre foi presente, na cultura brasileira, desde o período colonial, a necessidade
de separar o serviçal da área de uso social do proprietário da casa, e,
provavelmente, esse tenha sido o motivo mais relevante para a recusa dessa
inovação funcional.
Mesmo assim, a cozinha aproximou-se da sala de jantar, ficou mais limpa
e mais bonita. Além do mobiliário moderno e dos eletrodomésticos, que criaram
um novo padrão estético no ambiente, surgiram novos revestimentos cerâmicos
com desenhos coloridos para a parede, produtos de fácil limpeza e mais
atraentes.
Com a industrialização, o uso dos eletrodomésticos e a diminuição do
tamanho das famílias, o quintal deixou de ser uma área importante para o
fornecimento domiciliar de alimentos, pois a indústria introduziu o benefício de
produção de muitos desses alimentos que antes eram elaborados em casa
(Marina Maluf e Maria Lúcia Mott – SEVCENKO (org.), 1998). Ter um galinheiro,
um pomar ou uma horta já não era tão importante, pois havia sempre um mercado
próximo à casa, e o alimento comprado poderia ser armazenado na residência por
mais tempo. O quintal continuou sendo a área para o lazer da família, para
guardar o carro e, muitas vezes, aos fundos, para uma edícula onde dormiam os
serviçais e ocorria o serviço de lavagem das roupas, para depois serem
estendidas no varal.
127
3.7 Organograma padrão da casa neocolonial
128
3.8 Casos de residências neocoloniais racionalizadas
Uma das principais revistas sobre arquitetura do país, nesse período, foi a
“Acrópole”, editada entre 1938 e 1971. Nessa revista, através da análise das
edições mensais, pode-se deduzir que os principais projetos residenciais na
cidade de São Paulo, durante as décadas de 30 e 40, foram casas de estilo
neocolonial racionalizado, construídas em bairros elegantes. Muitos desses
projetos da época foram trabalhos de jovens arquitetos que já conheciam os
conceitos de Le Corbusier e defendiam a arquitetura modernista. No entanto, seus
clientes mais nobres faziam parte de uma burguesia tradicional e conservadora,
que valorizava o estilo neocolonial, por ser ele considerado a verdadeira
arquitetura nacional, além de representar o poder e o status na sociedade. Essa
diversidade entre propósitos dos clientes e dos arquitetos fez com que futuros
expoentes da arquitetura modernista, como Oswaldo Bratke, Alberto Botti,
Eduardo Kneese de Mello, entre outros, não dessem tanto valor às suas primeiras
produções em estilo neocolonial (WOLFF, 2001).
A seguir, serão destacadas quatro das mais representativas residências
neocoloniais, projetadas por importantes arquitetos da época: Eduardo Kneese de
Mello, Oswaldo Bratke, Carlos Botti e Gregori Warchavchik.
3.8.1 Residência do senhor Ismael Brandão
(revista Acrópole – outubro/1938)
O artigo sobre a casa do doutor Ismael Brandão, construída na rua
Leôncio de Carvalho, travessa da Avenida Paulista, foi publicado na 6ª edição da
revista “Acrópole”, em 1938. O projeto é de Eduardo Kneese de Mello, que, apesar
de ser um dos arquitetos que mais defendiam as ideias modernistas, inclusive
através de textos publicados pela mesma revista, tinha como seus melhores
clientes famílias burguesas conservadoras. Portanto, pode-se ver, através da
129
figura a seguir, uma casa ainda com características ecléticas e um programa
funcional racionalizado, conforme as necessidades da época.
A casa tinha uma entrada principal por um terraço; outra pelo quintal, aos
fundos, por uma varanda; e ainda uma entrada lateral pelo hall. Esse hall era o
ambiente com acessos às salas de estar e de jantar, ao escritório e à área
privativa, através da escada, cumprindo, dessa forma, suas funções de
distribuição e de divisão de setores da casa.
É também interessante observar a indicação do norte da cidade,
desenhado na planta desse projeto. Algo que somente passou a ser relevante
após as exigências do “Código Sanitário” e a crescente valorização da luz natural
dentro de casa, principalmente nos ambientes sociais e nos quartos.
Fig.52 – Fachada principal da residência do senhor Ismael Brandão, em 1938.
130
Legenda:
1 – terraço 2 – sala de estar 3 – escritório 4 – sala de jantar 5 – hall 6 – water closet 7 – saleta 8 – copa 9 – quarto da criada 10 – cozinha 11 – varanda 12 – garagem com water closet
2
1
3
4 5
6
7 8
9 10
11
12
14 14
14
13
14
15
16
14
14
13 – hall superior 14 – quarto 15 – toucador 16 - banheiro 17 – terraço superior
17
Fig.53 – Pavimento térreo
Fig.54 – Pavimento superior
131
3.8.2 Residência do senhor Sylvio Suplicy
(revista Acrópole - fevereiro/1941)
A 34ª edição da revista “Acrópole” traz mais um projeto do arquiteto
Eduardo Kneese de Mello, implantado na rua Maestro Elias Lobo, na região dos
“Jardins”. Ele possui características ainda mais expressivas das antigas casas
coloniais: beirais mais largos, verga curva sobre as janelas, sacadas com rótulas,
portão de madeira treliçada, entre outras, como se vê na figura a seguir.
O artigo mostra claramente como o desenho da arquitetura neocolonial e o
“retorno” de elementos coloniais nas residências da época eram motivo de orgulho
e apreciação dentro daquele momento cultural em que vivia o país, como se lê a
seguir.
Acompanhando o movimento de brasilidade, que se vem notando em todo o país, reaparecem em nossas construções os caracteres de antiga arquitetura colonial. (...) Os beirais largos, acolhedores, as rótulas, os pilares de reforço nos cantos do edifício, são outros interessantes detalhes inspirados na admirável arquitetura de nossos antepassados. (Revista Acrópole, 34ª edição, 1941, p.355)
Dentro da casa, com a necessidade de um espaço compactado e
projetado de forma inteligente em sua circulação, surgiam, de forma mais
frequente, os vãos em arco interligando os ambientes sociais da casa, como
podem ser vistos nesse projeto.
O mobiliário, as luminárias e os objetos de decoração mostram ainda
linhas do período eclético, porém sem o luxo e a ostentação das antigas mansões
e palacetes.
132
Legenda:
1 – terraço 2 – sala de estar 3 – sala de jantar 4 – hall 5 – quarto da criada
1 2
3
5
6 7
4
8
10 10
10
9
11
6 – water closet 7 – cozinha 8 – armário 9 – hall superior 10 – quarto 11 - banheiro
Fig.55 – Residência do senhor Sylvio Suplicy, na região do “Jardins”, em 1941.
Fig.56 – Plantas dos pavimentos térreo (à esquerda) e superior (à direita).
133
Fig.58 – Canto da sala de estar com uma lareira
Fig.57 – Passagem em arcos da sala de estar para a sala de jantar
134
3.8.3 Residência do senhor Caio Pinheiro
(revista Acrópole - fevereiro/1942)
Na 46ª edição da revista Acrópole, aparece o projeto da dupla de
engenheiros arquitetos Oswaldo Bratke e Carlos Botti, na avenida Rebouças,
região dos “Jardins”. Na fachada frontal da casa, comparece o estilo modernista,
através de um grande vão de janela do quarto principal, em contraste com o
neocolonial e seus largos beirais com telhas de canal por toda a casa. No desenho
da planta do pavimento superior, como se pode ver a seguir, esse quarto principal
tem duas pequenas janelas, uma na fachada frontal e outra na lateral esquerda da
casa. Tal ideia foi substituída por um único grande rasgo frontal.
Na planta do pavimento térreo, pode-se ver, logo à frente da casa, um
escritório, assim como os antigos gabinetes, característica marcante do programa
e da organização dos palacetes paulistanos. Existe, também, a ligação direta entre
as salas de estar e de jantar, e um corredor estreito funcionando como um hall. Na
sala de estar pode-se ver o desenho de uma lareira, muito comum na época, e o
uso de arandelas nas duas salas. Nessa residência, o quarto da criada localizava-
se na edícula, aos fundos da casa, juntamente com a garagem.
135
Fig.59 – Residência do senhor Caio Pinheiro, na região dos “Jardins”, em 1942.
136
1
3
2
4 5
6
14
8
9
10
11
12
13
7
14
14 14
Legenda:
1 – terraço 2 – escritório 3 – sala de estar 4 – sala de jantar 5 – corredor 6 – cozinha 7 – copa 8 – water closet
9 - garagem 10 – tanque 11 – water closet 12 – quarto da criada 13 – hall superior
14 – quarto
Fig.60 – Pavimento térreo
Fig.61 – Pavimento superior
137
3.8.4 Residência do senhor Jacob Klabin Lafer
(revista Acrópole - outubro/1943)
Nessa edição de outubro de 1943 da revista Acrópole, foi publicado um
projeto do arquiteto Gregori Warchavchik, de uma casa na avenida Europa, na
região dos “Jardins”. Pode-se ver um largo beiral ao estilo neocolonial, porém
também alguns elementos formais típicos da arquitetura modernista, como a
cobertura sem telhado sobre a sala de estar, um grande painel vertical de pedra,
transversal à fachada, e uma peça semicircular na fachada principal, formada
apenas por placas de vidro.
Fig.62 – Sala de estar e a de jantar, aos fundos.
138
A entrada principal acontece na lateral esquerda da casa, dando acesso à
sala de estar, decorada com uma lareira. Essa sala permite acessos diretos à sala
de jantar, ao hall e a um escritório, logo à frente da casa, como os antigos
gabinetes. No hall encontra-se um armário, um acesso ao vestiário e ao water
closet, e a escada que leva ao pavimento superior. Aos fundos da sala de jantar
pode-se ver uma copa, muito bem equipada, com um espaço reservado para
refeições diárias e auxílio à preparação dos alimentos na cozinha, logo ao lado da
copa. Percebe-se, na planta desse projeto, a necessidade de o arquiteto mostrar a
copa e a cozinha muito bem organizadas, com a localização de seus
equipamentos, mobiliários e a área de circulação. Após a cozinha, um terraço dá
acesso ao quarto da criada e a seu banheiro, completando o corpo arquitetônico
da casa.
Atravessando o quintal, há uma grande edícula com dois pavimentos. O
piso térreo possui um espaço de uso das criadas para lavar e passar roupa, e
mais um water closet. Ao lado direito, uma garagem para três carros. No
pavimento superior ficam mais três quartos para as criadas, armários e um
banheiro.
A área privativa dos proprietários, no pavimento superior da casa, contém
três dormitórios, sendo que dois deles têm acesso a grandes terraços. Nesse piso
estão, também, um toucador, um banheiro, um water closet e um quarto de banho.
139
Fig.63 – Frente da casa do senhor Jacob Klabin Lafer, marcada por combinações de elementos neocoloniais e
modernistas.
140
Legenda:
1 – terraço 2 – sala de estar 3 – escritório 4 – sala de jantar 5 – hall 6 – vestiário e water closet
7 – copa 8 – cozinha 9 – quarto da criada e banheiro 10 – área de passar roupa 11 – lavanderia 12 – área de serviço e depósitos 13 - garagem
14 – hall superior 15 – quarto 16 – toucador 17 – terraço 18 – quarto de banho 19 – quarto 20 – terraço 21 – quarto 22 – quarto 23 – water closet 24 – quarto
Fig.64 – Pavimento térreo
Fig.65 – Pavimento superior
141
4. As casas modernistas13
“Depois do pranto de todo um século romântico, coroado nos espinhos duma guerra tremenda, queremos rir, livremente rir!” – Mário de Andrade
4.1 A arquitetura modernista em São Paulo
A necessidade de se ter uma identidade brasileira na arquitetura e na arte
era bem nítida desde o início da década de 20, com a difusão do Neocolonialismo.
Esse “espírito” era encontrado também na literatura e nas artes plásticas, através
de jovens artistas, criando e fortalecendo um novo movimento, que seria chamado
de Modernismo.
Entre os historiadores existe um consenso de que o marco inicial do
movimento modernista no Brasil ocorreu em São Paulo, em dezembro de 1917,
com a exposição de pinturas da artista Anita Malfatti. Essa exposição provocou
uma reação negativa entre os críticos, que defendiam o estilo tradicional e
acadêmico. Por outro lado, chamou a atenção dos jovens intelectuais que se
solidarizaram com a pintora e se articularam na criação do primeiro grupo
modernista brasileiro, colocando em debate os conceitos conservadores no meio
artístico em geral e propondo a renovação do ambiente cultural. A primeira
importante manifestação desse grupo foi a Semana de Arte Moderna, em fevereiro
de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo (SEGAWA, 2010).
Hoje, passados quase cem anos, pode-se ter mais clareza sobre os
acontecimentos da época. A aparente contradição entre a necessidade de
identidade, em contraponto com a modernidade, traduz uma nova visão do
passado, só possível com a superação dos convencionalismos criada pelo
Modernismo. Assim, a eclosão da Semana de Arte Moderna ocorreu com
transposições francesas de Anita Malfati, que conviviam com as ideias da
Antropofagia de Mário de Andrade, em uma mistura da cultura moderna
13 Neste trabalho, houve a preocupação em distinguir o termo “moderno”, como adjetivo, e o termo
“modernista”, como referência ao estilo.
142
internacional e a revisitação das tradições do Brasil colonial, antes escondido
pelas elites.
A Semana de Arte Moderna em São Paulo não propôs nenhuma mudança
na arquitetura brasileira. O nome “moderno”, na arquitetura, ainda era um adjetivo
vinculado à arquitetura neocolonial racionalizada. Somente em 1925, dois artigos
escritos pelos arquitetos Rino Levi e Gregori Warchavchik trouxeram ideias
alinhadas à vanguarda moderna europeia, lideradas por Le Corbusier, Walter
Gropius, Mies Van der Rohe, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright,
entre outros.
No artigo “A Arquitetura e Estética das Cidades”, publicado no jornal “O
Estado de São Paulo”, Rino Levi chamou a atenção para a nova arquitetura
prática e econômica, caracterizada por linhas e volumes simples e pelo uso de
materiais diferentes, com novas técnicas construtivas. No artigo “Acerca da
Arquitetura Moderna”, publicado no jornal carioca “Correio da Manhã”, Gregori
Warchavchik elogiou o racionalismo das máquinas e ressaltou a importância da
estandardização dos elementos arquitetônicos. Ambos propunham não somente
novas ideias formais, mas colocavam em debate as questões econômicas na
construção e a importância da velocidade na produção de edifícios, que poderia
ser melhorada com o uso de novas tecnologias. No entanto, essas publicações
não mudaram em nada o pensamento da maioria dos arquitetos da época, mas
foram textos guardados para, mais tarde, serem resgatados pela historiografia do
Modernismo, dessa forma tornando possível comprovar as ideias registradas na
arquitetura desses dois arquitetos (SEGAWA, 2010).
Na Europa, Le Corbusier havia apresentado uma reinvenção do conceito
da casa: “a máquina de morar”. Pensamento gravado em 1923 em sua obra “Por
uma Arquitetura” (2000), através das seguintes palavras: “Uma casa é uma
máquina de morar. Banhos, sol, água quente, água fria, temperatura conforme a
vontade, conservação dos alimentos, higiene, beleza pela proporção”. Essa “nova
casa” deveria funcionar tão bem como uma máquina, e sua forma arquitetônica,
de características cubistas, seria fruto de suas necessidades, conceito baseado
nos padrões da Bauhaus e sintetizado na célebre frase: “a forma segue a função”.
143
Tal ideia foi criticada por muitos arquitetos tradicionais. No entanto, foi apoiada por
vários outros arquitetos vanguardistas e intelectuais no mundo inteiro, que viam
esse novo modelo de arquitetura como um padrão universal e revolucionário. No
Brasil, Gregori Warchavchik era um dos maiores admiradores e apoiadores de Le
Corbusier, como mostra o texto a seguir, de sua autoria:
Na construção aperfeiçoada de uma máquina não procuramos criar um objeto de beleza. Queremos que seja de perfeita utilidade, de perfeito funcionamento, queremos também que não custe mais do que o necessário a esse perfeito funcionamento. Disto resultam proporções e formas tão harmoniosas e convenientes que não pensamos por um único segundo que essas formas poderiam ser diferentes. Defronte a uma perfeita locomotiva, a um telescópio, defronte a qualquer maquinismo aperfeiçoado, temos o sentimento feliz e seguro de que assim, e não de outra maneira, poderiam estes instrumentos ser construídos. Em arquitetura, os problemas são os mesmos e só da mesma maneira poderão ser
resolvidos (WARCHAVCHIK, 2006, p.57).
Essa necessidade de enxergar a casa moderna como uma verdadeira
máquina de morar foi fruto da Revolução Industrial, que trouxe ao homem da
época um impulso para otimizar o tempo e o espaço em suas ações cotidianas.
Automóveis, aeroplanos, eletrodomésticos e outras máquinas surgiram como
equipamentos que deram ao homem uma nova sensação de poder e domínio
sobre a natureza, o espaço e o tempo. Por outro lado, trouxeram um ritmo diário
mais acelerado e uma nova percepção de tempo e espaço à população das
metrópoles, transformações essas que se refletiram claramente no modo de viver
do homem moderno.
O problema da casa é um problema de época. O equilíbrio das sociedades hoje depende dele. A arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a
revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos da casa”. (LE CORBUSIER, 2000, p.159).
Sendo o problema da casa uma questão de época, como dizia Le
Corbusier, os chamados arquitetos modernistas, no mundo todo, defendiam que o
homem moderno não poderia se conformar com uma arquitetura do século
passado e, assim, deveria abrir os olhos às novas possibilidades que os materiais
industrializados e as tecnologias da época lhe proporcionavam para as
144
construções e soluções das necessidades do homem do século XX. Para Le
Corbusier, a verdadeira arquitetura era aquela que deveria se preocupar em
resolver problemas tal qual uma máquina, ou seja, de maneira simples e racional,
sem o objetivo de se esconder atrás de ornamentos decorativos, como crítica a
todas as correntes da arquitetura eclética.
Novos materiais de construção, como o aço e o concreto, permitiram o
desenvolvimento de tipologias arquitetônicas com traços retos e mais simples, que
se adaptaram à chamada nova “estética universal” e cobriram as necessidades de
higiene, iluminação natural e funcionalidade dos ambientes residenciais, através
do uso de técnicas construtivas ainda mais práticas e rápidas.
Dentro dessas novas possibilidades criativas, Le Corbusier fundamentou
sua “máquina de morar” em tópicos, que ele chamou de os “5 pontos da nova
arquitetura”: 1) o edifício elevado sobre pilotis; 2) a planta livre obtida através da
independência entre os elementos estruturais e as vedações internas; 3) a
fachada livre obtida através da independência entre os elementos estruturais e a
vedação externa; 4) as janelas longas, resultado da criação de fachadas livres; 5)
a laje-jardim (ou terraço-jardim).
Esses cinco tópicos foram resultado de pesquisas realizadas pelo
arquiteto, em seus primeiros anos de carreira, e permitiram tornar independentes
os elementos construtivos do projeto, possibilitando maior criatividade formal do
edifício, maior comunicação entre o espaço interno e o externo, e maior
continuidade espacial entre os ambientes em seu interior.
145
As ideias de Le Corbusier, com sua arquitetura modernista racionalista,
influenciaram muitos arquitetos jovens brasileiros, entre eles Lúcio Costa e Oscar
Niemeyer, no Rio de Janeiro. Porém, devido ao fato de São Paulo ainda ser uma
cidade que não aceitava facilmente novos conceitos e estilos revolucionários, e
também por ser a metrópole brasileira de maior contato econômico e cultural com
os Estados Unidos no início da década de 30, o maior prestígio de seus jovens
arquitetos era em relação ao arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright e seu
estilo modernista orgânico. A escassez do cimento e do aço importados,
consequência da Segunda Guerra Mundial, também contribuiu para que alguns
arquitetos encontrassem, em Wright, soluções modernas, independentes do uso
desses materiais. Essa influência de Frank Lloyd Wright em São Paulo fez surgir,
muitas vezes, uma solução mista, encontrada nas arquiteturas de João Vilanova
Fig.66 – Desenhos de Le Corbusier representando os “5 pontos da nova arquitetura”.
146
Artigas, Rino Levi, Oswaldo Bratke, entre outros (BRUAND, 2010). Com esses
arquitetos, a partir dos anos 1940, a arquitetura modernista de São Paulo passou
a ter características bem próprias, cada vez mais diferenciadas da produção
carioca. Além de Wright, influências como as de Richard Neutra, Gropius e Mies
van der Rohe também podiam ser notadas em alguns projetos, e o rigor
construtivo e funcional tornou-se a principal marca dessa geração na arquitetura
paulistana.
No entanto, apesar de algumas diferenças plásticas e diversidades no uso
de materiais construtivos, os diferentes estilos modernistas tinham sua base
conceitual em comum, sintetizada nos “5 pontos da nova arquitetura”, descritos
por Le Corbusier.
Portanto, a corrente orgânica possui uma personalidade indiscutível e exprime aspirações diferentes das do racionalismo, mas não se pode falar de antinomia absoluta: as duas tendências estão fundadas na exploração da planta livre e vinculam-se à criação de uma continuidade espacial fruto da visão cubista. É por isso que existem obras intermediárias, às vezes de difícil classificação, influências difusas num sentido ou noutro, sem esquecer as confusões originadas de uma denominação genérica capaz de recobrir diferentes
interpretações (BRUAND, 2010, p.271).
A liberdade formal que a arquitetura modernista permitia ao edifício e suas
linhas retas e isentas de ornamentos manufaturados, devido à utilização do aço,
do concreto e peças industrializadas, refletiam-se também na organização do
interior da casa, com a “planta livre”, na possibilidade de separar a estrutura dos
elementos de vedação.
A utilização de elementos construtivos, como brises, pérgolas, cobogós,
grandes vãos abertos e vedações com grandes placas de vidro; o uso de
eletrodomésticos; e as novas necessidades residenciais, tudo isso trouxe fluidez,
leveza, transparência e um controle maior do homem sobre o espaço em sua
casa.
Surgiu, assim, uma arquitetura conceitualmente revolucionária e
diferenciada em seus aspectos plásticos, tecnológicos e funcionais. Porém, essa
arquitetura era contrária à ideologia de muitos da alta classe tradicional da época,
que mantinham a imagem de suas residências neocoloniais como símbolo de
147
riqueza e como peça necessária de distinção social. Por outro lado, alguns
representantes dessa elite social e muitos jovens intelectuais da cidade já se
interessavam pelas diferentes formas de expressão da arte modernista. A senhora
Olívia Guedes Penteado, apesar de ser uma conhecida burguesa de família
tradicional na cidade, foi uma importante admiradora da arte modernista. Mantinha
bom relacionamento com Anita Malfati, Tarsila do Amaral e Heitor Villa-Lobos, e
sempre procurou incentivar o progresso do movimento modernista em São Paulo
e no Brasil.
Na década de 40, o arquiteto João Vilanova Artigas, apesar da sua
ideologia comunista, enxergava a burguesia industrial como a classe de poder
transformador do país, e projetou grandes residências para essa classe social.
Segundo seu discurso, ele buscava, com a sua arquitetura, “reeducar” essa nova
burguesia, através de uma ética que propunha a limpeza de excessos em móveis,
ornamentos e quaisquer outros símbolos de riqueza, em completa oposição a
todos os modelos ecléticos, e incentivava o uso do capital de forma “útil”, com
aplicações na industrialização e no desenvolvimento do país (ARANTES, 2002).
Dessa forma, na primeira metade do século XX, a elite paulistana dividia-
se em residências neocoloniais, existentes em bairros nobres, como o Pacaembu
e os da região dos “Jardins”; nas poucas residências construídas na arquitetura
modernista em novos bairros mais afastados do centro da cidade; e apartamentos
dos primeiros prédios residenciais voltados às famílias mais abastadas, no bairro
de Higienópolis.
A residência construída nos moldes da arquitetura modernista de Le
Corbusier demorou a ser aceita em São Paulo. Foi somente a partir da década de
50 que a burguesia industrial e uma elite intelectual realmente passaram a aceitá-
la como modelo de arquitetura residencial14. Esse fenômeno ocorreu,
principalmente, após a primeira exposição da arquitetura modernista brasileira no
MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), em janeiro de 1943, denominada
“Brazil Builds”. Esse evento teve total incentivo do governo dos Estados Unidos e
14 Pode-se notar esse fenômeno, acompanhando o histórico das edições da revista Acrópole. A partir das
edições de 1950, percebe-se a valorização do estilo modernista de Le Corbusier e o aumento de construções
nesse padrão formal racionalista.
148
procurava ilustrar as diversas manifestações da cultura arquitetônica no país.
Porém, ele ocorreu devido a óbvios interesses políticos, durante o período pós-
guerra, quando os Estados Unidos, claramente, buscavam promover uma
aproximação diplomática com o Brasil15 (CARRILHO, 1998).
A exposição “Brazil Builds” começou em Nova York e circulou por várias
cidades norte-americanas, Toronto, Cidade do México, Londres, entre outras,
durante quase dois anos. No Brasil, também foi apresentada, inicialmente, na
cidade do Rio de Janeiro e, posteriormente, em Belo Horizonte, São Paulo,
Santos, Campinas, Jundiaí, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Ela mostrava
fotos da chamada arquitetura brasileira “antiga”, que contava um pouco da história
da arquitetura no país, e da arquitetura modernista de “vanguarda”, que se
produzia naquele momento, exaltando, principalmente, obras modernistas
progressistas da produção carioca. Esse evento teve repercussão mundial, com
elogios da revista norte-americana “Life Magazine” e do jornal “New York Times”.
(CARRILHO, 1998). No Brasil, essa exposição contribuiu para apresentar, à
própria população a nova arquitetura, inovadora nas técnicas construtivas e no
desenho chamado de “futurista”, baseada nos conceitos de Le Corbusier. Devido
ao impacto da exposição e à reação positiva internacional, ela contribuiu, também,
para fortalecer e impulsionar a produção desse modelo arquitetônico no país e, em
contrapartida, desvalorizar tudo aquilo que não estivesse conforme esse padrão.
15 Além do interesse diplomático de aproximação entre os dois países, é bem provável que houve, também,
um interesse norte-americano de que nenhum país latino-americano, em especial o Brasil, descobrisse a sua
identidade nacional. Sendo assim, na arquitetura, a produção do modelo internacional de Le Corbusier, nos
países latino-americanos, era interessante para os Estados Unidos, além de contribuir com a quebra de
vínculos coloniais desses países com os países europeus.
149
4.2 O programa da casa modernista
Em relação ao programa, na casa modernista ocorreram algumas
alterações, porém nenhuma mudança muito radical em relação às casas
neocoloniais. Apareceram alguns casos permitindo a passagem da sala de jantar
para a cozinha de forma direta, sem a utilização da copa, como espaço de
transição da área social à área de serviços. Esse fato pode ser explicado,
principalmente, pelo melhor planejamento e organização funcional da cozinha,
sendo, assim, necessário somente um único ambiente para o cozimento e a
preparação dos alimentos. A partir da década de 30, pode-se ver, em algumas
plantas de projetos, esse único espaço sendo chamado de “copa-cozinha”.
Surgem, também, projetos com a preocupação de tirar a área social da frente da
casa e colocá-la ao fundo, criando uma ligação com o jardim do quintal, muitas
vezes, através de um terraço. Os terraços aparecem com uma frequência maior,
mais por uma questão estética da arquitetura progressista, do que funcional, com
a finalidade de criar contrastes entre “cheios e vazios” no molde do edifício
prismático. Torna-se mais comum, também, o uso de desníveis, através de alguns
poucos degraus, como um elemento separador entre ambientes, sem a
necessidade do uso de paredes ou qualquer outro obstáculo visual. A “limpeza”
visual das faces do edifício, com traços simples e sem ornamentos, manifestava-
se também em seu interior, onde passou a ser comum o uso de móveis mais
leves, de madeira compensada e estrutura metálica, e ornamentos em menor
quantidade.
Os estilos neocolonial e modernista diferiam, mais nitidamente, no uso de
materiais construtivos e no partido arquitetônico. A liberdade maior no desenho da
planta e no aspecto plástico do edifício, conquistada pelo uso de novas
tecnologias construtivas, conseguiu promover diferentes possibilidades de
organização entre os ambientes, sem grandes alterações no programa.
A arquitetura modernista aplicada pelos arquitetos paulistas, discípulos de
Wright, muitas vezes apresentava elementos ecléticos. Por outro lado, projetos
neocoloniais também passaram a receber elementos da arquitetura modernista,
150
como foi visto, por exemplo, na residência do senhor Jacob Klabin Lafer, projetada
por Warchavchik.
Diferentemente da arquitetura modernista orgânica, o desenho cubista da
arquitetura de Le Corbusier era inédito e livre de influências do século anterior.
Esse estilo chamava a atenção por sua estética “futurista”, como era chamada na
época, e foi usado em São Paulo, nas décadas de 30 e 40, por profissionais como
Antônio Garcia Moya, Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik, Jayme Fonseca
Rodrigues, entre outros. No entanto, foi somente a partir da década de 50 que
esse modelo passou a ser visto, no país, como a “verdadeira arquitetura
modernista”, uma vez que não possuía qualquer vínculo com o passado colonial e
eclético.
Porém, independentemente do partido arquitetônico orgânico ou
progressista, essa nova arquitetura, em seu interior, não deixava dúvidas: a
fluidez, a transparência entre os espaços internos e externos e a continuidade dos
ambientes eram características típicas da arquitetura modernista. Outro elemento
característico dessa arquitetura era o uso de móveis industrializados, mais leves,
mais simples e, ao mesmo tempo, com um design mais arrojado e inovador,
permitindo a criação de layouts adequados para situações diferentes em um
mesmo ambiente. Tudo isso era o reflexo de um novo tempo e de uma nova
maneira de morar, aceita e adotada ainda por poucos representantes da burguesia
paulistana.
151
4.3 Organograma padrão da casa modernista
152
4.4 Casos de residências modernistas
A seguir, serão destacadas quatro importantes residências modernistas,
projetadas por relevantes profissionais da época: Henrique Mindlin, Eduardo
Kneese de Mello, Jayme Fonseca Rodrigues e João Vilanova Artigas. Esses
projetos mostram, plasticamente, diferenças claras, específicas de cada autor.
Pode-se observar, no entanto, que os programas residenciais são bem
semelhantes.
4.4.1 Residência do senhor G. Haberkamp
(revista Acrópole - maio/1938)
A residência do senhor G. Haberkamp, projetada por Henrique Mindlin, na
rua Dr. João Pinheiro, na região dos “Jardins”, é o primeiro artigo de um projeto da
revista Acrópole, em sua primeira edição de maio de 1938. É interessante notar
que, nessa edição, juntamente com o artigo desse projeto de Mindlin, considerado
na época como “futurista”, há outros artigos de projetos neocoloniais, além de a
capa da revista trazer uma homenagem a Ramos de Azevedo. Assim, percebe-se
que o Ecletismo e o Modernismo caminhavam paralelamente, porém a preferência
da elite paulistana pelo padrão eclético neocolonial dava a esse estilo uma
importância maior.
Esse projeto de Mindlin, no modelo Le Corbusier, é bem interessante e
merece uma atenção especial, pela maneira diferenciada de organizar os espaços
da casa. Em um terreno estreito, a passagem do carro, ao lado da casa, para levá-
lo à garagem aos fundos, diminuiria ainda mais a largura do edifício. Por isso,
Mindlin propôs uma garagem frontal, com acesso ao setor de serviços (a cozinha
e o quarto da criada), liberando, dessa forma, o fundo da casa para o uso do setor
social, com acesso direto ao quintal. Assim, o living room e a sala de jantar, em
completa conexão, puderam se abrir, através de grandes janelas e portas de vidro,
153
a um terraço e ao jardim, aos fundos da casa. Uma solução diferente, na época,
mas que, hoje, é muito utilizada.
A entrada da casa acontece por uma porta frontal, ao lado da garagem, e
acessa o hall (ou vestíbulo, como ainda é chamado no projeto), que separa e
distribui, de maneira bem prática, os três setores da casa. A escada, existente
nesse hall, acessa o hall superior, que faz os acessos a um banheiro e três
dormitórios, sendo dois deles com passagem a terraços. O uso de terraços na
arquitetura modernista passou a ser comum, também, por uma questão plástica,
pois permitia criar espaços abertos e “esculpir” a forma prismática do edifício.
Na decoração e no mobiliário da casa, objetos em estilo art decó e em
design modernista misturavam-se. O piso de madeira, coberto por grandes
tapetes, e a lareira na sala de estar (ou living room) também eram características
comuns nos projetos modernistas das décadas de 30 e 40.
Fig.67 – Vista da frente e da lateral da casa.
154
Fig.68 – Vista da face posterior da casa, mostrando os acessos ao terraço e ao
jardim.
Fig.69 – Plantas dos pavimentos térreo e superior (acima).
1 2
3
5
6
7 4
8
9
10
10
10
11
11
Legenda: 1 – hall 2 – living room 3 – sala de jantar 4 – terraço 5 – garagem 6 – quarto da criada 7 – cozinha 8 – hall superior 9 – banheiro 10 – dormitório 11 – terraço
155
Fig.70 – Vista da sala de jantar, do living room e seus acessos ao jardim.
Fig.71 – Vista do living room com a lareira ao fundo.
156
4.4.2 Residência do senhor Alexandre Tito Labat
(revista Acrópole – fevereiro/1939)
Esse projeto de Eduardo Kneese de Mello para a residência do senhor
Alexandre Tito Labat, localizada na rua Chile, no bairro Jardim América, propõe
uma plástica progressista, entretanto mantém um programa e uma organização
espacial dos ambientes mais conservadores que os de Mindlin, no projeto anterior.
O jardim da casa apresenta-se à frente, compondo uma função bem paisagística,
voltada mais aos olhos do transeunte da rua do que ao uso privativo do
proprietário, ao contrário do projeto anterior. Outra característica que o difere do
projeto de Mindlin é o desmembramento do quarto da criada do corpo da casa.
Esse quarto é inserido em uma edícula, entre a garagem e o galinheiro.
O que mais chama a atenção nesse projeto são os desníveis e o uso de
escadas curtas na separação de alguns ambientes. Nessas escadas, já se veem
grossos corrimãos em aço cromado, bem como em uma cerca, separando o
escritório da sala de estar.
O escritório, à frente da casa, tem como referência o padrão eclético
paulista. O piso de madeira coberto por tapetes, as aberturas para janelas, como
grandes “rasgos” nas paredes, e o uso de terraços aparecem novamente nesse
projeto, como características típicas desse modelo arquitetônico.
Fig.72 – Vista frontal da casa.
157
1
2
3
4
5 6
7 8
9 10
11
12
13
14
15
15
16
17
Legenda:
1 – terraço de entrada 2 – hall 3 – escritório 4 – sala de estar 5 – sala de jantar 6 – copa 7 – cozinha 8 – saleta 9 – quarto da criada 10 – banheiro 11 – galinheiro 12 - garagem
Fig.73 – Plantas do pavimento térreo, à esquerda, e do pavimento superior, à
direita.
13 - banheiro 14 – terraço do banheiro 15 - quarto 16 – quarto com toucador 17 – terraço frontal
158
Fig.74 – Sala de estar com acesso ao escritório, à esquerda, e à sala de estar, à
direita.
Fig.75 – Vista da sala de estar e de jantar, ao fundo.
159
4.4.3 Residência do senhor Jayme de Albuquerque Cavalcanti
(revista Acrópole – agosto/1939)
No mesmo ano da publicação do projeto anterior, a revista Acrópole
publica o projeto da residência do senhor Jayme de Albuquerque Cavalcanti, na
rua Ceará, no bairro Pacaembu, criado pelo arquiteto Jayme Fonseca Rodrigues.
A entrada da casa dá acesso ao hall, que faz sua função de distribuição
aos três setores funcionais da casa. O setor social tem uma interligação contínua
entre o escritório, o living room e a sala de jantar. O living room tem um layout
simétrico, tendo, ao centro, a lareira. O escritório, ao lado da entrada principal da
casa, reaparece nesse projeto, e os terraços são também novamente utilizados. A
sala de jantar dá acesso à copa-cozinha, ao lado esquerdo da casa.
A organização dos espaços, nesse projeto, tem semelhanças com o
projeto de Mindlin, na ideia de aproveitar o fundo da casa com o setor social,
voltado a um jardim privativo, e separando o setor de serviços em uma das laterais
da casa.
O water closet, no pavimento térreo, está um pouco acima do nível do
hall, e pode ser acessado através do patamar da escada.
O pavimento superior é composto por um grande dormitório, com ligação
a uma toalete, com funções de um toucador. Há também um banheiro, com
acesso a um terraço, e outro escritório. O bloco composto pelo escritório térreo e o
superior formam um semicilindro, repleto de aberturas, marcante no partido
arquitetônico do projeto.
160
Fig.78 – Toalete (ou toucador) com uma penteadeira
ao fundo.
Fig.77 – Dormitório visto por dentro da
toalete.
Fig.76 – Vista frontal e lateral da casa.
161
Fig.79 – Planta do pavimento superior
Fig.80 – Planta do pavimento térreo
Legenda:
1 – terraço de entrada 2 – hall 3 – escritório 4 – sala de estar (living room) 5 – sala de jantar 6 – copa – cozinha 7 – banheiro 8 - terraço 9 – escritório superior 10 – dormitório 11 – toalete 12 – banheiro 13 - terraço
1
2
3
4
5 6
7
9
10
11
13
8
12
162
4.4.4 Residência do senhor Nicolau Scarpa Jr.
Essa residência, projetada pelo arquiteto João Vilanova Artigas, em 1942,
na rua Manuel Maria Tourinho, no bairro Pacaembu, destaca-se em relação às
anteriores por suas características plásticas ainda ecléticas. Artigas propôs uma
arquitetura com um desenho normando, através de um telhado inclinado e repleto
de recortes, construído em alvenaria portante pintada de branco e tijolos
aparentes, como referência às casas de Wright.
A entrada da casa ocorre por um corredor na lateral direita do terreno,
acessando um hall com suas funções de separação e distribuição. Os ambientes
sociais da casa, formados por uma sala de estar, dois terraços, uma sala de jantar
e um banheiro, ficam ao lado oposto da porta lateral, separados por um desnível e
uma escada de dois degraus. Já existe um interesse modernista de dar
continuidade a esses ambientes, sem uso de corredores, assim como nos projetos
anteriores. Porém, Artigas mantém a proposta tradicional de inserir o setor de
serviços aos fundos da casa, com acesso ao quintal; e a sala de estar, com uma
lareira em um dos cantos, com aberturas ao corredor lateral esquerdo.
O piso térreo do corpo principal da casa possui também uma copa,
separando a sala de jantar da cozinha; dois dormitórios, sendo um deles com um
toucador ao lado; um banheiro e um lavabo. No pavimento superior, há um hall
que acessa dois dormitórios, um roupeiro e um banheiro.
Na edícula há, em seu piso térreo, uma garagem, uma lavanderia, um
depósito e um galinheiro. No piso superior, um banheiro e dois dormitórios para
serviçais.
É um projeto nem um pouco ousado de Artigas, se for comparado a outros
trabalhos desse arquiteto nessa época, mas que reflete algumas influências de
Wright, somadas às necessidades e ao pensamento conservador da maioria de
seus clientes da classe alta paulistana.
163
Fig.81 – Vista do corredor lateral com a porta de entrada da casa coberta por um terraço.
164
Legenda: 1 – hall de entrada 2 – sala de estar 3 – sala de jantar 4 – terraço frontal 5 – banheiro 6 – toucador 7 – dormitório 8 – terraço 9 – lavabo
Fig.82 – Plantas do piso térreo, à esquerda, e do piso superior, à direita.
10 – copa 11 - cozinha 12 - garagem 13 - galinheiro 14 - lavanderia 15 - depósito 16 - roupeiro
8
7
6 4
2 1
5
3
8
7
10
9
11
12
13
14
15
5 16 8
7
7
7 7
5
165
4.5 A casa de Warchavchik da rua Santa Cruz
A casa de Warchavchik da rua Santa Cruz, no bairro Vila Mariana,
projetada e executada entre os anos 1927 e 1928, tem grande importância na
história da arquitetura paulistana e brasileira, por ser considerada pela grande
maioria de críticos, historiadores e arquitetos, a primeira obra modernista do
Brasil.
Essa obra já foi tema de muitas discussões em jornais, livros e trabalhos
acadêmicos, com suas críticas negativas e positivas, mais por questões
relacionadas ao partido arquitetônico e pela técnica construtiva, do que pelo
programa funcional.
Em plena década de 20, Warchavchik somente conseguiu propor tal
arquitetura, porque a casa não era para nenhum de seus clientes da burguesia
paulistana, mas, sim, para sua própria moradia. A obra foi construída em um
terreno pertencente à família de sua esposa, Mina Klabin, que projetou todo o
paisagismo ao redor da casa.
As principais críticas negativas em relação a esse projeto são: a
construção ter sido realizada, quase que inteira, com tijolos revestidos de cimento
branco, e não em concreto armado; as janelas horizontais, de canto, darem um
aspecto formal modernista, porém não justificando o uso dos materiais
tradicionais; e a cobertura não ser um terraço-jardim sobre uma laje, mas um
telhado de telhas coloniais, escondido por uma platibanda. Assim, dos “5 pontos
da nova arquitetura”, estabelecidos por Le Corbusier, Warchavchik utilizou
somente um, e de forma parcial: as janelas horizontais. Somente a intenção
plástica do edifício parecia ser uma novidade. Isso fez com que Carlos Lemos, em
mais um de seus comentários polêmicos, discordasse do título de “a primeira obra
modernista no Brasil” e a chamasse, em seu livro “Alvenaria Burguesa”, de “a
última casa eclética ao estilo francês”.
Assim, podemos dizer que o marco finalizador do ciclo “cafezista” das residências burguesas foi justamente a casa da rua Santa Cruz, de Gregori Warchavchik – casa só de tijolos, de sobrado feito de assoalho e grossos dormentes de madeira e coberta de
166
telhas tradicionais de barro de capa e canal. Constitui ela o fim de uma era e não o
começo de outra (LEMOS, 1989, p.201).
Em outras de suas críticas, Carlos Lemos (2005) também destaca
algumas semelhanças do programa funcional da casa de Warchavchik com os
programas utilizados por Ramos de Azevedo, como, por exemplo, a posição da
escada, em um ambiente central, que funciona como um vestíbulo “à francesa”, e
a importância dada a esse espaço para a circulação, sem corredores; além disso,
o uso de portas internas para a circulação entre os dormitórios.
Por outro lado, Yves Bruand (2010) exalta alguns aspectos da obra,
principalmente, ao enxergar, no interior da casa, as intenções modernistas do
arquiteto, como a busca pela continuidade dos ambientes sociais, apesar das
dificuldades técnico-construtivas da época, e a necessidade da relação entre o
espaço interno e o externo da casa, como se lê no texto a seguir:
A influência do cubismo, porém, não se limitava à fisionomia externa, composta por prismas elementares; eram visíveis as pesquisas de continuidade espacial, de ligação entre o exterior e o interior. A porta envidraçada, protegida por apenas uma elegante grade de ferro que não impedia a visão e a janela de canto da ala direita, que abria para a varanda, davam uma sensação de acentuada transparência a essa face da casa, enquanto a organização da planta visava a criação de um espaço contínuo, ao mesmo tempo interno e externo, valendo-se de grandes superfícies envidraçadas e de grandes aberturas, que colocavam os ambientes de estar em comunicação direta com a vasta varanda sem criar uma separação visual; a oposição completa entre as diversas faces agrupadas duas a duas, umas compostas de volumes prismáticos, as outras dominadas pelo caráter particular dado pela varanda em “L”, estava de acordo com uma das maiores preocupações do cubismo: a de não poder apreender-se um objeto a partir de uma única perspectiva, sendo necessário deslocar-se em torno dele para poder compreendê-lo ou
representá-lo na sua totalidade (BRUAND, 2010, p.67).
Warchavchik conseguiu construir uma casa esteticamente diferenciada
em São Paulo, burlando as normas dos órgãos municipais da época, que não
aceitavam ainda a completa ausência de ornamentos na fachada. Assim, a casa
tornou-se atração local, com muita gente indo aos domingos à rua Santa Cruz
para ver a “caixa d’água”, apelido que foi dado à casa na época (BRUAND, 2010).
Em verdade, Warchavchik foi muito criticado por ter sido um arquiteto
sempre radical na defesa da arquitetura modernista e por ter escrito vários artigos
a favor da “nova arquitetura” e, no entanto, em sua própria casa, não aplicou
167
integralmente os conceitos que defendia. Mesmo assim, deve-se valorizar sua
coragem e pioneirismo e, apesar da dificuldade da identificação dessa obra dentro
de um modelo arquitetônico puro, compreendê-la dentro de um momento de
transição natural, observando as dificuldades do arquiteto, as propostas formais e
o programa funcional da casa. Outras residências construídas para a elite
paulistana, que vieram depois, projetadas por arquitetos considerados defensores
da arquitetura modernista, também mostraram elementos do Ecletismo até a
década de 40.
Fig.83 – Fachada principal da casa da rua Santa Cruz.
168
Fig.84 – Vista da casa que destaca o terraço, acima, e a janela de canto,
no pavimento térreo.
169
No desenho da planta, percebe-se, realmente, a intenção do arquiteto de
continuidade dos ambientes sociais, assim como da transparência entre os
espaços internos e externos, sendo mediada, nos ambientes sociais, por uma
grande varanda, chamada de “terraço” por Warchavchik. O mobiliário leve e o uso
de espaços abertos (terraços) no prisma também caracterizam o estilo modernista
da casa. Por outro lado, o escritório à frente da casa, ao lado esquerdo da entrada
principal, lembra o tradicional modelo paulista das residências ecléticas. O piano,
peça fundamental nas residências da burguesia do início do século XX, também
aparece desenhado, ocupando boa parte do living room.
Também é interessante notar a necessidade do arquiteto em projetar os
ambientes térreos e superiores com medidas determinadas e limitadas pela
sustentação das paredes térreas em alvenaria: são vistos dois dormitórios,
exatamente do tamanho do living room, e um outro do tamanho da sala de jantar.
Fig.85 – Planta do piso térreo, à esquerda, e do piso superior, à direita.
170
Fig.86 – Vista da escada com piso de madeira, ao centro, e a porta metálica envidraçada, dando acesso
ao terraço, à direita.
171
5. Considerações finais
Analisar e descrever as mudanças nos programas funcionais das
residências urbanas das elites paulistanas, desde os sobrados coloniais até as
casas modernistas da década de 1940, implica contar a história, mesmo que de
modo superficial, da cidade de São Paulo e de sua sociedade, durante todo esse
período. Afinal, a história de São Paulo foi conduzida por sua elite social: os
senhores de engenho, donos dos sobrados no período colonial; os barões do café,
donos de mansões e palacetes no século XIX; e os burgueses conservadores ou
progressistas, no século XX, que se dividiram entre mansões neocoloniais,
modernistas e apartamentos. Além disso, aspectos importantes como a
setorização dos espaços, a sobreposição de funções, os mobiliários utilizados,
entre outros, contam o modo de vida da elite da época, assim como definem o
significado dinâmico de “casa” para essa classe social. A casa nunca deixou de
ser um espaço de abrigo, entretanto também com outras funções, que variaram de
século a século: proteção e resguardo, convivência social, ou, simplesmente, de
acolhimento e vivência dos moradores, além de sempre simbolizar status perante
a sociedade.
Os sobrados coloniais surgiram no centro urbano de São Paulo, mas,
inicialmente, não como a casa principal dos fazendeiros da região do planalto. No
entanto, passaram a ter cada vez mais importância a partir do desenvolvimento
comercial e social da área central urbana.
Em relação ao programa dos sobrados paulistanos, até o final do século
XVIII, ainda se misturavam os setores social, privativo e de estar-serviço, uma vez
que este último servia tanto para a vida cotidiana dos moradores como para o uso
dos escravos. O setor privativo ficava no eixo central de circulação da casa.
Porém, essa divisão foi uma novidade na época em relação às casas anteriores,
mostrando uma preocupação um pouco maior na organização setorial da casa,
pois tanto os casebres quanto as antigas ocas não se preocupavam com essa
setorização funcional. A segregação e o resguardo da mulher da elite social,
somados à convivência de dois extremos de classes sociais sob o mesmo telhado,
172
favoreceram essa setorização padrão, que ainda é encontrada, de forma muito
semelhante, na arquitetura de residências atuais.
Porém, apesar de ter um desenho mais claro e definido nos sobrados,
essa organização espacial aparecia também em alguns casebres, e de forma não
tão diferente. Na verdade, a diferença entre a casa das famílias abastadas e a das
famílias mais modestas manifestava-se nitidamente no tamanho da construção e
no número de móveis, ou seja, de forma quantitativa. O fato de aquela sociedade
ter vivido por mais de dois séculos isolada no planalto e fechada em um modo de
vida patriarcal, transmitido de geração a geração, impediu que esses paulistanos,
até o início do século XVIII, buscassem algo novo, independentemente de sua
condição financeira. Para os abastados ou não, a casa era construída em taipa de
pilão, que já limitava e definia o desenho da casa em muitos aspectos do partido
arquitetônico. Dentro dela, redes, catres, caixas, baús e tripeças eram
encontrados como equipamentos comuns e necessários a todas as famílias. Até
então, São Paulo não era uma cidade rica, o que tornava seu modo de vida muito
parecido ao de toda a sociedade brasileira colonial.
A vida cotidiana dentro da casa ocorria, praticamente, em um único
pavimento. Tanto em casas térreas como em sobrados, a vida social, a privativa e
os serviços aconteciam no mesmo piso, característica típica do período colonial.
Nos sobrados, a adição de mais um pavimento favorecia uma separação maior
dos espaços de uso diário da família e de acomodação dos escravos. O sobrado
também favorecia ainda mais o resguardo das mulheres da casa, pois sua
presença cotidiana ocorria na varanda, na cozinha e nas alcovas, ambientes do
andar superior que as separavam da frente da casa. O piso térreo era utilizado
somente pelos homens da casa e pelos escravos.
Assim, o programa funcional dos sobrados coloniais refletia, de forma
muito fiel e verdadeira, a cultura e as características gerais de uma sociedade
modesta, livre de luxos e de outros interesses, senão aqueles transmitidos por
seus antecessores e já inseridos no cotidiano da região do planalto.
173
No período eclético, ao final do século XIX, os fazendeiros cafeicultores
instalaram suas mansões próximas às estradas de ferro, em bairros como
Campos Elíseos, Luz, Santa Ifigênia e Vila Buarque. Porém, com o surto de
doenças na região noroeste da cidade, os fazendeiros afastaram-se, subindo para
Higienópolis e chegando até a Avenida Paulista, em sentido sudoeste.
Nessa época, o novo modo de vida das famílias mais abastadas trouxe
inovações no programa residencial e na arquitetura, manifestadas principalmente
nas casas da mais alta classe social de São Paulo, os palacetes da burguesia.
A qualidade passava a ser mais importante do que a quantidade para se
viver bem, e essa qualidade tornou-se o diferencial entre as classes sociais da
cidade, diferentemente do período colonial.
O novo programa residencial procurava trazer o bem-estar para os
moradores da casa, com os novos conceitos de higiene, salubridade e a
necessidade de uma rígida setorização espacial, além da privacidade, do luxo e
do conforto. A privacidade era revelada nas mudanças da circulação, com o
aparecimento do vestíbulo e a divisão bem definida das funções da casa entre os
pavimentos e seus ambientes. O luxo aparecia desde a fachada exuberante até os
revestimentos internos de piso e parede, ornamentos decorativos, móveis
franceses e ingleses e obras de arte estrangeiras e caras. O conforto revelava-se
na quantidade de ambientes de estar, no surgimento da copa, na aproximação da
cozinha com a sala de jantar, na facilidade de acesso aos banheiros pelos
usuários da casa, na qualidade dos utensílios e dos móveis, no uso das novas
tecnologias e na disposição fixa do mobiliário dentro dos espaços específicos da
casa.
O uso do mobiliário mais pesado, robusto e específico para o ambiente
determinado passava a representar a estabilidade social e econômica do morador,
além de distinguir cada ambiente, de forma clara, com suas diferentes funções. A
forma evocava a função. Os antigos móveis nômades do período colonial, como
as arcas, os bancos, os baús, o jirau, a tripeça, as redes, entre outros, foram
necessários dentro de um programa residencial com espaços de funções
sobrepostas e marcaram também um período de maior necessidade de
174
mobilidade da população masculina com suas viagens. Isso, para a elite social da
cidade, no século XIX, simbolizava pobreza e um modo de vida ultrapassado.
A casa das famílias mais abastadas passava a ter uma função importante
como espaço aberto ao relacionamento social entre as famílias dessa classe.
Assim, deixava de ser somente uma edificação necessária para o abrigo, a
proteção e a subsistência de seus moradores. O relacionamento era primordial
para os negócios profissionais, os acertos políticos, o conhecimento dos
pretendentes ao casamento, para as conversas sobre viagens e momentos de
lazer. Trabalhar em casa e viver da subsistência também não mais condiziam com
o modo “moderno” de vida.
No início do século XX, a burguesia paulistana passou a morar em
regiões da Avenida Paulista, dos “Jardins” e no Pacaembu, continuando a
ocupação no vetor de sentido sudoeste, conforme se vê ocorrendo até os dias
atuais, com casas e apartamentos no Morumbi e outros bairros, e municípios
como Cotia, Taboão da Serra, Embu das Artes, entre outros.
A primeira metade desse século foi marcada pela mescla entre a busca
da identidade nacional e a influência estrangeira. Isso ocorreu, à primeira vista,
não somente em manifestações da arquitetura brasileira, mas também na
arquitetura mexicana, na norte-americana, com modelos em Miami e na região da
Califórnia, e em outros países latino-americanos.
Em São Paulo, as casas neocoloniais procuraram manter todo o conforto
e a privacidade do morador, apesar da racionalização do espaço. O porte da
residência da elite paulistana diminuiu, e os espaços públicos da cidade passaram
a ser mais valorizados. A casa neocolonial já não mostrava a necessidade do
resguardo feminino, homens e mulheres tinham acesso à casa toda. Essa
conquista do espaço interno da casa, pela mulher, era um reflexo de conquistas
muito maiores na sociedade. A cidade, a sociedade e a casa passavam por
profundas transformações.
A tecnologia permitia que o espaço interno da casa se mantivesse de
forma organizada, privilegiando o bem-estar e a vida privada dos moradores. O
luxo ainda existia, porém sem exageros, pois a vida social deixou de ocorrer
175
dentro de casa. Esta deveria funcionar bem somente para o proprietário e sua
família. O piano, sempre presente nos ambientes sociais, foi substituído pelo rádio
e pela vitrola e, assim, a música, na casa, não mais dependia da boa vontade de
algum membro da família. O mobiliário ficou mais “enxuto”, até mesmo para
acompanhar as naturais alterações no espaço. Não era mais possível morar em
um palacete, devido à carência de terrenos, de empregados, de novas
necessidades familiares e outros motivos, que compunham um paradigma mais
prático do modo de viver.
Esses conceitos de racionalização e maior praticidade, encontrados no
programa e no desenho dos ambientes da casa neocolonial, juntamente com o
desejo de resgatar um modelo plástico na arquitetura como identidade nacional
seguiam, cronologicamente, paralelos à difusão das ideias de Le Corbusier e
Frank Lloyd Wright, e fortaleciam os ideais modernistas, já presentes na
arquitetura de jovens arquitetos, mesmo que ainda de forma tímida.
A arquitetura modernista propunha fluidez, transparência, continuidade
espacial, bem como uma praticidade, de forma geral, na maneira de morar.
Eletrodomésticos passaram a ser fundamentais, e móveis mais leves e
independentes do espaço onde inseridos passaram a ser mais interessantes na
formação de diferentes layouts em ambientes mais flexíveis e funcionais. A forma
passava a seguir a função. Nesse momento, não havia muita sobreposição de
funções, no entanto, os espaços não deveriam ser mais tão rígidos como antes.
Percebe-se, assim, que, tanto na virada do século XVIII para o XIX,
quanto na do século XIX para o XX, existiu, na arquitetura e no programa funcional
da casa, um tipo de “resposta contrária”: o Ecletismo promoveu uma mudança
radical em relação à arquitetura e ao modo de vida da elite paulistana colonial, e o
Modernismo, por sua vez, também propôs mudanças com conceitos
revolucionários, totalmente contrários àqueles do Ecletismo. E é claro que essas
mudanças ocorreram inseridas em um conjunto de transformações históricas, que
foram muito além do modo de vida do núcleo familiar, da sociedade, da cidade e,
muitas vezes, do país. No entanto, o modo de viver da elite paulistana sempre
teve características bem particulares, refletidas pela história peculiar e
176
efervescente da cidade, e manifestadas no programa funcional da casa e no modo
de utilização de seus espaços.
177
REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). 5ª Ed. São Paulo: Global Editora, 2009. AMARAL, Aracy. A Hispanidade em São Paulo. São Paulo: Editora Studio Nobel / Edusp, 1981. ARAGÃO Solange de. Ensaio sobre a casa brasileira do século XIX. São Paulo: Editora Blucher Acadêmico, 2011. ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova – Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002. BARBUY, Helena. A Cidade–Exposição – comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006. BRANDÃO, Ângela. Anotações para uma história do mobiliário brasileiro do século XVIII. Revista CPC. Universidade de São Paulo. São Paulo, n.9, 2010. http://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/15654 - acesso em 16-12-2013. BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. 5ª Ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. BRUNO, Ernani Silva. Histórias e Tradições da Cidade de São Paulo – Vol. 1, 2 e 3. São Paulo: Editora Hucitec, 1991.
BUZZAR, Miguel Antônio. A Ideia de Uma Casa Brasileira. 5º Seminário Docomomo Brasil. Departamento de Arquitetura e Urbanismo – EESC. Universidade de São Paulo. São Carlos, 2003. http://www.docomomo.org.br/seminario%205%20pdfs/127R.pdf - acesso em 07-12-2013. ______. O Equipamento da Casa Bandeirista Segundo Antigos Inventários e Testamentos. São Paulo: Publicação do Departamento do Patrimônio Histórico, 1977. CAMPOS, Candido Malta. Os Rumos da Cidade – Urbanismo e Modernização em São Paulo. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002. CAMPOS, Candido Malta; GAMA Lúcia Helena; SACCHETTA Vladimir (orgs.). São Paulo Metrópole em Trânsito – percursos urbanos e culturais. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004.
178
CARRILHO, Marcos. Brazil Builds – 55 Anos de Exposição. In: PiniWeb. São Paulo, 01/04/1998. http://piniweb.pini.com.br/construção/noticias/brazil-builds---55-anos-da-exposição-84648-1aspx - acesso em 04-06-2015. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato – O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 - 1920. São Paulo: Edusp, 2008. CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Bem-morar em São Paulo, 1880-1910: Ramos de Azevedo e os modelos europeus. SciELO - Scientific Electronic Library Online. FAPESP – BIREME. São Paulo, 1996. http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v4n1/a15v4n1.pdf - acesso em 23-08-2014. ______. Ramos de Azevedo. São Paulo: Edusp, 2000. COLIN, Sílvio. Técnicas Construtivas do Período Colonial. Instituto Histórico – INPHIC – Betim (MG). Betim, 2011. http://imphic.ning.com/group/historiacolonial/forum/topics/arquitetura-colonial - acesso em 06-12-2013. CORONA, Eduardo, LEMOS, Carlos. Dicionário da Arquitetura Brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Editora Artshow Books Ltda., 1989. DEJEAN, Joan. O Século do Conforto. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira, 2012. DONATO, Hernani. História dos Usos e Costumes do Brasil. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2005. FABRIS, Annateresa. Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Editora Nobel/Edusp, 1987. FARIAS, Claudio Lamas de; AYROSA, Eduardo; CARVALHO, Gabriela; ABRAMOVITZ, José; FRAIHA, Silvia. Eletrodomésticos – Origens, História & Design no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fraiha, 2006. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1964. ______. Sobrados e Mucambos – Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano. São Paulo: Editora Global, 2004. GERBOVIC, Tathiane. O Olhar Estrangeiro em São Paulo até Meados do Oitocentos: relatos de viajantes ingleses e norte-americanos. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
179
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-05022010-164525/pt-br.php - acesso em 22-01-2014. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. HOMEM, Maria Cecília Naclério. O Palacete Paulistano – e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. ______. O Princípio da Racionalidade e a Gênese da Cozinha Moderna. In: Revista Pós, n. 13, São Paulo: FAU USP, 2003. p. 124-154. HOUAISS, Antônio; FRANCO, Francisco Manuel de Mello; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, Editora Objetiva, 2001. ITABORAÍ, Nathalie Reis. A Família Colonial e a Construção do Brasil: vida doméstica e identidade nacional em Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Nestor Duarte. Revista ANTROPOLÓGICAS. Recife, v. 16, 2005. http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/article/view/53 - acesso em 12-12-2013. LANA, Ana Lúcia Duarte; LIRA, José Tavares Correia de; PEIXOTO, Fernanda Áreas; SAMPAIO, Maria Ruth Amaral (orgs.). São Paulo, os Estrangeiros e a Construção das Cidades. São Paulo: Editora Alameda, 2011. LE CORBUSIER. Por Uma Arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. LEMOS, Carlos. A República Ensina a Morar (melhor). São Paulo: Editora Hucitec, 1999a. ______. Alvenaria Burguesa: breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. São Paulo: Editora Nobel, 1989. ______. Casa Paulista: História das Moradias Anteriores ao Ecletismo Trazido pelo Café. São Paulo: Edusp, 1999b. ______. Cozinhas, etc: Um estudo sobre as zonas de serviço da casa paulista. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. ______. Da Taipa ao Concreto – Crônicas e ensaios sobre a memória da Arquitetura e do Urbanismo. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2013.
180
______. El estilo que nunca existió. In: AMARAL, Aracy (coordenadora). Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos. São Paulo: Memorial; Fondo de Cultura Económica, 1994, p. 147-164. ______. História da Casa Brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Editora Contexto, 1996. ______. O Modernismo Arquitetônico em São Paulo. In: Vitruvius / Arquitextos. São Paulo, 2005. http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.065/413 - acesso em 02-05-2015. ______. Transformações do Espaço Habitacional Ocorridas na Arquitetura Brasileira do Século XIX. SciELO - Scientific Electronic Library Online. FAPESP – BIREME. São Paulo, 1993. http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v1n1/a09v1n1.pdf - acesso em 20-04-2014. LIRA, José. Ruptura e Construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. SciELO - Scientific Electronic Library Online. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013 - acesso em 27-05-2015. ______. Warchavchik - Fraturas da Vanguarda. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2011. MARCONDES, Flavio. Reflexão vivencial sobre a produção arquitetônica na cidade de São Paulo – do moderno ao contemporâneo. Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2013. MARINS, Paulo César Garcez. Através da Rótula – sociedade e arquitetura urbana no Brasil, séculos XVII a XX. São Paulo: Editora Humanitas, 2001. MARTINS, Anamaria de Aragão Costa. A forma de morar: a transformação da casa brasileira à luz das normas reguladoras da estética da paisagem e das edificações. UniCEUB – Centro Universitário de Brasília. Brasília/DF, 2000. http://publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/arqcom/article/view/1091 - acesso em 18-12-2013. MELLO, Eduardo Kneese de Mello. A Herança Mourisca da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1973. MILLS, Charles Wright. The Power Elite. Oxford: Editora Oxford University Press, 1956. MINDLIN, Henrique. Organização Racional da Cozinha. In: Acrópole, n.2. São Paulo: 1938, p. 19-22.
181
MORSE, Richard. Formação Histórica de São Paulo – da comunidade à metrópole. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1999. PASSARELLI, Sílvia Helena. Café, Ferrovia e Indústria: memória e percepção do gênese da metrópole paulista. Anais – encontros nacionais da ANPUR. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Recife, v.15, 2013. http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/anais/article/view/4583 - acesso em 23-12-2013. PEDONE, Jaqueline Viel Caberlon. O Espírito Eclético na Arquitetura. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2003. http://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_6/11_Jaqueline%20Viel%20Caberlon%20Pedone.pdf – acesso em 23-02-2014. PELEGRINI, Sandra C. A. Interfaces da Imagética Arquitetônica e da História – As precursoras habitações urbanas paulistas. Revista História Social. Universidade de Campinas. Campinas, n.11, 2005. http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/165 - acesso em 27-08-2014. PETROSINO, Maurício Miguel. João Batista Vilanova Artigas – residências unifamiliares: a produção arquitetônica de 1937 a 1981. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-16032010-090950/en.php- acesso em 22-05-2015. PONTUAL, Julice; CAVALCANTI, Virgínia. Apartamento Brasileiro e Mobília de 1950 – a busca do ideal moderno. Maxwell. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012. http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/22657/22657.PDF - acesso em 02-10-2014. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. RODRIGUES, José Wasth. Documentário Arquitetônico. 5ª Ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1990. RYBCZYNSKI, Witold. Casa: Pequena História de Uma Ideia. São Paulo: Editora Record, 1999. SAIA, Luís. Morada Paulista. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012.
182
SCHPUN, Mônica Raisa. Regionalistas e Cosmopolitas: As amigas Olivia Guedes Penteado e Carlota Pereira de Queiroz. In Artelogie, n.2, 2011. http://cral.in2p3.fr/artelogie/spip.php?article81 – acesso em 02-12-2014. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 2010. ______. Prelúdio da Metrópole – Arquitetura e Urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. SERAPIÃO, Fernando. Paralelos (e transversais) na história da casa paulista. In: Projeto Design, n. 287. São Paulo: 2004. p. 26-37. SETÚBAL, Maria Alice (org.). A Formação do Estado de São Paulo, Seus Habitantes e os Usos da Terra. São Paulo: Impressão Oficial do Estado de São Paulo, 2004a. ______ (org.). Modos de Vida dos Paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. São Paulo: Impressão Oficial do Estado de São Paulo, 2004b. SILVA, João Luis Máximo. Transformações no Espaço Doméstico – O fogão a gás e a cozinha paulistana, 1870 – 1930. SciELO - Scientific Electronic Library Online. FAPESP – BIREME. São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-47142007000200018&script=sci_arttext – acesso em 02-09-2014. SIMÕES JÚNIOR, José Geraldo. Anhangabaú – História e Urbanismo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. TAUNAY, Affonso D’Escragnolle. São Paulo no Século XVI: História da Vila Piratininga. São Paulo: Editora Tours E. Arrault & Cia., 1921. TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo – Três cidades em Um Século. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2012. VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura. 5ª Ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004. VERÍSSIMO, Francisco Salvador; BITTAR, William Seba Mallmann. 500 Anos da Casa no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1999. VILLAR, Maria. Batuque na Cozinha – estudo sobre espaços de cozinha no Brasil Colônia, através dos relatos de viajantes. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de Brasília. Brasília/DF, 2010. http://www.livrosgratis.com.br/arquivos_livros/cp153863.pdf - acesso em 29-09-2014.
183
WARCHAVCHIK, Gregori. MARTINS, Carlos A. Ferreira (org.) Arquitetura do Século XX e outros escritos. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2006. WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: o primeiro bairro-jardim de São Paulo e sua arquitetura. São Paulo: FAPESP/Edusp, 2001. ZUFFO, Élida Regina de Moraes. Do Rádio à Internet: os equipamentos de comunicação nos apartamentos paulistas. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2000.