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Das transformações no Aterro do Flamengo e sua dimensão fantasmagórica Luiza Batista Amaral [Mestranda do Programa de Pós-‐Graduação em História Social da Cultura PUC-‐Rio]
AMARAL, L. B. Das transformações no Aterro do Flamengo e sua dimensão fantasmagórica. Revista Anima, Ano 4, nº 5, 2014, p. 52-‐61. Resumo Observar a cidade entre rastros e ruídos é compre-‐ender a dimensão fantasmagórica inerente ao ambiente urbano, é refletir sobre a força do devir que atua de forma destrutiva na abrupta sobrepo-‐sição das camadas de vivência, é perceber que a poeira e o rastro fazem parte de um minimalismo pulsante que convida o pesquisador a juntar os cacos dispersos na paisagem. Partindo da constru-‐ção dos rastros no ambiente urbano e da literatura da modernidade, esse ensaio tem o objetivo de iniciar reflexões em torno da qualidade residual do Aterro do Flamengo, destacando principalmente sua natureza patrimonial. Palavras-‐chave: Rastro, Arquitetura, Preservação Patrimonial. Abstract To observe the city between noise and traces is to understand the ghostly dimension inherent in the urban environment, is to reflect about the power of becoming that act in the destructively in overlap process of layers of experience, is to realize that the dust and the trail are part of a pulsating minimal-‐ism that invites the researcher to pick up the pieces scattered in the landscape. Starting from the reflec-‐tion of trails built by the urban environment and the literature of modernity, this essay aims to start thinking about the residual quality of Aterro do Flamengo, mainly highlighting its patrimony na-‐ture. Keywords: Traces, Architecture, Patrimony Preser-‐vation.
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Entre rastros e fantasmas, duas projeções, uma imagem
O rastro como um conceito e uma face da fantasmagoria, inicialmente, surge da inda-‐
gação de Aby Warburg (1866-‐1929) diante a intermitência de determinadas imagens que
oscilam entre o esquecimento e a existência. A sobrevivência de alegorias configura-‐se no
ato da evocação de fantasmas, imagens adormecidas, esquecidas em um baú empoeirado
que abriga um vasto repertório de amostras imagéticas. Por isso, George Didi-‐Huberman,
pensador que atualmente retoma a concepção warburguiriana, enfatiza a denominação des-‐
se campo de estudo das imagens como Geistgeschichte (História de Fantasmas). A perspecti-‐
va warburguiriana se faz presente no olhar do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-‐1940),
na medida em que o teórico trabalha em torno da perspectiva residual do rastro. No desen-‐
volvimento de suas obras, Benjamin se depara com a concepção do rastro, questão reinci-‐
dente em seu olhar, principalmente nas reflexões sobre o narrador, o conceito de imagem
dialética e a análise da modernidade em Experiência e Pobreza (1933).
O rastro e fantasma são conceitos que se entrelaçam formando um reflexo uno por
operarem na esfera do residual e da tensão entre o esquecimento e a sobrevivência. Assim,
configuram-‐se como referências importantes para compreensão da modernidade, e, sobre-‐
tudo do tipo de experiência construída entre o indivíduo e as relações de produção.
Cidade, espaço cênico da fantasmagoria
O gosto pela multidão e pelo caótico, o valor da indigência, o empobrecimento da ex-‐
periência, o núcleo da perversidade, o lugar do processo civilizador, essas são características
do ambiente urbano da modernidade que se expressa de forma pulsante na produção literá-‐
ria do século XIX e XX. O ambiente insalubre, fabril, e onírico, assim é o olhar do gravurista
Gustave Doré sobre a cidade moderna. A construção de um ambiente sombrio através da
palheta noir do gravurista nos convida a experimentar o cotidiano urbano tão presente na
literatura de Edgar Allan Poe, Baudelaire, Kafka, e outros escritores que trabalharam a cons-‐
tituição plástica desse ambiente.
A cidade da modernidade nasce sob o signo da efemeridade, da fragmentação e da
mudança caótica advinda dos processos de produção capitalista, que mutila as experiências
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(BENJAMIN, 1933), e conduz a interação social pela ótica da mercadoria através do espetá-‐
culo produzido no cerne das galerias e feiras industriais (BENJAMIN, 1935), elementos que
corroboram para produção dos rastros e da dimensão fantasmagórica na realidade. Ao pon-‐
tuar essa questão, David Harvey (1989) aponta para a percepção do historiador Carl Shorske
(1981) que, ao analisar a cidade de Viena, afirma:
A alta cultura entrou num turbilhão de inovação infinita, cada campo pro-‐clamando-‐se independente do todo, cada parte dividindo-‐se, por sua vez, em partes. Para a implacável centrífuga da mudança foram atraídos os pró-‐prios conceitos mediante os quais os fenômenos culturais poderiam ser fi-‐xados no pensamento. Não somente os produtores da cultura, como tam-‐bém os seus analistas e críticos, foram atingindo pela fragmentação. (HAR-‐VEY, 1989, p.22)
A “centrífuga da mudança” a qual Shorske se refere aparece na literatura de Goethe de
forma crítica, destacando a dimensão trágica da interação do campo com a cidade, da con-‐
quista ilusória pelo cientificismo, e da busca frustrada do homem pelo domínio da natureza
e pela subversão da paisagem. O arquétipo de Fausto configura a tragédia do desenvolvi-‐
mento (BERMAN, 1988), apresentando-‐se como elemento produtor de fragmentos através
do posicionamento “vanguardista” perante a realidade, ou seja, o personagem assume uma
ação destrutiva perante aos elementos passados transformando o antigo mundo em poeira.
Ainda nessa discussão, Irving Wohlfarth (2012) ao analisar o poema “Perda da Aureola” de
Baudelaire, aponta a pulverização da singularidade e o gosto pelo comportamento incógnito
que possibilita o apagamento das pegadas do poeta em sua caminhada pela cidade. Diante
do olhar sobre a produção de Baudelaire, Robert Pechman retoma a fala de Raymond Willi-‐
ams com a finalidade de enfatizar o processo de esfacelamento da singularidade e da identi-‐
dade, momento em que o personagem (o poeta) perde a auréola se camuflando na multidão
e provando o anonimato. Portanto, segundo Williams:
A experiência urbana se generalizava tanto, e um número desproporcional de escritores estava tão profundamente envolvido nela, que qualquer outra forma de vida parecia quase irreal; todas as fontes de percepção pareciam começar e terminar na cidade, e, se havia alguma coisa além dela, estaria também além da própria vida. (WILLIAMS, apud PECHMAN, 1999, p.6)
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A dimensão além da vida mencionada por Williams aponta para o efêmero, o residual,
o rastro, a dimensão fantasmagórica proveniente da impossibilidade e do empobrecimento
da experiência do narrador, este como o habitante da cidade infernal de Brecht, no Manual
para habitantes da cidade (Lesebuch für Städtebewohner), é intimado a apagar seus rastros,
e abdicar de sua memória e identidade de forma passiva, proferindo ao final do poema, “As-‐
sim me foi ensinado” (Das wurde mir gehlehrt). Ante a valorização do esquecimento, Benja-‐
min (GAGNEBIN; WOHLFARTH: 2012) afirma que a tempestade do progresso se alimenta a
partir do esquecimento, ou seja, o anonimato e a cisão entre experiência e memória são
fatores que podem explicar o distanciamento entre tradição, cultura, patrimônio e cidade,
lembrando que a experiência patrimonial está imantada pelo ato de rememoração e ativa-‐
ção da consciência histórica.
Diante desse quadro, os personagens do ambiente urbano – o flanêur, o voyeur e o de-‐
tetive – convergem para as figuras do colecionador e do fantasma, o primeiro preserva a
experiência no ambiente privado de forma fragmentada dotando os objetos de singularida-‐
de e de memória afetiva, logo, construindo um movimento de resistência na medida em que
retira o caráter fetichista da mercadoria ao ressignificar o objeto dentro de estruturas sen-‐
timentais. Já o fantasma, se enquadra na perspectiva do espaço público, na dissolução do
indivíduo em favor da aniquilação do passado. Em suma, o rastro se apresenta em ambas as
experiências, sendo a primeira configurada pela presença de uma ausência e a segunda na
ausência de uma presença, ou seja, o rastro existe em razão de sua fragilidade, de sua passi-‐
vidade frente às intempéries do esquecimento.
A essência fantasmagórica do Aterro do Flamengo
A terra que cobriu o mar, assim nasce o aterro, uma grande extensão de terra nascida
na fantasmagoria, forjada pela poeira do antigo morro de Santo Antônio. O Aterro é a ex-‐
pressão do rastro, é a tensão entre a mudança e a permanência, é o jogo de forças entre a
memória e o presente.
Do entrelaçamento entre estética e funcionalidade nasce a proposta de construção do
Aterro do Flamengo, um amplo complexo de lazer que tinha o intuito de embelezar a cidade
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e integrar edificações anteriores como o Aeroporto Santos Dumont (1944), o Museu de Arte
Moderna (1958) e o Monumento dos Pracinhas (1956). Além disso, o projeto desempenharia
um importante papel no tráfego da cidade sendo uma extensa via de ligação da Zona Sul ao
centro do Rio de Janeiro. Aliado a esses fatores, o grande boom imobiliário nos bairros oceâ-‐
nicos e o crescimento populacional atuaram como forças que moveram as engrenagens do
processo de revitalização da cidade (GIRÃO, 2011, p.3).
O jogo de tensões entre a funcionalidade e a estética esteve presente desde a elabora-‐
ção do Aterro, colocando a natureza do local como principal discussão em debate pelos três
grupos que assumiram a frente da realização do projeto – a equipe de tráfego e obras da
Secretaria Geral de Viação e Obras, a equipe de infraestrutura (SURSAN-‐ Superintendência
de Urbanização e Saneamento), e o Grupo Trabalho liderado por Maria Carlota de Macedo
Soares e Affonso Reidy. Uma das hipóteses de uso do local passa pela construção de pistas
rápidas que segundo Ana Rosa de Oliveira (2006) era um dos grandes objetivos da urbaniza-‐
ção do Aterro do Flamengo, articular e melhorar o tráfego entre a zona sul, centro e norte,
juntamente com o desmonte do Morro Santo Antônio, a Avenida Perimetral e o Túnel Re-‐
bouças (DE OLIVEIRA, 2006).
O Aterro vem como produto na esteira de mudanças que a cidade havia já sofrido no
Plano Agache, no qual Reidy também participou como auxiliar do urbanista francês. As mu-‐
danças motivadas pelos planos de revitalização e reestruturação da cidade, feitos pelos ur-‐
banistas, atuam de forma “vanguardista” perante as antigas construções, apagam as pega-‐
das, cobrem com uma camada de poeira as edificações anteriores, estas que passam a existir
como rastro, fragmentos de lembrança dispersos em uma desconhecida extensão do pre-‐
sente.
As décadas de cinquenta e sessenta no Brasil foram pintadas com cores fortes pelas ar-‐
tes, pela arquitetura, pelo paisagismo, e pelo urbanismo, campos marcados pela singulari-‐
dade e intenso ritmo de produção. Do construtivismo, das linhas retas, da geometricidade, a
crença na universalidade das formas geométricas ganha o espaço no aterro; Escultura e ar-‐
quitetura se fundem em um balé de passos sincronizados na composição de Reidy. O parque
surge como embrião da brasilidade, a tentativa de plasmar a identidade no espaço por meio
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das formas, do uso de plantas genuinamente brasileiras no paisagismo, e pelas propostas de
exposição da coleção de peixes e plantas do Brasil.
A pluralidade de propostas e profissionais atuantes no projeto é um fator que chama
atenção para a interdisciplinaridade na idealização do espaço, pensando desde seu aspecto
físico, estético até as dimensões recreativas através da proposta “parque vivo” idealizada
pela educadora e especialista em recreação pública Ethel Bauzer Medeiros. O trabalho de
Medeiros, assim como de Reidy e Burle Marx são marcados pela idealização dos espaços
pré-‐moldados pelos seus usos, ou seja, o parque foi setorizado de acordo com os tipos de
aproveitamento do espaço e desenvolvimento de atividades previamente definidas no pro-‐
jeto. A separação e o zoneamento são características marcantes do pensamento arquitetô-‐
nico e urbanístico moderno. Assim, as áreas de aproveitamento pré-‐definido1 nascem sobre
o signo da funcionalidade, fazendo da repartição do ambiente urbano a expressão máxima
da função social dessa escola de arquitetura e urbanismo.
No que toca a dimensão do paisagismo, o aterro do flamengo configura um importante
marco para a sua emancipação do campo da arquitetura, demonstrando uma nova percep-‐
ção que contraria a visão de Le Corbusier em relação às plantas ao afirmar que estas atua-‐
vam como um mero realce na expressão da edificação. Burle Marx traz o paisagismo como
linguagem artística independente, propõe através de sua obra discutir a integração entre a
paisagem paisagística e a paisagem natural, e, além disso, impõe novos desafios à constru-‐
ção paisagística ao colocar plantas de diferentes tipologias e ambientes climáticos no projeto
do aterro.
O aterro se caracteriza pela integração do conjunto paisagístico de Burle Marx, pelas
expressões arquitetônicas do Museu de Arte Moderna, do Pavilhão Japonês, do Museu Car-‐
men Miranda, do Monumento dos Pracinhas, do Coreto e do Teatro de Marionetes que con-‐
figuram a natureza caleidoscópica do parque. Diante desse conjunto plural que abriga arqui-‐
tetura, paisagismo, e outras expressões artísticas, nota-‐se que pequenas mudanças conver-‐
gem para a descaracterização da identidade do parque.
1 As áreas para realização de piquenique, esportes, atividades para adultos e crianças foram previamente pla-‐nejadas pensando desde os motivos arquitetônicos até a estrutura funcional, portanto, formulando um mape-‐amento e uma “cartilha” de como vivenciar o espaço.
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A inauguração e o tombamento do aterro ocorrem no mesmo ano, em 1965. Esse fato
demonstra um jogo de tensões entre a preservação do conjunto e o desejo do apagamento
dos rastros através da descaracterização do parque, processo que se intensifica ao longo do
tempo pela especulação imobiliária na área ao entorno. A presença de grandes eventos na
cidade impulsionam mudanças que modificam profundamente a forma e a essência simbóli-‐
ca do espaço, os exemplares patrimoniais que já existem como rastros na paisagem se trans-‐
formam em poeira, e rapidamente são apagados pelos ventos da vanguarda. A incidência de
propostas para revitalização do parque e a presença de construções irregulares levaram o
SPHAN, atual IPHAN, a estabelecer em 1988 que todas as obras fossem submetidas e avalia-‐
das pelo órgão antes de sua execução, constituindo assim uma ação preventiva à modifica-‐
ção do parque. Apesar do decreto, muitas áreas do aterro sofreram com intensos processos
de mutilação justificados pela ótica da revitalização: as mudanças motivadas pelos jogos
Pan-‐americanos em 2006, a destruição da área de piquenique para implantação do estacio-‐
namento de veículos, e a retirada de áreas de jardim para construção da ciclovia são fatores
que convergem para desmembramento do corpo do parque, refletindo também a tentativa
de transformá-‐lo em fragmentos.
Os rastros são essencialmente urbanos, marcados pela pluralidade de linguagens, sím-‐
bolos, e expressões estéticas que configuram uma gramática social, um grande mosaico de
camadas temporais que se mostra no Rio de Janeiro através das construções de Art Noveau,
Art Déco, Neogóticas, Ecléticas, e Modernas, exemplares fragmentados em meio de expres-‐
sões arquitetônicas contemporâneas onde o vidro aparece como personagem principal. A
área que circunda o aterro possui uma forte presença fantasmagórica, a poeira, as cinzas
que ali residem apresentam um passado pulsante no interior e no exterior das edificações,
existem, ou subsistem como os personagens das fotografias de Robert Doisneau e Sabine
Weiss, corpos e paisagens efêmeras, eternizados pela fotografia.
A singularidade do Aterro do Flamengo oferece a esse conjunto uma grande relevância
em termos culturais, não só no que compreende a identidade carioca, mas também em ter-‐
mos da cultura nacional, afirmativa que se imprime nas palavras de Claudia Girão:
Inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do IPHAN, o Parque do Flamengo tem hoje seu valor cultural multiplicado pela
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própria percepção do sentido desta paisagem material da cidade, tendo em vista seu significado como paisagem cultural e referência etnográfica cario-‐ca, espaço coletivo simbólico de sua origem, desenvolvimento e permanên-‐cia (GIRÃO, 2011, p.8).
O valor etnográfico do parque pode ser visto através do campo das artes, quando a
expressão artística foge do ambiente institucionalizado do Museu de Arte Moderna para
atuar no espaço em torno da edificação. Esse tipo de afirmativa converge para ação de Hélio
Oiticica no movimento “Opinião 65”, quando a apresentação pública dos parangolés é proi-‐
bida no ambiente do museu, levando o artista a optar pela apresentação dos ritmistas da
mangueira nas imediações da instituição. Além dessa ação, o projeto de Frederico Morais,
“Domingos da Criação” em 1971, propôs aos participantes a experimentação das áreas cir-‐
cundas ao museu. A proposta visava explorar o caráter lúdico da arte e da criação, mas indi-‐
retamente também enfatizou o caráter de lazer dessa área pública, lembrando que a ludici-‐
dade é o fio condutor de qualidade capilar, atravessando constantemente esse espaço desde
sua idealização. Ambas as propostas configuram um importante marco para produção artís-‐
tica brasileira, as experiências documentadas através de fotografias e vídeos enaltecem o
valor imaterial do Aterro do Flamengo, e também adensam o argumento em favor da pre-‐
servação desse espaço como lócus libertário e da resistência artística contra a ditadura. Atu-‐
almente, o valor de lazer desse local tem sido cada vez mais acentuado em virtude da reali-‐
zação de atividades culturais e lúdicas, além disso, a promoção de shows e blocos de carna-‐
val expressam a proposta de experimentação coletiva do aterro, permitindo que os habitan-‐
tes de zonas espaciais diferenciadas dialoguem entre si de modo a degustar a essência plura-‐
lista da multidão, elemento principal da gramática imagética das cidades.
O ato de apagar os vestígios é uma demanda da modernidade em que o espaço urbano
industrial, dotado de racionalidade e funcionalidade, não dialoga com o passado por esse
simbolizar a expressão da decadência, percepção que reverbera na atualidade por meio des-‐
valorização do patrimônio e da memória nos processos de “revitalização” da cidade do Rio
de Janeiro. À luz da leitura de Walter Benjamin (1933), a dificuldade de relacionar-‐se com o
patrimônio advém do empobrecimento das narrativas, e da subtração da experiência, fato-‐
res que resultam no afastamento da tradição, da história, e do patrimônio cultural, condi-‐
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ções permissivas a proliferação de projetos de revitalização das áreas urbanas que apenas se
relaciona com o passado de forma destrutiva.
Conclusão
Caminhar pela cidade é caminhar sobre os cacos do passado, sobre as ruínas das edifi-‐
cações, é experimentar o ofício do arqueólogo que ao escavar se depara com a destruição.
Na paisagem da cidade, a poeira convida o detetive sensível às minúcias a remontar um
mundo de grandes proporções. Assim, a percepção do rastro, da dimensão fantasmagórica e
residual são ferramentas que ilustram a experiência do habitante com a cidade. A vontade
do apagamento dos rastros, na cidade do Rio de Janeiro, pode ser percebida através dos
diversos planos de revitalização e reestruturação da cidade. Ante ao leque de propostas de
intervenções urbanas, Vera Rezende (1982) expõe as tensões entre os planos de gestão ur-‐
bana e os modos de produção capitalista, que por sua vez, criam demandas para reestrutu-‐
ração plástica da cidade. Referente ao Rio de Janeiro, Rezende explora a interação entre os
Planos Agache (1930), Doxiadis (1965) e o Plano Urbanístico do RJ (1977), expondo que estes
possuem uma essência vanguardista ao passo que se posicionam em favor da ruptura com o
passado, portanto, reduzindo as mudanças feitas pelos planos anteriores à dimensão residu-‐
al dos rastros. Hoje o motor da mudança alicerça-‐se nos grandes eventos sediados na cida-‐
de, a Copa do Mundo (2014) e os jogos Olímpicos (2016) favorecem argumentos em favor de
uma nova estrutura estética. A memória cede seu lugar ao funcionalismo sendo atravessada
pelos discursos de embelezamento que insistem em apagar os rastros, as imagens, as vivên-‐
cias, essas ficam em destroços, restos de pedra e ferros retorcidos, uma lembrança desfigu-‐
rada exposta ao público. Motivado também pelo processo de mudança plástica da cidade, o
Aterro do Flamengo nasce como um catalisador da qualidade residual da área em que se
localiza, adicionando a ela uma nova expressão arquitetônica e artística dissonante às de-‐
mais construções, os prédios de Art Nouveau, Ecléticos, e outros. No entanto, ao mesmo
tempo dessa ação, o aterro sofre com o desejo de apagamento das novas camadas de vivên-‐
cias, atividade expressa na tentativa de segmentar e descaracterizar o parque em projetos
como a revitalização da Marina da Glória.
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