Post on 22-Nov-2018
Flavio Miguez de Mello
Episódios da engenharia (e da política) no Brasil
1ª edição
Rio de JaneiroComitê Brasileiro de Barragens
2014
Considerando que os textos desta publicação são integralmente baseados na vivência do autor e em fatos a ele narrados, as informações, os dados, as opiniões, as interpretações e as conclusões aqui apresentados, bem como o uso de nomes de pessoas e de instituições, são de responsabilidade do autor e não devem ser atribuídos ao CBDB.
Diretoria de Comunicações do Comitê Brasileiro de Barragens - CBDBFlavio Miguez de MelloUrsula FuerstenauPatricia KnebelSimone DiefenbachArquivo pessoalComitê Brasileiro de Barragens
Coordenação Editorial -
Autor - Projeto gráfico e diagramação -
Edição -Revisão -
Fotografia -
M527e Mello, Flavio Miguez de Episódios da engenharia (e da política) no Brasil / Flavio
Miguez de Mello. – Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de Barragens, 2014.
Il. ; 220p. ISBN 978-‐‑85-‐‑62967-‐‑07-‐‑8
1. Engenharia civil. 2. Barragens. 3. Bacias hidrográficas. 4. Trabalhos em usinas hidrelétricas. 5. Brasil. 6. Crônicas. I. Título.
CDU 627.82:869.0(81)-‐‑94
Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273
Agradecimentos
Agradeço a todos aqueles que tornaram possível a divulgação destes episódios,
aqui incluídos os atuais dirigentes e funcionários do Comitê Brasileiro de
Barragens, e aos muitos engenheiros citados neste livro, que nos precederam
deixando profundas marcas de competência, dedicação e ética profissionais.
Devo agradecimentos a todos os que me apoiaram na Profissão, da qual não
trago queixas, mas saudades do passado – algumas das quais em fatos aqui
relatados – e planos para o futuro.
Aproveito para externar também a minha gratidão a todos os meus professores,
do Brasil e do exterior; a todos os colegas de trabalho nas empresas em que atuei;
aos companheiros da minha vida acadêmica e nas associações técnicas.
SumárioPrefácio
Introdução
O Doutor
O outro Doutor
Eugênio Gudin
O tenebrário
A censura
Tempos diferentes: a constituição de Furnas
O caboclo e as águas do reservatório de Peixoto
A oposição a Furnas
A volta dos que não foram
Emoções em Jupiá
Emoções na Politécnica
Ecos da Guerra de Canudos
Obra monumental
Pedro de Alcântara
O oficial de justiça, o governador e o
fechamento de Furnas
Pedido de emprego
O banquete e o pomar
O zoológico
As bitolas
Viabilidade
O marechal e o vigia
Viúva-negra
Antes do autódromo
O corpo
O vinho salvador
Leitura dinâmica
A pressão variável
Violada no auditório
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Gás da Bolívia
A farofa
A língua tupi
Os geólogos
O português
Portugueses ao Maracanã
O consultor
A sabedoria portuguesa
O delegado sádico
Alkmin e Campos
Herói nacional
Os apertos que sofríamos
A verba de desmobilização
Tiro pela culatra
O peso
O cunhado
O chefe e o procurador
A greve
A perseguição
Maldade
Os idosos no avião
A estreia
Precisão suíça
O Dirceu do bem
Simonsen
A ementa
Fim com horror
O reitor
Palestra para universitários
Hidráulica de vertedouro
A brecha
A primeira aula a gente não esquece
Bolo de apostas
Estagiários
Água em seis dias
Como se deve fazer
Entusiasmo exagerado
Prospecção mineira
O dicionário
O Blefe
O início de Itaipu
Itaipu serrada
O salário do presidente
As barragens, os portugueses e o futebol
O câmbio, o taxista e o professor
O milagre brasileiro
Os dois espiões
Índio quer apito
Pior a emenda do que o soneto
Piadas de alentejanos
Manuel Rocha x Rosinha
Os suíços não entenderam
Já combinaram com os russos?
Político ou artista?
A prodigiosa memória do professor Nunes
O tempo passa
Cubatão
A física
As aflições de um filho flamenguista
Lições da África portuguesa
Sanduíche
Furnas x Cemig
De queixo caído
O segurador
O carrão
A chaminé de equilíbrio
A janela do português
O Manuel português
Intolerância de ambientalista
O professor diferente
Antiguidade oriental
O contador da História
Um inglês no Rio de Janeiro
História picante para ouvidos britânicos
O flagelo das secas
Pergunta indiscreta
Os três Flavios
A eficiência premiada
No elevador
Os subdesenvolvidos
O professor distraído
Outro professor distraído
O amigo da onça
O espião no banheiro
O motel
Portunhol
O adivinho e a segurança de barragens
Os mineiros, Getúlio e a siderurgia
Furor arrecadatório
Palavra de ministro
Esposa jovem de marido idoso
O francês e a paradisíaca ilha tropical
Só Deus sabe!!!
As instruções de JK
Estrada que ligava nada a coisa nenhuma
Orós, rogai por nós!
O ministro, o operador e o sangradouro
O presidente, o seu vice e o ministro
O cuidado com marcos e referências de nível
O cuidado com as caixas de testemunhos de sondagem
O cuidado com as amostras
Aureliano Chaves estudante
Aureliano Chaves vice-presidente
Alfafa para burro
Tamanho não é documento
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Uma aventura na África
Outra aventura na África
Os velhinhos
Banho ou jantar
A verba
Português de gringo
O operador na torre de controle
Don Deere
Luiz Borracha
Nudismo
Otton Leonardos
A galeria que nunca houve
A história oficial
Caronas indesejáveis
Carona recusada
Tempos difíceis
Você sabe com quem está falando?
A maldição do Padre Cícero
O governador que sabia demolir barragens
O ministro que queria ser engenheiro I
O ministro que queria ser engenheiro II
Instrumentação?
Paixão recolhida
A briga por São Simão
Eletrobras denunciada
A diretoria de coordenação
Humaitá no Amazonas
Tempos diferentes
As dificuldades aumentam com o tempo
Graças a Deus
A boia
O teatro
O que os outros não têm
O Titanic
O maior desafio
As praias
Os leões
O processo
Aniversário em Itumbiara
Chineses no Brasil
Os juros
Preconceito?
Laginha x Cooke
Las Vegas
A ensecadeira que não secava
Táxi em Lisboa
Perguntas em Lisboa
O morto
O grande choque
Os cinco longos minutos
Terzaghi
Água que não presta
Washington
O geólogo
A eleição surpresa
Niemeyer
O filho
A primeira prova
Minha primeira viagem
Dia dos Pais
Dar o País de volta aos índios
Mortos homenageados
Planejamento energético da hidroelétrica de Itumbiara
O racionamento
Contabilidade inovadora
Reação paraguaia
Verba e recurso
Engenhosidade
Paulo Afonso e o pragmatismo americano
Delmiro Gouveia
Eugênio Gudin x Paulo Afonso
A história se repetiu em Xingó
Getúlio em São Paulo
A Chesf, Santa Terezinha e São Francisco
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8 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Prefácio
Ao longo de seus mais de 50 anos de existência, o Comitê Brasileiro de
Barragens (CBDB) tem se dedicado precipuamente à produção e à disseminação do
conhecimento sobre a engenharia de barragens nacional. Para tanto, historicamente
realiza eventos que proporcionam o encontro entre os integrantes dos diversos
setores que a compõem (profissional, empresarial, governamental, acadêmico e
outros), com o consequente intercâmbio de informações.
Concomitantemente, e com relevo, publica livros, revistas, anais de eventos,
boletins e informativos, que procuram perenizar o acesso ao conhecimento em
qualquer tempo, por quaisquer interessados. Ainda, na condição de representante
do Brasil na Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB), mantém
intercâmbio de conhecimentos com outros países, contribuindo assim para um
inegável protagonismo do Brasil perante a comunidade técnica internacional.
A memória técnica setorial, cuja elaboração conta com a colaboração de muitos
abnegados, é o instrumento pelo qual o Comitê vai escrevendo gradativamente
a história da engenharia de barragens do Brasil. Entre outras, a série de quatro
livros Main Brazilian Dams, por exemplo, iniciada em 1982, cuja última edição
data de 2009, relata com minúcias técnicas as grandes barragens nacionais, bem
como o desafio que foi construí-las. Tal acervo serviu, serve e continuará servindo
às gerações de profissionais que se dedicam à engenharia de barragens, não só lhes
facilitando a tarefa de projetar, construir e manter esses empreendimentos, como
também instilando neles a necessária confiança para que continuamente possam
inovar e aperfeiçoar suas habilidades.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 9
Mas como em toda memória técnica impera a exigente disciplina da ciência e
da tecnologia, os textos técnicos são obrigatoriamente formais e, por isso, tornam-
se impessoais e rígidos. O texto técnico, comparado às outras formas de escrita,
é um texto sisudo, absolutamente imparcial, que praticamente não dá margens a
emoções.
Contudo, as obras de barragens, sobretudo os grandes açudes e as hidrelétricas
de nosso país, se deram sempre dentro de um contexto social, econômico e
ambiental candente. Ou seja, um contexto inevitavelmente multifacetado,
complexo, que afeta inúmeras pessoas, seus costumes, hábitos, interesses e futuro.
As obras têm, portanto, profundo significado humano, aspecto que muitas vezes
foge das percepções dos técnicos, muito centrados que estão com suas inescapáveis
obrigações com o tecnicismo.
Entretanto, no sentido oposto, e para nosso gáudio, o colega Flavio Miguez
de Mello mais uma vez nos agracia com seu excepcional discernimento acerca da
realidade ao escrever, selecionar, classificar e organizar – diga-se, com prodigiosa
memória e paciência monástica – textos e fotografias sobre uma série de episódios
que ele próprio vivenciou ou que a ele foram relatados, que se deram ao longo
de um período de aproximadamente 50 anos e, além de representar rara riqueza
cultural, servem para confrontar a exatidão da engenharia com a profusão de
aspectos difusos, e de certo modo “plásticos”, encontrados no exercício da política
e na vida da sociedade humana. Desse contraste resulta o inusitado, o curioso, o
divertido, o histórico. Essa é a cor deste livro.
Os que o lerem – principalmente aqueles que de algum modo participaram dos
empreendimentos mencionados nos episódios – poderão desfrutar de momentos
agradáveis, outros surpreendentes e alguns até hilários, que vão desde as reações,
a simplicidade e a singeleza do homem de educação simples do interior do Brasil
até as reações, a inteligência e a argúcia de experimentados políticos e de outras
pessoas que estiveram na liderança dos processos à época das obras relatadas.
10 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
O autor, além de ter atuado competentemente como empresário, como professor
universitário e como consultor, é dedicado colaborador de longa data do Comitê,
podendo se afirmar que sua história de vida pessoal se confunde com a própria
trajetória do CBDB, desde sua fundação em 1961, para sorte deste último. Ele teve
a rara oportunidade de conviver com personalidades importantes da engenharia
e da política nacional, que o qualificam e o autorizam a descrever sobejamente os
episódios que dão corpo a este livro.
Flavio Miguez de Mello exerceu várias posições de coordenação e comando
no Comitê, tendo sido seu presidente de 1989 a 1996, bem como atuou como
representante brasileiro junto à CIGB em várias ocasiões, tendo inclusive exercido
a vice-presidência em 1989-1990. Seus reconhecidos dotes como escritor foram
postos à prova, e com sucesso, nos inúmeros artigos que escreveu, nas entrevistas
que concedeu e nos livros que publicou, entre eles, o recentemente lançado A
História das Barragens no Brasil – Séculos XIX, XX e XXI, de cunho essencialmente
memorialista, do qual foi organizador e autor de vários capítulos.
Com esta obra, Flavio Miguez de Mello sem dúvida contribui muito para que
seja preenchida essa lacuna “humana”, com frequência ausente nas memórias
técnicas, mas cujo conhecimento de seus principais aspectos é fundamental para
compreensão dos efeitos que as intervenções com obras causam na sociedade.
Sociedade que, enfim, a engenharia deve bem servir.
Desejamos a todos uma boa leitura!
ERTON CARVALHOPresidente do CBDB
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 11
A grande maioria dos fatos narrados a seguir teve a minha participação. Outros
foram transmitidos para mim desde a metade do século XX, por engenheiros
ilustres, personagens centrais do desenvolvimento da construção civil no Brasil
com quem tive o privilégio de conviver profissionalmente.
Esta coletânea de textos tem como objetivo divulgar fatos pitorescos e históricos
envolvendo esses grandes profissionais, evitando que caiam no esquecimento por
ausência de registro.
Desde já expresso o meu profundo respeito por todos que aqui são citados, com
cuja maioria tenho o privilégio de também manter uma sincera e profunda amizade.
Introdução
12 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 13
O DOutOr
Nos primórdios do século XX, o engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de
Brito (1864-1929) estava em um pequeno vilarejo, no interior do Brasil. Era noite
e a maioria dos moradores já havia se recolhido. Foi quando um caboclo foi em
sua direção e praticamente o sequestrou, levando-o em um cavalo até o sítio onde
morava.
Disse ao ilustre engenheiro: “Sei que o senhor é um doutor. Minha mulher está
doente. O senhor vai levar a cura para ela. Mas, se ela morrer, o senhor morre
também.” Ele não conseguiu explicar ao homem que era doutor, mas não médico,
e nem mesmo tinha a quem recorrer para pedir ajuda.
Saturnino de Brito chegou ao sítio e, após um rápido exame, verificou que a mulher
já havia falecido. Temendo pela própria vida, optou por não externar o diagnóstico
ao recém-viúvo e disse que seria preciso transportar a mulher para o vilarejo.
Improvisaram uma maca e conduziram o corpo com muito cuidado – e, para
alívio dele, suficientemente devagar para que, quando chegassem lá, os habitantes
já estivessem acordados. Ao chegar, Saturnino aproveitou o momento em que
estavam passando em frente à delegacia e se precipitou sobre o delegado, pedindo
urgente proteção, no que foi atendido.
O OutrO DOutOr
Não é de se admirar que situações como essa vivenciada por Saturnino de
Brito acontecessem no passado, especialmente se considerarmos o baixo nível de
escolaridade no Brasil. É um cenário que se agrava porque grande parte das obras
de engenharia no País é realizada em rincões mais afastados.
14 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Em maio de 2013, ao narrar o fato acima ao médico ortopedista Edilberto
Ramalho, ele me relatou uma situação parecida que aconteceu na cidade onde
nasceu, Russas (CE). Era início dos anos de 1950 e estavam em curso os trabalhos
preliminares para a construção do açude Santo Antônio, próximo às terras da fazenda
Tourão, pertencente ao avô dele, o coronel da Guarda Nacional Bruno Epaminondas
de Oliveira.
Dr. Ramalho lembra que um dia o engenheiro-residente da obra, que estava
hospedado na fazenda Tourão, foi sequestrado por um sertanejo. Simples e direto,
este disse que a sua mulher estava há horas em um difícil trabalho de parto e nem
a mais experiente parteira da região se sentia capaz de salvar mãe e filho.
A história se repetia. Não houve como convencer o sertanejo de que o engenheiro
não era doutor de medicina. Quando chegou ao local do parto, veio o momento de
alívio. A mulher tinha acabado de dar à luz e ele pôde respirar aliviado.
Por situações como essas, não era incomum que no passado os engenheiros em
serviço nas regiões mais remotas do território nacional acrescentassem à bagagem
livros básicos de medicina prática, como os do autor Chernoviz, conforme indica o
professor Pedro Carlos da Silva Telles em seu livro História da Engenharia no Brasil.
Talvez por esse motivo, nessa época, o professor Raul Eloi dos Santos era
catedrático da Escola Politécnica e da Faculdade de Medicina.
EugêniO guDin
Eugênio Gudin, ícone da engenharia e da economia, viveu intensamente a época em
que os engenheiros praticamente assumiam a economia. Eram bons tempos.
Formado em engenharia pela Escola Politécnica da Universidade do Brasil, hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele vivenciou momentos históricos
do País: nos seus primeiros dois anos de vida, a época da escravatura; a Proclamação
da República em sua tenra infância; e, na juventude, a Primeira Guerra Mundial e
o crash de 1929. Por ocasião da Segunda Guerra Mundial, Gudin representou o
Brasil na Conferência de Bretton Woods, que estabeleceu as diretrizes das relações
comerciais entre os países mais industrializados do mundo na época.
Ele acompanhou todas as importantes transformações do século XX. Criou o
primeiro curso de Economia na UFRJ, pregou o liberalismo econômico, o controle
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 15
da inflação – sem muito sucesso com os políticos de sua época –, o equilíbrio fiscal
e o câmbio flutuante. Lutou contra o protecionismo, o desperdício dos recursos
públicos e o gigantismo estatal, tendo sempre valorizado a educação. Ele costumava
dizer que “é fundamental educar os professores”.
Participou da implantação da primeira usina geradora de energia da Rio-Light,
que continha a primeira grande barragem do Brasil - Lajes, concluída em 1906 -, e
de represas no Nordeste, uma das quais leva o seu nome.
Foi ferrenho opositor ao governo Juscelino Kubitschek, a quem chamava de
playboy, e a sua meta síntese: Brasília. Nos festejos de comemoração da mudança
da capital, o então presidente do Brasil, com uma grande comitiva, estava em
um palanque apreciando as arriscadas manobras da Esquadrilha da Fumaça da
Força Aérea Brasileira (FAB), quando três dos aviões, em manobra emocionante,
mergulharam sobre o palanque.
Assustadas, as pessoas procuraram um refúgio; foi um verdadeiro alvoroço.
Aliviadas e recompostas depois do susto, ouviram alguém dizer, em voz alta, que
os três pilotos eram Eugênio Gudin, Carlos Lacerda e Gustavo Corção.
Hoje há economistas em todos os postos da economia. Em novembro de
2013, a presidente do Brasil, que é economista e sofreu um grande desprestígio
político causado pelo famoso “pibinho” de 0,9%, o menor PIB dos BRICS em
2012, informou que o IBGE iria efetuar a correção para 1,5% (ainda pequena,
mas 66% maior do que havia sido divulgado). Dois dias depois, os economistas
do IBGE efetuaram a correção com um acréscimo de apenas 0,1%, passando o
“pibinho” para 1%. Ao veicular a notícia, o jornalista João Borges afirmou: “O
governo, que errava as previsões sobre o futuro, agora erra também as previsões
sobre o passado.”
O tEnEbráriO
Tenebrário é um grande candelabro triangular que, na Semana Santa, é usado
nas celebrações da Igreja Católica. São acesas 15 velas que, progressivamente, são
apagadas até que se dá a treva total.
Essa é a imagem do desmonte da indústria de energia elétrica no Brasil na primeira
metade do século XX, o que impediu o progresso nacional, em uma época em que
16 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
países como Estados Unidos, Canadá e muitos da Europa ocidental experimentaram
um intenso desenvolvimento catalisado pela ampla oferta de energia elétrica.
Embora desde a virada do século XIX para o XX já houvesse pressões
positivistas para estatizar esses serviços no País, o crescimento do parque gerador
foi fortemente freado por movimentos que posteriormente seriam chamados
de nacionalistas. Isso se deu aos poucos, inviabilizando progressivamente as
possibilidades de implantação e ampliação de sistemas de geração, transmissão e
distribuição de energia elétrica.
A Constituição de 1891 concedia autonomia a estados e municípios para
promover concessão de serviços de energia elétrica. Com isso, os sistemas elétricos
eram sempre implantados e operados pela iniciativa privada ou em alguns casos,
por municípios, resultando, em 1930, em mais de 1 mil concessionários.
Entretanto, nessa época, já havia dois grandes grupos estrangeiros: a canadense
Light, que conseguiu as concessões em importantes mercados como do Rio de
Janeiro, São Paulo e municípios vizinhos; e a americana Amforp, que abrangia
diversos municípios da Região Sul à Nordeste.
A insegurança jurídica se deteriorou a partir da posse de Getúlio Vargas em
1930. Sete anos depois, o País passou a ser dirigido por decretos-lei, também
chamados de decretos executivos. Era a ditadura do Estado Novo.
A figura do tenebrário começou a ficar mais marcante a partir de 1931, ano em
que foram proibidos negócios em terras nas quais houvesse cursos d’água com
potencial energético. Teoricamente, as empresas não mais podiam expandir as
suas capacidades de geração de energia em novas usinas hidroelétricas.
As dificuldades ficaram economicamente intransponíveis a partir de 27 de
novembro de 1933, com a proibição da cláusula ouro, que até então era contratual
e estabelecia uma correção cambial nas tarifas, protegendo da inflação as
concessionárias de serviços de energia elétrica.
Essa foi a maior quebra de contrato ocorrida no País até aquela data.
Posteriormente, a magnitude dessa quebra de contrato foi, por várias vezes,
ultrapassada por diversos governos. A mais conhecida já registrada em nossa
história foi o sequestro de bens monetários estabelecido no dia da posse de
Fernando Collor de Mello como presidente da República, em 1990.
Em seu diário, naquele funesto dia de 1933, Getúlio Vargas escreveu, revelando a
sua ignorância sobre economia e seu despreparo gerencial: “Assinei decreto abolindo
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 17
pagamentos em ouro feitos obrigatoriamente no Brasil. Isso atinge principalmente
as empresas de serviços públicos, a Light entre outras, causando excelente efeito no
público.” Ficou clara também a preocupação com a demagogia.
O tiro de misericórdia veio em 1934, com o Código de Águas, pelo qual as
tarifas passaram a ser fixadas com base no custo histórico dos investimentos
realizados na implantação de usinas geradoras e de sistemas de transmissão e de
distribuição.
Nos cálculos das tarifas não eram permitidas considerações relativas à
desvalorização monetária e à inflação. Pelo Código de Águas, também não mais
podiam ser feitas ampliações nas hidroelétricas até que os contratos de concessão
fossem revisados – o que nunca aconteceu.
Um curioso e revelador diálogo ocorreu em 1942, oito anos após a assinatura do
Código de Águas, entre Getúlio Vargas, presidente da República, e Eugênio Gudin,
renomado engenheiro especializado em economia. Nessa ocasião, Vargas perguntou
a Gudin qual era o significado de custo histórico, o que revelou a leviandade com que
a legislação do setor elétrico havia sido tratada por tanto tempo.
A cEnsurA
Após a promulgação do Código de Águas, o estrangulamento econômico das
empresas concessionárias levou a uma estagnação do setor elétrico e a graves
deficiências de suprimento de energia no Brasil.
Anos depois, esse cenário acabou levando à criação das estatais federais – a
primeira foi a Companhia Hidroelétrica do São Francisco S.A. (Chesf), no Nordeste
– e estaduais, principalmente em São Paulo e Minas Gerais.
As consequências foram trágicas. Mas não foram suficientes para abalar o senso
de humor dos cariocas, como comprovam algumas recordações da minha infância.
Recordo algumas marchinhas de Carnaval criadas nos anos 1950 que remetiam a
essa situação: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta
luz.” Ou ainda: “Acende a vela Iaiá, acende a vela, porque a Light cortou a luz, no
escuro não vejo aquela carinha que me seduz.”
Eu tive a oportunidade de relatar algumas dessas questões sobre o desenvolvimento
da indústria de produção de energia elétrica no Brasil em um trabalho apresentado à
18 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
XIV Convenção da UPADI, a União Panamericana de Associações de Engenheiros
(sigla em espanhol), em 1976, em coautoria com Flavio H. Lyra.
Naquela época, um executivo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) teve acesso ao trabalho e pediu autorização para publicá-lo em uma revista
técnica da instituição. Isso de fato aconteceu, mas, como tinha muitas críticas ao
governo federal, o material acabou sendo parcialmente censurado.
Lembro que foi retirado, por exemplo, o trecho que questionava o desmonte das
empresas do setor elétrico nos anos 1930, que acarretou em graves consequências ao
desenvolvimento nacional. Dessa forma, fui incluído entre os atingidos pela censura
brasileira, o que hoje, para tantos, passou a ser um importante predicado na política
nacional para angariação de prestígio e de votos em eleições.
tEmpOs DifErEntEs: A cOnstituiçãO DE furnAs
No início do governo Kubitschek, em 1956, estava claro que havia urgência
em adicionar uma grande potência hidroelétrica na Região Sudeste. O potencial
considerado ideal havia sido localizado no rio Grande pela Cemig, em expedição dos
engenheiros Francisco Noronha e Anton Rydland no local conhecido por corredeiras
de Furnas, nas proximidades da fazenda do engenheiro José Mendes Júnior.
O engenheiro Lucas Lopes, parceiro de primeira hora de Juscelino Kubitschek
de Oliveira e que havia idealizado a Cemig no governo do estado, nessa época já
presidente do BNDE, tendo em vista o porte do empreendimento a ser implantado,
naquela altura uma das maiores obras hidráulicas do mundo, propôs a constituição
de uma empresa estatal federal e submeteu sua estrutura organizacional ao
presidente da República no Palácio Rio Negro, residência de verão dos presidentes,
situada em Petrópolis na época em que o distrito federal era no Rio de Janeiro e o
uso de ar condicionado ainda não era difundido.
Lucas Lopes indicou a diretoria executiva composta pelo que se tornou o famoso
tripé, responsável pelo sucesso inicial da empresa: na presidência, o engenheiro
John Reginald Cotrim; na diretoria técnica, o professor Flavio Henrique Lyra da
Silva; e, na diretoria de administração, o engenheiro Benedito Dutra, profissionais
de elevada capacidade e inteiramente intercambiáveis nas suas funções.
Ao receber a proposta de organização da empresa, JK indagou: “E eu? Não
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 19
sobrou nada para mim nessa diretoria?” Lucas Lopes corajosamente respondeu
que não, pois a empresa necessitava de pessoas as mais gabaritadas e corretas
para alcançar o sucesso pretendido e, assim, não comportaria indicações político-
partidárias; porém acrescentou: “Mas o senhor tem as vagas do conselho de
administração, que não será executivo.” JK respondeu: “Ah bom, então, Lucas,
quero você na presidência do conselho de administração.”
A estrutura administrativa inicial de Furnas sem ingerências políticas foi, sem
dúvida, o fator preponderante que garantiu o sucesso da implantação da usina e o
prosseguimento da empresa para outros empreendimentos posteriores.
O cAbOclO E As águAs DO rEsErvAtóriO DE pEixOtO
Nos anos 1960, a Companhia Paulista de Força e Luz, empresa do grupo americano
Amforp, estava concluindo as obras da barragem de Peixoto, no Rio Grande. Essa
seria a maior usina geradora do País até a entrada em operação de Furnas.
Os trabalhos na área do extenso reservatório eram intensos, com ênfase na
relocação dos moradores que ocupavam as áreas que seriam alagadas. A equipe de
campo sinalizou a curva de nível correspondente às margens do reservatório com
o objetivo de deixar claro para a população local até onde iria a inundação.
Porém, um morador resistia a todas as investidas, alheio à programação de
fechamento do túnel de desvio estabelecida para curto prazo. A equipe de campo,
então, conversou com ele, que argumentou: “Vocês não disseram que as águas vão
subir até aquela estaca branca que foi colocada lá em cima? Pois é, eu tirei a estaca
de lá e a coloquei lá em baixo, perto do rio.”
A OpOsiçãO A furnAs
A constituição de Furnas teve ferrenhas oposições, vindas, principalmente,
de Minas Gerais. O governador Bias Fortes receava que os recursos a serem
direcionados para a construção de Furnas inibissem a implantação da hidroelétrica
de Três Marias e costumava dizer que “Minas não será a caixa-d’água do Brasil”.
Com a garantia dos recursos federais para a implantação de Três Marias, criou-
20 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
se um ambiente político mais propício para que se prosseguisse a construção
de Furnas. Entretanto, até a última hora houve problemas. Quando estava tudo
acertado, Bias Fortes fez ainda mais uma exigência: queria que a sede da empresa
fosse situada em Minas Gerais.
Foi um grande problema, já que a percepção era de que nem mesmo a maior
cidade mineira estaria naquela época capacitada para acolher a gerência de um
empreendimento do vulto de Furnas. Ainda mais que na mesma área de atuação já
havia uma grande demanda de recursos humanos pela recém-criada Cemig.
Essa nova situação deixou Lucas Lopes desnorteado. Estava tudo preparado
para que a base de operações ficasse no Rio de Janeiro, na época, a capital federal,
que abrigava as mais importantes empresas federais como Petrobras, CSN, Chesf,
Vale do Rio Doce, entre outras.
John Cotrim veio com a solução: a sede seria na pequena cidade mineira de
Passos, situada próximo ao reservatório a ser implantado; e o escritório central,
no Rio de Janeiro. Sem revelar esse estratagema, JK pôde garantir essa derradeira
exigência do governo de Minas Gerais. Durante décadas, as atas das reuniões da
diretoria e do conselho vinham referidas a Passos, mesmo que nunca tivessem, de
fato, sido realizadas lá.
A vOltA DOs quE nãO fOrAm
O fato acima ocorreu em meados dos anos 1950. Sessenta anos depois, já na
segunda década do século XXI, o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) tentou
obrigar a transferência da sede de Furnas para Minas Gerais. Ele era apoiado pelo
ex-presidente da Eletrobras, Aloísio Vasconcelos, também mineiro, que havia sido
diretor da Cemig.
Furnas começou com uma usina em Minas Gerais, mas hoje tem importante
atuação em vários estados do País. Após admitir a inviabilidade de sua campanha
bairrista por uma volta cuja ida jamais havia ocorrido, o deputado concluiu que “a
bancada queria a volta de Furnas para Minas. Não havendo essa possibilidade, a
bancada optou por querer mineiros na direção, o que conseguimos.” Ele se referia
à nomeação à presidência da empresa do competente engenheiro mineiro Flávio
Decat, de extensa experiência no setor elétrico.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 21
EmOçõEs Em Jupiá
Um dos fortes opositores à constituição de Furnas foi o governador de São Paulo,
Jânio Quadros, mas Lucas Lopes e John Cotrim conseguiram reverter a posição
contrária do governador, que propôs não continuar se opondo à implantação de Furnas
se o governo federal apoiasse a implantação de duas hidroelétricas no estado de São
Paulo. Uma delas era Jupiá, hidroelétrica de dimensões inusitadas, situada no rio Paraná.
A outra era Caraguatatuba, que retiraria cerca de 50 m³/s do rio Paraibuna, formador
do rio Paraíba do Sul, transpondo suas águas para a vertente oceânica da Serra do Mar.
O governo federal teve que se comprometer com esses dois projetos. Caraguatatuba,
entretanto, jamais saiu do papel por causa dos intensos impactos ambientais que
seriam adicionados aos já outros tantos existentes na bacia hidrográfica do rio
Paraíba do Sul.
Por outro lado, as obras em Jupiá continuaram durante o governo do professor
Carvalho Pinto, cuja candidatura foi apoiada por Jânio Quadros. Depois dele, entretanto,
assumiu como governador Adhemar de Barros, de uma coligação política contrária.
Temerosos de uma descontinuação nas obras de Jupiá, os empreendedores – o
concessionário Celusa, depois CESP, e seus contratados – convidaram o novo
governador eleito para uma visita ao canteiro de obra.
Para impressionar o governador, foi criada uma intensa atividade no canteiro
de obra. O engenheiro Fabio De Gennaro Castro lembra ainda que um almoço foi
servido no Hotel Urubupungá, construção feita pela Celusa, com a finalidade de
recepcionar convidados especiais. Logo após, Adhemar colheu enfeites da mesa
e uma enorme abóbora para levar para o Dr. Ruy, cognome de sua companheira
que teve seu famoso cofre assaltado em Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro, por
opositores ao regime vigente na época e que hoje são políticos famosos.
Após a visita de campo, o residente da Celusa e chefe da obra, engenheiro Darcy
Andrade de Almeida, proferiu uma palestra descrevendo o empreendimento, que era
gigantesco para a época e mesmo para os dias atuais. Vale destacar que Jupiá era a
primeira etapa do que na época era chamado de Complexo de Urubupungá, que viria
posteriormente a incluir a hidroelétrica de Ilha Solteira.
Darcy tinha sobre os ombros a difícil responsabilidade de sensibilizar o governador
para evitar que a construção fosse paralisada. Ao final da palestra, sem ter certeza
de que estava sendo bem-sucedido, ele comentou que a montante (rio acima) havia
22 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
outro projeto potencial, denominado Ilha Solteira, que seria uma hidroelétrica quase
três vezes maior do que Jupiá. Os engenheiros José Gelásio da Rocha e Og Pozzoli,
presentes no evento, relataram-me que Adhemar agradeceu a palestra e, na sua
fala, mostrou surpreendente conhecimento sobre os problemas energéticos locais.
Ele disse que a demanda de energia elétrica estava crescendo a uma taxa de cerca
de 7% ao ano e que garantir o suprimento era fundamental para o desenvolvimento
do estado. Arrematou afirmando que São Paulo não poderia ficar dependendo dos
humores do governo federal. “Por favor, prossigam com esse ritmo de construção
aqui, mas iniciem amanhã o projeto dessa outra grande usina”, falou Adhemar. Foi
uma explosão de alegria.
EmOçõEs nA pOlitécnicA
No centro do hall das magníficas escadas curvas, no segundo andar do prédio
da UFRJ, no Largo de São Francisco, onde estava sediada a Escola Nacional de
Engenharia, havia uma escultura de um combatente do Exército Nacional em
posição de ataque.
Era uma homenagem aos alunos da escola que participaram da Força
Expedicionária Brasileira (FEB), na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. O
engenheiro Almôr da Cunha relatou que, no retorno dos pracinhas ao Brasil, após
o término das hostilidades na Europa, os estudantes de engenharia organizaram
uma coleta de contribuições no centro do Rio de Janeiro. O objetivo era fazer uma
escultura e uma placa com o nome dos seus companheiros que participaram da FEB.
A responsável por esse trabalho foi a artista Celita Vaccani, parente do saudoso
professor Mota Resende. A escultura permaneceu por três décadas em um local de
destaque no prédio da Escola Nacional de Engenharia.
Em um verão no início dos anos 1960, houve uma mudança parcial das
instalações para a Cidade Universitária, que passou a abrigar o primeiro ano letivo
dos egressos em 1966. O grupo ficou conhecido como a Turma Desbravadora, por
ter sofrido, nos dois primeiros anos, com as então precárias instalações do Centro
de Tecnologia da Cidade Universitária, que ficavam em meio a obras intermináveis.
Durante esse período, a maioria das disciplinas de quase todos os cursos a partir
do terceiro ano letivo permanecia sendo ministrada no prédio do Largo de São
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 23
Francisco. Somente em 1967 é que se formaram os pioneiros da Escola na Cidade
Universitária, componentes da ênfase em engenharia hidráulica do curso de
engenheiros civis que fizeram o curso em todos os períodos com aulas no Centro
de Tecnologia da Cidade Universitária. Os formandos foram André Koff Santana,
Edmundo Daudt da Veiga, Urbano Cagnin e eu.
Ao longo desse período, e em anos posteriores, à medida que as instalações
na Cidade Universitária iam melhorando, os cursos de engenharia foram
progressivamente sendo transferidos. O prédio do Largo de São Francisco passou
a ser ocupado pelo Instituto de Geociências e, posteriormente, pelo Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais.
A escultura permanecia no prédio do Largo de São Francisco, já sem os
professores e estudantes de engenharia. A placa de bronze com o nome dos
expedicionários, que era valiosa, acabou sendo roubada do pedestal. Era uma época
de confrontos entre estudantes e militares e a escultura do militar – já sem a placa
que indicava o que representava – acabou danificada. A artista responsável, ao
descobrir o ato de vandalismo, retirou a sua obra do prédio e, após reabilitá-la,
entregou-a para a Associação dos Ex-Combatentes do Brasil.
Muitos anos depois, o professor Afonso Henriques de Brito, diretor da Escola
na época da mudança para a Cidade Universitária, me pediu, na qualidade de
presidente da Associação dos Antigos Alunos da Politécnica, que procurasse a
escultura que havia desaparecido.
Por mero acaso, Francisco Ascenso, em visita à Associação dos Ex-Combatentes,
viu a escultura. Iniciamos então a operação de resgate da obra. Em um primeiro
momento, a situação parecia complicada, pois o presidente da entidade, sargento
Rubens Leite de Andrade, tinha fama de ser pessoa de trato difícil.
Foi então que descobri que no período pós-guerra ele e sua família costumavam
passar as férias na fazenda do meu sogro. Marquei uma entrevista com ele e levei
comigo um dos pracinhas homenageados na escultura, o engenheiro João Ribeiro
Natal. A sua participação e a antiga amizade com a minha família dobraram o
sargento Andrade.
A partir desse dia, passei a vivenciar fortes emoções. Decidimos realizar
uma cerimônia na Universidade e, para isso, precisei descobrir os nomes dos
pracinhas que compunham a placa original. Eram eles: Djalma Dutra Ururay,
Glauco de Castro Silva, João Ribeiro Natal, Kalil Rubez Primo, Luiz Andrade
24 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Cunha, Maurício Carneiro Luz, Murilo Moraes Leal, Salomão Malina e Zeferino
Cattapretta de Faria.
Conversei com os que ainda estavam vivos e com as famílias daqueles que haviam
falecido. Cada contato era revestido, inicialmente, de alguma desconfiança, mas
também de muita emoção. Finalmente, no dia 15 de setembro de 2004, organizamos
uma tocante cerimônia no salão nobre do prédio do Largo de São Francisco, da qual
participaram em trajes de gala os membros da Associação dos Ex-Combatentes, os
membros da Associação dos Veteranos da FEB – sob a liderança de seu presidente,
coronel Sérgio Gomes Pereira –, o coronel Goulart, representando o esquadrão de
caça Senta a Pua, e a major Elza Cansanção, representando o corpo de enfermeiras
da FEB, entre outros.
Junto com a escultura, recebemos uma carta cujas palavras demonstraram toda
elegância e desprendimento dos ex-combatentes:
O nosso coração resolveu devolver aquele troféu, que nos foi entregue sem um braço e sem o fuzil. Troféu esse que gentilmente foi recomposto e que vinha ornando a sala de espera da Associação. Talvez se não tivéssemos a certeza de que seríamos extintos pelo falecimento de todos os seus associados [...]. Nossa casa vai ficar muito vazia, já que a peça mais importante era o Ex-Combatente feito pela grande escultora Celita Vaccani. Mas o melhor que fazemos é entregá-la a essa tradicional Escola de onde saíram tantos engenheiros.
EcOs DA guErrA DE cAnuDOs
Os anos 1950 assistiram a grande atividade do Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DNOCS) na construção de açudes no Nordeste visando ao
combate aos efeitos das secas. Um desses açudes foi projetado para ser implantado
no rio Vaza Barris, em local apropriado para construção de barragem fechando um
vale em local de ombreiras mais próximas entre si para a implantação de um açude
denominado Cocorobó, que submergiu sob 246 milhões de metros cúbicos de água
o local da vila de Belo Monte onde milhares de pessoas compartilharam terra,
água e comida, sob a liderança de Antônio Conselheiro, que manifestava simpatias
pela monarquia e horror pelos impostos.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 25
Historicamente, a vila já havia sido arduamente defendida por sua população no
conflito conhecido como Guerra de Canudos, ocorrido no final do século XIX. Os
jagunços foram derrotados em 1897, após cinco expedições armadas, duas das forças
policiais baianas e três do Exército Nacional. Esse triste episódio da história do
Brasil é narrado por uma testemunha ocular de uma das campanhas, o engenheiro
Euclides da Cunha, em artigos para um periódico de São Paulo e, posteriormente,
no seu livro Os Sertões. Foi também brilhantemente narrado por Mario Vargas Llosa
em La Guerra del Fin del Mundo.Cerca de 60 anos após o término do conflito, o DNOCS iniciou a construção
da barragem de Cocorobó, tendo na direção o engenheiro José Cândido Castro
Parente Pessoa.
Entretanto, ainda hoje existem divergências quanto aos objetivos reais da obra.
De fato, o local do eixo da barragem era o mais indicado para a construção, mas
historiadores afirmam que um dos objetivos da obra seria naufragar as ruínas de
Belo Monte. Hoje, somente quando há uma estiagem intensa e prolongada é que
aparece sobre as águas represadas a parte superior da torre da igreja de Antônio
Conselheiro, que foi bombardeada pela artilharia federal. Considerando ser a
área distante de qualquer infraestrutura urbana de porte para a construção da
barragem, foi necessária a instalação de todos os equipamentos urbanos, inclusive
de um cemitério.
Quando em visita à obra, após o jantar, José Cândido ficava ouvindo as
histórias contadas pelo Pedrão, derradeiro chefe dos jagunços e um dos raríssimos
sobreviventes. Ele conseguiu escapar com vida por ter saído de Belo Monte para
tentar enfrentar, sem sucesso, a quinta expedição militar, que veio do Sul. Pedrão, que
posteriormente havia se refugiado na divisa de Piauí com Maranhão, foi beneficiado
com um indulto e pôde retornar ao local de Belo Monte. E, com idade avançada,
acabou falecendo na época da construção da barragem. Como foi o primeiro a morrer
durante a obra – mesmo não tendo trabalhado nela –, foi enterrado na cova n° 1,
próximo à entrada do cemitério.
Sete décadas depois da Guerra de Canudos, pouco após o sepultamento de
Pedrão, apareceu no DNOCS um coronel do Exército brasileiro questionando
veementemente o engenheiro José Cândido por ter sido um “inimigo da república”
sepultado na sepultura n°1, na entrada do cemitério!
26 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
ObrA mOnumEntAl
Recentemente o Clube de Engenharia celebrou o centenário da inauguração da
Avenida Rio Branco, originalmente denominada Avenida Central. O engenheiro
Paulo de Frontin queria implantar uma obra monumental cortando o centro da
capital federal. Para tanto projetou uma largura de 50 metros.
O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Pereira Passos, entretanto, considerou
a largura exagerada e fixou o máximo de 30 metros. A decepção foi generalizada
entre os responsáveis pela comissão construtora da avenida. Foi então que veio
a ideia do engenheiro João Travassos de fazer a demarcação com 33 metros, um
acréscimo de 10% em relação ao que havia determinado o prefeito, sob o argumento
de que 33 era “a idade de Cristo”. Consciente de que Pereira Passos não iria medir
a avenida para conferir a largura, Frontin levou adiante a sua decisão.
O prefeito só soube da largura real muito tempo depois, quando não mais era
possível modificá-la.
pEDrO DE AlcântArA
Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier
de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Habsburgo e Bragança era
conhecido no Brasil como Dom Pedro II.
Quando viajava pelo exterior – sempre às suas próprias custas –, gostava de ser
tratado apenas por Pedro de Alcântara. Descendente das nobres casas de Bragança,
de Portugal, e de Habsburgo, da Áustria, das quais herdamos as cores verde e
amarela de nossa bandeira, ele era entusiasta e estudioso das artes, das ciências e
da tecnologia. Participava dos eventos mais importantes do desenvolvimento da
engenharia no País.
Dom Pedro II introduziu no País a meteorologia e a pluviometria. Ele fazia
pessoalmente os registros das chuvas que castigavam Petrópolis (RJ) no verão,
inclusive a intensa e longa precipitação de 22 dias ocorrida em dezembro de 1861.
Naquela ocasião, os rios Piabanha e Quitandinha, este em frente ao Paço Imperial,
registraram níveis d’água muito acima do normal.
Para os que nos precederam na engenharia hidráulica e na geotecnia, ele foi um
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 27
incentivador, pois discutia os problemas de drenagem e de métodos de estabilização
das encostas petropolitanas com os engenheiros da corte. Em 1862, o imperador
acendeu, pela primeira vez no Brasil, uma lâmpada elétrica. A experiência
laboratorial aconteceu no prédio da Escola Central do Rio de Janeiro, pioneira do
ensino de engenharia nas Américas. Dali se originaram a Academia Militar das
Agulhas Negras e a Escola Politécnica da UFRJ.
Em fevereiro de 1879, Dom Pedro II inaugurou a primeira instalação do País
de iluminação elétrica em caráter permanente, na estação terminal da Estrada de
Ferro Pedro II, hoje a Central do Brasil. Esse foi considerado o primeiro marco da
iluminação elétrica do País.
Dois anos depois, durante uma visita à Escola de Minas de Ouro Preto, da qual era
o grande protetor, o imperador participou da primeira demonstração de uma lâmpada
incandescente a vácuo que Thomas Edison havia inventado menos de três anos antes.
Os eventos realizados na já Escola Politécnica tinham o prestígio da participação
do imperador, que despachava em uma sala no segundo andar, conhecida até hoje
como a Sala do Trono. No dia 22 de junho de 1874, ele inaugurou a operação do
primeiro cabo telegráfico submarino que saía do prédio da Biblioteca Nacional. O
equipamento foi instalado por Irineu Evangelista de Souza, Barão de Mauá, que
por esse feito foi elevado a visconde.
O entusiasmo do imperador foi tanto que ele enviou diversos telegramas,
inclusive para autoridades do exterior. O primeiro deles foi para o seu sobrinho,
Dom Luiz, rei de Portugal. A lista incluiu ainda a rainha Vitória, do Reino Unido,
o presidente Ulysses S. Grant, dos Estados Unidos, o marechal Mac-Mahon,
presidente da França, o imperador Guilherme, da Alemanha, e o rei Victor
Emanuel, da Itália.
Sempre que podia, acompanhava o dia a dia da Escola Politécnica, participando
de conferências, congressos, assistindo a exames de alunos e concursos para
contratação de profissionais. O professor Pedro Carlos da Silva Telles relembra
um relato do Visconde de Taunay que ilustra bem isso: em uma oportunidade,
ao descer de Petrópolis, o imperador parou para inspecionar uma aula prática de
topografia e astronomia, que na realidade era mais um passeio pelo campo do
que uma aula. Ele perguntou ao professor se eles estavam fazendo observações
astronômicas e obteve como resposta que “sim, isso é feito todas as noites em que
não há chuva.”
28 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Em seguida, questionou: “Com que instrumentos?” O professor respondeu:
“Temos uma excelente luneta.” O imperador, desconfiado, quis ver a luneta. A caixa
estava trancada e sem chave. Quando finalmente foi encontrada, ficou claro que o
instrumento não havia sido usado fazia muito tempo. A situação foi constrangedora.
Dom Pedro II resolveu usar seus próprios recursos para custear 151 bolsas
de estudo para jovens talentosos, 41 das quais no exterior. Aliás, um professor
complexado seria um de seus adversários no golpe da Proclamação da República,
em 1889.
Benjamin Constant Botelho de Magalhães era um homem de estatura modesta,
com 1,55 metro, de espesso bigode e cavanhaque ralo. A voz era cavernosa e ele
preferia roupas pretas à farda militar de tenente-coronel. Durante a Guerra da
Tríplice Aliança, contra Solano López, foi severo crítico do Duque de Caxias,
comandante e chefe dos aliados na fase decisiva da guerra. Benjamin Constant,
entretanto, permaneceu por apenas um ano na guerra e não participou diretamente
de nenhum combate, ficando dedicado a tarefas de logística.
Em criança, foi aluno displicente do Colégio São Bento, o qual, depois de mais
de dois anos de insucessos, teve que abandonar. Posteriormente, as decepções da
vida profissional, entre as quais não ter conseguido cadeiras de professor em cinco
concursos públicos, fizeram com que assumisse posições contra a monarquia, mesmo
tendo sido convidado por Dom Pedro II para ser professor de matemática dos seus
netos no Palácio da Quinta da Boa Vista, hoje Museu Nacional, a cargo da UFRJ.
Por não conseguir manter-se com os salários de professor, contraiu pesados
empréstimos que, somente no Banco Auxiliar, chegaram a equivaler a seis meses dos
seus salários em diversas instituições de ensino. Sobre esse personagem, o historiador
Renato Lemos, professor da UFRJ, afirmou: “A malfadada vida foi o caldo de cultura
de radicalização política de Benjamin Constant.”
Ao longo da sua trajetória, Benjamin Constant Botelho de Magalhães deu aulas
de matemática na Escola Normal, no Instituto Comercial, no Instituto dos Cegos
(dirigido por seu sogro), na Escola Central e na sua sucessora Escola Politécnica,
ajudando a formar engenheiros. Em 1872, foi prestar concurso para professor da
Escola Militar na presença de Dom Pedro II, que, como dito antes, acompanhava
com invulgar interesse a evolução do conhecimento da época.
Na presença do monarca, fez questão de declarar-se seguidor de Auguste Comte,
positivista e, consequentemente, favorável a uma ditadura e contrário à monarquia.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 29
Consultado, o imperador disse que não via qualquer problema com relação a esse
aspecto. Benjamin pôde prestar o concurso. Foi aprovado.
Foi na Escola Militar que ele mais conspirou contra a monarquia, exercendo
intensa influência nos cadetes e nos militares. O curioso é que, nessa instituição, apesar
de militar, a disciplina não era virtude frequente. Um exemplo foi o que aconteceu no
dia 3 de novembro de 1888, um ano antes da Proclamação da República. Os alunos
combinaram um ato hostil ao ministro da Guerra, o conselheiro Thomaz Coelho.
Ao passar a tropa em revista, ele ouviria um “Viva a República!” Na última hora, os
cadetes não se manifestaram por receio das penalidades. Um exemplo de rigidez maior
aconteceu com Euclides Rodrigues da Cunha. Depois de tentar, sem sucesso, quebrar
a sua própria espada, ele jogou-a ostensivamente no chão. Resultado: foi expulso da
Escola Militar e preso na fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, onde permaneceu por
um mês. Depois de um piedoso telegrama do imperador, foi libertado. Ingressou
na Escola Politécnica, tornou-se engenheiro, jornalista e escritor, tendo registrado
no seu livro Os Sertões os vexames do Exército brasileiro nas sucessivas derrotas
e, posteriormente, no massacre de Canudos, ocorrido em 1897, no governo do
presidente Prudente José de Morais e Barros.
A propósito, o prestígio do imperador foi sempre muito elevado, mesmo após a
Proclamação da República e a queda da monarquia. Quando os republicanos assumiram
o governo, tentaram apagar qualquer vestígio do regime anterior.
Mas, nas eleições de agosto de 1889, apenas três meses antes do golpe republicano,
a soma dos votos dos republicanos foi medíocre, não tendo chegado a 15% do total. A
lista de republicanos derrotados nessa eleição incluía Prudente de Morais e Campos
Salles, que acabariam se tornando anos depois presidentes da República.
A questão militar, principal estopim que viria causar a queda da monarquia,
ocasionou a fundação do Clube Militar, do qual o marechal Deodoro da Fonseca foi o
primeiro presidente. O Clube lançou o marechal como candidato ao Senado. Porém, a
sua votação foi ridícula, atingindo apenas 7,6% dos votos (provavelmente quase todos
de oficiais do Exército), ficando em quarto e último lugar.
Assim, o plebiscito que o governo republicano de 1889 havia prometido que seria
realizado para definir o desejo da população quanto ao regime a ser adotado no País,
só aconteceu um século depois, quando não mais havia possibilidade de retorno à
monarquia. Pedro II, extraditado e sem que nenhum membro de sua família pudesse
voltar ao Brasil, veio a falecer como Pedro de Alcântara no seu exílio na França, no
30 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
ano de 1891. Ele teve um funeral de chefe de Estado concedido pelo governo francês,
o que irritou os membros do governo brasileiro.
Pedro de Alcântara teve o seu pedido atendido: foi enterrado com um
travesseiro contendo uma amostra do solo do seu país. Desejo digno de
engenheiro geotécnico brasileiro.
O OficiAl DE JustiçA, O gOvErnADOr E O fEchAmEntO DE furnAs
Grandes eram as oposições a serem vencidas pela equipe de Furnas nos seus
primeiros anos. Para a construção da barragem, que represou um volume de 21 bilhões
de metros cúbicos, o rio Grande foi desviado através de dois túneis escavados na
margem esquerda.
Após a obra ter atingido estágio avançado, que permitia o fechamento dos túneis
para o enchimento do reservatório, a diretoria de Furnas enfrentou diversos entraves,
inclusive políticos. Os túneis deveriam ser fechados em uma época que fosse possível
aproveitar a estação úmida para que o enchimento do reservatório não demorasse
demais.
O fechamento foi sigilosamente programado para ser feito no dia 9 de janeiro de
1961. Assim, sem alarde, em um final de tarde, os principais executivos de Furnas se
deslocaram para o Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e voaram com destino
à obra em avião fretado da Líder Táxi Aéreo.
Os testes de fechamento na obra eram feitos com as comportas dos túneis. Na cancela
principal do canteiro foi estabelecida uma operação tartaruga para qualquer estranho
que quisesse entrar na obra. À noite, dois carros chegaram à guarita. O da frente trazia
John Cotrim, o presidente de Furnas, e o segundo trazia Flavio Lyra, o diretor técnico.
A operação tartaruga, de fato, funcionou. E isso ficou comprovado quando o
encarregado da portaria, que não conhecia o presidente, só abriu a cancela quando
reconheceu os ocupantes do segundo carro, que frequentavam a obra com mais
assiduidade.
O topógrafo Euclides Nogueira Martins, desconfiado de que o fechamento do
reservatório seria naquela noite, me contou que ficou acordado no canteiro de obra
para poder presenciar o momento histórico. Próximo à meia-noite, Lyra, munido de um
megafone, iniciou a operação de fechamento das comportas.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 31
Os túneis foram fechados com sucesso. As águas represadas iniciaram
rapidamente o preenchimento do fundo do reservatório, cobrindo os bocais
dos túneis em poucos minutos. Todo o cuidado na preparação dessa operação
se mostrou decisivo. Isso porque, no mesmo instante, chegava um oficial de
justiça com um mandado de segurança que impediria o fechamento dos túneis e,
consequentemente, o enchimento do reservatório.
O encarregado da portaria fingiu que dormia um sono profundo, o que atrasou
a liberação do oficial de justiça. Quando ele alcançou o canteiro de obra, já raivoso
e aos gritos, ordenou que a operação de fechamento não fosse realizada. Lyra,
calmamente, explicou que já estava feito e que era impossível voltar atrás. Apontou
para o local onde as grandes comportas de aço estavam submersas por uma lâmina
superior a 20 metros de água e sugeriu, irônico, que o oficial de justiça se sentisse
à vontade para mergulhar e tentar resgatar as comportas.
Outro incomodado com essa situação foi o governador de Minas Gerais,
Magalhães Pinto, que perdeu a oportunidade de capitalizar politicamente com o
evento.
pEDiDO DE EmprEgO
No governo estadual de Milton Campos, Minas Gerais iniciou as obras de
geração de energia. Para isso, foram constituídas autarquias próprias para cada
uma das três usinas que passaram a ser construídas. Com o objetivo de dar
maior dinamismo administrativo, seu sucessor, Juscelino Kubitschek de Oliveira,
instituiu a Cemig como empresa estatal de economia mista, convidando John
Cotrim para diretor técnico. Cotrim vinha do grupo americano Amforp, detentor
de várias concessões de serviços de energia elétrica no Brasil, e procurou imprimir
na Cemig a filosofia de organização e métodos gerenciais comuns nos Estados
Unidos, e ainda desconhecidos no Brasil.
Logo no início das operações, vislumbrando um banco de oportunidades para
empregar protegidos, alguns políticos passaram a indicar candidatos aos cargos.
Porém, Cotrim exigia o envio das qualificações do candidato, o que causou uma
surpresa generalizada e foi a arma para recusar indicações descabidas.
Israel Pinheiro foi um dos que pediram uma colocação para um protegido e
32 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
perguntou a seu assessor, Júlio Soares, o que era aquilo que Cotrim exigia. A
resposta veio direta: o curriculum vitae. Israel, então reagiu: “Que bobagem é essa
que o Cotrim está inventando? Essa empresa não vai funcionar nunca.” Algum
tempo depois, Israel, já na administração pública como governador do estado, se
viu em situação semelhante à do Cotrim na Cemig diante de pedidos de emprego.
Perguntou então a Júlio Soares: “Como é que se chama aquilo que o Cotrim exige
quando ele não quer empregar alguém?”
O bAnquEtE E O pOmAr
A advogada Dora de Carvalho, filha do advogado Afrânio de Carvalho, diretor
da Chesf nos seus primórdios, me contou que seu pai havia convidado os juízes do
Supremo Tribunal Federal para uma visita ao canteiro de obra durante a construção
da hidroelétrica de Paulo Afonso I, em meados do século passado. À noite, após
terem ficado impressionados com o gigantismo e a complexidade da construção,
os ministros foram recepcionados pelo presidente da Chesf, engenheiro Francisco
Alves de Souza, na Casa da Diretoria, também conhecida como Casa Grande,
devido a reminiscências nordestinas.
As instalações destinavam-se a hospedar diretores e visitas ilustres e eram
geridas pelo mordomo João Cartolino, crente pentecostal sempre alegre. Souza
contou no almoço que o solo local era fértil, bastando ser irrigado para produzir
uma ampla variedade de frutas de elevado sabor. E acrescentou que, nos fundos da
Casa Grande, ele havia mandado fazer um vasto pomar e, após o jantar, todos iriam
saborear uma rica e variada salada de frutas.
Na hora da sobremesa, Souza perguntou ao mordomo Cartolino quantas frutas
iriam ser servidas. “Trinta e uma, senhor presidente.” Orgulhoso da variedade
do pomar, acrescentou ao questionamento: “Quais são as frutas?” Sem vacilar,
Cartolino informou: “Trinta laranjas e um mamão.”
Muitos anos depois, em 1974, eu estava visitando Paulo Afonso em uma comitiva
do Congresso Internacional de Geologia de Engenharia. Nessa época já havia um
hotel bem construído no local, mas com serviço precário. Entre as sobremesas
que podíamos escolher nas refeições, todas feitas nesse hotel, havia um bolo de má
aparência, que ficou intocado durante todos os almoços e jantares. No último dia,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 33
para que não arriscássemos perder o avião para Recife, resolvemos fixar o cardápio
em um só prato para agilizar o serviço.
Para a sobremesa, o maître sugeriu um gâteau surprise. Todos aceitaram. Para
nossa surpresa, era o bolo que há tantos dias vinha sendo desprezado por nós.
Finalmente, sem alternativas, foi consumido por alguns de nós.
O zOOlógicO
A usina de Paulo Afonso tem características únicas. As casas de força subterrâneas
iam sendo construídas e ampliadas à medida que a demanda do Nordeste crescia.
Quando eu estive lá pela primeira vez, fiquei impressionado com os 36 pequenos
lagos artificiais povoados por jacarés, com os caramanchões e com os aquários e
animais domésticos criados em uma pequena fazenda-modelo. No zoológico havia
vários tipos de animais, como cobras, veados, tatus e lagartos.
O modelo hidráulico tridimensional que operara durante o projeto inicial,
comandado pelo engenheiro francês Jules Balança (que veio a se radicar no Brasil
para sempre), tinha até miniatura das edificações urbanas do local. Na época
eles me explicaram que todo esse esmero tinha como um dos objetivos manter a
equipe ocupada entre as fases de ampliação da usina, uma vez que o processo era
descontínuo.
Um incentivador dessas atividades era o diretor técnico, o professor do
Departamento de Eletrotécnica da Escola Politécnica da UFRJ, engenheiro
Amaury Meneses. O seu escritório em Paulo Afonso era famoso: no topo de uma
alta torre em forma de cogumelo e envidraçado nos seus 360°, pássaros ficavam
soltos voando sobre especificações, desenhos e relatórios. “Este é o único jardim
zoológico do mundo que possui uma grande hidroelétrica”, brincava.
As bitOlAs
O Brasil era, no final do Segundo Império, um dos países de mais extensa rede
ferroviária do mundo. Em 1889 havia no País 53 ferrovias, em um total de 9.572
quilômetros de extensão em tráfego e muitos outros em construção.
34 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Na época, existiam 11 padrões de bitolas – como é chamada a distância entre a cabeça
dos trilhos – e a discussão entre os técnicos do setor era intensa sobre esse tema. Alguns
defendiam as bitolas estreitas, de menor investimento; e outros, as mais largas. Essas
discussões foram registradas no Instituto Politécnico Brasileiro a partir de 1874 e no
Primeiro Congresso de Estradas de Ferro no Brasil, em 1882.
Quando eu era criança, nos anos 1950, perguntei qual era a razão de tantas bitolas
diferentes, que impossibilitavam o intercâmbio modal entre diferentes ferrovias.
A explicação me assustou: era para dificultar uma possível invasão militar vinda da
Argentina pelo Sul do País.
Isso era tão absurdo que prefiro acreditar que tenha havido falta de planejamento
estratégico, o que é também muito constrangedor.
Esse estrondoso progresso na implantação de ferrovias se deveu em parte à
denominada garantia de juros, instituída em 1852, no início da era ferroviária, pela Lei
n° 641. Na prática, o governo garantia a cobertura financeira da diferença que houvesse
entre o resultado financeiro da empresa controladora da estrada e um percentual do
capital investido, em torno de 6%.
Isso incentivava os empreendedores ferroviários, na medida em que garantia o
retorno de seus investimentos em empreendimentos que seriam de risco. Entretanto,
essa decisão gerou também ineficiências.
Durante a realização do Primeiro Congresso de Estradas de Ferro no Brasil, acima
mencionado, ocorreram críticas a essa lei. Mas muitos, inclusive o professor André
Rebouças, a apoiaram. Eles defendiam que as garantias propiciadas aos investidores
eram indispensáveis para a obtenção de resultados positivos nos estudos de viabilidade
financeira.
Meu sogro, filho do engenheiro ferroviário José Pereira de Brito Leite de Berrêdo,
me falava do traçado das ferrovias mencionando a subvenção quilométrica instituída em
1873 pela Lei n° 2.450. Nela o governo garantia a remuneração de “trinta contos” por
quilômetro de estrada. Se a ferrovia fosse construída por um custo unitário igual a esse,
o empreendedor era ressarcido integralmente do seu investimento.
Como decorrência dessa lei, o traçado das ferrovias passou a ser projetado com as
menores escavações possíveis, ampliando consideravelmente a extensão das linhas e,
consequentemente, o custo de implantação e de operação.
A subvenção quilométrica e a garantia de juros foram abolidas em 1903, mas já
haviam causado as distorções aqui mencionadas. Por serem antieconômicas, várias
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 35
ferrovias ainda remanescentes dessa época foram desativadas no início do governo
Castello Branco, em 1964.
viAbiliDADE
Pouco antes do movimento de privatização, eu mencionei em um seminário do Comitê
Brasileiro de Barragens que seria extremamente importante que os empreendimentos
de geração do setor elétrico passassem a ter estudos de viabilidade. Fui aparteado por
um participante do seminário que mencionou a existência dos manuais de viabilidade
adotados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Eletrobras e seguidos
por todos os agentes do setor.
Mostrei que o manual enfocava procedimentos para estudos que definissem apenas
as viabilidades técnica, econômica e ambiental. Citei que a última usina geradora que
teve estudos de viabilidade financeira havia sido a hidroelétrica de Pereira Passos, da
Light, inaugurada pelo presidente Castello Branco em 1964, depois de estar operando
há algum tempo.
A verdade é que a falta de estudos de viabilidade financeira era comum em
empreendimentos governamentais. Apenas como exemplo, John Cotrim me contou um
episódio que ocorreu nos anos 1950, quando conversou com um ministro de Estado
sobre as notícias veiculadas pela imprensa a respeito do início de uma grande obra de
infraestrutura sem projeto definido – e consequentemente sem orçamento confiável –
ao abrigo de um empréstimo externo nitidamente insuficiente.
Ele perguntou para o ministro qual era a estimativa de custos para a implantação
da obra. Diante de uma resposta vaga, Cotrim insistiu: “Nos níveis anunciados, os
recursos provenientes do empréstimo não darão para muita coisa. De onde virá o
restante?” O ministro, já meio aborrecido, disse: “O resto não é comigo, é com o
ministro da Fazenda.” Cotrim insistiu mais um pouco: “O senhor não tem receio
de iniciar uma obra deste vulto sem definições técnicas e sem esquema financeiro
firme?” Procurando encerrar a conversa, o ministro, já sem paciência, acrescentou:
“Se formos pensar em todas essas coisas antes de começar, não se faz nada.”
Esse modo de pensar prevaleceu durante décadas até o cúmulo de serem
fechados contratos com os grandes fornecedores de serviços sem que recursos
estivessem minimamente assegurados. Era algo que colocava os fornecedores
36 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
como importantes aliados para a angariação de recursos federais.
Provavelmente, os jovens de hoje, por não terem vivenciado essa longa e tenebrosa
fase, terão dificuldades em acreditar nos relatos das dificuldades na implantação de
muitas das grandes obras de infraestrutura que foram implantadas no País.
O mArEchAl E O vigiA
O general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, que, ao se reformar, seria alçado à
patente de marechal, patente esta hoje extinta, era, naquela época do governo Juscelino
Kubitschek, a pessoa mais poderosa da República. Em 1954, no mesmo dia do suicídio
do presidente Getúlio Vargas, tendo em vista a tensa situação nacional vigente, foi
escolhido pelo recém-empossado presidente Café Filho para o posto de ministro da
Guerra pela sua intolerância com indisciplinas.
Lott permaneceu nesse cargo de 1954 a 1959, nos governos de Nereu Ramos e
Juscelino Kubitschek. Se afastou apenas para concorrer à presidência da República
como candidato da situação, na tentativa de suceder JK. Com o pretexto de garantir
as eleições, Lott derrubou dois presidentes: Carlos Luz, que substituiu Café Filho,
infartado, e o próprio Café Filho, que, restabelecido do infarto que o afastara do cargo,
quis reassumir a presidência.
A Cidade Universitária encontrava-se em início de construção naqueles anos
dourados do meado do século passado. O engenheiro Helmuth Gustavo Treitler
chefiava as obras, que, em seu estágio inicial, compreendiam um vasto aterro unindo
nove ilhas da Baía de Guanabara, nas proximidades da Ilha do Governador (RJ). Sobre
uma dessas ilhas, a Bom Jesus, foi construído o Centro de Tecnologia que hoje abriga
a Escola Politécnica, a Escola de Química, o Instituto de Química, o Instituto Alberto
Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) e o Instituto de
Macromoléculas.
A Ilha de Sapucaia, lixão da cidade até o final dos anos 1940, é o terreno do prédio
que abriga a Reitoria e as faculdades de Arquitetura e de Belas Artes. A Faculdade de
Medicina e o Hospital Universitário ficaram na Ilha do Fundão, que desde aquela época
integrava o acesso à Ilha do Governador.
As demais ilhas eram menores: Baiacu, Cabras, Catalão, Pindaí do Ferreira e Pinheiro.
No extremo sudeste da Ilha de Bom Jesus, o Exército mantém o Asilo Voluntários da
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 37
Pátria, ali instalado para originalmente abrigar os combatentes combalidos egressos
da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Nos anos 1950, o comandante
dessa unidade era o coronel Evilázio Vilanova, cunhado de Lott. Algumas vezes, aos
domingos, Lott visitava o cunhado e se banhava e pescava na praia da Ilha de Catalão,
na outra extremidade do grande aterro que se encontrava em execução.
Disciplinado, ele sempre comunicava ao escritório chefiado pelo engenheiro Helmuth
que iria à praia no Catalão. Em um desses domingos, Helmuth instruiu cuidadosamente
o vigia de que o ministro da Guerra e pré-candidato à presidência da República iria
à praia. Tudo precisaria estar no maior capricho. “Não fique perto dele, deixe ele à
vontade, mas fique às ordens caso precise de alguma coisa”, instruiu.
Havia certa dificuldade com os vigias, pois o governo não admitia contratações para
esse cargo. Assim, os que não eram capacitados para os demais serviços se tornavam
vigias. Naquele dia, entretanto, Lott demorou na casa do cunhado, tomou umas
caipirinhas, adormeceu numa rede e só mais tarde, depois das 15 horas, é que foi à praia,
quando a guarda havia sido trocada.
Quando chegou ao Catalão, foi barrado pelo novo vigia, que não havia sido avisado
pelo seu antecessor. Lott, que vestia um calção de banho, chinelo, camiseta e vasto
chapéu, mostrou a ele sua identidade achando que isso seria suficiente para o vigia deixá-
lo ir à praia. O vigia pegou a identidade e olhou. Lott, verificando que o vigia olhava
a sua identidade de cabeça para baixo, disse que seria mais fácil de ele ler se virasse o
documento de cabeça para cima. O vigia permaneceu sem conseguir ler, pois, nessa altura,
Lott percebeu que ele era analfabeto. O vigia disse que o engenheiro Helmuth era muito
bravo e, sem sua licença por escrito, ninguém poderia chegar à praia. Embora fosse a
mais influente personalidade do País, como amante da disciplina, resignou-se a retornar
à casa do cunhado e limitar-se a tomar uma chuveirada. O coronel Evilázio Vilanova,
vendo Lott retornar sem ter nadado e pescado, telefonou preocupado: “Helmuth, você
barrou o homem?” Helmuth, ao saber do ocorrido, se apressou a explicar.
viúvA-nEgrA
Quando eu era jovem, ainda no curso secundário, fiquei impressionado ao
ler no Diário de Notícias, jornal que minha família assinava, que a Força Aérea
bombardeara a ilha da Cidade Universitária para eliminar as perigosíssimas
38 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
aranhas denominadas viúvas-negras que infestavam o local onde estava sendo
iniciada a construção do novo campus da Universidade do Brasil (UFRJ) e já
haviam atacado um sargento da Aeronáutica.
Ao mencionar esse fato com o engenheiro Helmuth Gustavo Treitler, que havia
sido o residente da construção da Cidade Universitária desde o início do grande
aterro que uniu as nove ilhas formando uma grande ilha artificial, ele me disse que,
por incrível que possa parecer, o fato realmente ocorreu. Do grande aterro para a
formação do terreno do campus, uma parte era de areia que foi transportada por
barcaças de capacidade de cerca de 400 m³ e depositada nas proximidades de onde
foi construído o prédio da Puericultura, na Ilha do Fundão.
Embora o movimento das águas do mar tivesse levado cerca da metade do
volume de areia para a praia de Ramos onde hoje se encontra o Piscinão de Ramos
– conforme a conclusão de estudo do professor Maurício Joppert da Silva –, ficou
uma pequena ilha arenosa de fácil acesso a vau. Pessoas iam lá pescar. Um dia um
sargento da Aeronáutica que foi lá pescar adormeceu e, quando acordou, estava
passando mal, tendo sido levado para um hospital.
Na confusão, disseram que ele teria sido picado por uma viúva-negra. A
história ganhou vulto e a Força Aérea colocou no local duzentos tambores de
gasolina e interditou o aeroporto internacional do Galeão por três horas; três
caças levantaram voo do Campo dos Afonsos, deram vários rasantes sobre o local
e lançaram bombas Naplan. Estas não atingiram o alvo, e sim o canteiro do prédio
da Puericultura, destruindo-o completamente. Posteriormente, o engenheiro
Helmuth coletou cuidadosamente cerca de oitocentas viúvas-negras e foi ao local
onde estavam os tambores de gasolina e colocou fogo. As viúvas-negras coletadas
foram levadas ao Instituto Oswaldo Cruz em Manguinhos, onde Helmuth passou a
saber que essas aranhas não atacam e são muito comuns principalmente nas praias
no entorno de Niterói.
AntEs DO AutóDrOmO
Nos anos 1960, meus tios Gustavo e Pedro Vieira de Castro executaram várias
obras que hoje compõem o campus da UFRJ na Cidade Universitária. Naquela
época e nos anos anteriores, as provas de automobilismo e motociclismo no Rio de
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 39
Janeiro eram disputadas nas ruas da cidade.
No início da Fórmula 1, o circuito do Rio de Janeiro era denominado Trampolim
do Diabo, justamente pelo seu perigo. A largada era no Canal do Leblon e seguia pela
Avenida Niemeyer, até onde hoje fica a Rocinha. Subia até a outra vertente a descia
pela Rua Marquês de São Vicente, esta de paralelepípedo e com trilhos de bonde em
toda a sua extensão.
Espectadores, meio-fios, muros de residências, árvores, postes e toda sorte de
obstáculos eram constantes nas laterais da pista. Os ases do volante disputavam as
provas com uma coragem impressionante. Não é possível imaginarmos nos dias de
hoje um circuito como esse.
O argentino Juan Manuel Fangio, várias vezes campeão da Fórmula 1, foi o grande
vencedor desse circuito. O brasileiro de melhor desempenho era sempre Chico Landi,
pilotando uma Maserati. Depois dessa fase, nos anos de 1964 e 1965, as provas de
motociclismo começaram a ser disputadas no País sob a liderança de Eloy Gogliano,
primeiro presidente da Associação Brasileira de Motociclismo e primeiro vencedor de
uma prova de motovelocidade em Interlagos.
No Rio de Janeiro as provas eram disputadas em circuitos urbanos improvisados
na Quinta da Boa Vista, no entorno do Campo de São Cristóvão ou em volta do então
recentemente construído Estádio Municipal do Maracanã. No circuito da Quinta da
Boa Vista, o melhor tempo pertence a Carlos Eduardo Marques de Souza Zielinsky,
com um minuto, treze segundos e sete décimos. Ele pilotava na ocasião uma Norton,
e a prova era de motociclismo. O segundo melhor tempo é do Fangio: um minuto,
catorze segundos e sete décimos. Ele pilotava uma Ferrari Testa Rosa, motor V12,
numa prova de automobilismo grau Turismo.
É fácil imaginar que, tanto nas provas de automobilismo quanto nas de motociclismo,
qualquer acidente poderia levar a trágicas consequências. Até porque as corridas
atraíam muitas pessoas nas calçadas. Zielinsky, campeão brasileiro e sul-americano,
era na época noivo, e hoje casado, da minha prima Lúcia Maria.
Ele pediu ao meu tio Gustavo para tentar transferir as provas para a Cidade
Universitária, que estava em construção. A ideia dele era que um circuito em volta
do terreno em que estava sendo construído o Centro de Tecnologia seria muito mais
apropriado para as provas. Meu tio entrou em contato com o engenheiro Helmuth
Gustavo Treitler, responsável pelas obras, que prontamente conseguiu a autorização.
Assim, a Associação Carioca de Motociclismo pôde começar a realizar as provas ali
40 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
nas manhãs de domingo. Foram sete, das quais Zielinsky venceu seis e Demar Netto
Muniz, vulgo Contrapino, uma.
Aproveitando a iniciativa do motociclismo, o circuito da Cidade Universitária
passou a ser usado também para o automobilismo. Foram 20 edições. Na primeira
delas, Emerson Fittipaldi capotou na rótula entre o Centro de Tecnologia e o prédio
da Reitoria, pilotando um Renault Gordini. O motor chegou a se separar do carro, que
era de propriedade de Hélio Massa.
Fittipaldi venceu quase todas as outras provas. Sempre que isso acontecia, Norman
Casari comprava o carro vencedor. Não demorou para todos perceberem que o
sucesso não era devido ao carro, e sim à qualidade do piloto, como ficou comprovado
posteriormente na Fórmula 1 e na Fórmula Indy.
Vários outros pilotos se destacaram nesse circuito da Cidade Universitária, como
os irmãos Bobby e Ronny Sharp, Christian Heins, o próprio Norman Casari e Wilson
Fittipaldi. Em 2001, perguntei ao Zielinsky o que ele sentia ao recordar aquela época.
“Gostaria que o tempo voltasse. Foi muito bom enquanto durou”, admitiu.
O cOrpO
Em 1966, Furnas assumia outra estatal federal, a Chevap, com suas duas
usinas geradoras que se encontravam em início de construção. Em poucos anos,
as duas usinas estavam em operação. A termoelétrica de Santa Cruz, situada a 3
quilômetros da baía de Sepetiba (RJ), capta água no canal de São Francisco, que
transporta as águas do rio Guandu, que, por sua vez, recebe as águas recalcadas
pela Light dos rios Paraíba do Sul e Piraí.
Em função da derivação de descargas promovida pela Light, as vazões no canal
de São Francisco são firmes e apresentam média de cerca de 200 m³/s, conveniente
para a instalação da termoelétrica. As águas captadas no limite leste do terreno da
usina são lançadas, após uso, no canal de Santo Agostinho, situado a oeste da usina,
drenando para o rio da Guarda e daí para a baía de Sepetiba.
Naquela época, muito se falava de mortos que vinham boiando pelos rios. No
início da operação, um corpo foi arrastado pelas águas que estavam sendo captadas,
ficando contido pela grade da tomada d’água. Os operadores comunicaram o fato
à delegacia de polícia da região.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 41
A partir daí, começou a haver sérios inconvenientes para os operadores, que por
diversas ocasiões passaram a ser convocados à delegacia para prestar depoimentos
e serem submetidos a outras extensas formalidades.
Não muito tempo depois, um segundo corpo foi captado pela tomada d’água.
O transtorno relativo ao primeiro corpo tinha sido tanto que eles não tiveram
dúvida: empurraram discretamente de volta ao canal de São Francisco e deixaram
que seguisse o seu destino natural para o mar. E assim foi até a instalação de um
log boom, conjunto de flutuadores que impedem o prosseguimento de materiais
flutuantes à frente da tomada d’água.
O vinhO sAlvADOr
Em 2002, a Universidade Federal de Minas Gerais formava o engenheiro
Guilherme Moreira Grossi, uma promessa de sucesso profissional. Eu o conheci
algum tempo depois, já com uma década na profissão e com o seu talento
comprovado. Ele me contou um episódio ocorrido na audiência pública para a
concessão do licenciamento ambiental da pequena central hidroelétrica Malone,
situada no rio Uberabinha, município de Uberlândia, no Triângulo Mineiro.
O projeto previa uma barragem em concreto compactado com rolo de 30
metros de altura máxima, represando um reservatório com apenas 101 hectares
de área inundada. Como quase sempre, havia uma voz raivosa de oposição ao
empreendimento – apesar de ser uma pequena usina. Era uma conhecida fazendeira
da região e presidente de uma ONG. Ela vociferava contra o licenciamento do
empreendimento.
Seu principal argumento era que, no Triângulo Mineiro, já havia hidroelétricas
demais, muito maiores do que essa, como a Porto Colômbia, Marimbondo e Água
Vermelha, no rio Grande, e Emborcação, São Simão e Cachoeira Dourada, no
rio Paranaíba. A sua opinião era que a região tinha usinas geradoras em número
suficiente para suprir a demanda de todos os seus habitantes e não precisava gerar
energia para outras localidades.
Conhecida apreciadora de bons vinhos, a fazendeira ouviu a seguinte colocação
do engenheiro que apresentava o projeto aos presentes na audiência pública:
“A senhora conhece, aprecia e consome vinho. No entanto, não há notícia da
42 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
existência de vinícolas no Triângulo Mineiro”, disse. O licenciamento ambiental
foi concedido, e a hidroelétrica entrou em operação em março de 2010.
lEiturA DinâmicA
Consta que, quando o governador do estado da Guanabara, Carlos Frederico
Werneck de Lacerda, esteve em uma ocasião com John F. Kennedy, presidente dos
Estados Unidos, ficou impressionado com a rapidez com que ele leu e entendeu
um documento que o brasileiro lhe havia entregue.
Essa foi talvez a primeira menção no Brasil do que se denominou leitura
dinâmica. Pelo que me lembro, esse procedimento consistia em passar os dedos
em diagonal por folhas impressas acompanhando a ponta deles, sem se fixar em
detalhes. Com isso, a pessoa ficava com uma ideia geral do texto, que seria tão
mais acurada quanto mais se exercitava.
Em 1968 essa prática ganhou popularidade no Brasil. Nessa época
aproveitávamos a hora do almoço para termos aulas de leitura dinâmica na sala do
Departamento de Engenharia Mecânica de Furnas, no prédio situado na esquina
da Avenida Rio Branco com a Rua São José, centro da cidade do Rio de Janeiro.
O entusiasmo foi intenso nas aulas iniciais e praticávamos sempre que
podíamos. Em uma tarde, durante o expediente, o engenheiro Sérgio Saldanha
da Motta, chefe do Departamento, se surpreendeu ao entrar na sala e ver os
engenheiros lendo as propostas de fornecedores de equipamentos mecânicos por
meio dessa técnica. E exigiu que esses documentos voltassem a ser analisados nos
seus detalhes, com todo o rigor e não mais por leitura dinâmica.
A prEssãO vAriávEl
O engenheiro Günter Wernicke era o chefe do setor de válvulas da Voith em
São Paulo quando foi convidado para integrar o quadro de profissionais de Furnas.
Naquela ocasião, em 1969, as primeiras turbinas da hidroelétrica de Estreito,
hoje Luiz Carlos Barreto de Carvalho, apresentavam cavitação. Para analisar o
problema, veio da Alemanha o consultor da Voith, engenheiro Gessler.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 43
Gessler e Wernicke foram para Estreito e testaram injeção de ar comprimido
para minimizar o problema. Entretanto, o manômetro que indicava a pressão de
injeção de ar comprimido variava bruscamente, com acentuadas quedas de pressão.
Wernicke não entendia o que estava acontecendo. Ele resolveu subir as escadas
para chegar ao compressor e verificar a pressão na saída. Assim que ele se afastava
do compressor, o engenheiro Luiz Otávio Medeiros, residente da usina, introduzia
na tubulação uma placa de orifício que reduzia a pressão para jusante. Esse
procedimento foi repetido até que Luiz Otávio ficou cansado e Wernicke, exausto.
viOlADA nO AuDitóriO
Essa foi uma das manchetes de um jornal diário sensacionalista de circulação
no Rio de Janeiro nos anos 1960. A ideia era criar chamadas como essa para que os
adeptos de casos escabrosos adquirissem o jornal.
Nesse caso específico, a reportagem era sobre um festival da canção popular
em que o cantor Sérgio Ricardo foi vaiado. Irritado, ele quebrou o violão e o
arremessou no auditório.
Os anos de 1966 e 1967 foram de pluviosidade excessiva nos estados do Rio de
Janeiro e da Guanabara, ocasionando inúmeros deslizamentos de encosta e quedas
de grandes blocos de rocha. Muitos desses acidentes foram muito bem registrados
pelos engenheiros geotécnicos na época.
O governo da Guanabara criou o Instituto de Geotécnica, sucessor do Serviço
de Pedreiras. A instituição abrigava, sob a liderança de Ronald Young, destacados
profissionais como Gilberto Augusto Alves de Lima e o jovem Willy Alvarenga
Lacerda, que muito mais tarde veio a receber o importante título de Professor
Emérito da UFRJ. Desse seleto grupo participava também a engenheira Anna
Margarida da Costa Couto e Fonseca.
Os diversos acidentes em encostas fizeram com que os trabalhos do Instituto
fossem intensos e urgentes, tendo propiciado grande desenvolvimento para a
engenharia geotécnica nacional. Os trabalhos publicados despertaram o interesse
dos geotécnicos do País e do exterior. Eram frequentes as visitas técnicas às
arrojadas obras que eram executadas.
Uma delas envolveu um pequeno grupo de engenheiros franceses. Eles foram
44 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
levados de helicóptero ao cume da Pedra da Gávea, entre São Conrado e a Barra
da Tijuca. O piloto era Malagutti, bem jovem na época, que acabou se tornando
um dos mais conhecidos desse ramo. Ele criou uma empresa, a Riana, que durante
anos prestou serviços para diversas empresas, como as Organizações Globo.
A engenheira Anna Margarida acompanhou os franceses nessa visita aérea. O
grupo foi deixado no pico da Pedra da Gávea e Malagutti deveria retornar depois
para buscá-los. Entretanto, o tempo virou repentinamente. O denso nevoeiro, a
chuva fina e o anoitecer inviabilizaram o retorno do piloto. Sem alternativa, o
grupo permaneceu ao relento, a mais de 700 metros de altitude, encharcados e à
mercê de vento forte e frio intenso.
No dia seguinte, bem cedo, Malagutti resgatou o grupo. Repórteres já
aguardavam os resgatados no heliporto. O fato virou manchete na primeira página
daquele jornal sensacionalista, com direito a fotografia da engenheira Anna
Margarida aos prantos, descabelada, encharcada e abraçada à mãe. A manchete (de
duplo sentido) foi: “Mulher se perde com franceses na Pedra da Gávea”.
gás DA bOlíviA
Há muitos anos se cogitava a possibilidade de trazer gás da Bolívia. O assunto
ganhou força no governo do general Ernesto Geisel, que havia sido presidente da
Petrobras. Com sua formação militar, ele se preocupava com as condições de logística
e de segurança de suprimento.
Quando soube dessa possibilidade, o general logo questionou: “O que é que eu
farei se os bolivianos subitamente fecharem os registros? Envio para lá os fuzileiros
navais?” O assunto ficou adormecido por mais um bom tempo.
Anos depois, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o gasoduto finalmente foi
implantado. A Petrobras passou a investir pesadamente na Bolívia. Mas Evo Morales
assumiu o país, estatizou os investimentos da Petrobras e aumentou o preço que havia
sido contratado para o gás. As palavras de Geisel foram lembradas por poucos.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 45
A fArOfA
Os engenheiros Olavo Pinheiro, Humberto Pate e eu estávamos em uma caminhonete
no local onde depois veio a ser implantada a hidroelétrica de Marimbondo, no rio
Grande, entre São Paulo e Minas Gerais. Foi quando avistamos uma longa cobra
atravessando a estrada de terra.
Atropelamos o animal, passando sobre ele várias vezes. Quando tivemos certeza de
que a cobra estava morta, chegamos mais perto e vimos que era uma jiboia, que tem um
porte avantajado, mas não é venenosa. A cobra foi colocada na caçamba.
No dia seguinte, Pate e eu não vimos a cobra pendurada como era de costume fazer
quando esses animais eram mortos no canteiro da obra. Com receio de que o Olavo,
que era o engenheiro-residente da obra, tivesse mandado incluir a jiboia na comida,
deixamos de lado a carne e optamos pelas verduras, legumes, feijão, arroz e uma farofa.
Quando terminamos, ele nos contou que a jiboia estava na farofa. Aí já era tarde.
A línguA tupi
Os índios tupis habitavam o litoral da Região Sudeste. O padre Anchieta fez um
dicionário da língua indígena que muito ajudou os jesuítas na evangelização dos
índios. Esses conhecimentos, entretanto, não foram difundidos após a expulsão dos
jesuítas de nosso território pelo Marquês de Pombal.
Assim, algumas localidades com nomes indígenas indicam propriedades que
deveriam ter sido levadas em conta quando do estabelecimento de obras nesses
locais. Até o início do século XX, Ipanema era uma área insalubre. O engenheiro
Vieira Souto teve dificuldades em urbanizar a área, que até hoje sofre periodicamente
com a dificuldade de renovação das águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em pleno
2013, isso ainda não foi resolvido. Ipanema significa “água suja”. Itaorna, onde
ficam localizadas as unidades termonucleares que demandaram custosos trabalhos
de fundação, principalmente para a usina Angra II, além de preocupações com
estabilidade das encostas locais, significa “pedra podre”. Guarulhos, onde foi
implantado o aeroporto internacional de São Paulo, que enfrenta frequentes
problemas atmosféricos, significa “terra de nuvens baixas”.
46 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Os gEólOgOs
No início dos anos 1960, havia uma intensa procura por profissionais de geologia
no Brasil, indicando que essa seria uma profissão muito promissora em todos os
seus campos de atuação. A geologia de engenharia era um campo totalmente novo
no País e as grandes obras careciam de profissionais dessa área.
Muitos geólogos formados nessa época em nossas faculdades se destacaram em
âmbito nacional e mesmo internacional. Entre eles estão, sem dúvida, Fernando
Pires de Camargo e Guido Guidicini, que deram decisivas contribuições técnicas
nos inúmeros projetos em que se envolveram ao longo de suas brilhantes carreiras
profissionais. Entretanto, o primeiro contato entre ambos foi algo traumático. No
primeiro dia da aula do curso de geologia da Universidade de São Paulo (USP),
Camargo, na qualidade de veterano, foi escolhido para ministrar uma aula/trote
aos calouros, ansiosos pelo início do curso.
Ele já tinha alguma experiência em ministrar aulas em cursos de preparação
para o vestibular. Depois de embromar os calouros por algum tempo, mencionou
que na USP o trote havia sido definitivamente banido e deu boas-vindas aos
calouros, que, segundo ele, não precisavam temer ser alvo de brincadeiras dos
veteranos.
Como na época era comum os rapazes terem cabelos longos, Camargo
tranquilizou-os, inclusive, quanto ao perigo de terem as suas jubas raspadas.
E perguntou quem não gostaria que isso acontecesse. Guidicini, dono de vasta
cabeleira, levantou a mão. Nesse instante, diversos veteranos que estavam
misturados aos calouros partiram para cima dele e rasparam os seus cabelos.
Mais de 45 anos após esse incidente característico da juventude, os dois
congregam currículos que abrangem as mais destacadas obras de infraestrutura
do País, notadamente no campo de geração de energia elétrica.
O pOrtuguês
Em 1974 ocorreu a Revolução dos Cravos em Portugal com intensos reflexos
políticos em todas as suas províncias ultramarinas. Naquela época, inúmeros
portugueses imigraram para outros países. O Brasil – naquela época achávamos que
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 47
estávamos vivendo o milagre econômico – foi o principal destino de engenheiros
portugueses. A nossa empresa foi uma das mais procuradas.
No fim de tarde, em um bar perto do nosso escritório central, estávamos em
companhia do Taborda, um desses engenheiros portugueses, em um happy hour.
Piadas de português estavam sendo contadas quando reparamos que ele não ria. Foi
então que perguntamos se em Portugal costumavam contar piadas de brasileiros, ao
que ele respondeu: “Programa Nuclear, Transamazônica, Perimetral Norte, Brasília,
salário de um 13° mês que não existe no calendário, empréstimo compulsório, moeda
podre, Lei da Informática. E carece? E vocês acham que é preciso?”
pOrtuguEsEs AO mArAcAnã
Um dos brilhantes engenheiros portugueses que vieram trabalhar no Brasil
após a Revolução dos Cravos, em 1974, foi Álvaro Manuel Sousa Freitas. Ele
chegou com a sua esposa Teresa, hoje falecida, e suas três filhas miúdas.
No Rio de Janeiro, trabalhou na mesma firma que eu e morou no mesmo
condomínio, na Gávea Pequena. Na primeira noite, Álvaro deu as primeiras
instruções a uma empregada que eu havia lhe indicado: “Amanhã vou cedo para
o escritório com o Dr. Miguez. Portanto, tenha o pequeno almoço preparado às
7 horas”. A empregada não entendeu, pediu explicações e ele repetiu que queria
o pequeno almoço às 7 horas, o mais tardar. No dia seguinte, ao descer para o
café da manhã, Álvaro encontrou a mesa posta com ovos de codorna e pequenas
quantidades de arroz, feijão, batata e carne moída.
Quando o papa João Paulo II veio pela primeira vez ao Brasil, sua comitiva passou
de ônibus pelas estreitas estradas da Gávea Pequena. Esperamos Sua Santidade na
calçada e, quando o ônibus passou, Teresa proferiu uma frase em português que só
eu entendi, pois eu havia estudado em Portugal: “O automedonte não carregou os
travões do autocarro.” Traduzindo: “O motorista não pressionou o freio do ônibus.”
Pouco depois de se estabelecer com a família no Rio de Janeiro, seu sogro, o
engenheiro António Bento Franco, veio fazer-lhe uma visita. Em um domingo de
jogo entre Flamengo e Vasco, Álvaro e o sogro foram conhecer o Maracanã. Sem
saber que as torcidas ficavam separadas, entraram no meio da torcida rubro-negra.
Tão logo abriram a boca para chamar um sorveteiro, expondo um acentuado
48 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
sotaque português, a torcida achou que só podiam ser vascaínos desgarrados.
Álvaro, embora tivesse chegado há pouco do canteiro de obra da hidroelétrica de
Cahora Bassa, em Moçambique, em plena guerra civil, conta que aqueles momentos
na torcida do Flamengo foram de extrema tensão. Após alguns confrontos, ele
e o sogro foram obrigados a comprar sorvete para todos os torcedores que os
circundavam até ficarem sem um tostão, quando, para alívio deles, foram liberados
para sair rapidamente da arquibancada. Como ainda não tinha carro, Álvaro e o
sogro tiveram que retornar a casa, na Urca, a pé, causando preocupação à família
pelo adiantado da hora em que lá chegaram. Por mais incrível que possa parecer,
Álvaro ficou torcedor do Flamengo!
O cOnsultOr
Um dos mais brilhantes pesquisadores em engenharia, o Dr. Manuel Rocha,
dirigiu por longos anos o prestigiado Laboratório Nacional de Engenharia Civil,
em Lisboa, e chegou a ocupar o cargo de ministro de Estado.
Em meados dos anos 1960, durante a construção de importantes obras
hidroelétricas, era comum a formação de juntas de consultores para examinar os
projetos e construções civis. O Dr. Manuel Rocha era um desses consultores, tendo
sido contratado por diversas empresas empreendedoras de obras de infraestrutura
no Brasil naquele período.
A maioria desses consultores eram expoentes da engenharia estrangeira e as
reuniões aconteciam, preferencialmente, em inglês. O mesmo acontecia com as
conversas. O destacado engenheiro Joaquim Pimenta de Ávila participou de um
episódio interessante. Após um cansativo dia de reuniões no local de construção da
hidroelétrica de Água Vermelha, situada no rio Grande entre São Paulo e Minas
Gerais, os consultores foram aos poucos se recolhendo aos seus aposentos. Ficaram
apenas os engenheiros de projeto e os da engenharia do proprietário conversando
com o Dr. Manuel Rocha. Sem perceber, eles continuaram por muito tempo
conversando em inglês, até que se deram conta de que poderiam e, deveriam, falar
em português.
Em uma dessas ocasiões, alguém mencionou o sotaque português, ao que o Dr.
Manuel Rocha retrucou: “Ora, pois, o idioma é nosso; o sotaque é vosso.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 49
A sAbEDOriA pOrtuguEsA
Sempre houve grandes amizades entre engenheiros portugueses e brasileiros.
A primeira vez que vivenciei isso foi em 1967, ainda estudante, por ocasião das II
Jornadas Luso-Brasileiras de Engenharia Civil, evento realizado no Rio de Janeiro, e,
posteriormente, em congressos de geotecnia e, principalmente, nas reuniões executivas
da Comissão Internacional de Grandes Barragens, nas quais todos os anos há um
jantar lusófono. O primeiro desses jantares de que participei foi em 1973, em Madri,
sob a coordenação do engenheiro Rebelo Pinto. Daí para frente, o professor Laginha
Serafim passou a ser o organizador. Quando ele se afastou das reuniões, eu passei
a ser o organizador desses jantares, nos quais sempre há intenso congraçamento e
deixamos por curto tempo de ter que falar em francês ou em inglês, idiomas oficiais
da Comissão.
Em geral, os brasileiros, desde a época em que participavam os engenheiros Flavio
H. Lyra e Delphim Mason Fernandes, na década de 1960, viajam com as esposas. Já
os portugueses nunca as levavam, com exceção do engenheiro José Oliveira Pedro
e, posteriormente, dos engenheiros Rocha Afonso e António Pinheiro, que sempre
levavam a Gina, a Maria João e a Cláudia, tão queridas por todas as brasileiras.
Os demais delegados da Comissão Portuguesa de Grandes Barragens
costumavam explicar dessa forma esta decisão, que alguns chamam de sabedoria
portuguesa: “Viajamos sem as esposas, pois desta maneira gastamos a metade e
nos divertimos em dobro.”
O DElEgADO sáDicO
Em 1920 foi inaugurada a hidroelétrica de Bananeiras no rio Paraguaçu, perto
da cidade de Cachoeira (BA). A usina, inicialmente com duas unidades geradoras
de 3 megawatts cada, era constituída por uma barragem provisória de alvenaria
com 7 metros de altura e teve sua construção comandada pelos engenheiros César
Rabello e Américo Simas.
Naquela época, a cidade e toda a região no seu entorno encontravam-se
infestadas por cangaceiros, jagunços e outros maus elementos que infernizavam
a vida das famílias locais. Mulheres tinham que ficar trancadas em casa com
50 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
portas e janelas fechadas e, mesmo assim, corriam graves riscos. César Rabello,
que havia levado a família para Cachoeira, foi ao governador, que, considerando
a importância da obra para o suprimento energético de Salvador, do Recôncavo e
das localidades do vale do rio Paraguaçu, enviou para a cidade de Cachoeira, com
carta branca, um violento delegado conhecido pelo seu elevado grau de sadismo,
que passou a espancar sem dó nem piedade todos os desordeiros que prendia. O
delegado passou os dias mais felizes da sua vida, mas sua alegria durou pouco: a
região ficou pacificada em pouco tempo.
AlKmin E cAmpOs
José Maria Alkmin era, talvez, o mais antigo parceiro de Juscelino Kubitschek desde a
época em que os dois viviam em Diamantina. Quando ministro da Fazenda no governo
JK, ele encontrou-se com um embaixador árabe que queria apresentar ao presidente as
suas credenciais.
Alkmin, que sempre quis saber o significado de seu nome, que era de origem árabe,
fez a pergunta ao embaixador, que ficou visivelmente pouco à vontade, mas, devido
à insistência do seu interlocutor, acabou dizendo: “Al é o artigo ‘o’ e kmin significa
‘mesquinho’.”
Alkmin ficou desapontado, mas pensou que um ministro da Fazenda deveria mesmo
ser mesquinho. Quando esteve com Juscelino, disse a ele que o tal embaixador havia
revelado o significado do seu sobrenome: “Al é o artigo ‘o’ e kmin significa ‘magnífico’.”
No governo JK, com a construção da nova capital do Brasil e outros investimentos de
vulto, a pressão inflacionária, tão contida nos governos anteriores, estava nitidamente
em aceleração. Alkmin tentava, na medida do possível, mas sem muito êxito, deter
investimentos que provocassem mais inflação.
Em uma ocasião, na presença de Roberto Campos, recebeu em seu gabinete um
correligionário que queria uma vultosa verba para uma grande obra de engenharia que
não traria benefícios e ainda seria mais um incentivo para a disparada da inflação. Após
ouvir com interesse os argumentos, o ministro garantiu que a verba seria concedida.
Depois, quando estavam a sós, Roberto Campos disse que aquela obra era desnecessária
e não entendeu por que ele tinha garantido a verba. Alkmin, velho político mineiro,
respondeu: “Roberto, verba não causa inflação. Verba é uma coisa; recurso é outra coisa.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 51
hErói nAciOnAl
Nos anos 1970, quase dez empresas brasileiras estavam entre as maiores consultoras
do mundo em número de empregados. Por outro lado, as empresas nacionais tinham
como obstáculo a Lei da Informática, que prejudicou o desenvolvimento da engenharia
nacional pelas restrições de importação de computadores.
Assim, durante muitos anos, essas companhias ficaram restritas ao mercado interno,
que, por sua vez, era protegido por legislação instituída no governo Costa e Silva que
garantia reserva de mercado às empresas nacionais para projetos correntes. O absurdo
dessa Lei da Informática era tal que Roberto Campos classificava o contrabandista
como herói nacional.
Os ApErtOs quE sOfríAmOs
Mesmo tendo ocorrido intensas aberturas ao comércio internacional, principalmente
a partir do governo Fernando Collor de Mello, a Organização Mundial do Comércio
ainda classifica o Brasil como um dos países de economia mais fechada do mundo. Se
hoje é assim, antes, provavelmente, éramos considerados quase herméticos.
As novas gerações não passaram por alguns apertos que antigamente eram comuns
e, provavelmente, não acreditam nas situações que vivenciamos. Os brasileiros, por
exemplo, não podiam ter cartões de crédito internacionais nem sair do País com mais do
que o equivalente a US$ 1 mil. A moeda estrangeira, por sua vez, tinha que ser adquirida
mediante grande burocracia e no câmbio oficial, que, em algumas oportunidades, chegou
a valer a metade do paralelo. Era o que chamávamos de câmbio negro.
Enviar divisas ao estrangeiro exigia uma burocracia tremenda e ainda tinha que ser
recolhido um escorchante imposto. Dessa forma, cada vez que íamos participar de um
congresso no exterior, tínhamos que pedir compreensão da comissão organizadora para
que admitisse que brasileiros não tivessem que pagar antecipadamente as inscrições,
reservas de hotel e outros registros relativos ao evento.
Para que isso fosse feito com o máximo de segurança, era necessário um
comprometimento em nome da associação técnica e da minha pessoa física, junto à
comissão organizadora do evento, de que os pagamentos em espécie seriam feitos na
chegada. Vencida essa etapa, tínhamos ainda o desafio de conseguir dinheiro que não
52 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
fosse em moeda nacional, pois esta não era aceita em nenhum lugar fora do Brasil.
Em 1979 foi programado para Nova Délhi, na Índia, um congresso internacional.
Como os temas a serem discutidos eram importantes para a nossa engenharia, e a
edição seguinte seria no Rio de Janeiro, houve muito interesse. E alguém tinha que ser
incumbido de viabilizar as inscrições.
Não revelo quem foi esse alguém para não me incriminar. Ele foi até a agência do
Banco Lar Brasileiro, na Rua Santa Luzia, no Rio de Janeiro, e sacou em moeda nacional
o equivalente a inscrições e registros. O gerente do banco perguntou se havia mala. A
resposta foi negativa e, então, ele embrulhou tudo em um jornal – o que resultou em
um grande e tosco embrulho, que foi levado até a Casa Piano, conhecida casa de câmbio
que ficava na outra extremidade da Avenida Rio Branco, a cerca de 15 quarteirões da
agência bancária.
Foram dois heróis carregando aquele precioso embrulho em hora de grande
movimento no centro da cidade. Ao chegarem, o conteúdo do embrulho foi transformado
em dólares americanos. O novo pacote era menor, mas de forma nenhuma pequeno.
Após passar por vários países, o dinheiro foi finalmente entregue à comissão
organizadora do congresso. Em pouco tempo, tornou-se comum a figura dos doleiros,
que levavam a moeda estrangeira adquirida no câmbio paralelo a escritórios ou
residências, mediante pagamentos adicionais. Essas aflições são inacreditáveis para as
novas gerações.
A vErbA DE DEsmObilizAçãO
Nos anos 1980 a inflação grassava solta, atingindo o inacreditável nível de mais
de 80% ao mês. A economia brasileira cambaleava com uma moratória. Obras de
infraestrutura estavam concentradas em alguns poucos governos estaduais e na esfera
federal. Ainda assim, os recursos para esses projetos eram escassos. Os pagamentos por
serviços executados passaram de incertos para inexistentes, o que causou o desmonte da
engenharia brasileira.
Várias hidroelétricas estavam sendo construídas simultaneamente nessa época, mas
a área econômica do governo federal encaminhou instruções ao Ministério de Minas e
Energia para que fossem tomadas providências. A ideia era que todas as obras federais
fossem paralisadas.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 53
Da primeira vez que isso ocorreu, confesso que fiquei muito preocupado, para
não dizer apavorado. Eu era diretor de uma empresa consultora com mais de 3 mil
funcionários, pesadamente dedicada a projetos hidroelétricos. Diante dessa instrução
governamental, as empresas de engenharia consultiva passaram a compor, para cada
hidroelétrica em construção, dois orçamentos.
Um deles envolvia a desmobilização, que não resultava em montantes desprezíveis,
como imaginavam os integrantes da área econômica. O outro compreendia as obras
que poderiam ser executadas com o recurso que seria destinado à desmobilização. A
área econômica do governo foi pega de surpresa pelos elevados custos para interromper
as obras e pela quantidade de serviços que poderiam ser feitos com esses recursos.
Então, a instrução foi alterada para que as obras prosseguissem com os recursos que
seriam usados nas desmobilizações – que eram bem inferiores aos recursos necessários
para o prosseguimento das obras em ritmo normal. Passados alguns meses, novamente
veio nova instrução ao Ministério de Minas e Energia para paralisar todas as obras.
Mais uma vez foram feitos os dois orçamentos para cada obra e estas
prosseguiram com a verba de desmobilização. Essas instruções visando às
paralisações, aos orçamentos para utilização da verba de desmobilização e à licença
para prosseguimento das obras, dentro desses limites de gastos, passaram a ser
frequentes. Ocorreram praticamente todos os anos, mais de uma vez, com anos em
que essas instruções ocorriam a cada quatro meses.
Depois do horror do recebimento da primeira instrução para desmobilização, não
nos preocupávamos mais tanto. O problema era que as reivindicações dos construtores
e fabricantes se avolumavam pelos ritmos mais lentos do que os planejados, e, com
aquela inflação galopante, os juros durante as construções dessas hidroelétricas
atingiram níveis surpreendentes e não divulgáveis.
tirO pElA culAtrA
Importante programa de estudos de inventário hidroenergético foi desenvolvido
na Amazônia após o sucesso dos estudos de inventário nas regiões Sul e Sudeste que
haviam sido realizados nos anos 1960 pela Canambra, consórcio de duas empresas
consultoras canadenses e uma americana, com a participação de estatais brasileiras.
Esse programa foi denominado Estudos Amazônia, e a consultora em que eu trabalhava
54 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
foi encarregada dos inventários dos tributários do rio Amazonas pela sua margem
esquerda. O mercado brasileiro, extremamente fechado no início dos anos 1970, fazia
com que houvesse imensos atrativos para os produtos oferecidos no comércio da Zona
Franca de Manaus. Engenheiros, geólogos e técnicos que tinham que se deslocar de
Manaus para uma das bacias hidrográficas dos afluentes do rio Amazonas saíam de
Manaus com compras dentro das cotas permitidas, registrando os equipamentos na
saída para que, dias depois, entrassem já sem ter novamente que passar pela alfândega.
Outro voo, e novas compras eram registradas e faziam o vai e vem.
O nosso pequeno hidroavião voava sempre lotado. Para compensar, tínhamos um
piloto, Queiróz, muito habilidoso e de muita sorte, pois já havia caído sete vezes antes
de ser contratado para nosso apoio e permanecia vivo, apesar das múltiplas escoriações.
O engenheiro eletricista Paulo Senra era aficionado por som. Em uma de suas
viagens a Manaus, ele extrapolou e adquiriu um equipamento profissional que, por
ser muito grande e pesado, não poderia usufruir do esquema de vai e vem. Então,
ele optou por despachá-lo por via fluvial de Manaus para Santarém, onde não havia
alfândega, e voltar ao Rio de Janeiro dias depois em um voo pinga-pinga cuja primeira
escala era em Santarém. Entretanto, com receio de que o equipamento não fosse
enviado e caísse em mãos de terceiros, ele retirou dois pequenos componentes sem
os quais o equipamento ficaria inutilizado. Assim, se o equipamento fosse subtraído
dele, ficaria sem a menor serventia.
Quando Paulo Senra pousou em Santarém, lá estava o equipamento intacto. Mas
a sua alegria durou pouco. Já no Rio de Janeiro, começou a montar o som e, para
seu desespero, não conseguiu lembrar onde havia escondido os dois componentes que
haviam sido por ele retirados. O som ficou inutilizado.
O pEsO
Os jovens irmãos recém-formados em engenharia mecânica, Roberto e Luiz
Antônio Andrade Reis, naturais de São João del-Rei – de nascimento ou por desejo –,
foram trabalhar no escritório central de Furnas, no centro do Rio de Janeiro.
Eles não se adaptaram às comidas dos restaurantes e, com saudades de comida
caseira, resolveram almoçar na casa dos tios deles, Nelson e Dorinha, que moravam na
Rua Sete de Setembro, também no Centro. Uma semana depois, já eram sete os jovens
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 55
engenheiros que passaram a frequentar os almoços da tia Dorinha, todos da área de
engenharia mecânica. Eu completei a mesa de oito, sendo o único engenheiro civil do
grupo.
A média de idade devia ser de 25 anos, quando ainda éramos glutões. A tia Dorinha,
que antes tinha poucas atividades, passou a se divertir imensamente preparando
almoço para aqueles jovens que chegavam cheios de energia e famintos à sua casa
todos os dias úteis. Para nós, aquele almoço era uma maravilha, pois comíamos mais e
melhor do que em restaurantes, e gastávamos menos.
Todos nós oito titulares tínhamos reservas que ficavam ansiosos em lista de espera.
Como eu era o que mais viajava para as obras, o posto de meu reserva era o mais
valorizado. Um deles era o jovem Carlos Ney Millen Coutinho, filho de general de três
estrelas e sobrinho de dois generais também de três estrelas, um deles tendo chegado a
ser ministro da Guerra. Vivíamos naquela época o governo Médici em pleno milagre
econômico brasileiro. Um dia, Carlos estava escalado para o almoço, mas faltou ao
trabalho pela manhã e foi direto para o almoço. À mesa, explicou-nos que seu carro
havia sido abalroado na Avenida Presidente Vargas, na ida para o escritório. Como de
costume, ele relatou que houve intensa discussão e, lá pelas tantas, de brincadeira ou
não, o Carlos ameaçou o seu oponente: “Você quer sentir o peso de nove estrelas?” O
problema foi rapidamente resolvido.
O cunhADO
O saudoso engenheiro Mário Brandi Pereira foi um dos precursores da
geotecnia no País. Primeiro responsável pela disciplina de mecânica dos solos na
Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, era também
empresário de uma firma de prospecção, ensaios e consultoria geotécnica e diretor
da Chevap, empresa estatal que no início dos anos 1960 estava incumbida de
implantar a hidroelétrica do Funil, no rio Paraíba do Sul, próximo a Itatiaia (RJ).
Como ele havia sido um dos primeiros presidentes da Associação Brasileira de
Mecânica dos Solos (ABMS), algumas reuniões da diretoria da entidade foram
realizadas na confortável casa de hóspedes da vila residencial da hidroelétrica,
durante anos gerenciada pelo dedicado Santana. Para as reuniões da ABMS, a obra
de Funil era equidistante da maior parte, ou mesmo da totalidade, dos membros da
56 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
diretoria, que residiam no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
Assim, os diretores aproveitavam as viagens para realizar interessantes visitas
às obras que envolviam o início da construção de uma grande barragem de terra,
Nhangapi, que à época era a segunda maior do País. Era também a oportunidade
de acompanhar o início da execução de uma barragem de concreto em abóbada
com 85 metros de altura que até hoje é a única desse tipo no Brasil. O túnel de
desvio tem 11 metros de diâmetro e a ensecadeira de montante era uma estrutura
de concreto em arcos múltiplos.
Estive com o Mário Brandi poucas vezes. Pelo que minha lembrança registra,
ele era uma pessoa afável, tranquila. Era do tipo bonachão, mas competente e
atencioso. Fundou a empresa Sermecso com Icarahy da Silveira, e por longos anos
atuaram juntos em prospecções e projetos geotécnicos.
Corria o governo de Castello Branco, a Chevap havia sido incorporada à
Eletrobras e já estava com nova diretoria. Movimentos clandestinos faziam oposição
ao governo e eram severamente combatidos pela polícia e pelas Forças Armadas.
Um dos quatro filhos do Mário Brandi, supostamente, integrava um desses
movimentos. Em uma noite, a residência de Mário Brandi foi invadida por
militares à procura do jovem, que, por sorte, não estavam em casa. Dona Celina
Vianna Pereira, esposa de Mário, reagiu bravamente insultando os invasores, que
vasculhavam tudo.
Mário pedia repetidamente à esposa que dissesse aos invasores quem era o cunhado
dela, tio do rapaz procurado, mas ela apenas enfrentava os invasores com destemida
coragem. De tanto Mário pedir à D. Celina que dissesse quem era o cunhado dela,
finalmente um oficial perguntou a ela, tendo obtido como resposta: “Marechal
Humberto de Alencar Castello Branco, presidente da República.” Rapidamente foram
feitas averiguações que confirmaram a resposta. O presidente era viúvo de Argentina
Vianna Castello Branco, irmã de D. Celina Vianna Pereira. Deixaram o casal em paz.
O chEfE E O prOcurADOr
Raras pessoas mereceram tanto o título de Professor Emérito da UFRJ como
o professor Sandoval Carneiro Jr. Tenho orgulho dos anos que passei na diretoria
colegiada da Escola Politécnica da UFRJ com ele e com o professor Luiz Calôba,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 57
também Professor Emérito, sob a liderança do professor Heloi Moreira.
Figura brilhante no meio acadêmico, admirado por todos pela sua capacidade e
amabilidade, Sandoval foi saudado pelo professor Edson Hirokazu Watanabe, seu
companheiro de departamento na Escola Politécnica e de programa na Coppe,
durante cerimônia na qual a Universidade lhe concedeu o título.
Em um bem-humorado discurso, o professor Watanabe deixou escapar alguns
episódios do meio acadêmico, vivenciados pelos dois. Um deles revela que, há
décadas, quando Sandoval estava em longo programa no exterior, deixou Watanabe
como procurador para que providenciasse pagamentos aqui no Brasil e remessa de
numerário para complementação da bolsa no exterior.
A época era de inflação galopante, comunicação deficiente, e, antes do advento da
internet, era imprescindível o conhecimento do saldo em conta para que operações
financeiras fossem efetuadas. Watanabe telefonou ao banco, se identificou como
procurador de Sandoval e solicitou a informação. Recebeu como resposta que essa
informação não seria possível de ser fornecida a não ser para o titular da conta.
Fazer ligações internacionais era algo complicado e extremamente dispendioso.
Após gentilmente desligar, Watanabe coletou todos os números e datas da vida do
Sandoval, além do endereço e dos nomes de todos os parentes. Uma hora depois,
com tudo isso a sua frente, telefonou para o banco dizendo ser Sandoval e pediu
a informação de que necessitava. Submetido a um questionário completo, saiu-
se muito bem. As respostas foram firmes e rápidas e ele obteve as informações
de que precisava. Nos meses seguintes, ao telefonar para o banco, a cola estava
sempre por perto.
Mais recentemente, Sandoval dirigia a Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) em Brasília. No Rio de Janeiro, Watanabe
tentou sem sucesso falar algumas vezes com Sandoval pelo telefone. A zelosa
secretária atuava como um eficiente zagueiro de área, não passava nada. Em uma
das tentativas, quando a secretária atendeu, coincidentemente Sandoval estava
saindo de sua sala e por acaso ouviu o diálogo ao telefone. Pediu para atender e
se dirigiu ao Watanabe pelo apelido de chefe, como era seu costume. A secretária
ficou impressionada pelo fato de o chefe da Capes ter um chefe. A partir desse
dia, todos os telefonemas do Watanabe foram imediatamente transferidos pela
secretária a Sandoval.
58 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
A grEvE
Meu colega de turma na Escola Nacional de Engenharia, Hunald Antunes, teve
interessantes vivências em países da América Latina. Ele conta nas suas Memórias
de um Engenheiro que greves na Bolívia podiam ser violentas e resultar em muitas
mortes. Os corpos eram transportados por caminhão para La Paz, a capital, e daí
por avião para serem arremessados nos gelados picos da Cordilheira dos Andes.
Assim, ninguém poderia saber quantos eram os mortos.
A expectativa de vida dos mineiros era de cerca de 34 anos, em função do pó
respirado no fundo das minas de estanho, que gerava silicose em seus pulmões. Por
esse motivo, eles não tinham medo da morte e enfrentavam a polícia e o Exército
portando bananas de dinamite. Os confrontos eram violentos.
Hunald teve que enfrentar greves na construção civil na Bolívia. Na Guatemala,
ele foi às ruínas maias de El Quiché. Na ida, parou para uma refeição ligeira
em um restaurante. Ao retornar, viu que o restaurante tinha sido atacado por
guerrilheiros e estava totalmente queimado. Em uma curva da estrada, o seu carro
foi interceptado por uma tropa do Exército. O cabo que estava no comando não
achou nada de errado, mas afirmou que, como Hunald era estrangeiro, estava
infringindo as leis do país e o levou para uma delegacia em um povoado perto.
Chegando lá, pediu ao colega de trabalho guatemalteco que o acompanhava que
procurasse um telefone para chamar apoio. Após algum tempo, o amigo retornou
dizendo que naquela localidade não havia telefone. Quando a noite caía, Hunald deu
disfarçadamente uma nota de US$ 50 ao guatemalteco para que este entregasse ao
cabo. Isso resolveu a questão e ele finalmente foi liberado.
A pErsEguiçãO
Figura de destaque no sul fluminense, o engenheiro José Rosendo de Souza,
perfeito exemplo de cavalheiro e de educação esmerada, foi deputado federal por
dois mandatos nos anos 1960 e diretor do Departamento Nacional de Estradas
de Rodagem. Seus pais adquiriram, em 1951, a Fazenda Nhangapi, que ficava às
margens do rio Paraíba do Sul, no distrito de Engenheiro Passos, naquela época
município de Resende (RJ). A sua mãe, Dona Cotinha, tinha reconhecido bom
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 59
gosto e a fazenda ficou um esmero. Não muito tempo depois, o local acabou sendo
desapropriado pela Chevap, empresa estatal encarregada de implantar a usina
hidroelétrica do Funil.
A fazenda foi inundada pelo reservatório e as principais benfeitorias foram
arrasadas para ceder lugar à barragem de Nhangapi, na época a segunda maior
barragem de terra do País. A função dessa barragem era fechar o reservatório
evitando a inundação da ferrovia e da Via Dutra. O reservatório inundou também
a vila de Santana dos Tócos.
A família Souza lamentou a perda da fazenda. Rosendo, ainda abalado, adquiriu
terras na encosta da Serra da Mantiqueira, quase 100 metros acima do nível
d’água do reservatório. Ele não queria arriscar vir a ser perturbado novamente.
Lá, formou a Fazenda São Gabriel com o esmero herdado dos pais.
O local era banhado pelo rio Água Branca ou ribeirão Itatiaia Superior, cujas
nascentes se localizavam na íngreme vertente sul da Serra da Mantiqueira, não
muito afastadas da região do pico das Agulhas Negras e das Prateleiras. Esse
curso d’água, cujo leito natural atingia o rio Paraíba do Sul, na Fazenda Nhangapi,
teve que ser desviado por um túnel de 3.600 metros de extensão para jusante da
barragem do Funil. O túnel foi dimensionado para escoar no máximo 45 m³/s. Em
1966, a Chevap foi desativada, passando as obras para a Eletrobras – que meses
depois as transferiu para Furnas.
Uma das primeiras providências ao assumir o projeto, foi auditar os estudos
hidrológicos. Para isso, Furnas contratou um consultor americano, Mr. Williams,
que redefiniu a cheia máxima de projeto do ribeirão Itatiaia para uma descarga
de pico de 400 m³/s, nove vezes superior à capacidade do túnel que já estava
executado e em serviço.
Com base no hidrograma dessa cheia, fizemos o projeto e construímos um dique
paralelo à ferrovia para criar uma bacia de amortecimento de cheia a montante
da boca do túnel. Essa bacia, entretanto, não era teoricamente suficiente para
amortecer toda a cheia de projeto. Havia a necessidade de pelo menos uma obra
adicional. Estudos concluíram pela implantação de uma barragem numa garganta
logo a jusante da sede da Fazenda São Gabriel.
Quando cheguei lá com as equipes da sondagem e topografia, o Rosendo,
desanimado, mas com toda a distinção, me perguntou: “Você de novo? Isso é
perseguição?” Mesmo sendo influente, ele não se posicionou contrário à realização
60 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
dos serviços de campo para a execução do projeto básico de engenharia. Como não
havia interesse de Furnas em executar a barragem, a fazenda foi salva. Assim que
o projeto básico ficou pronto, em 1968, Furnas enviou um documento à Eletrobras
explicando o fundamento do projeto e arguindo se e quando a barragem deveria
ser construída. Até hoje não consta qualquer resposta da Eletrobras.
Nesses 45 anos, algumas vezes a Via Dutra foi atingida por enchentes do
ribeirão Itatiaia que atravessa sob a rodovia em três pontos. A enchente mais
notável ocorreu em fevereiro de 2000.
mAlDADE
Por pura coincidência, durante mais de 40 anos, o competente engenheiro
geotécnico Orlando Gomes dos Santos e eu atuamos juntos nas mesmas empresas.
Inicialmente, na Rodio, uma companhia suíça de geotecnia. Logo depois, em
Furnas e, posteriormente, na Enge-Rio, empresa consultora.
Sempre brincalhão, em uma viagem aérea a bordo de um avião pequeno, houve
uma grande turbulência. Uma senhora a seu lado demonstrou grande medo.
Orlando, com muita calma, colocou a sua carteira de identidade entre os dentes.
Ela estranhou e perguntou por que ele havia feito aquilo. Em resposta, ele disse
que assim ficava mais fácil para identificar os cadáveres. No mesmo instante o
pavor se instalou na senhora.
Os iDOsOs nO AviãO
O bimotor à hélice Beechcraft PT-CEZ, de seis passageiros, fazia a rota Santos
Dumont – Furnas – Estreito – Furnas – Santos Dumont às terças e quintas-feiras.
Embora a manutenção de Furnas fosse excelente e seus pilotos, muito competentes,
em determinada ocasião foi detectado um problema no trem de pouso. Como o
avião era pequeno, os passageiros ouviam tudo o que era falado na cabine do piloto.
E assim ficaram sabendo da decisão de prosseguir a viagem até Santos Dumont
(RJ) por esse aeroporto ser maior e ter mais condições de socorro.
Ao chegar, o bimotor permaneceu mais algum tempo voando até minimizar
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 61
o estoque de combustível em seus tanques. A apreensão e nervosismo dos
passageiros eram enormes, menos um casal de idosos, pais de um operador da usina
de Furnas, que se mantiveram absolutamente tranquilos durante todo o longo voo.
Os outros quatro passageiros, vendo aquele exemplo de coragem, confessaram
posteriormente que chegaram a ficar envergonhados. O trem de pouso não desceu.
O avião foi obrigado a fazer um pouso de emergência de barriga na pista de grama.
Ambulâncias e carros de bombeiro ficaram em prontidão ao longo da pista. O
pouso foi um sucesso. Ao descer do avião, o casal comentou entre si, revelando o
motivo de tanta coragem: “Que esquisito, bem. A escada em Furnas era mais alta.”
A EstrEiA
O Comitê Brasileiro de Barragens é uma das mais prestigiosas entidades técnicas
da engenharia. Mas não foi sempre assim. Em 1936, o engenheiro Francisco
Saturnino de Brito Filho, ao regressar do II Congresso Internacional de Grandes
Barragens, organizado pela Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB)
em Washington DC (EUA), trouxe consigo o firme propósito de criar em nosso País
uma entidade filiada à CIGB, que naquela época tinha somente 26 comitês nacionais.
Foi então instituída a Comissão Brasileira de Grandes Barragens, sob a liderança
do engenheiro Luiz Vieira, destacado dirigente do Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DNOCS). Entretanto, pouco depois, com o afastamento
de Luiz Vieira do DNOCS, a Comissão Brasileira teve suas atividades paralisadas,
não tendo cumprido suas obrigações com a CIGB, inclusive as financeiras,
tendo acumulado débitos não cobertos por mais de 20 anos. Somente em 1957,
por iniciativa do engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa, então diretor
geral do DNOCS, a Comissão Brasileira de Grandes Barragens foi reativada, sob
a presidência do professor Casemiro José Munarski, e vinculada ao Ministério
da Viação e Obras Públicas. O mesmo erro de ficar vinculada a um órgão da
administração pública foi novamente cometido pelos engenheiros.
Por esse motivo, novamente as obrigações com a CIGB não foram cumpridas
e a Comissão Brasileira foi colocada na pauta da reunião executiva da CIGB a ser
realizada em Roma em 1961 para ser novamente excluída da CIGB. Às pressas foi
feita uma coleta de contribuições junto às empresas de engenharia e, na última
62 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
hora, foram saudados os débitos. Em 25 de outubro de 1961, finalmente foi
instituído o Comitê Brasileiro de Grandes Barragens no formato de entidade de
direito privado.
A partir dessa data, o Comitê começou a angariar para a nossa engenharia o seu
atual elevado prestígio. Mas o passado de ausências e inadimplências ainda estava
presente na mente de todos os executivos da CIGB quando a reunião executiva
de 1966 foi programada para ser realizada no Rio de Janeiro. O presidente da
CIGB, o engenheiro britânico J. Guthrie Brown, estava extremamente preocupado
com o sucesso da organização. Entre outras coisas, deveria haver um grande salão
com um arranjo de mesas preestabelecido, todas com microfone e bandeiras dos
países-membros, um palco para os principais executivos e para a secretaria e um
sem-número de outras exigências que incluíam tradutores e gravação dos debates.
A reunião estava programada para ser iniciada às 8h30 do dia seguinte no Hotel
Copacabana Palace. Guthrie Brown, hospedado naquele hotel, não via onde poderia
ser o local da reunião executiva, uma vez que, na noite anterior, todos os ambientes
estavam ocupados com outros eventos.
Ele pediu a Flavio H. Lyra e Delphim Fernandes, presidente e secretário do
Comitê Brasileiro, que mostrassem onde seria a reunião da CIGB. Eram 21h30
quando lhe foi mostrado o local da reunião executiva. Estava sendo realizado um
grande desfile de modas. Guthrie Brown ficou apavorado e não dormiu naquela
noite. No dia seguinte, não acreditou quando entrou no salão minutos antes das
8h30 e tudo estava absolutamente pronto e funcionando. Ele confessou que se
sentiu participando de uma ficção científica em que tudo é transformado num
passe de mágica.
O evento da CIGB no Rio de Janeiro e nas visitas às barragens, para surpresa de
todos, foi o mais bem organizado até então. Alguns fatos curiosos ocorreram. Os
melhores hotéis passaram a ter naquele ano frigobares nos apartamentos. Durante
o programa de visitas a obras, os participantes, não acostumados a esses confortos
em hotéis, ao se depararem com frigobares, pensaram que o consumo seria gratuito:
problemas nos check-outs. Ao término das visitas às obras, Delphim Fernandes
entregou ao presidente Guthrie Brown as minutas da reunião executiva, o que
nunca antes havia acontecido com tanta rapidez e precisão. O presidente, que
chegou ao Rio de Janeiro temendo pelo pior, saiu encantado com nossa eficiência.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 63
prEcisãO suíçA
Em 1998, o engenheiro suíço René Frey participava da equipe de montagem
dos equipamentos da hidroelétrica de Santa Branca da Light, situada no alto rio
Paraíba do Sul, em São Paulo. Ele e a sua mulher, vinda da Costa do Marfim,
viviam às turras. Um dia a esposa sumiu. Três dias e três noites depois, ela foi
encontrada em Ubatuba. Contou que foi de carro e um dos pneus furou. Ah, bem!
O DircEu DO bEm
Dirceu Alencar Veloso. Competência, seriedade, amizade, respeito, dedicação.
Saudades. Palavras que caem com muita propriedade na figura inesquecível do
professor Dirceu Veloso. Ele e eu gostávamos de ministrar aulas no primeiro
tempo de cada dia.
Costumava encontrá-lo nos desertos corredores do Bloco D da Escola Politécnica
pouco antes das 6h30. Nessa hora matutina, éramos os únicos já a postos aprontando
sala e material de aula para os alunos. Eu, já nos meus 60, e ele, próximo aos 80,
vindo sempre de táxi para a Cidade Universitária. Em 2002 eu presidia a Associação
dos Antigos Alunos da Politécnica, que desde 1996 tem concedido uma distinção por
ano ao engenheiro que tenha tido carreira exemplar.
Dirceu era o candidato perfeito para receber essa honraria. Propus sua candidatura
e, como não apareceu nenhuma outra proposta, foi eleito por aclamação. Comecei a
organizar a cerimônia e encomendar certificado e placa. Em uma reunião familiar,
fiquei sabendo pelo sogro de minha filha, o empresário Affonso Call de Castro,
e pela sua esposa Regina que eles frequentavam há anos com o Dirceu o mesmo
encontro de casais católicos. Affonso me contou que havia um sério problema:
Dirceu sempre foi exemplar em tudo, e as esposas, sempre que havia oportunidade,
usavam-no como referência para os maridos. Não mais suportando tantas
qualidades numa só pessoa, os maridos resolveram contra-atacar. Naquela época,
Dirceu era diretor da Promon, empresa de consultoria de engenharia com vários
escritórios no País. Quase todas as semanas, Dirceu era obrigado a se deslocar para
São Paulo. Foi a brecha encontrada pelos desesperados maridos. Estes difundiram
sorrateiramente para as respectivas esposas que as frequentes viagens era para
64 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
que ele, tão cuidadoso com a família, pudesse estar também sempre em contato
com sua outra família, que residia em São Paulo. A mentira tinha que ser muito
discreta, transmitida como se fosse segredo. Como mulheres têm certa dificuldade
em guardar segredos, elas se comunicaram e todas ficaram sabendo da infâmia
divulgada com engenho e arte pelos maridos. O pior: a coisa foi feita com tanta
engenhosidade e discrição que elas acabaram acreditando. O elevado prestígio de
Dirceu ruiu como um castelo de cartas. Mas a verdade não demorou muito a ser
revelada e o prestígio de Dirceu voltou aos píncaros, mas as esposas não mais,
nas disputas com os maridos, os compararam ao Dirceu. O objetivo dos maridos
foi finalmente conseguido com pleno sucesso. A cerimônia da concessão do título
de Engenheiro Eminente ocorreu no prédio da UFRJ do Largo de São Francisco
e foi extremamente concorrida por engenheiros, por empresários, por alunos e
ex-alunos, por acadêmicos da Politécnica, por familiares e até pelos companheiros
do encontro de casais católicos. Na ocasião, Regina Castro nos brindou com um
tocante depoimento sobre o professor Dirceu.
simOnsEn
Quem cursou engenharia certamente não vai esquecer as provas do vestibular. Na
minha época, as três universidades situadas na cidade do Rio de Janeiro, a Universidade
do Brasil, com a Escola Nacional de Engenharia, a PUC-Rio e a Universidade do Estado
da Guanabara, realizavam as cinco provas de cada uma em sequência.
Eram quase três semanas, todos os dias – menos aos domingos. As provas da
Nacional eram realizadas no prédio do Largo de São Francisco, a partir das 8 horas. Os
candidatos ficavam desde cedo nas escadas e na praça esperando a abertura do prédio.
Os menos preparados eram nitidamente os mais nervosos e mais crentes em relação aos
boatos de última hora.
Mário Henrique Simonsen havia sido, e provavelmente ainda é, o melhor aluno que
havia passado pelo Colégio Santo Inácio. Sua brilhante inteligência e seu intenso gosto
pela matemática o fizeram, ainda aos 21 anos, professor de matemática pura e aplicada.
Isso o projetou na economia, tendo colaborado com o ministro Roberto Campos
durante o governo Castello Branco a partir de 1964. Cerca de dez anos depois, assumiu o
Ministério da Fazenda e após a Secretaria de Planejamento do governo João Figueiredo.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 65
Dedicou-se ao ensino na Fundação Getulio Vargas, entre muitas outras atividades.
Foi graduado pela Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, hoje
UFRJ, em engenharia civil e, no ano seguinte, cursou a pós-graduação em engenharia
econômica em curso coordenado pelo professor Carlos Nilo Gondin Pamplona
e apoiado pela Associação dos Antigos Alunos da Politécnica. Um ano depois, já
era professor desse mesmo curso. Em 1994, descobriu um tumor no pulmão com
metástase na cabeça. Seu leito na UTI era ao lado do leito de meu pai. Simonsen
faleceu precocemente, em 9 de fevereiro de 1997.
Graduado no científico do Colégio Santo Inácio como melhor aluno até então,
Simonsen estava inscrito no vestibular de engenharia. No alvoroço dos instantes antes
da abertura do prédio do Largo de São Francisco para a realização da primeira prova
do vestibular, que sempre era a de Álgebra, repentinamente foi procurado por um
grupo de candidatos aflitos dizendo que havia um “bizu”. Eles falaram que cairia o
teorema de Jean Pierre Constantin. Simonsen respondeu: “Teorema de Jean Pierre
Constantin? Não conheço, portanto não existe.”
A EmEntA
Cardápio em Portugal é ementa. Em 1989, estávamos iniciando as atividades
de nossa empresa de consultoria em Lisboa. Para chefiar o pequeno escritório,
retornou a Portugal o engenheiro José Chichorro Rodrigues, que havia trabalhado
na nossa equipe em Itaipu.
Estávamos desenvolvendo os estudos ambientais para o projeto da hidroelétrica
de Fridão, situada em uma das mais belas regiões do país, nas proximidades de
Amarante, no rio Tâmega, afluente do Douro. Outro serviço que nos interessava
era um estudo ambiental na lagoa de Óbidos, nas cercanias de interessantíssima
cidade medieval na área litorânea ao norte de Lisboa.
Em Óbidos há um castelo fortificado, construído no ponto mais alto da pequena
cidade murada, dominando a cidade e a lagoa. Nesse castelo foi instalada uma
pousada, designação de hotéis de luxo de propriedade do governo português. Na
primeira visita ao sítio do projeto, como tínhamos que almoçar, fomos à pousada.
O refeitório fica na antiga sala de armas, ambiente longo, porém estreito, devido a
haver, na época de sua construção, apenas estruturas de madeira ou de alvenaria de
66 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
pedra para vencer grandes vãos. Um garçom muito gentil nos trouxe uma ementa.
Como éramos duas pessoas e tínhamos pressa, dei a minha para o Chichorro e pedi
outra. O garçom, que não estava acostumado com hóspedes apressados, disse com
muita educação: “Posso trazer outra ementa, mas alerto-vos: é idêntica a esta.”
fim cOm hOrrOr
O ilustre engenheiro Benedito Dutra, diretor de administração e finanças
nos primeiros anos de Furnas, depois secretário-geral do Ministério de Minas e
Energia, sempre dizia esta frase quando, penosamente, tinha que encerrar algo:
“Antes um fim com horror do que um horror sem fim.”
Um caso de fim com horror – no qual Dutra não teve participação, aliás – foi o
fechamento abrupto do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS)
no governo de Fernando Collor de Mello. Já o horror sem fim veio depois.
O departamento foi resultado de uma comissão criada em 1933 com a missão
de promover o saneamento. As atividades iniciaram-se nas obras de drenagem da,
então insalubre, Baixada Fluminense, sob a orientação do engenheiro Hildebrando
de Araújo Goés. Foram décadas de serviços prestados à população brasileira,
estendendo suas atribuições à implantação de obras para drenagem, controle de
cheias, geração de energia elétrica, irrigação, abastecimento de água, paisagismo
urbano, controle de estuários e regularização de descargas.
No total, 59 barragens com essas finalidades foram implantadas. Nas atividades
do DNOS, destacaram-se vários engenheiros, entre os quais Paulo José Poggi
Pereira e Otto Pfafstetter. Uma das bacias hidrográficas com obras para controle
de cheias é a do rio Itajaí-Açu, em Santa Catarina. Lá foram construídas três
barragens com esse objetivo – a maior delas, a Barragem Norte, no rio Ibirama.
Esta tinha um reservatório de capacidade de amortecimento de 263 milhões
de metros cúbicos, formado por uma barragem de terra de 63 metros de altura
com vertedouro principal de superfície, sem comportas, do tipo canal lateral.
Provavelmente, o de maior capacidade desse tipo no Brasil. Essa obra, como
outras, ficou repentinamente inacabada e sem um órgão responsável. Embora
quase pronta, havia ainda estruturas a serem concluídas.
O exemplo dessa obra foi um dos mais marcantes. Com a repentina ausência do
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 67
Departamento, os índios da região assumiram o local das obras, que haviam sido
abandonadas, e passaram a gerir a barragem por anos a fio. Por sorte, o vertedouro
de lâmina livre não era controlado por comportas, mas evidentemente a carência de
uma gestão competente resultava no meio técnico apreensões sobre a segurança.
O rEitOr
Eminente historiador, Pedro Calmon foi por muitos anos reitor da Universidade
do Brasil. À frente desse cargo, ele vivenciou experiências que refletiram, durante um
período da história brasileira, uma nítida preponderância do poder executivo, exercido
por militares reformados e eleitos em pleitos indiretos pelo Congresso Nacional.
Nessa época, principalmente a partir de 1968, eram comuns os movimentos
estudantis de enfrentamento aos militares. Nem sempre Calmon era tratado pelos
alunos da Escola Nacional de Engenharia com a educação que merecia. Em uma
ocasião, quando visitava as obras do Centro de Tecnologia na Cidade Universitária, o
presenciei sendo obrigado por estudantes a andar por caminhos pouco seguros.
Ainda assim, não foram poucas as ocasiões em que ele ajudou estudantes,
principalmente membros do Diretório Acadêmico, para que não fossem presos. Em um
dos episódios mais marcantes, alunos de diversas unidades da Universidade, inclusive
da Escola de Engenharia, se refugiaram no prédio da Faculdade de Direito, na Praça
da República, e atiravam objetos contra forças policiais que cercavam o prédio.
A notícia chegou ao reitor, que se deslocou rapidamente para lá. Ao chegar, se
deparou com destacamentos da polícia e do Exército se preparando para entrar
no prédio. Um enfrentamento seria inevitável e suas consequências poderiam ser
dramáticas. Calmon se postou na entrada principal do prédio e impediu a entrada,
dizendo uma frase que seria difundida na época: “Aqui na universidade só se entra após
ter passado no vestibular.”
pAlEstrA pArA univErsitáriOs
Esta história é contada em detalhes pelos engenheiros Paulo Coreixas e Erton
Carvalho. Um dos mais destacados tecnologistas de concreto do País, consultor
68 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
de importantes projetos no Brasil e no exterior, o engenheiro Walton Pacelli
de Andrade, comandava o laboratório central de Furnas em Goiânia. Ele fora
convidado para apresentar uma palestra sobre tecnologia avançada do concreto
na universidade.
Antes de sair, reuniu alguns dos membros da sua equipe e entregou uma folha
de papel para cada um. “Com o objetivo de quebrar o gelo, preparei para cada um
de vocês essas perguntas a serem endereçadas a mim quando eu tiver concluído
a palestra.” Ao final da apresentação, como previsto, os universitários não
fizeram perguntas. Como combinado, o engenheiro Rubens Machado Bittencourt
consultou o papel que havia recebido e formulou a pergunta que estava nele
redigida.
Ao ouvir, o esquecido Pacelli respondeu: “Me admiro muito de você, Rubão,
que trabalha há tanto tempo comigo, não saber uma coisa elementar como essa!”
Depois disso, nenhum dos outros ousou formular qualquer pergunta.
hiDráulicA DE vErtEDOurO
Em visita à hidroelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, uma grande comitiva
estava em uma das extremidades da crista do vertedouro, na época o de maior
capacidade do mundo. Com velocidade, a água passava tangencialmente ao muro
lateral, a montante do vão extremo direito. Quando isso acontecia, por mudar de
direção, provocava um vórtice no sentido horário.
Ao olhar essa cena, o presidente da Eletrobras, engenheiro Mário Bhering,
destacado técnico do setor elétrico, recordou as aulas teóricas de hidráulica.
Apontou para o vórtice e disse que aquilo estava acontecendo devido à aceleração
de Coriolis, relacionada à rotação da Terra, que faz com que no hemisfério sul,
quando a água escoa para baixo, haja um movimento giratório no sentido horário
e um movimento contrário no hemisfério norte.
Quando a comitiva chegou à outra extremidade do vertedouro, o fluxo,
influenciado pelo outro muro lateral, provocava um vórtice no sentido anti-
horário. O engenheiro José Turco Neto, que acompanhava a comitiva, falou à
meia voz: “O vertedouro é tão longo que cruzamos o Equador.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 69
A brEchA
Uma das ensecadeiras de segundo estágio do desvio do rio para a construção da
hidroelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, estava para ser fechada. O competente
engenheiro José Renato Kling Cotrim, que participou do projeto desde o seu início,
se diverte quando lembra desse fechamento.
Devido à importância da obra, a mídia fez uma ampla divulgação. Depois de
marcada a cerimônia, foi feito um trabalho especial para deixar para esse dia apenas
um trecho muito pequeno, que seria aterrado com toda a pompa e circunstância.
As autoridades ficariam em um canteiro de obra, com visão ampla da operação, que
seria feita em minutos.
Até o dia anterior do evento, uma pequena vazão passava pelo trecho de
aterro que faltava na ensecadeira. Porém, ao amanhecer do dia marcado, com as
autoridades chegando e o rio já desviado, não mais havia fluxo de água escoando
pelo trecho da ensecadeira que faltava ser executado.
Isso aconteceu porque, durante a noite, a descarga do rio diminuiu e,
consequentemente, o nível d’água diminuiu também, ficando abaixo do trecho a ser
fechado. Foi uma correria: as equipes rapidamente mobilizaram escavadeiras para
executar uma brecha no trecho que não estava completo, até pouco abaixo do nível
d’água. Assim a água voltaria a fluir sobre o aterro.
Todos se posicionaram para assistir ao fechamento da ensecadeira. A imprensa se
preparou para filmar e fotografar. Os tratores entupiram a brecha ao som de aplausos
dos presentes. Ninguém, exceto os envolvidos diretamente com a obra, ficou sabendo
que esse tinha sido, na realidade, o segundo fechamento daquela ensecadeira.
A primEirA AulA A gEntE nãO EsquEcE
Como em todos os anos, no início de 1968 o professor Flavio H. Lyra ofereceu a sua
sala de reunião em Furnas, onde era diretor técnico e vice-presidente, aos seus alunos
da disciplina de Aproveitamentos Hidroelétricos. Como acontecia todos os anos, eles
aceitaram prontamente e fugiram nesses dias das instalações ainda precárias da UFRJ,
em construção na Cidade Universitária.
Em uma quarta-feira do início do ano letivo, o consultor austríaco em geotecnia
70 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Arthur Casagrande, contratado por Furnas e por diversas outras grandes empresas
do setor elétrico, iria visitar as obras em execução. O professor Lyra teria que
acompanhá-lo e, por isso, pediu ao chefe do Departamento de Engenharia de Furnas,
Franklin Fernandes Filho, que o substituísse em sala de aula.
No mesmo dia, pouco após o início do expediente, Franklin adentra a sala do grupo,
que na época gerenciava o início dos projetos das hidroelétricas de Porto Colômbia e
Marimbondo. Muito afobado, como de costume, dirigiu-se ao coordenador do grupo,
o engenheiro Humberto Pate, e pediu que o substituísse. Contou que um amigo tinha
sido baleado no Espírito Santo e que teria que viajar para lá com urgência.
Pate, que tinha um temperamento oposto, ficou surpreso e perguntou: “Franklin,
que dia será essa aula?” E recebeu uma resposta rápida: “Dentro de dez minutos,
na sala de reunião.” “E qual é o assunto?”, questionou novamente. “Investigações
preliminares. Adeus.”
Visivelmente nervoso, Pate me disse: “Miguez, você fez esse curso no ano passado
e sabe como são essas aulas. Assume isso, eu estarei lá com você.” Naquela época, os
desenhos dos projetos eram agrupados por assunto e colocados em cabides. Pegamos
alguns deles e os levamos para a sala, com o objetivo de mostrarmos o que se costumava
fazer em investigações de campo nas áreas de geologia, geotecnia, fluviometria e
cartografia. Para falar sobre os critérios para a programação de sondagens e ensaios in
situ, comecei descrevendo a geologia dos dois locais, dizendo que eram situados sobre
derrames basálticos intercalados com horizontes de arenito e/ou brecha.
Dias depois, ao retornar do Espírito Santo, Franklin nos chamou à sua sala e disse
que deveríamos ministrar mais aulas sobre o assunto. Os alunos tinham gostado muito
e, segundo acrescentou, disseram que só não entenderam nada do que veio depois de
derrames basálticos. Ministrei naquele ano e em anos seguintes quatro aulas sobre
fundamentos de geologia.
bOlO DE ApOstAs
Apostas são mais comuns do que se pensa na universidade. Os alunos podem
até não prestar muita atenção nas aulas, mas não perdem nenhum detalhe dos
professores. Não raro se desenvolve admiração por uma professora bonita.
Gilda de La Roque era um desses casos. Ela entrou na Escola Nacional de
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 71
Engenharia em 1961. Foi monitora de cálculo vetorial a partir de 1963. Sempre
elegante e com ótima didática, conseguia dominar um auditório de 100 alunos do
primeiro ano, que não perdiam suas aulas.
O engenheiro Erton Carvalho, destacado profissional, presidente de prestigiosas
associações técnicas e consultor de importantes obras hidráulicas, era professor na
engenharia civil da UFRJ no curso de hidráulica. Sua competência e dedicação
sempre cativavam os alunos, que eram observadores e percebiam na sua dedicação
o desejo de que as matérias ensinadas fossem devidamente absorvidas.
A Dra. Heloisa Firmo, hoje ilustre professora do mesmo curso, conta que, ao
fim das aulas, o Erton, no seu entusiasmo pela matéria e após preencher a lousa
ilustrando suas explicações, quase sempre tinha a roupa e o rosto impregnados
de pó de giz. Durante as aulas, corria um bolo de apostas para verificar em que
instante o seu rosto receberia a primeira camada de giz.
Sabedor disso, eu muito raramente usava giz. Quando o fazia, usava giz
importado, que não deixava pó nas mãos, trazido para mim dos Estados Unidos
por minha querida sobrinha e afilhada Ana Gregori. Mas certamente meus alunos
devem ter reparado em muitas características da minha personalidade e eu também
devo ter sido alvo de comentários e apostas.
EstAgiáriOs
Furnas costumava oferecer todos os anos, durante as férias escolares de julho,
estágios em suas obras para os estudantes do último ano de engenharia civil. Como
diretor técnico e vice-presidente da empresa, o professor Flavio H. Lyra oferecia
essa extraordinária oportunidade aos seus alunos da disciplina Aproveitamentos
Hidroelétricos da UFRJ. Os estágios eram na obra em que havia maior intensidade de
construção.
Como sucedi ao Dr. Lyra como responsável por essa disciplina – depois de mim
vieram Adolfo Szpilman, Luiz Felipe Pierre, eu novamente e, atualmente, Heloisa
Firmo –, essa oportunidade que dávamos aos estudantes permaneceu por muitos
anos. Ao longo desse tempo, muitos episódios interessantes aconteceram.
Em uma dessas ocasiões, o estudante Carlos Alfredo Paiva chegou à obra da
hidroelétrica de Marimbondo. Era uma segunda-feira da primeira semana de
72 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
julho, no início da década de 1970. No meio da semana, ele pediu para retornar
ao Rio de Janeiro no voo da sexta-feira. Disse que iria se casar.
Ninguém acreditou, mas o chefe da obra, engenheiro Rubens Vianna de
Andrade, e seu auxiliar imediato, engenheiro José Luiz Sá Freire de Pinho,
concederam uma vaga em um dos pequenos aviões que conectavam três vezes
por semana as obras no rio Grande ao escritório central, no Rio de Janeiro. Na
segunda-feira, para espanto geral, Carlos Alfredo reapareceu em Marimbondo
com a recém-casada esposa. A lua de mel foi na obra, durante o mês do estágio.
Outro estagiário dessa época foi Ricardo Ivan Bicudo. Magro e elegante
desde a época de estudante, e até hoje, ele se fartava com os deliciosos almoços
e jantares preparados pelo Alexandre Penacchi, responsável pelas refeições dos
que se alojavam na obra. Acabou o estágio sofrendo de uma forte úlcera.
Depois de formado, Bicudo foi contratado pelo engenheiro Joaquim Pimenta
de Ávila, passando a fazer parte de uma eficiente equipe de projetos geotécnicos.
Um dia, um dos filhos pequenos do Joaquim chegou a casa depois do colégio e
disse que estava apaixonado por uma menina do colégio. “Mas o nome dela é
estranho: Bicudo”, comentou.
Já a menina, curiosa com o trabalho do pai, pediu para ir ao escritório durante
um dos dias das férias escolares. Naquele dia, Bicudo teve uma intensa agenda
de reuniões sucessivas. Ao chegar em casa, a filha denunciou o pai para a mãe:
“Mamãe, descobri que o papai não faz nada o dia inteiro. Fica só conversando
com os amigos.”
águA Em sEis DiAs
Esse é um dos episódios de grande repercussão da engenharia. No final do século
XIX, o abastecimento de água na cidade do Rio de Janeiro era pouco confiável – o
que não difere muito dos dias atuais. Isso porque, atualmente, depende quase na
totalidade da bacia do rio Guandu.
A situação ficou crítica no verão de 1888/1889, época de intenso calor e surto de
febre amarela. Impelido pelo clamor popular, o governo imperial emitiu uma nota pela
imprensa solicitando a solução para o abastecimento no mais curto prazo possível. A
ideia era que essa obra fosse considerada prioritária e, assim, tivesse respaldo financeiro.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 73
O engenheiro Francisco de Paula Bicalho apresentou um plano de trabalho,
que previa que essa implantação demandaria quatro meses. No dia 15 de março, o
jovem e ainda desconhecido engenheiro Paulo de Frontin se comprometeu pelos
jornais a colocar água na cidade em seis dias. Isso significava um acréscimo de
10.400 litros por minuto, e com um custo muito menor. A estratégia era fazer
novas captações na Serra do Mar, na localidade do Rio D’Ouro.
O imperador Pedro II acreditou no jovem engenheiro. No dia 16 de março,
o contrato estava assinado, com cláusulas draconianas. Dois dias depois, 360
trabalhadores estavam mobilizados, chefiados pelos engenheiros Carlos
Sampaio, Julio Paranaguá e João de Barros Carvalhais. A fiscalização ficou a
cargo do engenheiro Raymundo Belfort Roxo. Na obra foram usados tubos
disponibilizados pelo governo, que também se encarregou do transporte por via
ferroviária.
A chuva foi inclemente durante toda a obra. Entretanto, no dia 23, como
prometido, a água chegava à caixa-d’água do Barrelão, estrutura da adutora Rio
D’Ouro, na Serra do Tinguá. Por causa das duras condições locais e da chuva
intensa, jovens jornalistas foram destacados para cobrir essa curta epopeia.
Assim como o engenheiro Frontin, eles também eram desconhecidos na época:
Olavo Bilac, Raul Pompéia e Coelho Neto.
Esse feito projetou nacionalmente o engenheiro Paulo de Frontin. Pelo texto
acima, nota-se que, naqueles tempos, engenheiros eram reconhecidos pela
sociedade e cediam os seus nomes, após a morte, a importantes logradouros
públicos.
O sistema do Rio D’Ouro foi melhorado ao longo dos anos e é operacional
até hoje, embora contribua com apenas 2% do abastecimento da região
metropolitana do Rio de Janeiro. Até a minha época de estudante, esse episódio
era narrado nas aulas de hidráulica das escolas de engenharia. Eu o ouvi dos
professores Theophilo Benedicto Ottoni Neto e Flavio H. Lyra, que achavam
que as chuvas, apesar de terem atrapalhado as obras, foram fundamentais para
que a vazão prometida tivesse sido captada. Infelizmente, por ter ocorrido em
um passado remoto, esse episódio não é mais relatado nas escolas de engenharia
da atualidade.
74 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
cOmO sE DEvE fAzEr
Trabalhei para a Light em todas as suas fases institucionais, desde o final do período
canadense. Em dois contratos tive o privilégio de atuar com o engenheiro Wilsom
D’Andrea, um dos superintendentes da empresa em São Paulo. Ele lembra uma reunião
que aconteceu na época em que a companhia foi encampada pelo governo central.
Diretores da Eletrobras endereçavam aos gerentes de suas subsidiárias instruções
veementes de que não fossem contratados serviços sem verba alocada – era como se
eles estivessem recebendo uma reprimenda. Na sua estreia como estatal, D’Andrea,
espantado, disse que na Light canadense era diferente: um serviço só poderia ser
contratado quando, além de constar na programação financeira e ter verba aprovada,
houvesse o carimbo da tesouraria situada no segundo andar, garantindo haver recurso.
Seria bom se, no setor elétrico, tudo tivesse sido feito assim.
EntusiAsmO ExAgErADO
O engenheiro Mário Santos é conhecido pela sua elevada capacidade e pelo seu
constante e contagiante entusiasmo. No livro A História das Barragens no Brasil,
editado pelo Comitê Brasileiro de Barragens em 2011, há uma extensa entrevista sua
que retrata a sua brilhante carreira e sua permanente franqueza, que é também uma
marcante característica da sua personalidade.
Em julho de 2013, a Fundação Getulio Vargas (FGV) promoveu um simpósio sobre
a matriz energética brasileira. Em dado momento, o engenheiro Mário Menel Cunha,
que era o moderador de uma sessão, enfatizou a importância de os debatedores se
manterem nos 15 minutos previstos para as suas exposições. Classificando-se como
idoso, ele disse que, como todos os velhos, iria exemplificar contando uma história.
Quando integrava o alto escalão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel),
assistiu a uma apresentação do conceituado engenheiro Mário Santos em um evento
no qual o engenheiro José Luiz Alquéres era o coordenador de debates. Empolgado, o
palestrante já havia ultrapassado em muito o tempo que lhe havia sido concedido.
Alquéres, depois de tentar sinalizar algumas vezes que o tempo estava esgotado,
mandou um recado por escrito para Mário Menel, que estava na plateia: “Por favor, use
da sua posição de órgão concedente, pois eu só posso interrompê-lo abatendo-o a tiros.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 75
prOspEcçãO minEirA
Juiz de Fora é a mais carioca das cidades mineiras. Essa ligação vem desde que
Mariano Procópio implantou a Estrada União Indústria, no Segundo Império. E
se intensificou depois da construção da ferrovia da Leopoldina, que saía do Rio de
Janeiro e chegava a Minas Gerais.
Para provocar os residentes na capital mineira, na estação ferroviária de Juiz de Fora,
havia (e está preservada até hoje) uma placa com duas setas em sentidos contrários.
Uma indicava que para um lado estava o Rio de Janeiro e, para o outro, o interior.
A Companhia Mineira de Eletricidade tinha a concessão de distribuição de energia
elétrica em Juiz de Fora, até ter sido adquirida pela Cemig. Suas usinas geradoras
estavam localizadas no rio Paraibuna, que corta a cidade. Entre os seus projetos de
expansão de geração estavam os estudos feitos pelo engenheiro João Brasil Camargo
das hidroelétricas de Sobragy, no rio Paraibuna, e de Picada, no rio do Peixe, ambas
perto da sede municipal.
A Companhia Paraibuna de Metais era uma indústria eletrointensiva, cuja demanda
de energia se encaixava com o que essas duas hidroelétricas poderiam produzir. Eu levei
para os principais executivos da empresa – o industrial Raymundo Pessoa e o engenheiro
Geraldo Magela de Mattos Sanabio – a ideia de torná-la autoprodutora de energia
elétrica através da implantação dessas duas usinas, o que, de fato, veio a acontecer. Os
projetos saíram do papel, tendo 110 megawatts de capacidade instalada conjunta.
No final dos anos 1980, iniciamos o projeto da hidroelétrica de Sobragy, situada em
um conjunto de corredeiras a jusante da cidade de Juiz de Fora e da confluência com
o rio do Peixe. Não confirmo se é verdade ou se faz parte do folclore mineiro, mas as
más línguas, para me provocar, contavam uma história sobre o seu Wilson, que era
proprietário das terras na margem direita do rio no local da usina.
Em conversa no botequim, seu Wilson teria externado o desejo de, numa próxima
vez que estivesse no campo o engenheiro carioca de pele clara e olhos azuis que havia
proposto o projeto da hidroelétrica para a Companhia Paraibuna de Metais, pedir a
ele que locasse uma pequena estrada terminando no curral de sua fazenda, com a
topografia que estava sendo levantada na região.
Um caboclo, ouvindo a conversa, teria dito para o seu Wilson: “Esses engenheiros
da cidade são muito caros. Leve o seu burro até o ponto extremo, solte ele lá e venha
atrás dele fincando estacas de madeira no terreno. O burro irá até o curral em nível”,
76 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
aconselhou. “Mas o meu burro morreu”, disse o seu Wilson, ao que o outro acrescentou:
“Então não tem jeito, contrate o engenheiro.”
Não presenciei esse diálogo e desconfio que foi invenção da equipe de projeto. Mas,
se ocorreu, sei a quem o senhor Wilson se referia.
Já esse fato que narro a seguir se passou comigo. Um dia, o engenheiro Geraldo
Magela, mineiro de Mar de Espanha, me telefonou pedindo que eu enviasse a turma
de sondagem para a margem esquerda, oposta ao local previsto para a casa de força, e
iniciasse uma curta campanha de sondagens à percussão.
Argumentei que não havia motivo para essas sondagens, uma vez que a casa de força e
o túnel de adução seriam construídos na margem direita e na margem oposta não haveria
nenhuma estrutura. Magela disse que sabia disso, mas que o seu Wilson não sabia.
Para quebrar a resistência dele com relação à venda de suas terras, o que vinha sendo
um verdadeiro pesadelo, o engenheiro iria espalhar no botequim que toda a adução do
projeto seria pela margem esquerda. Consequentemente, não precisaria mais adquirir a
fazenda do seu Wilson. Foi tiro e queda. Quando ele viu que estavam sendo executadas
sondagens na outra margem, prontamente aceitou vender as suas terras.
O seu Wilson ficou feliz com o resultado da negociação. Foi fichado na Companhia
Paraibuna de Metais com a função de tomar conta e explorar as terras que tinham sido
dele e, com o dinheiro recebido, comprou uma pequena fazenda vizinha.
O DiciOnáriO
No início dos anos 1960, a Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB)
editou um dicionário de termos técnicos em barragens para os idiomas francês, inglês
(britânico e americano), espanhol, italiano, alemão e português lusitano.
Considerando o boom de implantação de grandes projetos no Brasil e a estruturação
do Comitê Brasileiro de Barragens, resolvemos incluir o português do Brasil em uma
segunda edição. Fui encarregado de preparar os termos em português do Brasil no início
de 1968 e contei com o importante apoio do experiente engenheiro Arthur Crocchi.
No ano seguinte, antes do advento das cópias Xerox, o engenheiro Franklin Fernandes
Filho, chefe do Departamento de Engenharia de Furnas, iria participar das Terceiras
Jornadas de Engenharia dos Países de Idioma Português em Angola e Moçambique,
ocasião na qual os membros dos comitês brasileiro e português iriam discutir os novos
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 77
termos técnicos a serem introduzidos no dicionário da CIGB. Franklin me pediu a
minuta dos termos brasileiros. Prontamente entreguei o original. Percebendo que eu
retinha duas cópias em carbono, ele me pediu as cópias que eram as únicas outras vias.
Muito temeroso, as entreguei.
Meus mais tenebrosos pressentimentos não falharam: Franklin perdeu as três únicas vias
na viagem antes mesmo de chegar a Angola. Tive que fazer tudo novamente. Entretanto,
fiquei sabendo termos em português que me ajudaram a redigir relatórios de serviços que
fiz, muitos anos depois, em nossas firmas sediadas em Portugal e em Moçambique.
Termos como deslocação, desmatação, regolfo, impacte, albulfeira, sapal, betão,
evacuador de cheias e outros são muito diferentes dos usados no Brasil. No início dos
anos 1970, a nova edição do dicionário da CIGB passou a conter os termos brasileiros.
Em 2011, Itaipu, com base no dicionário da CIGB e sob a competente coordenação do
engenheiro Miguel Sória, editou precioso dicionário de termos técnicos em barragens
nos idiomas português, inglês, francês e espanhol.
O blEfE
O engenheiro Miguel Fernández Y Fernández, dono de vasto e brilhante currículo
em saneamento, foi meu aluno de hidráulica no final da década de 1960. Seu filho
Miguel, muitos anos depois, também foi meu aluno no mesmo curso. Isso deve ser carma
familiar! O Miguel sênior me contou interessante episódio ocorrido com o engenheiro
Enaldo Cravo Peixoto que havia sido secretário de obras do Estado da Guanabara no
governo Carlos Lacerda. O fato foi presenciado pelos engenheiros Fernando Botafogo,
Adilson Seroa da Motta e Constantino Arruda. Estava em projeto o que veio a ser o
Interceptor Oceânico, grande obra de saneamento no Rio de Janeiro que envolvia em
sua extremidade de jusante, o Emissário Submarino situado na já então famosa praia de
Ipanema, imortalizada por Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Havia intensa preocupação
na população de que, após o lançamento no fundo do mar, o esgoto retornasse à praia.
Foi convocada uma coletiva de imprensa, o que equivaleria hoje a uma audiência pública,
na qual os projetistas, capitaneados pelo engenheiro Enaldo Cravo Peixoto, foram
submetidos a uma série de perguntas. Quando um jornalista, abordando a grande
preocupação geral, perguntou se havia possibilidade das fezes incidirem na praia, Enaldo
blefou, com veemência e firmeza: “Prezado jornalista. Anote aí o que eu vou dizer. O
78 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
que garante que as fezes nãovoltarão à praia é a teoria da impedância relativa das águas
profundas.” Instalou-se uma silenciosa perplexidade e, não havendo mais perguntas, a
sessão foi encerrada para alívio dos engenheiros.
O iníciO DE itAipu
Nos anos 1970, quando as obras da hidroelétrica binacional Itaipu foram
iniciadas, tudo era novidade e os questionamentos eram frequentes. Até mesmo o
plenipotenciário presidente Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai de 1954 a
1989, foi questionado. As obras começaram com a escavação de um grande canal na
margem esquerda, a margem brasileira.
Esse canal tinha a função de desviar as águas do rio Paraná para que fosse possível a
execução da barragem principal e da casa de força no leito natural do rio. Nesse canal,
antes do desvio, foram implantadas ensecadeiras, barragens provisórias que protegiam
a construção de estrutura que iria fechar o reservatório. Como a escavação do canal foi
em grande parte em rocha, esse material foi aproveitado para o início da execução da
barragem de enrocamento da margem esquerda.
Enquanto o canal de desvio estava sendo executado na margem esquerda, o
descarregador de cheias estava sendo projetado para ser implantado na margem direita.
Um questionamento foi feito ao presidente Stroessner: por que todas as obras estavam
sendo feitas exclusivamente na margem esquerda, ou seja, no Brasil? A resposta foi
digna de um político do antigo PSD mineiro: “Las obras preliminares van a ocurrir en
suelo brasileño: el canal de desvio y suyas ataguias de aguas arriba y de aguas abajo,
que son las obras provisionales. El vertedero de seguridad, que es la obra definitiva, va
a ocurrir en suelo paraguayo!”
itAipu sErrADA
No início de construção das estruturas de concreto no leito do rio Paraná em Itaipu, um
visitante recebido pelo chefe da obra, engenheiro Rubens Vianna de Andrade, ao examinar
uma seção transversal pela tomada d’água e casa de força que estava fixada na parede do
escritório da obra, estranhou que no campo não havia a junta entre as duas estruturas
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 79
que estava indicada no desenho. Realmente foi verificado que a concretagem estava sendo
feita sem a junta. Os projetistas das duas estruturas foram chamados e reagiram, pois não
gostaram de ter que recalcular todo o projeto passando a admitir a continuidade estrutural.
A solução foi encontrada com a aplicação de grande serra utilizada em mineração para
fazer a junta na interface das duas estruturas e mantê-las estruturalmente independentes.
O sAláriO DO prEsiDEntE
No início dos anos 1970, Furnas estava construindo a primeira unidade da usina
nuclear de Angra dos Reis. Como existia uma série de dificuldades na obra, o engenheiro
Alceu Braga Lopes foi contratado para prestar uma consultoria. Ele iria ajudar na
análise dos equipamentos de construção, métodos construtivos, organização do canteiro,
logística de suprimentos, programação de construção e de montagem, organização da
fiscalização e outros aspectos visando melhorar a eficiência da implantação da usina.
Alceu Lopes foi formado em engenharia química pela atual UFRJ em 1952. Na
época em que foi contratado por Furnas para a referida consultoria, era assistente
da diretoria da Montreal. Em seu relatório, Alceu colocou muito claramente as
deficiências que estavam prejudicando o bom andamento da construção. Um dos
itens do relatório foi uma crítica aos salários da equipe de Furnas, considerados
muito baixos e defasados no mercado. E isso incluía explicitamente os salários dos
diretores da empresa.
Pouco após ter sido entregue o relatório, Alceu foi chamado para uma reunião
na sede de Furnas. Conduzido pelo engenheiro Fernando Antônio Candeias,
diretor de administração, ele foi introduzido na sala do presidente da empresa,
o engenheiro John Reginald Cotrim, onde estavam aguardando os engenheiros
Flavio H. Lyra, diretor técnico, Luiz Carlos Barreto de Carvalho, diretor de
operação, e outros representantes da alta administração.
Cotrim, mostrando-se contrariado, tinha nas mãos uma via do relatório e
comentou que nele havia críticas à empresa. Alceu afirmou que o documento
refletia o que foi constatado na obra e que seu objetivo era colaborar com a
companhia, e não a criticar. Após uma discussão sobre o conteúdo do relatório,
Alceu foi convidado a assumir o comando da construção da usina nuclear. Era um
tremendo desafio, pois a central nuclear era um empreendimento de ponta para a
engenharia brasileira.
80 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Alceu então pegou uma folha de papel, escreveu um número, dobrou a folha
e entregou-a ao Candeias, pedindo que ele passasse ao Dr. Lyra. Disse que nela
estava escrito o seu salário na Montreal. Ao ler o conteúdo, Dr. Lyra manifestou
certo espanto. A partir daí, Alceu ficou afastado do grupo enquanto os diretores
debatiam as possibilidades de contratação. Após a conclusão dos debates, Cotrim
se dirigiu ao Alceu e disse que, se ele aceitasse comandar a obra, seria admitido
imediatamente como assistente do Dr. Lyra e, posteriormente, transferido para
Angra dos Reis com um adicional de 30% sobre o salário. Com isso, ele teria
os mesmos proventos do presidente da empresa. Alceu aceitou e assumiu a
superintendência da construção da usina nuclear, indo residir na obra, e, desde
então, passou a ficar muito vinculado à região de Angra dos Reis.
As bArrAgEns, Os pOrtuguEsEs E O futEbOl
Meu primeiro contato com os portugueses foi através do futebol. O Fluminense
havia sido campeão carioca de 1951 com uma equipe aparentemente modesta,
chamada pejorativamente pelos adversários de timinho. Entretanto, a equipe dirigida
por Zezé Moreira, que introduziu naquele ano a marcação por zona, tinha jogadores
virtuosos como Píndaro, Pinheiro, Telê, Carlyle, Orlando e Didi, além dos dois
melhores goleiros que já vi atuar nos meus mais de 60 anos de futebol: Castilho e
Veludo, que, infelizmente para os tricolores, foram contemporâneos em uma posição
que não admite dois jogadores atuando ao mesmo tempo no mesmo time.
No ano seguinte, em 1952, buscando cicatrizar a ferida aberta em 1950 pela
perda no Maracanã do campeonato mundial para o Uruguai, em cuja seleção
atuava o extraordinário ponta de lança Miguez, foi organizado, com apoio da
FIFA, um campeonato mundial de clubes campeões. Foram convidados campeões
de vários países, além dos campeões de São Paulo e do Rio de Janeiro. Eu, que,
por ser na época muito pequeno, só havia assistido a um jogo da Copa do Mundo de
1950, pude acompanhar todos os jogos do Fluminense no campeonato dos campeões
mundiais, que foi denominado de Taça Rio. A partida que mais me marcou foi contra
o Sporting, campeão de Portugal, que naquela época contava com ótimo plantel, no
qual se destacavam os cinco violinos – assim chamados porque jogavam por música –,
comandados por Travassos.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 81
O resultado foi um empate por 0x0 devido às grandes atuações dos goleiros
Castilho, pelo Fluminense, e Carlos Gomes, pelo Sporting. Depois desse jogo, passei
a simpatizar com o Sporting em Portugal. A campanha prosseguiu e o Fluminense,
invicto, se sagrou campeão dos campeões do mundo.
Logo após a minha formatura na Escola Nacional de Engenharia da Universidade
do Brasil, hoje Escola Politécnica da UFRJ, tangenciei o projeto da hidroelétrica de
Funil, no rio Paraíba do Sul, projetada pela Coba, empresa portuguesa de engenharia
consultiva com sede em Lisboa.
Em 1973, a minha admiração pela engenharia hidráulica e geotécnica portuguesa se
consolidou durante excelente treinamento que me foi propiciado no Laboratório Nacional
de Engenharia Civil. Ao indagar o endereço do Laboratório, fui surpreendido pela
resposta: o Laboratório era tão conhecido que dispensava endereço; para lá chegar bastava
ir à Avenida do Brasil, em frente à Avenida do Rio de Janeiro. Endereço inesquecível.
Nesse treinamento tive o privilégio de ter sido orientado pelo destacado engenheiro
e pesquisador Ricardo de Oliveira, que até hoje possivelmente não desconfia do elevado
grau de amizade e de admiração que gerou em minha pessoa.
Por motivo da crise política e econômica que logo depois se alastrou em Portugal, a
partir de meados dos anos 1970, tive a oportunidade de trabalhar com muitos competentes
engenheiros provenientes de Portugal e de suas antigas províncias ultramarinas.
Em 2002 fiquei muito honrado por ter sido convidado para ministrar aulas em um
curso sobre segurança de barragens em Lisboa, promovido pela Direcção Nacional de
Águas e pela Comissão Portuguesa de Grandes Barragens. Minha última aula foi no
dia seguinte ao que o Sporting havia conquistado o campeonato português de futebol,
depois de um longo período em que se destacavam o Benfica e o Porto.
Lisboa estava em festa. Em todas as aulas, eu havia usado exemplares da minha
coleção de gravatas dos comitês nacionais da Comissão Internacional de Grandes
Barragens. Nessa derradeira aula, eu estava usando uma verde do Comitê da Irlanda.
Ao terminar a aula e os debates, uma última mão foi erguida para uma pergunta.
Era um senhor, certamente engenheiro experiente, que poderia colocar uma pergunta
de difícil resposta. Até então eu havia respondido satisfatoriamente a todos os
questionamentos. Ele elogiou a cor verde da minha gravata, a mesma cor do Sporting,
e me fez a pergunta, que eu não soube responder: “Senhor engenheiro, por que o Jardel
não foi convocado para a Seleção Brasileira?” Jardel, atacante revelado pelo Vasco da
Gama, era o ídolo máximo da torcida do Sporting.
82 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Finalmente, ao encerrar o curso, eu deixei uma relação de referências bibliográficas
sobre segurança de barragens, em português e nos dois idiomas oficiais da Comissão
Internacional de Grandes Barragens, inglês e francês. Lembrando que as minhas
filhas não tiveram aula de francês no colégio, e que na sala havia alguns jovens
engenheiros, perguntei se todos liam em francês. Interpretei o silêncio que se seguiu
como uma resposta afirmativa. Ao me retirar da sala aliviado, dois jovens engenheiros
se aproximaram e disseram: “Senhor engenheiro, nós podemos ler em francês, mas não
percebemos.”
O câmbiO, O tAxistA E O prOfEssOr
Tendo feito especialização em hidráulica, resolvi cursar a pós-graduação em
geologia. Na época, final dos anos 1960 e início dos anos 1970, os cursos de geologia
da UFRJ eram sediados no prédio do Largo de São Francisco, no centro do Rio de
Janeiro. Em 1972, o saudoso professor Ronaldo Azambuja, então diretor do Instituto
de Geociências, convidou o Dr. Ricardo de Oliveira, pesquisador e chefe da geologia
do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa, para ministrar
um curso sobre mecânica de rochas. Tive o privilégio de participar como aluno desse
curso, mas só em 2013 é que soube de algumas coisas que ocorreram, as quais passo
a relatar a seguir.
Tudo acertado, Ricardo se deslocou para o Rio de Janeiro depois de alguns meses.
Antes, ao aceitar, ele havia perguntado quanto era a remuneração, que converteu para
dólares americanos da época. Ao final do curso, Azambuja entregou um cheque em
cruzeiros de valor muito inferior ao que o Ricardo esperava. Ao ser perguntado pelo
valor correspondente em dólares, Azambuja respondeu que aquele valor de meses
atrás correspondia ao câmbio daquela época, mas a volatilidade da nossa moeda e a
inflação eram de tal ordem que corroeram em cruzeiros a remuneração que havia sido
aprovada pela Universidade, que teve que permanecer no valor histórico. O valor em
moeda firme passou a ser muito inferior ao esperado. Essa deve ter sido a primeira
experiência do Ricardo com o Brasil.
Para ministrar o curso, Ricardo solicitou que suas aulas fossem concentradas,
para que a sua permanência fora de Lisboa não se estendesse por muito tempo. E foi
atendido. Alugou um apartamento em Ipanema, perto da Praça General Osório. O
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 83
deslocamento para o Centro não era curto.
Em um dos primeiros dias de aula, Ricardo pegou um táxi Volkswagen de motorista
e um banco para duas pessoas, muito comum naquela época. Ao dizer o destino, o
taxista percebeu que não estava conduzindo um brasileiro, mas um português como
ele. Ao puxar conversa ficou sabendo que o Ricardo era um pesquisador que havia
vindo para ensinar num curso de pós-graduação na Universidade Federal. Quando
a longa corrida foi concluída, não houve meios de o taxista receber a remuneração
pelos seus serviços. Ele disse que tinha sido uma honra transportar um professor
universitário que vinha dar lições no exterior.
O milAgrE brAsilEirO
O engenheiro e advogado Gilberto Valente Canali conta que, em pleno milagre
brasileiro, esteve com Sebastião Camargo, presidente e principal acionista da
Construção e Comércio Camargo Corrêa, em uma solenidade na obra da hidroelétrica
de Salto Santiago, no oeste do Paraná. Ao chegar em seu avião, Sebastião Camargo foi
informado de que o engenheiro José Gelásio da Rocha, então diretor da Eletrobras,
ainda não havia chegado.
Imediatamente deu instruções para que o seu avião fosse buscar o Gelásio. Com
tempo livre na obra, ele teve a oportunidade de conversar sobre diversos assuntos.
Em um dos momentos, Sebastião Camargo afirmou: “Não sei por que os jovens ficam
preocupados com custos e cronogramas. As obras custam o que têm que custar e
levam o tempo que têm que levar.”
Os DOis EspiõEs
Durante o governo de João Goulart, Leonel Brizola, então governador do
Rio Grande do Sul, encampou a empresa de energia elétrica local, subsidiária
da Amforp, grupo americano que detinha várias concessões no Sul, Sudeste e
Nordeste do Brasil. O grupo foi estatizado em seguida. O engenheiro Léo Amaral
Penna era seu principal executivo. Considerando seu prestígio técnico e sua
extensa capacitação, Léo Penna assumiu a diretoria de planejamento e engenharia
84 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
da Eletrobras já no governo Castello Branco.
Como era comum naquela época, foram contratados pela Eletrobras dois coronéis
que foram posicionados como assistentes do Léo Penna: Raul Garcia Lhano e Mauro
Moreira. Léo Penna me contou que, inicialmente, sentiu um certo desconforto, pois
a missão dos dois seria a de fiscalizar as atividades da Eletrobras. Entretanto, em
pouco tempo, por serem pessoas muito capazes e corretas, e por ser a Eletrobras bem
gerenciada, criaram fortes laços de amizade com Léo Penna e com os demais membros
da Eletrobras, passando a ser elementos importantes no setor elétrico, Lhano
assumindo a primeira presidência da Eletronorte e Moreira se destacando em Itaipu.
ínDiO quEr ApitO
Em viagem realizada em 2004 pelo norte do Mato Grosso, próximo à fronteira
com Rondônia, para a inspeção de uma pequena central hidroelétrica, estávamos
percorrendo uma estrada de rodagem não pavimentada, que já existia quando uma
reserva indígena foi demarcada. Vista em planta, a reserva tem a forma lenticular. A
estrada, que na época era mantida pelos índios, atravessava a reserva na sua menor
dimensão.
Evitar a estrada significaria estender demasiadamente o percurso. Ao chegarmos
ao limite da reserva, nos deparamos com uma cancela fechada, operada por um índio
que nos informou que, para entrar, teríamos que contribuir com R$ 5,00, que ele
pronunciou “cinco rau”, mantendo uma das mãos espalmada para indicar a quantia.
Depois de atravessarmos a reserva, no outro extremo, outra cancela fechada e outro
lacônico índio: “Para sair, vinte rau.”
piOr A EmEnDA DO quE O sOnEtO
Em Portugal as piadas são sobre os alentejanos. Os alentejanos sofrem com as
piadas. Ao ouvi-las fico com a impressão de que devemos ter sido colonizados por
alentejanos.
Em janeiro de 2012, por instrução normativa publicada no Diário Oficial da União
(DOU), a Funai determinou que todos os documentos, inclusive EIAs e RIMAs, para
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 85
licenciamentos ambientais de empreendimentos que se situam próximos a terras
indígenas têm que ser traduzidos para a língua indígena da região. Nota-se que, mesmo
em regiões populosas como a entre Rio de Janeiro e São Paulo, há terras indígenas.
Atualmente, as 505 terras indígenas compreendem 12,5% do território nacional.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE, são identificadas 305 etnias e 274 línguas
indígenas faladas, algumas das quais pouco conhecidas pelos próprios índios e
nenhuma delas escrita. Sendo apenas falados, os sons teriam que ser escritos em
algum idioma como, por exemplo, o português, para poderem ser lidos. Assim, para
que um índio possa ler em sua língua, ele teria que saber ler em português.
Pior a emenda do que o soneto. Como a gritaria contra essa absurda e descabida
exigência foi muito grande, em maio do mesmo ano, a Funai, também através do
DOU, emitiu nova instrução normativa pela qual passou a exigir traduções para
línguas indígenas apenas quando ela, Funai, julgar necessário ou conveniente.
piADAs DE AlEntEJAnOs
Fernando Collor de Mello havia assumido a presidência da República e bloqueado
a moeda circulante, causando graves problemas para todos os residentes no País.
Pouco depois, haveria na Austrália a reunião executiva da Comissão Internacional
de Grandes Barragens. Os brasileiros que iriam participar enfrentaram dificuldades
instransponíveis para realizar a inscrição, reservar hotel e adquirir passagem
aérea, bem como obter recursos para despesas no exterior. A jornada não poderia
ser mais longa.
Eu consegui participar da reunião porque nossa empresa de engenharia
consultiva tinha uma subsidiária em Portugal, que adiantou as despesas. E fiz
um voo com escala em Lisboa. Dali em diante me incorporei ao grupo do comitê
português, que estava querendo um sétimo participante para conseguir descontos
nas passagens.
Pela antiga amizade e também por baratear as passagens, fui muito bem-vindo
ao grupo. De Lisboa a Sydney a viagem é muito longa e, no início, conversávamos
animadamente. Entretanto, aos poucos os assuntos foram se rarefazendo e
começamos a contar piadas. Os seis portugueses contavam piadas de alentejanos,
como é o costume em Portugal. Para cada piada de alentejano que eles contavam,
86 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
eu contrapunha outra piada de alentejano. Em dado momento, o engenheiro Silva
Gomes, conceituado pesquisador do prestigiado Laboratório Nacional de Engenharia
Civil, me perguntou: “Miguez, como é que sendo brasileiro você sabe tantas piadas
de alentejano?” Ao que o engenheiro José Pedro, outro conceituado pesquisador,
retrucou: “Silva Gomes, não seja estúpido. Ele está a contar piadas de português.”
mAnuEl rOchA x rOsinhA
Em 1979, o congresso da Comissão Internacional de Grandes Barragens foi
realizado em Nova Délhi. Mesmo estando em hotel de bandeira internacional, o
serviço era sofrível. No café da manhã, o jeito para sermos servidos sem demoras
extremamente longas era sentar em um balcão onde podíamos pressionar mais
diretamente os encarregados do serviço.
Em um dos dias do congresso, eu estava ao balcão ao lado da Rosinha, esposa do
Paulo Barros, engenheiro de Furnas. Ela percebeu que do seu outro lado havia um
participante do congresso que falava português que, pelas tantas, lhe perguntou se
conhecia Portugal. Ela respondeu: “Infelizmente não, e vou lhe dizer por quê. Meu
marido e eu tínhamos planos de ficar um tempo em Lisboa. Ele tentou fazer um estágio
no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) em Lisboa, mas um tal de Manuel
Rocha, elemento desprezível e diretor-geral do laboratório, vetou o estágio dele.”
O lance foi tão rápido e inesperado que eu, embora estivesse ao lado, não
consegui fazer nada para evitar a catástrofe. Seu interlocutor, com muita elegância
e amabilidade, falou: “Tenha certeza, minha senhora, de que, em uma próxima
candidatura de seu marido, ele será prontamente aceito e muito bem recebido. Eu
sou o desprezível Manuel Rocha.” Ele era muito conhecido de nós, engenheiros,
mas não necessariamente das esposas dos participantes do congresso.
Paulo Barros não fez uma segunda tentativa; faleceu não muitos anos após esse
episódio sem conhecer Portugal e, consequentemente, nunca esteve no LNEC.
Os suíçOs nãO EntEnDErAm
Nos anos 1960, a Electrowatt, empresa consultora suíça com larga experiência
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 87
em projetos de hidroelétricas, resolveu instalar um escritório no Rio de Janeiro.
Conseguiu um contrato com a Empresa Fluminense de Eletricidade (EFE) para
desenvolver o estudo de viabilidade do aproveitamento hidroelétrico de Rosal no
rio Itabapoana. A EFE foi posteriormente englobada, junto com outras empresas
estaduais, nas Centrais Elétricas Fluminenses (CELF).
Depois da encampação nos anos 1960 das empresas do grupo Amforp, do qual a
Companhia Brasileira de Energia Elétrica (CBEE) fazia parte, a CELF e a CBEE
foram reunidas na Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro (CERJ).
A CERJ foi privatizada, sendo hoje denominada Ampla. Mas a usina de Rosal
acabou não tendo sido implantada por nenhuma dessas empresas. Os estudos
de viabilidade efetuados pelos suíços foram concluídos e entregues à EFE, que
os encaminhou ao poder concedente. Entretanto, este solicitou a Furnas uma
verificação da oportunidade da implantação da hidroelétrica.
Furnas, que desde sua constituição teve que lutar ferrenhamente por seu espaço
contra as empresas estaduais de energia elétrica da Região Sudeste, elaborou uma
comparação com a usina de Estreito, que na época estava em início de construção.
Essa comparação resultou na indicação de uma maior economicidade de Estreito
pelo efeito de escala, por ser esta 20 vezes maior do que Rosal.
Com esse resultado, a EFE, que já vinha com atrasos de pagamento das faturas
emitidas pela consultora suíça, assumiu a posição de que não pagaria mais nada,
pois o empreendimento para o qual o estudo de viabilidade havia sido feito não
foi considerado viável pelo governo. Os suíços, por mais que argumentassem, não
conseguiram entender por que não recebiam por um serviço corretamente feito. A
usina de Rosal foi construída muito depois pelo Grupo Rede e entrou em operação
em 1999. Posteriormente, foi transferida para a Cemig.
Já cOmbinArAm cOm Os russOs?
Essa expressão é uma das mais conhecidas no Brasil e foi originada na Copa do
Mundo de 1958 quando, no seu terceiro jogo, a Seleção Brasileira ia enfrentar a
temível seleção soviética. Pela primeira vez, o endiabrado Garrincha seria escalado.
O treinador Vicente Feola, momentos antes do jogo, ainda no vestiário, recordava as
últimas instruções aos jogadores dizendo que todos deveriam centralizar o jogo no
88 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Didi – que nessa Copa ficou conhecido por Mr. Football –, que passaria a bola para o
Garrincha na direita. Este, após ultrapassar os seus marcadores soviéticos, chegaria
à linha de fundo para centrar para Vavá ou Pelé, que estariam posicionados na área
adversária. Garrincha, na sua conhecida inocência e percebendo que ele seria o único
que teria que enfrentar marcadores, perguntou: “Já combinaram isso com os russos?”
A expressão, embora com mais de meio século, é usada com frequência até hoje.
Em 1962 a Comissão Internacional de Grandes Barragens realizou a sua reunião
executiva em Moscou. Participaram como delegados à reunião, como representantes
do recém-instituído Comitê Brasileiro, Flavio H. Lyra e John R. Cotrim. Os dois
tiveram contato com a realidade da União Soviética na época, pois, além de Moscou,
visitaram as principais obras hidráulicas em execução naquele país.
No retorno, Cotrim publicou o livro Um Engenheiro Brasileiro na Rússia, no qual
relatou o que havia observado na longa viagem. O livro causou forte impacto, já que
na época, em plena Guerra Fria, a propaganda projetava entre nós uma imagem irreal
da União Soviética e os relatos do Cotrim mostravam o atraso social que imperava
naquele país.
Em 1966 o Comitê Brasileiro de Barragens realizou a reunião executiva da Comissão
Internacional no Rio de Janeiro. Na programação estava incluída uma visita dos
participantes às interessantes instalações da Light, em Piraí (RJ), que envolvem várias
barragens, diques, três transposições de bacias, grandes instalações subterrâneas,
usinas hidroelétricas e unidades reversíveis. O sistema foi sendo ampliado desde os
primeiros anos do século XX e teve a contribuição, além de engenheiros nascidos no
Brasil, de destacados técnicos vindos do exterior, como Frederick Stark Pearson, Clint
H. Kearny, Asa White Kenney Billings, Karl Terzaghi, Portland Port Fox, Victor F. B.
de Mello, Serge Hsu e muitos outros que, em cerca de 65 anos, implantaram arrojadas
obras com pioneirismo, batendo alguns recordes mundiais.
Os visitantes tiveram o privilégio de conhecer todas as instalações com detalhe,
contando com o valioso apoio dos chefes da operação, Walter Strukembruk e Henrique
Smoka. Na delegação soviética, havia um tradutor sempre presente para ajudar na
comunicação entre os russos e os brasileiros.
As perguntas dos russos eram frequentes, mas, pela fisionomia deles, dava para
sentir que a tradução não era satisfatória. Por três vezes naquela tarde, como todos os
mortais, o tradutor teve que se dirigir ao sanitário. Imediatamente os russos, embora
falando um inglês macarrônico, porém perfeitamente inteligível, fizeram diversas
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 89
perguntas, algumas das quais já haviam sido feitas antes. Quando o tradutor retornou
ao grupo, novamente os russos voltaram a falar somente em russo e por meio do
tradutor. Ficou claro que esse havia sido nosso primeiro contato com a KGB. Enquanto
existiu a União Soviética, houve sempre nas delegações soviéticas um “tradutor”.
Já nos anos 1970, a CESP havia adquirido os equipamentos de geração da
usina hidroelétrica de Capivara na União Soviética. Para apoio na montagem dos
equipamentos, havia no canteiro de obra um engenheiro russo que veio ao Brasil
com sua mulher, mas sem os filhos. Todos estranhavam como eles se alimentavam
fartamente. Na época a engenharia brasileira experimentava um intenso surto de
progresso, com amplas oportunidades para os que quisessem se radicar no País. Ao
ser perguntado se gostaria de permanecer aqui após o comissionamento das unidades
geradoras, o engenheiro respondeu que não poderia porque os seus filhos, que tiveram
que permanecer na União Soviética, sofreriam graves consequências.
Em 1977, o Comitê Soviético de Grandes Barragens conseguiu emperrar a Comissão
Internacional de Grandes Barragens com uma série de questões e interpelações
descabidas. O chefe da delegação soviética, o engenheiro Moiseyev, apresentou todos
os pontos durante a reunião executiva de 1977 realizada em Salzburgo (Áustria)
corado e com uma fisionomia de raiva contida. Era a primeira vez que ele frequentava
uma reunião executiva, tendo conseguido aglutinar a antipatia geral. Após os dias
de reunião, como de costume, foram realizadas visitas às barragens. Além das
hidroelétricas e eclusas no Danúbio, foram visitadas usinas de alta queda nos Alpes,
em meio a paisagens deslumbrantes que o engenheiro João Alberto Bandeira de Mello
ficava classificando como colírio para os olhos.
Durante a viagem, Moiseyev foi uma pessoa extremamente agradável. Surpreso
com esse comportamento tão diferente do anterior, o engenheiro Epaminondas
Mello do Amaral Filho perguntou a ele quem era o verdadeiro Moiseyev: aquele
irascível e abominável da reunião executiva ou este perfeito cavalheiro durante a
viagem. Moiseyev respondeu que o verdadeiro era o da viagem e que na reunião
executiva ele foi obrigado a fazer o que fez por ordem superior, com a qual
absolutamente não concordava.
Em 1982 recebi para jantar na minha casa no Rio de Janeiro a delegação soviética
que tinha vindo à cidade para o congresso da Comissão Internacional. O chefe da
delegação já não era mais o Moiseyev, nem era tão polido quanto ele. Era um “armário”
muito maior do que eu. Após o jantar, levei os soviéticos ao hotel na Avenida
90 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Atlântica, em Copacabana. Ao nos despedirmos, o chefe soviético, emocionado com
tanta gentileza, resolveu repentinamente me agradecer com um beijo que seria na
boca, como é o costume na Rússia. Depois de quase me imobilizar agarrando-me
pelos cabelos, teria conseguido seu intento não fosse eu, muito ágil, desviar minha
boca no último instante.
pOlíticO Ou ArtistA?
O professor Flavio H. Lyra, de invejável trajetória profissional como diretor de
empresas de energia elétrica, consultor e presidente de associações técnicas, havia
falecido. O Comitê Brasileiro de Barragens e Furnas Centrais Elétricas S.A. decidiram
promover uma sessão em justa homenagem a esse expoente da engenharia brasileira.
O presidente do Comitê, engenheiro Erton Carvalho, fez uma palestra técnica
ao início da sessão. O diretor da Escola Politécnica, professor Heloi José Moreira,
mostrou à plateia o desempenho do jovem Lyra como aluno aplicado desde o seu
ingresso prematuro na Escola Politécnica. Fiquei encarregado de apresentar uma
palestra sobre a sua vida e a ilustrei ricamente com imagens que remontaram à sua
tenra infância. Creio que minha palestra tenha sido emocionante para todos os que
privaram de sua amizade e competência. Certamente foi emocionante para a família e
para mim também. Após o encerramento da sessão, no auditório do oitavo andar do
prédio de Furnas, foi oferecido um coquetel no 16º andar.
No caminho para o coquetel passei mal e fui atendido prontamente pela brigada
de incêndio, que me levou para o ambulatório. Lá, para minha sorte, estava de
plantão uma médica cardiologista. Depois dos primeiros exames e tratamentos, fui
transferido para a emergência cardiológica do Hospital São José, que é dirigida pelo
excelente médico Augusto César Neno e fica nas proximidades de Furnas. Várias
pessoas que tinham participado da sessão notaram a minha ausência no coquetel e,
sabendo da minha internação, foram para o hospital, que repentinamente foi invadido
por uma grande orla dos participantes da sessão, além dos meus familiares, que foram
chamados às pressas.
O ambiente normalmente tranquilo do hospital havia se transformado. O enfermeiro
que me atendia, muito simpático e curioso, me perguntou: “Nunca houve tanto tumulto
por aqui. Quem é o senhor, um político influente ou um artista da Globo?”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 91
Engenheiro Asa White Kenney BillingsEpisódio tempos diferentes
Engenheiro João Camilo Penna, ministro da Indústria e Comércio do governo FigueiredoEpisódio O presidente, o seu vice e o ministro
92 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Governador Adhemar de Barros
Episódio Emoções em Jupiá
Imperador Dom Pedro IIEpisódio pedro de Alcântara
Aureliano Chaves de MendonçaEpisódios Aureliano chaves vice-presidente
e Aureliano chaves estudante
Engenheiro Paulo de FrontinEpisódios Obra monumental e água em seis dias
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 93
Ministro coronel Costa CavalcantiEpisódio palavra de ministro
Presidente Getúlio Dornelles Vargas Episódios Os mineiros, getúlio e a siderurgia e getúlio em são paulo
Marechal Henrique Batista Duffles Teixeira LottEpisódio O marechal e o vigia
94 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Engenheiro Lucas Lopes, idealizador da Cemig e de
Furnas, presidente do BNDEEpisódio tempos diferentes:
a constituição de furnas
Professor Antônio José da Costa Nunes em seminário do Comitê Brasileiro de Grandes Barragens
Episódios A prodigiosa memória do professor nunes, As aflições de um filho flamenguista, a Física e o Tempo passa.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 95
Engenheiro Guy Maria Villela PaschoalEpisódio Eletrobras denunciada
Dr. Manuel RochaEpisódios O consultor e manuel rocha x rosinha
96 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Delmiro Gouveia, pioneiro na geração de energia
elétrica no NordesteEpisódio Delmiro gouveia
Eugênio Gudin e Roberto CamposEpisódio Eugênio gudin
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 97
Arquiteto Oscar Niemeyer, que, quando jovem, era meia-armador juvenil do FluminenseEpisódio niemeyer
Professor emérito da UFRJ Luiz Calôba
Episódio O chefe e o procurador
98 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Igreja do povoado de Belo Monte (Canudos)
Episódio Ecos da guerra de canudos
Os poucos sobreviventes, logo após o massacre de Belo Monte (Canudos)
Episódio Ecos da guerra de canudos
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 99
Corpo de Antônio Conselheiro após o massacre de Belo Monte (Canudos)Episódio Ecos da guerra de canudos
Estátua de Antônio Conselheiro às margens do açude de CocorobóEpisódio Ecos da guerra de canudos
100 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Presidente Humberto de Alencar Castello Branco com engenheiros John R. Cotrim e Mauro Thibau,
na inauguração da hidroelétrica de EstreitoEpisódio O cunhado
Engenheiros Saturnino de Brito
Filho e Theophilo Ottoni Netto
Episódio O Doutor
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 101
Engenheiros Flavio H. Lyra e Delphim M. Fernandes, primeiros executivos do Comitê Brasileiro de BarragensEpisódio A estreia
102 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Sra. Maria Lyra e prof. Heloi José Fernandes Moreira em sessão em
homenagem póstuma a Flavio H. LyraEpisódio Político ou artista?
Professor Fernando Emmanuel BarataEpisódios O grande choque e Os cinco longos minutos
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 103
Engenheiros Walton Pacelli de Andrade e Epaminondas Mello do Amaral FilhoEpisódio palestra para universitários
104 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Engenheiro Ferdinand
M. G. BudwegEpisódio Os
subdesenvolvidos
Emerson Fittipaldi, grande vencedor das provas de
automobilismo na Cidade Universitária, no Rio de Janeiro
Episódio Antes do autódromo
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 105
Professor Pedro Carlos da Silva TellesEpisódio O contador da história
Engenheiro Itamar Franco, que, quando governador de Minas Gerais, ameaçou derrubar a barragem de Pium I, derivando o rio Grande para o rio São FranciscoEpisódio O governador que sabia demolir barragens
106 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Dr. Ricardo de OliveiraEpisódios O câmbio, o taxista e o professor e
As barragens, os portugueses e o futebol
Professor emérito da UFRJ Sandoval Carneiro Jr. (d)
Episódio O chefe e o procurador
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 107
Dr. John D. Cadman, há 50 anos no BrasilEpisódios português de gringo, A verba e banho ou jantar
Engenheiro Erton Carvalho (e), presidente do Comitê Brasileiro de Barragens. Ao fundo os presidentes honorários Cássio Baumgratz Viotti e Delphim Mason Fernandes (d)Episódios Outro professor distraído e bolo de apostas
108 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Professor Nelson Souza Pinto falando
ao microfone entre os engenheiros Souza
Lima (e) e Gurmukh Sarkaria (d),
durante uma reunião em Itaipu
Episódio O que os outros não têm
Engenheiro Mário Santos no XXV Seminário Nacional de Grandes Barragens, em 2003Episódio Entusiasmo exagerado
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 109
Escultura de Celita Vaccani representando os expedicionários da FEB, alunos da Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, hoje Escola Politécnica da UFRJEpisódio Emoções na politécnica
Cerimônia de recebimento da escultura do expedicionário pela Associação dos Antigos Alunos da PolitécnicaEpisódio Emoções na politécnica
110 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Barragem de Orós. Erosão causada
na região do vertedouro antes
de ser executado o revestimento
de concretoEpisódio O ministro,
o operador e o sangradouro
Barragem de Orós durante o seu colapsoEpisódio Orós, rogai por nós!
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 111
Ministro general Juarez Távora recebendo explicação do professor Theophilo Benedicto Ottoni Netto sobre o projeto do vertedouro de Orós, no modelo hidráulico reduzidoEpisódio O ministro, o operador e o sangradouro
Vertedouro da barragem de Orós após conclusão das obrasEpisódio O ministro, o operador e o sangradouro
112 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Engenheiro Hugo Soares de Souza, entronizado chefe tribal em Camarões
Episódio Outra aventura na áfrica
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 113
Padre Cícero, que amaldiçoou a barragem de Piranhas, do DNOCS, posteriormente denominada Engenheiro AvidosEpisódio A maldição do Padre Cícero
Engenheiro Moacyr Avidos, projetista da barragem de PiranhasEpisódio A maldição do Padre Cícero
114 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Presidente Juscelino Kubitschek sendo apresentado à minuta final da constituição da empresa Central Elétrica de Furnas S.A. pelos
engenheiros, da esquerda para a direita, João Monteiro, Lucas Lopes, John R. Cotrim, Flavio H. Lyra e Benedito Dutra, no Palácio
Rio Negro, em Petrópolis (RJ), no dia 25 de fevereiro de 1957 Episódio tempos diferentes: a constituição de furnas
Consultor Jack Hilf e engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa no escritório do DNCOS
Episódios Estrada que ligava nada a coisa nenhuma
e caronas indesejáveis
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 115
Abertura da exposição técnica da 34° Reunião Executiva da Comissão Internacional de Grandes Barragens, realizada no Rio de Janeiro em 1966Episódio A estreia
Engenheiro Pierre Londe (e) com dois dos três Flavios: Lyra (d) e eu, em 1973Episódio Os três flavios
116 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Arthur Casagrande na barragem de Itaipu durante a construção
Episódio preconceito?
Sebastião Camargo na construção da hidroelétrica de TucuruíEpisódio O milagre brasileiro
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 117
Karl Terzaghi entre Casemiro José Munarski e Otelo MachadoEpisódio terzaghi
118 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Governador Israel Pinheiro com o engenheiro Mario
Behring na inauguração da hidroelétrica de Jaguara
Episódio pedido de emprego
Engenheiro Mário Bhering com o então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, na inauguração da hidroelétrica de Cajuru
Episódio pedido de emprego
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 119
Diretores de Furnas com o presidente Juscelino Kubitschek no local da obra da hidroelétrica de Furnas. Todos olhando para o fotógrafo, à exceção de Flavio H. Lyra, preocupado com o início das obras de desvio do rioEpisódio O oficial de justiça, o governador e o fechamento de Furnas
Inauguração da hidroelétrica de Três Marias. Presidente Jango, governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e Celso Melo de Azevedo, presidente da Cemig. Sorridentes na ocasião, pouco depois Magalhães Pinto derrubaria Jango da presidência da RepúblicaEpisódio furnas x cemig
120 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Início da construção da Avenida Central (Rio Branco) próximo à Praça Mauá
Episódio Obra monumental
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 121
Término da construção da Avenida Central (Rio Branco), próximo à Rua da Assembleia, década de 1900Episódio Obra monumental
122 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Barragem da hidroelétrica do FunilEpisódio O adivinho e a segurança de barragens
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 123
Usina de Angiquinho na cachoeira de Paulo Afonso, primeira hidroelétrica do Nordeste, construída por Delmiro Gouveia em 1910Episódio Delmiro gouveia
Hidroelétrica de XingóEpisódio A história se repetiu em xingó
124 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Em Itaipu tudo é grandioso. Orquestra dentro das estruturas do estator de um dos geradores
Episódio O maior desafio
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 125
Barragem de Furnas. À direita, a encosta instável do Córrego dos CabritosEpisódio só Deus sabe!!!
126 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Hidroelétrica de JupiáEpisódio Emoções em Jupiá
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 127
Hidroelétrica de São SimãoEpisódio A briga por são simão
Hidroelétrica de MarimbondoEpisódio minha primeira viagem
128 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Hidroelétrica de Peixoto (Marechal Mascarenhas de Moraes)Episódios instrumentação? e O caboclo e as águas do reservatório de peixoto
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 129
Hidroelétrica de EmborcaçãoEpisódio Eletrobras denunciada
130 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Vertedouro da Hidroelétrica de TucuruíEpisódio hidráulica de vertedouro
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 131
A prODigiOsA mEmóriA DO prOfEssOr nunEs
Nos anos 1960 e 1970, os eventos geotécnicos eram muito movimentados, pois
havia sempre intensos embates entre os mais destacados engenheiros da época. Em
1973, o Seminário Nacional de Grandes Barragens estava sendo realizado no Hotel
Glória, no Rio de Janeiro. O professor Antônio José da Costa Nunes era, mais uma
vez, o relator de um dos temas. Entre outras virtudes, ele era reconhecidamente
dono de prodigiosa memória. Como de costume, após a conclusão do relato, durante
intervalo, foram abertas inscrições para debates. Encabeçando a lista vi o nome do
professor Victor F. B. de Mello. Quando os debates se iniciaram, o professor Nunes
estava com uma grande e pesada mala portátil. O professor Mello foi enfático ao
defender uma posição frontalmente contrária à exposta no relato. Em resposta, o
professor Nunes iniciou dizendo, para espanto geral: “Concordo com o professor
Victor de Mello.” E enfatizou: “Concordo integralmente com o professor Victor
de Mello.” Após pequena pausa, concluiu: “Concordo plenamente com o que o
professor Mello disse no seminário do ano passado.” Retirando da mala os anais
do seminário do ano anterior, o professor Nunes leu as palavras que o professor
Mello havia proferido em uma das sessões do seminário de 1972, concluindo:
“Sou, portanto, obrigado a discordar frontalmente do que disse o professor Mello
agora.” O professor Mello saiu pela tangente dizendo que ele evoluía e o fazia com
muita rapidez.
O tEmpO pAssA
Um ano após a minha formatura, os professores do curso de engenharia
hidráulica da UFRJ, coincidentemente meus superiores em Furnas, me pediram
emprestado o meu trabalho de fim de curso para servir de exemplo aos alunos que
estavam concluindo o mesmo curso um ano depois.
Ao retirar o trabalho do meu arquivo doméstico, verifiquei que era primário
para o que eu já havia progredido no meu primeiro ano de profissão. Confesso que
fiquei envergonhado ao entregá-lo e muito preocupado até hoje, pois o trabalho
nunca mais me foi devolvido.
132 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
No final dos anos 1940, Leopoldo Miguez de Mello, antes de ser catedrático de
física industrial da Escola Nacional de Química da Universidade do Brasil, hoje UFRJ,
teve que defender sua tese em um concurso para livre-docência. O processo era moroso e
a tese havia sido escrita muito antes do concurso. A banca selecionada pela Universidade
era presidida pelo professor Antônio José da Costa Nunes, catedrático de física da Escola
Politécnica, professor de elevado conhecimento técnico e conhecido rigor.
Leopoldo, meu tio, me contou que, quando começou a se preparar para o concurso,
verificou que a tese poderia ser muito melhorada com os conhecimentos que ele havia
adquirido no longo intervalo entre a sua elaboração e o concurso. Não teve dúvidas:
se preparou para atacar a própria tese. No início do concurso, ele foi surpreendido
pelos rasgados elogios proferidos pelo severo professor Nunes e ficou sem jeito de
atacar a própria tese, não havia se preparado para defendê-la. Entretanto, foi aprovado
e posteriormente se tornou catedrático.
cubAtãO
Pouco após a fundação da Petrobras, resultado da campanha “O Petróleo é Nosso”
nos anos 1950, a refinaria de Cubatão no litoral paulista estava sendo inaugurada. Era
motivo de orgulho nacional e as celebrações tomavam conta da cidade de Santos (SP).
O assunto petróleo dominava todas as conversas em qualquer lugar da cidade.
Em um ponto de ônibus, o advogado Alvaro Miguez de Mello foi contatado por um
estranho sobre o assunto. Como tinham opiniões divergentes, e por não ser técnico
da área, temeroso, o advogado perguntou: “O senhor é especialista?” Ao que o
interlocutor, visando o término da discussão, com sua vitória afirmou: “Não, não sou
especialista, mas sou amigo íntimo do maior especialista do Brasil.” O advogado, já
agora com uma pequena esperança, insistiu: “Quem é esse especialista?” A resposta:
“O Dr. Leopoldo Miguez de Mello.” O advogado, então, calmamente concluiu: “Eu
também sou íntimo amigo do Dr. Leopoldo; eu sou o pai dele.”
A físicA
Por ser a mais antiga instituição de ensino de engenharia das Américas,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 133
é natural que a Escola Politécnica da UFRJ congregue inúmeros episódios
pitorescos. Suas origens coincidem com as da Academia Militar das Agulhas
Negras, com as primeiras atividades acadêmicas realizadas no século XVIII, na
Casa do Trem de Artilharia, prédio hoje ocupado pelo Museu Histórico Nacional.
Dentre os movimentos mais marcantes destaca-se o pela abolição da escravidão,
liderado pelos professores André Rebouças e Paulo de Frontin desde a fundação
do Centro Abolicionista da Escola Politécnica, em 1883.
Ao longo de sua história, o prédio da Escola hospedou diversas instituições
e eventos relevantes, como o Instituto Politécnico Brasileiro, fundado em 1862
sob a presidência do Conde D’Eu, e que contava com a frequente participação
do imperador Pedro II em vários de seus eventos – era comum o imperador
despachar da sala de frente do segundo andar, denominada, até recentemente, Sala
do Trono. Também aconteceram ali diversos congressos e exposições, visitas de
pessoas ilustres como Albert Einstein, em 1925, e Mme. Curie, em 1926, além de
sediar os primeiros anos da Escola de Engenharia Militar, atual Instituto Militar
de Engenharia, fundada em 1929 pelo Ministério da Guerra.
Um dos episódios mais relatados certamente ocorreu, mas há versões
conflitantes no que diz respeito aos protagonistas. O tempo passou e já não se
sabe como isso aconteceu. O professor Leizer Lerner não garante que tenha
acontecido com o professor Dulcídio Almeida Pereira e seu aluno Antônio José da
Costa Nunes, ou com o professor Costa Nunes e um aluno seu, Armando Coelho
de Freitas, como escreveu o professor Aimone Carmadela.
Vou relatar o episódio como me contaram em 1963: o catedrático de física
da Escola Politécnica da UFRJ no início do século XX, professor Dulcídio
Almeida Pereira, para valorizar a sua disciplina, dizia que “engenharia era física
mais bom senso”. Quando aluno, Antônio José da Costa Nunes, que anos depois
veio a suceder o professor Dulcídio na cátedra de física, ao ouvir essa afirmação,
teria perguntado: “Professor, se forem mudados os termos da equação, pode-se
definir física como sendo engenharia menos bom senso?” O professor Nunes veio
a nutrir profundo respeito pelo seu antecessor na cátedra, tendo classificado o
professor Dulcídio como possuidor de “espírito evoluído e constantemente a par
dos progressos da ciência que ensinava e de suas aplicações”, designando o curso
de física como Curso Professor Dulcídio Almeida Pereira.
134 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
As AfliçõEs DE um filhO flAmEnguistA
Júlio Cézar Costa Nunes, filho do professor Antônio José da Costa Nunes, é
rubro-negro; e seu pai, catedrático de física da então Escola Nacional de Engenharia
da Universidade do Brasil, era vascaíno. Como todo pai, o professor Nunes, apesar
de extremamente ocupado com a profissão, se esforçava para conviver com o filho
ainda criança, naquela transição dos anos 1950 para 1960. Para isso, levava o filho
ao Maracanã e, para agradá-lo, assistia aos jogos na arquibancada, no meio da
torcida do Flamengo. Ele costumava dizer que era um suplício que só um pai
dedicado suporta.
Para aproveitar o tempo livre antes dos jogos e durante os intervalos entre
o primeiro e o segundo tempo, o pai abria livros para estudar, fato que nunca
antes havia sido visto na torcida rubro-negra durante uma partida. O filho ficava
aflito com aquela discrepância em relação a todos que os circundavam. A coisa
piorou em um disputadíssimo Flamengo x Vasco, em 1961, em que um atacante
do Flamengo se jogou na área vascaína simulando uma penalidade máxima.
Imediatamente, enquanto a torcida rubro-negra apupava e reclamava do árbitro,
que acertadamente não marcara a falta, o professor Nunes, com sua índole de
mestre de corrigir a todos, levantou-se, girou de 90° para encarar de frente a
torcida enfurecida e, com o dedo em riste, afirmou que não tinha ocorrido qualquer
irregularidade por parte dos defensores do Vasco, e que o atacante havia simulado
a falta. A partir desse episódio, Júlio Cézar, temendo ser linchado com o pai, não
quis mais ir ao Maracanã naquelas circunstâncias.
liçõEs DA áfricA pOrtuguEsA
Os anos 1970 foram marcados na Eletronorte pelo início das obras de três
hidroelétricas na Amazônia: Tucuruí, Samuel e Balbina. As prospecções em
andamento mostravam solos finos, que deveriam ser de muito baixa permeabilidade.
Entretanto, os ensaios de infiltração indicavam elevadíssima permeabilidade,
característica esta que deveria ser alterada para se tornar propícia para realizar a
fundação das barragens.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 135
Poços e trincheiras foram escavados e revelaram túneis naturais, com franca
passagem de água. As mais variadas teorias foram propostas para a gênese desses
túneis – desde o início chamados de canalículos – sem que nenhuma satisfizesse
a lógica. Até que um geólogo português, em visita a um desses locais, disse com
toda a tranquilidade: “Pois isso são as térmitas, temos imensas delas em África.”
As térmitas são insetos da família das formigas que perfuram o solo em direções
subverticais à procura do lençol freático. As térmitas foram extintas no Brasil há
cerca de 10 mil anos, mas permanecem na África até os dias atuais.
sAnDuíchE
Devido a incertezas nas estimativas de vazões de percolação em terrenos
destinados à fundação de barragens, e apoiado em resultados de auscultação de
poropressões, a partir do final dos anos 1960 passou a ser adotado o fator de
segurança dez para o dimensionamento de tapetes horizontais drenantes em
barragens de terra.
Em 1974 a Petrobras estava construindo a Barragem do Rio Verde, destinada
ao abastecimento de água para a Refinaria do Paraná, em Araucária. O tapete
drenante que havia sido projetado somente de areia, até então tradicional, não
daria vazão às descargas percoladas com o coeficiente de segurança que passou a
ser adotado. Na posição de engenharia do proprietário, sugerimos a adoção de um
tapete drenante sanduíche, composto de camadas de areia, pedrisco e brita. Essa
técnica já vinha começando a ser empregada em algumas barragens, como a da
hidroelétrica de São Simão, da Cemig.
Essa sugestão, entre outras, motivou reação da CR Almeida, construtora da
obra, que agendou uma reunião com a direção da Petrobras, com a participação de
dois diretores da construtora, um dos quais, o próprio Cecílio do Rego Almeida.
O engenheiro Edson Zampronha e eu resolvemos atuar, como de costume, em
dupla: ele, o malvado, e eu, o bom. Depois de alguma discussão, Cecílio afirmou
que o filtro sanduíche era uma invenção nossa e não era usado em barragens.
Depois de discorrer sobre aspectos técnicos, eu disse que esse tipo de tapete
drenante estava sendo feito pela Impregillo para a Cemig na barragem de São
Simão. Imediatamente Cecílio retrucou: “Pela Impregillo e por nós.” (A Impregillo
136 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
havia entrado no Brasil na concorrência da hidroelétrica de São Simão associada
à CR Almeida.) Então, eu completei: “Então vocês fazem para a Cemig e não
querem fazer para a Petrobras?” O tapete sanduíche foi executado na barragem da
Petrobras e está tendo um excelente desempenho.
furnAs x cEmig
Em recente entrevista que colhi do engenheiro Guy Vilella, em companhia do
engenheiro Erton Carvalho, presidente do Comitê Brasileiro de Barragens, para o livro
A História das Barragens no Brasil, editado pelo Comitê Brasileiro de Barragens, tive a
real dimensão das disputas entre as empresas de energia elétrica na Região Sudeste.
Entretanto, minha primeira experiência nesse campo foi muito antes, por volta de 1970,
quando os executivos de Furnas queriam acesso a alguns arquivos da Canambra.
A Canambra tinha sido um consórcio de duas empresas canadenses de consultoria e
uma americana que fizeram o estudo do potencial hidroenergético da Região Sudeste,
trabalho este que foi concluído em 1966 e efetivado em parceria com a Cemig, em Minas
Gerais, com a Cesp, em São Paulo, e com Furnas, no Rio de Janeiro. Inicialmente, o
engenheiro José Ernani Coelho Dias, muito jeitoso e diplomata, foi enviado por Furnas
a Belo Horizonte e voltou de mãos abanando. Pouco tempo depois, eu tinha outra missão
em Belo Horizonte e me prontifiquei para tentar obter os arquivos.
Fui desencorajado, mas, como já havia marcado o contato com o diretor Archimedes
Violla, me apresentei à sua secretária. Ela entrou na sala do diretor para me anunciar.
Para minha surpresa, me deparei com um homem risonho, de braços abertos e dizendo:
“Flavinho, que bom ver você. Entre aqui na minha sala.” Como não o conhecia, confesso
que cheguei a olhar para trás para ver se havia outro Flavio na sala de espera. Não havia,
era mesmo comigo que ele estava falando. Fui extremamente bem recebido. Depois de
falar sobre amenidades, ele me perguntou o que eu queria. Assim que eu disse o que era,
ele prontamente telefonou para a Socorro e pediu que o transferisse para o Octávio, a
quem disse que eu estava descendo para falar com ele e que ele deveria me dar tudo o que
eu pedisse. Octávio Mello Arêas era o chefe do Departamento de Engenharia Civil da
Cemig e já havia negado os arquivos ao José Ernani. Maria do Socorro era a secretária
do departamento. Muito a contragosto, ele me cedeu os arquivos, para surpresa de todos
em Furnas. Acho que mesmo com o meu dedicado empenho no Comitê Brasileiro de
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 137
Barragens, do qual o Octávio era conselheiro, levei muito tempo para cair nas suas graças.
No almoço da família do domingo seguinte à minha viagem a Belo Horizonte,
mencionei o ocorrido na Cemig e recebi a explicação da extrema amabilidade de que fui
alvo: quando ainda jovem, em 1937, Archimedes Violla, muito amigo da família, havia
sido o principal articulador do namoro de meus pais, que, embora residentes no Rio de
Janeiro, se conheceram em Lambari (MG), cidade natal do Violla.
DE quEixO cAíDO
Em 1978, o engenheiro geotécnico Aurélio da Silva Lopes trabalhava no
projeto da hidroelétrica de Palmar, no Uruguai. Ele me contou que em umas férias
na época de verão estava ele na casa dos sogros deitado no sofá da sala com a
cabeça apoiada pela mão no queixo assistindo o desfile de escolas de samba, quando
adormeceu. Acordou com intensa dor, com a boca escancarada e sem poder falar.
Depois de muito tempo, conseguiu comunicar o que havia acontecido por escrito.
O cunhado levou-o a um dentista que, em duas tentativas, colocou a articulação
do maxilar no lugar. Anos depois, após lauto almoço, ao ler longo e enfadonho
relatório de ensaios geotécnicos do tratamento de fundação da barragem de
Balbina no rio Uatumã (AM) por injeção de alta pressão para rompimento de solo
e preenchimento de canalículos, estava com a cabeça apoiada na mão com carga
excêntrica e, mais uma vez, o queixo caiu. Nova correria para a articulação do
maxilar inferior ser novamente colocada no lugar. As más línguas de uma mesa de
veteranos geotécnicos e geólogos, que mensalmente se reúnem no restaurante Urich,
garantem que da primeira vez o queixo teria caído ao vislumbrar a Luiza Brunet à
frente da bateria da Portela. Mas Aurélio jamais confessou isso.
O sEgurADOr
Naquela época, há muitos anos, os rapazes tinham que fazer coisas incríveis para
conseguir alguma chance com as garotas. Hoje, geólogo sênior, detentor de vasta
experiência profissional, Roberto Corrêa me contou o que ele fazia para conseguir
uma chance com as jovens. Enquanto alguns amigos se inscreveram em uma academia
138 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
de lutas marciais, ele se inscreveu numa academia de dança clássica situada ao lado.
A academia de dança era de uma dançarina russa que havia se apresentado no
Cassino da Urca, fugiu da trupe e conseguiu asilo político concedido pelo presidente
Getúlio Vargas. Enquanto seus amigos ficavam se enroscando uns aos outros sobre um
tatame, ele conseguiu um emprego como segurador. Seu trabalho consistia em segurar
pela cintura as estudantes bailarinas em seus saltos e colocá-las suavemente de volta
ao tablado. Ele fazia isso bem lentamente, aproveitando sua função ao máximo e sendo
sempre muito elogiado. E era muito mais divertido.
O cArrãO
Em uma fase de minha vida profissional, dediquei parte do meu tempo na
pesquisa de locais para implantação de pequenas centrais hidroelétricas. Para
tanto, adquiri um Mitsubishi Pajero Full Turbo Diesel Intercooler super equipado.
Assim que recebi o carro, mostrei-o ao meu sócio, geólogo da excelente segunda
geração da geologia de engenharia no País, Gualter Pupo. Entusiasmado, falei
dos acessórios que seriam muito úteis em viagens de reconhecimento de campo,
como bússola e clinômetro – naquela época não havia Google e o GPS ainda não
era comercializado. Do alto de sua longa experiência, ele disse que o principal
acessório era a pequena geladeira que ficava entre os bancos da frente. Já na
primeira viagem no verão, dei razão a ele.
Em uma das primeiras viagens com o carro, fui à cidade de Rio Preto (MG),
terra do professor de engenharia estrutural da Escola Politécnica da UFRJ,
Silvio Souza Lima, para pesquisar o rio Santana. Eu havia pré-selecionado três
locais para PCHs, um dos quais, o local da PCH Mello, que foi posteriormente
implantada pela Valesul. Outra PCH promissora era a PCH Mato Limpo, que
ficava na serra, mais distante da cidade. Ao pedir informações quanto ao estado
das estradas para atingir a região do Funil onde a barragem dessa PCH seria
construída, um morador local, aparentemente impressionado com o meu carro
naquela cidade em que quase só havia fuscas velhos, me disse, por ingenuidade
ou por sarcasmo, que eu não teria maiores problemas de alcançar o local e
acrescentou: “Daqui até lá são dez quilômetros, mas com o seu carro o senhor
pode fazer em três.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 139
A chAminé DE EquilíbriO
Em dispositivos hidráulicos em que a adução em pressão é muito longa, pode vir a
ser necessária uma estrutura, em geral vertical e com a extremidade superior aberta,
no interior da qual o nível de água fica variando em função das variações da pressão
da água. Esse dispositivo, muito comum em hidroelétricas em que a casa de força
é distante da barragem, chama-se chaminé de equilíbrio, no interior da qual a água
flutua. Por ter a sua extremidade superior aberta, a flutuação do nível d’água em seu
interior admite e expulsa ar.
A pequena central hidroelétrica Santa Rosa II, situada no rio Grande a jusante de
Nova Friburgo (RJ), foi projetada contendo uma chaminé de equilíbrio. Seu EIA/RIMA
foi submetido à Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA),
órgão ambiental que antecedeu ao Instituto Estadual do Ambiente (INEA) no Rio
de Janeiro. As críticas iniciais foram pesadas. Dentre elas, uma das mais contundentes
foi que os estudos de meio ambiente sequer mencionaram quais seriam os gases que
seriam expelidos pela chaminé de equilíbrio presente no circuito hidráulico de geração.
A JAnElA DO pOrtuguês
Engenheiro português morava em casa tombada pelo Patrimônio Histórico e tinha
desejo de abrir uma janela em uma das fachadas da residência. A solução que ele adotou
foi engenhosa. No prazo mais curto possível, construiu a janela e pintou-a com a mesma
cor das demais. A seguir fez uma consulta ao Patrimônio Histórico, devidamente
ilustrada com várias fotografias da fachada, já com a nova janela, perguntando se poderia
tapar com alvenaria a abertura da janela. O Patrimônio enviou resposta afirmando que
a janela tinha que permanecer no local e, se em uma inspeção fosse verificado que ela
não estava lá, o proprietário seria exemplarmente punido. A janela lá está até hoje.
O mAnuEl pOrtuguês
Manuel de Almeida Martins, brilhante engenheiro civil formado em 1971 pela
Escola Politécnica da UFRJ em uma das primeiras turmas da ênfase em mecânica
140 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
dos solos e fundações, nasceu em Viseu, norte de Portugal, tendo vindo, ainda miúdo,
morar com os pais no Rio de Janeiro. Como nos anos recentes todos passaram a
desejar, Martins ostenta hoje passaporte europeu. Em certa ocasião, em um balcão
de atendimento, foi muito bem recebido por uma funcionária que, prestativa,
se ofereceu para preencher um formulário e perguntou: “Por favor, seu nome
completo.” Martins respondeu: “Manuel, com ‘u’, de Almeida Martins.” Após ter
escrito o primeiro nome, a funcionária voltou a perguntar: “Por favor, o seu segundo
nome, pois eu não entendi.” A resposta: “Almeida.” A funcionária insistiu: “Não esse,
o segundo: Com U, Com Uuu!”
intOlErânciA DE AmbiEntAlistA
A intolerância dos que se classificam como ambientalistas não é de hoje.
Herodoto Barros era chefe do Departamento de Patrimônio de Furnas. Ainda em
um dos primeiros governos militares, no início dos anos 1970, Furnas precisava
instalar uma torre no topo do morro do Sumaré, no Rio de Janeiro. Essa torre
seria um elemento fundamental do sistema de comunicação das usinas da empresa
com a sua sede, situada em Botafogo, onde estava sendo implantado o centro de
despacho das usinas geradoras. O Sumaré é parte do Parque Nacional da Tijuca e
o seu responsável foi totalmente impermeável a qualquer intervenção na área do
parque. Após algumas vãs tentativas de acordo, Herodoto promoveu uma reunião
cuja ata retratava em detalhe esse posicionamento do responsável pelo parque.
Ele assinou a ata e recolheu as assinaturas dos demais presentes. Ao se retirar do
recinto da reunião, Herodoto mencionou que a segurança do suprimento de energia
elétrica à Região Sudeste ficaria seriamente comprometida sem a torre, mas que,
aquela ata, para resguardar os dirigentes de Furnas, seria enviada à Eletrobras, ao
Ministério de Minas e Energia e ao Serviço Nacional de Informações (SNI), ficando
devidamente caracterizada a responsabilidade de qualquer colapso no sistema da
Região Sudeste do País. A simples menção do SNI fez com que imediatamente as
posições dos ambientalistas se invertessem e a torre foi implantada. Depois dessa
torre, uma vez que houve precedente, várias outras torres foram instaladas e hoje
podem ser vistas no topo do Sumaré.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 141
O prOfEssOr DifErEntE
Na disciplina Aproveitamentos Hidroelétricos, que coordenei durante anos
no curso de engenheiros civis, opção de obras hidráulicas, há um capítulo sobre
equipamentos elétricos. Como minha formação é civil, costumava pedir apoio ao
Departamento de Eletrotécnica para ministrar esse capítulo da ementa. Vendo no
Museu da Escola o meu quadro de formatura, notei que o professor homenageado
do curso de engenheiros eletricistas naquele longínquo ano de 1967 havia sido o
professor Olavo Cabral Ramos Filho. Chamei o professor Olavo para ministrar o
capítulo sobre equipamentos elétricos em um dos recentes períodos letivos.
Durante a aula, o Olavo disse para os meus alunos e para mim que, em uma
ocasião, ele estava sozinho aplicando uma prova para uma turma grande no maior
salão do prédio do Largo de São Francisco. Com o objetivo de dificultar intercâmbios
de informações entre alunos durante a prova, ele redistribuiu os alunos, que já
haviam se instalado, em grupos denominados escritórios. Em seguida, colocou sobre
a mesa do professor uma pequena mesa de aluno e sobre esta, uma cadeira. Ele deu
início à prova devidamente empoleirado, de maneira a dominar todo o salão. Um
parente, de passagem pela Escola, reparou o Olavo próximo do teto, sem saber de
suas intenções. Reportando à família, ele teria dito: “Vocês têm razão, ele não está
batendo bem da cabeça”.
AntiguiDADE OriEntAl
Em 1979, consegui que o Comitê Chinês de Barragens recebesse uma delegação de
dez brasileiros com suas esposas para uma inesquecível visita técnica envolvendo as mais
importantes obras hidráulicas e os mais destacados institutos de pesquisas. Naquela
época, pouco depois do término da Revolução Cultural, a logística na alimentação, nos
deslocamentos e nas hospedagens na China era extremamente precária.
Em uma das noites, tivemos um concerto com uma pequena orquestra composta
por instrumentos chineses originais. No início do evento foi feita a apresentação dos
instrumentos. O primeiro instrumento apresentado foi classificado como muito recente,
o mais novo da orquestra, e havia sido introduzido na música chinesa no século XIII.
Pensei: para eles é recente, mas, para nós, nessa época o Brasil nem havia sido descoberto.
142 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
João Paulo Maranhão de Aguiar, respeitável engenheiro de muitos anos na Chesf,
conta que um grande amigo e competente engenheiro participou, no início dos
anos 1980, de um seminário na China sobre a evolução da humanidade. Durante o
evento, um pedante francês perguntou ao palestrante chinês qual era a opinião dele
sobre a importância da Revolução Francesa na evolução da humanidade. O chinês,
detectando o sentimento de superioridade do francês, respondeu: “Passados 180
anos, a queda da Bastilha é um acontecimento recente e ainda não está na época de
se ter uma avaliação definitiva.”
O cOntADOr DA históriA
Pedro Carlos da Silva Telles, engenheiro, professor, escritor e historiador da
engenharia, é portador, com todo o mérito, do título de Engenheiro Eminente.
Autor do importante livro A História da Engenharia no Brasil, resgatou, através de
exaustiva pesquisa, o desenvolvimento da engenharia no nosso País desde as suas
primeiras manifestações até a metade do século XX.
Algumas vezes me espanto com atuais jovens engenheiros reclamando de eventuais
desconfortos em expedições ao campo. Para esses, a leitura do livro os faria entender
os sacrifícios dos pioneiros da Profissão que nos precederam nos séculos passados.
Narrativas como a da construção da ferrovia Madeira Mamoré, que mostra que,
entre 1907 e 1912, foram trazidos para as obras 21.873 homens, dos quais 6.200
morreram e quase todos os demais adquiriram doenças tropicais, são exemplos da
dureza dos tempos passados. A média de permanência dos trabalhadores na obra
era de pouco mais de três meses. Em 1909, a percentagem de dias perdidos por
doença ultrapassou 50%. Além das doenças tropicais, havia ataques de animais como
onças, jacarés, cobras e até formigas. Um dos médicos, Dr. Walcott, relatou que um
homem que havia morrido no mato teve o corpo quase completamente consumido
por formigas em uma única noite.
Embaixadores da Alemanha, Áustria e Rússia reclamaram oficiosamente da
propaganda enganosa feita na Europa para angariação de engenheiros, médicos
e operários. Trabalhadores chegavam fortes, mas logo adoeciam e morriam. Um
sobrevivente contou que 600 antigos soldados alemães que haviam sido recrutados,
ao tomarem contato com as terríveis condições sanitárias locais, amotinaram-se e
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 143
obrigaram o comandante do navio que os havia trazido a levá-los de volta a Manaus.
Cerca de 300 espanhóis, sabendo dos amotinados alemães, se recusaram a
desembarcar. O engenheiro-chefe americano, com 100 homens armados, quis forçá-
los a desembarcar e recebeu um tiro na testa, falecendo imediatamente. Participaram
da obra trabalhadores brasileiros e de Barbados, mas muitos também foram
recrutados em Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Hungria, Polônia, Índia, China,
Malásia e outros países.
Os cargos de chefia eram predominantemente exercidos por americanos da Brazil
Railway Co., firma do empresário Percival Farquhar, que era muito influente no
Brasil. Apesar de tudo, as instalações em Santo Antônio – onde a partir de 2009
começou a ser implantada a grande hidroelétrica no rio Madeira – e em Porto Velho,
cidade que nasceu com a ferrovia, eram superiores ao padrão dos acampamentos de
obra da época e de muitas cidades brasileiras.
Mesmo obras ferroviárias no estado de São Paulo eram difíceis, como registrou o
engenheiro Janot Pacheco:
Por toda parte a que, nesses sertões bravios, chegava a ponta dos trilhos, estava presente o perigo sob as mais diversas formas: os assaltos da mosquitaria infernal, a ameaça das onças e de outros animais ferozes, a fúria das manadas de porcos-do-mato que rompiam por entre as barracas [...], as sucuris emboscadas nas orlas das matas [...], os frequentes ataques de índios [...].
Um engenheiro anotou em sua caderneta de campo “dezenove mosquitos por
centímetro quadrado”.
O engenheiro Barros Pereira relata a sequência de telegramas enviados pelo
telegrafista em um ponto da construção da “Noroeste”, trancafiado em um vagão
que servia de posto telegráfico, sob ataque de índios: “Os índios iniciaram o ataque.
Tentam forçar as portas. Não sei o que vai acontecer, mas parece que procuram tirar o
vagão dos trilhos e lançá-lo no rio que passa perto.” Por sorte os índios não cortaram
o fio do telégrafo e o ataque pôde ser combatido por uma locomotiva que veio em
socorro, com pessoal armado e que chegou apitando e tocando o sino. Muitos outros
que foram sujeitos a ataques indígenas, entretanto, não tiveram a mesma sorte.
Silva Telles relata a implantação da ferrovia São Paulo-Rio Grande no início
do século passado, que permitia, em 1915, a realização de uma viagem por 2.152
144 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
quilômetros de São Paulo a Porto Alegre em apenas 72 horas! A construção dessa estrada
foi um dos detonadores da Guerra do Contestado, que causou o falecimento de milhares
de pessoas nos estados de Santa Catarina e Paraná. Conta-se que, na inauguração de
trecho entre Itararé e Ponta Grossa, Afonso Penna, presidente da República, notou que
em cada estação havia um mesmo homem a receber, com foguetes, a comitiva que se
deslocava de trem. Intrigado por ver em mais uma estação o mesmo fogueteiro, indagou
como ele poderia sempre estar à frente da comitiva, tendo saído após o trem ter partido
de cada estação. A explicação era que, devido ao terreno de orografia acidentada, o
traçado da estrada era sinuoso e o fogueteiro se deslocava a cavalo.
um inglês nO riO DE JAnEirO
Arthur Penman, ilustre pesquisador geotécnico inglês, era a mais britânica
pessoa que conheci. Dono de uma irrepreensível pronúncia da elite britânica, tinha
no respeito aos horários uma obediência cega e incrível precisão. Pouco antes das
palestras e debates sob sua coordenação no Institution of Civil Engineers, em
Londres, por exemplo, ele podia ser sempre encontrado na primeira fila da plateia até
o grande relógio analógico da parede do auditório indicar 20 segundos para a hora
programada. Nesse instante, ele se levantava e calmamente se dirigia para a mesa,
sentando-se na cadeira reservada para si. Sem olhar para o relógio, iniciava a sessão
exatamente na hora marcada.
Ele me contou, mostrando fotografias, que em seu aniversário de 80 anos, quando
já era viúvo, convidou para a sua casa 79 amigos, que se sentaram com ele em dez
mesas de oito lugares cuidadosamente distribuídos. Como eu iria fazer 60 anos, ele
sugeriu que eu fizesse algo parecido, talvez com um maior número de amigos. Eu
disse que isso era impossível por aqui, pois vários dos que fossem convidados não
viriam, alguns apareceriam sem terem sido convidados e outros viriam no dia errado.
Em outra oportunidade nos encontramos na Inglaterra pouco após ele ter casado
uma de suas filhas. No primeiro dia do programa, ele perguntou se eu poderia trazer
para o Brasil o bolo do casamento da filha para entregá-lo ao professor da PUC-Rio,
Dr. Pedricto Rocha, muito seu amigo, que não tinha podido comparecer ao casamento.
Isso deve ser uma das tantas tradições britânicas. Tive que concordar e fiquei
preocupado durante toda a estadia na Inglaterra, pois não saberia como eu traria o
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 145
bolo na minha bagagem. No último dia do programa, ele me deu uma caixa do tamanho
de uma bola de pingue-pongue. Era o bolo. Não tive dificuldade de transportá-lo.
Penman esteve pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1982, como relator do tema
geotécnico no congresso da Comissão Internacional de Grandes Barragens. A partir de
então, voltou muitas vezes, a maioria das quais como visitante em programas da PUC-
Rio. Em algumas dessas ocasiões, eu conseguia que ele proferisse palestras na Escola
Politécnica da UFRJ ou no Comitê Brasileiro de Barragens. Em algumas dessas viagens,
tive o prazer de hospedá-lo em minha casa e levá-lo para a minha pousada, em Penedo
(RJ). Ele era o coordenador de um dos comitês técnicos de que eu participei na Comissão
Internacional e, por esse motivo, nos víamos pelo menos uma vez por ano, durante a
reunião dos executivos da Comissão, mesmo que nesse ano ele não viesse ao Brasil.
Em 1995, a reunião foi em Oslo, Noruega, no primeiro semestre. Naquela ocasião, ele já
estava com idade avançada e viúvo. Convidei-o para, no ano seguinte, vir ao Rio de Janeiro
no caminho de ida ou de volta para a reunião de 1996, que aconteceria em Santiago, Chile.
Ele disse que seria difícil, pois estava com dificuldades para fazer muitas viagens.
Retruquei dizendo que ele tinha muitos amigos no círculo de geotécnicos no Rio
de Janeiro e ficaria hospedado na minha casa, alvo de todas as atenções. Ele aceitou,
mas imediatamente perguntou se a visita dele deveria ser antes ou depois da reunião
de Santiago, ao que respondi que, com antecedência superior a um ano, ele poderia
escolher. Ele implorou para que eu definisse, argumentando que um inglês precisa estar
programado e que o tempo disponível não era muito longo! Perguntei se poderia ser
depois de Santiago e ele ficou feliz por ter essa definição. Eu já ia me retirando quando
ele pediu que eu definisse qual seria o dia em que ele deveria desembarcar no Rio de
Janeiro. Respondi que não sabia da programação da reunião de Santiago. Ele sabia de
tudo e disse que a reunião terminaria no dia 18 de outubro. Então, sugeri que ele viesse
no dia 20. Achando que havíamos esgotado o assunto, comecei a me afastar novamente
quando ele me chamou perguntando a que horas do dia 20 de outubro do ano seguinte
deveria chegar à minha casa.
históriA picAntE pArA OuviDOs britânicOs
Em 1983, havia muita curiosidade técnica pelos projetos e obras das grandes
barragens e hidroelétricas em construção no Brasil. O Institution of Civil
146 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Engineers me convidou para que eu apresentasse uma palestra em Londres
discorrendo sobre os principais destaques de nossa engenharia de barragens.
Temendo a não observância de horários, característica de brasileiros, Arthur
Penman foi me buscar no hotel que eles haviam reservado, que ficava próximo ao
instituto. Concentrei minha palestra nas barragens da bacia hidrográfica do rio
Paraná, concluindo com Itaipu e procurando mostrar a contribuição dos projetos
na evolução da engenharia nacional.
Como os bretões gostam de inserir em palestras algum tópico jocoso, e como
são curiosos em relação à Amazônia, depois de mostrar a evolução e a grandeza dos
empreendimentos, disse que em uma esquina de Manaus eu tinha visto um índio
que dizia “chance” para todas as mulheres que passavam perto dele. Perguntei a
ele por que ele não dizia “how” como todos os outros índios, ao que ele respondeu:
“I know how, all I need is a chance.” Todos riram muito. Concluí dizendo que as
barragens da bacia do rio Paraná se constituíram na maior chance que tivemos para
promover o desenvolvimento do nosso know-how em engenharia de barragens.
Depois da palestra, Penman me disse que foi tudo ótimo, mas que aquela sala não
estava acostumada a relatos tão picantes.
O flAgElO DAs sEcAs
Desde a Grande Seca, a maior catástrofe nacional causada por fenômenos naturais
no Brasil, que foi iniciada em 1877, e mesmo antes dela, o semiárido tem sofrido
intermitentemente com a carência de chuvas e as consequentes secas intensas. Foi a
Grande Seca que propiciou, por iniciativa de Dom Pedro II, um plano de ação para
o combate às consequências das secas no Nordeste. O imperador, inclusive, esteve
pessoalmente na área atingida pela Grande Seca. Desse plano surgiu, em 1906, a
nossa primeira grande barragem: Cedros, no Ceará, concluída em 1906. Foi ainda
no Segundo Império que surgiu a ideia da transposição de parte das descargas do rio
São Francisco para o semiárido.
O jornalista Elio Gaspari conta que Lula visitou o interior do Ceará durante a
intensa seca de 1998, em companhia de José Genoino, que viria posteriormente a
ser um dos mais destacados personagens do mensalão e cuja família morava em
Jaguaruana. Naquela ocasião, Lula culpou a desatenção dos tucanos e prometeu rios
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 147
de mel para o Nordeste: “O Fernando Henrique veio ao Ceará na campanha de 1994 e
prometeu transpor as águas do rio São Francisco, mas até agora não trouxe nem um
copo d’água”, disse. Em 2003, eleito presidente, ele prometeu: “Nesses quatro anos,
24 horas por dia serão dedicadas para fazer aquilo que acredito: a transposição das
águas do rio São Francisco.” Depois de mais de dez anos da primeira posse do Lula, o
copo d’água ainda não apareceu. Em 2012 e 2013, novamente o semiárido enfrentou
gravíssima seca sem as águas do São Francisco, sem novos açudes e sem carros-pipa.
pErguntA inDiscrEtA
Em 1976, a Eletrobras, através do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica
(Cepel), iniciava a obra de dois grandes laboratórios, o maior deles localizado em
Adrianópolis, distrito de Nova Iguaçu (RJ). Com os serviços de terraplanagem
já avançados e logo após a contratação da Enge-Rio para o gerenciamento
da implantação, em visita à obra, o diretor-geral do Cepel, engenheiro Jersey
Zbigniew Leopold Lepeck, manifestou interesse em subir ao castelo d’água para ver
o local de cima. Ele foi acompanhado pelo residente da equipe de gerenciamento,
engenheiro José Luiz Salgado. Ao chegar ao castelo d’água, 45 metros acima da
praça de terraplanagem, Lepeck perguntou ao recém-chegado residente que ainda
não estava familiarizado com o projeto: “José Luiz, onde será instalado o gerador
de impulso?” A resposta foi rápida: “Boa pergunta, Dr. Lepeck. Um a zero para o
senhor. Pode fazer outra.”
Os três flAviOs
Éramos três os diretores na nossa empresa de consultoria: Flavio Henrique
Lyra, presidente; Flavio José Lyra, seu filho e diretor de administração e finanças;
e eu, diretor técnico e de produção. O presidente e eu éramos conhecidos pelos
sobrenomes. Assim, nunca houve confusão, a menos de uma vez quando uma visita
pediu à recepcionista para falar com o Dr. Flavio. Ela perguntou: “Com o Pai, com
o Filho ou com o Espírito Santo?”
148 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
A EficiênciA prEmiADA
No início da década de 1970, o engenheiro Adolfo Szpilman, na época chefe
do Departamento de Engenharia Civil de Furnas, foi convocado pela Justiça
Eleitoral para ser presidente de mesa em uma eleição. No dia seguinte à eleição,
nos encontramos em um dos aviões de Furnas, em viagem para as obras no rio
Grande, entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Ele, que sempre se esforçou
para ser extremamente eficiente, me disse que o desempenho da sua seção foi
notável. Relatou, inclusive, que nos momentos menos movimentados consultou
a lista telefônica e telefonou para alguns eleitores que ainda não haviam votado
incentivando-os a aproveitar a calmaria. Como resultado, me disse ele, “fomos
a segunda urna a ser entregue em todo o Rio de Janeiro”. Ao ouvir aquilo, dei
os parabéns e adicionei: “Daqui para frente, o senhor será sempre lembrado pela
Justiça Eleitoral em cada eleição.” Dito e feito: durante muito tempo, o Szpilman
era sempre convocado.
nO ElEvADOr
Em meados do primeiro semestre de 1973, eu estava em um programa de
treinamento na Chas. T. Main, prestigiosa empresa de engenharia consultiva em
Boston (EUA). Era o meu último dia na cidade quando, ao entrar no elevador, senti
que chegavam mais pessoas querendo subir. Saí do elevador e esperei uma senhora
e uma jovem, segurando a porta. Eu ia perguntar o andar que elas desejavam, mas,
antes que eu pudesse me oferecer para tal, elas pressionaram o comando para um
andar inferior ao que eu me dirigia.
Como sempre naquela época, eu trajava blazer e gravata e carregava uma pequena
mala com papéis e documentos que era chamada de mala James Bond. A senhora se
dirigiu para a jovem em português: “Minha filha, olhe que rapaz alinhado e educado.
Você deveria se interessar por um rapaz assim em vez de sair com esses seus amigos
cabeludos malcheirosos. Se eu tivesse a sua idade, flertaria com ele.”
Por ser muito tímido naquela época, senti calor facial que me indicou estar
ruborizado. A senhora olhou para mim, desviou o olhar para a porta do elevador e
falou em português: “Você entende português?” Ao que eu prontamente respondi,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 149
também em português: “Nem uma palavra, minha senhora.” Em seguida, a porta
do elevador se abriu e as duas saíram. Pude ouvir as reclamações da filha acusando
a mãe de ter feito o maior vexame.
Os subDEsEnvOlviDOs
Ferdinand Budweg conta que, em 1968, quando São Paulo partiu para o projeto
do metrô, por carência de experiência nacional prévia, a empresa consultora
alemã Eisenbahn Consulting foi contratada em consórcio com a Promon para
exercer o planejamento e supervisão de projeto. Os alemães, temerosos do
subdesenvolvimento de nossa engenharia, trouxeram enorme catálogo com
detalhadas diretrizes administrativas que incluíam desde normas de procedimento
até detalhes de execução de desenhos em prancheta.
O impacto da imposição dos procedimentos foi substancial. Os desenhistas da
Themag, que detalhava uma das mais complexas estações, aparentavam revolta.
Eles eram acostumados a produzir para a CESP desenhos à tinta para plástico
e estavam sendo obrigados a trabalhar em papel e a lápis. Budweg, nascido na
Alemanha e brasileiro por escolha e por coração, compreendeu a situação, infringiu
as normas administrativas e sugeriu ao diretor alemão que eles fizessem uma visita
às obras da hidroelétrica de Ilha Solteira.
Fretado um DC-3, os alemães foram conduzidos à obra e ficaram impactados
com sua magnitude, na época uma das maiores hidroelétricas do mundo e muito
maior do que qualquer obra hidráulica na Alemanha. As instruções para elaboração
dos desenhos foram canceladas.
O prOfEssOr DistrAíDO
Formado em história natural em 1945, José Moacyr Vianna Coutinho é um expoente
da mineralogia e da petrologia, professor emérito da Universidade de São Paulo e
pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo. Ele foi mestre
de muitos dos maiores geólogos do País, como Luiz Ferreira Vaz, que narra a sua
experiência no projeto da hidroelétrica de Tucuruí, gigantesca obra no rio Tocantins.
150 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
No início do projeto, ainda em 1975, Vaz se deparou com condições
geológicas muito complicadas. Além disso, a sua experiência até então era,
predominantemente, nas formações basálticas e areníticas mais simples da bacia
do rio Paraná, além dos gnaisses da Serra do Mar. Ele contratou consultoria do
professor Coutinho para obter a classificação petrográfica das rochas do local da
barragem.
Como na época pescar era a única diversão disponível no local, em um domingo
eles foram pescar apoiados por um barqueiro com sua voadeira. Quando Vaz
procurou pelo professor, o viu nadando no estilo “cachorrinho” em um poço
amplo e profundo, que era frequentado por jacarés, piranhas, sucuris e outros
animais perigosos. O barqueiro não conseguiu convencer o professor a sair d’água
e entrar no barco, tendo ele nadado distraída e demoradamente até a margem.
Na volta, já em São Paulo, o professor apresentou ao Vaz o resultado de sua
pesquisa: 17 tipos de litologia diferentes, detalhadamente classificados nos 11
quilômetros do eixo selecionado para a barragem. Vaz vislumbrou o problema
de transmitir essa informação aos engenheiros. Pediu para o professor que
procurasse grupar as litologias para simplificar a modelagem dos engenheiros. O
professor efetuou um grupamento possível, reduzindo para sete tipos litológicos.
Isso já era difícil para os engenheiros, mas mais simples do que os 17 originais.
O professor Coutinho formulou a primeira interpretação estrutural da geologia
local que foi comprovada pelas prospecções posteriores.
No livro José Moacyr Vianna Coutinho – Geologia e Causos, o geólogo José
Maria Azevedo Sobrinho narra também um trabalho de campo em São Sebastião
(SP). Após o almoço, o professor pediu a nota fiscal. Ainda no estacionamento,
Coutinho perguntou se a nota fiscal estava com ele, José Maria, pois não a achava.
Em seguida pararam para abastecer o carro em um posto de gasolina. O professor
pediu e recebeu a nota fiscal. Também nunca mais a achou. Depois de os dois irem
de barco até a praia de Maresias para coletarem amostras rochosas, ao retornarem,
o professor aflito perguntou: “Você viu onde coloquei a chave do carro?”
O professor Luiz Alberto Fernandes narrou que, em novembro de 1994, alguns
brasileiros participaram, com o professor Coutinho, de um congresso em Cuba.
Todos foram a Varadero, um local turístico da ilha. No retorno a Havana, notaram
a ausência do professor, que, conhecido por sua distração, estava embarcado em
outro voo, com destino a Santiago de Cuba.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 151
OutrO prOfEssOr DistrAíDO
Quando em viagens ao exterior sem a companhia de sua dedicada esposa
Heloisa, o grupo de amigos do prestigiado engenheiro Erton Carvalho, estimado
professor de hidráulica da Escola Politécnica da UFRJ e destacado engenheiro
de Furnas, presta atenção especial nele. No retorno da reunião dos executivos da
Comissão Internacional de Grandes Barragens realizada no Irã, ao entrarmos na
cabine do avião da Air France, notamos a ausência do Erton.
Pedro Paulo Sayão Barreto, Paulo Coreixas e eu vasculhamos a cabine sem
achar o Erton. Passamos a longa viagem até a escala em Paris extremamente
preocupados, pois ficar perdido no Irã não é das coisas mais recomendáveis. Já
na saída do avião encontramos o Erton feliz da vida elogiando o conforto do voo
de volta comparado com o de ida. Verificamos que nós, corretamente, viramos à
direita ao entrarmos na cabine, nos dirigindo para a classe turística. E ele, sem
querer, virou à esquerda e se acomodou na primeira classe.
O AmigO DA OnçA
Luis Carlos Noronha Pinto era o engenheiro-residente dos serviços de
levantamentos e prospecções para o projeto de viabilidade da hidroelétrica de
Cachoeira Porteira, situada no rio Trombetas, afluente pela margem norte do rio
Amazonas, no estado do Pará. A equipe de campo utilizava um acampamento de
obra que havia sido abandonado pela Andrade Gutierrez quando da paralisação da
construção da Rodovia Perimetral Norte. O acampamento, próximo à confluência
dos rios Trombetas e Mapuera, foi de grande utilidade na fase preliminar do
projeto da hidroelétrica por ser bem instalado e possuir uma pista de pouso não
pavimentada, mas em boas condições.
Noronha, jovem e esportista, fazia o cooper – corrida vagarosa que havia há pouco
sido divulgada como exercício – todas as manhãs na pista de pouso. Em uma dessas
ocasiões, ao entrar na pista de pouso pela cabeceira sul, viu entrando pela cabeceira
norte uma onça pintada. Imediatamente, ele deu meia-volta e saiu em disparada de
volta ao alojamento, sem coragem de olhar para trás. Dizem os que presenciaram o
retorno em disparada que ele teria entrado no alojamento pela janela.
152 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
O EspiãO nO bAnhEirO
A Assessoria de Comunicação Social da Itaipu Binacional publicou um relato
de casos dos quais selecionei os dois seguintes. Em 1991, Marzuith Cosme de
Souza Pyrrbo havia sido transferido do escritório de Itaipu do Rio de Janeiro
para Curitiba. Às 13h40 de uma tarde de verão, ele pegou um exemplar do Jornal
do Brasil e se instalou no vaso do aconchegante banheiro da sala de reuniões da
diretoria-geral brasileira.
O banheiro possuía iluminação propícia para uma confortável leitura. Quando
se preparava para abandonar o tão acolhedor recinto, percebeu que muito tempo
havia se passado e que, para sua aflição, o diretor-geral Fernando Xavier Ferreira
iniciava uma reunião sigilosa com outros dirigentes brasileiros. Enclausurado no
banheiro, Marzuith ouvia tudo. Como a reunião se alongava – e apavorado com a
possibilidade de ser descoberto por alguém que quisesse usar o banheiro –, ele foi
para um minúsculo compartimento de 1,2 metro quadrado destinado aos controles
do ar condicionado, que ficava anexo ao banheiro. Como era verão, passou a
temer que alguém viesse ligar o ar condicionado e o descobrisse ali. Então, ele
se escondeu em uma caixa de papelão e lá ficou até as 17h30, quando a reunião
finalmente acabou e ele pôde voltar à sua mesa, com o JB embaixo do braço e sem
saber como explicar tão demorada ausência.
O mOtEl
Alcibíades e Romilda eram bem casados, apesar de ela ser do tipo brava e ciumenta.
Em uma tarde, ela foi à sala do Alcebíades no escritório de Itaipu de São Paulo e viu
um cinzeiro na mesa dele com os dizeres Ma Belle. Ela ficou uma fera, “rodou a
baiana” e desancou o Alcebíades, que, pego de surpresa, ficou atônito, sem ação.
Quando Romilda finalmente se retirou batendo a porta e sem sequer se despedir
dele, ele perguntou à secretária que cinzeiro era aquele. Em resposta, D. Rosa
respondeu, meio sem jeito, que ela havia trocado o cinzeiro dele por aquele, pois o
dele estava velho e muito usado. Alcibíades disse: “Olha só o que você me arrumou:
minha mulher pensa que eu estive em um motel e me deu a maior bronca. Não sei
o que fazer.” “Mas Dr. Alcebíades, no cinzeiro não há nada que diga que é de motel.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 153
Só está escrito Ma Belle. Eu realmente o trouxe de um motel em que estive com o
meu namorado”, disse D. Rosa. Alcebíades deduziu então que Romilda já conhecia
o motel e que não havia sido com ele, pois ele lá nunca estivera. Ao chegar em casa,
foi à forra: “Quem não presta é você, Romilda, como você sabia que o cinzeiro é de
motel?” Romilda retrucou: “Que cinzeiro de motel? Eu só disse aquilo tudo porque
você teve um enfarte e o cinzeiro estava cheio de pontas de cigarro. Você havia
prometido nunca mais fumar. Mas me diga agora: que história é essa de você levar
lembranças de motel para o seu escritório?” O tempo fechou de vez.
pOrtunhOl
Selecionamos o competente engenheiro espanhol Manuel Ruiz Ortuño para
a chefia da equipe da Enge-Rio-Logos no gerenciamento das montagens dos
equipamentos da hidroelétrica de Itaipu. Além de sua indiscutível capacidade, o fato
de ter castelhano como sua língua mãe foi considerado uma grande vantagem, já que
o trabalho em Itaipu era feito com profissionais brasileiros e paraguaios. Entretanto,
ele falava rápido e procurava se expressar em português para os brasileiros, resultando
em um portunhol algumas vezes difícil de ser entendido. Não raro, nem paraguaios
nem brasileiros o entendiam. Em uma dessas ocasiões, me contou o engenheiro Luiz
Cerqueira de Berrêdo, Ortuño, sempre apressado, encontrou Hernani Pottumati no
corredor e disse a ele: “Jo me voi al inginiero Berrêdo.” Pottumati, sempre solícito
e vendo a pressa do Ortuño, imaginou o que ele poderia estar querendo tão aflito e,
sem entender o seu portunhol, saiu e voltou rapidamente entregando ao Ortuño a
chave do banheiro privativo.
O ADivinhO E A sEgurAnçA DE bArrAgEns
Minha querida esposa Marlene Rezende Izoldi, resendense, sempre me falava do
Savananda, um adivinho com elevado prestígio no médio vale do rio Paraíba do Sul,
na primeira metade e em meados do século passado. Com aparência de um indiano,
cultivando mistério, ganhava a vida adivinhando o futuro dos que o consultavam.
Residente em Resende (RJ), suas profecias eram respeitadas pela população da região.
154 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
A notícia de que uma barragem seria construída no rio Paraíba do Sul, entre
Queluz e Itatiaia, se espalhou quando, nos anos 1940, equipes da Estrada de Ferro
Central do Brasil e, no ano seguinte, a Light iniciaram estudos no local das três
corredeiras onde hoje se encontra a barragem do Funil.
Desde essa época, Savananda passou a dizer que via uma enorme catástrofe com
o colapso da barragem e uma inundação sem precedentes de todas as cidades rio
abaixo. Vindo de Savananda, a previsão alarmava a população. A hidroelétrica foi
construída nos anos 1960 e o seu reservatório foi formado em dezembro de 1969.
Quase 30 anos depois, apenas os mais velhos e com ligações em Resende ainda se
lembravam de Savananda quando, em pesquisa de campo, o geólogo Renato Cabral
Ramos, que estava hospedado em minha pousada em Penedo (RJ), me revelou que
havia uma erosão em uma encosta marginal ao reservatório.
Munido de câmara fotográfica e filmes em papel e slide – as câmaras digitais ainda
não estavam no mercado -, fui até a área e verifiquei a progressão de uma grande
voçoroca situada na porção de jusante de uma estreita sela topográfica da margem
direita do reservatório, localizada longe da barragem e, por esse motivo, sem a
atenção que Furnas sempre dedicou ao monitoramento detalhado da barragem.
As fotos em papel foram enviadas a Furnas anexadas a um relatório descrevendo
a voçoroca e os slides, projetados em simpósio realizado na semana seguinte, que
contou com a participação de engenheiros de Furnas. As providências para o
controle do progresso da voçoroca foram tomadas sob a orientação do engenheiro
Erton Carvalho, na época chefe do Departamento de Engenharia Civil de Furnas, e
a previsão de Savananda foi, consequentemente, devidamente afastada.
Os minEirOs, gEtúliO E A siDErurgiA
Durante anos os mineiros não perdoaram o presidente Getúlio Vargas em seu
primeiro governo, por não ter posicionado a Companhia Siderúrgica Nacional em
território mineiro, já que o minério era mineiro. Mesmo Macedo Soares tendo
explicado inúmeras vezes que siderúrgicas devem ficar perto do mercado e não
perto do minério, além de Minas Gerais não ter na época, anos 1940, infraestrutura
energética e de transporte adequada, os mineiros não se convenciam.
O secretário de Viação e Obras Públicas do governo estadual de Milton Campos
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 155
(1947-1951), engenheiro José Rodrigues Seabra, encomendou aos engenheiros
Lucas Lopes, John Cotrim e Mauro Thibau a elaboração do plano de eletrificação
de Minas Gerais, que resultou em investimentos estaduais em geração de energia.
Em campanha para presidência em 1950, Getúlio Vargas prometeu a instalação
de uma grande siderúrgica em Minas Gerais. Após sua eleição, a Mannesmann, que
tinha planos de se instalar no Rio de Janeiro, esteve com Getúlio para consolidar o
apoio federal para o empreendimento. “Eu dou tudo o que os senhores quiserem,
contanto que a usina vá para Minas”, disse Getúlio aos alemães e recomendou que
procurassem o recém-eleito governador de Minas Gerais, que contava com um
competente plano de eletrificação. Juscelino Kubitschek afirmou aos executivos da
Mannesmann: “Podem instalar a usina, que garantimos a energia.” Essa garantia
de suprimento de energia elétrica assegurou a implantação da Cemig.
furOr ArrEcADAtóriO
No Brasil Colônia havia um imposto de 20% sobre a extração do ouro. Era
conhecido como o quinto dos infernos. Quando a coroa portuguesa resolveu
cobrar os impostos em atraso, sob a denominação de derrama, os inconfidentes
mineiros consideraram que seria a oportunidade para tentar o estabelecimento de
uma república nos moldes da recente República dos Estados Unidos da América.
Hoje, com a carga fiscal batendo recorde mundial na casa dos 40%, muitos sentem
que, como colônia, o furor arrecadatório seria até bem mais suportável.
Mas essa característica do nosso País parece que sempre existiu. Em final de
1926, assumiu a presidência da República o fluminense de Macaé Washington
Luiz, cujo principal lema de campanha foi “Governar é abrir estradas”, o que pode
ter causado a ênfase nos transportes rodoviários. O ministro da Viação e Obras
Públicas era o engenheiro Victor Konder, que iniciou a implantação de rodovias
começando pelas BR-1 (Avenida Brasil), BR-2 (Rio - São Paulo) e BR-3 (Rio -
Petrópolis), inauguradas em 1928.
Em 1927 foi criado o Fundo Especial para a Construção e Conservação de
Estradas de Rodagem, constituído por um imposto sobre combustíveis e veículos
importados. No que se referia a combustíveis, o imposto era de 60 réis por quilo de
gasolina. Para aumentar a arrecadação, o engenheiro Philuvio Rodrigues sugeriu
156 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
a substituição da palavra quilo por litro, que, além de ser medida mais fácil, propiciava
um imediato acréscimo de arrecadação de 38,8% em época de baixa inflação.
pAlAvrA DE ministrO
Em 1968, Furnas recebeu as concessões das hidroelétricas de Porto Colômbia e
Marimbondo, ambas no rio Grande, entre Minas Gerais e São Paulo. Nos estudos de
inventário que haviam sido realizados pela Canambra, Porto Colômbia foi localizada
pouco a montante da foz do rio Pardo no rio Grande. O rio Pardo contribui com
cerca de 30% da descarga do rio Grande na confluência dos dois rios. Nos estudos
iniciais, Furnas optou por um local situado pouco a jusante dessa confluência, com
considerável acréscimo de energia sem que houvesse grandes impactos ambientais,
uma vez que a usina de Porto Colômbia seria (como é) de baixa queda, pouco superior
a 20 metros, e, portanto, seriam de pouca expressão as terras a serem inundadas no
vale do rio Pardo.
Ao serem iniciados os estudos de campo, o prefeito da pequena cidade de Guaíra (SP),
julgando que a inundação seria semelhante à do reservatório de Furnas, capitaneou
um movimento político no estado de São Paulo contra a alternativa de posicionamento
da barragem a jusante da foz do rio Pardo. Esse movimento atingiu o ministro Costa
Cavalcanti, das Minas e Energia, que, em solenidade na usina de Jupiá, garantiu em
discurso que Porto Colômbia seria situada a montante do rio Pardo.
Poucos dias depois, diretores de Furnas e seus assessores mostraram a conclusão
dos estudos de localização de Porto Colômbia ao ministro, que lamentou dizendo que
“palavra de ministro não volta atrás”. A usina teve que ser construída a montante da
foz do rio Pardo. Desde o início de sua operação, em 1973, a usina deixa de gerar cerca
de 650 mil megawatts-hora por ano.
EspOsA JOvEm DE mAriDO iDOsO
Em 1975 fui pela primeira vez relator do Seminário Nacional de Grandes
Barragens. O tema era Investigações Preliminares para Projetos de Barragens.
Deixei as considerações sobre prospecções geológicas para o fim e, após abordá-las,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 157
para realçar sua importância, concluí a exposição comparando a integração entre a
barragem e o maciço de sua fundação com o relacionamento de um casal de esposa
jovem e marido idoso. “Ele (fundação), já alterado, com faces rugosas e fissuradas, com
eventuais falhas de caráter, e ela (barragem), esbelta, com faces lisas e bem tratadas,
crescida rapidamente e com formas arrojadas. Ele fica recalcado com os movimentos
dela e se esforça para corresponder às solicitações físicas a que ela o obriga. Se ele for
fraco, recebe injeções, mas, se ele perde o equilíbrio, ela perde sua existência.”
O frAncês E A pArADisíAcA ilhA trOpicAl
No final dos anos 1960, Jean Pierre Paul Rémy havia se graduado engenheiro e,
embora tivesse feito mestrado e doutorado, ainda teria que prestar serviço militar
ou atuar em programas assistenciais do governo francês. Um desses programas era
ensino pós-graduado em países em desenvolvimento. Consultando as alternativas,
verificou que do programa constava uma universidade federal no Rio de Janeiro,
situada em uma ilha. Imediatamente imaginou essa ilha como sendo semelhante às do
Taiti, possessão tropical francesa no Pacífico, e, sem mais delongas, se candidatou para
ensinar na Coppe-UFRJ, onde foi imediatamente aceito.
Ao desembarcar no velho Galeão, foi recebido por professores da Coppe e
perguntou se a ilha da Cidade Universitária ficava perto. Como resposta, ouviu que
era no caminho. Ao passar pela ilha, na época ainda meio desértica, se deparou com
seu primeiro contato com a realidade brasileira. Entretanto, mesmo assim, acabou
gostando do País e aqui permanece vivendo há mais de 40 anos.
só DEus sAbE!!!
Pouco após a entrada em operação da hidroelétrica de Furnas, passou a ser
observada uma progressiva erosão na alta e abrupta encosta lateral esquerda do
reservatório no local denominado Córrego dos Cabritos, dada a verticalidade da
encosta. Um bloco havia desmoronado da encosta causando ligeiros danos a uma
embarcação ancorada à barragem e revelando a situação perigosa caso blocos maiores
se desprendessem, principalmente um grande bloco denominado de monólito.
158 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Como as erosões evoluíam, foram feitos ensaios em laboratório de hidráulica
em modelo reduzido, tendo-se obtido resultados preocupantes para a segurança da
barragem de enrocamento que poderia ser galgada por uma grande onda provocada
pela queda do monólito no reservatório, principalmente se este estivesse no seu nível
máximo normal ou próximo dele.
A demolição do monólito e de outras partes da encosta foi iniciada. O engenheiro da
obra, Olavo Pinheiro, foi entrevistado pelo Jornal Nacional da Rede Globo no local da
obra. Com muito cuidado, as perguntas foram antes submetidas para que as respostas
fossem bem estudadas. Mas, ao final da entrevista, veio uma pergunta que não havia
sido programada sobre o que aconteceria se o monólito colapsasse. Olavo, pego de
surpresa, respondeu: “Só Deus sabe.” A entrevista causou pânico.
As instruçõEs DE JK
Em visita às obras da hidroelétrica de Três Marias, Juscelino, então presidente da
República, viu o técnico de solos Mário, que posteriormente teve longa carreira no
IPT e na Enge-Rio, retirando um cilindro de terra do aterro em compactação. Ficou
agachado ao lado do Mário e, em voz baixa, perguntou o que era aquilo que ele fazia.
Mário explicou que era um ensaio novo chamado método de Hilf para verificação do
grau de compactação do aterro. Ele entrou nos detalhes dos procedimentos e disse
que a liberação da camada dependia do resultado do ensaio. Juscelino certamente, não
entendeu o método, mas disse à meia voz, ao pé do ouvido do Mário para que os outros
não ouvissem: “A qualidade é importante, mas, por favor, não mande parar a obra.”
EstrADA quE ligAvA nADA A cOisA nEnhumA
No início do governo de Jânio Quadros houve uma “caça às bruxas”, sendo
classificados como bruxas os que eram próximos ao Juscelino no governo anterior. O
engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa se enquadrava nesse grupo por ter
sido diretor-geral do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).
Ele foi submetido a vários inquéritos, com os mais despropositados questionamentos,
como: “O senhor construiu uma estrada na qual não se vai a lugar nenhum?”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 159
Estranhando a pergunta, José Cândido quis saber que estrada seria essa. Ao lhe ser
mostrada em planta, José Cândido esclareceu com calma que essa estrada era o acesso
à área de empréstimo de uma barragem. O termo área de empréstimo causou outro
susto no inquisidor, que de engenharia nada entendia.
Orós, rOgAi pOr nós!
Eu era criança, porém me lembro de ler no Diário de Notícias os diretores do DNOCS
alertando que a carência de recursos e de crédito estava ameaçando a segurança da
barragem de Orós, em construção no final de 1959. Com efeito, na época houve uma
intensa drenagem de recursos federais direcionados para a construção de Brasília,
denominada por JK a meta síntese de seu plano de metas. Assim, outras obras federais
foram relegadas ao abandono.
No caso da barragem de Orós, esse abandono era extremamente perigoso, na medida
em que o aterro compactado do corpo da barragem em construção teria que superar a
cota da soleira do sangradouro, situado na margem esquerda, antes do início da estação
chuvosa e, consequentemente, das cheias. Por total falta de recursos financeiros e de
crédito, a construção ficou paralisada e, no final da estação das chuvas, ocorreu uma cheia
que galgou a barragem em construção causando seu colapso, apesar dos desesperados
esforços de última hora para subir a crista e proteger o talude de jusante. Grande
inundação foi verificada em todo o vale a jusante, não tendo havido muitas perdas de
vidas graças à atuação do Exército e da Aeronáutica no salvamento das populações que
viviam às margens do rio Jaguaribe, o maior rio intermitente do País.
A barragem foi reconstruída e inaugurada ainda no governo JK, culpado pelo colapso
dela. Na inauguração, Juscelino se esquivou da responsabilidade pelo desastre durante o
seu discurso e capitalizou politicamente o evento dizendo:
O vasto mar que aqui se formou não se destina apenas a refletir a luz das estrelas. É um mar ativo que vai regularizar o regime do maior rio seco do mundo. Não me julgo credor da vossa gratidão, cumpri um dever sagrado e uma sagrada missão que as circunstâncias me reservaram. Eu é que sou grato a Deus por ter podido vos ser útil, concluindo e inaugurando essa obra, objeto de tantos sonhos e aspirações, obra legendária que desafiou 40 anos de esforços e de frustrados desejos.
160 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
No local da barragem, imerecidamente, Juscelino foi brindado com uma estátua
em tamanho natural, de braços abertos e olhos voltados para o rio Jaguaribe.
O ministrO, O OpErADOr E O sAngrADOurO
Após o colapso e a reconstrução da barragem de Orós, permaneceu a carência
de recursos para o término da obra, que implicava na concretagem do sangradouro
situado na margem esquerda. Com o objetivo de evitar que houvesse vertimento
por sobre as rochas intensamente fraturadas e mesmo decompostas em vários
pontos, havia um trator e seu operador estacionados sobre uma ensecadeira de
terra situada na crista do sangradouro.
Em visita a Orós, o então ministro de Viação e Obras Públicas, que não era
engenheiro, estranhou a presença da ensecadeira e mandou que fosse utilizado o
trator para que a ensecadeira fosse aberta. A água escoando sobre a rocha local
provocou intensa erosão regressiva que, por pouco, não causou novo colapso da
obra, desta vez pela ombreira.
Em seguida, tendo ficado nítido para as autoridades a importância e urgência
do término das obras, foi encomendado ao professor Theophilo Benedicto Ottoni
Neto o projeto do sangradouro. O projeto aproveitou a grande erosão que
havia sido provocada pelo escoamento das águas, sendo um projeto exemplar de
arquitetura hidráulica.
O prEsiDEntE, O sEu vicE E O ministrO
Aureliano Chaves, empossado vice-presidente do general João Batista Figueiredo,
comunicou ao também engenheiro João Camilo Penna que o presidente o havia convocado.
Entretanto, não revelou o assunto que seria tratado. Camilo Penna estava na antessala com
o general Venturini, quando saiu da sala do presidente o economista Delfim Netto, que
perguntou o que ele estava fazendo ali. Camilo respondeu com sinceridade: “Por incrível
que possa parecer, não sei.” Ao entrar na sala do presidente, Figueiredo foi logo dizendo:
“O senhor me foi indicado para ministro das Minas e Energia, mas foi vetado por ter falado
mal do acordo nuclear. Assim, o senhor será ministro da Indústria e Comércio.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 161
Camilo Penna foi ministro por cinco anos e nove meses, quando aconteceu um
imprevisto. O ministro Antônio Delfim Netto ordenou que todos os ministros
recebessem o Paulo Maluf, candidato à presidência da República. Camilo não
poderia apoiar o Maluf, pois o outro candidato era Tancredo Neves, por quem
Camilo nutria amizade de longa data. Então, emitiu a carta de demissão.
O cuiDADO cOm mArcOs E rEfErênciAs DE nívEl
Em 1968, no início do projeto da hidroelétrica de Marimbondo, foi efetuado pela
Geofoto o levantamento aerofotogramétrico da área da barragem. A equipe de campo
de Furnas detectou uma discrepância constante, de aproximadamente um metro, na
altimetria. Muito tempo foi gasto até que descobrimos que uma das referências de nível
usadas pela Geofoto estava localizada na praça central de Icém, pequena povoação
situada à margem esquerda do rio Grande no local da usina.
Com entrada de recursos na prefeitura, tinha havido uma obra de remodelação
da praça. Perguntado, o prefeito disse saber que a referência de nível tinha que
ser preservada e, portanto, ao longo de toda a obra na praça, a referência de nível
ficou muito bem guardada na sacristia da igreja. A aerofotogrametria teve que ser
redesenhada.
O cuiDADO cOm As cAixAs DE tEstEmunhOs DE sOnDAgEm
O sistema de geração da Light na Serra das Araras foi muito engenhoso e
implantado em ampliações sucessivas desde os primeiros anos do século XX até os
anos 1960. A partir dos anos 1950, o sistema passou a contar com a derivação de
expressivas descargas bombeadas dos rios Paraíba do Sul e do seu afluente Piraí.
As descargas efluentes das usinas geradoras afluem ao Ribeirão das Lajes, que
passou a ser praticamente um rio artificial com grandes descargas.
A última usina do sistema tinha sido inaugurada pelo presidente Humberto de
Alencar Castello Branco. Cerca de 30 anos após essa inauguração, propus à Light
a implantação de mais uma usina no Ribeirão das Lajes, em sequência às usinas
em operação e aproveitando as grandes descargas e a proximidade do centro de
162 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
carga. O projeto básico foi concluído em seguida; entretanto, devido a alterações
na governança da Light, as atividades para a implantação dessa nova usina foram
descontinuadas. Somente após a virada do século foi que a usina voltou a ser
considerada, tendo sido construída e entrado em operação em 2012.
Quando da descontinuação das atividades, foi enfaticamente recomendado que as
caixas com os testemunhos (amostras) das sondagens que tinham sido executadas
na fase do projeto básico fossem cuidadosamente guardadas. Anos depois, na
retomada do projeto, a equipe técnica foi procurar os testemunhos das sondagens
para nova análise que serviria de base para as prospecções complementares. Ao
perguntarem pelas caixas de testemunhos, verificaram que elas estavam muito bem
acondicionadas. Entretanto, estavam sem os testemunhos, que, por serem amostras
de pedra aparentemente sem valor para um leigo, haviam sido jogados no rio.
O cuiDADO cOm As AmOstrAs
Meu primeiro estágio em engenharia foi em uma firma suíça de geotecnia
denominada Rodio, sediada na Rua Bambina, no Rio de Janeiro. O seu laboratório
de solos, muito bem equipado para os padrões da época, ficava sobre seu depósito
de equipamentos em Bonsucesso.
Um dos contratos em desenvolvimento na época incluía a coleta de amostras
indeformadas de solos compressíveis no Chile para serem submetidas a ensaios
especiais no Rio de Janeiro. Os cilindros metálicos chegaram por via aérea ao
aeroporto do Galeão e foram direcionados para a Alfândega. Como era de se esperar,
não havia na Alfândega ninguém com conhecimentos de mecânica dos solos. As
explicações de que dentro dos tubos cilíndricos metálicos havia apenas terra, que
não poderia ser mexida, levantaram suspeitas e não convenceram os inspetores, que
resolveram abrir todos os cilindros. Após amolgarem completamente as amostras
à procura de algum contrabando, constataram a veracidade das informações. Ao
devolverem as amostras completamente amolgadas, ficaram surpresos ao ver
que elas foram jogadas fora, por não mais servirem aos objetivos dos ensaios que
seriam realizados.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 163
AurEliAnO chAvEs EstuDAntE
Desde jovem, Aureliano Chaves de Mendonça era grande e desajeitado. Mesmo
assim, tinha a política correndo em suas veias. Ainda estudante em Itajubá, era o
presidente do diretório acadêmico. Naquela época, primeira metade do século XX,
a atual Escola Federal de Engenharia de Itajubá era uma instituição privada sob
a denominação de Instituto Eletrotécnico de Itajubá, passando posteriormente a
Instituto Eletromecânico de Itajubá.
Na época em que era uma instituição privada de ensino superior, o Instituto
passava por dificuldades financeiras. Ficou decidido, por consenso, pedir que o
governo federal o encampasse. Para tanto, uma delegação de diretores, professores
e alunos viajou de ônibus para o Rio de Janeiro, para uma audiência com o então
presidente Getúlio Vargas, cujo agendamento havia sido conseguido.
Aureliano, na qualidade de presidente do diretório acadêmico, seria um dos que
dirigiria a palavra ao presidente, procurando angariar sua simpatia pela proposta
de encampação. E iniciou dizendo: “Sr. presidente, apesar de discordar frontalmente
do senhor em quase todos os aspectos...” Foi impedido de continuar falando pelos
próprios companheiros e colocado no fundo da sala de reunião. Getúlio acabou por
encampar o Instituto, que prosseguiu formando excelentes engenheiros.
AurEliAnO chAvEs vicE-prEsiDEntE
Em maio de 1992, o Comitê Brasileiro de Barragens, na época presidido pelo
engenheiro Carlos Alberto Pádua Amarante, tinha uma importante missão a
cumprir: realizar com sucesso o Congresso Internacional de Grandes Barragens.
Entretanto, no ano anterior, Amarante havia perdido o cargo de diretor de engenharia
e planejamento da Eletrobras por discordar insistentemente do ministro César Cals
de Oliveira sobre hidroelétricas na Amazônia. Para a sessão de abertura do Congresso,
teria que ser convidada uma autoridade de primeira grandeza, como era tradição
nesses congressos em todos os países que nos antecederam. Não havia entusiasmo
em convidar o presidente da República nem ministro da área de obras hidráulicas.
Aureliano foi a solução, por ser engenheiro, vice-presidente da República e chefe
de uma secretaria federal de energia. Convite feito e aceito, fomos convocados para
164 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
estarmos presentes na inspeção que os seguranças federais iriam fazer nas instalações
do centro de convenções. Para nossa surpresa, não houve qualquer preocupação quanto
à segurança contra atentados, mas sim, quanto à imagem do vice-presidente.
Já na entrada do centro de convenções, fomos informados de que teríamos que retirar o
grande tapete que havia ali, pois o desastrado vice-presidente teria grande probabilidade
de tropeçar e cair. Procuramos argumentar que seria um transtorno retirar o referido
tapete para, após a sessão de abertura, termos que recolocá-lo. O chefe do serviço de
segurança perguntou secamente: “Vocês conhecem o Aureliano?” Sem esperar resposta,
emendou: “Então tirem o tapete.” Daí para frente, tivemos que concordar com tudo.
AlfAfA pArA burrO
O engenheiro e professor da UFRJ João Moura permaneceu por pouco tempo como
diretor técnico da Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro (CERJ), que na época
era uma empresa estatal de energia elétrica com concessões em muitos municípios do
estado do Rio de Janeiro.
A CERJ foi o resultado da fusão das Centrais Elétricas Fluminenses (CELF),
companhia estatal estadual, com a Companhia Brasileira de Energia Elétrica, empresa
originalmente americana do grupo Amforp, que foi estatizado no início dos anos 1960.
A CERJ, após ser privatizada, adotou o nome de Ampla.
No curto período em que permaneceu na diretoria técnica, o engenheiro João
Moura teve algumas surpresas. Descobriu que havia uma verba para aquisição de
alfafa destinada a alimentar um burro que, no passado distante, servia de apoio para a
locomoção entre a casa de força de uma das usinas da empresa e a barragem, situada em
posição remota. Na época em que João Moura me contou isso, não mencionou a usina.
Hoje, ele infelizmente falecido e eu conhecendo as usinas, imagino que ele estivesse
falando da hidroelétrica de Macabu, que entrou em operação em 1949, projetada pelo
professor Edmundo Franca Amaral e cuja casa de força turbina águas provenientes do
rio Macabu sob 328 metros de queda bruta, derivando-as para o rio São Pedro, situado
no sopé da Serra do Mar.
Com o passar dos anos, foi criado acesso rodoviário na região, facilitando o tráfego
esporádico entre a casa de força e a barragem. O burro havia falecido há décadas, mas
a verba e o recurso permaneciam sempre contabilizados.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 165
tAmAnhO nãO é DOcumEntO
Tamanho não é documento; nem peso. Em outubro de 2013, foi notado que
desapareceram várias vigas metálicas que tinham sido usadas como peças estruturais
da Avenida Perimetral, situada na região portuária da cidade do Rio de Janeiro. As
vigas, uma das primeiras peças da demolição, após terem sido removidas, estavam
estocadas em um terreno baldio no Caju.
A Perimetral, uma longa avenida elevada que serviu durante décadas para desafogar
o trânsito do centro do Rio de Janeiro, embora estruturalmente saudável, foi condenada
a ser demolida. No início da demolição, seis vigas de aço pesando 20 toneladas cada,
cada uma equivalente ao peso de cinco elefantes, foram roubadas em plena luz do dia.
O CREA-RJ estimou que cada uma valeria R$ 150 mil.
Esse sumiço não foi um ato único. O saudoso engenheiro João Moura, quando diretor
técnico da CERJ, perguntou a mim e ao Dr. Flavio Lyra se nós achávamos fácil perder
um elefante. Dissemos que, devido ao seu tamanho, deveria ser mesmo difícil sumir com
um elefante. Moura então nos disse que se surpreendeu ao assumir o cargo de diretor
técnico, pois havia descoberto que uma usina hidroelétrica não estava sendo localizada.
umA AvEnturA nA áfricA
O engenheiro Hugo Soares de Souza, prestigioso executivo do grupo Brazil
Energy, conta as suas aventuras na África como responsável pela operação das usinas
geradoras de concessão da AES em Camarões, de 2001 a 2005. A hidroelétrica de
Ladgo, com quatro unidades de 18 megawatts cada, foi doada pela China a Camarões,
projetada e construída por chineses e instalada com equipamentos chineses.
Na primeira visita à usina situada em um rio caudaloso que corta a savana árida,
Hugo viu, da crista da tomada d’água, o que ele julgou serem inúmeros e enormes
blocos de pedra no canal de fuga. Ele perguntou por que os blocos não haviam sido
detonados e removidos, pois nitidamente introduziam perda de queda à usina. E
obteve como resposta que os hipopótamos gostavam de se banhar na água corrente.
Embora já em operação há muitos anos, ainda estavam na usina cinco chineses,
um dos quais cozinhava para os outros quatro, que, por sua vez, nada faziam. Como
os operadores sabiam manter a usina, os manuais já haviam sido traduzidos para
166 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
o francês e para o inglês e os chineses, que nada faziam, custavam US$ 1 milhão
por ano, Hugo providenciou a dispensa dos chineses. Ao serem comunicados, eles
arregalaram os olhos com a surpresa. Os chineses não saíram e, meses depois,
Hugo recebeu um telefonema do presidente da AES, Mr. Mark Miller, dizendo
para ele desistir da demissão dos cinco chineses. Isso porque tinha recebido um
telefonema furioso do primeiro-ministro camaronês mandando a AES “entubar”
o assunto, pois era uma cooperação técnica. Ao término do contrato do Hugo, os
chineses permaneciam na usina.
OutrA AvEnturA nA áfricA
A hidroelétrica de Song-Loulou, equipada com oito unidades de 45 megawatts
cada, era de fundamental importância para a República dos Camarões. Em 2001,
a sua barragem apresentava uma intensa deterioração devido à reação álcalis-
agregados, que faz com que as estruturas de concreto se expandam. Essas expansões
impediam o acionamento de comportas e tornavam ovais condutos originalmente
de seção circular. A reabilitação das estruturas hidráulicas foi possível com a
obtenção, a fundo perdido, de recursos de um banco suíço de fomento.
O chefe da transmissão e da operação de todas as usinas de concessão da AES
em Camarões era o engenheiro brasileiro Hugo Soares de Souza, que tinha na
usina de Song-Loulou o camaronês Batet como chefe da operação. Por carência
quase total de infraestrutura regional, a operação da usina envolvia o incrível
contingente de 350 pessoas. Batet era de etnia Mbamelek, que distava da região da
usina cerca de 500 quilômetros. Por sua influência, todos os empregados da usina
eram de sua etnia. A etnia da área da usina é Bassa.
A orientação da AES era integrar o máximo possível as comunidades locais aos
serviços das usinas. Batet procurava impedir, porém Hugo promoveu a substituição
de cerca de 150 pessoas, contratando trabalhadores da região. Como os serviços
eram simples e, consequentemente, mesmo sendo baixos os salários, o impacto dessas
contratações foi muito grande na comunidade Bassa.
Um dia, um residente local fardado foi conversar com Hugo. Ele estava preocupado
com a viagem que o engenheiro faria ao Brasil com a família, no Natal. Queria saber
quando ele estaria de volta a Camarões: “Os Bassas querem te homenagear e torná-lo
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 167
chefe tribal.” Hugo passou a ser pessoa do mais elevado respeito na região e mantinha
sua condecoração na sua sala de trabalho. Pessoas que iam reivindicar qualquer coisa
à AES, ao verem a condecoração, passavam a tratá-lo com o mais elevado respeito.
Os vElhinhOs
A Brazil Energy é, basicamente, composta por jovens executivos altamente
preparados em finanças, economia, direito, administração e engenharia de produção
e, em geral, pós-graduados no exterior. Eu, nos meus 60 e muitos anos, e o CEO da
empresa, Frederico Robalinho de Barros, elevávamos a idade média do grupo. Fui
encarregado de formar uma equipe de consultores para fazer a análise de investimento
(due diligence) no âmbito da engenharia para aquisição da pequena central hidroelétrica
de Braço. Coincidentemente, eu havia sido o responsável pelo projeto básico.
Como essa análise é notoriamente feita por seniores, convoquei os consultores
Alfredo Toledo, engenheiro eletricista de larga experiência, Takemitsu Yamazato,
engenheiro mecânico com atuação em grandes hidroelétricas, e John Cadman,
engenheiro civil e geólogo residente no Brasil há 50 anos, que havia sido meu
orientador na pós-graduação. As idades de nós quatro somadas superavam os 300
anos! Leonardo Pinho, um dos jovens executivos acima referidos, pós-graduado em
Harvard, foi conosco na primeira visita de inspeção à hidroelétrica. Posso imaginar,
embora ele jure que não houve isso, o relato feito pelo Leonardo aos seus pares dizendo
que viajou “com o Miguez, que teve que parar em uma farmácia, pois havia esquecido
os remédios que tem que ingerir todos os dias. O Alfredo frequentemente pedia para
parar o carro para saltar com objetivo de recolocar a sua coluna vertebral no lugar. Já
no local da usina, chegou de São Paulo o nipônico, mais velho do que todos os outros!
E o geotécnico, imaginem, havia sido professor do Miguez!!!”
bAnhO Ou JAntAr
John Cadman chegou ao Brasil em 1962 integrando o Peace Corps, programa
assistencial americano para jovens voluntários. Por sua formação em geologia, ele
foi encarregado de prospectar e perfurar poços no Polígono das Secas, interior do
168 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Nordeste. Ele relata experiências quase inacreditáveis, como a de chegar com um
pequeno grupo a uma localidade denominada Lajes dos Negros, município de Campo
Formoso, perto de Morro do Chapéu (BA). Não havia alternativa de hospedagem
senão a de ficar em uma casa cuja dona alugava um quarto. Ao chegar, famintos e
cobertos da poeira do sertão, receberam a pergunta feita pela dona da casa. “O que
é que vocês preferem: janta ou banho?” Ao pedido de explicação feito, a dona da casa
respondeu: “É o seguinte: só há essa lata com água. Se vocês preferirem se lavar, não
haverá janta; mas, se vocês preferirem jantar, cozinharei nessa água.” Naquela noite,
eles dormiram sujos.
A vErbA
John Cadman relata vários problemas com residentes no interior da Bahia,
principalmente os políticos, nas suas atividades no programa de perfuração de
poços para abastecimento de água, no início dos anos 1970. Quando chegava a uma
localidade, o prefeito já dizia onde ele teria que perfurar o poço. A maior parte das
vezes era na praça principal; algumas vezes nas terras do prefeito.
Entretanto, em geral, essas não eram localizações geologicamente apropriadas
para o poço, por estarem, por exemplo, em terrenos cristalinos não fraturados e
de baixíssima permeabilidade. O pior era quando o local mais apropriado coincidia
com as terras do adversário político. Após alguns meses, quando já havia perfurado
cerca de 100 poços, o jovem Cadman foi chamado a Juazeiro para uma reunião
com o engenheiro Torres, executivo da Comissão do Vale do São Francisco, que
comunicou a ele que a verba havia sido suspensa. Sem saber o que era verba, Cadman
perguntou se era algo relativo a verbo. Ao dar a explicação, Torres disse que ele
tivesse paciência, pois provavelmente, se tudo corresse bem, dentro de seis meses a
verba reapareceria.
Apavorado, Cadman foi relatar o ocorrido ao diretor do Peace Corps, George
Coleman, que lhe disse que coincidentemente havia acabado de receber um telefonema
do engenheiro Mário Mafra, da Cemig, que estava em um grupo de trabalho com
duas empresas canadenses e uma americana de engenharia consultiva. Eles estavam
levantando as possibilidades hidroenergéticas do estado de Minas Gerais com extensão
para toda Região Sudeste, em um consórcio que viria a ser muito bem- sucedido,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 169
denominado Canambra.
Mário Mafra queria o apoio de um jovem profissional com o perfil do Cadman.
Ao chegar ao escritório da Cemig em Belo Horizonte, sua primeira pergunta ao
Mário Mafra foi: “Há verba?” Soube que era uma dotação da Unesco com recursos
garantidos. A partir dessa experiência, e de trabalhar com o geólogo americano John
Cabrera, Cadman virou barrageiro para o resto de sua vida profissional.
pOrtuguês DE gringO
Depois de cinco décadas no Brasil, John Cadman passou a residir em Itaipava.
Um dia, ao descer para o Rio de Janeiro de ônibus, veio conversando com uma
professora de português aposentada. Percebendo o sotaque, ela perguntou de onde
ele era. Com a resposta de que ele havia nascido no Canadá, mas também era
americano, ela elogiou muito o português que ele falava.
Cadman se animou e revelou que no mês seguinte, dezembro de 2012, faria uma
comemoração com amigos pelos seus 50 anos no Brasil – ele também tinha residido
em Lisboa, durante um treinamento no Laboratório Nacional de Engenharia
Civil. Ela então afirmou: “Cinquenta anos? Tudo isso? Retiro o que disse sobre a
qualidade do seu português.”
O OpErADOr nA tOrrE DE cOntrOlE
Até não muito tempo atrás, o conhecimento de idiomas estrangeiros era rarefeito
entre os brasileiros, apesar de na minha época de colégio ser obrigatório o ensino
de latim, inglês, francês e espanhol. Nos colégios, entretanto, o ensino de idiomas
era, em geral, muito fraco, e entre os que se aventuravam a estudar com mais
profundidade um idioma, usualmente, a escolha recaía sobre o francês.
Pelo espanto que causou, não me esqueço, por exemplo, de um anúncio publicado
no final dos anos 1960 nos classificados de O Globo: uma empresa estrangeira de
engenharia industrial procurava um engenheiro de montagem. O anúncio, mal
traduzido, oferecia oportunidade de trabalho para um especialista em ereção.
Dona Leda Morado Nery, secretária da diretoria técnica de Furnas e
170 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
posteriormente secretária da presidência da Enge-Rio, contava que há muitos anos,
logo que foi instalada a torre de controle no aeroporto de Santos Dumont, no Rio
de Janeiro, um primo dela passou a ser um dos operadores, apesar de ter modestos
conhecimentos de idiomas estrangeiros, restritos ao precário ensino dos colégios,
que na época priorizavam o francês.
Uma vez que era um aeroporto doméstico, foi considerado que bastava os
operadores conhecerem os jargões da aviação. Logo após a instalação da torre de
controle, um avião da Lufthansa entrou em contato pedindo, em inglês, instruções
para pouso. O comandante alemão perguntou repetidas vezes se ele estava
contatando o aeroporto do Rio de Janeiro e obtinha resposta afirmativa, mas
quando pedia instruções para pousar, recebia em inglês macarrônico: “No, you can
not land here.”
Após longo tempo sem saber se expressar em inglês ou em qualquer outro
idioma que o alemão pudesse entender, sem conseguir indicar que o aeroporto
internacional era outro, o operador, ante a insistência do alemão, que já sobrevoava
o Rio de Janeiro há vários minutos, disse: “If you want to land, you land, but I take
my body out.” O alemão, sem entender nada, entrou em desespero.
DOn DEErE
Pela primeira vez no Brasil, o consultor de geologia, professor Don Deere, fez
uma visita ao canteiro de obra da hidroelétrica de Marimbondo. O geólogo de
Furnas, Carlos Alberto Lyra Vaz, mostra uma pedra e pergunta que rocha é aquela.
Deere pega a pedra e diz, com segurança: “This is a liveitright.” Carlos: “What
is that?” Deere: “Live it right there.” Para outra amostra de rocha que Carlos
apresentou: “This is a FRDK.” Carlos: “What?” Deere: “Funny rock, don’t know.”
luiz bOrrAchA
Acampamento de construção da hidroelétrica de Jupiá no rio Paraná, década
de 1960, uma partida de futebol estava para começar. O excelente jovem geólogo
Carlos Eduardo Osório Ferreira, recém-chegado à obra, se ofereceu para atuar como
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 171
goleiro. Completamente uniformizado, inclusive com boné e joelheiras, disse que o
seu estilo era semelhante ao de Luiz Borracha, que havia sido goleiro do Flamengo.
Logo no início da partida, os atacantes adversários perceberam que podiam
chutar de qualquer distância porque tinham boas chances de marcar gols. Uma
figura nipônica de nome Raimundo Kimura, excelente arrematador, fez a festa com
vários gols. Após essa partida, e até hoje, ficou o apelido de Luiz Borracha.
No final dos anos 1970, por ocasião do desenvolvimento do projeto de Xingó, o
geólogo francês André Pautre foi contratado como consultor. Na primeira reunião,
Pautre, de maneira disfarçada, me perguntou o nome do Carlos Eduardo, ao que
respondi: “Loui Gomme.” Pautre passou a chamá-lo por seu apelido em francês até
o fim da consultoria. Acho que o Carlos Eduardo queria me bater. Pautre nunca
soube que esse não era o nome dele.
Nos anos 1980, estávamos projetando a barragem das Antas para a Nuclebras
em Poços de Caldas. Embora a barragem não fosse grande, era de todo o interesse
que fosse detectada uma ocorrência de rocha sã no trecho do rio em análise para
ser localizada a estrutura de concreto do vertedouro. Baseado na geologia regional,
Carlos Eduardo, como sempre categórico, afirmou que, se fosse encontrado
afloramento rochoso no local, ele comeria a rocha.
Na primeira visita ao campo, o engenheiro Lourenço Justiniano N. Baba, em
inspeção cuidadosa, localizou um pequeno afloramento rochoso, que veio a servir
de fundação para as estruturas combinadas de vertedouro em arco, descarregador
de fundo e adufa de desvio. Como Baba trouxe uma amostra e me mostrou, fui
convocando, um a um, toda a equipe da engenharia para a minha sala. Eu disse
para a Dona Sebastiana, nossa copeira, que, assim que o Carlos Eduardo entrasse
na sala (ele seria o último a ser chamado), colocasse na mesa de reunião a amostra
de rocha em um prato com garfo e faca e um copo d’água. Pela primeira vez, vi o
Carlos Eduardo sem jeito.
nuDismO
Nos anos 1950 e 1960, pontificou no Rio de Janeiro a naturalista e dançarina Dora
Vivacqua, nascida em 1917, na cidade de Cachoeiro do Itapemirim. Dora provocou
grandes impactos por suas provocantes danças com jiboias e por sua colônia de nudismo
172 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
instalada na ilha Tapuama, na Baía de Guanabara. Ela ficou conhecida por seu nome
artístico de Luz del Fuego – tirado de um perfume argentino – e se referia à sua Ilha
como Ilha do Sol, onde ninguém podia permanecer vestido. Dora foi assassinada em
sua ilha em 1967; o nudismo desapareceu por muitos anos da orla do Rio de Janeiro.
Nessa mesma época, com o objetivo de garantir o abastecimento de água à fábrica
de borracha sintética e à refinaria em Duque de Caxias (Reduc), a Petrobras implantou
em Xerém a barragem de Saracuruna, na raiz da serra da Estrela, serra de Petrópolis
(RJ). A barragem foi construída em um aterro compactado sobre espessa camada
de solo. Entretanto, foram verificadas intensas percolações de água proveniente do
reservatório e surgências de água no terreno natural a jusante da barragem. Por esses
motivos, o reservatório era mantido com baixo nível d’água.
Para solucionar o problema, foi contratado o prestigiado Instituto de Pesquisas
Tecnológicas de São Paulo (IPT), que nessa época tinha o seu escritório do Rio de
Janeiro sob o comando do geólogo Fernando Pires de Camargo, titular de valioso
currículo em geologia de engenharia. O chefe da Divisão de Geologia Aplicada do IPT,
engenheiro Murilo Dondici Ruiz, concebeu um ensaio in situ para definir o fluxo de
água pelo corpo e, principalmente, pela fundação e ombreiras da barragem. O ensaio,
inédito na época, consistia na introdução de uma quantidade de radioisótopo em furos
feitos através do corpo da barragem e na medição da propagação da radioatividade
pelo solo.
Fernando Camargo, Nivaldo Chagas, técnico do IPT, e Costinha, motorista da
Reduc, vieram pela Via Dutra de São Paulo trazendo com todo o cuidado uma pesada
caixa de chumbo contendo o radioisótopo a ser colocado no solo de fundação da
barragem. A cápsula, após ter sido retirada da caixa de chumbo, foi introduzida em
um furo vertical executado para esse fim. Na sua posição final, no fundo do furo, a
cápsula foi quebrada pela pancada de um vergalhão, permitindo, assim, que o material
radioativo penetrasse na fundação da barragem. A cápsula rompida foi içada à superfície
e o furo foi tamponado. Só após essas operações, e depois de ter manuseado a cápsula
e o vergalhão, foi que os três perceberam que poderiam estar contaminados pela
radioatividade. Ligaram o contador, que indicou nos três a presença de radioatividade.
O pânico se instalou e eles, rapidamente, se despiram, desfazendo-se de suas roupas,
possivelmente contaminadas, e as abandonando sobre a barragem. Lembraram-se de
ter visto que, nessas circunstâncias, a primeira coisa que se fazia, além de se livrar das
vestimentas, era tomar um longo banho de chuveiro.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 173
Por isso, partiram em alta velocidade para o hotel Novo Mundo, situado na Praia
do Flamengo, onde tinham reservas. Como era um fim de tarde e início de noite,
contavam com a escuridão para não serem facilmente vistos por terceiros. Ao chegar
ao hotel, sem sair do carro, explicaram a situação ao funcionário da portaria e pediram
as maiores toalhas que havia no hotel. Entraram enrolados nelas e foram direto para
os quartos.
Fernando confessa hoje que passou muitos anos preocupado com os possíveis
efeitos da exposição à radioatividade que ocorreu naquele dia. Mas, posteriormente ao
susto, o contador passou a ser aplicado em trotes em outros técnicos que iam visitar
a barragem. O renomado engenheiro geotécnico Faiçal Massad, por exemplo, não
escapou: Fernando passava o contador pelo corpo e, quando se aproximava da região
da virilha, disparava o contador. Invariavelmente, o som do contador gerava pânico na
pessoa supostamente contaminada e gargalhadas naqueles que sabiam do trote.
O ensaio na fundação foi alterado, tendo sido injetada fumaça que aparecia em
vários pontos mostrando que o solo tinha caminhos preferenciais de percolação.
Foi verificado que os caminhos preferenciais haviam sido escavados por animais.
Como solução ao problema, foram executados dois diafragmas, um de cada lado,
minimizando o fluxo de água pelo corpo e pela fundação da barragem, que passou
a ter seu reservatório operado na sua plena capacidade.
OttOn lEOnArDOs
No segundo semestre de 1962, para uma das primeiras turmas de geólogos
em formação na então Universidade do Brasil, hoje UFRJ, o professor Otton
Leonardos estava ministrando uma aula prática no maciço do Corcovado. Naquele
ano a Seleção Brasileira de Futebol havia se sagrado bicampeã mundial no Chile.
Sempre há na turma um aluno querendo derrubar os professores; aquela não seria
uma exceção.
Combinado com os colegas, um aluno que havia acompanhado o campeonato e
trazido do Chile uma pedra, levou-a ao professor, que perguntou onde ele havia
achado aquela amostra. O aluno disse que tinha encontrado na estrada. O professor
falou: “Curioso, isso é um andesito, rocha ácida extrusiva, comum nos Andes; pode
ser encontrada no sul, mas não aqui.”
174 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
A gAlEriA quE nuncA hOuvE
Nos anos 1980, para analisar um problema no conduto forçado da hidroelétrica
de Areal, na época concessão da CERJ, fui chamado pelo diretor técnico, engenheiro
João Moura, para uma consultoria. Recebi a única via dos documentos do projeto,
que não eram muitos, mas tinham a assinatura de John Cotrim como calculista e
de Léo Penna como aprovação.
Essas duas assinaturas eram mais do que suficientes para garantir a qualidade
dos cálculos. Em visita à usina, solicitei ao chefe da operação para visitar a
barragem, incluindo a galeria de injeção e drenagem. Ele me garantiu que não
havia essa galeria e eu insisti, mostrando os desenhos. Ele contou que havia
participado da construção quase 40 anos antes, logo após o término da Segunda
Grande Guerra, e me mostrou várias fotografias da obra de concreto, pelas quais,
em blocos defasados, verifiquei que realmente não havia sido construída a galeria.
Refiz parametricamente os cálculos de estabilidade e verifiquei que, sem a
galeria, a barragem teoricamente não deveria ser estável pelos critérios usuais de
projeto. Solicitei à Geomecânica que instalasse piezômetros, que confirmaram as
subpressões exageradas que ocorriam na fundação. Como o vale é relativamente
estreito, devia estar havendo um efeito de arco na parte inferior da estrutura de
concreto-gravidade da barragem que, não considerado nos cálculos, evitava um
possível colapso. Muitos anos depois, em 2011, o engenheiro Olavo Vieira me
esclareceu que a galeria não havia sido feita para economizar forma.
A históriA OficiAl
O Cristo Redentor foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno. Foi
erguido com base em subscrições públicas, no ponto mais alto do Corcovado, a 710
metros de altitude, dominando linda paisagem do Rio de Janeiro. Seu pedestal tem 8
metros de altura e abriga uma capela. A imponente estátua tem 38 metros de altura.
Como nas obras atuais, mesmo as mais importantes, sua construção não foi
pacífica. O procurador-geral da República tentou impedir a construção afirmando
que era inconstitucional por ser uma imagem religiosa em País cuja Constituição de
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 175
1891 separava o Estado da Igreja.
A história oficial e as notícias veiculadas pela mídia da época relatam que
foi Guglielmo Marconi, inventor da radiotelegrafia, quem, desde a Itália, teria
acionado o comutador e acendido a iluminação do Cristo Redentor. A realidade
não foi essa. Naqueles tempos, a transmissão sofria de muitos problemas e, na hora
certa, quando Marconi acionou o comutador, houve uma falha. Quem realmente
acendeu a iluminação foi o engenheiro Gustavo Corção, que, posteriormente, além
de professor, tornou-se escritor, jornalista e filósofo de grande projeção.
cArOnAs inDEsEJávEis
O engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa foi diretor-geral do Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) no governo JK. Como havia necessidade
de deslocamentos frequentes pelo interior do Nordeste para acessar os diversos locais
das obras, sempre havia pedidos de carona no avião que ele utilizava. Não se sabe se
era para se livrar dos caronas indesejáveis ou por apenas querer ter um exótico animal
de estimação, ele adotou uma onça que sempre viajava com ele no avião. Com isso, os
pedidos escassearam.
cArOnA rEcusADA
Hoje a rodovia que liga Belo Horizonte a Brasília passa perto da barragem de Três
Marias. Entretanto, na época de sua construção, uma viagem por terra a Três Marias
era um penoso sacrifício por estradas não pavimentadas de sofrível qualidade. Com o
objetivo de evitar problemas com terceiros acidentados em viaturas da Cemig, John
Cotrim expediu uma circular pela qual passou a ser vedado aos motoristas da Cemig
dar carona a terceiros em viaturas da empresa.
Em uma de suas viagens a Três Marias, Cotrim teve seu carro enguiçado no meio
daquele longo e despovoado percurso. Entretanto, sabia que aquele era o dia do malote
vindo do escritório central. Assim, bastava esperar o carro da Cemig e ir nele até a
obra. Ao ver a poeira no horizonte, Cotrim se preparou para fazer a sinalização. O
carro diminuiu a marcha, o motorista viu o pedido de carona e não parou. Ao chegar à
176 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
obra, o motorista foi avisado de que o Cotrim havia sido deixado ao léu na estrada. Tão
logo chegou à obra, Cotrim, conhecidamente dirigente muito bravo, mandou chamar
o motorista, que compareceu muito nervoso. Para surpresa do motorista, Cotrim,
dirigindo-se a ele, elogiou-o por ter seguido à risca as instruções recebidas.
tEmpOs DifícEis
Os projetos do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS)
eram feitos no Rio de Janeiro. Octacílio Santos Silveira, um dos pioneiros da
geotecnia, me contou que recebia os projetos, ia para os locais das barragens e
andava em círculos concêntricos de raios progressivamente maiores até achar uma
área de empréstimo com o solo especificado no projeto.
Nos anos 1940 e 1950, os documentos de projeto eram emitidos em vegetal.
Principalmente durante os tórridos verões cariocas, os desenhistas enfrentavam
dificuldades em tentar evitar, sem muito sucesso, que a transpiração de mãos e
braços afetasse os desenhos. Com o objetivo de minimizar esse problema, o diretor-
geral José Cândido Castro Parente Pessoa mandou instalar ar-condicionado na
sala de desenho. Muito pouco usual naquela época, a repercussão dessa medida
foi considerada absolutamente despropositada, tendo repercutido amplamente na
imprensa e classificada pela oposição como um luxo absurdo.
vOcê sAbE cOm quEm Está fAlAnDO?
O escritório central de Furnas era no centro do Rio de Janeiro. Estávamos de
mudança para o novo prédio em Botafogo. Para o planejamento da mudança, foram
desenhadas plantas contendo os arranjos das salas com os nomes dos funcionários
e as posições das respectivas mesas e armários.
Em uma das salas do sétimo andar aparecia em planta a mesa do recém-admitido
arquiteto Marco Aurélio Pureza Cotrim, designada pelo sobrenome Cotrim. O
chefe dos serviços gerais, Sr. Jardim, ao ver a planta disse: “Nessa empresa Cotrim
é só um, o presidente.” Mandou que o nome fosse alterado. Achei despropositado esse
posicionamento, mas, algum tempo depois, veio a se mostrar realmente oportuno.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 177
Já no novo prédio, estávamos iniciando o projeto da hidroelétrica de Itumbiara.
O encarregado da elaboração de estimativas de custos, engenheiro Nelson Borges,
queria conhecer o projeto da vila de operadores da usina de Marimbondo para
estimar o custo da vila de operadores da usina de Itumbiara.
Ele foi informado de que o projeto da vila da usina de Marimbondo havia sido
do arquiteto acima citado. Eu estava ao seu lado quando ele, após consultar a lista
de ramais internos, discou. Talvez por ser hora do almoço, em vez de ter passado
pela secretária, quem atendeu se identificou como Cotrim. Nelson pediu detalhes
dos custos e do projeto da vila de Marimbondo. Do outro lado da linha veio a
resposta de que não sabia desse detalhe. Nelson insistiu, reclamando: “Cotrim, não
esconda o jogo, me forneça logo essas informações. Sei que foi você o responsável
pelo projeto.” Cotrim, percebendo que havia algum engano, indagou: “Você sabe
com quem está falando? Aqui é o presidente da empresa.” Nelson, quase sem voz,
retruca: “E o senhor, Dr. Cotrim, sabe com quem está falando?” Cotrim responde
que não e o Nelson complementa: “Graças a Deus”, e desliga rapidamente.
A mAlDiçãO DO pADrE cícErO
A barragem era denominada de Piranhas e se situava no município de Cajazeiras
(PB), controlando uma área de drenagem de 1.124 quilômetros quadrados. O projeto
foi desenvolvido pelo engenheiro Luiz Vieira com a colaboração dos engenheiros
Moacyr Avidos, Régis Bittencourt e Lohengrin Chaves.
A barragem, com 44 metros de altura e 340 metros de extensão, foi construída de
terra compactada, e seu sangradouro original, projetado para escoar um pico de cheia
de 800 m³/s, era constituído por uma crista vertente livre com ogiva de concreto de
160 metros de extensão e calha constituída por revestimento do talude de jusante em
lajes de concreto armado articuladas entre si posicionadas sobre o talude de jusante
da barragem.
Consta que o Padre Cícero, venerado em todo o Nordeste, havia dito repetidas
vezes que a barragem iria colapsar. Recalques na barragem haviam aberto as juntas
das lajes da calha do sangradouro. A cheia de 1963 piorou a situação. Apenas quatro
outras barragens com esse tipo de vertedouro eram conhecidas no Ocidente, tendo
todas elas rompido.
178 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Por esses motivos, o reservatório era mantido em nível baixo. Finalmente, após a
passagem dessa cheia, foi feita uma verificação da segurança da barragem, que já havia
sido denominada Engenheiro Ávidos. A análise alterou a capacidade do sangradouro
para o dobro da original; a calha foi desfeita e um novo vertedouro foi executado na
ombreira direita antes que a maldição do Padre Cícero se materializasse.
O gOvErnADOr quE sAbiA DEmOlir bArrAgEns
Itamar Franco, que havia sido presidente da República, concorreu e foi eleito
governador de Minas Gerais. O presidente Fernando Henrique Cardoso, seu
sucessor no governo federal, acelerava o programa de privatização. Um dos focos
era o setor elétrico, que foi parcialmente privatizado. Houve intensa oposição a
essa privatização, da qual o governador Itamar Franco participou ativamente para
evitar a privatização de Furnas. Em um gesto quixotesco, enviou a força militar
estadual para ocupar a barragem de Pium I e disse que, sendo engenheiro, saberia
como demoli-la com eficiência. Essa barragem fecha o reservatório de Furnas
evitando que suas águas, em vez de seguirem o rio Grande na bacia hidrográfica
do rio Paraná, passem para a área de drenagem do rio São Francisco. O colapso
dessa barragem desviaria o rio Grande para o rio São Francisco secando a usina
de Furnas e, em consequência, tirando vazão de todas as 11 grandes hidroelétricas
a jusante, inclusive as binacionais entre Brasil e Paraguai e entre Paraguai e
Argentina. Não foi por esse motivo que Furnas não foi privatizada, mas o folclórico
ato ficou marcado na engenharia.
O ministrO quE quEriA sEr EngEnhEirO i
O ministro de Minas e Energia não era engenheiro, mas dava palpites. Um deles
foi em uma solenidade durante a construção da hidroelétrica de Balbina, que, em
função do sistema isolado de Manaus, havia sido corretamente dimensionada com
cinco unidades geradoras de 50 megawatts cada uma, perfazendo 250 megawatts.
Na apresentação do projeto durante uma visita à obra, o ministro disse que o
dimensionamento estava errado, pois a adoção de unidades maiores teria sido mais
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 179
econômica. E acrescentou: “Por que não foram adotadas duas unidades de 100
megawatts e uma de 50 megawatts?”, questionou. No fundo da sala, o engenheiro
Edson Zampronha, chefe do projeto, disse à meia voz: “E por que não meia unidade
de 500 megawatts?”
O ministrO quE quEriA sEr EngEnhEirO ii
Os procedimentos para o fechamento do reservatório de Itaipu estavam sendo
definidos. Um dos problemas era a vazão nula a jusante da barragem durante a
primeira fase do enchimento até que as águas represadas atingissem a soleira do
vertedouro, situada 20 metros abaixo do nível d’água máximo normal projetado
para o reservatório. Nesse período, teria que ser minimizado o impacto para
jusante e, para tal, a operação das barragens situadas no rio Iguaçu liberaria
descargas muito maiores do que as que seriam verificadas em condições normais,
uma vez que o rio Iguaçu tem sua confluência com o rio Paraná pouco a jusante da
barragem de Itaipu. Ao tomar conhecimento desse critério, o ministro disse que
sifões resolveriam o problema sem que houvesse alteração no despacho das usinas
do rio Iguaçu.
Costa Cavalcanti, o presidente brasileiro de Itaipu, por não ser engenheiro, não
respondeu, porém comunicou ao diretor técnico John Cotrim esse questionamento.
Em reunião posterior, quando a questão foi novamente levantada pelo ministro,
agora já com a presença de Cotrim, ele esclareceu que para tanto “basta apenas
revogar a lei da gravidade”.
instrumEntAçãO?
Em 1973, a hidroelétrica de Peixoto, Marechal Mascarenhas de Moraes, teve
a sua concessão transferida da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) para
Furnas. Tão logo isso ficou estabelecido, fiz uma inspeção na usina, na época uma das
mais importantes do país. Perguntei ao chefe da operação sobre a instrumentação.
Pela resposta, fiquei sabendo que era composta por apenas três piezômetros.
Perguntei onde estavam localizadas as células piezométricas e não obtive qualquer
180 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
resposta. Perguntei como eram medidas as pressões. E ouvi: “Colhemos a água que
sai dos piezômetros e medimos o tempo para encher um tubo que tem o volume
conhecido.” Ainda bem que a barragem é em arco e, consequentemente, deve ter
elevado fator de segurança.
Naquela ocasião, Ivo Marinho, o chefe do arquivo de Furnas, passou uma
temporada analisando toda a documentação disponível e me consultando se os
documentos levantados correspondiam ao que foi construído. Eram inúmeros
desenhos de diversas alternativas de projeto e nenhum desenho correspondia ao
projeto como construído.
Muitos anos depois, Furnas lançou uma concorrência para estudo de melhorias
na barragem e na usina de Peixoto. Como a usina havia sido implantada sob o
comando do engenheiro Léo Amaral Penna e ele, já idoso, participava de nossa
equipe técnica, pedi que participasse da reunião inicial para elaboração da proposta
a ser enviada a Furnas. Foi só nessa ocasião que fiquei sabendo que a única coleção de
documentos de projeto estava muito bem guardada, na casa do Léo Penna.
pAixãO rEcOlhiDA
Aldo Motta, advogado de Furnas e uma das pessoas mais engraçadas que
conheci, me contou em detalhe o caso da velha viúva, feia, pequena, desdentada,
corcunda e enrugada que criou uma paixão recolhida desde que viu um jovem
engenheiro carioca de olhos claros nas obras que Furnas estava fazendo, na área
do reservatório.
O reservatório seria criado a partir de janeiro de 1961. A viúva, entretanto,
não permitia a concretagem de um bueiro em sua propriedade, ameaçando quem
chegasse perto com tiros de garrucha. Para que a pequena obra fosse executada
sem riscos, em uma noite, Aldo Motta levou o referido engenheiro à casa da viúva
com a finalidade de distraí-la enquanto os operários executavam a concretagem.
Ficou combinado que, tão logo o trabalho estivesse concluído, morteiros seriam
lançados como sinal de que os dois poderiam descer para a estrada.
Ao chegarem à casa da viúva, tomaram um café e, pouco depois, o jovem
engenheiro foi convidado pela viúva para ver o paiol, deixando Aldo só na casa. O
tempo foi passando e nada dos morteiros. Após muito tempo, quando finalmente
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 181
Aldo e o engenheiro saíram em direção ao bueiro, os operários riam porque,
propositalmente, não dispararam os morteiros, obrigando o engenheiro a difíceis e
longas manobras para tentar escapar do assédio indesejado. Aldo, hoje já falecido,
nunca me disse se o engenheiro conseguiu escapar, mas sempre insinuava que não.
A brigA pOr sãO simãO
Em 1967 e 1968, o governo federal fez uma distribuição de concessões dos grandes
potenciais situados no Triângulo Mineiro: Furnas ficou com Marimbondo e Porto
Colômbia; CESP, com Água Vermelha; e Cemig, com São Simão. O aproveitamento de
São Simão era, na época, desproporcional para as dimensões da Cemig. O engenheiro
João Camilo Penna, presidente da Cemig, teve dificuldade em obter financiamento para
a obra porque, segundo ele, em entrevista a mim concedida, o ministro da economia
Antônio Delfim Netto, contrário ao governador Israel Pinheiro, se opôs a que o BNDE
abrisse uma linha de financiamento.
Mauro Thibau recomendou que a Cemig tentasse financiamento externo, o que foi
conseguido para os equipamentos permanentes junto aos fabricantes e para as obras
civis junto ao Banco Mundial. O Banco, entretanto, de acordo com suas normas internas,
exigiu que a concorrência fosse internacional. A Camargo Corrêa registrou protesto e
não concorreu.
A Andrade Gutierrez não temia adversários estrangeiros, mas perdeu a concorrência.
A italiana Impregilo ganhou. A Cemig passou a sofrer forte pressão da Mendes Júnior, a
segunda colocada. Camilo foi chamado a depor na Assembleia Legislativa e no Congresso
Nacional, onde recebeu importante apoio do seu conterrâneo e ex-governador Magalhães
Pinto, que disse: “Camilo, destruir você, nunca; você é mais importante do que a Cemig.”
A usina de São Simão foi feita com sucesso dentro do custo e dos prazos contratados.
ElEtrObrAs DEnunciADA
Havia sido acertado na montagem financeira que um terço dos recursos para
a implantação da hidroelétrica de Emborcação viria da Eletrobras. Atravessando
fase difícil da economia nacional, a Eletrobras, através de seu presidente Maurício
182 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Schulman, em reunião no Maracanã – a grande sala no escritório central em que
as reuniões mais importantes eram realizadas –, propôs que a Cemig diminuísse
drasticamente ou mesmo paralisasse a construção.
Isso ocorreu no primeiro ano de construção. Foi muito difícil, porém o diretor
da Cemig, engenheiro Guy Vilella, por não poder alterar o ritmo de implantação
da obra sem que ocorressem notáveis prejuízos, conseguiu que a Eletrobras
cumprisse, nesse primeiro ano, o contrato de financiamento. No segundo ano, foi
quase impossível para a Cemig fazer com que a Eletrobras cumprisse o contrato
de financiamento. No terceiro ano, com o agravamento da crise financeira que se
abatia no País, a Eletrobras fechou a questão e Schulman, aos gritos, afirmou que
não haveria mais aportes da Eletrobras, cujo financiamento significava 91% dos
custos das obras civis.
O colapso seria sem precedentes para a Cemig. A diretoria resolveu denunciar
a Eletrobras ao Banco Mundial, que forçou o governo brasileiro a fazer com
que a Eletrobras cumprisse o contrato, sob a ameaça de cancelamento de todos
os financiamentos contratados com o Banco. O governo e a Eletrobras tiveram
que ceder e a usina de Emborcação foi concluída. As obras das estatais federais,
entretanto, foram executadas com as verbas de desmobilização, com atrasos e,
consequentemente, com grandes acréscimos de custos devido às fortes incidências
de juros durante as suas construções.
A DirEtOriA DE cOOrDEnAçãO
Mário Bhering foi presidente da Eletrobras durante muitos anos. Uma de suas
ideias mineiras foi a criação de uma nova diretoria, cujo único objetivo era deixar
claro aos paulistas que não havia, no âmbito da Eletrobras, qualquer regionalismo.
Para tanto, foi criada a diretoria de coordenação, que dispunha apenas de uma
pequena sala e compartilhava uma secretária com terceiros. Para assumir a nova
diretoria, foi convidado o professor Lucas Nogueira Garcez, presidente da CESP,
estatal estadual de São Paulo na área elétrica. O professor Garcez, ex-governador
de São Paulo, figura de elevada projeção técnica e política, deveria apenas participar
das reuniões de diretoria e das decisões da Eletrobras, tornando-se, assim, uma
ponta de lança da Eletrobras dentro da CESP.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 183
A ideia funcionou às mil maravilhas, tendo sido evitados desgastes desnecessários
no setor elétrico, dada a transparência das ações da diretoria da Eletrobras.
Entretanto, quando César Cals de Oliveira Filho perdeu a eleição para o governo do
Ceará e ficou sem posição política, vislumbrou essa diretoria, que havia ficado vaga,
e pleiteou sua ocupação. Como Cals era muito dinâmico, sem saber dos objetivos da
diretoria, imediatamente começou a desenvolver vários projetos e programas que
não estavam incluídos na concepção original da diretoria, desvirtuando o objetivo
principal, que não mais retornou às origens. Essa diretoria foi o ponto de apoio
junto ao presidente Figueiredo para Cals se tornar, posteriormente, ministro das
Minas e Energia.
humAitá nO AmAzOnAs
O cerco à fortaleza de Humaitá, às margens do rio Paraguai, durante a Guerra
da Tríplice Aliança foi um dos pontos mais decisivos da guerra. Daí esse nome
em guarani estar presente em várias localidades e logradouros no território
nacional. Quando César Cals de Oliveira Filho assumiu a diretoria de coordenação
da Eletrobras, mesmo tendo encontrado resistência do seu presidente, Mário
Bhering, trouxe vários colaboradores e deu início a uma série de projetos.
Um desses projetos visava ao desenvolvimento de pequenas usinas hidroelétricas
na Amazônia com unidades de baixa queda. Na realidade, eram duas ideias novas
que, se separadas, teriam certamente tido sucesso: havia muitas possibilidades
de locais na Amazônia viáveis para usinas pequenas, como posteriormente ficou
comprovado, e diversas usinas de baixa queda foram implantadas com sucesso no
País. Entretanto, pequenas usinas de baixa queda na Amazônia congregavam a soma
de dois fatores que oneram os empreendimentos de geração de energia elétrica.
A diretoria contratou estudos preliminares e selecionou os projetos de
Humaitá e Eirunepé para serem implantados. Com base nesses levantamentos
sem detalhamentos necessários e em concorrências, a Eletrobras contratou as
obras civis e os projetos. Aquelas antes destes. As obras foram iniciadas com o
detalhamento dos projetos sendo feito em paralelo ao projeto básico, do qual um
dos itens era o estudo energético.
Ao avaliar as curvas-chave dos locais das usinas, os estudos energéticos das
184 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
duas hidroelétricas, efetuados pelo projetista, mostraram que só poderiam gerar
com a capacidade plena pouco menos do que um mês por ano. Em parte por falta
de afluência durante a estiagem e também pelo afogamento por jusante na época
de vazões mais elevadas, em que elas ficariam praticamente inoperantes. De
acordo com esses resultados, as duas hidroelétricas tiveram suas obras e projetos
cancelados, para alívio dos engenheiros geotécnicos do consórcio projetista, que
teriam que solucionar economicamente intrincados problemas das duas fundações,
ao mesmo tempo extremamente permeáveis e compressíveis.
tEmpOs DifErEntEs
Por incrível que pareça, no início do século passado, as obras fluíam muito
melhor do que nos dias de hoje. Corria o ano de 1924 com intensa estiagem em
São Paulo e graves consequências para a Light no suprimento de energia elétrica.
O notável engenheiro americano Asa White Kenney Billings implantou, em
apenas 11 meses, saindo do zero, a hidroelétrica de Rasgão com duas unidades de
9 megawatts, as maiores de São Paulo e as segundas maiores do País, aproveitando
um canal que havia sido escavado quase um século antes com o objetivo de derivar
o fluxo do rio Tietê para exploração, nunca realizada, de ouro no aluvião em uma
curva do rio.
A Light descobriu duas unidades Francis de 9 megawatts cada em final de
fabricação no exterior e as adquiriu. A logística era muito difícil, pois a maior
carroça que atingia o local da obra tinha capacidade de transportar até 15 toneladas
em estradas não pavimentadas de tráfego precário. A época era convulsionada com
o movimento tenentista que ocupou a cidade de São Paulo por semanas. O País
encontrava-se em estado de sítio e a coluna Miguel Costa/Prestes iniciava sua
longa marcha. Mesmo assim, a hidroelétrica teve sua operação iniciada em 1925,
11 meses após ter sido tomada a decisão da sua construção.
A hidroelétrica operou em regime provisório até 1961, quando foi paralisada.
Nos últimos anos do século passado foram feitas reabilitações das estruturas civis
e dos equipamentos, voltando a ser operada com sucesso. Nos dias de hoje, esses 11
meses podem nem ser suficientes para, por exemplo, o estabelecimento do escopo
do estudo ambiental para obtenção de licença prévia.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 185
As DificulDADEs AumEntAm cOm O tEmpO
Leopoldo Miguez de Mello, professor catedrático da Escola de Química da
Universidade do Brasil, hoje UFRJ, fundador do Conselho Nacional do Petróleo
(CNP) e diretor da Petrobras nos anos 1960, era um incentivador do desenvolvimento
industrial do País, em especial da Petroquímica. Sua frase “No Brasil nunca se fez nada
demasiadamente grande” retrata o seu espírito empreendedor.
Entretanto, cada vez mais passavam a ser exigidas atividades burocráticas para
a aprovação de estudos de viabilidade para o lançamento de cada novo projeto. Ao
excesso da burocracia técnica ele reagiu: “Se Dom Manuel, que era venturoso, tivesse
que desenvolver tantos estudos de viabilidade, talvez Cabral não tivesse descoberto
o Brasil.” Ele faleceu pouco antes do advento dos estudos de meio ambiente, que
passaram a demandar muito mais tempo e recursos.
grAçAs A DEus
Muitas pessoas que não acreditam em Deus usam frequentemente essa expressão.
Para formar o seu primeiro ministério, o presidente Lula convidou Marina Silva
para comandar a pasta de Meio Ambiente. Desde o início do governo, ocorreram
intensos embates entre essa pasta e as relativas à infraestrutura, principalmente
com relação à obtenção de licenciamentos ambientais. Foram muitas as discussões,
sendo uma das mais emblemáticas a que envolveu o licenciamento das duas
grandes hidroelétricas, Santo Antônio e Jirau, situadas no rio Madeira, entre a
fronteira com a Bolívia e a cidade de Porto Velho.
Apesar dos expressivos benefícios na integração do transporte fluvial e no
abastecimento de energia ao sistema interligado nacional, além de serem usinas de
baixa queda, as duas barragens e seus reservatórios impactavam áreas florestadas
da Amazônia. As dificuldades na obtenção dos licenciamentos ambientais acabaram
por determinar a reforma ministerial, com o consequente abandono de Marina Silva
do ministério e do Partido dos Trabalhadores, ao qual ela era filiada há décadas.
Posteriormente, as licenças foram concedidas. A energia elétrica no rio Madeira
pôde começar a ser produzida em 2012, com as obras ainda em construção. Mas,
durante os embates, o presidente Lula tentou contornar ao máximo a saída de
186 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Marina Silva do seu governo e do seu partido político. Ancelmo Gois relatou
em 5 de outubro de 2013 que a ministra do Meio Ambiente esteve com Lula,
acompanhada por seu conselheiro religioso, e disse ao presidente que “Deus havia
aconselhado para ela sair do governo”. Tendo em vista a gravidade da situação,
Lula pediu tempo para dar uma resposta. Depois procurou Marina e contou a
novidade: “Falei com Deus e ele pediu para você ficar.”
Com esse argumento, Marina permaneceu por mais um ano no Ministério do
Meio Ambiente, tendo finalmente saído do governo e do partido em 2008.
A bOiA
Formado em geologia no início dos anos 1970 em sua terra natal, Rio
Grande do Sul, atualmente profissional de grande projeção, Sérgio Berrino,
consultor e empresário de sucesso na área de prospecção geotécnica, estava em
um sítio selecionado para uma grande barragem no norte do Peru. Ele tinha
a responsabilidade de efetuar o primeiro mapeamento geológico do local. O
rio atravessava um vale de encostas escarpadas com elevada velocidade e forte
gradiente, o que tornava muito problemática sua travessia. Como era imprescindível
fazer o mapeamento geológico das duas margens, e como ele havia chegado ao
local depois de longa e penosa viagem, viu que tinha que atravessar o rio, pois um
retorno ao local seria muito demorado e dispendioso.
Ao saber pelos peões que o rio era atravessado pela população local com o apoio
de uma boia de câmara de ar de pneu de caminhão, se propôs a fazer a travessia.
Para não arriscar, ele entregou a sua máquina fotográfica a um companheiro, que
não se propôs a fazer a travessia (ou travessura). O peão peruano ficou sentado na
boia, Berrino colocou a roupa e as botas sobre a cabeça e sentou no colo do peão.
Este, com as mãos equipadas com sandálias de dedo, uma em cada mão e usadas
como remo, se esforçava para atingir a margem oposta. O companheiro de Berrino
ficou na margem e colheu muitas fotografias dessa travessia. Ao voltar da viagem,
Berrino, sem saber que a travessia havia sido fartamente documentada em sua
própria máquina fotográfica, pediu na empresa para que as fotografias da viagem
fossem editadas. Nessa ocasião foi distribuída por e-mail a todos os funcionários
uma circular da administração da empresa de consultoria na qual Berrino trabalhava,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 187
pela qual despesas de viagem tinham que ter suas contas apresentadas em curto
espaço de tempo. Outro competente geólogo da mesma empresa, Roberto Corrêa,
que se encontrava em viagem mais longa, respondeu também por e-mail que não
poderia atender o que a circular demandava e acrescentou que não sentava na boia.
O e-mail atingiu a todos que haviam recebido a comunicação da administração e foi
o estopim para se descobrir as fotografias do Berrino atravessando o rio no colo do
índio peruano e ter as fotografias enviadas pela internet a várias pessoas da empresa.
O tEAtrO
Nos anos 1970, a Celusa estava construindo a hidroelétrica de Jupiá no rio Paraná.
Era uma obra de primeira grandeza e envolvia números até então inéditos no País,
como potência instalada de 1.400 megawatts e capacidade de descarga de 50.000
m³/s. Contratada como empresa de prospecção geológica e geotécnica, a Rodio,
multinacional suíça, tinha como residente o engenheiro Sérgio Dias Figueiredo.
Foi programada uma primeira visita dos dirigentes suíços à obra. Sérgio, tentando
induzir seus superiores a um aumento de salário, procurou exagerar nas condições
desfavoráveis de trabalho. Para isso, pediu emprestado e vestiu as roupas mais
modestas do peão menos qualificado e recebeu, muito mal vestido, seus superiores
suíços. O teatro funcionou, os suíços se apiedaram do Sérgio e lhe concederam um
aumento de salário, mesmo sem ele ter mencionado o que queria.
O quE Os OutrOs nãO têm
Em 2001 estávamos nos preparando para as reuniões dos executivos da Comissão
Internacional de Grandes Barragens, programadas para Dresden, Alemanha. Para
facilitar a logística dos participantes e acompanhantes, sugeri que a delegação brasileira
ficasse em um hotel por mim selecionado, que não era muito longe do local do evento.
E também não era nem o mais caro, nem o mais barato. Quase todos nós fizemos as
reservas nesse hotel, à exceção do professor Nelson Pinto. Sua esposa, querendo ficar
junto das amigas, questionou o motivo de apenas os dois terem reservado o hotel onde
o evento seria realizado, o mais caro, mas o mais cômodo para os participantes das
188 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
reuniões. Em resposta, Nelson se justificou: “Maria, é porque eu tenho uma coisa que
os outros delegados brasileiros não têm”. Curiosa, Maria do Socorro perguntou: “Mas
o que é que você tem e que os outros não têm?” Resposta imediata: “Setenta anos”.
O titAnic
O professor emérito da USP, José Goldemberg, profundo conhecedor da área de
energia, publicou em 18 de novembro de 2011 um importante artigo que define bem
o setor nessa época: “Nessa área [energia], o que temos visto é a adoção de políticas
setoriais que se movem mais ou menos ao acaso sob pressão de lobbies poderosos, sem
uma política coerente e unificadora. É por esse motivo que vivemos sobressaltados
com a iminência de falta de energia elétrica ou de importação de petróleo.”
Essa correta postura do professor vem de longa data. Em 1989, o Comitê
Brasileiro de Barragens realizou o XVII Seminário Nacional de Grandes
Barragens, em Foz do Iguaçu, evento que desde o início da série, em 1962, se
reveste de elevada importância para a engenharia na divulgação da tecnologia
aplicada a barragens e reservatórios nos mais diversos domínios da técnica. Em
1979 foi instituído mais um arrocho salarial através de legislação, que penalizou
sobremodo contratos na modalidade “cost plus” largamente adotados desde os
anos 1950 pelo setor elétrico estatal, que haviam possibilitado a grande arrancada
para implantação de hidroelétricas da mais elevada projeção, tais como Furnas,
Três Marias e Jupiá. Esse arrocho gerou uma crise sem precedentes nas empresas
prestadoras de serviços, além de graves problemas associados à crise financeira
do governo federal, que passou a adotar restrições ao faturamento dos seus
colaboradores. Entretanto, a falta de investimentos em projetos de novas usinas
geradoras indicava que, em um futuro próximo, as probabilidades de deficiências
no suprimento de energia elétrica no País seriam crescentes. E isso, se mantido
o baixo nível de investimentos na ampliação do parque gerador, deveria causar
racionamento de energia elétrica. Ao final do referido seminário, os participantes
se reuniram e redigiram a Carta de Foz do Iguaçu, que deixava claro os riscos acima
mencionados. A carta foi lida pela professora Evelyna Bloem Souto, aclamada por
todos os presentes, e publicada nos principais jornais do País.
O respeitável professor José Goldemberg, apesar de ser profundo conhecedor
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 189
do setor elétrico, infelizmente, desconhecendo a retidão do Comitê Brasileiro
de Barragens, confundiu os objetivos da carta. Apoiado na sua grande projeção
nacional, não encontrou dificuldade em publicar um incisivo artigo atribuindo a
motivação da Carta de Foz do Iguaçu a interesses de empreiteiros de obras do
setor elétrico. Esse artigo esvaziou o clamor do Comitê Brasileiro de Barragens
e da engenharia nacional desse segmento e ficou atravessado na garganta de
engenheiros que colaboraram na redação do documento. Os investimentos pedidos
na carta continuaram não sendo devidamente realizados e, como previsto, no ano
2000, 11 anos após o referido seminário, a estocagem de energia nos reservatórios
das hidroelétricas atingiu níveis preocupantes. E isso ocasionou o racionamento de
2001 e 2002, de trágicas consequências econômicas e políticas.
Em 2001 era projetado no Brasil o filme Titanic, grande sucesso de bilheteria.
Com o advento do racionamento, foram divulgadas comparações entre o Brasil e o
Titanic: o artigo do professor Goldemberg chocou o setor de barragens, o Titanic
se chocou com um iceberg; o Brasil afundou às escuras e o Titanic naufragou com
as luzes acesas.
O mAiOr DEsAfiO
Acompanhei a trajetória de alguns dos maiores vultos da engenharia nacional,
entre eles Flavio H. Lyra e John R. Cotrim. Quando Cotrim deixou a diretoria
técnica de Itaipu, foi trabalhar conosco na Enge-Rio. Nesse tempo, ele se dedicou,
entre outras coisas, a editar uma memória técnica de Itaipu e um livro sobre
a história de Furnas, que infelizmente ficou apenas no início, em seu primeiro
volume. No primeiro dia do Cotrim na empresa, fomos os três almoçar em uma
churrascaria no aterro do Flamengo, onde fiz uma pergunta aos dois que queria
fazer há tempos: “Qual foi o maior desafio para nossa engenharia: implantar
Furnas ou Itaipu?” Cotrim, imediatamente, respondeu que foi Itaipu e descreveu
longamente as dificuldades de toda natureza – as técnicas e, principalmente, as não
técnicas – que tiveram que ser enfrentadas.
Lyra, entretanto, com mais calma, mostrou que o desafio em Furnas foi ainda
maior, pois era uma das mais arrojadas obras hidráulicas do mundo em um País
que na época dispunha de recursos humanos e financeiros extremamente escassos.
190 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
As prAiAs
Eu tinha estado em reunião com o professor Pamplona, emérito da UFRJ e
presidente da Fundação José Bonifácio (FUJB), no campus da UFRJ da Praia
Vermelha e retornava de táxi para a Cidade Universitária. O motorista pediu
instruções quanto ao roteiro, pois era novo na praça e costumava trabalhar em
Campo Grande. Estávamos na Avenida Rui Barbosa e ele, maravilhado com a
paisagem, fazia perguntas, às quais eu respondia: “Passamos pela Praia de Botafogo
e à frente fica a Praia do Flamengo. A Praia do Fluminense é o Maracanã.”
Os lEõEs
Estávamos encarregados da engenharia do proprietário (que na época ainda
era denominada de gerenciamento) da implantação da barragem dos Pequenos
Libombos, em Moçambique. Ainda na fase preliminar, antes da contratação do
empreiteiro, quis ir até o local da área de empréstimo de solo para a barragem
de terra. Fui desaconselhado, pois, além do estado de guerra civil, havia animais
selvagens. Em consideração aos avisos e por não ter havido confrontos no passado
recente naquela área, pedi a escolta de um soldado armado. Parti com ele, que
portava um rifle de fabricação soviética. Quando já havíamos nos afastado do
acampamento, perguntei ao soldado se ele sabia atirar, tendo obtido resposta
afirmativa. Prossegui perguntando se ele sabia atirar em alvo móvel; outra resposta
afirmativa. Perguntei se, caso uma leoa viesse nos caçar, ele atiraria nela. Dessa vez
a resposta foi negativa. Preocupado, perguntei por quê. Ele respondeu: “Não tenho
munição.” O erro foi meu! Eu tinha que ter feito o pedido completo. Olhei para trás
e tive a impressão de que o acampamento estava muito distante.
Conhecedor das estepes africanas, eu sabia que algumas vezes os predadores
ficam escamoteados na vegetação. Sem nada lógico para dizer, perguntei: “O que
fazemos?” A resposta foi: “Nós correremos, mas, não adianta, a leoa nos pega.” Olhei
novamente para ele, jovem, com pelo menos 30 anos a menos do que eu. Entendi
quem seria pego nessa corrida. Voltamos a passos largos para o acampamento.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 191
O prOcEssO
O professor Fernando Amorim, do Departamento de Engenharia Naval da
Escola Politécnica, não era dado às coisas da burocracia. Em uma época, ele chegou
a ser o vice-reitor de patrimônio da UFRJ e estava enrolado com os diversos
processos, que continuamente aportavam à sua mesa.
Com sacrifício, ele procurava dar destinos lógicos aos casos. Um deles,
entretanto, era um pesadelo de difícil solução. Ele contou como resolveu: chegou à
janela do 8º andar do prédio da Reitoria na Cidade Universitária e atirou ao vento
o processo que tanto o exasperava. O caso não mais o atormentou.
AnivErsáriO Em itumbiArA
Arthur Casagrande, consultor geotécnico das mais importantes barragens de
terra e de enrocamento do Brasil, passou a vir prestar apoio a Furnas, Cemig e
CESP desde os anos 1950. Ele sucedeu a Karl Terzaghi, que, no final dos anos
1940 e início dos anos 1950, prestou importante consultoria nos projetos da Light
em São Paulo e no Rio de Janeiro. Companheiros na docência da Universidade de
Harvard, Casagrande sofria com o vício de Terzaghi, fumante inveterado. Quando
tinha que ir à sala de Terzaghi, via as janelas sempre fechadas, mesmo no verão.
Não adiantava reclamar, pois obtinha como resposta que não se devia perder tanta
fumaça no ambiente.
Já idoso, Casagrande estava no canteiro de obra de Itumbiara por ocasião de
um de seus derradeiros aniversários. Alexandre Penacchi, que chefiava o serviço
de atendimento, preparou com todo o cuidado um bolo em forma de barragem de
terra. Após o jantar, o bolo foi apresentado ao Casagrande ao som do parabéns para
você. Decorridos alguns instantes e ainda emocionado, Casagrande perguntou se
aqui no Brasil havia o jogo dos sete erros. Após resposta afirmativa, ele passou a
apontar sete erros na geotecnia representada no bolo.
192 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
chinEsEs nO brAsil
Pouco após o fim da Revolução Cultural na China, ainda nos anos 1970,
engenheiros chineses passaram a nos visitar. Estavam para iniciar muitas grandes
hidroelétricas na China e eles estavam curiosos para saber dos nossos critérios de
projeto e métodos construtivos. Para uma das primeiras visitas, programei uma ida
às obras da hidroelétrica de Itumbiara. Alexandre Penacchi, como sempre, caprichou:
serviu um tornedor com acompanhamentos variados. Os chineses só comeram os
acompanhamentos; não sabiam usar garfo e faca para cortar a carne. Aprendi a lição.
Já no Rio de Janeiro, convidei Li Eding e Chen Chongang, presidente e secretário
geral do Comitê Chinês de Barragens, para um almoço em minha casa. Servi picadinho
carioca. Li Eding, emocionado, agradeceu por eu ter preparado para ele o prato típico
da cozinha da sua província e passou a me considerar a pessoa mais educada que ele
havia conhecido em suas viagens. Evidentemente não revelei a ele que era um prato
carioca e fiquei com os créditos, que por acaso ganhei.
Os JurOs
No final dos anos 1970, já vivíamos com inflação elevada e com juros sem
paralelo em outros países. Miriam Leitão, em seu livro Saga Brasileira, calculou
a inflação entre dezembro de 1979 (primeira maxidesvalorização promovida por
Delfim Netto) e julho de 1994 (cruzeiro/real): 13.342.346.717.617.70%, mais de
13 quatrilhões por cento em menos de 15 anos!
Nessa época o engenheiro Mário Henrique Simonsen, expoente da
macroeconomia, advertia: “Se o ministro da Fazenda é popular, ele está fazendo
alguma coisa muito errada.” Era o caso de Dilson Funaro, um dos 13 ministros
da Fazenda naquele curto período, no lançamento do Plano Cruzado. Foi nesse
ambiente que a obra de Itaipu foi iniciada. Participamos da idealização do canteiro
de obra visando à celeridade da execução. O objetivo era minimizar a incidência de
juros durante a construção.
Em uma das primeiras visitas de engenheiros chineses ao Brasil, fiz uma
apresentação do projeto de Itaipu e da concepção de seu canteiro de obra, no qual
se destacavam os monotrilhos e os cabos aéreos para colocação de concreto em
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 193
grandes produções. Ao final, os chineses perguntaram qual era o motivo de tanta
preocupação com a produção acelerada da construção. Respondi que neste País,
a maior parcela do custo da obra eram os juros durante a construção e, por isso,
tínhamos que ter uma produção acelerada. Eles, então, perguntaram o que eram os
juros. Eles eram felizes e não sabiam.
prEcOncEitO?
No início dos anos 1950, quando Arthur Casagrande começou a ser consultor no
Brasil, estava sendo construída a Via Anchieta, ligando o planalto paulista ao litoral de
Santos. No entorno da cota 500m, havia uma grande instabilidade de encosta de tálus,
que se configurava como grande problema para a execução da rodovia. No caminho para
a casa de força de Henry Borden, no sopé da Serra do Mar em Cubatão, pesquisadores
do IPT mostraram a referida instabilidade a Casagrande, que recomendou a instalação
de intensa drenagem profunda. E ouviram dele, em uma época em que muito poucas
eram as mulheres que se dedicavam à engenharia: “Na criminalística, os franceses
dizem: Cherchez la femme. Em geotecnia devemos dizer: Cherchez l’eau.”
lAginhA x cOOKE
O que Laginha Serafim era para as barragens de concreto em abóbada, J.
Barry Cooke era para as barragens de enrocamento com face de concreto. Ambos
tendiam sempre para a seleção desses tipos de barragem, respectivamente. Em
1988, Laginha Serafim era relator de um tema sobre barragens de concreto no XVI
Congresso da Comissão Internacional de Grandes Barragens, em São Francisco,
nos Estados Unidos.
Para surpresa geral, durante os debates, apareceu como inscrito J. Barry Cooke.
Na sua contribuição, ele não falou sobre o tema barragens de concreto, mas
apresentou uma seção transversal típica de barragem de enrocamento com face de
concreto. Prosseguiu mostrando o plinto, a laje no talude de montante, o quebra-
ondas na crista e focalizou uma face de concreto compactado com rolo na parte
inferior do talude jusante, ancorada ao enrocamento. Ele mostrava que essa face
194 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
estava sendo usada em três novas grandes barragens em construção, inclusive na
de Xingó, como elemento de proteção caso o maciço de enrocamento viesse a ser
submerso durante a construção por uma vazão excepcional, que ultrapassasse a
capacidade de descarga do dispositivo de desvio do rio. Ao ouvir essa explicação,
Laginha Serafim comentou: “Com tanto betão, não carece o material incoerente.”
lAs vEgAs
Eu estava com a família em um restaurante do Fashion Mall, no Rio de Janeiro,
quando entraram várias artistas que se acomodaram na mesa ao nosso lado. À
cabeceira, Ivete Sangalo, que, por estar mais próxima de mim, me cutucou no
braço esquerdo e perguntou se, na nossa mesa, alguém saberia dizer em que estado
da federação ficava a cidade de Las Vegas.
Todos ficaram surpresos e eu, rapidamente, respondi que Las Vegas fica em
Nevada. Ela prosseguiu perguntando sobre o lago que há nas proximidades.
Eu respondi que é o Lake Meade, formado pela Boulder Dam, hoje denominada
Hoover Dam, no rio Colorado. O engenheiro Herbert Hoover foi presidente dos
Estados Unidos durante a Grande Depressão e o general George Gordon Meade
foi um dos comandantes do Exército da União na fase final da Guerra da Secessão.
Ela expressou admiração por eu saber tudo isso. Por falta de modéstia, eu não
revelei que, sendo barrageiro, saberia essas respostas com certa facilidade.
A EnsEcADEirA quE nãO sEcAvA
A hidroelétrica de Ilha dos Pombos, situada no rio Paraíba do Sul próximo à
cidade de Além Paraíba, entrou em operação em 1924. Depois dessa época, passou
por algumas reformas e reforços estruturais. Os mais recentes ocorreram nos anos
1980. Foi necessário ensecar ampla área a montante de parte da barragem que
abriga as três grandes comportas de setor do vertedouro. E tudo isso sem que a
usina fosse paralisada, ou seja, sem que o reservatório fosse esvaziado.
A ensecadeira foi lançada sobre o que era a Ilha dos Pombos antes da criação do
reservatório. Após o lançamento da ensecadeira em ponta de aterro, o empreiteiro
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 195
tentou sem sucesso esvaziar a área compreendida entre a ensecadeira e a barragem,
pois a percolação sob a ensecadeira era igual à descarga bombeada, qualquer que
fosse essa descarga, sem haver qualquer alteração do nível d’água, indicando
condições de franca permeabilidade pelo corpo ou pela fundação da ensecadeira.
Ninguém entendia o que estava ocorrendo até que um matuto ribeirinho, muito
idoso, residente no local da barragem desde que nasceu, contou que nos tempos
anteriores à construção da barragem era comum marcar as divisas estaduais com
fileiras de grandes pedras soltas. Assim, havia uma dessas fileiras de grandes pedras
sobre o que havia sido a Ilha dos Pombos, sendo depois inundada pelo reservatório
e tendo permanecido sob a água desde 1924. Esse ancião simples possibilitou que
o mistério, que ninguém desvendava, fosse finalmente compreendido.
táxi Em lisbOA
Em julho de 1973, depois de longos meses em treinamento nos Estados Unidos
e Canadá, e depois de ter participado do congresso da Comissão Internacional de
Grandes Barragens em Madri, fui cumprir um proveitoso estágio no Laboratório
Nacional de Engenharia Civil, na cidade de Lisboa. A minha esposa foi se encontrar
comigo lá. O fato a seguir aconteceu comigo há quatro décadas e, de tanto eu
contá-lo, já o ouvi contado por terceiros como piada.
No trajeto de táxi do aeroporto para o hotel, eu perguntava pelos três filhos pequenos,
o mais velho com apenas dois anos, dos quais tinha imensas saudades. Importante lembrar
que desde o Brasil Colônia havia muito mais portugueses que vinham para o Brasil do
que brasileiros que iam para Portugal. Em 1973 as novelas brasileiras ainda não haviam
atingido Portugal. A primeira, cerca de dois anos depois, foi Gabriela, Cravo e Canela, um
sucesso tão retumbante que obrigava até que as sessões de cinema fossem interrompidas
para que ninguém perdesse o capítulo daquele dia. A partir dessa época, o modo de falar
dos brasileiros, nossos sotaques e nossas palavras de origem indígena, como Ipanema e
Itaipu, passaram a ser mais frequentemente ouvidos em Portugal.
Quando o táxi parou em um sinal de trânsito (semáforo, para paulistas), o motorista
perguntou: “Que idioma estão a falar, que não é português e eu percebo tudo?”
196 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
pErguntAs Em lisbOA
Em 1977 eu estava dirigindo em Lisboa tentando ir à Direcção Nacional de Águas,
que ficava na Rua São Mamede ao Caldas. De início, algumas dificuldades. Naquela época,
estacionar em Lisboa era extremamente difícil, não havia mapeamento das ruas e por
cima havia a Rua São Mamede. Eu sabia que, descendo da praça Marquês de Pombal em
direção ao Rossio, pela Avenida da Liberdade, teria que virar à direita antes de chegar ao
acesso ao Bairro Alto. Parei o carro e perguntei a um transeunte: “Bom dia, o senhor sabe
onde é a Rua São Mamede ao Caldas?” A resposta foi exata: “Pois.” Percebi imediatamente
que a minha pergunta havia sido erradamente formulada. Tentei corrigir: “Pode o senhor
me informar como devo fazer para ir a Rua São Mamede ao Caldas?” Novamente a mesma
resposta exata: “Pois.” Novamente entendi que errei na pergunta. Finalmente pronunciei
a frase certa: “Por favor, me diga como ir à Rua São Mamede ao Caldas.” Muito gentil, o
transeunte me respondeu apontando em direção ao Rossio e disse: “Estás a ver aquela
carrinha que lá vai, descendo e dobrando a esquerda? Pois lá não é.” E, apontando agora
para a direita, prosseguiu: “Suba à sua direita, siga sempre em frente.”
O mOrtO
O geólogo brasileiro Paulo Ciro Encodine estava cursando pós-graduação em
hidrogeologia em Coimbra, Portugal. Tradição na Universidade, havia em um dos
grandes saguões o velório de um ex-professor. Ao descer as escadas e penetrar no saguão,
curioso para saber quem era o defunto, Encodine perguntou discretamente à meia voz a
um dos consternados presentes: “Quem é o morto?” Disfarçadamente e sem dizer uma só
palavra, o perguntado com o indicador apontou para o caixão.
O grAnDE chOquE
Desde quando era aluno, o professor Fernando Barata desenvolveu grande afeição
e orgulho pela Escola Politécnica da UFRJ. Ele externou que, uma de suas mais ricas
experiências foi o início da carreira de docente na então chamada Escola Nacional de
Engenharia da Universidade do Brasil. Sempre considerou que os alunos dessa Escola,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 197
pioneira do ensino de engenharia no Brasil, eram o que de melhor poderia haver no País.
O professor Eduardo Barbosa Cordeiro dizia que o professor Barata não acreditava
ser possível que um aluno da Escola pudesse colar em um exame. Em 1963, no governo
de João Belchior Marques Goulart, o Ministério da Educação e Cultura fez admitir na
Escola uma turma de quase 600 alunos, praticamente o dobro das turmas anteriores.
Foi necessário que parte do grupo cursasse o ciclo básico no prédio do Largo de São
Francisco. Em 1966 essa turma, já no quarto ano letivo, tinha no curso de engenharia
civil a disciplina de mecânica dos solos. O professor Barata marcou uma prova para ser
realizada à noite no prédio do Largo de São Francisco. Como era funcionário do estado
do Rio de Janeiro, o professor Barata imprimiu as folhas de questões no Departamento
de Estradas de Rodagem (DER). Um dos funcionários que estava fazendo a impressão,
de brincadeira, disse que eles poderiam ganhar uma boa quantia se levassem uma via
das folhas de questões antes da prova para vendê-la aos alunos. O professor Barata, não
entendendo como brincadeira, se indignou e garantiu aos funcionários do DER que,
caso eles tentassem fazer aquilo, seriam exemplarmente corridos do prédio. Nessa noite,
durante a prova, por puro acaso, o professor Barata surpreendeu um grupo de alunos
fazendo a prova fora de sala e, evidentemente, colando. Foi uma decepção marcante.
Os cincO lOngOs minutOs
Reconhecidamente, o professor Fernando Barata necessita de tempo para externar
de maneira precisa suas ideias, pois ele invariavelmente vai buscar as origens dos fatos.
Em 1975, a Coppe-UFRJ realizou um interessante Simpósio sobre Instrumentação em
Mecânica dos Solos. Em uma das sessões, atuava como coordenador de debates o professor
Willy Alvarenga Lacerda.
Após a exposição do professor Dirceu Alencar Veloso no tema sobre fundações
profundas, havia muitos pedidos de inscrição para os debates. Um dos que desejavam
trazer contribuição era o professor Barata. O professor Willy Lacerda só podia dividir
o tempo necessário a cada debatedor, o que resultou em cinco minutos para cada um.
Tempo insuficiente para o que o professor Barata queria expor. Quando os debates foram
iniciados, o professor Willy, ao ver a relação de debatedores inscritos, chamou o professor
Barata. Após os cinco minutos regulamentares, o professor Barata ainda estava falando
das diversas gerações da mecânica dos solos no Brasil e dirigindo-se ao engenheiro Oldair
198 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Grillo, pioneiro da geotecnia entre nós: “Dr. Grillo, levante-se para que os jovens possam
apreciar a sua estatura.” O tempo se esgotou e o professor Willy chamou o debatedor
seguinte, o engenheiro Barata, que prosseguiu mencionando as turmas formadas
na Escola de Engenharia, hoje Escola Politécnica, da UFRJ em mecânica dos solos,
classificando a minha turma como a Turma Zero, por ter sido aquela que, apesar de não
ter cursado a ênfase de mecânica dos solos, possibilitou a instalação dessa ênfase a partir
do ano seguinte, no curso de engenharia civil. Nessa altura, os segundos cinco minutos
se escoaram e o professor Willy convocou o terceiro debatedor, o consultor Barata. Mais
cinco minutos e Willy convocou o inscrito seguinte, que, pela lista, era o pesquisador
Barata. E só então ele entrou no escopo do tema e da exposição do professor Dirceu
Veloso, por mais de dez minutos adicionais.
tErzAghi
O professor Barata sempre manteve extremo respeito pelos que nos antecederam e
atuaram com destaque na profissão. Seu grande entusiasmo e sua dedicação ímpar também
impressionavam seus alunos. As primeiras aulas de mecânica dos solos no quarto ano
do curso de engenheiros civis na Escola Politécnica da UFRJ eram dedicadas à história
desse ramo da tecnologia, que foi fundado por Karl Terzaghi, originalmente engenheiro
mecânico, nascido na Áustria e que por pouco escapou de falecer no Brasil. Isso porque,
quando jovem, entusiasmado com a propaganda enganosa que era feita para angariar
profissionais de todos os níveis para a construção da Ferrovia Madeira Mamoré – onde
elevadíssima percentagem dos contratados morreu ou adquiriu graves doenças tropicais –,
se candidatou, mas desistiu de vir na última hora.
Como Terzaghi, além de fundador, foi também o mais destacado profissional do ramo
até seu falecimento, era inevitável que seu nome fosse mencionado várias vezes durante
essas aulas iniciais. Em 1966, já na terceira aula, de tanto ouvir referências a Terzaghi,
os alunos resolveram fazer um bolo de apostas para ver quem acertava quantas vezes
a palavra Terzaghi era mencionada no tempo regulamentar da aula. A expectativa
aumentava à medida que o tempo transcorria. Foi implantado um regulamento para a
contagem e nomeado, entre os alunos, um juiz responsável para indicar o vencedor. O
professor, provavelmente, até a divulgação desse texto, nunca tenha sabido disso.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 199
águA quE nãO prEstA
O engenheiro José Marcos Donadon relata episódios pitorescos ocorridos na construção
da hidroelétrica de Itaipu. No dia do aniversário de sua esposa ele saiu da obra para uma
rápida fugida à cidade de Foz do Iguaçu para comprar flores e redigir um cartão amoroso.
Na avenida Brasil recebe um rádio do chefe. “Atenção Donadon, qual é a sua localização?”.
Em resposta, Donadon disse, com segurança: Porto de areia, chefe.” O chefe disse: Então
olhe no retrovisor.” Donadon sem jeito: “Chefe, você também dando um nó na cidade?”
Donadon era algumas vezes selecionado para acompanhar visitantes. Alguns grupos
eram difíceis. Uma comissão de iranianos perguntou qual era a defesa da hidroelétrica
contra mísseis. Em outra ocasião, ele ciceroneou um grupo de “ambientalistas” fanáticos
contra barragens que chegaram a ser inconvenientes ante as explicações pacientemente
dadas às suas questões desprovidas de qualquer lógica. Ao final da visita um dos membros
do grupo se dirigiu a ele: “Você, e eu falo em nome do grupo, não conseguiu nos convencer
da sua hidroeletricidade, uma vez que, depois de deixar a energia nas turbinas, a água é
devolvida ao rio sem nenhuma energia.”
WAshingtOn
Em 1973, fiz um período de treinamento na Chas. T. Main, prestigiosa empresa de
engenharia consultiva sediada em Boston, nos Estados Unidos. Ao final do período, o
geólogo Charles Benziger visitou comigo obras de hidroelétricas reversíveis na Nova
Inglaterra e no estado de Nova York. Patriota entusiasmado e republicano devoto, ele
foi me mostrando também, sempre que possível, lugares e prédios remanescentes da
guerra da independência. Na terceira vez que ele apontou para mais uma casa em que
George Washington havia pernoitado, eu disse, provocando sua ira: “Agora entendo por
que vocês o chamam de Pai da Pátria.”
O gEólOgO
No pós-guerra (Segunda Guerra Mundial), a Região Sudeste estava despertando para
grandes obras de engenharia e não havia ainda especialista em geologia de engenharia,
200 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
além de serem muito poucos os geólogos no País. O departamento de engenharia da
Servix, que veio a se transformar na Engevix, era dirigido por engenheiros alemães sob
a liderança de Hans L. Heinzelmann. Ele, vislumbrando a necessidade da atuação de
geólogo nos projetos, contratou o jovem paleontólogo austríaco Hermann Haberlehner,
que veio para o Rio de Janeiro com a esposa Bertha e filhos, tendo permanecido no Brasil
por longos anos até seu falecimento. Nas décadas em que viveu entre nós, foi professor
do Instituto de Geociências da UFRJ e formou alguns dos mais destacados geólogos
de engenharia do País. Dias depois de sua chegada, Heinzelmann convidou a família
Haberlehner para um almoço em sua casa de campo no município de Petrópolis, tendo
enviado carro com motorista para conduzir a família. Ao chegarem, Heinzelmann
perguntou ao motorista como havia sido a viagem. O motorista disse que a viagem havia
sido boa a menos das diversas paradas que foi obrigado a fazer a pedido do novo geólogo
da empresa. Deslumbrado com formações geológicas muito diferentes das formações da
sua terra natal, Haberlehner estava tomando contato com afloramentos de gnaisse e com
solos residuais. Como qualquer geólogo, Haberlehner usava o seu martelo profissional
como escala nas suas fotografias. O motorista acrescentou: “Dr. Heinzelmann, este vai
dar trabalho. Deve ser completamente doido. Imagina o senhor que a toda hora ele pedia
que eu parasse o carro e saía para fotografar um martelo.”
A ElEiçãO surprEsA
No início de 1989, o Comitê Argentino propôs a minha candidatura para vice-presidente
da Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB). Foi bem mais por amizade do
que por merecimento. Entretanto, surgiu um problema aparentemente intransponível, pois,
pouco antes do término do prazo para lançamento de candidaturas, foram lançados mais
dois outros candidatos de maior competência e prestígio: um canadense, destacado dirigente
técnico da Hydro Quebec, e um mexicano, que já era professor universitário quando eu nascia.
Vi que era óbvio que eu não teria a menor chance. Assim, antes da eleição se processar,
preparei umas palavras elegantes como candidato derrotado, elogiando a escolha que os
executivos da CIGB fariam. Para minha surpresa, fui eleito no primeiro turno e tive que
arrumar as ideias em um muito curto espaço de tempo, ao caminhar para o microfone para
um discurso de agradecimento. Evidentemente foi um discurso curto no qual, confesso, não
lembro o que disse.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 201
niEmEyEr
Respeitado em todo mundo por sua arte, o arquiteto Oscar Niemeyer surpreendia
sempre com seus projetos arrojados com traços não convencionais. Ao falecer,
em dezembro de 2012, deixou um legado de construções que são verdadeiras
esculturas. Ao longo de sua vida foi sempre muito festejado, admirado pela beleza
das linhas e superfícies curvas em seus projetos. “Não é o ângulo reto que me atrai,
nem a reta dura, inflexível. O que me atrai são as curvas livres e sensuais, as curvas
que encontro nas montanhas de meu País, nos cursos sinuosos de seus rios, nas
ondas do mar, no corpo da mulher preferida.”
Dignos também de admiração são os engenheiros que calcularam as estruturas
desenhadas por Niemeyer, tais como José Carlos Sussekind, que não muito
raramente tinha que dizer ao artista que estruturalmente a obra não poderia
ser construída, e Bruno Contarini, sobre o qual Henri Uziel, ao lançá-lo como
candidato ao título de Engenheiro Eminente, resumiu seu currículo dizendo apenas
que Contarini era calculista dos projetos de Oscar Niemeyer. Também dignos de
admiração foram os engenheiros construtores, como os irmãos Pedro e Gustavo
Vieira de Castro, que muito raramente reclamavam pelo esforço que tinham que
fazer para conseguir soluções construtivas para as arrojadas estruturas de Brasília
durante a sua construção no final dos anos 1950.
Na sua juventude, no início do século passado, Niemeyer, tricolor de coração, atuou
no time de futebol juvenil do Fluminense. Quando perguntaram a ele em que posição
jogava, respondeu com senso de humor: “Não era bom de bola, mas tinha um tio que era
diretor. Jogava na meia-direita. Foi a única vez na vida que estive à direita”, mencionou
Niemeyer, admirador de Stalin, Lenin, Castro, Chaves. Ele era comunista convicto,
mesmo após a queda do muro de Berlim, e se referia a Mikhail Gorbachev como “aquele
que traiu”, sem citar o nome, responsabilizando-o pelo fim da União Soviética.
O filhO
Durante os treinamentos que fiz em 1973 – no US Army Corps of Engineers,
no Bureau of Reclamation, na Hydro Quebec e no LNEC –, coletei muitas imagens
extremamente didáticas que eu projetava durante minhas aulas na Poli-UFRJ,
202 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
além de outras de visitas mais recentes a obras. Em algumas imagens antigas, eu
aparecia. Passados vários anos, como eu ia envelhecendo e as imagens não, percebi
que o eu que aparecia nas imagens era bem mais moço do que o eu que estava
ministrando a aula. Resolvi, então, dizer que a pessoa que estava projetada na tela
era o meu filho. Terminada uma das aulas, uma aluna perguntou se o meu filho era
também barrageiro e se ele poderia vir dar a aula seguinte.
A primEirA prOvA
Considerando as dificuldades de acesso e as distâncias dos bairros residenciais
do Rio de Janeiro à Cidade Universitária, os professores foram ficando mais
condescendentes com atrasos dos alunos (e deles mesmos) no início das primeiras
aulas de cada dia, que eram oficialmente marcadas para serem iniciadas às 7 horas.
Com o objetivo de ter mais tempo no resto do dia, eu sempre marcava as minhas
aulas para esse primeiro horário.
Entretanto, sempre que eu chegava ao Bloco D da engenharia civil antes das
7 horas, encontrava lá apenas o professor Dirceu Alencar Veloso, condecorado
como Engenheiro Eminente pelo seu valor, pelas suas importantes contribuições
à Profissão e pela sua dedicação sem igual ao curso de engenharia de estruturas.
Durante muitos anos, um dos dias de minhas aulas na disciplina de Aproveitamentos
Hidroelétricos era a segunda-feira. Assim, todos os anos em março, a primeira aula
do nono e décimo períodos na especialização de hidráulica era ministrada por mim.
Para não perder precioso tempo à espera dos alunos, na primeira aula do
período eu os submetia a uma prova. Sempre apareciam algumas contestações, tais
como: “Mestre, o senhor ainda não ensinou nada e já está cobrando?” Eu respondia
que eles estavam há mais de quatro anos na Escola Politécnica e já deveriam ter
aprendido alguma coisa.
Ao entrarem na sala, os alunos viam nas carteiras as folhas de prova e as
questões; quando olhavam para a lousa percebiam que a prova tinha início às 7
horas e término às 7h40. Como por anos a fio eles estavam acostumados a chegar
às 7h30, muito pouco tempo restava mesmo para aqueles que achavam que
estariam dentro do horário. Embora as turmas fossem pequenas, havia sempre um
aluno retardatário que chegava às 7h40 ou pouco depois. Para desespero destes,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 203
eu pedia para escreverem o nome na folha de prova e a recolhia sem que nenhuma
questão tivesse sido respondida. Para compensar, passei a relacionar 12 questões,
cada uma valendo um ponto. Houve um ano em que fui pego: Bruno Moczydlower,
brilhante aluno, respondeu 11 questões corretamente. Fiquei devendo um ponto.
Na segunda avaliação, tive que ser extremamente rigoroso para que ele merecesse
nove, ficando, assim, com dois dez.
Em uma oportunidade, um aluno entrou na sala faltando pouco menos de dez
minutos para o fim da prova. Apressou-se em procurar rapidamente responder
algumas questões e, ao término do prazo, recolhi as provas. Na aula seguinte,
divulguei as notas. Esse aluno tirou zero. Ele veio reclamar dizendo que havia
escrito e calculado algumas coisas e que, portanto, não merecia zero. Concordei com
ele, e acrescentei: “Realmente você não merece zero. Porém, a Universidade não me
permite lançar notas negativas e, portanto, você foi beneficiado: vai ficar com zero.”
Pintava o horror, mas, consultando os veteranos já formados, os alunos ficavam
sabendo que sempre passavam e que aquela nota não era para valer. Entretanto, meu
objetivo era alcançado, pois não mais chegavam depois das 7 horas em minhas aulas.
minhA primEirA viAgEm
Minha primeira viagem de trabalho após a formatura, já como engenheiro, foi aos
locais onde posteriormente foram implantadas as hidroelétricas de Marimbondo
e Porto Colômbia, no rio Grande, limite estadual entre São Paulo e Minas Gerais.
Fomos eu e o engenheiro Humberto Pate, meu chefe imediato.
Viajamos em um pequeno avião de Furnas (PT-CEZ) até a usina de Furnas
e daí à obra da usina de Estreito, as duas também no rio Grande. De Estreito
em diante, fomos em um avião ainda menor (PT-BXS) pilotado pelo Morato, que
contava histórias inverossímeis. Para leitores jovens, o que é relatado a seguir vai
também parecer inverossímil, pois a região em que os acontecimentos ocorreram,
atualmente, dispõe de excelente infraestrutura, com atividade econômica pujante.
Ao sobrevoarmos o local de Marimbondo, Morato deu voos rasantes sobre a
pequena vila mineira de Fronteira, município de Frutal, para que um velho Ford que
servia de táxi se deslocasse até a pista de pouso que ficava na vila paulista de Icém,
na outra margem do rio. Quando finalmente vimos que o velho Ford se deslocava
204 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
para Icém, sobrevoamos a pista de pouso, evidentemente não pavimentada. Como
a pista ficava no meio de um pasto, novos rasantes foram necessários para afastar o
gado. Depois do sobrevoo sobre a área da hidroelétrica e de tantos rasantes, eu já estava
mareado. Meu consolo é que o Pate estava muito pior.
Ao pousarmos, dependemos da habilidade do Morato, que teve que driblar os montes
de cupim que estavam na pista. Para mim foi uma viagem inesquecível. Eu tinha estudado
o projeto e os relatórios dos que nos antecederam, inclusive de expedição do Instituto
Geológico e Geográfico de São Paulo, que encontrou no local uma sucuri de 12 metros
de comprimento. No sítio do aproveitamento cheio de ilhas, o rio Grande caía em duas
cachoeiras, a da margem direita chamada de Patos Mineiros e a da margem esquerda,
Patos Paulistas. Logo a jusante dessas cachoeiras o rio se dividia em dois canais unidos
pelo canal do Chupador, cujo fluxo, conforme a descarga afluente, mudava de direção.
A jusante do canal do Chupador, o canal da margem direita era denominado de canal
do Ferrador, no qual a maior parte da vazão era escoada em corredeira de impressionante
violência; e o canal da margem esquerda era de baixo gradiente, denominado Braço
Morto, que despencava na cachoeira das Andorinhas a jusante da qual os dois canais
voltam a fluir juntos na mesma calha natural.
Atravessar o canal do Ferrador era um ato de heroísmo, pois era feito em pequenas
cestas puxadas por cordas e penduradas em cabos de aço. Só mesmo para pescadores
fanáticos. Tivemos oportunidade de ver jiboia, cascavel, anta e capivara. Não vimos,
mas havia jacarés.
Quando retornei ao Rio de Janeiro, esperei o almoço de domingo, quando toda
a família ficava reunida para contar as aventuras. Ao concluir, minha avó, de saúde
invejável, me disse: “Flavio, não se atreva a tomar banho de rio na Tabacana, que fica
no início do canal do Ferrador, bem em frente ao canal do Chupador. A correnteza é
muito forte. Não vá também ao salto das Andorinhas ao cair da tarde, pois ali há muitos
mosquitos.” Para meu espanto, ela havia estado em Marimbondo ainda no século XIX.
Minha aventura ficou esvaziada.
DiA DOs pAis
Ainda bem que o Dia dos Pais cai sempre aos domingos. Quando meus filhos
eram pequenos, havia sempre um evento no Colégio Santa Marcelina, situado no
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 205
Alto da Boa Vista, bairro do Rio de Janeiro. Como barrageiro, mesmo mais voltado
para estudos e projetos, eu sempre viajava muito. Percebi isso quando, em um desses
eventos de Dia dos Pais, o Colégio Santa Marcelina, onde meus filhos estudavam,
organizou uma exposição de desenhos. Cada criança deveria desenhar o próprio pai.
O desenho que o meu filho fez era de um homem com uma mala na mão.
DAr O pAís DE vOltA AOs ínDiOs
A expressão em inglês usada por americanos se algo pode dar errado apesar de
ser óbvio, “we might as well give the country back to the indians”, pode ser aplicada
ao Brasil na época do início do governo Collor. O Departamento Nacional de Obras
de Saneamento (DNOS) foi um órgão federal que, entre 1940 e 1990, implantou
diversas obras hidráulicas no País. O DNOS foi originado de uma comissão, criada
em 1933, com o objetivo de sanear a então insalubre Baixada Fluminense.
Nesse período sobressaiu-se seu diretor, engenheiro Hildebrando de Araújo
Góes. Posteriormente, após 1940, dentre as principais obras hidráulicas implantadas
destacam-se construções visando a produção de energia elétrica, abastecimento
de água, irrigação, drenagem, controle de cheias, paisagismo urbano, controle de
estuário e regularização de descargas. Esses projetos e obras distinguiram muitos
dos mais destacados engenheiros nacionais, entre os quais Paulo José Poggi Pereira
e Otto Pfafstetter.
Como regra geral, as obras hidráulicas, após concluídas, tinham a sua gestão
transferidas para órgãos estaduais ou municipais. Ou, ainda, para empresas estatais.
Um dos primeiros atos do governo Collor foi extinguir o DNOS sem que tivesse
havido qualquer preocupação a respeito da gestão das obras que ainda estavam sob
a responsabilidade da instituição, mesmo aquelas que ainda estavam em construção.
Uma dessas obras era a Barragem Norte, principal unidade do sistema de defesa
contra inundações do vale do rio Itajaí-Açu. A barragem é um maciço de 1,58 milhão
de metros cúbicos de terra compactada com 63 metros de altura, com capacidade de
reter 263 milhões de metros cúbicos. Pouco antes do final de construção, a barragem
abandonada foi ocupada pelos índios da área, que, por muitos anos, exerceram seu
controle sem a menor formação técnica para tal. Esse e outros casos daquela época
levavam a se pensar que estaríamos vivendo o início da devolução do País aos índios.
206 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
mOrtOs hOmEnAgEADOs
Engenheiros, principalmente os civis de obras de infraestrutura, estão entre
os que mais se arriscam na profissão. Em épocas passadas, em que as condições
de deslocamento eram menos seguras do que as atuais, os falecimentos eram
mais frequentes. O primeiro engenheiro do Departamento Nacional de Obras de
Saneamento (DNOS) a falecer em serviço foi José Maia Filho, morto em um acidente
de avião em 1950, no Rio Grande do Sul. Seu nome foi dado a uma barragem
construída pelo DNOS em seu estado natal, o mesmo em que perdeu a vida.
Anos depois, houve um abaixo-assinado para que fosse dado o nome a uma
barragem que iria ser construída no Ceará ao ex-diretor-geral do DNOS, engenheiro
Raimundo Cláudio Correia Leitão, que era cearense. A barragem havia sido projetada
pelo professor Fernando Emmanuel Barata, que na época do projeto era engenheiro
júnior. O diretor-geral do DNOS encaminhou a intenção da diretoria ao engenheiro
Cláudio Leitão, alvo da homenagem. Ele recusou a homenagem, registrando na sua
resposta que preferia permanecer vivo, uma vez que havia uma lei que não permitia
dar nome de pessoas vivas a obras do governo.
Pouco tempo depois, o destino possibilitou a homenagem que os membros do DNOS
queriam proporcionar, pois o engenheiro Cláudio Leitão faleceu em serviço em um
acidente de avião. Só então foi dado oficialmente o nome de Cláudio Leitão à barragem.
plAnEJAmEntO EnErgéticO DA hiDrOElétricA DE itumbiArA
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, floresciam os primeiros modelos
matemáticos aplicados em planejamentos energéticos para definição de projetos
hidroelétricos. Destaque naquela época, o engenheiro Sérgio de Salvo Brito, chefe do
Departamento de Planejamento Energético de Furnas, subordinado à diretoria de operação,
estava desenvolvendo a análise de alternativas de projeto da hidroelétrica de Itumbiara.
A diretoria técnica era favorável a uma alternativa de projeto com maior
conteúdo energético e barragem mais alta, alterando a partição de queda que havia
sido recomendada pelos estudos de inventário feitos pela Canambra, eliminando
hidroelétricas a montante no rio Paranaíba e em afluente, aumentando a capacidade de
regularização de descargas no próprio reservatório e beneficiando as usinas a jusante.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 207
O modelo matemático, entretanto, indicava que deveria ser mantida a partição de
queda que havia sido recomendada pela Canambra e era essa a posição do Sérgio Brito.
Em uma reunião na Eletrobras, com a participação do engenheiro Léo Amaral
Penna, diretor de engenharia e planejamento, em vez de a discussão ser voltada
para a modelagem, para desespero do Sérgio Brito, Léo Penna iniciou a reunião
perguntando: “Lyra, me diga como é o dam site”. Daí para frente a reunião progrediu
em discussões sobre hidrologia, hidráulica fluvial, geologia, geotecnia, arranjos
gerais, esquemas de desvio de rio, estruturas e equipamentos. Sérgio fazia “caras e
bocas” e não conseguia desviar o assunto dos dois famosos engenheiros de gerações
anteriores, que se deliciavam em discussões de engenharia civil e eletromecânica.
A alternativa adotada foi a da barragem alta, como queríamos na diretoria
técnica. Confesso que a decisão foi na base da intuição, admitindo que as
conjunturas nacional e internacional poderiam vir a ser alteradas no futuro. Não
muito tempo depois, no final de 1973, aconteceu o primeiro choque do petróleo.
Já no ano seguinte, Sérgio Brito retomou os estudos energéticos com novos
parâmetros devidos aos preços de referência. E concluiu que a alternativa que
havia sido adotada com barragem alta tinha passado a ser a mais interessante.
Hoje, com os novos projetos hidroelétricos sendo desenvolvidos com operação a fio
d’água, em que os reservatórios são minimizados e desprovidos de capacidade de
regularização de descargas devido a objeções de opositores que se autoproclamam
ambientalistas, a seleção da alternativa com barragem alta em Itumbiara se mostra
como tendo sido fundamental.
O rAciOnAmEntO
Em janeiro de 2013, o País vivenciava sucessivos grandes apagões que
envolveram, ao mesmo tempo, vários estados em amplas áreas do País (seis a partir
de final de setembro de 2012) e a perspectiva de racionamento de energia elétrica
por estar o conjunto de reservatórios dos sistemas Sul e Sudeste Centro-Oeste
atingindo a curva de aversão ao risco mesmo com todas as usinas termoelétricas
operando a plena carga. Nessa época, foi realizada em Brasília uma reunião do
Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico.
Dada a sua importância para a economia nacional, o assunto era notícia em todos
208 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
os meios de comunicação. Uma avalanche de jornalistas se dirigiu ao Ministério de
Minas e Energia. Eles esperaram o término da reunião com esperanças de poderem
colher muita matéria para seus veículos de comunicação. Ao final, a assessoria da
pasta informou que o ministro Edison Lobão responderia somente a oito perguntas.
Um dos jornalistas presentes disse: “Já começou o racionamento.” Diante da
perplexidade de todos os outros, que pensavam que ele tinha um furo de reportagem,
ele adicionou: “Calma, gente, por enquanto o racionamento é só de perguntas.”
cOntAbiliDADE inOvADOrA
Quando assumiu o governo do estado de São Paulo, uma desagradável surpresa
aguardava o engenheiro Mário Covas: seu antecessor, Luiz Antônio Fleury, havia
vendido e recebido antecipadamente, após ter concedido descontos incentivadores,
a energia que ainda seria gerada pelas empresas paulistas de energia elétrica,
nomeadamente CESP, CPFL e Eletropaulo. Assim, essas empresas tiveram que
gerar sem receber durante expressiva parte do governo Covas.
O mesmo esquema engenhoso foi utilizado em 2013 pelo governo federal, na
ânsia de conceder abatimentos nas tarifas de energia elétrica ao antecipar receitas
correspondentes aos recebíveis de Itaipu por meio de financiamento do BNDES,
em uma operação classificada como contabilidade inovadora ou alquimia fiscal. O
contribuinte, mais essa vez, passou a pagar pelo usuário.
rEAçãO pArAguAiA
Vinte e três senadores paraguaios consideraram que o senador Victor Bogado
não havia incorrido em nenhum erro ao nomear a babá de sua filha para uma
posição na Itaipu Binacional, empresa detentora da maior hidroelétrica do mundo
(apesar de não ser a de maior capacidade instalada).
Ancelmo Gois relata em sua coluna no O Globo em novembro de 2013 que, sob
questionamento, a votação no senado paraguaio foi esmagadoramente contrária
à perda da imunidade do parlamentar. A partir daí, vários estabelecimentos
comerciais estamparam em suas vitrines que os 23 senadores não eram bem-vindos
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 209
e passaram a ser postos para fora das lojas, postos de gasolina, restaurantes etc.
O senado voltou atrás e votou, por unanimidade menos um voto, a cassação
da imunidade parlamentar de Victor Bogado. O exemplo paraguaio, infelizmente,
ainda não é seguido por aqui: o deputado estadual Gustavo Perella empregou
na Assembleia Legislativa o seu piloto Rogério Antunes, que foi pilhado no
helicóptero de Perella, abastecido com combustível pago pela Assembleia, com 445
quilos de cocaína. Demitiram o piloto. No mesmo mês, o Congresso brasileiro, na
calada da noite e sem quórum regimental, anulou a sessão que depôs o presidente
João Belchior Marques Goulart da presidência da República em 1964. No O Globo
comentei o fato lembrando Roberto Campos, segundo o qual: “No Brasil nem o
passado é previsível.”
vErbA E rEcursO
Assim que a Light foi estatizada no governo Ernesto Geisel, a Eletrobras
convocou uma reunião com os dirigentes da Light para colocá-los a par do jeito
estatal de gestão empresarial. A mais importante mensagem, referida com a maior
ênfase, era que nenhum contrato poderia ser iniciado sem que houvesse verba
a ele destinada. O engenheiro Wilson D’Andrea, um dos superintendentes da
Light, manifestou sua surpresa quanto ao descaso administrativo e financeiro:
“Na Light canadense era diferente: qualquer contrato, além da verba assegurada,
só podia ser iniciado se, e só se, houvesse um carimbo do tesoureiro situado no
segundo andar da sede em São Paulo, garantindo que o recurso integral estava
garantido e em caixa.”
EngEnhOsiDADE
A usina hidroelétrica de Curuá-Una foi implantada em um afluente do rio
Amazonas para o suprimento da cidade de Santarém (PA). Sua fundação é
constituída, basicamente, por uma formação de rocha arenítica e de areia, ambas
de elevadas permeabilidades. As estruturas de concreto possuem galerias para as
quais afluem as águas que percolam em subsuperfície, captadas por uma cortina de
210 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
drenagem. A vila de operadores da usina se situa em uma das margens do rio e é
abastecida por bombas de recalque que captam água na margem do rio.
Como ocasionalmente as bombas apresentavam problemas, a manutenção não
era eficiente e substituições de peças eram difíceis, ocorria com certa frequência
desabastecimento de água à vila de operadores. Em uma inspeção técnica de
segurança, foi detectada a solução adotada pelos operadores para esse problema:
como a cortina de drenagem captava as águas percoladas pela fundação, já filtradas,
as extremidades superiores dos drenos foram todas entupidas, menos a de uma deles,
que foi conectada por uma tubulação flexível à caixa-d’água da vila de operadores
situada em cota elevada. Sem ter consciência do perigo, os operadores elevaram
em muito a subpressão, importante elemento desestabilizador da barragem. Os
inspetores propiciaram a rápida desobstrução dos drenos.
pAulO AfOnsO E O prAgmAtismO AmEricAnO
Na cachoeira de Paulo Afonso o rio São Francisco despencava por sobre uma espessa
rocha granítica em vários braços, com uma vazão média superior a 2.000 m³/s. A
primeira imagem da cachoeira foi captada em 1647 pelos pincéis de Franz Post, notável
pintor holandês, vindo na comitiva de Maurício de Nassau. Dom Pedro II, por ocasião de
sua visita à cachoeira no dia 20 de outubro de 1859, reproduziu a lápis a deslumbrante
paisagem que via das imponentes quedas d’água. Na primeira metade do século passado,
a cachoeira permanecia impressionando os que a visitavam. Alceu Amoroso Lima
relatou no periódico O Jornal declarações de três estrangeiros que estiveram com ele a
admirar a pujança das quedas: um francês disse “C’est très chic”, um hindu exclamou “It is
just wonderful” e um americano perguntou “How much hydropower is lost here every day?”
DElmirO gOuvEiA
Em 1903, o cearense Delmiro Augusto da Silva Gouveia (1863 - 1917), após desgastes
políticos e econômicos em Recife, fixou residência em Pedra (AL), a 23 quilômetros da
cachoeira de Paulo Afonso.
Depois de ver seus mais ambiciosos planos serem desfeitos pela obtusidade política,
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 211
planos estes relatados a seguir, que, no início do século passado, teriam modificado todo
o Nordeste, Delmiro Gouveia, por conta própria e com muito esforço, implantou em um
dos braços da cachoeira de Paulo Afonso uma pequena hidroelétrica com potência de
1.500 HP (1.102 kW), com três unidades geradoras sob 42 metros de queda bruta. A
casa de força encravada na encosta rochosa da margem alagoana da cachoeira abrigava
equipamentos adquiridos por Delmiro em viagem à Alemanha, Suíça e Inglaterra.
Ele contratou engenharia italiana e francesa para projeto e montagem da usina, que
foi inaugurada no dia 26 de janeiro de 1913, tendo sido denominada de Angiquinho,
a primeira hidroelétrica do Nordeste. Para vencer os opositores em Pernambuco
e na capital federal, contou com o apoio político do governo de Alagoas e de pessoas
influentes, como Alfredo de Maya e o deputado Demócrito Gracindo.
A hidroelétrica fornecia energia para a fábrica de linhas de costura de Delmiro
Gouveia em Pedra, para a vila operária e para o recalque de água para abastecimento, ao
abrigo de concessão dada pelo Estado de Alagoas, e operou até 1960 quando, atingida
por uma grande enchente do rio São Francisco, foi desativada. A partir de 30 de
novembro de 2006, as edificações e os equipamentos foram tombados pelo Patrimônio
Histórico, Artístico e Natural do Estado de Alagoas e hoje podem ser visitados por
estudiosos e turistas.
Os planos grandiosos que teriam modificado o Nordeste e que não puderam ser
implantados são relatados a seguir. Em 1909, Delmiro Gouveia recebeu sigilosamente
um grupo de engenheiros americanos para estudar a potencialidade hidroenergética
da cachoeira de Paulo Afonso. Na época, americanos e canadenses já haviam iniciado
a exploração do potencial de Niagara Falls, na fronteira dos dois países. Delmiro e
Mr. Moore, capitalista americano, pretendiam promover, em associação, a exploração
do potencial de Paulo Afonso, possibilitando o fornecimento de energia a diversas
cidades e o fomento da industrialização da região pela ampla oferta de energia elétrica.
Os americanos investiriam no projeto se, e só se, houvesse expressa concordância e
autorização dos governos estaduais.
Entretanto, o governador de Pernambuco, Dantas Barreto, mesmo com a promessa
de que a eletrificação chegaria a Recife, categoricamente recusou: “O negócio que o
senhor propõe é tão vantajoso para o Estado que deve envolver alguma velharia.”
Sem os americanos, a eletrificação foi conduzida apenas por Delmiro Gouveia, em
dimensão muito mais reduzida, com a implantação da pequena usina de Angiquinho.
212 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
EugêniO guDin x pAulO AfOnsO
Eugênio Gudin, ícone da engenharia e da economia, era ministro da Fazenda
no governo do general Eurico Gaspar Dutra na segunda metade dos anos 1940.
Lideranças nordestinas sob a batuta de Apolônio Sales, ministro da Agricultura
– ministério em que a energia elétrica era incluída –, pressionavam o governo
federal para que fossem iniciados o projeto e a obra da hidroelétrica de Paulo
Afonso, no rio São Francisco.
O consumo de energia elétrica no Nordeste era extremamente incipiente, ao
passo que havia intensa carência de energia elétrica na Região Sudeste, onde se
concentrava o desenvolvimento nacional. Com recursos federais limitadíssimos e
tendo em vista as grandes dificuldades da obra proposta no rio São Francisco, aliadas
à falta de experiência da engenharia nacional, Gudin era favorável que recursos
fossem prioritariamente dirigidos para a Região Sudeste. Apolônio Salles conseguiu
vencer a queda de braço e a hidroelétrica de Paulo Afonso I foi implantada.
Embora na época não fosse quantificada, havia no Nordeste incrível demanda
reprimida, que fez com que a energia de Paulo Afonso I fosse rapidamente absorvida,
dando origem a ampliações no mesmo local, denominadas Paulo Afonso II, III e IV.
Passadas quase duas décadas da decisão favorável à implantação da hidroelétrica,
Eugênio Gudin, com modéstia ímpar e rara nos dias atuais, se retrata em entrevista
ao jornal O Globo em 8 de maio de 1963:
Quando em 1945 foi discutida na Comissão de Planejamento a questão da utilização da cachoeira de Paulo Afonso, eu declarei que dava meu voto com reserva de ser um voto político, já que economicamente, dizia eu, a obra dificilmente se justificaria. Passados quase 20 anos, devo confessar o meu erro. A experiência demonstrou, tanto quanto eu posso apurar, que a obra foi também economicamente proveitosa.[...] É possível, e mesmo provável, que tenha havido erros e falhas nos dados em que me baseei e sobretudo na sua interpretação por um velho engenheiro já enferrujado. [...] Outros que tenham a bondade de corrigi-los. O Brasil deve felicitar-se por esse empreendimento de tão grande alcance econômico e social.
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 213
A históriA sE rEpEtiu Em xingó
A história se repete. A jusante da cachoeira de Paulo Afonso, o rio São Francisco
escavou profundo cânion cujas paredes verticalizadas, compostas por rochas
graníticas, são de elevada resistência geomecânica e atingem cerca de 200 metros
de altura. Essas características são ideais para a construção de uma hidroelétrica.
Em 1951, o engenheiro Gerdes, da Kaiser Engineers, vislumbrou a implantação
de uma grande hidroelétrica nesse cânion, represando águas até o canal de fuga da
usina de Paulo Afonso I, já em operação na época. A indústria americana Reynolds
Metals propôs a construção dessa usina, composta por uma barragem em arco e
casa de força subterrânea, em uma parte estreita desse cânion denominada Xingó.
A usina teria como finalidade a geração de grandes blocos de energia elétrica
para uma unidade fabril de produção de alumínio que seria implantada na região.
A concessão como autoprodutor seria por 30 anos e a usina seria revertida para
a posse da União por volta de 1985. Houve intensa oposição política pelos que
bradavam que a usina não atenderia os interesses do País e do Nordeste, oposição
esta capitaneada pelo político baiano Clemente Mariano e pelo industrial e político
paulista José Ermírio de Moraes, que na época era investidor em indústria de
alumínio em Minas Gerais. Os principais argumentos eram que a indústria a
ser implantada competiria com a incipiente indústria nacional de alumínio e que
a fábrica de alumínio absorveria muita energia elétrica com pouco emprego de
recursos humanos. Com essa oposição dita nacionalista, a usina e a sua grande
hidroelétrica não foram concretizadas.
Os estudos nacionais para a definição dessa hidroelétrica só foram iniciados
em 1975 e as unidades geradoras foram progressivamente colocadas em operação
de 1994 a 1997, restando ainda hoje a serem instaladas as unidades da segunda
etapa da casa de força que deverá ser uma ampliação futura. A construção da usina
de Xingó foi feita mais a jusante do inicialmente previsto, em vale mais aberto.
O governo vivia na época da construção extrema dificuldade financeira. Como
pode ser deduzido do acima exposto, além de ter produzido energia, alumínio,
emprego, impostos e riqueza por mais de 30 anos, no meado dos anos 1990, quando
finalmente entrou em operação, a hidroelétrica já teria sido revertida para a União
pelo término da concessão há mais de dez anos, sem qualquer custo para o governo
federal pela sua implantação.
214 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL
Esse episódio da política nacionalista foi divulgado em palestra promovida pela
Chesf por ocasião do XIX Seminário Nacional de Grandes Barragens, realizado
em Aracaju, em 1991, e foi relatado com inacreditável orgulho.
gEtúliO Em sãO pAulO
“No Maracanã, até minuto de silêncio é vaiado”, dizia, com muita propriedade,
Nelson Rodrigues. Muitas vaias já foram registradas em campos de futebol. Entretanto,
antes do advento do Maracanã, o campo do Vasco da Gama em São Januário foi usado
por Getúlio Vargas algumas poucas vezes, sem que tivessem sido registradas vaias.
Mais recentemente, o presidente Lula, na época detentor de grande prestígio popular, se
aventurou no Maracanã e recebeu estrondosa vaia. Em 2013, por ocasião da inauguração
da Copa das Confederações, a presidente Dilma Rousseff compareceu ao estádio Mané
Garrincha em Brasília e também foi saudada com estrepitosa vaia e, a partir daquele dia,
instaurou-se uma crise política sem precedentes em todo o País, envolvendo multidões
em passeatas e distúrbios da ordem pública que revelaram insatisfações diversas em
muitos campos da administração pública. Em 1954, pouco antes de estourar a grave crise
que o levou ao suicídio, o presidente Getúlio Vargas, que nunca havia caído inteiramente
no gosto dos paulistas, compareceu ao Jockey Clube de São Paulo em companhia do
governador do estado, Lucas Nogueira Garcez, renomado engenheiro formado pela
USP em 1936 e que muito contribuiu para o desenvolvimento do estado, especialmente
pela implantação de obras de infraestrutura que garantiram condições apropriadas de
transporte e de fornecimento de energia elétrica. O prestígio de Garcez em São Paulo
se traduzia pelas suas atividades profissionais e didáticas, tendo criado o Departamento
de Águas e Energia Elétrica, a Uselpa, desenvolvedora das hidroelétricas do vale do rio
Paranapanema, tendo inaugurado as hidroelétricas de Salto Grande, Limoeiro, Euclides
da Cunha e Barra Bonita. Foi presidente da CESP e da Eletropaulo, autor dos livros
Hidrologia e Engenharia Hidráulica e Sanitária. Recebeu os títulos de Professor Emérito
da USP em 1964 e de Eminente Engenheiro pelo Instituto de Engenharia, em 1968.
Tão logo foi notada a presença do presidente no Jockey Clube, os que estavam
presentes no hipódromo não pouparam pulmões e cordas vocais para promover
estrondosa vaia. Getúlio, irônico e, como sempre, calmo, acostumado às adversidades
políticas, disse para Garcez: “Lucas, não imaginava você assim tão impopular.”
FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 215
A chEsf, sAntA tErEzinhA E sãO frAnciscO
No final do Estado Novo, Apolônio Sales, ministro da Agricultura, pasta à
qual a energia elétrica estava subordinada, pressionava o governo federal para
que a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) fosse fundada. Apolônio
havia solicitado a Getúlio Vargas que a fundação da Chesf fosse feita no dia 30
de setembro, por ser ele, Apolônio, devoto de Santa Terezinha, que na época era
festejada naquela data.
Não foi possível, o dia 30 passou. Apolônio voltou ao ataque no dia 3 de outubro:
“Presidente, amanhã é dia de São Francisco. Ele ficará muito contente vendo que
o senhor criou no Nordeste do Brasil uma companhia com o nome dele.” O dia 4
também passou, mas a Chesf foi finalmente criada no dia 5. Entretanto, Getúlio
teve o cuidado de datar o decreto como tendo sido no dia 4 de outubro de 1945.
O que Apolônio Sales nunca soube foi o que D. Darcy Vargas me disse, muitos
anos depois, sem necessariamente ter relação ao fato aqui narrado, mas num
cúmulo de incoerência, que ela, agnóstica como o marido Getúlio, não acreditava
em santos, mas detestava Santa Terezinha.
Depoimentos
Flavio Miguez é um dos mais conhecidos peritos na engenharia de barragens brasileira. Sua formação em engenharia civil, com especialização em hidráulica e mestrado em geologia, explica a argúcia que ele tem mostrado ao longo de sua notável carreira profissional de quase 50 anos devotados ao ensino e à consultoria de barragens. As pitorescas crônicas da engenharia aqui reunidas e deliciosamente narradas por ele evidenciam sua cultura sobre as grandes barragens do Brasil e do mundo.
Alberto sayão Professor de Geotecnia de Barragens, PUC-Rio
Além das significativas realizações na área técnica, o que mais me impressiona em Flavio Miguez de Mello é o seu desprendimento e dedicação à comunidade das Engenharias, sempre com ações que a engrandecem e agregam seus membros. É um profissional e um amigo que muito admiro e estimo.
luiz calôbaProfessor emérito COPPE/POLI/UFRJ e assessor científico da FAPERJ
Flavio Miguez de Mello conta casos ouvidos e vividos com grande maestria, revelando a história por trás da história da engenharia do século XX. Muitas dessas situações retratam a atuação de visionários engenheiros, como o próprio Flavio, que tiveram competência para idealizar e construir obras pioneiras.
Jerson KelmanDiretor-presidente da ANA (2001-2004), diretor-geral da ANEEL (2005-2008)
e diretor-presidente da Light (2010-2012)
Conheço o Flavio desde fevereiro de 1971, quando fui indicado para ser orientador da tese de mestrado dele na UFRJ. Por sorte, morávamos na época no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Depois tivemos muitos contatos sobre vários estudos e projetos de barragens sendo projetadas pela Enge-Rio, onde ele foi diretor e eu trabalhava na Eletronorte. Ao longo destes mais de 40 anos, tivemos também muitos contatos em congressos e outros encontros técnicos.
John D. CadmanPh.D., engenheiro civil e geólogo pós-graduado pela University of California,
ex-professor da UFRJ e da UnB, ex-integrante da equipe da Canambra e da
Eletronorte, consultor
As qualidades de Flavio Miguez como engenheiro e memorialista da engenharia brasileira de barragens e recursos hídricos são por demais conhecidas e dispensam apresentações. Entretanto, ele sempre nos surpreende com registros de fatos e eventos que nos ajudam a entender e nos orgulhar da evolução de nossa arte.
brasil pinheiro machadoPresidente do Conselho de Administração da INTERTECHNE
O engenheiro e professor Flavio Miguez de Mello é um apaixonado pela engenharia de barragens. Ao longo de sua vida profissional, projetou e liderou grande número de importantes projetos dessa área da engenharia civil. Como professor, exerceu profunda influência na carreira de inúmeras gerações de barrageiros.
heloi José fernandes moreiraEngenheiro eletricista pela PUC-Rio, doutor pela UFRJ, professor e ex-diretor
da Escola Politécnica da UFRJ, ex-presidente do Clube de Engenharia
Convivo com o Miguez há cerca de cinco décadas. Tenho apreciado a sua capacidade técnica em estudar e resolver problemas de engenharia, notadamente na área de aproveitamentos hidroelétricos. Ele não só é um preparado engenheiro, como também é um notável e querido professor. Além de todas essas características, é um homem de boa memória e de grande espírito cômico.
francis bogossianPresidente do Clube de Engenharia