FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA · O quadro de dificuldades acima descrito impôs a necessidade...

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FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICAIESDE BRASIL S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1482. CEP: 80730-200Batel - Curitiba - PR.

0800 708 88 88 www.iesde.com.br

Fundação Biblioteca NacionalISBN 978-85-7638-753-4

FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA POLÍTICA

Autor

Nelson Rosário de Souza

1.ª edição

Todos os direitos reservadosIESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

© 2007 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Souza, Nelson Rosário de.

Fundamentos da Ciência Política./Nelson Rosário de Souza. — Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2007.

124 p.

ISBN: 978-85-7638-753-4

1. Ciência política. 2. Poder e política. 3. Estado. I. Título.

CDD 320

S729

Sumário

A formação do pensamento político: dimensão histórica | 7O que é a política? | 7A política na Antiguidade Clássica | 9A política como instância autônoma | 11

A formação do pensamento político: dimensão lógica I | 19Aristóteles e as formas de governo | 19A representação da política na modernidade | 22

A formação do pensamento político: dimensão lógica II | 27O poder soberano | 27A teoria da soberania | 29

A construção da Ciência Política Moderna | 37A paternidade da Ciência Política | 37O príncipe moderno | 39

O liberalismo | 47O liberalismo como reação ao absoluto | 47Locke: um pensador liberal | 48O liberalismo e a defesa do indivíduo | 49Ambiguidades do liberalismo | 51

A democracia liberal | 57A difícil definição de democracia | 57Significado formal de democracia | 58O povo como fonte do poder | 60A democracia liberal | 61

A democracia direta | 67A crítica à “civilização” moderna | 67A propriedade como fonte do mal | 68O pacto da igualdade | 70Um projeto utópico e perigoso ou uma perspectiva necessária? | 71

O conceito de poder | 77Uma definição inicial | 77O exercício do poder | 79O poder legítimo | 81

O Estado | 85Estado e sociedade | 85O Estado contemporâneo | 87A concepção marxista de Estado | 89

Partidos políticos | 93O surgimento dos partidos | 93A tipologia dos partidos | 95Os partidos na atualidade | 97

A cultura e a política | 101Os estudos de cultura política | 101A cultura política tradicional | 102A cultura política da modernidade | 104A construção da cultura política moderna | 105

Participação política | 109O que significa participar | 109A participação em sociedades democráticas | 110As lições da história | 111Novas formas de participação política | 113

Referências | 119

Anotações | 123

Apresentação

Escrever uma obra com o objetivo de introduzir o aluno de Graduação em Ciências

Sociais às principais temáticas e conceitos da Ciência Política é um grande desafio.

A diversidade costuma marcar o universo de alunos que iniciam um curso de

graduação. Os interesses são múltiplos e o nível de formação do corpo discente

não é necessariamente homogêneo. Quanto às decisões sobre o conteúdo da

disciplina, a tarefa não é menos difícil. A Ciência Política, como outras matérias das

Ciências Humanas, está marcada pela multiplicidade de perspectivas. O debate é

uma característica central da nossa área e não a construção de verdades absolutas.

Para completar a complexidade do empreendimento proposto é necessário

lembrar o dilema entre valorizar a apresentação de temas e autores filosóficos que

formam a base da Ciência Política moderna, ou priorizar a discussão dos conceitos

propriamente políticos.

O quadro de dificuldades acima descrito impôs a necessidade de escolhas

no momento de confecção desta obra. Procurou-se, por exemplo, equilibrar

a abordagem de temas e autores filosóficos com a definição de conceitos

fundamentais da Ciência Política. Cada capítulo procura contemplar a diversidade

de perspectivas, sem, no entanto, abrir mão de tomar posição. Espera-se que essa

postura contribua com a formação de um aluno crítico, capaz de decidir se está de

acordo, ou não, com os posicionamentos do autor a cada momento da leitura.

Enfim, o livro procurou apresentar os conteúdos de forma didática, mas sem

abrir mão de contemplar a complexidade dos temas e conceitos. Desse modo, a

expectativa é de que os alunos tenham neste livro uma fonte acessível de informação

e também se sintam desafiados a investir em novas leituras e pesquisas. Uma boa

forma de apreender esta obra é tomá-la como ponto de partida para a caminhada

formativa e não como ponto de chegada.

Convido o aluno leitor a enfrentar seu próprio desafio de formação, usando

o presente trabalho como uma das ferramentas úteis à sua empreitada. Bons

estudos a todos.

Nelson Rosário de Souza

1 Este estudo não abordará o liberalismo econômico, pois este foge aos seus objetivos. É importante registrar, entretanto, que o liberalismo econômico e político têm dimensões próprias, ainda que existam semelhanças entre eles e mútua influência.

O liberalismo

O liberalismo como reação ao absoluto1

Algumas teorias políticas caracterizam-se pelo absoluto, ou seja, constroem o poder institucional como uma força política total, concentrada e soberana. Do alto desse edifício político desceria verticalmente sobre os indivíduos a regulação inescapável. Os idealizadores do poder absoluto acreditam que esse modelo torna possível a vida social e até mesmo o exercício da liberdade. Para eles, só com um poder concentrado e soberano é possível alcançar a verdadeira democracia e fazer a justiça triunfar contra a barbárie. Hobbes, por exemplo, elabora a teoria do poder absoluto do Estado. Para ele, o Estado está acima das demais instituições e as submete. A instituição estatal pré-existe ao social e viabiliza o seu funcionamento. Nessa perspectiva, o indivíduo só pode exercer sua liberdade e realizar suas potencialidades após a construção do Estado. Os indivíduos fazem um pacto e criam o Estado para sair da barbárie e, em nome da preservação da vida, aceitam submeter-se totalmente ao Estado.

Outro autor que pensa a concentração do poder é Rousseau, mas, nesse caso, a soberania absoluta é depositada no povo. A vontade popular é, para Rousseau, a instância máxima de decisão e o exercício do poder está concentrado na “vontade geral”, sendo este o único caminho de construção da liberdade. É interessante notar que Hobbes elabora a teoria do poder absoluto do Estado porque desconfia do indivíduo, pois para ele a natureza humana não é boa e, por consequência, se os indivíduos se encontrarem sem o constrangimento do poder, tendem à destruição mútua. Já Rousseau não lê a natureza humana com pessimismo, mas tampouco considera que o indivíduo seja o contraponto ao totalitarismo do Estado. Desconfiado das potencialidades do indivíduo isolado e dos riscos do Estado absoluto, Rousseau acredita que o ordenamento político capaz de civilizar e libertar a sociedade virá como efeito da soberania absoluta do povo.

O pensamento liberal, por sua vez, tem como principal característica a oposição à concentração absoluta do poder. O liberalismo combate a concentração do poder nas duas frentes: no Estado e no coletivo. Esse combate se faz em nome das liberdades individuais. Historicamente, o liberalismo nasce na passagem do século XVII para o século XVIII como norteador da luta da burguesia revolucionária contra a monarquia absolutista. O primeiro grande momento do ideário liberal foi a Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra. O resultado prático foi a limitação dos poderes da monarquia em favor do fortalecimento do parlamento.

48 Fundamentos da Ciência Política

Locke: um pensador liberalUm dos principais pensadores liberais, com forte influência nas lutas contra o absolutismo, foi

o inglês John Locke (1632-1704). Locke formula a crítica à predestinação e aos conhecimentos inatos. Como efeito desse empreendimento, ele foi um dos primeiros a formular teoricamente o empiricismo, ou seja, a idéia de que os conhecimentos vêm das experiências sensíveis e não estão pré-elaborados nos indivíduos como uma herança de sangue. Nesse sentido, ao nascer, o indivíduo teria uma mente aberta à aquisição dos saberes, tal qual uma página em branco. Essa formulação teve efeitos importantes sobre as concepções pedagógicas. É uma reflexão que está associada ao espírito liberal, pois reforça a idéia de igualdade natural entre os indivíduos e, também, valoriza a autonomia dos sujeitos no processo de autoconstrução. A luta moderna por liberdade está fortemente associada às guerras religiosas (um dos seus efeitos é a reivindicação de autonomia moral para o indivíduo presente, por exemplo, em Locke). A opinião pública e não o Estado deveria apresentar os limites éticos ao indivíduo. É possível localizar aí um princípio favorável ao pluralismo de convicções, valores e comportamentos. Com o pluralismo aceito, a relação política entre os homens não deveria se pautar por dominação fundada em diferenças, sejam elas associadas à herança familiar, à religião, à tradição, à inteligência, ou mesmo às características físicas. Para o liberalismo, a legitimidade do poder deve estar assentada no consentimento e as autoridades devem ser escolhidas democraticamente. É uma teoria e um ideário político que defende o fim do direito divino ao poder e a superação da esfera privada como fonte de legitimidade da autoridade política.

O princípio do consentimento associado à idéia de um “estado de natureza” como ponto de partida do processo histórico coloca Locke entre os pensadores catalogados como “jusnaturalistas” e “contratualistas”. Mas, diferente de Hobbes, que vê barbárie na condição de natureza, Locke vai entender que, no estado de natureza, os indivíduos viviam em relativo equilíbrio e harmonia, sob as leis e os direitos naturais. Isso porque a natureza humana, para ele, não é má. Sendo assim, o “estado de natureza” lockiano já se configurava como um espaço pré-social e pré-político, no qual vigiam a liberdade e a igualdade. Tal equilíbrio era proporcionado pelo respeito à propriedade como direito natural. Ele dá à propriedade um sentido amplo: “tudo que pertence a cada indivíduo, ou seja, sua vida, sua liberdade e seus bens” (ARANHA; MARTINS, 1986, 249). Locke, ao elevar a propriedade a um direito natural fundamental, apresenta um traço característico da teoria liberal, mas é preciso reconhecer que no seu contexto histórico a posse de bens era uma garantia de sobrevivência e não um capricho. Macpherson (1979) é um autor que percebe esse elemento forte do liberalismo, o “individualismo possessivo”. Isso significa que a liberdade natural se realiza à medida que o indivíduo toma posse, adquire propriedades. A apropriação de bens é condição e efeito do percurso autônomo. Aliás, o corpo seria já uma forma de propriedade que igualaria os indivíduos no seu ponto de partida e o uso do corpo no trabalho os tornaria diferentes, pois uns se empenhariam mais do que outros e, por consequência, se apropriariam de mais bens. Para Locke, no início dos tempos o trabalho era o limite da propriedade, ou seja, ninguém acumularia, por exemplo, o principal meio de produção, a terra, para além do que seu trabalho pudesse transformar em bens. Mas o mesmo pensador pondera que, com o surgimento do dinheiro, a acumulação de bens para além das necessidades imediatas tornou-se possível e aceitável, pois é uma forma de precaução. Fica evidente que para o referencial liberal o acúmulo de riqueza e as diferenças sociais dele resultantes são legítimas, pois advêm dos diferentes usos da capacidade de trabalho pelos indivíduos. Daí decorre que uma tarefa fundamental do Estado, para o liberalismo, é assegurar o direito de propriedade, daqueles que acumularam bens, em relação aos demais e garantir, ainda, a livre troca desses bens no mercado.

O liberalismo 49

O liberalismo e a defesa do indivíduoSe o “estado de natureza” imaginado pelos liberais é de paz, por que os homens fazem um acordo

para sair dele e fundar a sociedade? Para Locke, à medida que as relações se tornam mais complexas, as leis naturais se mostram insuficientes para frear os juízos parciais e o exercício das paixões. Nesse momento, para evitar maiores riscos e preservar seus direitos, os homens, por livre consentimento, decidem realizar o contrato social e estabelecer a autoridade estatal. A nova instituição, entretanto, terá como finalidade manter a segurança e a garantia dos direitos individuais. A passagem do estado de natureza para a sociedade política, via contrato social, não representa para Locke uma ruptura. O contrato social é estabelecido para preservar os direitos naturais. Aliás, para esse típico pensador liberal, diferente de Hobbes, certos direitos individuais são inalienáveis, ou seja, intransferíveis, pois são naturais: o direito à vida, à propriedade e à busca da felicidade. Ao manter esses direitos sob sua posse, o indivíduo do liberalismo se mostra precavido em relação ao Estado e sobre ele exerce uma vigilância. Qualquer ameaça do Estado aos direitos individuais torna legítima a rebelião contra as autoridades. O liberalismo valoriza, então, a sociedade civil como esfera separada e autônoma em relação ao Estado. A sociedade civil deve ser uma dimensão com regras próprias, imune à ação do poder governamental e deve ser por ele protegida.

É comum observarmos na sociedade norte-americana uma resistência à aprovação de leis que limitem a aquisição e o uso de armas de fogo pelos cidadãos. Sempre que acontece algum massacre de pessoas inocentes por indivíduos que utilizam armamentos letais, esse debate é retomado pelo congresso dos Estados Unidos. Entretanto, a legislação permissiva não muda. É possível afirmar que um dos princípios utilizados para a defesa do direito à posse de armas tem sua origem no liberalismo de Locke. Ou seja, não se deve retirar do indivíduo a prerrogativa de defender seu direito à vida. Para isso, ele deve ter acesso livre às armas para proteger-se contra possíveis ataques de outros sujeitos e até mesmo agressões vindas do Estado. Sob esse ponto de vista, desarmar o indivíduo pode ser um convite para a formação de um Estado autoritário.2

Uma característica saliente e constante do liberalismo é, portanto, a proteção do indivíduo contra o poder absoluto. Instrumento como o habeas corpus, que garante que ninguém pode ser mantido preso sem acusação formal e que todos têm direito à defesa, resulta da preocupação liberal em conter o ímpeto do Estado, manifestado, por exemplo, no absolutismo. Aliás, os liberais dizem aceitar que a autoridade, democraticamente estabelecida, aja coercitivamente contra o indivíduo desde que obedeça a certas condições: o limite da legalidade, a transparência total dos procedimentos ou a ação repressiva deve servir para reparar preservar os direitos sociais. Alguns autores consideram que a concepção dos direitos individuais inalienáveis e a sua defesa são o grande mérito do liberalismo que, se não levantou a bandeira da igualdade de direitos, ao menos proclamou “o princípio geral da igualdade de dignidades” (CERRONI, 1993, 63), contribuindo, indiretamente, para as lutas posteriores por direitos universais.

O indivíduo, na teoria política liberal, não só é bom por natureza, mas também é o ponto de partida de toda organização social, ou seja, as instituições sociais foram criadas pelos indivíduos que conviviam bem no “estado de natureza”, e a finalidade destas é possibilitar o contínuo desenvolvimento desses indivíduos. A instituição política, que para um liberal surge depois da existência de uma vida social, tem a função de proteger a sociedade dos indivíduos para que eles, no exercício das suas liberdades, possam aprimorar a si próprios e, por consequência, as instituições. Isso significa que as regras do jogo político devem garantir o exercício da livre competição entre indivíduos proprietários. Sendo assim, o

2 Esse argumento lockiano também foi utilizado na campanha da “frente do não”, por ocasião do referendo das armas no Brasil em 2005.

50 Fundamentos da Ciência Política

liberalismo contrapõe ao poder absoluto o poder disperso nos indivíduos em concorrência. O limite do conflito é dado pela instituição, ou seja, pelas regras que impeçam o confronto para além da livre argumentação na defesa pública de interesses.

Pensadores liberais adotam o indivíduo como célula a partir da qual se constitui a vida social e política, portanto, como elemento chave da construção histórica e da elaboração lógica. A análise sobre o comportamento dos indivíduos seria fator elucidativo do processo histórico e social. Na dimensão concreta, o indivíduo seria peça fundamental do projeto moderno. A liberdade é vista como a causa e o efeito das interações individuais. Nas palavras de Matteucci (1993, p. 701) “A defesa do indivíduo contra o poder” associa-se ao objetivo “de ressaltar o valor moral original e autônomo de que o próprio indivíduo é portador” o que não deixa de ser uma luta contra as tentativas de uniformização do indivíduo. Mas nem todos os autores que adotam o indivíduo como ponto de partida lógico podem ser enquadrados como tipicamente liberais.3 Logo, o pensamento político liberal não se limita à adoção do indivíduo como sujeito central. Para o liberalismo, esse indivíduo tem uma natureza boa e é, em essência, livre, e, no gozo da sua liberdade, constrói a boa sociedade que a política, como esfera complementar, irá proteger. Os indivíduos, competindo pela realização dos seus interesses, beneficiariam toda a sociedade. Nessa luta, os melhores se destacariam e a comunidade estaria protegida da paralisia e da tibiez das massas e sua simbiose com o Estado burocratizado.4 Deste ponto de vista, trata-se de desconfiar do poder do Estado e das massas, na justa medida em que se confia que os indivíduos, na busca da realização das suas necessidades, formam uma associação perfeita, com interdependência, equilíbrio e desenvolvimento. É a apologia à sociedade do contrato, leia-se, do mercado. A teoria liberal se caracteriza, então, por solicitar limites ao poder do Estado, restrições que impeçam a instituição do poder de se tornar absoluta, totalitária, condição que a faria atentar contra as liberdades individuais.

É a perspectiva liberal que introduz a preocupação com a divisão dos poderes do Estado em exe-cutivo, legislativo e judiciário. Essas três esferas deveriam funcionar com autonomia relativa e cada uma delas teria a função de controlar e contrabalançar as demais. Tal divisão seria uma das garantias contra a formação de Estados absolutos. O poder judiciário deveria se restringir à aplicação da lei, previamente elaborada, sem distinção. O governante seria apenas um executor das leis e os representantes do povo elaborariam as leis interpretando a vontade geral nas casas legislativas. As decisões obedeceriam o prin-cípio da maioria. Mas os liberais buscam uma precaução diante do risco de a maioria se tornar totalitária adotando a pluralidade como valor democrático. Ou seja, as sociedades que se dizem livres devem preservar a existência de diferentes grupos, inclusive os minoritários, e estimular a concorrência deles na sociedade, com vista a influenciar as instâncias decisórias. Isso só seria possível com a conservação da autonomia dos indivíduos e dos grupos sociais frente ao mundo político.

O liberalismo se preocupa com a proteção do indivíduo, também, em relação à força da multidão. A massa popular é vista com desconfiança pelos liberais, pois, dessa perspectiva, ela pode se constituir num absoluto irracional a oprimir os indivíduos. É nítida aqui a contraposição entre, de um lado, os indivíduos isolados, proprietários que estabelecem acordos no mercado e, de outro,

3 Locke, não Hobbes ou Rousseau, é o típico pensador liberal. Macpherson (1979) foi muito criticado por aproximar excessivamente os três pensadores e considerá-los, por igual, precursores do liberalismo (LEBRUN, 1984).

4 Existe uma forte associação entre a “teoria das elites” e o pensamento liberal. Em resumo, a “teoria das elites” acredita que sempre elites se destacam no papel de dominar politicamente a sociedade e isso é desejável, uma vez que as massas são perigosas e irracionais. Não é a participação direta das massas nas decisões que constitui uma sociedade democrática. Para os elitistas, a competição pelo poder entre uma pluralidade de elites já nos coloca numa democracia. Os italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto são clássicos da “teoria das elites”. Um autor contemporâneo que adota essa perspectiva é Robert Dahl.

O liberalismo 51

as classes populares sem posses, configuradas como fonte de risco político. Este é um dos motivos pelo qual os liberais defendem a participação política indireta. A forma político-institucional aceita pelos liberais não prevê a ação direta dos cidadãos na gestão política; seus interesses devem chegar até o Estado através de organizações e processos representativos. Para um liberal, é perfeitamente compatível a representação de interesses com a idéia de liberdade política. Aliás, parlamentos, partidos e outras associações representativas constituem, da perspectiva liberal, o necessário contraponto ao poder executivo. O conjunto das associações representativas, mais o espaço econômico do mercado e a dimensão da formação da opinião pública, constituem a sociedade civil, instância separada do Estado, protegida dele, autônoma e que teria o papel de exercer influência sobre as decisões e ações de governo.

Ambiguidades do liberalismoUma crítica frequente e contundente ao liberalismo diz respeito ao fato de os direitos e as liber-

dades por ele defendidas permanecerem, na maior parte dos contextos, na dimensão formal. Os liberais se dariam por satisfeitos de verem os direitos inscritos nas leis. A teoria liberal não daria conta de pensar o problema das massas populares que não experimentariam concretamente os direitos e liberdades por limitações e constrangimentos do mundo cotidiano. Por exemplo: ir e vir é um direito liberal, mas, se não tenho recursos, ainda que ninguém me impeça de me deslocar, essa ação é inalcançável para mim. O mesmo podemos dizer sobre o direito de livre expressão: pode estar garantido na Constituição, mas, se não tenho acesso ao mundo da informação, terei dificuldade para formar uma opinião a ser ver-balizada. Como agravante, a passividade dos liberais diante desses constrangimentos está associada à idéia de que a liberdade de ação no mercado, a competição entre os indivíduos para satisfação de suas necessidades, seria o caminho adequado e suficiente para superar essas dificuldades.

A literatura crítica indica que o liberalismo atua apenas na defesa formal das liberdades “de”, ou seja: de expressão, de associação, de religião, de participação etc. O que poderíamos chamar de liberdades pró-ativas. Mas teria sérias dificuldades de operar na solução das liberdades “das” necessidades e “dos” medos, tais como, emancipar-se da fome, do desemprego, da falta de moradia, da carência de saúde. Pensadores que se colocam à esquerda no espectro político apontam a competição no mercado como a principal responsável pelos constrangimentos à realização das liberdades e dos direitos, uma vez que a relação entre proprietários e não-proprietários seria desigual e geraria cada vez mais diferenças e conflitos. Esses críticos do liberalismo vão além, apontam o Estado como a única instituição capaz de, através de uma forte ação reguladora sobre o mercado, visando conter o seu ímpeto, minimizar as desigualdades e restituir as condições de sociabilidade.

O processo histórico recente, desencadeado na primeira metade do século passado, fez o liberalismo recuar em seus princípios. Diante da crise econômica de 1929, dos avanços da economia planejada, praticamente todos os países do mundo adotaram a fórmula do Estado de bem-estar social, cujas principais características são: a forte presença do Estado no mercado, controlando seus excessos; e políticas públicas de amplo alcance para conter a pobreza e buscar a justiça social5, reduzindo, assim, as desigualdades.

5 É importante registrar que a crise do Estado de bem-estar social, iniciada nos anos 1970, reacendeu a chama do liberalismo econômico, ou seja, a aposta no mercado como agente capaz de resolver os problemas sociais. O liberalismo reaparece com o nome de neoliberalismo.

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O limite do liberalismo, manifestado na sua resistência diante das ações do Estado em favor da igualdade, está associado à sua concepção de que as diferenças entre os indivíduos já existiam no “estado de natureza”; seriam, portanto, componentes normais do processo social e teriam pouco, ou nada, a ver com relações de poder. Os homens, pelo esforço diferenciado no trabalho sobre a natureza, teriam adquirido posses em diferentes gradações. Nessa leitura, não se faz qualquer menção às relações de força que informam o processo de apropriação. A igualdade estaria na garantia das liberdades formais. Aliás, os precursores do liberalismo, pensadores clássicos como o filósofo Emanuel Kant (1724-1804), ou mesmo Locke, faziam uma distinção entre proprietários, sujeitos de direito e não-proprietários que eram colocados na condição de tutelados. Indivíduos de fortuna eram vistos como cidadãos, pois teriam interesses mais elevados e, não sendo tutelados, estariam em melhores condições para exercitar a razão e tomar decisões. Nessa distinção, alguns estariam aptos só para serem governados, outros, também para governar (ARANHA; MARTINS, 1986 e CERRONI, 1993). Os direitos políticos aparecem, então, associados ao sucesso econômico de cada indivíduo, como se a sua conta bancária fosse a credencial para entrar no mundo da cidadania.

Ainda que o liberalismo proclame a necessidade de preservar as liberdades, dificilmente apóia lutas libertárias pela ampliação dos direitos ou pela conquista de novos patamares de igualdade, pois vê ameaças aos indivíduos vindas dos movimentos coletivos. O liberalismo tende a valorizar as regras estabelecidas e as autoridades constituídas. Essa postura já levou os liberais a assumirem posições paradoxais. Por exemplo, diante das ameaças dos movimentos de esquerda, sentiram-se protegidos pelo nazismo e pelo fascismo, prestando, até mesmo, apoio a eles (CERRONI, 1993).

Enfim, da perspectiva liberal, a sociedade civil acaba confundindo-se com o mercado e, por vezes, deixa-se colonizar por ele. Quando a lógica do mercado se impõe ao jogo político, fica bloqueado o caminho de superação das desigualdades pela via negociada. O efeito é o aumento das tensões e das inseguranças. Diante desse cenário de ameaça ao mundo da propriedade e do mercado, o liberal, que costuma defender um Estado mínimo, passa a exigir um Estado forte e atuante na defesa dos seus interesses. Talvez este seja o maior paradoxo do liberalismo, desejar um Estado fraco, para que a lógica do mercado possa operar livremente; e solicitar um Estado forte, a lhe oferecer segurança, sempre que vê seus interesses ameaçados (LEBRUN, 1984).

Texto complementar

Ensaio sobre o governo civil(MELLO, 1991)

Capítulo II - do estado natural

[...] 4. Para se poder bem entender o poder político, derivá-lo da sua origem, devemos saber qual é o estado natural do homem, o qual é um estado de perfeita liberdade de dirigir as suas ações, e dispor dos seus bens e pessoas segundo lhe aprouver, observando simplesmente os limites da lei natural, sem pedir licença, ou depender da vontade de pessoa alguma.

O liberalismo 53

Um estado de igualdade, onde toda a jurisdição e poder são recíprocos, não tendo um mais do que o outro; não havendo nada mais claro, do que ver que os entes da mesma espécie e ordem, nascidos todos para as mesmas vantagens da natureza, e para o uso das mesmas faculdades, devido ser também iguais entre si, sem subordinação ou sujeição; salvo se o Senhor de todos eles tivesse, por uma declaração manifesta da sua vontade, posto um acima do outro, e conferido por li uma nomeação evidente e clara, um direito indubitável ao domínio e soberania [...].

6. Porém ainda que este seja um estado de liberdade, não é contudo um estado de licença; e ainda que o homem naquele estado tem uma liberdade indisputável para dispor da sua pessoa e bens, não a tem todavia para se destruir, nem há criatura alguma que tenha tal poder, salvo, quando algum uso mais nobre do que a sua simples conservação o exigir. O estado natural tem uma lei natural para o governar, a qual obriga a todos: e a razão, que constitui essa lei, ensina a todos os homens, que a consultarem, que sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria ofender a outro na sua vida, propriedade, liberdade, e saúde. Porque sendo todos os homens obra dum Criador onipotente, e infinitamente sábio; todos criados dum Soberano Senhor, mandados para o mundo por sua ordem, e para o seu trabalho, são sua propriedade, visto que são sua obra, feitos para durar segundo o seu prazer, e não segundo o prazer um do outro. E sendo todos dotados das mesmas faculdades, gozando tolos da mesma comunhão da natureza, não se pode supor entre nós uma subordinação tal, que nos autorize a destruir um ao outro, como se nós fôssemos feitos para uso um do outro, como acontece às criaturas de ordens inferiores em relação a nós. Todo o homem, assim como é obrigado a conservar-se, e a não abandonar voluntariamente o seu posto, assim também pela mesma razão, todas as vezes que a sua própria conservação não correr risco, deve, tanto quanto lhe for possível, preservar os outros homens e não pode, salvo se for para punir o transgressor, tirar, ou pôr em perigo, a vida, ou o que diz respeito à sua conservação, liberdade, saúde, membros, ou bens doutrem.

7. E para que os homens não infrinjam os direitos uns dos outros, nem se ofendam mutuamen-te, e se observe a lei natural, a qual ordena a paz e conservação do gênero humano, a execução da lei natural, naquele estado, compete a cada um individualmente, e por conseguinte cada um tem o direito de punir os seus transgressores, tanto quanto for necessário para obstar à sua violação: porquanto a lei natural seria, bem como todas as outras leis que dizem respeito aos homens neste mundo, de nenhum efeito, se não houvesse pessoa que, no estado natural, tivesse o poder para pôr em execução essa lei, e por esse meio proteger o inocente e coibir os ofensores. E se alguém há, que no estado natural pode punir a outro por qualquer mal que ele tiver feito, cada um o pode fazer; porquanto no estado de perfeita igualdade, aonde não há naturalmente superioridade, ou jurisdição dum sobre o outro, tudo aquilo que a qualquer for lícito fazer em comprimento daquela lei, é igual-mente lícito a todos os outros [...].

13. A esta doutrina, viz. [(isto é)] que no estado natural, todo o homem tem o poder executivo da lei natural, não duvido, que alguns hão de objetar, ser contrário à boa razão que os homens sejam juízes em causa própria, porque o amor próprio os fará parciais para consigo mesmos e para com seus amigos, e por outro lado, que o mau gênio, paixão, e vingança os fará castigar os outros com demasiado excesso; do que não se seguirá senão confusão e desordem, e que por isso Deus, sem dúvida alguma, estabeleceu o governo para coibir a parcialidade e violência dos homens. Eu muito facilmente concedo que o governo civil é o remédio próprio para as inconveniências do estado natural, as quais, na verdade, devem ser grandes, onde os homens podem ser juízes em causa própria; porquanto é fácil de conhecer que aquele que foi tão injusto que ofendeu a seu irmão, não será tão justo que se condene a si mesmo por isso. Porém, desejarei que aqueles que fazem esta objeção,

54 Fundamentos da Ciência Política

lembrem-se, que os Monarcas Absolutos não são senão homens, e se o governo deve ser o remédio daqueles males que necessariamente se seguem dos homens serem juízes em causa própria, e por isso o estado natural se não deva tolerar, desejo saber que qualidade de governo é aquele, e que vantagens tem sobre o estado natural, em que um homem, governando uma multidão, tem a liberdade de ser juiz em causa própria, e pode fazer a todos os seus súditos aquilo que lhe agradar, sem a menor objeção ou exame da parte daqueles que satisfazem o seu prazer? E faça ele o que fizer, quer guiado pela razão, quer por engano, ou paixão, deve ser sofrido; o que na verdade os homens no estado natural não estão obrigados a sofrer uns aos outros. E se aquele que julga em causa própria, ou na do outro, julga mal, ele é responsável por isso aos outros homens.

14. [...] porquanto nem todo e qualquer pacto põe fim ao estado natural entre os homens, mas somente aquele por meio do qual eles concordam todos mutuamente em se unir numa comunidade e fazer um corpo político.

Atividades1. Por que o liberalismo se opõe ao poder absoluto na política?

2. O que significa “direitos individuais inalienáveis”? Por que o liberalismo defende esse princípio?

O liberalismo 55

3. Quais as principais contribuições do liberalismo à política moderna?

Gabarito1. O liberalismo teme que o poder absoluto cerceie a liberdade individual.

2. São os direitos naturais que o indivíduo não pode transferir ao Estado: direito à vida e à proprie-dade. O liberalismo defende esse princípio porque considera que o indivíduo precede o Estado, é mais importante do que ele.

3. O liberalismo contribui no combate ao autoritarismo e ao totalitarismo do Estado. Cria mecanis-mos políticos e jurídicos de proteção do indivíduo, por exemplo: habeas corpus, direito de livre expressão, direito de organização etc.