Post on 14-Feb-2019
História. Uma História
- História e Historiografia. Um inventário do Brasil: 1958-2008 – uma perspectiva-
Introdução
Escrevo para os interessados em História. Para esses eu os convido a
acompanhar-me nessas reflexões. Aqui evitarei as citações senão as que forem
absolutamente necessárias, porque o objetivo dessas linhas é discorrer sobre a História e
seu significado, sem o peso da erudição, – até porque o autor não seria a melhor fonte
para esse intento – e o formalismo dos trabalhos acadêmicos. A essas linhas acrescento
alguns comentários de leituras que influíram em minha formação e na de outros de
minha geração, além de fatos e situações vividas aqui evocadas para que o leitor se situe
ao tempo dessa trajetória. E ainda incluo como apêndice trabalhos redigidos ao longo de
minhas atividades docentes, mais como registro de reflexões decorrentes de uma
atividade intelectual formadora de minhas convicções filosóficas, teóricas e
historiográficas.
Os mais de quarenta anos de magistério me possibilitaram compreender o quanto é
tortuoso desenvolver idéias sobre um fenômeno que nos é tão intensamente
experimentado. Minha primeira convicção de que o estudo da História me era não
apenas interessante mas necessário ocorreu quando estudante. Foi quando participei do
Programa Nacional de Alfabetização, antes Plano, desenvolvido que fora pelo educador
Paulo Freire sob os auspícios da administração municipal de Natal (RGN) do prefeitro
Djama Maranhão, e que contou com o concurso do também educador Moacir de Góes.
Naquela capital nordestina foi implantado o projeto bem sucedido intitulado “De pé no
chão se aprende a ler”, alfabetizando em poucas horas centenas e centenas de
analfabetos e pondo-os em condições de votar e, com isso, influir nos destinos políticos
da região e depois do país, quando o presidente João Goulart nomeou ministro Paulo de
Tarso, a quem coube transformar aquela experiência num plano de âmbito nacional.
Com Paulo Freire aprendi que o conhecimento da realidade auscultando os seus
membros é muito mais importante do que toda e qualquer erudição. O povo produz sua
história e qualquer intervenção visando elevar a sua condição de vida passa
necessariamente pela apreensão de sua vida, seus anseios e necessidades, vocabulário e
tudo quanto possa fornecer dados substantivos para a ação social e política. Nascia
naquele momento a perspectiva da História que tanto acalentava mas não sabia exprimir.
Em anexo se encontra um breve relato dessa experiência ilustrada por depoimentos de
contemporâneos, alguns mencionados e outros anônimos.
A História é vida, já dizia o historiador José Honório Rodrigues. Foi, aliás,
através de seus textos que intensifiquei meus estudos sobre essa matéria prima do
conhecimento. Antes de deparar-me com esse historiador brasileiro enveredei por
leituras dos considerados clássicos da historiografia ocidental, a começar,
evidentemente, por Marc Bloch. Lia-o, confesso hoje, mais por ter sido um combatente
da resistência francesa do que por seus méritos de historiador. Foi de seu singelo texto
sobre O Que é História, lido em duas oportunidades, que me dei conta da interferência
do momento no processo de apreensão de uma obra. No primeiro momento eu o li como
um texto introdutório ao conhecimento histórico. No segundo eu o li na cadeia. Na
realidade li um outro livro que me chamara atenção na primeira leitura desaparecera
nesta segunda, cuja dimensão do texto enveredou para outros aspectos não percebidos na
leitura anterior. Posso dizer que na primeira li o texto, na segunda o autor e personagem
daquele trabalho1.
Sem o saber estava naquele momento convidativo à reflexão, não obstante as
circunstâncias adversas, tomando ciência do significado mesmo da História em nossas
vidas, pois a leitura se encontrava condicionada a situação de vida de quem se submete à
interação com o outro, não importa se essa interação aconteça mediada por uma escrita
redigida por alguém que não mais exista senão através de suas idéias. Assim, no instante
em que terminei a segunda leitura do pequeno livro de Bloch pude me aperceber que não
estava apenas tomando contato com uma disciplina a ensinar-me o que era a História,
mas com a própria História. Era ao mesmo tempo um leitor e um protagonista de um
determinado momento histórico a determinar-me o modo de recepcionar aquele escrito
em face das condições em que se dera o seu contato com ele.
1 Como se sabe, Bloch escreveu aquele livro na prisão para atender a uma solicitação de seu filho.
Talvez por isso, a História como aprendizado de vida sempre me fascinou mais
do que a História como inventário de feitos e fatos. O acontecer despertava mais do que
o acontecido, o que me inclinaria mais tarde a me voltar para os estudos e pesquisas na
área da História Política. Por outro lado, a sentença segundo a qual toda História é
Política, da mesma forma que toda ação política se integra a um circuito necessariamente
político, fez-me crer tratar-se de uma escolha talhada para combinar minha inserção
como cidadão e minha inclusão no rol dos aprendizes de historiador, pretensão esta que
alimentei pela primeira vez ainda nas salas de aula do ensino secundário. Nelas só me
interessavam as aulas de História, nem sempre bem desenvolvidas pelos meus
professores, segundo minhas avaliações super rigorosas, se comparadas as de seus
colegas.
Com o tempo passei a ter uma noção do que é ser um historiador, ou mais
propriamente, um profissional de História, dado que a pergunta recorrente, que sempre
me fizeram os alunos me deixava aflito para dar de pronto uma resposta que fosse ao
mesmo tempo satisfatória a mim e aos meus interlocutores. Penso que três faculdades
são necessárias para que se forme um historiador. São elas: a erudição, no sentido de um
conjunto de informações sistematizadas e bem organizadas; a pesquisa e sobretudo o
gosto de compulsar documentos; e, finalmente, a capacidade interpretativa, sem a qual
pouco valem as duas primeiras condições. Pude desenvolver essa assertiva em aulas de
Introdução à História e de Metodologia Histórica nos cursos ministrados na PUC/RJ, na
USU e na UGF, em cujos departamentos atuei como professor dessas disciplinas. Assim,
não basta ter uma teoria ou uma visão de mundo se a elas não estiverem reunidas esses
elementos que chamo de faculdades. Todos dependem exclusivamente do exercício
profissional na incessante busca de um aprendizado contínuo.
A História como ciência do movimento, numa feliz definição de Pierre Vilar, eis
o sentido que me pareceu mais próximo da visão que me arrebatara para os estudos
históricos. Não só porque o movimento traduz a sucessão de eventos a marcarem o
processo histórico, como também se aplicam as igualmente sucessivas avaliações e
reavaliações produzidas pela Historiografia. Nada, portanto, é estático, sobretudo em
razão de o passado não comportar a idéia de alguma coisa sem vida, amorfa. Dessa
maneira, aquele conceito muito difundido acriticamente segundo o qual a História é a
ciência do passado (sic) constante em alguns manuais tradicionais de História não resista
a mais sóbria das argumentações. A própria relação entre ciência e passado não
explicava convenientemente o significado deste e tampouco acrescentava alguma coisa
para a noção de ciência, cujo emprego parecia ter o papel de argumento de autoridade.
Era ciência e portanto era autoexplicativa e pronto.
O encontro com uma dimensão científica no trato da História surgiu em minha
vida intelectual através de duas leituras de divulgação das leituras clássicas do
marxismo, as de Leo Huberman2 e a de Adam Schaff3, que mobilizaram o meu interesse
pela relação da História com a Ciência, na lógica argumentativa de Marx e Engels, de
modo a fornecer subsídios preciosos, embora genéricos, para que pudéssemos usar em
nossos debates e polêmicas com eventuais adversários ideológicos. Eram tempos de
leituras ainda superficiais, de divulgadores, alguns bem fundamentados e outros não
tanto, mas que nos faziam interessar pela História. Tínhamos alguma dificuldade em
estabelecer a conexão dos clássicos do marxismo com os objetos de estudos mais
específicos, o que acarretava generalizações sempre perigosas quanto não absolutamente
impróprias.
Antes de enveredarmos pelos caminhos dessa conversa cabem alguns
esclarecimentos. Podemos tratar o vocábulo História como substantivo, verbo e adjetivo.
Assim, quando invoco o primeiro estou a atender um sentido mais geral, aquele que
expressa o que o vocábulo contém para quem a evoca ou dele se ocupa. É o sentido de
representação de uma situação vivida, de algo significativo para a apreensão de seu
conteúdo, seja esse algo um episódio, um personagem ou uma dada situação a envolver
coletividades. Substantivamente a História está presente na nossa própria existência. Ela
é necessariamente histórica. Desse modo não somos nós que estamos na História como
se fosse alguma coisa a parte de nosso ser. Nós somos História.
Há o sentido verbal do termo. Historiar ou Historicizar representam maneiras de
se referir a maneira de examinar uma questão que pressuponha uma recorrência ao
conhecimento histórico. Não se pode conjugar o verbo se não formos capazes de detectar
os problemas apresentados ao desafio de nossos conhecimentos. É claro que a simples
2 O livro é o História da Riqueza dos Homens, traduzido e editado no Brasil pela Zahar Editores, em sucessivas edições;3 O livro se intitula História e Verdade e foi editado no Brasil pela Editora Vozes;
conjugação do verbo não diz rigorosamente nada, pois é possível, por exemplo historiar
um filme a partir da seqüência de imagens, sem que se perceba a mensagem do cineasta.
Da mesma forma é possível analisar o mesmo filme dispensando-se as imagens
cronológicas e se centrando nos momentos em que o seu conteúdo propõe reflexões,
cujo enredo proposto pelo cineasta é apenas uma dos encaminhamentos para os
problemas apresentados.
Mas, História também possui um outro sentido, o da adjetivação, não desprezível
para ser aqui ignorada. Quando se exclama, é histórico esse seu discurso!, está-se dando
um colorido e uma ênfase a atos e pronunciamentos considerados de grande relevância.
Outros usos no mesmo sentido dotam o vocábulo de elementos dignificantes de modo a
fazer da História alguma coisa tão profundamente sentida e apreciada por quem a aplica
e a interpreta. Esse é uma das polissemias existentes para a palavra História.
No entanto, a polissemia mais conhecida e portanto comum é a que compreende
os significados de rerum gestarum e res gestae, isto é, a História contada, narrada e que
se integra à corrente da Historiografia, por ser exatamente uma espécie de escrita dos
fatos históricos; e, a História evento, que se processa enquanto acontecimentos sujeitos à
apreciação futuro ou imediata dos historiadores. Logo, a História que se faz no sentido
de sua interpretação, ou a História que se faz no sentido de atos e fatos que se registram
no tempo, são ambas produzidas pelo ser humano em suas inquietudes e ações
decorrentes de impulsos que os levam a dar sentido a espécie humana.
O gosto pela História data da origem dessa espécie. Desde o primeiro ato de
nossas vidas, tanto na acepção da vida histórica quanto na da vida individual, o caráter
histórico está presente. Na mais remota de nossas lembranças como espécie distinta
daquelas a nos ligar aos símios, de modo a se criar à idéia de um elo perdido, ponto no
qual teria sido gestada a espécie hominídea, há indícios e vestígios de uma manifestação
histórica. A Pré-história deriva exatamente desse interesse em pesquisar o transcurso
desse período antecedente ao que a documentação comprova as ações de formas
comunais e societárias da humanidade, com suas crenças e toda uma produção cultural a
distinguir-se da dos que o antecederam nessa longa caminhada em direção à reafirmação
da espécie no planeta.
Hábito ou necessidade de se cultivar o passado, eis a característica mais
diferenciada da espécie humana em relação as demais. Na verdade, o ser humano não se
distingue tão-somente por atributos de natureza material, como o de transformar o
ambiente em que vive. Este atributo é também comum a outras espécies. O que
efetivamente as distingue dos seres humanos é que esses animais não modificam os
meios através dos quais se opera a transformação do ambiente. Eis o fator diferencial
mais destacável de nossa espécie. E para realizá-lo não bastam apenas a existência de
uma poderosa consciência das suas necessidades, se não tiver presente na percepção
dessas necessidades um inventário de domínios que se acumularam ao longo de
gerações. Dessa maneira, os antepassados são o que poderíamos chamar da ferramenta
cognitiva mais pretérita e indispensável com vistas à obtenção de uma consciência das
condições reais de sua vida.
A esse repertório de conhecimentos que foi sendo reproduzido de tempos em
tempos poderemos chamar de Historicidade. Ela pode ter outras definições, mas a que
me parece mais consistente e mais costumeiramente usual é a que a vincula ao passado
como referência para o presente. E é o seu sentido etimológico, pois se trata de fato da
idade da História, ou seja, o ajuntamento de realizações cujo contato com ele não se
pode deixar escapar, justamente para que se possa dar continuidade à epopéia da
humanidade em direção ao seu destino de plenitude insaciável. Agrega-se a esse sentido,
a idéia de uma cultura política, se a esta se entender como um conjunto de práticas
sedimentadas ao longo do tempo e do espaço, e cujo significado diz respeito a um campo
de observação da realidade, não importa se representada localmente ou universalmente.
Ciência da alteridade, assim como a Antropologia, a História incorporou uma
dimensão senão nova pelo menos mais renovada, no que se refere ao uso de métodos até
então ausentes. Trata-se do que se convencionou chamar de História do Presente. Uma
História Imediata ou que transcorra enquanto objeto de análise do Historiador em seu
próprio tempo. Os pruridos que a fizeram observar com vistas ao que se propunha ser
uma interpretação isenta de subjetividade, como se isso fosse possível em matéria de
ciência cujo sujeito e objeto são, ambos, de carne e osso, foram removidos pela
convicção de que o caráter verdadeiramente científico se encontra na construção daquilo
que resulta do trabalho inteligente do Historiador. É precisamente por intermédio deste
trabalho que uma obra se torna não só exeqüível como capaz de ser inteligível aos que a
leiam e testemunho de época para o patrimônio cultural e científico da humanidade.
Com base nesses pressupostos penso que é o momento de avançarmos em
direção à idéia de História, seja como conceito operacional a ser trabalhado por quem a
utiliza, ou como portadora de uma identidade, de modo a situá-la no rol das ciências e,
portanto, incluindo-a na longa relação de matérias indispensáveis ao saber. Desde já
essas idéias de ciência e saber atribuídas ao conhecimento histórico impõem alguns
comentários. A exemplo do que prometi ao leitor acima, não os aborrecerei com pesadas
citações. Deixarei de lado os argumentos de autoridade, porquanto o propósito aqui é o
de manter-me no tom coloquial de uma conversa e, como tal, adicionar eventualmente
um ou outro comentário mais caudaloso quando se fizer necessário.
Quando Marx propunha ser a História uma espécie de matriz geradora de outras
ciências, ele estava considerando um elemento fundamental de sua concepção filosófica,
segunda a qual é inadmissível dispensar o dado histórico nas tarefas de elaboração do
conhecimento científico. A premissa da contextualização como condição necessária para
o cientista, não importa de que campo da ciência, é de fundamental importância e
indispensável fator para a abordagem dos fenômenos. E aí se põe a questão estrutural
mais primária da História, tal qual o dilema do ovo e da galinha. Quem nasceu primeiro?
É possível falar do indivíduo desvinculado de sua História ou desta como uma entidade
sem corpo e idéias? Sem dúvida, o problema que se coloca é de natureza epistemológica
e nos conduz a questão da atitude gregária, que sugere a impossibilidade de se examinar
o ser humano fora de seu ambiente, necessariamente coletivo, e em conseqüência,
histórico. Essa ambivalência a conjugar o particular com o geral, a individualidade e
subjetividade com a coletividade e objetividade, produz até hoje variadas leituras.
Cabe aqui uma breve incursão sobre o momento em que me tornei um historiador
assumidamente marxista. Bem depois de ter me situado no espectro da esquerda, com os
compromissos que tal definição acabam por acarretar, pus-me a ler os chamados
clássicos do marxismo, a começar, como sempre me sugeriram amigos e companheiros,
com O Capital. O apoio em leituras paralelas de marxistas igualmente credenciados para
quem deseja acrescentar a indispensável massa crítica a respeito da filosofia marxista
enveredei pela obra de Lênin. Foi dele que tive o impulso de conhecer uma das fontes do
marxismo, o filósofo Hegel e, especialmente, a sua dialética. Recordo que após a leitura
da Lógica hegeliana e o seu estudo sobre a dialética do senhor e do escravo pude, com
convicção fundamentada, entender a importância desse filósofo para Marx, como
sentenciara Lênin, ao dizer que não se poderia compreender Marx sem que se lesse
Hegel, e em especial a sua Fenomenologia do Espírito
Acompanhei um momento dos mais fecundos das reflexões acerca da função da
História e do papel do Historiador. Esse momento ocorreu nos anos sessenta do século
passado, embora tenha suas origens no segundo pós-guerra. O debate em torno dessa
questão e das questões paralelas a essa, consistia em dar um sentido universalista para a
História, a partir da constatação de que em toda cultura a referência da História está
presente. E sua presença é visceral, inteiramente indispensável para a compreensão do
mundo e das coisas. Além disso, o responsável pelo fabrico dessa coisa visceral, o
Historiador, deveria ter um papel altamente relevante, porquanto era de sua competência
a operação de dar sentido às realidades examinadas. Em decorrência desse debate
acadêmico e intelectual, filosoficamente falando, surgira em seguida a polêmica sobre o
herói na História. Em outras palavras a indagação: quem faz a História? Os grandes
líderes ou as massas?
Indivíduos e massas, heróis e vilões, líderes carismáticos e lideranças populares,
esse leque de referências ressurgiria com certa freqüência nos tempos da Guerra Fria, e o
curioso é que não se confinava apenas no espectro da direita, mas ganhara adeptos entre
os estudiosos da esquerda no campo das ciências sociais. Se tais discussões acaloradas se
faziam quase exclusivamente impulsionadas pelas paixões ideológicas a atravessar as
mentes mais ou menos brilhantes dos seus contendores, era indiscutível a presença de
um elemento que pouco a pouco foi desaparecendo, a atitude de instigar à reflexão e a
inspirar formulações para os mais diferentes problemas da humanidade. No Brasil da
geração de meados do século vinte figuras como Alberto Guerreiro Ramos, Álvaro
Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, este principalmente nos anos sessenta, foram dos mais
entusiastas defensores de projetos para um país que começava a se descobrir como parte
integrante de um cenário mundial do qual deveria participar como força transformadora.
Ao freqüentar os cursos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)
decidi-me pelo Curso de História. Antes me dividira entre esta e o Curso de Ciências
Sociais, divisão esta que tentei ainda levar por algum tempo até que as múltiplas tarefas
me levaram a optar definitivamente pelos estudos históricos. Mas, os tempos do ISEB
me marcaram e entre essas marcas se encontra um debate surdo, nunca manifesto por
completo, entre Vieira Pinto e Anísio Teixeira. O primeiro a defender a revolução das
massas, e o educador baiano, a renovação das elites. Estava sendo praticada a querela a
envolver os protagonistas da História, fossem eles representados por coletividades
vinculadas aos segmentos sociais marginalizados ou as individualidades detentoras de
uma função específica, a de conduzir os anseios das maiorias, e para tanto serem
portadoras de certos atributos sem os quais esses objetivos não se concretizariam.
Naquela época, a História era ensinada a partir de uma sucessão interminável de
fatos, de onda destacavam-se figuras de expressão institucional, sem que se argüisse em
que condições e circunstâncias esses fatos e essas personagens se projetavam, ou que
motivações os levavam a adotar determinadas atitudes. Cultivava-se uma erudição do
quantitativo da informação, pouco importando o significado de tantos eventos para
serem memorizados pelos educandos. E esse método de transmitir volumes incalculáveis
de dados era praticado em todos os níveis de ensino, do primário ao superior. Dessa
maneira o gosto pela História era escasso, só interessando aos que nutriam uma
curiosidade quase mórbida pelas coisas do passado.
O Projeto da História Nova, uma coleção que se propunha a apresentar a História
do Brasil de uma maneira a pôr em relevo o povo brasileiro e as forças políticas
dominantes, numa clara filiação à perspectiva marxista, obteve receptividade imediata
entre os estudiosos da História fossem ou não identificados com essa perspectiva. Os
eventuais reparos críticos eram ignorados ou deixados de lado em razão de uma
novidade, cujo mérito era o de substituir aquelas visões dominantes, elaboradas em torno
de construções factuais, conservadoras e amorfas dos relatos históricos, sempre
centrados no poder instituído e limitados à esfera das instituições. E em paralelo a essas
visões vivia-se um momento de intensa agitação cultural e política, o que tornavam
ainda mais anacrônicas as narrativas derivadas dessa tendência historiográfica.
A renovação historiográfica produzida pela Escola dos Annales, de Marc Bloch e
Lucien Febvre ainda não havia sido assimilada por completo em muitas partes do
mundo, inclusive no Brasil. Em parte porque a projeção dessa Escola no mundo
ocidental ocorre, não por acaso, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1945), e em
parte também pela letargia intelectual de nossos acadêmicos pouco afeitos a curiosidades
intelectuais. Até porque o fator a revolucionar o pensamento histórico trazido pela
Escola de Bloch, Febvre e o principal de seus continuadores, Fernand Braudel, era a
introdução da história-problema, isto é, a primazia no questionamento e não na
arrumação dos fatos cronologicamente, como era praxa se fazer pelo método tradicional,
o popularmente conhecido factual.
Os trabalhos desses historiadores franceses já circulavam pelas estantes de nossos
conterrâneos mais ligados às coisas que se passavam na Europa, mas a aplicação de seus
conceitos e campos novos de estudos carecia de estudos entre nós. De modo que
iniciativas como o que fora executada por Nelson Werneck Sodré e seus seguidores no
âmbito do ISEB se encontravam mais afetas à influência do marxismo do que dos
Annales. A propósito, a relação entre essa Escola a sugerir uma nova abordagem para a
investigação histórica e o marxismo seria objeto de muito interesse dos estudiosos.
Afinal, a estreita vinculação dos fatores econômicos e sociais, de modo a se entender a
indissolúvel integração dessas duas esferas, de certo modo só reforçava a análise
empreendida por Marx e seus seguidores. E isso sem que se esqueça que Marc Bloch
jamais escondeu seu apreço pelo método do Materialismo Histórico.
As muitas afinidades entre os Annales e o Marxismo não foram prontamente
identificadas pelos historiadores. Para os historiadores não marxistas o legado produzido
pelos fundadores da Nova Escola Francesa consistira tão-somente no alargamento do
campo de pesquisa dos historiadores e, sobretudo, na maior aproximação da História em
relação às Ciências Humanas. Ignoravam qualquer semelhança ou parentesco com a obra
do filósofo alemão. Essa ênfase aos novos horizontes proporcionados pela proposta dos
Annales, era uma maneira de considerar a Concepção Materialista da História como uma
corrente histórica superada, em face da incorporação de métodos e técnicas de
investigação mais eficazes no trato dos novos problemas e objetos da História. Ressaltar
o papel revisionista dos autores da primeira geração dessa Escola dos Annales era
também uma forma de promover a atualização do conhecimento histórico.
Os historiadores marxistas não reagiram com muito entusiasmo diante da
presença dos ventos novos trazidos pelo movimento renovador da Historiografia
francesa. De um modo geral, foram pouco receptivos e poucos creditaram aos estudos
empreendidos por Bloch e Febvre um valor histórico capaz de abrir perspectivas
inovadoras para a Concepção Materialista da História. Na França essa resistência durou
pouco tempo, mas mesmo assim a incorporação de categorias e conceitos produzidos
pelos intérpretes mais destacados dos Annales não contaria com uma acolhida
plenamente favorável. E ao contrário do ideário de Marx profundamente centrado numa
leitura quase canônica, o dos Annales diversificara de tal maneira que muitas vertentes
foram concebidas e ganharam vôo próprio à revelia de seus mentores.
Até o Golpe de 1964, a presença dos Annales nas universidades brasileiras era
quase inexistente, salvo um ou outro docente mais atualizado – e eram poucos – ou
algum discente mais inquieto intelectualmente e bem informado do movimento editorial
europeu. Os grandes debates nos meios acadêmicos eram de natureza política e se
resumiam aos problemas referentes à Reforma Universitária ou então se restringiam ao
exame da voracidade do imperialismo. Vivia-se intensamente as expectativas de
mudanças de modo que as questões acadêmicas, para boa parte de uma geração
universitária, se encontravam relegadas a um plano secundário, até porque não se tinha a
pressa de uma conclusão de nossos cursos, como se observa hoje em dia desde os
primeiros anos de graduação.
Num instante em que a pesquisa na área de Ciências Sociais ainda se
circunscrevia a levantamentos de pequeno fôlego acerca de fenômenos atinentes a essas
áreas, ou a estudos eruditos cuja característica mais marcante era exatamente a dispensa
de apoio na documentação, os procedimentos metodológicos não se alteraram e, entre
outras razões, o interesse em se inteirar sobre as novidades provocadas pela introdução
de abordagens mais interdisciplinares como a dos Annales eram pouco atrativas. E nesse
vácuo entre a teimosa tradição com base na erudição e as ferramentas a integrar campos
próximos dos estudos sociais, despontariam entre nós os brasilianistas. Esses
pesquisadores de Brasil, de diferentes procedências nacionais ocupariam a cena nos anos
setenta do século próximo passado, em especial. E trouxeram senão exclusivamente o
recurso da mensuração também já presente na historiografia francesa, a da História
Serial, que no Brasil passaria a ser conhecida pelo termo de História Quantitativa. Dessa
leva predominavam os norte-americanos. Segundo relato de um deles houve um
direcionamento de estudos para a América Latina, especialmente após a Revolução
Cubana de 1959, o que despertou a curiosidade naqueles que não tinham ainda um
objeto de estudo definido.4
É interessante a curiosa relação entre o que se passava no país, no terreno da
economia, com o que se observava na Historiografia. Vivia-se nesses anos 70 a
intensidade do crescimento econômico, habilmente transformado em desenvolvimento
para dar um sentido global de mudanças estruturais no que de fato acontecia tão-somente
nas atividades econômicas e financeiras, em função da expansão da fronteira capitalista.
Com o PIB brasileiro dando saltos consideráveis, em paralelo assistia-se na produção
histórica o domínio da História Econômica a trazer consigo também o reforço de outras
especialidades, tais como a Demografia Histórica surgida como uma componente
adicional de complementaridade e de abertura de novos horizontes naquele instante.
Foi em Nanterre, no início de 1971 que conheci um dos nomes representativos da
tendência quantitativista em História, o professor Frédéric Mauro, indicado por meu
orientador de mestrado, o professor Jacques Godechot, doyen de Toulouse, onde Mauro
tinha lecionado. Figura simpática e de bem com a vida, quando eu o conheci, era muito
querido pelos brasileiros, seus orientandos, e os estimava também. Quando esteve no
Brasil através de um convite que formalizei, mas que já contava com outras iniciativas,
como a da professora Maria Yedda Linhares, encantou-se com a idéia de estar no Brasil
e procurou saber das coisas do país, especialmente do milagre brasileiro em pleno auge
no ano de 1972, quando aqui esteve no Rio de Janeiro, se não me engano pela primeira
vez, já que depois fez mais algumas viagens sempre à convite de universidades
brasileiras. Dele traduzi o seu História Econômica Mundial, pela Zahar Editores, e por
sua indicação realizei um curso introdutório ao dele na pós-graduação de História
Econômica da UFPR, no mesmo ano de 1972.
Esse momento coincide com a expansão dos programas de pós-graduação, e as
primeiras dissertações de mestrado e teses de doutorado refletem exatamente o
predomínio da História Econômica. O profundo sentido revisionista decorrente desses
trabalhos acadêmicos não só ensejaram pistas novas para a Historiografia, como
4 Em uma entrevista, o historiador norte-americano Thomas Skidmore disse que ele mesmo se interessara pelo aprendizado do português, e portanto pelos estudos de nossa História, por uma questão de horário das aulas, mais tarde do que a de espanhol, que seguramente depois também a ele passou a interessar.
subscreveram, na prática, uma nova tendência conceitual para os estudos históricos, cujo
elemento basilar foi a convicção de que a produção do conhecimento principia
necessariamente com a busca das fontes documentais, a análise das mesmas e sua
interpretação à luz de perspectivas centradas em problemas suscitados pelo reexame do
conhecimento sistematizado, mas ainda não totalmente satisfatório para o esclarecimento
de fatos e situações pendentes em nossa História do Brasil.
Essa hegemonia da História Econômica não se prolongou muito, porque a partir
dos anos 80 começaria o progressivo domínio da História Cultural no âmbito desses
programas de pós-graduação. A onda pós-modernista crescentemente influente aquela
ocasião iria, em paralelo, aproximar as áreas afins das Ciências Sociais, todas tendo
como pano de fundo a questão da cultura objeto dos mais trabalhados pela tendência que
se impunha lentamente. O princípio da relatividade, perfeitamente compreensível na
Antropologia, produziria na História alguns sérios problemas, uma vez que reduziria a
realidade concreta a uma mera abstração determinada pela invenção ou criação
intelectual.
Nos anos setenta, Michel de Certeau introduziu uma reflexão que se tornou
bastante discutida nos meios acadêmicos ocidentais e sob influência ainda francofônica.
Foi a questão das condições de produção do conhecimento histórico. Mais precisamente
dos meios e ferramentas de que valem os historiadores para fazerem a História. Esta
questão tem presentemente uma atualidade indiscutível, porque as normas sugeridas e
até impostas por órgãos de fomento à pesquisa e responsáveis pelas avaliações nas
universidades, dado que a produção científica é monitorada e acompanhada segundo
padrões ditados não pelos pesquisadores, mas por quem os avalia de acordo com regras
que propõem.
Entre os anos de 1950 e 1960 crescera a influência da Psicanálise no âmbito das
ciências sociais. As leituras de Freud ou sobre ele e sua obras, de Jung e seus discípulos,
bem como de Lacan, tornaram-se objetos de muitas interpolações, convergências e
divergências tanto entre os historiadores em geral como no centro do debate dos
marxistas de todos os matizes políticos e partidários. A idéia forte de libertação a
orientar as manifestações emancipacionistas dos jovens, das mulheres e das chamadas
minorias até então confinadas aos guetos pela intolerância e o preconceito que a elas se
dirigiam criavam um ambiente favorável senão ao endosso dessas demandas pelo menos
a reflexão, de modo a estimular temas e objetos novos no campo da investigação
histórica, antropológica e sociológica, para nos limitarmos apenas às áreas das ciências
sociais e aos seus domínios mais conhecidos. Um desses subprodutos foi a Psico-história
ou psicologia histórica, no terreno dos psicólogos e psicanalistas, ou a História das
mentalidades, que trouxe consigo outras estranhas denominações tais como Metablética,
a ciência das mudanças, e derivados. Todos esses ensaios se explicam olhando-os à
distância como experimentos provocados pela forte presença dos estudos psicanalíticos e
dos próprios tratamentos psicanalíticos entre os historiadores.
Mas esse tempo libertário e de experimentos de toda ordem não permaneceria por
muito tempo. O furor empreendedor dos anos de 1970 a incrementar o consumismo
desenfreado combinara-se com a política de Reagan nos EUA dirigida contra a URSS e
os países socialistas a motivá-la a convicção de que era possível pela exaustão de
recursos desviados para operações bélicas consumir os orçamentos planificados do
sistema socialista, e com isso, previa-se a sua implosão num espaço de tempo razoável.
A previsão foi otimista demais, porque ainda dentro do período de governo Reagan a
URSS já dava sinais de esgotamento. Estava, assim, aberto o caminho para a
implantação de um novo modelo a ser implantado. Surgiam as bases econômicas,
sociais, políticas e ideológicas do neoliberalismo.
No plano mais geral ganhava força a política neoliberal, aquela cuja máxima era
de decretar o fim do Estado e a prevalência do Mercado. Antes, um até então obscuro
funcionário do Departamento de Estado dos EUA, Francis Fukuyama, escrevera sobre o
Fim da História, após constatar o lento e progressivo desaparecimento das tensões
internacionais a envolver os mundos capitalistas e socialistas. Com isso, também estaria
se concluindo o período da Guerra Fria e, portanto, em não havendo embates de
conteúdo ideológicos sustentados por sistemas políticos e institucionais, as relações
internacionais seria marcadas pelo pensamento único em matéria de ideologia. Aliás, pra
que existiriam as ideologias? A sua presença num mundo integrado e único a tornaria
inteiramente dispensável. E com o seu término também a História.
As reações foram, em geral, muito tímidas diante da escalada de uma tendência a
proclamar-se universal. Em paralelo a essa manifestação no campo do conhecimento,
operava-se um estratagema com vistas a integrar o mundo em torno de uma espécie de
plataforma política comum. Era o Consenso de Washington, cujas lideranças sediadas na
capital norte-americana e em Londres, nas figuras do presidente Ronald Reagan e da
primeira-ministra britânica Margareth Tatcher, passaram a representá-lo e, em
conseqüência, a subscrever seus fundamentos. Estes consistiam na idéia segunda a qual
caberia ao Mercado ordenar-se à revelia de qualquer interferência dos Estados.
Proclamava-se, na verdade, a máxima do Estado mínimo. Contra isso o que se via era o
silêncio dos intelectuais, particularmente dos cientistas políticos e dos historiadores,
salvo, como sempre, as sempre honrosas exceções.
Das exceções cabe ressaltar dois nomes, dentre alguns das mais expressivas
vozes dissonantes. São eles Noam Chomsky e Eric Hobsbawm. Cada qual mereceria um
tratamento mais densamente fundamentado, não só porque são intelectuais de grande
envergadura, como suas manifestações não se limitaram a gestos isolados ou papers
meramente simbólicos, destes que os acadêmicos escrevem mais para deleite próprio do
que para interagirem, de fato, com uma comunidade de interesse maior do que a que se
constitui no âmbito das universidades. Contudo, para os limites modestos dessa reflexão
o que vale realmente é a lembrança de resistências que ambos exercitaram com a
inteligência e elegância que os caracterizam como homens de idéias. Tanto o escritor
norte-americano quanto o historiador inglês procuram examinar essa conjuntura
anestesiante com elementos de racionalidade e denúncia dos valores vigentes, de modo a
permitir aos seus interlocutores subsídios bastante estimulantes para que se possa
empreender a resistência a onda conservadora que se espraia mundo afora.
A carência de um debate qualificado e engajado remete à questão das utopias.
Como diz Immanuel Wallerstein, o conceito de utopia evoca imediatamente as obras de
Thomas More, Friedrich Engels e Karl Manheim, referências obrigatórias para quem
deseja imiscuir-se na questão. Mais do que os conteúdos que tais trabalhos possuem,
essas leituras conduzem o leitor interessado nos processos históricos, vale dizer, nos
mecanismos de decisão sobre suas próprias vidas. E aí a questão da História associada a
um interesse prático porque inerente a pessoa que se coloca diante de escolhas está
absolutamente quando se trata de considerações acerca das utopias. Assim, utopia e
desejo sempre caminharam juntas, seja na direção de um projeto político e ideológico ou
de um propósito pessoal e amoroso. Não importa a dimensão, o que importa é a presença
de uma motivação vital sem a qual qualquer projeto fracassa.
Utópicos foram os grandes líderes da História, não exatamente os que foram
alçados por intermédio de sistemas de poder a projetá-los como tal, mas os que se
bateram com base em projetos libertários e libertadores em defesa de povos ou
comunidades submetidas a dominação interna ou externa. Utopia mais do que um
sentimento é uma atitude diante de obstáculos que impedem a realização de desejos. E
quando esta atitude se conjuga com postulados e ideários de princípios doutrinários, ela
se converte numa força difícil de ser batida, mesmo que contra ela se organizem forças
ainda mais poderosas. Para mim o exemplo mais edificante dessa atitude foi a dos
vietcongs. Estive com um desses combatentes em 1968 num encontro internacional da
juventude e revelei a minha admiração pela coragem daqueles combatentes em face dos
marines dos EUA. E respondeu-me o jovem de pequena estatura: fazemos o que é
necessário fazer.
Também nessa mesma direção se situa a sentença proferida por uma das Mães da
Praça de Mayo, da Argentina, ao dizer que o único combate que se perde em definitivo é
aquele combate do qual se desiste. A determinação é um ingrediente fundamental numa
convicção. Tê-la sem acreditar que se possa conquistar algo do qual se deseja é um mero
capricho, porque objetivamente a crença por si só de pouca valia importa. A história dos
cristãos ao longo do Império Romano atesta a necessidade de se unir convicção com
determinação. De uma das muitas utopias existentes naqueles tempos, de tantos messias,
converter-se-ia na religião oficial do mesmo Império com Diocleciano. Ou seja, de
utopia virou uma ideologia, tal como sentencia Manheim. Foi, como muitos outros
pequenos ou grandes acontecimentos, um vir-a-ser que se materializou. De resto, as lutas
sociais ou individuais contra adversidades podem também se converter em vitórias.
Não é por acaso que a décima primeira tese sobre Feuerbach, de Marx, quando o
filósofo alemão diz que até então os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, mas
que chegara a hora de transformá-lo, tem sido uma convocação a todos quanto almejam
intervir na História em nome de um credo ou projeto de vida. Se esse projeto se destina a
todos, numa transformação que parta de uma atitude altruísta e plena de generosidade
para com os seus semelhantes, mais bem sucedida poderá se tornar essa contenda.
Talvez tenha sido através dessa tese apresentada com tanta simplicidade, mas carregada
de sinceridade, que muitos tenham tomado partido em defesa do sentido da História
como realidade social passível de ser permanentemente modificada ao sabor das
necessidades que o tempo assim determinar, ao lado da capacidade de apreensão das
forças sociais e da acuidade em saber executar as tarefas indispensáveis a sua realização.
O interessante é que o marxismo resistiu à Guerra Fria e a onda neoliberal do
último quarto do século vinte. E não apenas como filosofia política, como tantas que se
registram ao longo da História, mas como instrumental analítico capaz de servir aos
objetivos dos que se propõem a analisar os processos sociais e políticos. Considerado
pelas vozes mais conservadoras e reacionárias como uma filosofia superada, sobretudo
após a desestruturação dos países do chamado Socialismo Real, parecia fadada a sofrer
as conseqüências dessa derrota política e ideológica. No entanto, não só sobreviveu
como tem sido uma fonte de consulta dos cientistas sociais diante das demonstrações
freqüentes das crises capitalistas e seus efeitos devastadores na economia mundial.
Com a crise de crédito provocada pelos financiamentos bancários sem lastro
correspondente para bancar a sucessão de inadimplentes do setor imobiliário, o que
resultou em uma mais recente crise do capitalismo na virada dos anos de 2008 e 2009,
quando escrevemos essas linhas, de novo a referência à obra de Marx tem vindo à tona.
De fato, a “bolha” que se criou com a enorme preponderância do capital virtual, aquele
que se encontra no circuito financeiro, sobre o capital real, sugere a todo o momento as
análises desenvolvidas pelo autor de O Capital. Até mesmo os economistas não
marxistas reconhecem a pertinência daquelas análises desenvolvidas a cerca de um
século e meio, cujo sentido se aplica convenientemente à realidade desses fatos
correntes.
No tempo dos generalistas
Até meados do século vinte, a Historiografia ainda gravitava em torno das
chamadas obras gerais. Eram publicações produzidas por autores cuja erudição no
campo da História permitia que seu conteúdo sobrevoasse panorâmica e
sistematicamente os fatos, personagens e situações necessários para cobrir longos
períodos de tempo. A esses historiadores de ofício ou de ocasião deu-se o nome de
generalistas, em oposição aos especialistas, de presença mais dominante a partir do
incremento da pesquisa no Brasil. E de uma maneira geral, também essa situação
marcou a evolução historiográfica em outros países, sobretudo naqueles de forte tradição
iluminista, aonde a tradição de um domínio global do saber em prol de uma visão macro
das sociedades se impuseram.
Pode-se dizer que o século dezenove, ao qual se costuma creditar o momento de
nascimento da História como ciência, fez proliferar os grandes generalistas, como
propósitos os mais diversos. Havia os que se propunham a esquadrinhar os tempos das
civilizações através de sínteses mirabolantes, os que se centravam no trabalho de dar
vida e sentido as formações nacionais, num tempo em que essa questão e a do
nacionalismo proliferavam, e os que buscavam uma chave explicativa para que se
pudesse compreender o conjunto das transformações por que passava o mundo ocidental.
Para todos esses autores generalistas, dotados de uma cultura histórica que não requeria
fontes documentais comprobatórias, o que valia era a capacidade de dar racionalidade a
trama narrativa de modo a torná-la factível e com ela justificar-se a existência dos povos
e das instituições. Mais direcionado os relatos de tais obras, por vezes, a estas do que
aqueles.
Assim, a querela decorrente dos frutos da Revolução Francesa centrada em dois
pólos antagônicos, ordem e movimento. Tal querela influiu igualmente na elaboração
das histórias redigidas durante esse Século da História. De um lado, a visão restauradora
e napoleônica, ambas, apesar de diferenças entre si, fundadas na idéia de uma visão de
cima para baixo; ao passo que a outra, inspirada na obra de um Michelet centrada na
concepção de que a História faz sentido na medida em que registra a ação, o movimento,
bafejado pela busca incessante da realização dos povos, das massas, enfim de quem
efetivamente faz a História. E essa dualidade de enfoque histórico, a representar os dois
lados ideológicos do fermento provocado pelos revolucionários franceses acendeu a
imaginação de gerações sucessivas com vistas a por em prática essas visões de mundo.
Quando defendi o meu Mestrado na Universidade de Toulouse, em 1970, perante
Banca Examinadora presidida pelo meu Orientador, o então doyan da referida
Universidade, professor Jacques Godechot, cujo único propósito era mostrar que aquele
brasileiro a quem ele tinha orientado tinha aprendido a lição segundo a qual foi Michelet
que estabelecera a matriz interpretativa para os estudos dos movimentos sociais
contemporâneos, ao incorporar as massas na História. Ao declinar nome e tese do pai da
historiografia revolucionária francesa, Godechot revelou uma faceta pouco usual em seu
comportamento: sorriu levemente de satisfação. Sim o seu aluno brasileiro aprendera a
mais importante lição relativa ao pensamento político da França pós-revolucionária, ele
que era um estudioso da Contra-revolução na França.
Ao retornar ao Brasil percebi que mesmo os historiadores marxistas não
compreendiam bem a importância de temas relacionados com as multidões ou a ação
espontânea das massas. Lembrava Vieira Pinto e sua tese da revolução das massas, mas
agora em um outro contexto, o da irrupção de movimentos representativos de categorias
e micro regiões nem sempre contempladas pelos pesquisadores vinculados à vertente
inaugurada por Marx. Claro estava mais do que revelada a falta de uma tradição em
pesquisa regular e seriada, capaz de produzir conhecimentos novos que, sem afrontar a
perspectiva macro histórica, pudesse complementá-la com estudos de casos a respeito de
objetos e métodos até então não empregados, ou territórios ainda não devidamente
explorados pela investigação dos historiadores.
Não se encontrava decretado o fim dos estudos generalistas, como se poderia
supor, mas a inclusão nesses trabalhos de sistematização das novas pesquisas e dos
novos conhecimentos delas derivadas. Se isso ocorreu de fato, é o caso de uma avaliação
a ser feita. O fato é que de alguma forma o incremento da pesquisa revelou-se profícua
nas obras dos generalistas das gerações bafejadas pela massificação da pesquisa
científica, em grande parte proveniente dos programas de pós-graduação a surgirem com
vigor, sobretudo a partir da década de 1970. Mesmo sob óticas nem sempre compatíveis
com o trabalho de síntese indispensável para a confecção dos manuais e dos livros para-
didáticos nas diferentes áreas de ensino, não há dúvida de que houve um significativo
progresso na narrativa e na ordenação dos fatos e das respectivas conjunturas
representativas dos períodos históricos. E isso graças à profusão crescente de projetos de
pesquisas bem conduzidos.
O problema dos novos generalistas é que os trabalhos de maior fôlego aparecidos
a partir do incremento de métodos e abordagens novas, ao contrário dos velhos
generalistas, passaram a ser dominantemente monotemático, isto é, centrados em torno
de pesquisas seriais, principalmente no domínio da História Econômica e áreas a ela
afins, ou desenvolvidos dentro de arcabouços fundamentalmente ligados as questões
mais específicas da História Social ou Cultural. Assim, enquanto os velhos procuravam
dar uma visão integrada das diversas dimensões da realidade histórica apreendida, os
novos passaram a integrar a realidade a luz de um vetor claramente determinado. Saia de
cena o erudito em condições de transitar, ainda que superficialmente, em todos os
setores do conhecimento histórico, e entrava o especialista, que ao invés de estudos
generalistas introduziu as visões macro históricas derivadas de seu campo de
investigação.
Um exemplo disso se encontra nos estudos de biografias. Como se trata de uma
temática tão presente não importa em que período histórico e, portanto existente ao
longo da Historiografia, é possível através dela traçar o paralelo mencionado no
parágrafo anterior entre a velha e a nova obra dos generalistas. Na perspectiva daqueles,
o personagem biografado era exaustivamente detalhado através de uma história de vida,
normalmente concebido cronologicamente de maneira a permitir ao leitor uma
informação minuciosa da trajetória biografada. No que se refere à nova obra generalista
o biografado é situado em meio a um tempo no qual normalmente se enfatiza o ambiente
de trabalho ou de realização do personagem objeto do interesse do biógrafo. Além disso,
reapareceu com força a idéia das biografias coletivas dando conta dos lugares e fazeres,
ou ainda das comunidades ou confrarias, com base num método que Lawrence Stone
preferiu denominar de Prosopografia, termo que não chegou a empolgar os autores de
biografias coletivas.
Pessoalmente pensei em adotar esse termo por ocasião da elaboração da biografia
de Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão, que a rigor foi um trabalho de ghost
writter, pois fora escrito como se fora o personagem depondo para a posteridade de seus
amigos e companheiros de PCB, do qual foi militante e dirigente. Deixei de lado o termo
por achar que se tratava de um exagero para ser aplicado no caso desse trabalho
realizado conjuntamente com o personagem, mas também porque a idéia de aplicar o
termo só tinha algum sentido se desenvolvesse em paralelo a outras biografias de
quadros do partido, de modo a proporcionar ao leitor um apanhado do ser comunista no
Brasil, a luz de alguns de seus militantes mais ou menos significativos, pois o que
interessava seria uma espécie de moldura da ação dessa comunidade de interesse
formada em torno de um partido político com dedicação a uma causa comum, a
revolução.
Ainda assim redigi pequenos ensaios biográficos de quadros da militância
comunista no Brasil, como os de Roberto Morena, Salomão Malina e Luís Carlos
Prestes, nos quais busquei situá-los no contexto político e partidário, bem como na
conjuntura nacional e internacional de épocas muito próximas, uma vez que foram
contemporâneos do PCB. Ainda acalento o projeto de ampliar essa relação incluindo
pelo menos mais dois comunistas cuja presença na história do partido foi
destacadíssima. Refiro-me a Carlos Marighela e a Gregório Bezerra. Ambos, a exemplo
também dos outros, têm trabalhos biográficos conhecidos, porém a incorporação desses
nomes tem o objetivo de se elaborar uma prosopografia do PCB, mais precisamente dos
dirigentes comunistas para uma eventual e posterior análise.
Os estudos de biografia desenvolvidos por historiadores cresceram
consideravelmente a partir dos anos 80 do século vinte. Há razões para esse surto
historiográfico, a começar pela maior desenvoltura dos programas de pós-graduação,
assim como o da evocação de lideranças expressivas transformadas em objeto de estudo
distantes – pelo menos na intenção – das hagiografias de tempos atrás. Também a
melancólica saída de cena de líderes de grande força, os quais não tiveram substitutos à
altura, tais como Mao Tse Tung (Maosedung), De Gaulle, e mais recentemente Fidel
Castro, devem ter despertado o interesse pelos estudos de maior densidade desses
personagens, isso sem mencionar Hitler, Stálin, Roosevelt e Churchill, entre outros, que
representaram não só atores de forte influência no cenário internacional como símbolos
de sistemas de poder e atitudes políticas de decisivas interferências nos rumos da
sociedade contemporânea.
Em função dessa proliferação de estudos produzidos no âmbito da academia e
tendo como tema biografias, autobiografias e memórias intelectuais e existenciais, que
resolvi sistematizar uma série de anotações feitas em diversos momentos a respeito
desses temas, e que denominei de Autohistória. A intervenção no social. O objetivo
dessa publicação era a de fornecer algumas pistas para a elaboração de pesquisas sobre
individualidades comprometidas com o seu tempo, daí ter cunhado a expressão que
acabou se tornando título do livro, com o subtítulo cuja finalidade era tão-somente de
reforçar esse intento. Derivado de umas notas visando um curso de metodologia da
História foi, pouco a pouco, ganhando corpo e resultado num volume posteriormente
acrescido de algumas páginas memorialísitcas, uma vez que essa proximidade de uma
História centrada na experiência pessoas passa, quase obrigatoriamente, por um
exercício de memórias.
O desejo de reunir num conjunto de notas dados acerca de procedimentos
metodológicos, bem como algumas pequenas incursões no domínio da Teoria da
História, levou-me, ainda nos anos setenta, a editar um pequeno livro bem sumariado
fruto dessas anotações, cuja publicação me foi incentivada pela direção da, na época,
Faculdades Estácio de Sá, numa coletânea da Editora Rio. Assim, em 1975 produzi meu
primeiro livro sem que tivesse idealizado sequer o seu conteúdo final. Nesses anos o
surgimento dessas novidades teórico-metodológicas acontecia em meio a um ambiente
fortemente repressor do ponto de vista político e ideológico, contaminando as
publicações que viam à tona e inibindo outras tantas que não puderam ser veiculadas. O
refúgio no emaranhado das discussões metodológicas acabou se transformando num
porto seguro, sobretudo para quem combinava com razoável destreza a condição de
intelectual engajado nas tarefas destinadas à luta pelo retorno ao Estado de Direito e às
liberdades democráticas.
A sobrevivência da visão generalista é um fato talvez pouco perceptível para
quem, à época, vivia as voltas com as perspectivas aparentemente inovadoras da Micro
História e da História Oral, ambas muito cultivadas por historiadores a buscarem novos
caminhos para seus estudos e pesquisas. Se a tradição da Micro História foi, num
primeiro momento, uma espécie de contraponto aos estudos macros, muito embora tenha
peculiaridades que afastam-na dessa leitura um tanto ou quanto esquemática demais; o
mesmo não aconteceu com a História Oral. Nesta, a questão não era propriamente de se
opor à visão global, mas a de enfatizar a relevância das fontes orais, cuja importância
tinha sido relegada a um patamar secundário pelos cultores da metodologia tradicional.
Durante breve tempo houve uma quase polêmica em torno da denominação
História Oral. Para uns um certo exagero, pois transformaram as fontes orais num
exclusivismo tal que seria o caso de se cultuar igualmente uma História Documental, por
que não? Outros, porém, ponderavam que a expressão possuía alguma propriedade
porque se tratava de uma abordagem centrada em depoimentos a direcionar o texto por
fim elaborado com base nesses depoimentos. Seja como for, o fato é que os meios
acadêmicos acabaram por incorporar a denominação. Há que acrescentar que a adesão
dos demais cientistas sociais, especialmente os antropólogos, a essa altura mais
próximos dos historiadores, que por seu turno também passaram a se servir de conceitos,
tais como os de cultura política, por exemplo, a gosto daqueles. Por fim, a aparição de
centros de documentação voltados para a captura dessas fontes e a produção de trabalhos
de elaboração convincentes sobre a História Oral, gerou a convicção de que essa linha de
produção histórica ganhara definitivamente a sua alforria e se tornaria adulta para a
Historiografia.
Também a questão do gênero ganharia alguma freqüência nos estudos que
vieram à tona a partir dos anos 80 do século vinte, ainda que não se constituísse
propriamente de um campo novo, o crescimento considerável do interesse na História da
Mulher e de temas a ela correlatos, como o da sexualidade na História, assim como o
Homossexualismo, a Homofobia e os problemas enfrentados por determinadas estruturas
de poder a respeito desses assuntos, alcançaram visível presença na Historiografia. Claro
está que o ingresso dessa problemática, até então um tanto ou quanto marginal, na esfera
política, de modo a propiciar a inclusão de dispositivos constitucionais para abrigarem
os casos tidos outrora como desviantes, criaram uma atração não desprezível por parte
de Historiadores e demais Cientistas Sociais, todos, é evidente, integrados a essas lutas
pela ampliação de direitos e de maior amplitude também da cidadania.
A desenvoltura dos estudos regionais agregou não só elementos importantes para
a compreensão de uma visão macro, até então refém de uma perspectiva superficial da
sociedade nacional. O foco demasiadamente centrado no eixo centro-sul estendia a
outras áreas do território nacional características nem sempre presentes nessas regiões.
Grande contribuição proporcionou a pesquisa científica a desvendar aspectos e
peculiaridades ignoradas ou desprezadas pelos autores de nossas histórias gerais. Ainda
assim, pela escassa divulgação de parte dessas investigações, os compêndios generalistas
ainda não incorporaram essas contribuições. Trata-se, pois, de um desafio colocado para
esses e outros autores que se propuserem a produzir essa linha de produção relativa à
História Geral do Brasil, seja para fins pedagógicos e educativos ou para propiciar dados
aos interessados no estudo de nossa História.
De uns tempos para cá, pelo menos desde os anos 80 do século próximo passado,
tem havido grande número de publicações coletivas a respeito de temas específicos ou
variados. Em geral encomendados por organizadores dessas obras com vistas a dar um
apanhado das temáticas recorrentes na área acadêmica. Esses estudos costumam
congregar pesquisadores de áreas complementares e se destinam a um público carentes
de informações precisas e ao mesmo tempo atualizadas sobre conteúdos nem sempre de
fácil acesso no movimento editorial existente. Alguns exploram questões tidas
anteriormente como definidas pelas narrativas tradicionais das obras gerais. Outras
incorporam objetos pouco presentes nesses trabalhos voltados para o grande público.
Tem sido, assim, uma forma também de agregar esforços e articular instituições,
laboratórios e núcleos de investigação, num empreendimento meritório.
Todavia, a apreensão global dos tempos e dos processos sociais por parte dos
novos historiadores parece presentemente ausentes dos trabalhos que se pretendem mais
abrangentes. Dos tempos dos generalistas tradicionais ou renovadores a organização dos
dados factuais se encontravam coordenados a visões de dimensões e situações diversas,
o que não ocorre isoladamente por parte dos novos historiadores. As obras gerais
coletivas mesmo quando abarcam tempos e processos sociais diferenciados quase
sempre não incluem nas participações individuais matérias alusivas a aspectos que
extrapolam suas especialidades, como se o conteúdo delas por si só fossem suficientes,
junto as demais, para darem conta desse universo. Neste caso, e se fundamento possui
essa observação, caberia ao leitor estabelecer as conexões e articulações com o todo.
A expectativa de que a integração de pesquisadores em torno de projetos de
longo prazo, de maneira a abranger tempos e perspectivas mais amplos do que os
estudos pontuais, possam ser desenvolvidos com vistas a retomada das obras de
referência de natureza generalista. Só assim o caráter generalista da História pode
prosperar em meio a um conjunto enorme de pesquisas mais voltadas para pequenos
universos temáticos ou regionais. A antiga prática generalista centrada numa única
autoria parece definitivamente superada. Contudo, não se deve confundir o fim desses
esforços individuais num cenário cognitivo mais complexo, com o término em definitivo
das contribuições de autores dedicados ao sempre oportuno trabalho de sistematizar o
conhecimento produzido, com vistas ao interesse de um público necessitado desse tipo
de trabalho. A rigor pode se dizer que a maneira de se realizar o trabalho generalista no
campo da História assume novos elementos, cada vez mais relacionados com a expansão
da pesquisa histórica. Neste sentido, o generalista de hoje deve se inteirar, senão se
investir, de preocupações com o andamento das novas investigações decorrentes dessa
expansão. Vejamos a seguir as novas tarefas dos generalistas.
O novo enfoque generalista
A abordagem generalista não pode ser considerada superada do ponto de vista
historiográfico pelo simples motivo de que é necessário incorporar as pesquisas pontuais
ao acervo do conhecimento histórico. Para tanto é imprescindível a sistematização desse
novo conhecimento gerado pelas pesquisas. O que muda no enfoque desse novo
generalista é a maneira de enfrentar a tarefa da síntese histórica. E essa nova maneira se
encontra na capacidade de integrar as conquistas derivadas das investigações juntamente
com a perspectiva sempre instigante e crítica em face dos produtos que são produzidos
pela pesquisa científica, mesmo para questões aparentemente resolvidas no campo da
História, e o melhor exemplo é a própria História do Brasil.
Assim, podemos tratar do Descobrimento do Brasil numa abordagem plural.
Neste caso poderemos tratar dos descobrimentos relativos a formação histórica
brasileira, que principiam com a Descoberta em 1500 aos inúmeros momentos sujeitos a
questionamentos como, por exemplo, a Independência em 1822, o Império do Brasil
(1822-1889), a República e as questões envolvendo as diferenças ou diversidades
regionais, bem como as desigualdades sociais, e estaremos ao mesmo tempo
reconstituindo a História do Brasil com base na inclusão de novos dados provenientes da
pesquisa documental e acadêmica, como se estará indagando acerca das conclusões e das
sentenças que têm povoado o conjunto das informações referentes ao conhecimento
dessa História de âmbito nacional, de modo a conjugar a atualidade do que se tem de
novo com o que se tem de sedimentado em termos de informações e explicações
históricas e historiográficas.
Nessa perspectiva de análise as questões colocadas a título de exemplificações
oferecem possibilidades de interpretações absolutamente indissociáveis aos estudos
generalistas, pois não se poderia compreender a coexistência desses estudos em paralelo
aos produzidos com apoio em projetos de pesquisas específicas sem a preocupação com
as avaliações de ordem macro histórica. Seria conveniente até dizer-se que o trabalho
historiográfico é fundamentalmente um permanente trabalho visando descobrimentos
aonde sejam possíveis serem eles encontrados. O sentido de desvelamento talvez seja
mais apropriado para definir-se esse trabalho de percepção não esgotado por iniciativas
anteriores. Um apanhado desse tipo de exercício é o que se propõem as linhas que
seguem essas considerações iniciais, apresentadas aqui tão-somente a título de
experimento de ordem especulativa. sem, naturalmente, a necessária base documental
imprescindível em exercícios que visem resultados consistentes.
O marco histórico de 1500 suscitou longas controvérsias historiográficas.
Algumas centradas na questão de se precisar data e lugar corretos correta daquilo que se
denominou de Descobrimento do Brasil pela frota comandada por Pedro Álvares Cabral.
Outras a considerarem as motivações da vinda dessa frota. Em outras palavras, a
polêmica que se fundava nas hipóteses dessa chegada ao território que finalmente se
chamaria de Brasil. Se se tratou de uma vinda deliberadamente definida desde a sua
origem ou se o destino era mesmo as Índias e as naus acabaram sendo projetadas para o
sul do continente Atlântico, o que resultou, então, numa inusitada descoberta de terras
aonde até então apenas se suspeitava de sua existência. Evidentemente que a partir de
uma dessas hipóteses outras questões poderiam como foram, de certo modo, apreciadas
ou simplesmente registradas pelos historiadores que se debruçaram em torno dessa
querela.
Mas o que é significativo é que a existência da terra ainda não integrada ao
sistema de exploração européia tenha sido a única das preocupações de uma
historiografia mais do que secular. É certo que muitos analistas trataram dos povos que
se entrecruzaram na empresa que tornou possível a convivência dessas culturas tão
díspares com suas normas civilizatórias igualmente tão diferenciadas. Mas outras
descobertas ou descobrimentos só viriam à tona depois que a maior parceria dos
cientistas sociais se fez presente nos debates acadêmicos ou por iniciativas intelectuais
desprovidas de sentido científico senão secundariamente. Assim é que questões como
em que momento é possível falar-se numa formação social brasileira com todas as suas
contradições e sentido inconcluso a ponto de ser factível historiá-la como objeto
facilmente cognoscível não foram, tais questões, devidamente tratadas senão muito
esporadicamente.
A verdadeira descoberta do Brasil viria com o tempo e, sobretudo, com os
registros produzidos pelos cronistas, viajantes e todos quanto passaram a deixar
depoimentos acerca do espaço sobre o qual se erguia a maior colônia do império colonial
português. Junto com as lendas nativas recolhidas aos poucos pelos pesquisadores foi
sendo construída e desvelada a realidade da conjugação da imensidão da terra e de sua
gente desde os primórdios de uma história escrita dominantemente, é claro, pelos que se
apossaram de suas riquezas e de seus recursos naquele processo de exploração predatória
cujas seqüelas se estenderam por longos anos e muitas décadas. Assim, a menção sobre
o significado da descoberta ou do descobrimento deve levar em conta desde o instante da
chegada dos dominadores sobre os povos nativos até a inclusão das formas de apreensão
dos elementos constitutivos de uma sociedade formada por uma empresa colonial, mas
que se desenvolve também à revelia desse intento inicial e se fez independente desses
objetivos, que para cá trouxeram os colonos portugueses e de outras nacionalidades da
Europa.
O enfoque do que aqui se denomina de novo generalista a sugerir uma
diferenciação do estilo de abordagem dos generalistas tradicionais deve principiar, como
se está a propor, por um questionamento preliminar com base, é claro, nos trabalhos de
sistematização considerados clássicos ou de referência. Estes embora de importância
permanente pelo simples fato de terem sido precursores, não costumavam enumerar
problemas com vistas ao desenvolvimento de uma reflexão acerca do objeto histórico
geral, tal como o estudo de uma formação histórica nacional. Lembro que uma de
minhas primeiras leituras sobre os descobrimentos foi o livro do historiador português
Malheiros Dias, cujos volumes monumentais principiara com indagações a respeito das
hipóteses dos rumos das navegações que aportaram no Brasil e deram início à
colonização. Dessa leitura até a do historiador e jurista Raimundo Faoro, Os Donos do
Poder, dista uns bons anos de distância, mas apesar disto é possível encontrar um elo
comum: a preocupação de definir uma estratégia de abordagem de uma história nacional.
Os novos enfoques generalistas passaram a cultivar o que as obras acima
mencionadas já apresentavam. Refiro-me a elegância do texto e o valor que os autores
emprestaram a construção de suas narrativas. Assim, a incorporação de um estilo
literário ao discurso histórico aliado às preocupações com o que se poderia chamar de
alteridade historiográfica, no sentido de se apresentar diversas interpretações para certos
fatos, tem feito dos trabalhos de sistematização um ponto alto nesse emaranhado de
títulos editoriais consagrados a estudos temáticos e, portanto, pontuais. Para tanto muito
tem contribuído a fornalha de autores provenientes do jornalismo. Com a facilidade de
elaboração que o ofício exige desses profissionais, esses novos generalistas ocupam
presentemente um lugar de destaque na historiografia generalista. Apesar de serem
objetos de sistemática crítica dos cultores de uma História feita ao estilo dos
historiadores, como se tal História existisse, conseguiram impor-se ao leitor.
Os especialistas
O termo não me parece bom. Mas a contraposição de quem domina um
determinado ramo do conhecimento histórico com os generalistas parece não admitir
senão o seu emprego no campo das leituras historiográficas. Especialista, portanto, é
alguém que se ocupa de um tema, um certo espaço de tempo ou um método específico,
dentre as mais comuns formas de identificação desses pesquisadores. Em outras
disciplinas do saber o uso dessa expressão está plenamente aplicado, por não restar outra
que melhor a defina, no caso dos historiadores há, por certo, alguma controvérsia. E esta
é proveniente de uma premissa, a de que todo Historiador é necessariamente alguém que
domina a História como campo global do conhecimento, mesmo que não tenha um
domínio específico sobre algumas das áreas desse campo, pois não é possível ser um
especialista em História se desconhecer o seu processo global.
Com o incremento regular das pesquisas acadêmicas, favorecidas pela crescente
implantação dos programas de pós-graduação, é que a especialização ganhou força e
identidade historiográfica. Até então os trabalhos específicos ligados a um campo
determinado eram não apenas raros como independentes de instituições e fontes de
financiamento. Geralmente produzido por interesse exclusivamente pessoal de algum
estudioso e nada mais. Dessa maneira, a produção historiográfica no que concerne à
especialização é algo relativamente recente, uma vez que a expansão dessas pesquisas se
deu fundamentalmente a partir dos anos de 1960/1970, numa primeira grande leva de
obras, algumas das quais, que se constituíram em pontos de partida para estudos que
foram sendo gradativamente acrescidos de novas investigações.
A cobrança crescente de um maior rigor na elaboração dos trabalhos históricos e
a insegurança de uma geração saída do sistema de créditos implantado no Brasil à
revelia de qualquer estudo mais adequado para o seu funcionamento, conjuntamente
produziram esses dois extremos. De um lado a eficiência do sistema de monitoramento
dos cursos de pós-graduação pela Capes, mais tarde introduzida também ao nível da
graduação, propiciou um maior cuidado na realização dos resultados acadêmicos.
Todavia, a geração saída dos cursos universitários no afogadilho dos créditos a
comprimir conteúdos para multiplicar somatórios necessários ao complemento dos
mesmos resultou, e tem resultado ainda, em produzir diplomados com visíveis
deficiências no que diz respeito a capacidade de mobilizar conhecimentos globais da
História. Inicia-se em programas de IC a introduzi-los em seus campos de especialização
sem que tenham uma boa formação básica dos conteúdos gerais da matéria.
O crescimento dos quadros docentes tidos como especialistas de algum ramo ou
campo da História está intimamente relacionado ao hábito da atividade de pesquisa.
Mais do que a essa atividade, a dedicação que leva o profissional a aprofundar-se nos
assuntos referentes aos problemas desse período ou dessa questão temática. O melhor
exemplo comparativo que vem a lembrança são as andanças de um bibliófilo, aquele
indivíduo voltado exclusivamente para cultivar títulos e edições de livros raros. O caso
do empresário José Mindlin, ex-proprietário da empresa Metal Leve, é bem significativo.
Viajou um sem número de vezes para ir ao encontro de algum exemplar ainda não
constante em sua vastíssima biblioteca. Da mesma forma que percorria o Brasil inteiro a
cata de autógrafos de autores que julgavam importantes dos livros que adquiria.
Assim, além da busca ao documento impõe-se ao especialista o permanente
acompanhamento da produção historiográfica sobre o campo sobre o qual se dedica.
Mais ainda. É de grande valia estar igualmente escrevendo sobre o que consultou, leu,
anotou ou elaborou como eventual projeto a ser desenvolvido. Torna-se, por vezes, até
uma obsessão o trato das questões temáticas na vida intelectual de um especialista, mas
essa é uma componente indispensável do seu trabalho. O uso de um diário de pesquisa
tem sua utilidade, pois nele se podem registrar todos os passos, todas as etapas e todas as
indagações provenientes de uma reflexão trazida pela atividade de investigação. Há
quem considere que essa prática pode sugerir um certo preciosismo dispensável num
mundo de Internet capaz de substituir com folga procedimentos desnecessários. Mas a
abertura de arquivos ou pastas aonde se possam digitalizar dados, elucubrações
resultante de leituras ou ainda informações supletivas para aplicações futuras é sempre
válido. Mas a principal lição que se aprende na vida é que cada qual tem o seu jeito de
fazer as coisas. A metodologia não se encontra pronta. Ela é produzida por quem faz.
A minha geração não foi orientada para a escolha de campos de pesquisa, pela
razão mesma, como já foi assinalado, de uma ausência de políticas acadêmicas voltadas
para a pesquisa. Nos tempos de estudante ainda se vivia sob o sistema de cátedra, e aos
catedráticos cabia definir desde a escolha de seus auxiliares e assistentes, como a linha
de trabalho que esses deveriam trilhar. Assim, dependendo da filosofia e também da
personalidade desses antigos titulares das disciplinas, que eram denominadas de
cadeiras, podia-se desenvolver alguma atividade de criação do conhecimento, de tipo
grupo de estudos orientados, ou não. Os que não eram contemplados com os métodos de
cooptação para o exercício do magistério superior restavam buscar alternativas no ensino
médio ou, quiçá, tentar uma oportunidade nas poucas instituições de ensino particular.
Muitos descobriam eventuais aptidões ou interesses por determinados temas ou
épocas após a graduação, algo impensável hoje em dia. E quase sempre essas escolhas
acabavam acontecendo fora do âmbito dos cursos, através de influências derivadas de
oportunidades nem sempre usuais durante a licenciatura e o bacharelado. Lembro-me de
meu caso, cujo registro aqui vale como testemunho para ilustrar o que se está a dizer
sobre a questão de nossas inserções nos estudos de especialização. Trata-se de um
primeiro momento em que essa idéia de seguir um determinado caminho de estudos
surgiu. Foi por ocasião de uma palestra de Nelson Werneck Sodré no ISEB, quando o
historiador discorria sobre o florianismo. Chegara a tomar contato com o tema em razão
de meu parentesco com Floriano Peixoto, mas tinha uma visão extremamente crítica
pelo fato de ser de familiares as coisas que chegavam aos meus ouvidos. Com Sodré
descortinei um outro personagem. E mais: pude perceber tratar-se de uma figura bem
representativa dos militares e de uma percepção de República, que mais tarde
compreenderia melhor. Daí derivou meu interesse pelos estudos republicanos.
Registros como esse certamente podem ser dados aos montes pelos coetâneos de
uma época ainda primária no que diz respeito aos estudos sistemáticos e acadêmicos.
Não deixam de ser elementos de história cujos recortes aqui e ali são capazes de
demonstrar o quanto foi demorado, se comparado com outros países e também com
outras áreas de estudos, o grau de envolvimento dos profissionais de História entre nós.
Provavelmente em outros estados as coisas evoluíram ou muito mais lentamente ou,
como no caso de São Paulo, com o impulso proporcionado pela verdadeira missão
francesa no campo da História, a vinda de um contingente de cientistas sociais durante o
período da Segunda Guerra, que dentre eles se destacaram alguns nomes como Levi
Strauss e Fernand Braudel, para citar os mais destacados e conhecidos na historiografia.
.O Ensino da História
Para um profissional da História é comum perguntas sobre o que é História?
Como se faz História? Ou se a História afinal é ou não é uma ciência? Mas a pergunta
que mais me deixava embaraçado era a de como se ensina a História? Talvez esta
mobilizasse menos elementos explicativos do que aquelas outras, mas provavelmente
por ser a mais simples, pelo menos aparentemente, era a que me angustiava mais,
exatamente porque indagava sobre a prática da qual se emprega sem que se tenha como
explicitá-la de modo a satisfazer o curioso com a pergunta. Depois de muitos anos
driblando a questão tenciono em breves linhas dar, afinal, uma resposta a ela.
A História se ensina como vida, isto é, para que se transmita a alguém o que é
História é preciso que se entenda o que consiste a existência e as razões que nos
motivam, como seres humanos, a viver. Assim, o impulso vital é um elemento essencial
para que aprendamos o sentido da História. Feito isso é necessário que cada um se veja
como portador desse sentido de vida, de existência, e possa rever o seu itinerário, a sua
trajetória de vida, compartilhada evidentemente com a de seus familiares, amigos e
demais indivíduos que integram o seu universo de vida. A partir daí é só perceber que
essas existências caminham juntas com inúmeras outras em seus respectivos tempos e
lugares, criando situações e inteirando-se de desejos e impulsos que são comuns a todas
as pessoas, igualmente portadoras desses mesmos impulsos.
Mas essas questões e as preocupações delas decorrentes só se tornaram
efetivamente presentes nas salas de aula do nível superior à partir dos anos de 1960,
porque antes disso era absolutamente esporádico tocar-se nesses temas, que deveriam, na
verdade, conduzir primariamente o processo de aquisição do conhecimento. A
inexistência de disciplinas metodológicas e teóricas atesta o pouco caso dado a essas
questões, indiferentes, portanto, ao ambiente nacional e internacional a suscitar reflexões
eminentemente históricas, para se entender os caminhos da sociedade contemporânea.
Havia um divórcio entre o que se passava nas ruas e no mundo em geral e o que se
discutia nos fechados e formais recintos universitários. Mas as tentativas de se rever
radicalmente com tais práticas acadêmicas não tardariam a acontecer. Neste sentido, os
anos 60 foram realmente revolucionários, mesmo que por vezes ingênuos.
Data daí a relação mais ou menos constante entre o mundo acadêmico e o
mundano, a refletir necessariamente naquele o que neste se passava. E isto não se
aplicava doravante apenas aos aspectos intelectuais, cujas idéias ganharam influência
como nunca depois dos acontecimentos de Maio de 68, mas também aos problemas do
cotidiano até então circunstancialmente presentes nas preocupações do mundo do saber.
É claro que no Brasil, em especial, a universidade não figurara entre as prioridades das
elites dominantes. Seus filhos educados em Coimbra ou eventualmente em outras
cidades universitárias européias retornavam sem proverem o povo de seus
conhecimentos, privativos de uma restrita confraria dos bens nascidos. E o surgimento
tardio das primeiras universidades em nada mudou esse sentimento de descaso para com
o povo, no comportamento dominante daqueles que as freqüentaram em seus
primórdios.
Mas a identificação com os problemas sociais, e o conseqüente engajamento em
lutas e ou projetos a visarem combater os obstáculos causadores desses problemas, em
nada deve confundir-se com o métier de um profissional de História. Isso posto, o que se
deseja nestas linhas é deixar claro a existência de um diferencial entre o cidadão e o
profissional, não importa de que atividade ou área de atuação. Tem sido comum, e
minha geração está repleta de exemplos, a mistura dessas duas coisas, de modo a
comprometer a condução das atividades do ensino e da aprendizagem. A idéia de se
“fazer a cabeça” dos alunos eu sempre a tive como um equívoco muito grande, pois a
melhor maneira de instigar a crítica dos costumes e das situações históricas é
precisamente a de ensinar a pensar e a desenvolver reflexões a todo instante. Neste
sentido cada vez mais me curvo ao ensinamento de Paulo Freire: o mais importante nem
sempre é a resposta, mas a pergunta, pois por vezes se está a abrir sendas novas ao
conhecimento.
Meu pai, também educador, costuma contar uma anedota a propósito da
indiferença do mestre diante das perguntas de um aluno, que em todas as aulas indagava
a mesma coisa. Depois de uma dezena de vezes, o mestre parou e respondeu ao aluno
que o interrompia seguidamente. Agora compreendi o que você está me perguntando. Na
verdade, depois de algum tempo o professor tinha, finalmente, entendido o alcance
daquela que a primeira vista era tão-somente uma pergunta corriqueira. Essa pequena
demonstração é reveladora porque os professores não estão acostumados a
transformarem suas aulas em ambientes favoráveis à reflexão, ao experimento de
aspectos por vezes não observado pelo saber constituído. Costumam ter suas aulas
fechadas a essas incursões do pensamento, sobretudo do pensamento que instiga a
norma.
A distinção entre cidadania e função de professor em nada significa uma
alienação da realidade. Florestan Fernandes costumava dizer que ele era um socialista e
imprimia sua ideologia nos processos interpretativos dos fenômenos sociais. Dizia mais,
que a confusão da direita – confusão deliberada, por sinal – entre sociologia e
socialismo, ele, Florestan, assumia plenamente, pois considerava que só uma perspectiva
socialista torna a sociologia um instrumento real de intervenção na sociedade. O que
pretendi acima dizer é diferente dessa colocação do sociólogo paulista, porquanto
chamava atenção para um uso deliberado do argumento de autoridade do professor para,
com isso, influir nas escolhas dos seus alunos. E fiz desse princípio uma norma de
conduta ao longo de minhas atividades no magistério.
Penso que hoje o grande desafio do professor é o de formar leitores críticos. A
informação e o acesso ao conhecimento se democratizaram com o advento da
informática. Através da informática, via Internet, é possível acessar inúmeros temas e
levantar dados cujo volume depende da capacidade de pesquisa por intermédio deste
veículo. Mas percebo que não basta se ter um amontoado de dados se não se sabe
trabalhá-los com vistas a um processo de apreensão, identificação de conteúdos, análises
e, finalmente, interpretações conclusivas. Estas implicam em domínio de linguagem,
conceitos, ferramentas que dependem da orientação dos professores, também eles
sujeitos a permanentes reciclagens e atualizações. Dessa maneira, a Educação continuará
sendo um fator diferenciado no processo de emancipação e libertação da humanidade
face a resistência de estruturas obsoletas e que precisam ser removidas.
Historiografia Republicana
Historiografia republicana eis uma expressão que coloca, desde já, a questão de
sua interpretação. Quando a referimos assim pode-se estar a dizer de um panorama de
estudos a cobrir o período da República ou um conjunto de trabalhos inspirados na
perspectiva republicana. O texto que se segue procurou englobar essas duas formas de
interpretação, tendo o cuidado, no entanto, de reunir as obras que serão objeto desse
estudo nessas duas perspectivas, para as quais o autor as distingue em função das
proposições destacadas por seus autores. Na ausência de um tratamento explícito dessa
questão na obra analisada buscou-se uma leitura crítica de seus conteúdos e o
enquadramento numa dessas duas vertentes de possível entendimento.
Assim, no caso da historiografia sobre a República brasileira pertencente ao
primeiro grupo, isto é, dos trabalhos que registram tão-somente os fatos relevantes desse
período da História do Brasil, destaques maiores ficarão por conta das coletâneas ou
textos que agrupam alguns especialistas de temas republicanos, onde a identificação com
o ideário republicano é entremeada com a de autores que não revelam qualquer empatia
intelectual ou política com esse regime. Há, também, nesse caso, os livros de natureza
para-didáticos. Escritos para um público menos familiarizado com a problemática
republicana limitam-se ao relato de situações mais relevantes da República.
No que se refere ao segundo grupo, o dos trabalhos de cunho eminentemente
republicanos, no qual o autor esposa sua identidade e simpatia para com a República, seu
manancial se encontra mais presente nas obras de intelectuais que produziram obras
históricas, hoje consideradas de referência para a historiografia brasileira. Há que
registrar, por outro lado, a contribuição de cientistas sociais mais explícitos na defesa do
regime, e cujas obras são parte integrantes da historiografia republicana. Igualmente
relevantes têm sido as teses acadêmicas, particularmente as oriundas dos programas de
pós-graduação que se expandiram a partir da consolidação dos mestrados e doutorados
no país acerca de três décadas e cujas consultas públicas das não publicadas, que
constituem a maioria, podem ser realizadas diretamente nos sítios dos referidos
programas de pós-graduação.
Alguns estudos voltados para a sistematização de trabalhos relativos ao período
republicano surgiram desde a década de 1970 e não param de ser acrescidos de
atualizações e adendos nesses últimos anos. Todos têm o propósito de fornecer ao leitor
indicações de modo a facilitar a consulta e a própria pesquisa historiográfica. Neste
sentido, o que se pretende aqui é dar continuidade a esses esforços procurando aduzir
alguns comentários críticos no que diz respeito às contribuições surgidas ao longo desses
muitos momentos de produção e difusão da historiografia republicana.
Pensei, inicialmente, em apresentar esse estudo de modo a acomodar três partes.
Numa primeira, estariam sendo consideradas as contribuições dos generalistas,
nomeadamente as chamadas obras gerais sobre a República brasileira. Uma segunda
parte reuniria os trabalhos acadêmicos, seja dos intérpretes e ensaístas ou renovadores da
historiografia provenientes ou não de teses universitárias, cuja concentração maior, é
evidente, se encontra a partir de meados do século XX. E uma terceira parte
compreenderia artigos ou textos isolados de especialistas a abordarem aspectos relativos
à problemática republicana e as conclusões originais a que seus autores puderam chegar.
Nas três partes seriam considerados tantos os autores nacionais quanto os de outra
nacionalidade, os ditos brasilianistas.
Em se tratando de uma abordagem panorâmica, vale dizer, sem o propósito de
uma análise mais aprofundada, o autor recorreria ao expediente de um trabalho de
sistematização, no qual os registros se impõem mais do que o exame de seus conteúdos.
Ao término do texto,o leitor teria uma relação de obras e textos publicados e
considerados de referência para o estudo da história republicana brasileira. Com isso,
imaginava poder atingir o objetivo de proporcionar uma síntese da produção e reflexão
historiográfica para o período republicano.
Deixei de lado esse propósito ao perceber que por mais extenso que se pudesse
escrever essas linhas de sistematização com base nos três campos de observação acima
referidos, não seria capaz de dotar esse trabalho de alguma profundidade no que diz
respeito à análise esperada pelo leitor. Assim, evolui para a idéia de realizar um estudo
comparado de duas contribuições historiográficas, de modo a dar consistência à idéia
sugerida por Francisco Falcón, que julguei pertinente e capaz de propiciar um resultado
mais satisfatório, além de revestir-se da autoridade de quem domina a matéria.
Em conseqüência, elegi, como protagonistas desse estudo comparado, as obras de
Nelson Werneck Sodré e de Caio Prado Junior, ícones de uma produção historiográfica
centrada no instrumental marxista Muito embora tenham seus trabalhos sido objeto de
análises acadêmicas ultimamente, as interpolações de suas idéias mais significativas não
foram ainda suficientemente esgotadas, quando comparadas no contexto das ações
políticas e no quadro ideológico dos quais resultaram a especificidade de suas
interpretações. As muitas referências que seus estudiosos fizeram das teses de ambos,
por vezes confrontando-as ou dando-lhes caráter de complementaridade, o fato é que
uma análise comparativa em torno de questões comuns aos dois historiadores e
militantes do PCB não se têm conhecimento.
O foco dessa comparação foi orientado em torno da questão da Revolução
Brasileira, ou mais precisamente, da relação da História do Brasil com o projeto
transformador inspirado no projeto da Revolução Democrática e burguesa dos
comunistas. Estes tiveram nos dois historiadores os intérpretes mais autorizados
porquanto emprestaram o conhecimento e a função de intelectuais para tornarem essas
teses em instrumentos de persuasão e de orientação para as forças democráticas
alinhadas organicamente ou não ao PCB. Dessa maneira, tomarei como fonte principal
os livros A História da Burguesia e A Revolução Brasileira, de Sodré e de Prado Junior,
respectivamente.
Antes de empreender essa análise comparativa pretendo situar dois aspectos que
me parecem necessários para a consecução desse estudo. O primeiro aspecto é um
pequeno conjunto de considerações a respeito da metodologia comparativa para casos
como o que se pretende desenvolver aqui. Sem a finalidade de embrenhar-me na matéria
relativa ao método comparativo convém deixar claro ao leitor de que modo pus em
prática esse estudo. Trata-se, desse modo, de introduzir uma questão de prática
discursiva no emaranhado de dados com vistas a fornecer informações eventualmente
úteis para quem se interessar no emprego de formas similares de estudos.
O outro aspecto ficará por conta do panorama mais geral da historiografia
republicana, mais no sentido de identificar suas matrizes geradoras do que de dar ao
leitor indicações eruditas a respeito dos produtos historiográficos existentes e à
disposição de quem venha a se debruçar sobre esse assunto. Com isso, penso, poderemos
encontrar o lugar comum dos dois protagonistas desse estudo, independentemente de
suas raízes políticas, doutrinárias e ideológicas. Nesse segundo aspecto, trata-se de situar
no contexto das idéias aquelas que se produziram em torno dos trabalhos de Nelson
Werneck Sodré e Caio Prado Junior. Com isso, teremos de novo três partes. Só que
agora uma parte de natureza metodológica, uma outra de cunho histórico e a parte mais
densa que registrará a análise das contribuições de nossos dois historiadores.
A historiografia dos tempos republicanos refletiu, desde as suas origens, o
embate doutrinário provocado pela mudança de regime. Assim, a avaliação do que fora a
instauração da República no Brasil obedeceu a dois pontos de vista bem opostos, de
modo a inaugurar as perspectivas interpretativas que se sucederam ao longo de várias
décadas, cada qual sublinhando aspectos negativos ou positivos do estabelecimento das
novas instituições políticas no país. A condenação da República como golpe a
interromper a caminhada democrática e liberal desenvolvida pela monarquia foi de
responsabilidade de Eduardo Prado em seu texto Fastos da Ditadura Militar. Ao passo
que o depoimento de Inocêncio Serzedello Corrêa in titulado Páginas do Passado
instituiu a visão glorificante do advento do regime republicano, como um avanço
doutrinário e popular. Com esses dois intérpretes se iniciaria, a nosso ver, os pilares da
historiografia republicana no Brasil.
O ponto de vista de Serzedello ou nele inspirado funda-se no primado da
legitimidade da República. Foi essa primazia que fez Floriano Peixoto, ícone
serzedelliano, enfrentar seus oponentes, convencido de que sua missão era o de salvar a
República, pouco ou nada valendo se as suas normas constitucionais tenham sido mal
interpretadas ou contrariasse a estabilidade e, principalmente, a sobrevivência do regime.
Para Serzedello, os militares tiveram o mérito de compreenderem o papel histórico que a
eles foi reservado. Contra tudo e contra todos consolidaram as instituições republicanas
e sua presença na política brasileira transformou-se em instrumento de equilíbrio diante
das crises que se sucederam.
No que se refere a vertente fundada por Eduardo Prado, os valores da legalidade
suplantariam o eventual peso da legitimidade republicana. Crítico contumaz da
intervenção militar foi o principal opositor da tradição florianista, tendência que reuniu o
que de mais radical existira na defesa dos postulados sustentados pela outra versão.
Assim, em vários momentos de crise política ou de impasses a exigirem soluções
legalistas, a presença dos argumentos pradistas se impôs. E essa presença aconteceu
tanto nos meios civis como nos militares. Nestes, a oscilação entre as teses
intervencionistas, do soldado-cidadão, e as não-intervencionistas, do soldado-
profissional, se estenderam, pelo menos, até os anos de 1930, quando o exército passaria
a ter a sua própria política.
Em meio a essas versões apaixonadas, seja contra ou a favor da República, não se
pode deixar de registrar a primeira avaliação sarcástica dos tempos ainda bem iniciais do
regime. Trata-se das anotações intituladas Apontamentos para a História da República,
do jornalista Manoel Ernesto Campos Porto. Impressionado com o fenômeno do
adesismo praticado pelos antigos próceres do Império, o autor passaria a registrar num
verdadeiro acervo formidável as formas e as adesões provenientes de diferentes setores
de uma sociedade até então muito fiel, pelo menos aparentemente, à monarquia que
vigorava há sete décadas. Passados os primeiros sete anos de República, o escrito é
dedicado ao exército, ao partido republicano e ao “patriotismo daqueles que não
pouparam sacrifícios em prol da causa que regenerou a Pátria”. Mas ainda em 30 de
dezembro de 1889, o autor presta igualmente uma homenagem ao “ilustre cidadão
incumbido de restaurar as finanças desta pátria”, ao escrever como abertura de suas
notas “Duas palavras ao Governo Provisório”. O historiador José Sebastião Witter
selecionou esse acervo memorável em livro por ocasião do primeiro centenário do
regime republicano, cujo prefaciador foi Oliveira Lima, na edição da editora Brasiliense
em co-autoria com o CNPq.
E não poderia ser diferente que dessa forma se iniciasse uma primeira reflexão
sobre os tempos republicanos. Ao lado das contendas houve também os arranjos, que
não puseram de lado a tensão entre os protagonistas daqueles eventos. Afinal, mesmo
sem ter sido uma revolução, longe disso, a mudança de regime e de governo foi
traumática, feriu brios e despertou vaidades, razão pela qual produziu um contencioso
que a rigor se arrasta até os dias atuais, com a diferença de se ter uma cultura do
contraditório responsável pelo amadurecimento de seus protagonistas nas lides
intelectuais. Mas, em todos os momentos em que uma dada crise política se instala na
sociedade brasileira o acirramento das divergências quanto aos rumos do regime de 89
vem à tona, com maior ou menos vigor que no passado mais remoto. E, de novo, os
fundadores das vertentes pró ou contrária à República reaparecem.
Durante algum tempo a idéia dominante nas análises mais impressionistas sobre
o advento da República repousava na oposição entre civis e militares. A partir da
conhecida sentença de Aristides Lobo, segundo a qual a Proclamação tinha sido um fato
essencialmente militar, deitou raízes à convicção de que os oponentes resumiam-se entre
essas duas representações. Era uma forma que agradava os que tinham alguma simpatia
com o antigo regime, pois sugeria que a maioria dos civis era adepta do Império ao
passo que os republicanos tinham sido impulsionados por ressentimentos dos militares.
Mesmo nas perspectivas mais recentes a alusão a essa oposição permaneceu muito viva,
ainda que sem o caráter de uma explicação centrada nessa dicotomia de interesses. Os
desdobramentos dessa mesma lógica explicativa refletiram-se em trabalhos acadêmicos
de objetos mais específicos, de modo a demonstrar a forte herança dessa querela
cultivada em torno de episódios iniciais do período republicano.
Se, contudo, o processo de implantação da Republica não deve ser reduzido ao
embate entre civis e militares, não se deve tampouco minimizar o papel desempenhado
pelos militares ao longo de mais de um século desse regime. Tanto na instauração
quanto em momentos de crise ou de cruciais mudanças institucionais, o elemento militar
exerceu uma atividade não desprezível. Foi protagonista de ações de maior ou menor
expressão, mas não deixou de ocupar-se de tarefas normalmente desempenhadas por
personagens cuja expectativa não se cumpriu por impotência ou incapacidade. Neste
sentido, referir-se a presença dos militares não só não é demasiado como corresponde ao
relato mais próximo de uma realidade reconstruída dos fatos republicanos no Brasil.
Há, porém, os autores cujas obras se voltaram para a análise do caráter
institucional. É o caso, entre outros, de Medeiros e Albuquerque em seu livro O Regimen
prezidencial no Brazil, título que mantivemos no original, de sua edição de 1914,
“terceiro milheiro”, e lançado pela Livraria Francisco Alves. Defensor do “regimen
parlamentar”, na realidade do sistema de governo baseado no parlamento, portanto,
parlamentarista, esse membro da Academia Brasileira reuniu nos dez capítulos de seu
trabalho uma série de arrazoados para convencer o leitor da ineficácia do
presidencialismo, que para ele “foi uma surpresa e um logro.” Foi, aliás, com essa
expressão contundente que abre a primeira parte do capítulo primeiro, sempre se
referindo ao sistema de governo presidencialista como responsável do malogro da
República, ora qualificando-o como “um aborto”, “representa sempre uma aventura”,
“trouxe uma corrupção moral inominável” e – na defesa de sua tese – que “o (sistema)
parlamentar já provou ser o único que se adapta à índole do povo brasileiro.”
E tanto esse registro é verdadeiro no que se refere aos atores coletivos, quanto no
que tange aos individuais. Mesmo que sobre os dois maiores personagens individuais da
República brasileira do século 20, Vargas e Prestes, haja enormes discordâncias quanto a
importância de cada qual em nossa história contemporânea, não há como negar que
ambos tiveram um projeção bem maior do que qualquer um outro. E o que é mais
significativo: os dois passaram pela vida militar, e sofreram a influência da corporação
independentemente de terem trilhado caminhos distintos. Só esse dado revelaria o
quanto está impregnado o regime republicano da presença militar. E de ambos também
se pode dizer que a par de suas individualidades, marcadas por forte personalidade,
foram representações personificadas de dois projetos políticos, o do Estado Novo e o do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), já que nos dois casos é impossível separá-los das
duas personagens que tanto os encarnou.
Nas democracias modernas há quem considere que o poder político não se
resume tão-somente às instituições parlamentares, com base em partidos fortes,
influentes e representativos de uma sociedade civil com nível de consciência política
igualmente poderosa. A este elemento se tem afirmado a imprensa, instrumento
formador da opinião publica e, mais recentemente, na ação dos grandes conglomerados
da mídia eletrônica, tão fortemente presente na vida cotidiana dos cidadãos. No Brasil,
aonde a imprensa sempre teve desde os primórdios da autonomia política até a
República uma atividade bastante movimentada, a criação de sua entidade maior, a ABI,
em 1908, abriu caminho para a formação de uma instituição tão significativa quanto o
parlamento. E de meados do século vinte em diante, a imprensa passaria a aliar-se de tal
forma aos desideratos dos governantes que sua ação moldou e formou posições
majoritárias sobre temas e questões de grande interesse nacional, para o bem ou para o
mal, de acordo com os pontos de vistas ideológicos que naturalmente se formam sobre
aspectos do país em debate.
Logo, é de se entender que a historiografia baseada na imprensa seja como fonte
histórica ou como objeto da história, tenha adquirido uma relevância apreciável. De
menção episódica, passando por levantamentos exaustivos de suas folhas periódicas, até
o exame de seus conteúdos relativamente às matérias cobertas pelos órgãos da imprensa,
o fato é que cresceu consideravelmente o interesse pelos estudos, sistematização e
análises de jornais, revistas e demais publicações regionais ou temáticas, técnicas ou de
mera divulgação de traços da cultura brasileira. Não há um tema de relevo na história
republicana brasileira que não se disponha de fontes periódicas capazes de analisá-lo, o
que revela o valor desse documento à disposição dos historiadores. Não obstante, a
produção de trabalhos com base nas fontes periódicas ainda se encontra distante do
papel que os jornais representaram ao longo do período republicano. O inventário dessas
publicações e o uso que a pesquisa tem feito desse acervo está por se fazer.
Ao término dessas considerações preliminares convém chamar atenção para os
estudos biográficos, que alcançaram muito espaço editorial desde o último quarto do
século vinte. Em parte esses estudos derivaram de pesquisas universitárias, mas há de se
registrar o seu crescimento na literatura. Da mesma forma que essas duas áreas têm se
aproximado em muitos aspectos, da escrita mais próxima de escritores e pesquisadores
até temas entrecruzados a circularem com desenvoltura em ambas as áreas, ocorreu
muito recentemente essa redescoberta de personagens a retratarem épocas e
comportamentos dignos do interesse de uns e outros autores. Muito embora essa
tendência historiográfica tenha uma dimensão internacional, no caso específico do Brasil
ela provavelmente ocorra em função da parca representatividade histórica das
instituições.
Se aceitarmos essa explicação, isso nos coloca diante de um problema de
natureza epistemológico complicado, qual seja a de estarmos relacionando muito
estreitamente as circunstâncias da produção historiográfica com as de ordem política e
cultural. Mesmo que tal relação seja, em princípio, pertinente, tal fato não deve ser
considerado de maneira mecânica. A necessária implicação da estrutura econômico e
social de uma época sobre a produção de idéias possui uma lógica irrefutável, desde que
tal implicação não seja tomada como algo que dispense a mediação da inteligência
humana e a elaboração indispensável para que se retire dessa relação um rico repertório
de situações possíveis. E é neste campo que se situa a produção historiográfica.
1. As Obras dos generalistas
O termo generalista é muito pouco adotado pela historiografia, como se viu na parte
que antecede esta, sobretudo se o compararmos ao seu antônimo, o especialista. E tal
fato surpreende se constatarmos que verdadeiramente os especialistas só apareceram
com a introdução das pesquisas acadêmicas, como já se observou também antes. Mas, no
Brasil, esse avanço em direção à especialização de estudos e pontos mais específicos de
nossa História, só se deu a partir de meados do século vinte, quando a historiografia era
um deserto virgem nesse campo em meio a algumas dezenas de obras gerais espaçadas
pelo tempo e desprovidas em grande parte de referenciais de consulta por parte de seus
autores. A ausência de especialistas explica, é claro, a ausência também da expressão
generalista, até porque esta só se impõe como relação em face do seu vocábulo
antagônico.
Todavia, ainda hoje, há uma certa resistência no uso freqüente do termo generalista,
cuja economia de emprego deve-se mais por preconceito. O ranço de que uma obra
genérica a abarcar um vasto período de tempo cronológico é necessariamente desprovida
de seriedade e de consulta às fontes decorre, muito provavelmente da impressão que
ficou de nossos intelectuais de outrora, de erudição humanística suficientemente densa
para dispensar o trabalho de investigação científica na comprovação dos dados de seus
estudos, normalmente abrangentes e quase sempre superficiais ao gosto dos interessados
no aprofundamento de suas partes constitutivas.
Mesmo que os reparos aos estudos generalistas tenham fundamento a velha dialética
entre o geral e o particular se impõe, e no caso da historiografia é de importância não
desprezível, dado que é preciso uma sistematização contínua e atualizada dos processos
sociais de modo a permitir quadros de referência dos quais se valem os especialistas.
Logo, a convivência desses estudos deve ser vista como complementar, de vez que a
recíproca do argumento que serve para os especialistas também se aplica aos
generalistas, uma vez que estes necessitam de pesquisas pontuais capazes de ampliar o
acervo de conhecimento sobre os fatos que se inserem no longo tempo das obras
generalistas. E neste processo de aproximação entre generalistas e especialistas coube
um papel importante a presença dos brasilianistas, que por necessidade operacional
foram forçados a reverem a história recente do Brasil, e com isso, a estimularem os
estudos generalistas. Ensinaram, outrossim, que as generalizações não podem prescindir
da pesquisa histórica.
Há quem se propôs um tratamento ao mesmo tempo sistemático e analítico do
período republicano, sem enveredar para uma obra geral a respeito da República
brasileira. Foi o caso de João Camillo de Oliveira Torres e o seu O Presidencialismo no
Brasil5. O “filão inexplorado” de que fazia referência o autor no prefácio de seu livro era
5 João Camillo de Oliveira Torres. O Presidencialismo no Brasil. Porto Alegre: Edições O Globo, 1962.
a história das idéias, pouco usual para os que se arvoravam em escrever sobre a nossa
história. Depois de tratar do Positivismo no Brasil, da Democracia Coroada e da
Formação do Federalismo no Brasil, a questão do presidencialismo ganhara relevo no
instante em que este sistema de governo enfrentava sérias dificuldades de
funcionamento.
Com uma estrutura clássica, uma introdução e três capítulos, o livro tem no último
capítulo intitulado “His Majesty, The President” o seu ponto alto. Inovador em relação
às abordagens que o antecederam e consistente na análise empreendida, Oliveira Torres
atravessa boa parte do período republicano entremeando aspectos teóricos e doutrinários
com a realidade existencial do regime entre nós.. Crítico da guinada moderada
promovida pela Revolução Liberal a conduzir ao poder Getúlio Vargas, “o equívoco de
1930”, o autor identifica no personagem presidencial um fator de desequilíbrio do
regime e de seu sistema presidencialista. Mesmo não se ocupando de uma história linear
da República, esta obra se insere, como não poderia deixar de ser, no rol das referências
historiográficas para o estudo do Brasil republicano.
Três obras generalistas serão objeto dessa primeira parte desse estudo. São elas as
História da República, de José Maria Belo, História Sincera da República, de Leôncio
Basbaum, e, História da República, de Hélio Silva. O curioso é que todas foram
publicadas passados os primeiros cinqüenta anos da instauração da República, o que
significa que o impacto inicial da República não inspirou escritores a se debruçarem
sobre aquela mudança de ordem institucional. É verdade que as chamadas letras no
Brasil eram de escassa proliferação, mesmo nos meios intelectuais onde se lia muito
mais a prosa literária do que a de natureza científica, mormente no que se refere às áreas
humanas. E os que se dedicavam a um apanhado sobre as nossas coisas o faziam sem o
cultivo do ordenamento das fontes, haja vista a incursão do sanitarista Manoel Bonfim e
o seu livro pioneiro América, Males de origem, durante três décadas relegado ao
ostracismo.
A essa relação de três poder-se-ia incluir sem favor algum João Camilo de Oliveira
Torres e o seu O Presidencialismo no Brasil. Afinal, trata-se de uma obra generalista,
muito embora centrada na questão do sistema de governo que acompanha o regime
republicano desde os seus primeiros dias. Em razão de situar-se num campo mais
específico da problemática do período da República resolveu-se deixar sua análise de
lado, não sem antes relacioná-lo como uma das leituras obrigatórias para quem deseja
reunir informações acerca dos momentos mais relevantes da evolução política e
institucional do Brasil.
José Maria Belo era um homem ligado ao ensino. E em suas andanças pelos
estabelecimentos escolares da então capital do país, percebera a falta de um compêndio
que auxiliasse os mestres e os alunos sobre os fatos mais recentes de nossa história. A
decisão de escrever um livro que se ocupasse essencialmente do período republicano em
meio às incertezas do regime era um desafio que resolvera enfrentar. A receptividade
não poderia ter sido melhor. Sua peregrinação pelos governos da República e o
acompanhamento das crises políticas decorrentes da instabilidade vivida por seus
dirigentes foram duas componentes destacáveis de sua obra. Fiel às normas da
observação cronológica dos acontecimentos e sensível as reviravoltas dos governos,
Belo produziu um livro de referência que faltava efetivamente ao público leitor e aos
estudiosos dos tempos republicanos.
O período coberto por Belo em seu livro se estende do ano da Proclamação da
República (1889), ao ano de 1954, de modo a praticar avant la lettre uma história do
presente, uma vez que escrevera seu texto na década em que se situa o marco conclusivo
de sua história. O subtítulo usado pelo autor, “Síntese de Sessenta e Cinco Anos de Vida
Brasileira”, é revelador do objetivo que o inspirara. Buscou retratar um universo que
extrapolasse os meros registros formais dos fatos, de modo a proporcionar ao leitor “os
principais aspectos da vida brasileira”. Escrito em etapas pode alcançar os anos de
maturidade de Belo, que da primeira edição em 1940 à quarta, prefaciada em 1958, o
livro de Belo tornou-se leitura obrigatória para os interessados em conhecer um Brasil
que despertara para a modernidade em meio à modernização.
A obra é constituída por vinte e cinco capítulos, iniciada com o indefectível “Fim do
Império” e findada com os “Aspectos do Brasil de 1945 a 1954”. Combina a informação
útil sobre os momentos do panorama político e social com alguns ensaios analíticos
curtos, de modo a proporcionar ao leitor comum fácil entendimento a respeito de como
transcorreram as agitações republicanas. Belo já era autor desde a década de 1930.
Moderado adepto da República tinha, como de resto os seus contemporâneos, sérias
dúvidas sobre as vantagens de um regime que começara mais pelo descrédito da
monarquia do que pela flama de seu ideário. Termina seu último parágrafo do primeiro
capítulo, assim:
A República, que nos propomos estudar, partindo do
seu alvorecer até a grande crise histórica de 1930,
espia, mesmo hoje, além dos erros cometidos por sua
exclusiva conta, os da herança do Império, que é,
afinal, no lado das sombras, a herança da
escravidão e de cinqüenta anos de hesitações, de
timidez, de artifícios e, tantas vezes, de mau
bacharelismo...”
Editado pela Companhia Editora Nacional, a obra de Belo teve várias edições, seja
pela carência de livros sobre ou pela linguagem não rebuscada de seu texto, o fato é que
para os padrões brasileiros à época pode-se dizer tratar-se de um livro bem sucedido. A
rápida passagem do autor pelas lides políticas e partidárias, lembrada pelos editores na
orelha da publicação, não garante obrigatoriamente maior ou menor credibilidade ao seu
conteúdo. Sem dúvida, o conhecimento da prática política brasileira deve tê-lo ajudado a
compreender certos instantes de maior tensão nas atividades de uma sociedade em plena
construção dos experimentos organizacionais de sua vida pública e privada.
Não sendo propriamente um intelectual afeito às reflexões ou projetos de ambições
acadêmicas Belo soube transitar num ambiente ainda muito reticente quanto as
avaliações de um regime em gestação, e cujo momento de inflexão mais madura
acontece com a primeira ruptura de ordem constitucional, que foi a denominada
Revolução de 1930. A abordagem que faz desse episódio tão crucial para os rumos da
República foi sucinta, bastante econômica. E seus comentários limitaram-se a apontar as
novidades empreendidas pelos novos governantes.
A História Sincera da República, foi escrita por um marxista militante. Leôncio
Basbaum era o que se poderia chamar de um “intelectual orgânico”, e impôs-se como
tarefa política reescrever a trajetória republicana à luz dessa perspectiva. Não cabe aqui
entrar no mérito do uso do instrumental legado por Marx e Engels por parte do autor, até
porque não seria honesto para o pioneirismo de sua obra numa época na qual se
conhecia, no Brasil e em geral, muito pouco dos trabalhos dos fundadores do marxismo,
salvo nos manuais vulgarizadores produzidos com finalidades de divulgação.
Ao qualificar a sua história de sincera, Basbaum pretendia desfazer as versões dos
representantes das elites dominantes no trato das coisas relativas ao processo da
República, e introduzir o referencial proposto por Marx para o exame das formações
sociais submetidas direta ou indiretamente aos ditames dos mecanismos de exploração
numa fase de incremento do modo de produção capitalista no mundo ocidental e
neocolonial. Assim, a chave explicativa para os fatos resultantes das crises e situações de
conflito na sociedade do Brasil contemporâneo se encontrava na identificação de sua
estrutura de classes e das contradições que derivavam de sua organização histórica.
A inovação provocada pela interpretação marxista da História do Brasil já tinha
ocorrido, quando Caio Prado Júnior, em sua Evolução Política do Brasil, editada em
1933, veio à público. Todavia, o primeiro a dar uma perspectiva generalista da
República brasileira foi Basbaum, que evidentemente muito se apoiou na contribuição de
seu companheiro de partido. E, ao contrário de Prado Jr, fora um militante muito mais
enfronhado nas tarefas rotineiras de comunista do que o intelectual paulista, cuja vida de
militância era desenvolvida nos contatos com os amigos e simpatizantes da organização
dos comunistas, mesmo nos momentos de maior luta interna. Essa situação de certa
clausura de Basbaum talvez explique o quase nenhum contato mais freqüente com Prado
Jr, sobretudo se considerarmos o fato de que ambos tinham como interesse comum o
gosto pela pesquisa histórica e pelos temas relativos à formação social brasileira.
Pernambucano, Basbaum formou-se em medicina, mas desde cedo se engajara nas
lutas políticas e, em 1934, com 26 anos de idade lançava o seu primeiro livro A Caminho
da Revolução, sob pseudônimo de Augusto Machado. Na Introdução de seu primeiro
livro sobre a República, que para ele é o período de nossa história “consciente e
sistematicamente deturpada”, o que o levou a propor uma interpretação mais do que uma
constatação de seu itinerário; Basbaum desenvolve suas idéias e concepções de história e
organiza o volume inicial de sua obra em quatro partes. Na primeira trata das Raízes da
história do Brasil. Na segunda se ocupa do regime que antecede a República, A
Monarquia. Na terceira focaliza as Idéias Republicanas, e na quarta refere-se A queda
da Monarquia.
Se esse primeiro volume aborda os antecedentes históricos que levaram à
Proclamação do regime republicano, o segundo volume é dedicado aos momentos da
instalação da República até o término dos governos militares de Deodoro e Floriano, que
Basbaum denomina de Primeira República, com algum sentido, uma vez que para ele
duas correntes participam da República, a corrente dos profissionais liberais e militares,
de um lado, e a outra constituída por fazendeiros e políticos tradicionais, de outro. O
primeiro grupo, para o autor dominou os cinco primeiros anos do novo regime sendo
sucedido pelo outro grupo a partir a hegemonia dos cafeicultores paulistas. Estes
inaugurariam a Segunda República, cujo marco se esgotaria em 1930.
São quatro volumes que trata de etapas da República consagrando uma periodização
que se tornaria clássica. Assim, os livros se ocupam seqüencialmente, em primeiro lugar,
“Das Origens a 1889”; ma seguir, o segundo “De 1889 a 1930”, depois “De 1930 a
1960”, o terceiro, e por fim, o quarto “De 1961 a 1967”. Neste Basbaum praticou o que
tempos depois se denominaria de história imediata ou do presente, já que terminou esse
volume e logo depois veio a falecer. A exceção do último volume, nos demais o autor
fornece uma pequena, porém, coerente bibliografia. O curioso é tendo sido forjado numa
época de forte cobrança ideológica não deixou de mencionar autores sabidamente de
orientação política e doutrinária distinta da dele.
No que diz respeito ao livro de Hélio Silva, médico de origem e tornado historiador
por devoção, trata-se um trabalho no qual a sua experiência no jornalismo foi de
fundamental importância. De texto correto e direto enxugou o que de mais relevante
factualmente falando se pode reunir em torno do período republicano. Seu trabalho é
mais amplo do que os dos anteriores seus contemporâneos, pois sua volumosa pesquisa
dos fatos levou-o a organizá-lo em volumes distintos, sempre observando a cronologia.
É possível que os anos de atuação do presidente Vargas tenham-no motivado a ingressar
no diminuto circuito de historiadores por escolha e não por formação, como ocorria com
praticamente todos os que à época se dedicaram à produzir textos de história.
Tanto a coletânea contendo os volumes dedicados aos momentos mais significativos
da República, quanto a série produzida para um público menos familiarizado com os
fatos da história brasileira, primam pela objetividade sem a perda dos detalhes, por vezes
ricos na ilustração desses períodos de nossa história recente. Sem buscar rótulos que
nada acrescentam aos comentários, pode-se dizer que a obra de Hélio Silva é a de um
jornalismo histórico, uma vez que ele consegue fazer da descrição dos fatos reportagens
densamente fundamentadas. Nessa versão mais simplificada e distribuída pelas bancas
de jornal, com encadernação e material gráfico de qualidade, o jornalista, médico e
historiador Hélio Silva logrou êxito em seu empreendimento, pois fez chegar essa
publicação muito além do horizonte limitado até então possível para os divulgadores de
conteúdos para didáticos. Mais. Teve a coragem cívica de incluir no seu último tomo da
série, o de número vinte, o relato das torturas sofridas por Stuart Angel Jones e seus
companheiros de resistência armada contra a ditadura. Retirado das bancas, este e os
demais tomos da obra entraram definitivamente para a historiografia republicana
brasileira.
Há quem garanta que a retirada desse volume da série de 20 editados pela Editora
Três, em 1975, provocou em Hélio Silva um grande desgosto, a ponto de buscar antes do
previsto o isolamento espiritual. A amargura de um espírito liberal não suportou aqueles
tempos persecutórios marcados por uma série de atentados à liberdade que tanto prezava
o pacato e amistoso autor de uma das séries históricas pioneiras em matéria de
divulgação de nossa história recente. O fato é que “Os Governos Militares” da referida
série passou, depois de confiscada nas bancas e livrarias do país, a ser objeto precioso
daqueles que através desse exemplar pretendiam guardar a memória trágica dos anos de
chumbo.
Mas há que se mencione uma tendência que independente da evolução
historiográfica assumir dimensões mais ou menos disciplinares o analista da produção
do conhecimento histórico e da própria história das idéias deve registrar como um
elemento essencial para o aprofundamento dos temas de natureza histórica. Refiro-me a
tendência a incorporar nos estudos que se possam realizar o emprego do recurso
interpretativo. Creio que existem três ferramentas importantes para a elaboração do
conhecimento: a erudição, a pesquisa e a interpretação. Esta não se pode desenvolver
sem que as duas primeiras estejam totalmente ausentes. A erudição requer leituras e uma
certa ordenação dessas leituras, ao passo que a pesquisa exige um paciente trabalho de
investigação permanente, jamais episódica. Só assim a interpretação desabrocha sem
muito esforço. Mas há, no entanto, os que se esmeraram de tal modo no exercício
interpretativo que acabam por serem situados no restrito e seleto grupo dos intérpretes.
Mas o que são os intérpretes ?
Há três maneiras de se entender o vocábulo: intérprete é aquele que traduz algo para
alguém, é o que analisa situações que implicam níveis de compreensão sobre seus
significados e o que instiga reflexões acerca do conteúdo de um objeto ou problema.
Muito embora todas essas maneiras sejam necessárias para a definição do seu
significado, prefiro ater-me à terceira dessas possibilidades, a que associa o verbo
interpretar ao instigar. A adoção dessa perspectiva nos leva a destacar alguns critérios
para identificar alguém que reúna clareza e competência suficientes para merecer a
consideração de intérprete.
Nesses critérios destaco: a capacidade de inovar; a sagacidade de contestar; e, a
sabedoria de acrescentar um elo original à cadeia do conhecimento. Só a conjugação
dessas três faculdades confere a condição de intérprete. Penso que Euclides da Cunha foi
alguém a quem se pode aplicar essa combinação de critérios que, dentre outros aqui não
considerados, podem figurar no vasto repertório dos que lançam mão de recursos como
tais para identificar os intérpretes de um país. E é com base neles que examinaremos o
tempo e as idéias produzidas pelo autor de Os Sertões.
A incessante busca empreendida por Euclides da Cunha com vista a apreender a
realidade brasileira é inegável, só comparável à determinação de levar adiante a
empreitada por ele concebida. EC quis conhecer com proficiência e agudeza os
problemas e obstáculos ao progresso do país. A literatura sobre a complexa realidade do
Brasil não só era insuficiente para tal pretensão, como padecia de muitos lugares
comuns, e Euclides da Cunha não era positivamente um homem comum. Talvez daí
resulte a insatisfação em face das informações disponíveis e seu desejo de confrontá-las
com os dados da realidade, atitude que proporcionou descobertas responsáveis pela
elaboração criativa de seu trabalho. Estavam, pois, instaladas as condições de produção
do trabalho inovador de EC. Restava apenas a manifestação interpretativa do autor, e
esta costuma acontecer quando se associa a insatisfação com o desejo de superação
desse estágio incômodo para quem procura respostas às suas dúvidas e indagações.
Toda atitude inovadora principia com um ato de contestação, cuja essência
consiste em negar validade a explicações comumente aceitas sem reparos maiores. A
inovação pode explicitar-se através de uma maneira nova de dizer ou comentar algo por
caminhos até então desconhecidos, ou apresentar novos ângulos de um problema de
modo a permitir percepções desconhecidas até aquele momento. Mas, a contestação
pressupõe uma atitude corajosa, que deriva de uma certa combatividade na equação de
questões inadequadamente sustentadas as quais, portanto, padecem de melhor
esclarecimento.
O resultado da ação que combina inovação e contestação é a adição de novos
conteúdos interpretativos, só possíveis àqueles que detêm uma determinada erudição
acerca de um conhecimento dado. Esta adição sugere uma ruptura ou o surgimento de
uma matriz absolutamente nova a ser integrada ao conhecimento que se encontra na base
da ação investigativa. O detentor dessa faculdade de fazer renovar e avançar os
processos de saber, independente de sua predisposição, são geralmente os intérpretes, e
sobre eles, devem dirigir-se os olhares dos curiosos sedentos de aquisição de horizontes
novos.
O advento da República, através de um golpe de estado, surpreendeu a todos,
inclusive aos que acompanhavam com interesse o desenrolar das sucessivas crises dos
últimos gabinetes parlamentares do regime monárquico. Dentre os surpreendidos se
encontrava EC. A opção pelo ideal republicano muito provavelmente foi resultado de
sua formação. Aluno da Escola Militar recebeu a influência inevitável do positivismo
cuja afinidade com o regime republicano era visceral, pois não podia alguém ser devoto
do ideário filosófico do positivismo sem ser republicano. Era um casamento doutrinário.
A saída de EC do exército não arrefeceu sua crença republicana. Tornou-a,
contudo, passível de olhares críticos que encontrarão nos episódios de Canudos, quando
relata os acontecimentos como repórter jornalístico, o ponto mais agudo dessa
disposição em ver os rumos da República distanciarem-se dos fundamentos que
inspiraram a sua implantação. A relação que passara a ter com seus antigos
companheiros de farda passara a ser também de relativa independência. Tinha
consciência da importância da corporação para um país inexplorado em suas riquezas e
potencialidades, mas temia o excessivo envolvimento com as esferas do poder político,
vista como sedutoramente capaz de desviar boas intenções, atitude compartilhada
igualmente pelos militares egressos da Escola Militar.
Para Euclides da Cunha, como de resto para os adeptos da solução republicana,
esta alternativa implicava na eliminação dos privilégios de origem e ainda permitia o
desabrochar das capacidades daqueles que conseguissem elevar-se aos níveis supremos
da racionalidade, tal como idealizavam os postulados positivistas. No dizer de um dos
estudiosos de sua obra, é possível resumir “a doutrina da vida e da obra de Euclides da
Cunha: o voluntarismo combatente, o realismo animista e a ética missionária”.2
Se o Brasil era o objeto de seu estudo e reflexões, a República passara a ser o
meio legal e institucional para fazer de seu interesse principal algo grandioso e capaz de
atender plenamente as expectativas de sua gente. Como engenheiro militar formado pela
Escola Politécnica do Largo de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro, inicia suas
atividades em consonância com os primeiros anos da República. O estímulo não poderia
ser maior, preparava-se para abrir estradas pelo país afora, casara-se e assistia ao regime
que acreditara dar seus primeiros passos. Tudo isso quase simultaneamente envolto com
prazerosa paixão. Além disso, iniciava-se também no campo literário, onde iria ter
oportunidade de polemizar acerca dos destinos do Brasil novo que esperava, conduzido
pelos republicanos.
A década de 1890, plena de crises e desvios de rota da jovem República, fez do
engenheiro EC um profissional itinerante a percorrer cidades e mais cidades a impedir o
exercício intelectual de que tanto se ressentia. “De 1897 a 1902 Euclides se dedicará a
escrever Os Sertões, enquanto, em parte desse tempo, trabalha na construção da ponte
sobre o Rio Pardo; durante todo o período, publicará apenas um ou outro fragmento
provisório do futuro livro”.3Terminada esta que seria sua grande obra retorna ao trabalho
no jornalismo e redige o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de
Reconhecimento do Alto Purus, como encarregado brasileiro, cuja publicação ocorre em 2 Sevcenko, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões Sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 152;3 Galvão, Walnice Nogueira (Introdução) in Feranandes, Florestan (Organizador), Euclides da Cunha, Coleção Grandes Cientistas Sociais n 45, São Paulo: Ática,1984, p. 36;
1906. No ano seguinte, vem a público o livro de miscelânea Contrastes e Confrontos. E
em 1909, ano de sua morte, sai o livro póstumo À Margem da História, livro que reúne
também um conjunto de ensaios.
Como militar republicano homem que cultivava esperanças de ver ainda em vida
a redenção nacional, a identidade com alguns protagonistas do regime que se instalara
em 1889 era inevitável. De todos Floriano Peixoto foi quem Euclides irá recolher a
melhor impressão. Dos inúmeros epítetos que Floriano recebeu ao longo de sua trajetória
política, tanto de admiradores quanto de detratores e desafetos, o que acabou mais
popularizado foi dado por Euclides, o de Marechal de Ferro, título que dá ao seu
vibrante e afetivo ensaio em torno da figura do Marechal.4
Nesse ensaio, Euclides da Cunha revela toda a admiração que “sobressaía pelo
contraste. Era um impassível, um desconfiado e um cético, entre entusiastas ardentes e
efêmeros”. Por este contraste, diria que caberia ao historiador, mais tarde, explicar o
significado da glória que alcançara. Essa esfinge precisaria ser decifrada, pois não se
tratava de um homem que se coadunasse com os ritos e a pompa das circunstâncias. Ao
contrário, era comum demais para ser o que foi.
Talvez pela naturalidade de quem não se desfigura diante de homenagens do
poder e do poder das homenagens, é que Euclides da Cunha tenha assim sentenciado no
referido ensaio sobre o Marechal de Ferro, sem dúvida o mais completo retrato daquele
personagem que instigara e ao mesmo tempo cativara o escritor:
“Minutos depois, quando diante do ministério vencido o
marechal Deodoro alteava a palavra imperativa da revolução, não era
sobre ele que convergiam os olhares, nem sobre Benjamin Constant,
nem sobre os vencidos – mas sobre alguém que a um lado,
deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida
de um talim frouxo de onde pendia tristemente uma espada, olhava para
tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo
depois, os triunfadores ansiando pelo aplauso de uma platéia que não
4 EC, “Marechal de Ferro” in Contrastes e Confrontos, Porto/Lisboa: Liv. Chadron/Aillaud & Lellos, 1907;
assistira ao drama, saíram pelas ruas principais da cidade do Rio –
quem quer que se retardasse no quartel general veria sair de um dos
repartimentos, no ângulo esquerdo do velho casarão, o mesmo homem,
vestido à paisana, passo tranqüilo e tardo, apertando entre o médio e
index um charuto Consumido a meio, e seguindo isolado para outros
rumos, impassível, indiferente, esquivo...E foi assim – esquivo,
indiferente e impassível – que ele penetrou na História “5
É interessante a sedução provocada pelo Marechal junto à geração de escritores e
intelectuais, todos críticos e ao mesmo tempo entusiastas da figura que conseguira pela
vez primeira extrapolar a caserna e atingir o mundo civil. Além de EC, Sílvio Romero e
Lima Barreto desenvolveram uma relação ambígua, provavelmente porque Floriano
representara como ninguém a personificação da república que tantos idealizavam e
pretendiam vê-la em funcionamento: forte suficientemente para resistir às oligarquias e
às investidas de fora que pudessem restringir a soberania nacional.
Contudo, os acontecimentos de setembro de 1893, quando irrompeu a Revolta da
Armada,6 arranhou consideravelmente a maré montante dos que cerravam fileiras em
torno de Floriano. As defecções foram muitas, não obstante o crescimento vertiginoso da
popularidade do presidente. Se as adesões foram suficientes para produzir o primeiro
grande movimento espontâneo de caráter cívico e popular, o afastamento de
personalidades que davam apoio ao marechal não deve ser negligenciado. Dentre os que
se afastam encontrava-se EC, que não poupou críticas a violência da repressão
desencadeada pelo governo florianista, não obstante ter tido participação ativa na defesa
militar da cidade nas trincheiras do bairro da Saúde.
EC colaborou no jornal A Província de São Paulo, sob o pseudônimo de
Proudhon, mantendo uma seção intitulada “Questões Sociais”. Aliás, sobre essa
temática produziu um das mais ricas e contemporâneas reflexões acerca da matéria, o
5 EC.”Marechal de Ferro” in Confrontos e Contrastes6
5 A Revolta da Armada transcorreu entre setembro de 1893 e março de 1894, tendo como principal rebelde o Contra-Almirante Custódio José de Melo, que contestava a posse de Floriano na presidência da República, sendo ele próprio, Custódio, um pretendente ao posto.
ensaio “Um velho problema” publicado em Contrastes e Confrontos, que segundo um de
nossos historiadores “transcende a tudo quanto até aquele momento havia sido escrito no
Brasil, no que diz respeito às relações entre o capital e o trabalho, bem demonstram
como o vigoroso pensador de Os Sertões estava se aprimorando no trato de questões
candentes, dentro de metodologias cada vez mais exatas.” ·6·
A sensibilidade de EC na abordagem da problemática social é um elemento
constitutivo de sua percepção de observador atento das relações sociais. Ao mudar sua
visão sobre Canudos, depois de nutrir uma apaixonante defesa do regime republicano,
chama as populações sertanejas de “nossos rudes patrícios transviados”, numa singela
confissão de compreensão em relação ao movimento, que segundo ele “despontou da
convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões”, que
passara a conhecer na mais completa adversidade.
José Pereira de Sampaio (Bruno), autor de O Brasil Mental, e prefaciador de
Contrastes e Confrontos, diz que EC “é erudito argumentador tem a galhofa do cronista
e a eloqüência do tribuno; é um sábio e um mestre prosador”.7 O escritor e crítico
português resume com essas palavras o conjunto da obra de Euclides da Cunha. Passado
quase um século pode-se dizer que esse legado é mais grandioso do que imaginava
Bruno. Certamente uma palavra melhor exprime o legado: Euclides da Cunha foi
fundamentalmente um brasileiro interessado nos destinos do país, e para tanto procurou
fazer sua parte. Atribuiu-se a missão de investigá-lo nos limites de sua competência de
engenheiro e de cidadão, de técnico e de ativo participante das coisas nacionais.
A capacidade de entender a diversidade de populações destituídas de meios e em
face de um cenário adverso, onde a relação raça e condições geográficas passam a
representar um elemento importante em suas observações, tornou Euclides um cientista
social tão denso e agudo em suas análises quanto os que dela faziam sua atividade
profissional. É sabido que quando EC dispôs-se a reportar a revolta de Canudos, pensara
tratar-se – como de resto todos os republicanos – de uma manifestação fomentada pelos
restauradores monarquistas. Passada a perplexidade, procurou apreender as razões 6 Moura, Clóvis. “Euclides da Cunha”. In Grandes Vultos do Brasil, São Paulo: Editora Lúmen, 1970, p. 134;7 EC, Contrastes e Confrontos, op.cit. p. xi;
daquele episódio. Essa preocupação em não se limitar a descrever mas em compreender
as motivações daqueles sertanejos, tornou possível a obra que o tornou famoso e
respeitado.
A concepção de Os Sertões reforça aquela relação entre raça e condições de vida
e para tanto, organiza sua obra em três partes: a terra, o homem, a luta. Sua paixão pelo
cenário onde esse elemento se integra é arrebatadora. Em momento algum se encontra
distante do teatro em que as cenas mais duras ou mais singelas se cruzam numa
permanente alternância de situações que não escapam ao olhar atento do observador
interessado. Este interesse não se prendia apenas ao cenário dos embates, suscitava nele
a reflexão que invariavelmente resultava em soluções para os problemas da região e seu
povo.
No capítulo sobre a terra, a ausência de chuvas provocava o contínua evasão de
seus habitantes, os retirantes. Ao longo da descrição dessas condições adversas, EC
propunha o represamento das águas e o uso da irrigação, a exemplo de outras partes do
mundo em que tais condições se assemelhavam, como a região do Magreb, no norte da
África, especialmente na Tunísia. Embora essa situação não fosse a determinante para os
problemas por que passavam as populações do nordeste, o descaso de uma elite
neocolonial em equacionar esse panorama transformava-o em resolução insanável, a
provocar com freqüência o apelo a crendices e a salvadores. Estava, pois, criada as
condições para o messianismo prosperar.
No que respeita ao capítulo em que trata do homem, Euclides da Cunha dá vazão
às suas teses, fundada na crença de que os cruzamentos de raças resultaram no homem
brasileiro, esse pardo que até hoje pontifica nas consultas do censo do IBGE. Porém, a
ambígua relação entre raça e nação aparece a todo instante, como observa-se numa
passagem do autor: “A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.”8
Os sucessivos cruzamentos dariam como resultado o surgimento de uma raça original, a
integrar peculiaridades e a forjar impulsos vitais renovados mercê de aquisições de
valores ancestrais. A famosa expressão, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem
o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” é, na perspectiva de EC, a
8 EC, apud, Leite, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro, 2@ edição, São Paulo,: Pioneira, 1969, p. 206;
melhor síntese que produziu para fundamentar sua tese e, particularmente, para situar a
resistência estóica dos sertanejos em face da opressão dos opressores.
E ao examinar a complexidade do problema etnológico do Brasil, EC aborda a
questão da “gênese dos jagunços”, a quem o autor considera tipos “colaterais prováveis
dos paulistas”. Assim, ao referir-se ao homem que se situava ao longo do trecho que se
estende do leito do rio Vaza-Barris ao do Paraíba, estava mencionando uma
representação de um brasileiro em meio ao extraordinário e rico manancial de tipos
sociais produzidos pela miscigenação responsável por uma integração nacional exitosa.
Provava, com isso, a capacidade do brasileiro de encontrar parcerias de vida, ainda que
vidas submetidas a constantes sobressaltos.
A parte dedicada à luta não só ocupa dois terços de Os Sertões, como alcança um
nível de comprometimento com a narrativa que torna sua leitura algo candente e o leitor
refém de sua tessitura. Ao iniciar seus “Antecedentes”, diz em tom categórico: “O mal
era antigo”. \mais adiante sentencia: “O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao
garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído”.8
A trama prossegue alternando informações úteis ao leitor desavisado, como de pronto se
encontrava o autor, com as escaramuças que alteraram substancialmente a vida e a
natureza daquelas paragens.
A medida em que EC tece considerações acerca das expedições enviadas a
Canudos para destruir o arraial de Belo Monte, cresce a emoção cujo clímax ocorre no
trecho dedicado aos “Últimos Dias”. Nele, em tom solenemente emocional, EC afirma
no penúltimo item “Canudos não se rendeu”, no qual tornou conhecida a passagem
antológica: “Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo.
Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer,
quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um
velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco
mil soldados”.9
Até aquele momento não se conhecia narrativa tão impregnada de verdade,
indignação e indisfarçável admiração pela manifestação de um povo como o relato desse
romance-reportagem que veio á público em 1902, portanto há cem anos. Se Graça
8 Cunha, Euclides. Os Sertões, 27@ edição, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1968, p. 165;79 Id.Ibidem, op.cit. p. 458;
Aranha com o seu Canaã tem sido apontado como o pioneiro do romance social, EC foi
indiscutivelmente o iniciador da historiografia não oficial, seguido que foi, em 1905, por
outro intérprete do Brasil, Manuel Bonfim e seu América Latina, Males de Origem. Essa
geração fundou, EC à frente, a verdadeira história social brasileira.
O legado de Euclides da Cunha precisa ser transformado em compromisso cívico.
Militar frustrado, engenheiro bem sucedido e escritor consagrado, foi fundamentalmente
um brasileiro absorvido por uma obsessão: a de encontrar rumos certos para a trajetória
do país e a felicidade de sua gente, cuja construção como raça (vocábulo de uso corrente
naquela ocasião) impunha o merecimento de uma pátria tão harmoniosa quanto fora a
fácil e fecunda integração étnica e cultural dos povos que aqui se constituíram ao longo
de nossa história como sociedade mestiça e transcontinental.
Se Euclides da Cunha foi notabilizado pela obra maior, Os Sertões, caberia assinalar
outros momentos de lúcida reflexão sobre o Brasil e suas riquezas e potencialidades,
como, por exemplo, em À Margem da História, livro editado que reúne seus ensaios o
legado mais rico das idéias desse intelectual, engenheiro e empreendedor. Nesses textos
se encontra o também historiador e, sobretudo, o homem de idéias.
Dividido em quatro partes, intituladas de Terra sem História, Vários estudos, Da
independência à republica e Estrelas indecifráveis, sua primeira edição data de 1999 de
iniciativa da Livraria Martins Fontes Editora. A avaliação que faz da implantação da
República entre nós talvez seja a mais singela e verdadeira das explicações. Faz ver ao
leitor que o momento republicano havia chegado em diversas ocasiões e, portanto, a
alternativa republicana estava mais do que madura. Seu ponto de maior inflexão se dá
com a Abolição, marco final de um regime que não soubera conduzir essa transição tão
almejada pela humanidade em sua sabedoria. Não vê méritos especiais nos líderes do
movimento e da propaganda republicana, nos militares mais exaltados e tampouco na
imprensa. Todo o ambiente político se encontrava arrastado para a solução adiada, mas
que se tornava cada vez mais inevitável. E termina essa Terceira parte assim:
Foi o que se viu a 15 de novembro de 1889;
uma parada repentina e uma sublevação; um
movimento refreado de golpe e transformando-se, por
um princípio universal, em força; e o desfecho feliz de
uma revolta.
Porque a revolução já estava feita.
A República na perspectiva de Francisco José de Oliveira Vianna tem a sua
expressão mais densa em O Ocaso do Império, que é a mais aguda análise dos
acontecimentos que se produziram do ponto de vista de uma historiografia retrospectiva
do processo de constituição da República. Destaca-se, de início, a estrutura do livro, que
sintetiza magistralmente a conjuntura da transição da monarquia à República. Na
primeira parte, a referência às lutas entre as duas soberanias: ao do príncipe e a do povo..
Na segunda, O Movimento abolicionista e a Monarquia, na qual Oliveira Vianna ressalta
o papel político representado pela Abolição no processo de republicanização do país.A
Gênese e evolução do ideal republicano é o tema da terceira parte do livro. Nele, o autor
relaciona a reação liberal de 1868 como marco desse processo político que levaria à
República. Na quarta parte, O.V. trata de O papel militar na questão do Império, e
analisa o contencioso entre os militares e o regime monárquico. E, finalmente, na quinta
parte, examina A Queda do Império. E em dois momentos sintetiza sua avaliação desse
processo.
“O povo-massa, (...) não tinha, realmente, saído da prática da
gestão, (dos interesses comunais). Este foi o grave problema que o
advento revolucionário do Estado-Nação – fundado na soberania do
Povo e não mais na soberania do Rei – impôs à capacidade dos povos
modernos. (...) Uma destas condições indispensáveis a uma execução
eficiente deste novo regime é o sentimento do Estado Nacional, isto é, a
consciência, em cada cidadão do povo-massa, de um destino ou uma
finalidade nacional ao mecanismo do governo e da administração
centrais.” (pp. 160-161, de IPB, v. I);
“O regime republicano – com a pequena periodicidade dos mandatos
e a rápida sucessão dos homens no governo – não favorece, e mesmo
dificulta, a seleção dos `homens de 1.000`. Os homens, que hoje existem
aqui deste tipo, têm uma carreira precária e curta. Não formam uma
classe – como no Império. São homens isolados, individualidades à parte
no meio político – espécie de “desajustados” superiores, tomados de
misticismo regenerador, eternos descontentes, sujeitos a crises bruscas
da misantropia política e súbitos afastamentos radicais da vida pública..”
(p. 336, de IPB, v.I).
2. Os renovadores
Este item reúne um conjunto mais diversificado de autores, uma vez que se juntou o
grupo que efetivamente propôs uma revisão historiográfica da leitura de nossa história e
os que se preocuparam a introduzir definitivamente o hábito da pesquisa na produção de
estudos de natureza histórica. Assim, foram relacionadas as obras de Caio Prado Jr,
Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, de um lado, a representarem os
renovadores de estilos e perspectivas novas a respeito da história brasileira, juntamente
com os pioneiros de trabalhos alusivos à República saídos da faina acadêmica e
bafejados pela imersão nos arquivos e depósitos de documentos consultados por esses
igualmente renovadores da historiografia, tais como Emília Viotti da Costa e José
Murilo de Carvalho.
É claro que nomes como os de Alice Canabrava e Maria Sylvia Carvalho Franco,
além de dezenas de outros poderiam figurar numa relação maior do que a que se está a
propor nesse ensaio, muito embora a primeira não tenha se ocupado propriamente de
temas republicanos. A explicação está exatamente em ser um texto curto sem a pretensão
de abarcar não só todos os nomes dignos de figurarem num estudo de historiografia
republicana como de, principalmente, aprofundar suas contribuições. Alguns outros,
portanto, poderiam integrar essa relação, mas o critério foi o de priorizar, por outro
lado, as contribuições relativamente ao período republicano. Por outro lado, e
considerando as limitações de espaço, trata-se de uma resenha que não exclui a
referência a trabalhos não menos pioneiros ou relevantes sobre os quais caibam algumas
considerações na esteira das que se fizerem a propósito dos autores mencionados.
O livro de Viotti da Costa Da monarquia à república tornou-se uma referência para
os estudiosos da transição dos regimes políticos brasileiros. Nele, a autora reafirma um
conjunto de elementos interpretativos consolidados pelas pesquisas acadêmicas e
adiciona uma série de aspectos novos nas considerações acerca do processo histórico
examinado. Texto direto, simples, mas ao mesmo tempo rico e muito bem articulado,
esse livro tem servido de leitura básica para o início do estudo do período republicano
brasileiro. Destaca-se entre outras questões, por exemplo, a definição que a autora dá às
tendências revolucionárias e evolucionistas representadas respectivamente por Silva
Jardim e Quintino Bocaiúva. Em pauta, a questão da oportunidade de se adotar a fórmula
republicana, que para uns passaria por um ação popular, ao passo que para outros a
chegada da República dar-se-ia progressivamente e por meios pacíficos.
Também se destaca no livro as versões a propósito da Proclamação. Haveria a versão
militarista e a civilista. Cada qual reivindicando para uma dessas facções o mérito e a
condução do processo. Ambas se encontram historiograficamente marcadas por visões
preconceituosas a respeito do oponente. Sem minimizar a importância das diferenças e
controvérsias entre civis e militares, o fato é que transformarem-nos em instrumentos
isolados de um movimento que contou, dos dois lados, com integrantes desses dois
grupos que protagonizaram os acontecimentos é, positivamente, reduzir de maneira
injustificável os fatores e os agentes daqueles momentos decisivos, termo no qual a
autora acrescenta ao título de seu livro, cuja primeira edição é de 1977, editado pela
Grijalbo e constituído de dez capítulos.
No que se refere a José Murilo de Carvalho sua obra conjuga os períodos
monárquicos e republicanos. Mas sua inclusão nesse ensaio, como referencia para os
estudos republicanos se deve ao fato de ter proporcionado contribuições altamente
relevantes para a compreensão de uma transição política e institucional sem grandes
custos sociais. Sem dúvida, a leitura de A Construção da Ordem e Teatro de Sombras
traça um panorama do Império, primeiro e segundo reinados, que permite ao leitor
entender os desdobramentos que resultariam na República. O primeiro corresponde à
primeira parte da tese de doutoramento sustentada na Universidade de Stanford. Nela o
autor analisa o comportamento da elite política imperial e foi publicada isoladamente em
1980. A segunda parte, trata da política desenvolvida no período imperial por essa elite,
cuja saga não se deteve com o advento do regime republicano.
Muito provavelmente o livro que melhor caracterizou a incursão de José Murilo de
Carvalho no mundo dos estudos republicanos foi o seu Os bestializados. O Rio de
Janeiro e a República que não foi de 1987, pela Companhia das Letras. Ao reunir cinco
ensaios, “O Rio de Janeiro e a República”, “República e cidadanias”, “Cidadãos
inativos: a abstenção eleitoral”, “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina” e”Bestializados
ou bilontras?”, amparados por uma Introdução e uma Conclusão de modo a tornar mais
do que complementar o conjunto harmonioso que conferiu o formato mesmo de livro, o
historiador mineiro abriu uma senda das mais robustas e estimulantes para a releitura dos
anos inicias do período republicano, que pareciam definitivamente enterrados na
mesmice das parcas relações entre as pessoas e as instituições.
Ao juntar à bibliografia uma relação de periódicos pouco manipulados pelos
pesquisadores dessa época, José Murilo de Carvalho conjugou o rigor acadêmico com a
informação pedagógica tão necessária ao leitor menos ilustrado, mas não menos
interessado nas coisas do país. Como disse nas suas considerações finais, o livro “girou
em torno de três temas e das relações entre eles: o tema do regime político (a República),
o tema da cidade (Rio de Janeiro) e o tema da prática popular (a cidadania).” Essa
abordagem foi pioneira e detonou uma série de estudos situando ora um desses temas,
ora a interação entre eles, seja com base nos documentos dos depósitos de arquivos
públicos ou de coleções particulares. Mais do que a perspectiva de uma abordagem
original, para os padrões até então em vigor na historiografia, o fato de o autor inserir os
desafios de uma tentativa de republicanizar a cidadania em pleno momento de uma nova
transição, a do legado da ditadura militar para uma “Nova República”, que surgia, tornou
essa publicação num indiscutível ponto de referência para os novos pesquisadores.
Contudo, dois historiadores deixaram um legado dos mais importantes às novas
gerações: Caio Prado Junior e Nelson Werneck Sodré. Se o primeiro, mencionado
anteriormente como um dos renovadores da historiografia juntamente com Sérgio
Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, é reconhecidamente um nome de destaque na
galeria dos imortais da historiografia brasileira, Sodré não tem tido o merecido
reconhecimento. Muito embora ambos tenham tido a aversão de setores tradicionais e
conservadores em razão de terem sido militantes do PCB, no tocante a Sodré é possível
que a sua condição de oficial da reserva do exército nacional o tenha feito uma
personagem de difícil assimilação nos meios intelectuais, por puro preconceito reforçado
pelo forte anticomunismo que se estabeleceu nas forças armadas, sobretudo depois dos
episódios de 1935.
O que importa, no entanto, é que a obra produzida por esses dois geniais
combatentes da história tornou-se referência obrigatória das listagens bibliográficas dos
cursos de graduação em história e nas demais ciências sociais, quando não freqüentando
a seleta relação de autores dos seminários de pós-graduação nas áreas das ciências
humanas. Só a presença de seus livros na bagagem formadora dos novos profissionais
saídos das universidades brasileiras seria motivo suficiente para uma avaliação mais
pormenorizada da contribuição que proporcionaram ao conhecimento de uma dimensão
macro histórica do Brasil. Mas, além dessa constatação, há que se acrescentar o caráter
teórico e metodológico que ambos difundiram na academia, ao tornar o marxismo não
apenas uma retórica vinculada ao proselitismo praticado pelos ativistas do ideário
socialista, porém uma ferramenta interpretativa da formação e do desenvolvimento
histórico da sociedade brasileira. Neste aspecto, tão somente aqui lembrado, já seria
suficiente para incluí-los como leituras obrigatórias das leituras a respeito do Brasil.
Se Caio Prado Junior com a sua Evolução Política do Brasil, de 1933, abriu o
caminho para que a interpretação marxista de nossa história alcançasse uma
sistematização até então inexistente, foi com Nelson Werneck Sodré que a aplicação
desse método de análise da formação social brasileira foi mais amplamente exercitada.
Não somente pelo volume de estudos desenvolvidos pelo general e historiador mas por
ter desbravado fronteiras do conhecimento na área ampla e difusa das ciências humanas.
Se o historiador paulista deteve-se na apreciação das questões atinentes ao universo dos
historiadores, o historiador carioca fez incursões nos campos da literatura e de temáticas
de natureza cultural, com a desenvoltura que o uso do instrumental teórico lhe facultou.
Além do caráter múltiplo de seus estudos Sodré preocupou-se em ocupar-se de temas
atinentes aos fazeres dos quais se envolvera em suas atividades, seja como intelectual
engajado nas questões nacionais, na qual o ISEB era uma de suas trincheiras, seja como
militar a refletir acerca de questões que diziam respeito à instituição que pertencera, ou
ainda, ao militante comunista. Nesta última atividade, não obstante a discrição, Sodré
não deixou de contribuir com estudos referentes à organização política da qual fizera
parte, o PCB. Sabia, por outro lado, conviver com os diversos interlocutores que
participavam desse rico mundo de idéias sem quaisquer dificuldades. E em cada uma
dessas frentes produziu obras que foram de grande valia aos seus companheiros.
O intelectual eu o conheci primeiro. Foi no ISEB, quando assisti pela primeira vez à
palestra que proferira se não me falha a memória de abertura do curso de teoria social,
no qual se estudaria a formação histórica brasileira. Deste curso e, sobretudo, de sua
orientação surgiria mais tarde uma coletânea de pequenos ensaios intitulada de História
Nova. A fala mansa e ao mesmo tempo segura e convincente denotava o domínio das
fontes e apresentava um perfeito encadeamento no relato dos fatos com as circunstâncias
que lhes deram origem e dimensão. Nada lhe parecia incomodar aparentemente, mesmo
as perguntas mais inconvenientes ou desprovidas de algum propósito. Respondia com
elegância e pacientemente.Demonstrava um domínio da matéria e eu o considerava o
senhor da História, pela segurança nos argumentos e coerência na análise.
O general eu o conheci no quartel-general situado no Palácio Duque de Caxias, sede
do então comando do 1º Exército e também aonde funcionava o próprio ministério da
Guerra, denominação anterior a do atual ministério do Exército. Servira ao exército
naquele mesmo estabelecimento, e para lá retornava anos depois para resolver um
problema relacionado ao recebimento da pensão de minha mãe, filha de militar. À minha
frente, no saguão para atendimento aos oficiais da reserva se encontrava alguém que era
alvo de seguidos cumprimentos. Por fim, descobri tratar-se de um nome que já me era
familiar: Nelson Werneck Sodré. Tive impulsos de dirigir-me a ele, mas resolvi tão-
somente observá-lo. A oportunidade de conhecê-lo como membro de partido ocorreu
mais tarde.
AnexosI
O Relato de uma experiência
I
Foi durante as férias de julho de 1963 o contato que tive com o projeto De pé no
chão se aprende a ler, desenvolvido na prefeitura de Natal, Rio Grande do Norte, na
gestão de Djalma Maranhão. Meu pai fora convidado a fazer algumas palestras e contou-
me a respeito dessa experiência. As pessoas mobilizadas percorrendo os mais distantes
distritos e aldeias da acolhedora capital potiguar, certas do futuro promissor que os
aguardava. Viviam-se os tempos de mudança para melhor e eu, embalado pelos ventos
da Revolução Cubana a fazer-me a cabeça, acreditava piamente que o futuro estava
chegando.
À frente do projeto educacional alternativo que assistia entusiasmado se
encontrava Paulo Freire e Moacir de Góes. Tempos mais tarde fui apresentado ao mestre
Paulo Freire e de cara percebi tratar-se de alguém especial. Não demorou muito e já
corria que Jango o queria à frente de um projeto que alfabetizasse todo o país. Era um
Plano, que logo em seguida transformar-se-ia em Programa a ser implantado no MEC.
Como estudante e simpatizante do PCB, (só me filiaria depois do golpe de 64), fui um
dos convocados para a tarefa de dar corpo à idéia de se iniciar no Rio a adoção do
método Paulo Freire de alfabetização e conscientização.
A prova de seleção dos monitores do método Paulo Freire foi realizada no
estádio do Maracanã. Uma verdadeira multidão de jovens acorreu num dia de sol a pino.
Era a consagração da política de alfabetização dos adultos, e todos demonstravam forte
interesse em participar daquela epopéia de verdadeira salvação nacional. Apesar de a
capital da República já ter sido instalada em Brasília, o Rio continuava a ser uma
referência nacional. E a realização desse processo seletivo tinha também um caráter
emblemático, na medida em que expunha à opinião pública nacional as diretrizes de um
Programa voltado para dotar de cidadania um contingente expressivo de brasileiros.
Mesmo com a transferência da capital para Brasília, a cidade do Rio de Janeiro,
então Distrito Federal, ainda respirava o ar da política nacional. A dimensão cosmopolita
casara-se bem com a fácil veiculação de projetos nacionais de cunho generoso, razão
pela qual a mudança do governo federal para o planalto central não ter motivado ações
de repúdio ou contestação por parte de seus habitantes. Afinal, pensava-se no bem que
tal decisão proporcionaria para milhões de brasileiros e para a própria integração do
vasto território brasileiro. Todas essas questões perpassavam as cabeças dos jovens que
acorreram à prova de seleção, cujo teor consistia de uma espécie de verificação da
cultura geral dos candidatos, de modo a aquilatar o grau de inserção naquele contexto
tão politizado merecedor, portanto, de agentes que pudessem expressar as demandas dos
setores populares mediante a coordenação de um governo vocacionado para dar
prioridade absoluta a esses setores da sociedade.
Sirvo-me de uma mensagem recebida pelo companheiro Airton Queiroz,
economista e professor da UFF, na época monitor dos cursos de alfabetização em
Pernambuco, terra de Paulo Freire, para explicar o que consistia o tão propalado Método
Paulo Freire. Melhor do que essa síntese perfeita não conseguiria produzir.
O Método Paulo Freire, do qual fui monitor e supervisor em Recife e em dois engenhos de açúcar do município de Barreiros/PE ( onde ensinei 90 cortadores de cana jovens e adultos aprender a ler em apenas 80 dias ), nos idos de 1963/64, é considerado sintético-analítico-sintético, parte do discurso, chega à palavra-chave ( pesquisa do universo vocabular da comunidade a ser alfabetizada ), da palavra chave à família dos seus fonemas constituintes.
A partir dessa família de fonemas se incentiva a descoberta de outras palavras e com elas se promovem novos discursos.
É como você diz, é uma epistemologia holística, cuja concepção entende que o adulto, mesmo sendo analfabeto tecnicamente, é um potencial alfabetizado, pois o mundo que lhe cerca, principalmente, se ele for urbano, é inundado pela palavra escrita.
Cheio desses símbolos que vê sempre e, dos quais, tem um semi-entendimento, nos cartazes, nos letreiros dos ônibus, nas revistas e jornais expostos em bancas, nas placas das ruas, nos títulos dos prédios públicos etc.
E Paulo Freire ensinava que essa pessoa adulta, mais que as tenras crianças, tem seus pensamentos, em forma de discurso, de narrativa, cuja expressão mínima é uma sentença, mas nunca só uma sentença.
Ninguém pensa só com uma única frase. Muito menos com uma só palavra. Todo pensamento, mesmo quando confuso, é um discurso, é uma descrição, uma dissertação, uma informação, uma fofoca, uma canção com uma mensagem.
E, como todo pensamento é desejoso, como diria Hélio Pellegrino, todo ele é uma argumentação em prol de expressar ou satisfazer um desejo, desde a busca de saciar a fome à oferenda do amor.
O pensamento é algo inteiriço, formado por frases, sentenças, parágrafos, capítulos, causos, piadas, relatos, declarações de amor, romances, estórias, história, etc.
A alfabetização técnica do Método Paulo Freire, que o analfabeto é levado a descobrir, com arte, pelo bem treinado monitor-motivador ( e não professor ), dá-lhe imensa alegria, pois sente que foi ele mesmo que se alfabetizou.
E, com o domínio da palavra lida e escrita por ele, com esses "tijolos do pensamento", desarna-se a construir novos discursos com novas palavras, enriquece sua mente, aumenta sua cidadania, afirma-se como ser político e passa a querer, junto com seus companheiros, a influir nos destinos de seu lugarejo, de sua cidade, e mais adiante, de seu País e do Mundo.
Daí que Paulo Freire compreendia que não se podia ajudar a alfabetizar de maneira sólida, sem que esse processo fosse acompanhado da conscientização sócio-cultural -política do alfabetizando.
Alfabetizar é politizar e vice-versa, isso se faz num só processo.
O desejo de politizar-se passa a ser a motivação básica da alfabetização freiriana. Toda "aula" é iniciada com um tema da vida da comunidade posto em discussão. A função do monitor habilitado é
provocar, conduzir e buscar manter o foco discussão no tema que deve girar em torno da palavra-chave.
As palavras chaves, descobertas em pesquisa prévia junto à comunidade, alvo da alfabetização, devem ser cuidadosamente escolhidas pela sua vitalidade temática e, em número que não chega a trinta, são capazes de gerar quase todos os principais fonemas da nossa língua.
E o monitor, alma do Método Paulo Freire, se sairá tão melhor no seu trabalho, quanto menos seja notado, quanto menos seja o centro das discussões, que o grupo de alfabetizando deve travar.
A coroação do monitor é sua existência-inexistente.
Se ele foi bem treinado e for exitoso na execução do seu trabalho, verá que a partir da terceira ou quarta palavra chave, o grupo se adianta a ele. E ele não deve atrapalhar essa ansiedade despertada no grupo, mesmo que haja naturais "atropelamentos", os quais devem ser auxiliados de forma quase invisível por ele.
A pretensa alfabetização apolítica não cria a fibra da cidadania, não tempera a garra de sentir-se um ser no mundo e para o mundo. Não constrói a consciência de um ser que é mais do que biológico, é um ser sócio-cultural, é um ser produto e produtor de cultura. De operário construído em operário em construção, diria o poeta.
O alfabetizado freiriano aumenta o orgulho que sente pelo trabalho, pelo seu trabalho, por mais humilde que pareça ser. Ele passa a entender que o trabalho, qualquer trabalho, produz cultura.
O trabalho é o primeiro e principal poder, o poder que forma todos os outros poderes, inclusive todas as riquezas.
Ele aumenta sua auto-estima, deixa de ser uma pessoa tímida ante os poderosos. Vai compreendendo que o poder dos ricos provém de parte do produto do seu trabalho individual que lhe é expropriado.
Apesar de já ter recebido dezenas de vezes, homenagens universitárias, como paraninfo e patrono de muitas turmas, em várias faculdades daqui e dalhures, a alfabetização desses homens e mulheres, desses camponeses de Barreiros, é a maior honra pedagógica que carrego com muito orgulho no meu peito.
Basta a simples lembrança desse feito, para me levar às lágrimas de felicidade.
Estou justificado perante o mundo.
Apesar de já ter recebido dezenas de vezes, homenagens universitárias, como paraninfo e patrono de muitas turmas, em várias faculdades daqui e dalhures, a alfabetização desses homens e mulheres, desses camponeses de Barreiros, é a maior honra pedagógica que carrego com muito orgulho no meu peito.
Basta a simples lembrança desse feito, para me levar às lágrimas de felicidade.
Estou justificado perante o mundo.
Na região Sudeste, a estratégia consistia em iniciar a implementação do
Programa na Baixada Fluminense e junto aos filiados dos sindicatos operários existentes
no Rio e comprometidos com o objetivo do referido Programa. Era preciso além dos
mobilizadores formar equipes de alfabetizadores mediante cursos de curtíssima duração,
de modo a multiplicar em ritmo veloz o contingente dos executores do método em
questão. Os resultados eram fantásticos, pois ao aliarem-se as palavras-chaves do
linguajar cotidiano das comunidades com a abertura de consciência a respeito de suas
condições de vida produzia-se algo extraordinário, uma espécie de insight, e a
descoberta das condições de exploração a que eram submetidos os assalariados. O
sucesso inicial dessa experiência contagiava a todos os que se empenhavam em levar
adiante o projeto de dar, no fundo, cidadania a milhares de simples e humildes pessoas
até então aprisionadas pela ignorância.
O impacto dessa experiência chegou à Brasília, mais precisamente ao governo do
presidente João Goulart, o Jango. Num primeiro momento alguma resistência ocorreu,
mas quando o MEC foi assumido porm Paulo de Tarso, o professor Paulo Freire foi
convocado a estender aquela experiência ao nível nacional, tendo Brasília como uma
espécie de plano piloto desse processo. A idéia do ministro era atingir 2 milhões de
analfabetos, com o que os tornaria imediatamente eleitores capazes, portanto, de
promover pacificamente por via eleitoral uma verdadeira revolução no país. Como
lembraria maiôs tarde Paulo Freire num governo que oscilava em face das pressões de
esquerda e de direita não era lícito deixar de lado oportunidades como essas. Apesar
disso, Freire perguntou ao ministro se era pra valer o convite e, em conseqüência, a
execução desse plano.
A seguir sirvo-me do relato de Ana Maria Araújo Freire, que em seu livro “Paulo
Freire, Uma História de Vida”. Mas, antes cabe acrescentar alguns dados sobre o PNA,
cuja Portaria de criação do MEC foi a de número 182, datada de 28 de junho de 1963,
muito embora a sua implementação acontecesse no mês de setembro daquele ano. Na
realidade, essa Portaria dava início aos trabalhos da Comissão de Cultura Popular. Foi,
no entanto, a Portaria nº 234, de 24 de julho do mesmo ano, que publicada no Diário
Oficial da União, o DOU, faria deslanchar a política popular de educação do governo
Goulart. Finalmente, o Decreto nº 465, de 21 de janeiro de 1964, ficou decretado e
instituído o PNA. Como diria Freire, em entrevista a O Pasquim, “(F)oi pouco, mas deu
para implantar a coisa em todo o país. O negócio era tão extraordinário que não poderia
continuar. Num estado como Pernambuco, que tinha naquela época, um número que
pode não ser exato, de 800 mil eleitores, era possível em um ano passar para 1 milhão e
300 mil.”
Segundo a ex-discípula e mulher de Paulo Freire, a educadora Ana Maria,
realmente os interesses da “direita brasileira, indignada com os movimentos populares e
o povo que emergia na cena política” acabariam se impondo pelo argumento da força, a
força dos argumentos do `sistema Paulo Freire`. Sendo assim, os novos governantes
baixaram o Decreto nº 53.886, de 14 de abril de 1964, que “Revoga o Decreto nº 53.465,
de 21 de janeiro de 1964, que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização do
Ministério da Educação e Cultura”. E assim diz Ana Maria:
“Assim, o PNA foi extinto e Paulo, sentindo-se muito cansado pelo ritmo dos
trabalhos que vinha realizando e exaurido pelo golpe de Estado, submeteu-se a exames
médicos na Fundação Hospitalar do Distrito Federal, tendo o médico, cujo nome no
documento é ilegível, atestado que ele estava `necessitando de 30 dias de repouso, a
partir de 02/04/64`, tendo sido referendada a prescrição médica até 3.5.1964 pela
Universidade do Recife, em despacho assinado pelo reitor, João Alfredo da Costa Lima.
Nova licença médica de trinta dias foi concedida a Paulo, de 27.5.1964 a 25.6.1964.” E
conclui o capítulo dedicado ao PNA: “perseguido, Paulo precisou, para preservar a sua
vida, partir para um exílio de mais de quinze anos.”
Quando, no Rio de Janeiro, o MEC convocou para uma seleção os futuros
alfabetizadores foi preciso que a prova de seleção dos monitores se realizasse no Estádio
do Maracanã, tal o número de interessados em participar desse processo. A maioria não
foi atraída por dinheiro, mas havia, de verdade, um desejo de participação que
ultrapassou a todas as expectativas. O Plano Nacional de Alfabetização, o PNA,
começava vitorioso. Estudantes universitários, a maioria constituída de calouros, tinham
dessa maneira uma iniciação diferente, pois teriam uma prática pedagógica popular
como elemento adicional à formação curricular convencional.
Essa mobilização foi espontânea. É bem verdade que a União Nacional dos
Estudantes (UNE) tinha assumido o compromisso de levar a alfabetização para todo o
território nacional secundando os esforços do MEC ou antecipando a esta ação. Não Foi
somente pela sensibilidade de seus dirigentes que a idéia de alfabetizar em grande escala
surgira no seio da entidade. A UNE aproximara-se do governo e se colocava como
interlocutor muito presente e em todas as horas. À época, a nova diretoria presidida por
José Serra, freqüentava as salas do executivo federal, pois se apostava na boa influência
que poderia exercer tendo em vista as supostas hesitações de Jango. Esta referência ao
comportamento do presidente provinha dos setores mais radicais, que San Tiago Dantas
chamaria de esquerda negativa, em oposição à esquerda positiva. Ambas compunham
uma base aliada administrada com habilidade pelo presidente, mais inclinado, contudo,
para dar apoio aquela esquerda identificada como positiva, já que Jango era um
reformista e um moderado no que concerne à maneira de fazer política.
II
O que mais me atraiu na fundamentação da metodologia trazida por Paulo Freire
era o princípio segundo o qual antes de se alfabetizar era preciso saber ler o mundo. Essa
idéia de que o alfabeto era tão-somente um instrumento a serviço da ação inteligente do
ser humano continha o que ele gostava de dizer, um desvelamento de consciências. Não
se pode saber ler e escrever se não se entende o mundo e, portanto, o processo de ensino-
aprendizagem para Freire era algo indissociável com a formação plena da cidadania.
Cabia aos monitores despertarem a capacidade de leitura do mundo, tarefa a ser
empreendida pelos próprios alfabetizandos através de suas próprias experiências de vida.
A configuração de seu universo de relações os levaria a descobrirem-se como parte
operante da produção e reprodução desse próprio universo. Tudo muito bem concebido e
executado, que doravante passaria por um desafio, o de tornar aquela experiência de
Anjicos numa política a ser implantada em nível nacional.
Quando em setembro o PNA foi finalmente deslanchado tivemos, eu e os
companheiros que iniciávamos essa experiência, uma sensação de que estávamos
finalmente dando passos largos rumo à revolução brasileira tão sonhada. Aliás, a década
de 1950 tinha consagrado o vocábulo revolução. Lembro-me que um liberal como
Anísio Teixeira, não se cansava de falar em “revolução da educação”, ou um filósofo de
formação hegeliana e catedrático da FNFi da então Universidade do Brasil, Álvaro
Vieira Pinto, também insistia no termo para designar a sua “revolução das
massas”.Assim, não era de todo sem sentido o que experimentávamos naqueles tempos
nervosos.
A primeira vez que pus os pés no prédio arquitetado por Corbisier, Lúcio Costa e
Niemeyer, sede do MEC no Rio, eu mesmo já não me recordo. Devia ser,
provavelmente, lá pelos fins de setembro ou início de outubro de 63. As reuniões
preparatórias para as caravanas a percorrerem os núcleos pioneiros do Programa eram
excitantes. Líamos muito mas a vontade de pôr em prática o método e recolher de
imediato os resultados falavam mais do que a concentração necessária para o bom
desempenho das tarefas que os dirigentes nos confiavam.
A direção do Programa era política, pois reunia quadros da Ação Popular (AP),
organização de esquerda católica e os do PCB, muito embora orientados por decisões
que se originavam do corpo diretor do Programa diretamente supervisionado por Freire.
E apesar das divergências políticas e ideológicas existentes nessas duas organizações, as
atividades do programa floresciam e em nada atrapalhavam a implementação do
organograma a prever desdobramentos futuros para outras regiões do país. Em paralelo,
dava-se o estreitamento da base de apoio às Reformas de Base de Jango e o
fortalecimento nos bastidores dos golpistas de plantão.
Alheios a tudo isso que se passava ao largo da política transparente
comentávamos os avanços alcançados pelos núcleos pioneiros, de maneira a contabilizar
êxitos sucessivos, o que na ocasião representava pragmaticamente a inclusão de novos
eleitores, uma vez que analfabeto não tinha direito ao voto. Mais do que tudo aí residia o
ódio dos que temiam mudanças estruturais na sociedade. Para a reação a elevação do
contingente eleitoral punha em risco seus privilégios.
Recordo-me como reagiam violentamente os representantes da direita quando se
colocava em discussão o voto do analfabeto. Não argumentavam simplesmente
rosnavam contra os projetos que tramitavam na Câmara Federal e que repercutiam na
imprensa. Parecia realmente que o direito de voto a quem não sabia ler provocaria uma
grande hecatombe na sociedade e isso ao mesmo tempo em que me surpreendia deixava-
me convencido do acerto da bandeira a ser empunhada. A par do aspecto humanista a
decisão que assumíamos com a tarefa que nos propúnhamos a realizar passara a ter
também um cunho político e ideológico. Não podíamos aceitar essa demonstração de
resistência à elevação sócio-cultural de um número expressivo de brasileiros.
Num depoimento prestado, tempos depois, pelo então ministro da Educação de
Jango, Paulo de Tarso, ele dizia que o objetivo era realmente de alfabetizar esse enorme
contingente de brasileiros, não apenas por uma questão de dar-lhes cidadania plena, mas
também de torná-los eleitores conscientes de seu voto. Daí o método Paulo Freire cair
como uma luva, pois proporcionava o acesso à leitura e a escrita além de conscientizá-
los. De modo, que se tratava de uma estratégia governamental que vinha ao encontro das
aspirações das massas e de um governo compromissado com a elevação do nível de vida
material e espiritual de grande parte do povo brasileiro.
III
Lembro-me bem de um grupo de mobilizadores que ajudei a montar e que
funcionava na ABI. Ele fora constituído por professores vinculados ao Sindicato dos
Professores do Rio e por estudantes universitários. Às sextas-feiras, não sei de todas as
semanas, mas seguramente às sextas Prestes fazia costumeiramente uma “análise de
conjuntura”. Numa dessas análises é que disse que a situação era irreversível em relação
às reformas e que a reação “estava de dentes quebrados”, numa alusão a impotência da
direita em face do crescente processo de mobilização dos sindicatos e dos movimentos
sociais. Nesse grupo assisti envolvimentos não só políticos como afetivos, alguns que se
estenderam por muitos e muitos tempos. Eram tempos felizes, sem violência, numa
cidade aberta ao lazer e ao prazer dos que sabiam conviver com idéias generosas.
As reuniões de balanço do PNA davam conta do progresso da experiência no
Rio. Os inúmeros alfabetizados se vinculavam imediatamente às entidades sindicais ou
comunitárias, o que atestava o acerto da química que combinava a prática educativa com
a social e cultural. Os estudos, a essa época, ficavam absolutamente em segundo plano.
Vivíamos a cidadania militante e os deveres escolares eram deixados para as horas
excepcionalmente livres, situação pouco comum para quem se engajava como os
participantes do PNA. Mas, ao contrário de Natal, a presença de Paulo Freire escasseava
por razões compreensíveis. Ele era muito absorvido pela burocracia de Brasília e,
segundo soubemos, se amargurava por não estar mais presente fisicamente nos vários
grupos pioneiros como gostava de fazer quando coordenava no RGN o programa da
prefeitura da capital daquele estado.
A própria situação de acirramento político atingiria em cheio a aliança tácita
entre as forças envolvidas no PNA. Afinal, enquanto os comunistas cobravam de Jango
mais atitude frente aos desafios do momento, entendia o PCB que era de fundamental
importância o apoio crítico ao seu governo. Os membros da AP já eram mais cáusticos.
Muito embora contassem com o ministro da Educação, Paulo de Tarso, assumiam o
risco de cobrar mais decisão e combatividade do governo diante das pressões dos
congressistas e do empresariado, a famosa burguesia nacional. Tidos como mais
radicais, logo após o golpe iriam se dividir e uma dessas frações formariam a APML, ou
seja, a Ação Popular Marxista Leninista, voltada para a opção exclusiva da luta armada.
Com esse cenário já se delineando, a experiência ruidosa e alegre de início tornava-se
aos poucos mais tensa.
É claro que havia um núcleo, o do Movimento de Educação de Base (MEB),
dando suporte técnico e político ao PNA e, conseqüentemente, à política ministerial.
Mas não tinham militantes capazes de reproduzir consignas como faziam os das
organizações apontadas anteriormente. Além disso os educadores e intelectuais não
vinculados organicamente a essas correntes políticas e partidárias, que tinham em Lauro
de Oliveira Lima um de seus nomes mais destacados, apoiavam as iniciativas da
orientação imprimida pelo MEC de Paulo de Tarso. Eram, todavia, individualidades e
não forças políticas tão necessárias em momentos como os que se passavam. Outros,
como Darcy Ribeiro, então na Casa Civil de Jango, e Anísio Teixeira, embora recrutados
para darem sustentação à política de alfabetização não chegaram a se integrar como
deveriam, uma vez que desenvolviam atividades outras, convergentes ou não com a que
se propunha o MEC com a alfabetização de adultos.
IV
Pessoas generosas, imbuídas de consciência social, eram todos altruístas, e
conviviam nesse ambiente vivido com intensidade. Todos nós acreditávamos no projeto
de emancipação nacional e popular, embora à época nem soubéssemos com alguma
profundidade o que isso significava. Um exemplo dessa gente que se dispunha a elevar a
condição de vida dos excluídos sociais, numa época em que esse termo nem era usual,
chamava-se José Barreto. Era professor e militante sindical devotado. Filho de usineiros
em Alagoas abriu mão de uma herança por razões ideológicas!
Foi idéia do Barreto e da direção do sindicato dos professores cariocas a criação
desse grupo de mobilização e alfabetização. Era um tipo solidário como poucos. Se
algum companheiro perdesse um emprego lá estava o Barreto buscando incessantemente
algum lugar para recolocar o colega desempregado. Com essa tenacidade conheci muita
gente, e isso explica a sensação que desfrutávamos de que não era possível nada
acontecer de bom para que pudéssemos construir uma nação digna desse nome.
O comportamento da imprensa nos preocupava. A maioria dos grandes jornais
fazia oposição à política de Jango, alguns com discrição outros, no entanto, com
estardalhaço. Não se encontrava o reduto, salvo no Rio o jornal Última Hora do
jornalista Samuel Wainer, da resistência ao que de bom o governo produzia em termos
de políticas públicas, e o PNA era, por certo, uma delas. Ao contrário dos projetos
titubeantes das reformas de base, o programa posto em prática pelo método Paulo Freire
não só surtia efeito concreto, como possuía uma fundamentação que o tornaria
reconhecido mundialmente. E essa certeza de que estávamos no rumo certo nos
embalava em que pese à quase nenhuma experiência dos que participavam dessa
aventura diante da gigantesca tarefa que nos fora atribuída. Corações e mentes
engajados, continuávamos a sorver encantados aqueles dias que não mais voltaram, mas
que continuam vivos em nossa memória.
No que diz respeito aos aspectos práticos do processo de alfabetização o maior
desafio era encontrar uma linguagem comum na relação das partes envolvidas. Não
bastava produzir o vocabulário das palavras geradoras próprias aos integrantes da
comunidade assistida. Era preciso que a interlocução entre os que se encarregavam da
alfabetização (evitávamos o termo professores) e os assistidos fosse compreensível.
Evitar vícios de linguagem e termos excessivamente politizados, comuns aos que, como
nós, iniciávamos na militância política, era sempre uma preocupação dos mais
experientes educadores que nos assessoravam. Além disso, as distâncias vocabulares
entre os meios urbano e rural eram grandes, bastante considerável até se comparados
com os nossos dias atuais em que a informação praticamente universalizou-se em razão
da cobertura da mídia eletrônica. Assim, os núcleos situados nas áreas rurais
apresentavam um vocabulário padrão muito distinto dos existentes nos redutos urbanos.
Isso me lembra Paulo Freire quando nos falava sobre a mudança da família de
Recife para Jaboatão. Apesar da distância não ser tão longa assim havia, contudo uma
enorme diferença que o ainda muito jovem Paulo conheceria. Em sua casa da capital
permanecia praticamente confinado ao longo quintal da residência confortável em que
morava. Com a crise de 29 a afetar a economia brasileira, seus pais foram forçados a
rumarem para o interior e lá o pequeno Paulo passou a alargar o seu mundo. Do quintal
às redondezas de Jaboatão foi a abertura de um universo. Conviveria com “meninos que
comiam e meninos que não comiam”. Aprendeu que havia que distinguir diferenças de
desigualdades. O que passara a constatar era a existência de desigualdades sociais
produzidas pela estrutura agrária injusta e perversa.
Essa geografia da palavra era para mim – e acredito que para todos nós – uma
descoberta a mostrar o quanto nos encontrávamos alheios à realidade da qual falávamos
muitas vezes sem conhecimento de sua diversidade. Na verdade, essa descoberta era tão-
somente a ponta de um iceberg que se tornaria mais visível a medida em que passamos,
principalmente depois do golpe, a nos aprofundar no estudo concreto da realidade
brasileira. Alguém teria dito mais tarde que tocávamos de ouvido a toada da revolução,
mas era preciso agora examinar as partituras para entoá-la com exatidão. Comparação à
parte, a experiência com o método Paulo Freire nos ajudaria até em nossa recomposição
futura.
V
O método criado por Paulo Freire principiava na própria concepção de mundo
construída pelo seu idealizador. Freire era um cristão aberto às concepções humanistas, o
que o levaria a Marx e ao sentido da história proposta pelo filósofo alemão. Esse diálogo
entre cristãos e marxistas era absolutamente novo no Brasil e quiçá no mundo. Só
mesmo a ação política foi capaz de provocar esse encontro, uma vez que doutrinária e
ideologicamente era difícil uma aproximação entre um pensamento calcado em dogmas
e fundamentalmente idealista com um outro baseado na ciência e totalmente materialista.
Apesar disso, esse diálogo foi possível e Freire contribuiu decisivamente para que ele
prosperasse entre nós.
Quando alguém mais ousado indagava a Freire se ele se apropriara do
materialismo histórico de Marx, respondia sempre: não posso me considerar um
marxista em respeito ao próprio Marx. E todos os marxistas o respeitavam por essa
reverência que fazia questão de marcar em meio aos grupos jovens desejosos de fazer
avançar ainda mais o processo de conscientização elo comum entre os que operavam
o seu método. Aliás, a questão da conscientização dividia mais do que unia, pois Freire
tinha reticências severas, e com razão, a respeito do caráter mecânico da “tomada de
consciência” que muitos apregoavam. Havia uma espécie de convicção segundo a qual o
operário ao adquirir informações básicas sobre a realidade superaria a barreira da
alienação e num só movimento tornar-se-ia consciente de seu papel histórico. Freire era
mais cauteloso e considerava que essa mudança obedecia a um processo mais complexo.
Ele estava certo.
A aceitação do Plano e depois do Programa de Alfabetização não foi, todavia, tão
simples assim. Os partidos políticos de esquerda, a rigor o PCB ainda ilegal mas tolerado
na prática e o PTB, admitindo-o como uma legenda de esquerda limitada porque não
revolucionária, eram reticentes às idéias de Freire. Os comunistas o achavam um tanto
ou quanto idealista, ao passo que os trabalhistas o desprezavam até por ignorância.
Também os sindicatos mais interessados em suas lutas corporativas não davam muita
importância ao projeto, salvo a direção do já mencionado Sindicato dos Professores do
Rio de Janeiro, os demais entendiam a questão da educação popular por um viés ainda
muito técnico. E o próprio governo federal só o adotou por causa de uma crise
ministerial que levou ao MEC alguém, como Paulo de Tarso, comprometido com essa
questão de transformar a educação num instrumento de ação política de verdade.
Três décadas após os dois meses em que passou à frente do MEC, Paulo de Tarso
diria que todos nós fomos muito ingênuos. Primeiro, ao dizer com todas as letras o que
realmente pretendíamos com o PNA, para susto dos setores conservadores mais
reacionários, que naturalmente se mexeram para impedir o processo de transformação
pacífica que ações como a da alfabetização naquela altura produzia. Segundo, porque,
dizia ainda Paulo de Tarso, achávamos que por defender os interesses populares
tínhamos automaticamente o povo conosco. Era um ledo engano, porquanto o grau de
organização e mobilização eram muito baixos e nós falávamos de uma realidade que a
rigor se encontrava mais nos discursos do que na realidade.
E essa ansiedade em fazer acelerar o processo contaminaria o próprio ministro.
Integrante da Frente de Mobilização Nacional, aquela altura já uma Frente única mais
estreita do que a que lhe dera origem no Parlamento, quando se organizara como Frente
Parlamentar Nacionalista, Tarso sairia do MEC para se dedicar ao enfrentamento com a
reação. Sua saída deixaria o PNA não necessariamente acéfalo, pois Freire continuava à
testa do Programa, mas ele perderia o suporte político ministerial, já que o sucessor de
Tarso, o ministro Sambaqui não era um homem compromissado com o projeto de dar
voz e voto às camadas populares. Se não chegou a impedir o seu prosseguimento
tampouco demonstrara o mesmo entusiasmo de seu antecessor.
Assim, no momento em que o PNA se desenvolvia a conjuntura se radicalizava e
o apoio de educadores e pessoas de bom senso que poderiam ampará-lo resultou em
quase nenhuma adesão. Não havia propriamente quem, na área educacional, contestasse
a validade do emprego do método de Paulo Freire, e os que o faziam tinham razões não
técnicas mas eminentemente ideológicas. Mas ao invés de se contar com um suporte que
viabilizasse novas e mais criativas experiências, o PNA passaria a ser abatido como um
subproduto de um governo disposto a implantar uma nova ordem. A velha ameaça da
chamada “república sindicalista” era de novo acenada com o intuito de amesquinhar o
alcance de uma ação redentora para milhões de brasileiros.
VI
Casa e barraco representando ricos e pobres lado a lado era uma imagem muito
comum nas aulas de alfabetização. Não havia quem não entendesse tratar-se de uma
brutal desigualdade convivendo no espaço urbano de uma cidade como o Rio de Janeiro
daqueles tempos. O recurso do retro projetor ajudava em muito não só a fixação dos
vocábulos que compunham a linguagem do aprendizado como tornava mais do que
transparente aquela situação de injustiça social. Afinal, todos trabalhavam e por que
poucos tinham moradias espaçosas enquanto outros se comprimiam em casebres tão
precários para tanta gente? A questão social sobrepunha-se na discussão e as palavras
geradoras eram incorporadas ao vocabulário do alfabetizando.
Lembro-me que a primeira vez em que tive de ensaiar a condução de um debate
tendo essa imagem como motivação e ilustração de aula tive de me conter. Mesmo
conhecendo aquela realidade a imagem me chocara, tal a sua recorrência em diversos
pontos da cidade cercada de favelas próximas a bairros de classe média. O perigo que
tínhamos de evitar era o de apresentar essa realidade como natural e não provocada pelas
relações de produção. Mas não podíamos, de outro lado, lançar mão de palavras-de-
ordem prontas para simplesmente caracterizar essa excrescência. Era preciso o uso de
uma metodologia que fosse adequada para a abordagem, e ela passava por uma conversa
que pudesse ser a mais informal possível. Nenhum tom professoral deveria prevalecer.
Necessário se tornava que cada um pudesse tirar suas conclusões e elas seriam
indiscutivelmente interpretativas, ou seja, chegariam a identificar as razões da
desigualdade e com o mesmo sentimento de justiça social que expressávamos
intimamente.
É curioso como a conscientização nos faz perceber coisas que parecia natural.
Quando de minha infância e adolescência percorria os morros do Borel e da Formiga.
No primeiro subia para empinar pipa, e na Formiga atraído por garotas daquela
comunidade. Saindo do asfalto e entrando nessas favelas não percebia a desigualdade.
Ou melhor: como não fazia distinção entre os amigos do bairro e os amigos que fazia
nessas comunidades. Para mim todos eram iguais no meu sentimento de amizade. A
questão das moradias eu a desprezava, porque não estava presente no meu restrito
universo humano qualquer coisa que lembrasse opulência, exuberância ou, ao contrário,
precisão. Foi preciso me embrenhar mais nesses ambientes para intuir o dado da
desigualdade.
O que à época não conseguia entender era a alegria dessa gente sofrida, a
conviver com as dificuldades de orçamentos apertados, ao passo que os nossos pais de
classe média invariavelmente exibiam semblantes fechados e pouca ou nenhum prazer
no trato com as pessoas não pertencentes aos seus círculos mais estreitos.
Sociologicamente a primeira resposta que tive para essa situação que me parecia
incompreensível foi a dos que explicam a classe média como um extrato social sem
definição concreta nas relações de produção. Não detém o capital, mas tampouco vende
necessariamente sua força de trabalho. No fundo aspira como pequena burguesia
alcançar o lugar de burguês. Daí ser oscilante e temer as mudanças, uma vez que esses
processos podem acarretar problemas que dificultem sua ascensão social. Conservadores
os membros desse segmento social seria pouco tempo depois de capital importância para
o desfecho do golpe de 64.
VII
O que me chamara atenção no pequeno mas intenso convívio com os
trabalhadores era a sensibilidade e o conhecimento adquirido pelas experiências de vida.
Nestes dois aspectos eram todos melhores do que os companheiros engajados no PNA,
oriundos quase todos da classe média. Tempos mais tarde, quando fui detido pelo
CENIMAR com um companheiro também do PCB, um sapateiro igualmente analfabeto,
experimentei a sensação de ter voltado àquela época em que dava meus primeiros passos
na militância e nas atividades da relação ensino e aprendizagem. O meu parceiro de
prisão lamentava o tempo absoluto dedicado às tarefas do partido e o sempre adiamento
dos estudos. Conhecera o projeto Paulo Freire, mas não fora alcançado a tempo.
As conversas que mantive com essas pessoas legitimamente do povo me
deixaram positivamente convencido de que a ignorância nada tem a ver com a
inteligência. Esta independe do grau de informação e da aquisição de conteúdos
culturais. Essas pessoas eram perspicazes na apreensão dos dados de realidade e tinham
entendido, por exemplo, a lógica da política. Alguns, como o nosso sapateiro, faziam
análises de conjuntura de fazer inveja aos mais lúcidos quadros partidários. Tolerantes
com as divergências sabiam como poucos ouvir o contraditório.
Lembro-me do companheiro de cela a comentar a importância da aglutinação,
vocábulo que aprendera dentre outros nas reuniões de partido. Dizia-me da mesma
forma que não se pode colar as solas de sapato com suficiente consistência, pois caso
contrário ela não resistiria por muito tempo. E arrematava: também na luta política,
quando não se tem os mecanismos da força ou os instrumentos de poder, é
imprescindível a formação de uma forte corrente, bem organizada e unida, para obter-se
ganhos que possam fazer recuar a ação daqueles que nos reprimem.
Assim, mais do que a leitura de manuais a conversa com o companheiro de cela
deixara para aquele jovem a certeza de que a opção de vida adotada estava certa, a partir
dos valores que me foram incutidos por meus pais. De meu pai, lembro-me da referência
que fez a respeito de seu pai, numa ocasião em que meu avô fora a um leilão de imóveis
e arrematou uma das casas. Logo em seguida uma outra em melhores condições
estava sendo disputada por meu avô e um outro cidadão. Eis que de repente ele
desistiu para fúria de meu pai que lhe perguntou porque desistira. E meu avô lhe disse:
aquele homem é um trabalhador e esperou um momento propício para ver se consegue
adquirir sua casa própria. Minha consciência me impede de agir de outra forma.
Minha mãe me dera também demonstrações de profundo apego as coisas que
dizem respeito ao povo. Criada num ambiente repressivo, o que lhe trouxe problemas de
ordem existencial e traumas dos quais não se livraria facilmente, era uma pessoa
estimada pelos humildes. Suas amizades começavam pelas domésticas que trabalharam
em sua casa e por todos que a cercavam não como madame mas como gente como
qualquer um, sem apego a tradições e a etiquetas comuns numa época em que a classe
média procurava mais até do que hoje se aproximar dos costumes das classes
dominantes. Generosa tanto quanto meu pai, embora de estilos distintos não poderia
deixar de nutrir um pouco tais valores.
Essas breves reminiscências também podem ser relatadas por todos quanto
participaram desses momentos de entrega para um país menos injusto e mais solidário
com os mais necessitados. Geração que imaginávamos ser da transição para uma
sociedade socialista esbarrou nessa dupla e impertinente situação de enfrentar, de um
lado, a ingenuidade desprovida de um sentido autocrítico e, de outro, de uma certa
ignorância no que se refere às forças que nos combatiam e até nos superestimavam.
Talvez Paulo Freire subscrevesse essas considerações, muito embora elas jamais devem
servir de arrependimento. Na realidade, seria preferível repetir os erros do que nada
fazer.
Erros, disse eu, que sem dúvida aconteceram, tanto na condução da política das
reformas de base, carro chefe do período governamental de Jango, como na aplicação
por parte das forças sociais e políticas que o apoiavam. E é claro que o PCB teve um
lugar nesse rosário de equívocos, cuja avaliação nunca foi realmente aprofundada como
deveria ter sido. Afinal, era a sorte de uma multidão que foi pelo ralo da história,
independentemente dos esforços individuais e coletivos feitos por todos no sentido de
acertar. Mas, como se sabe, nem sempre as boas intenções resolvem os impasses ou
equacionam corretamente os problemas. O que se segue é, portanto, uma pequena
contribuição para uma avaliação de nossa derrota, sem a pretensão de esgotá-la e muito
menos de considerá-la inteiramente acertada.
Começaria essa análise com um dado que me parece precioso do ponto de vista
da comunicação do governo com a sociedade. Hoje em dia não se discute a importância
das comunicações, razão pela qual governos e empresas lançam mão sistematicamente
da mídia, que à época se limitava praticamente à radiodifusão. A televisão estava ainda
em seus primeiros anos e com alcance muito restrito a envolver parcialmente e de forma
precária os dois principais centros metropolitanos do país, São Paulo e Rio. Desse modo,
cabia ao rádio, com raio de ação muito maior e audiência consolidada em grande parte
do país, o papel de veículo de informação. E seu uso era muito limitado por parte do
governo, que não só não mobilizava seu poder de concedente e controlador do sistema,
como permitia que a rede de rádios sob controle de empresas privadas acabasse por
orientar-se a favor das teses de uma oposição não apenas às reformas de base mas a todo
e qualquer programa de maior profundidade popular e social. Era, portanto, uma derrota
anunciada por quem reconhecia a força dos meios de comunicação numa sociedade de
massa.
.
IIHistória, Historiografia e Ideologia
Por Uma História das Práticas Sociais
1. Historiografia: História e Conhecimento
Produzir conhecimento é uma necessidade social. A atividade humana é
essencialmente produtora. A capacidade de criação do homem é inesgotável da mesma
forma que suas potencialidades se desenvolvem na medida em que estas são
permanentemente solicitadas.
As primeiras formações sociais puderam-se reproduzir historicamente porque
souberam produzir e reproduzir os meios com os quais foram satisfeitas suas
necessidades primárias. Assim, determinadas práticas sociais ao serem desenvolvidas
incorporaram-se ao conhecer humano. Sua difusão assegurava a base necessária para o
advento de novas conquistas, exigência do processo social do qual se ocupa a história. É
preciso, no entanto, salientar que todo conhecer novo é uma decorrência do emprego de
novas forças produtivas, no interior das quais os homens não podem ser descartados. O
conhecimento ao se transformar constitui, pois, um ato histórico de grande alcance para
a humanidade, mas essa transformação pressupõe a existência de condições materiais
que permitam sua manifestação.
Com a desagregação da comunidade primitiva provocada pela divisão social do
trabalho, as formações sociais dela decorrentes passaram a ser caracterizadas pela
obediência a um centro de decisões. O que até então resultava de imperiosas
necessidades coletivas, passou a ser subordinado às necessidades daquelas que doravante
manipulam esses centros de decisão. O conhecimento em toda sua dimensão não deixou
de ser social, porém sua produção é reorientada de modo a atender ao interesse de forças
que se apropriaram dos meios de produção existentes. Entre esses meios de produção
encontra-se o conhecimento enquanto tal.6
A institucionalização do conhecimento é uma conseqüência do aparecimento das
sociedades marcadas pelas desigualdades sociais. Nas formações sociais de caráter ainda
6 Ver Amaral Lapa, J.R., A História em Questão-Historiografia brasileira (em questão), Vozes, Petrópolis, 1976, 204 pp.Mota, C.G., Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974), Col. Ensaios 30, S. Paulo, 1977, 303 pp.
tribal e comunitário, o conhecimento é compartilhado por todos, pois o modo desses
sistemas primitivos não excluía ninguém dos benefícios obtidos por todos em igualdade
de condições. Entretanto, a dissolução dessas formações sociais comunitárias ensejou o
aparecimento de sociedades que privatizaram aos meios de produção. As técnicas de
conhecimento alcançaram níveis de sistematização mais elevados, naquelas sociedades
cujas estruturas sociais eram mais estratificadas, como é o caso das sociedades que
desenvolveram a escrita.7 Nesse caso, a leitura e a escrita eram privilégios de uma
minoria de iniciados nessa verdadeira arte. Aliás, a própria arte que outrora constituía
uma manifestação comum e necessária a todo homem, elitizou-se de tal forma que só a
alguns era creditado valor no que realizavam.8
Ora, a história enquanto conhecimento do passado social dos homens não
escapou a esse processo de apropriação. A memória social passara a reter aquelas
ocorrências que interessavam aos setores que exerciam controle das instituições de
saber. E esses fatos que passaram a condição de fatos históricos, ganham explicações de
modo a legitimarem a organização social que os inspirou.
Desse modo, tem início uma historiografia que se caracteriza por uma produção
ideológica sistemática. Esta historiografia é a expressão mais geral de um pensamento
histórico que corresponde a essas sociedades da maneira pela qual elas se estruturam.
Desde as primeiras crônicas até as histórias universais, são os valores institucionais que
são veiculados. O passado é usado para legitimar o presente. A análise crítica reduz-se às
preocupações técnicas e pouco ou nada diz respeito ao conteúdo. A forma é privilegiada
em detrimento da essência.
O estudo da historiografia é, assim, o estudo das condições de produção das
idéias. Contudo, é preciso ressaltar que não se deve absolutizar essas considerações,
reduzindo a historiografia a reflexos das expressões institucionais. É necessário atentar
para a dinâmica social, resultado da complexa rede das relações sociais de produção,
elemento vital do processo histórico responsável pelas transformações sociais. Se a
memória social sofre a interferência e a manipulação do poder, ele não desaparece da
memória do conjunto das forças sociais. Determinadas representações e práticas sociais
7 Cohen, M., Resumo da história escrita, in Ver. De História, vol. XL, nº 81, S. Paulo, 1970, 137/151 pp.8 Hauser, A. História Social de la literatura y el Arte, Gudarrama, Madrid, 1969, 3 vols.
não codificadas institucionalmente, embora não figurem nas historiografias oficiais,
coexistem com as formulações advindas do pensamento dominante.
O Poder ao se arrogar o direito de veicular a história que lhe agrada, o faz de
maneira mais eficaz porque é Poder. Detendo os mecanismos de reprodução do
conhecimento, o ensino, instrumentaliza agentes que se encarreguem de ministrar uma
história cujos valores dizem respeito a Ordem. Reúne um acervo documentário,
classifica-o, desenvolve técnicas e orienta o modo pelo qual esse conhecimento deve ser
produzido. Logo, o que se deve entender, em primeiro lugar, por produção de um
conhecimento histórico é a reprodução de um modo de produção.
O sistema que cada sociedade constrói para preservar a memória social conduz a
pesquisa a considerar a existência dessas condições de conhecimento do passado, pois
este já se encontra classificado, ordenado de tal forma que induz o pesquisador a
privilegiar dados que o sistema consideram relevantes. Em conseqüência, as fontes
históricas, da maneira em que se encontram codificadas, embora permitam um
tratamento rigoroso por parte do historiador, levam-no a manipular documentos,
situações e personagens que interessam a sociedade, enquanto expressão de uma
estrutura de poder – difundir.
À época da consolidação das burguesias no poder, na Europa ocidental, surgiram
correntes cientificistas que passaram a negar valor histórico a toda referência histórica
que não estivesse fundamentada em documentos. Mas, a noção de documento era restrita
porquanto, só contavam aqueles que merecessem essa distinção. O documento encerrava
a idéia que indicava a materialização da historicidade do poder. Continha uma conotação
jurídica. Emanado do Estado sua verdade era inquestionável, o que conseqüentemente
tornava marginal toda fonte documentária oriunda do acervo popular. Nestas condições
o historiador encarregava-se de sistematizá-lo já que seu emprego conferia a seu trabalho
o “valor” de uma obra histórica. Quer dizer, ao historiador não restava senão a tarefa de
por em ordem o que a Ordem institucional assim determinava. Por conseguinte, toda e
qualquer fonte para o conhecimento rela da sociedade que não se encontrasse catalogada
nos depósitos oficiais, carecia do indefectível “valor histórico”. É o tempo da
consagração da historiografia evolutiva, linear e factual.
O historiador que se forma à luz dessa orientação, recebe um conjunto de
apetrechos necessários, segundo as diferentes organizações de saber, à sua função
historiadora. Seu poder de discernimento esbarra, por vezes, com imposições que seu
ofício demanda, tal como este é concebido pelas academias de saber. As possibilidades
de um trabalho que prime por uma análise mais profunda das relações sociais são
reduzidas em face de certo dispositivos que o orientam para o atendimento daquilo que
se institui como verdade histórica, nos marcos dessa tradição historiográfica. O
julgamento histórico adquire um caráter definitivo.
O historiador que se propuser a rever a história social de modo a reinterpretar o
passado sob ângulos que incluam os aspectos essenciais desse passado, precisará fazê-lo
na crença de que sua revisão é, na verdade, uma retomada do processo histórico real.
Pois, pensar historicamente certo é agir politicamente certo. Cumpre ao historiador ao
produzir um conhecimento novo, acrescentar um elo na cadeia do processo permanente
das mudanças sociais. A análise historiográfica demonstra que os grandes avanços do
conhecimento histórico se realizaram como conseqüência de mudanças sociais
significativas que impuseram essas correções ou reinterpretações. Basta exemplificar a
validade desse raciocínio citando a década de 1930 no Brasil. A Revolução de 1930
imprimiu mudanças que embora tímidas algumas e abortadas outras trouxeram uma
renovação bastante importante na história da historiografia brasileira. As obras de Caio
Prado Júnior9, Sérgio Buarque de Holanda10, Gilberto Freyre11 e Roberto Simonsen12,
para citarmos os mais inovadores na época, introduziram questões até então ausentes nos
textos dos nossos autores mais representativos. Ainda que se possa louvar a capacidade
de cada um deles, a despeito das linhas originais de abordagem, o fato é que o momento
histórico exigia a colocação de uma nova problemática para nossa história. E os grandes
historiadores foram aqueles que souberam traduzir esses momentos que não mais se
contentam com as versões que não mais lhe dizem respeito.
A característica dominante de todas as ciências sociais do século XIX era sua
evasão da realidade. Considerava-se mais científico o historiador que menos se
preocupava em explicar por que ocorriam os fenômenos sociais. Exigia-se a elucidação 9 Evolução Política do Brasil, cuja 1ª edição data de 1933.10 Raízes do Brasil que aparece em 1936.11 Casa Grande e Senzala, de 1933.12 História Econômica do Brasil, datando de 1937 sua primeira edição.
da verdade histórica e essa se encontrava adormecida nos arquivos oficiais. Cumpria ao
historiador consultá-la e sua missão se encerrava aí. Forjaram-se rígidos princípios
metodológicos, estabelecidos com vistas a preservar a “objetividade” da análise
histórica, de maneira a assegurar total isenção no trato descritivo de acontecimentos
estudados. A neutralidade passara a constituir um princípio que concorria para a
legitimação da prática historiadora à qual se devotavam como sacerdócio.13
Essa perspectiva consagra também um outro princípio: o do elitismo acadêmico,
segundo o qual o conhecimento histórico não era tarefa a ser empreendida por leigos.
Invocava-se um adestramento técnico aliado a uma erudição comprovada de sorte que se
cercava o ofício de historiar os fatos consagrados pela historiografia burguesa de
requintes que o imunizasse de qualquer atitude questionadora. Esta época viu desfilar no
campo filosófico, os preceitos do agnosticismo, do criticismo e do positivismo.
Numa sociedade competitiva estimulada pela expansão do sistema capitalista, a
individualização era o seu pressuposto básico. Na historiografia, essa tendência
expressa-se pela personificação do agente histórico. Os grandes personagens da história
respondem pela ocorrência dos fatos que mais marcaram a história dos povos, a despeito
do século XIX ter conhecido intensas e grandiosas manifestações de massa que atestam
o vigor com que emergem os novos contingentes sociais, oriundos do processo industrial
por que passara a Europa capitalista.
Mas, precisamente em função desses fenômenos a historiografia burguesa
demonstra suas limitações. O espírito crítico que lhe servira de poderosa arma contra as
concepções medievo-teológicas, mostra-se incapaz face ao advento de uma problemática
nova. O exercício de uma crítica social já não lhe serve, pois sua aplicação mais
conseqüente conduz a negação de sua própria história. A exaltação da nova ordem social
responsável pela liquidação dos resquícios feudais torna-se inócua em virtude de um
processo social extremamente veloz que fez com que a burguesia visse deslocado seu
papel histórico, de força revolucionária para a de uma força anti-revolucionária.14
E meio a essas contradições que se desenvolvem a medida em que se expande o
sistema burguês liberal que engendra a crise proveniente de sua própria natureza, 13 Sobre a questão da objetividade e subjetividade na história, ver especialmente Shaff, A., História e Verdade, Estampa, col. Teoria nº 19, Lisboa, 1974, 306 pp.14 Sobre esta questão ver Hobsbawn, E., em seus dois magníficos trabalhos: A Era das Revoluções e a Era do Capital, ambos já traduzidos pela Vozes.
desponta uma nova concepção histórica, a do materialismo histórico, cujos
representantes cresceram alimentados pelo processo contundente de crítica das
tendências idealistas e do materialismo vulgar, ambos fortemente disseminados nos
meios acadêmicos. Marx e Engels fundam as bases do método de investigação profundo
das relações sociais15, e isso para a história adquire valor inestimável.
Ao rejeitarem as concepções que consideravam tão somente os móveis da
atividade histórica dos homens sem investigar as leis objetivas que regem o
desenvolvimento do sistema de relações sociais, Marx e Engels põem fim a
historiografia especulativa responsável pelas filosofias da história. Introduzem os
contingentes sociais, tornando-os verdadeiros condutores da história, bem como
ampliam os horizontes do conhecimento histórico de modo a permitir que se
compreenda a dialética dessa totalidade orgânica que é a vida social em toda sua
dimensão.
Marx soube, por outro lado, entender que sua contribuição não estava no fato de
descobrir a existência de classes sociais, pois antes dele outros cientistas e historiadores
já o haviam feito, mas em possibilitar que o estudo de suas relações permitisse conhecer
toda a dinâmica do processo social. Neste particular, Marx nada mais fez do que ajustar
a história das idéias à história da produção material.
2. História das Práticas Sociais como uma História Alternativa
Conhecer a produção social eis o desafio imposto ao historiador. Isto significa,
antes de mais nada, enfocar a história a partir de uma perspectiva na qual as forças
sociais vivas constituem o objeto mesmo da história.
A história como bem assinalou Pierre Vilar é a ciência do movimento16, logo sua
finalidade é compreender os fenômenos sociais. “Compreender (conceber) um fenômeno
significa aclarar seu lugar e seu papel no interior do sistema concreto de fenômenos em
interação no qual se realiza necessariamente, e se aclarar justamente as particularidades
graças as quais este fenômeno não pode desempenhar mais que este papel no interior de
um todo. Compreender um fenômeno significa aclarar se modo de aparição, a “regra”
15 Marx e Engels, Manifesto Comunista, de 1947.16 Vilar, P., El Método histórico, in Althusser, Método histórico e historicismo, Anagrama, Barcelona.
segundo a qual esta aparição se realiza como uma necessidade oculta por um conjunto
concreto de condições; significa analisar as condições mesmas da aparição do
fenômeno.17 É a história que postula o conhecimento da totalidade social, não enquanto
estrutura social harmônica. Mas, como complexo social à luz do qual afloram as
contradições que lhe são inerentes. Dessa forma, sociedade para o historiador deve ser
entendida como palco sobre o qual se processa a história das práticas sociais, da ação
dos homens em busca da realização de seus objetivos.
Segundo Hegel se está havendo mudança é porque alguma coisa tem de ser
mudada. Ao historiador compete indagar as razões das transformações que impelem
essas mudanças. E a história estará, dessa maneira, assumindo um compromisso como os
procedimentos reclamados pela ciência, sendo ela como é a verdadeira ciência da
sociedade, “afirmou-se freqüentemente que a ciência moderna quando a atenção
deslocou-se da busca do ‘que’ para a investigação do ‘como’. Essa mudança de ênfase é
algo quase óbvio que se pressupõe que o homem somente pode conhecer aquilo que ele
mesmo fez, na medida em que essa hipótese implica, por sua vez, que eu ‘conheça’ uma
coisa sempre que compreenda como ela veio a existir. Ao mesmo tempo, e pelas mesmas
razões, a ênfase deslocou-se do interesse nas coisas para o interesse em processos, dois
quais as coisas iriam em breve se tornar sub-produtos quase que acidentais”.18
Essa história que procura compreender a totalidade social em que toda a sua
dinâmica interna não pode perder-se em setorialismos que absolutizam as partes em
detrimento do todo, praga tão disseminada pela historiografia clássica. “Não é o
predomínio dos motivos econômicos na explicação da história o que distingue de uma
maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, é o ponto de vista da totalidade. A
categoria da totalidade, é o predomínio universal do todo sobre as partes que constitui a
essência mesma do método que Marx recebeu de Hegel e o transformou para fazer dele
o fundamento original de uma ciência completamente nova (...) o predomínio da
categoria da totalidade é o suporte do princípio revolucionário na ciência”.19 O
econômico, o social, o político, entre outros níveis, se articulam de modo que é para a
17 Ilienkov, E., La dialéctica de lo Abstracto y lo concreto en El Capital de Marx, in problemas Actuales de la dialectica, Communicación 9, Alberto Corazón Editor, 1971, p. 79.18 Arendt, H, Entre o Passado e o Futuro¸ Perspectiva, S. Paulo, 1972. p. 88.19 Luchács, G., citado por Goldmann in Marxismo, Dialéctica y Estructuralismo, Galden, B. Aires, 1968, p. 34.
história muito mais importante conhecer o modo de articulação desses diferentes níveis
em um determinado momento do processo histórico do que procurar destacar e, com
isso, isolar cada um deles a partir da falsa idéia de que assim se estará objetivando o
saber histórico. A alusão a um desses níveis de maneira a privilegiá-lo, em determinadas
circunstâncias, só é válido quando a análise das articulações desse todo apontar para sua
necessidade. Em Marx, por exemplo, a expressão material não indica uma determinação
do econômico, ela é empregada para designar as condições primárias e fundamentais da
existência humana. O Capital é, basicamente, uma análise crítica das relações sociais do
Modo de Produção Capitalista que, por sua vez, não se resume no estudo de sua
engrenagem econômica. É a compreensão da totalidade do sistema que está em causa.
O caráter pretensamente didático dessa compartimentação é profundamente
questionável. Uma história econômica do Brasil, por exemplo, só é compreensível se os
fenômenos econômicos e financeiros estiverem articulados com o conjunto dos fatos que
propiciaram a formação da sociedade brasileira. Não existe uma história econômica que
se explique economicamente. Sua explicação para ser compreensiva e global tem de ser
histórica. O conhecimento da produção econômica implica no conhecimento da
problemática da produção social, em seu sentido elástico. Sugere, por assim dizer, o
conhecimento das manifestações globais que incidem, por seu turno, no desempenho
original de cada um desses níveis convencionais. “Se Marx pode fundar a ciência da
história, é precisamente por que renunciou em definir um modelo desse gênero. É
porque, ao invés de abordar a sociedade enquanto objeto dado e na forma na qual este
objeto se dá, analisou os processos de produção e reprodução da vida social, criando
assim o ‘terreno’ necessário para abordar cientificamente a ‘lógica’ especial do objeto
especial’, isto é a lógica concreta das contradições e do desenvolvimento de uma
formação social determinada”.20
Conhecer a produção social, portanto, é se dar conta da historicidade real, aquela
que resulta do processo histórico real. É evidente que essa tarefa não é simples,
sobretudo para aqueles cuja formação está impregnada de atitudes que o levam, na
prática intelectual, a construir discursos que em última instância atendem as expectativas
das instâncias de saber dominantes e para as quais seu trabalho se dirige.
20 Pelletier, ª E Goblot, J.J., Matérialisme historique et Histoire des Civilisations, Ed. Sociales, 1969, pp. 157/158.
A sagacidade do historiador que se pretende crítico não o livra facilmente desse
condicionamento, que, de resto, opera em todos os ramos da atividade intelectual. Não
basta deslocar o objeto de estudo para captar determinados fenômenos não
convencionais da pesquisa social, se esta atitude não for acompanhada de um
posicionamento do cientista face ao mundo que o rodeia. Uma reorientação para um
novo campo de pesquisa imposta, às vezes, por uma atitude questionadora é ilusória se
seu exame não estiver conectado à uma vivência, a uma prática social que determine a
necessidade desse questionamento. O pensamento não pode desligar-se da ação, da
mesma forma que o historiador não pode desvincular-se de sua condição de indivíduo.
É absolutamente indispensável ao historiador ser um homem de seu tempo e para
o seu tempo. É insuficiente munir-se de belos preceitos teóricos se sua prática teórica
não estiver respaldada numa prática social. A atrofia desta última limita profundamente
qualquer análise que faça sobre a vida social. O bom historiador será sempre o homem
que viva sua história, a de seu tempo, para que possa melhor entender a significação de
seu objeto de estudo. A história como ciência social deve ser a ciência da realidade de
sorte que o conhecer deve evoluir junto com o conhecido.
Essas considerações ganham uma relevância ainda maior se aplicada as
sociedades que conheceram um passado colonial que lhes é ainda contemporâneo,
através de inúmeros resquícios que coexistem com os aspectos de modernidade, fruto
dos mecanismos de dependência, a função social do historiador nessas circunstâncias
reveste-se de uma enorme importância, na medida em que o passado sobre o qual ele
debruça em suas investigações é aquele que precisa ser destruído presentemente. Não há
o que ocultar neste passado, mas o que denunciar. Sendo assim, é preciso melhor
conhecê-lo para dele se desfazer. Explica-se, por aí, em grande parte, o desprezo que as
elites culturais desses países, cujo passado ainda é presente, revelam pela história. Quer
dizer, pela história que se propõe a apreender a historicidade do processo histórico. Os
autênticos historiadores dessas sociedades são aqueles que assumem uma atitude
questionadora, fazendo dela sua razão de ser, de ser social e histórico.
Conhecer a produção social é pormenorizadamente, procurar saber como os
homens viviam, agiam, e se relacionavam entre si. É entender de que modo produziam,
de que forma e através de que meios transmitiam suas tradições, hábitos e costumes.
Como criaram e vivenciaram sua maneira de ser.
Os historiadores que se dispuseram a penetrar no universo que congrega esses
valores que explicam mais do qualquer credibilidade documental os fundamentos de seu
estudo, têm de envolverem-se na dinâmica do processo histórico, ser um de seus agentes.
A história como ciência da sociedade precisa de historiadores que tenham ciência do
social. Mas, para que seu trabalho se complete com garantia e a honestidade que se
espera, torna-se imprescindível uma atitude atenta a todas as conquistas do
conhecimento em geral. Estar sempre inteirado de tudo que diga respeito a vida dos
homens, mesmo que isso exija um extraordinário esforço de pesquisa e uma sacrificada
devoção ao seu métier. Por outro lado, deve o historiador evitar as extrapolações quanto
tem por objeto de estudo sociedades cujo passado remoto não deve conter certas
referências que, por serem muito usuais hoje em dia, eram absolutamente impertinentes
se aplicadas a essas épocas pregressas. Conhecer as limitações de cada época é estar
imerso no processo social da construção da vida material.
Da história, enquanto conhecimento, espera-se o trabalho de sistematização das
conquistas científicas que, por seu turno, criam as condições para o aparecimento de
novos fatores de impulso do desenvolvimento social que deságuam ao curso do processo
histórico, da história enquanto registro das ações dos homens. Neste caso, a história na
sua acepção maior é “... para as ciências humanas o que as matemáticas são para as
ciências experimentais: uma garantia de exatidão. A reflexão sobre a história contribui
para a formação do espírito crítico. Melhor o homem conhece seu passado, menos ele é
escravo.”21 A história desponta, então, como teoria das práticas sociais e como prática
das teorias sociais, abrindo os caminhos que conduzam a formação das bases sólidas de
uma nova consciência social.
Não importa que o historiador ao produzir seu discurso o faça tendo como objeto
outra sociedade que não é a dele. O que importa é que ele assim procedendo o faça na
perspectiva de que seu esforço de reinterpretação inscreve-se tendo como determinante
as exigências sociais de conhecimento de seu momento histórico. “Organizar o passado
em função do presente, esta é a finalidade social da história.”22
21 Halkin, L., Initiation a la Critique historique, A. Colin, Paris, 1973, p.49.22 Febvre, L. Combates por la Historia, Ariel, Barcelona, 1970.
A produção de idéias, em qualquer tempo, é a expressão da realidade material,
não sendo fruto de elaborações aleatórias movidas por uma curiosidade inquietante do
cientista. É o mundo real que ao condicionar o pensamento, o direciona. “Historiar o
acontecimento ou (...) historiar as práticas, consiste em reatualizar o acontecimento
passado (...) o problema metodológico fundamental é o da significação presente do
acontecimento passado ...”23 Em suma, o historiador deve corresponder as expectativas
do seu presente, até porque seu trabalho a ele se dirige. É um ato político como tantos
outros que desempenhamos no decurso de nossas vidas como seres sociais.
As fontes existentes para um trabalho dessa natureza apresentam dificuldades de
ordem material. Existem poucas fontes sistematizadas e prontas para que sobre elas se
debruce o historiador. Todavia, a dificuldade maior não está na localização desse acervo,
mas na identificação de seu conteúdo popular. Assim, o problema não é somente de
acesso mas de caracterização desses fenômenos. A seleção institucional encarregou-se,
contudo, de violentá-los o que acarretou, em muitos casos, um processo de
despersonalização. Que formas de resistência a essa opressão institucional conhecemos
se delas os raros vestígios foram devidamente liquidados? Que representações
ideológicas podem ser apreciadas, se em sua essência sofreram a intervenção de uma
Ordem ciosa da preservação absoluta de seus valores?
Em conseqüência, torna-se extremamente árdua a tarefa de recuperação dessa
memória verdadeiramente popular. Árdua, dissemos, porém jamais desgastante. Trata-
se, portanto, de um esforço que abrirá certamente as portas para um horizonte novo de
nossa produção historiográfica, no qual o social em sua rela dimensão de ser retratado
para retratar-se, ocupando o espaço que dele tem sido retirado e escamoteado.
Dificuldade mas não impossibilidade. O desafio que se abre aos historiadores
conscientes de seu papel social longe de desanimá-los deve estimulá-los. A busca das
fontes deve ser precedida pelo conhecimento do meio social e mental. Identificar os
valores, costumes e atitudes dos contingentes representativos dessas camadas populares
é, por assim dizer, um passo preliminar. Num país como o nosso a diversidade das
formações culturais e sobretudo a desigualdade de nossa evolução econômico-social não
pode dispensar esse recurso preliminar. Em cada um desses meios sociais erigem-se
23 Ver sobretudo, História, 3 volumes, Fco. Alves, Rio, 1977.
normas de vida social que reproduzem os valores dominantes. Sobre estes opõem-se
princípios alternativos que convivem com aquelas. A historiografia oficial relata as
normas institucionais e delas faz seu referencial histórico, pois sal concepção de história
não admite a mutabilidade das instituições, ao passo que a história das práticas sociais
como autêntica história social registra e interpreta o desdobramento e os infindáveis
meios de resistência e sobrevivência das atitudes marginais. Só a análise destas permite a
compreensão dos movimentos sociais e das transformações sociais que lhe são inerentes.
O historiador das práticas sociais deve dirigir-se para a coleta de resíduos que
possibilitem captar a dinâmica social. Os arquivos sindicais ainda que limitados face a
estrutura sindical que lhe deram origem podem revelar detalhes significativos para o
estudo do movimento operário, da mesma forma que a imprensa operária e de opinião,
são fontes potencialmente importantes de que pode dispor o pesquisador. Os contos e
cantigas populares, como fontes orais, também se incluem como elementos informativos
das nossas tradições populares. Catalogar esse material representa um trabalho de
recomposição inestimável para que recuperemos a face oculta de nossa história social. A
pesquisa convencional não lhe dá crédito, pois ela está voltada para objetivos que não
incluem um projeto efetivamente nacional.
Nesse quadro, a história as práticas sociais como uma história alternativa situa-se
no interior de uma verdadeira história da totalidade social, incorporando um universo de
valores disseminados nos campos de pesquisa os mais variados, permitindo que se
trabalhe com os discursos dominantes e dominados. Com isso, nos vemos forçados a
redefinir o conceito mesmo de fato histórico, uma vez que dentro dessa dimensão seu
sentido extrapola as limitações que a história historicizante lhe confere. Vale dizer, de
uma concepção que mantém a história numa linha de total independência em relação as
sus parceiras, as ciências sociais. Nessa perspectiva todo fato social é necessariamente
um fato histórico.
A história das práticas sociais é, desse modo, a história das lutas sociais. Sua
finalidade consiste na recuperação da historicidade das classes oprimidas, articulando-a
com a historicidade do poder. Isto nos conduz a uma revisão crítica das práticas
acadêmicas, inclusive de obras dos nossos mais importantes cientistas sociais que
mesmo assumindo uma perspectiva de denúncia de nosso passado social, incorrem no
erro de trabalharem questões cujo significado pouco ajuda o entendimento de nosso
processo. É oportuna a observação, neste caso, de Caio Prado Júnior quando alude em
sua tese História e Desenvolvimento a distorção que o estudo do desenvolvimento
acarretou para a compreensão de nossa formação histórica. Quer dizer, o
desenvolvimento tem sido estudado dentro de uma linha de pesquisa que privilegia os
seus aspectos de força propulsora dos grupos elitistas, pouco se enfatizando os seus
aspectos anti-sociais. O economicismo passou a impregnar-se de tal forma na abordagem
do desenvolvimento que o quantitativo acabou por se impor sobre o qualitativo, vale
dizer, sobre a análise histórica.
Conhecer a vida social no que ela tem de mais rico é inventariar o cotidiano, pois
dessa forma ganha em consistência o significado das ações dos seres sociais. O estudo
de sua linguagem, do seu vocabulário, nos dá a real dimensão do universo que os cercam
e no qual constroem suas crenças e a imagem que fazem do mundo. Hoje o avanço da
lingüística, da lexicologia e das técnicas de análise de conteúdo nos propiciam um
instrumental cuja eficácia e valor são indiscutíveis.
3. História: Práticas Sociais, Mentalidade e Ideologia
Das tendências mais recentes da historiografia contemporânea, aquela que tem
procurado desenvolver uma temática mais próxima da que concebemos por história das
práticas sociais é, sem dúvida, a história das mentalidades. Se assim a considerarmos é
porque seu objeto de estudo dirige-se para a compreensão da vida social. Não se trata de
um novo setor da história, mas o reencontro da história consigo mesmo.
A análise a que se propõem os historiadores das mentalidades não se resume ao
enfoque dos aspectos puramente mentais, psíquicos e culturais, embora se perceba em
alguns trabalhos essa preocupação.24 Na verdade, a história das mentalidades busca
compor esses fenômenos articulando-os com a variedade dos fenômenos sociais.25 A
rigor, ela tem se manifestado mais como uma proposta do que como uma realidade nova
na historiografia. Salvo alguns trabalhos isolados, essa perspectiva histórica ainda não
alcançou toda a plenitude que dela se espera. Para que essa expectativa possa
24 Concebemos a história das mentalidades como uma história alternativa.25 Lefevre, H., O Fim da História, Dom Quixote, Lisboa, 1971, p. 57/78.
concretizar-se é necessário incluir-se entre as fontes indispensáveis à apreensão da vida
social, aquelas que poderíamos designar como “marginais”. Ou seja, todo tipo de
registro que dê conta da realidade social. Só dessa maneira o conhecimento histórico
pode ser concebido como o ato inteligente de registro e compreensão da realidade
histórica.
É bem verdade que o estudo das mentalidades históricas já proporcionou a
incorporação de objetos de estudo tradicionalmente relegados a esferas até então
impenetráveis à história, como o das emoções o da personalidade e, sobretudo, o das
ideologias. A ampliação dos campos de pesquisa histórica, o alto nível teórico alcançado
pelas ciências sociais, e a indiscutível importância dos movimentos de massa, aliados a
presença de técnicas de pesquisa mais modernas, são alguns dos fatores que
impulsionam o desenvolvimento da historiografia na atualidade.
A história integra-se cada vez mais às conquistas científicas, fato que independe
da vontade dos velhos cultores da história como erudição. O próprio processo das
transformações sociais opera profundas mudanças no conhecimento histórico. “Que quer
Marx dizer quando declara, em 1845 (Ideologia Alemã), que só conhece uma ciência, a
da história? (...) Nesta obra, ele caracteriza a história tanto pela ação humana origientada
para um fim (finalidade), como simplesmente pela sucessão das gerações humanas (...)
Quer dizer que há uma realidade, a história, obra de uma prática política, a revolução;
esta realidade produzida pela ação produz por sua vez um conhecimento. Não há história
sem historicidade. (...) A história assim concebida é activa. Substitui a filosofia”26 A
Historicidade não determina o processo histórico, mas condiciona toda criação do
conhecimento histórico. O homem ao evocar o estudo da história tendo em vista
conhecer suas origens o faz na expectativa de conhecer seu passado que embora ele o
desconheça reconhece seu significado, isto é, a importância de seu conhecimento. É esta
dialética do conhecer/desconhecido que faz da história um ensinamento extraordinário
que não deve ser privilégio daqueles que fazem dela seu ofício e meio de vida, mas de
todos os homens, independente de sua função ocupacional, de sua crença e de seus
valores culturais.
26 Labrousse, E., citado por le-Goff, p. cit. p. 69.
O tempo histórico se conjuga em ritmos diferenciados de acordo com o fator
cultural produzido por cada universo mental. Mas, independentemente disso as mutações
no interior dos conjuntos sociais também obedecem a variações temporais. “O social –
diz Larousse -, é mais lento que o econômico e o mental mais ainda que o social.27 É o
tempo em sua tessitura desigual cujas manifestações que abriga desfilam em compassos
alternados, em conjunturas próprias, porém presas a um universo mental. E só as
transformações em profundidade no panorama social provocam modificações neste
último, ou seja na mentalidade. Daí ser ela mais duradoura porque é mais resistente às
mudanças.
Entender a maneira como se processa o entrelaçar desses níveis, que respondem
pelas continuidades e descontinuidades do processo histórico, eis a preocupação central
dessa história das mentalidades. Nada pode ser abandonado sob pena de se comprometer
o exame da totalidade social. É o não-factual que ingressa definitivamente no terreno das
preocupações do historiador, alimentando e dimensionando os fatos históricos.
“A história – diz Paul Veyne -, é feita da mesma substância que a vida de cada
um de nós”.28 A mentalidade não seria, então, um mero reflexo de uma problemática
cultural, mas o organismo vivo que move a vida social, a partir de suas contradições. É
na observação das diferenças de toda espécie que se diagnostica um organismo social.
Diferentemente do organismo humano, o mal de uma sociedade não está nas mutações
intestinas mas num equilíbrio estabilizador que compromete o progresso em nome de
interesses anti-sociais.
O estudo das mentalidades longe de impedir esse propósito orienta-o, pois só
podemos discernir os fatores de mudança de um determinado contexto social se
conhecermos suficientemente bem seus pontos de equilíbrio que não são outra coisa
senão os pontos que articulam a mentalidade. Uma revolução social muda o sentido da
história, transforma radicalmente os princípios políticos jurídicos, mas encontra sempre
forte resistência quando se propõe a alterar certas atitudes que são peculiares a esse
povo. É por esta razão que as grandes revoluções conhecidas pela história só alcançaram
êxito, quando seu curso seguiu a originalidade ditada pelas condições históricas de seu
meio. Quer dizer, fez da tradição, das práticas sociais, de seus valores historicamente
27 Veyne, P., Como se Escribe la Historia-Ensayo de Epistemologia, Fragua, Madrid, 1972, p. 48.28 Le Goff, J., op. cit. p. 77.
herdados, instrumentos de renovação conseqüente. Os grandes líderes revolucionários,
da mesma forma, são os que fundamentam seus princípios políticos no conhecimento do
processo histórico social.
É lícito afirmar que a história das mentalidades procura desvendar o que o
historiador sempre perseguiu: a trajetória do homem na dimensão mais ampla de suas
realizações. Contudo, o conjunto de valores, símbolos, linguagem, costumes, atitudes,
elementos que constituem uma mentalidade, não é facilmente e (ou) uniformemente
percebido. O elemento ideológico é o responsável por essas construções diferenciadas. A
memória de uma sociedade é apropriada da maneira que melhor convenha ao grupo que
exerce o poder. “As mentalidades mantém com as estruturas sociais relações complexas,
porém não desligadas delas. Existe, para cada sociedade, para cada época que a história
distingue na sua evolução, uma mentalidade dominante ou várias mentalidades? (...) A
coexistência de várias mentalidades em uma mesma época e num mesmo espírito é um
dos dados delicados, porém essenciais da história das mentalidades”.29 Este problema
nos remete sem rodeios a questão da ideologia.
O estudo sistemático das ideologias tem seu marco inicial na Idade Moderna.30 A
teoria do engano do clero assim como a doutrina dos ídolos de Bacon, representam
somente um primeiro passo na solução do problema da ideologia. Em Freud a teoria da
racionalização permite que seja observada uma relação estreita com o problema da
ideologia.
Mas, é com Marx que o conceito e o emprego da ideologia adquire enorme
significado. O conceito de ideologia de Marx possui três raízes: a crítica à filosofia do
estado de Hegel, à antropologia de Feuerbach e à economia clássica de Ricardo e Smith.
Os elementos conceituais, objetos dessa crítica são: o ensaio empreendido por Hegel no
esforço de superar a antítese entre razão e realidade no elemento do conceito filosófico,
a redução feuerbachiana do mundo das representações religiosas a essência do homem, a
qual para Marx não existe como algo abstrato, isolado dos processos sociais, e, a teoria
do valor-trabalho dos economistas clássicos, que concebia as formas econômicas do
capitalismo como formas naturais da produção humana.
29 Lenk, k., El Concepto de Ideologia, Amorrortu, B. Aires, 1971.30 Manheim, K., Ideologia e Utopia, Introdução à Sociologia do Conhecimento, Globo, RJ/Porto Alegre/S.P., 1954.
Somente na década de 1920 a problemática das ideologias converte-se no
substrato de uma disciplina acadêmica. Trata-se da sociologia do conhecimento. Max
Sheler foi seu inspirador, propondo criar uma doutrina de fundamentos metafísicos
acerca das condições sociais que presidem o nascimento e a difusão de cosmovisões e
teorias.
Em Manheim31 as categorias, ideologia e utopia possuem, segundo o emprego
que delas faz o autor, nítida necessidade de um referencial histórico, isto é, só adquirem
alguma significação se situados à luz de circunstâncias sócio-políticas determinadas.
Manheim destaca duas atitudes ideológicas. A primeira, a ideologia enquanto ocultação
parcial se refere a uma atitude mais ou menos consciente da natureza real da situação,
cujo verdadeiro reconhecimento não estaria de acordo com os próprios interesses. A
segunda atitude, a concepção total de ideologia, diz respeito a weltanschauung de uma
classe ou uma época, ou às idéias ou categorias de pensamento que estão relacionadas
com as condições existenciais desta classe ou época. As mentiras exemplificariam as
primeiras, ao passo que a ideologia liberal-burguesa ilustraria as segundas.
A utopia em Manheim não assume a conotação de algo irrealizável ou impossível
de ser na prática social concretizada. Ao contrário, assumiria um caráter prospectivo, um
vir-a-ser que estaria por assim dizer calcado na história. Dessa forma, o pensamento
cristão primitivo, por exemplo, era utópico enquanto expressava o ressentimento dos
oprimidos. Sua atitude passiva face aos opressores, a resignação que manifesta aos
seguidores expressava uma perspectiva de realização. Utópicas seriam as classes
despojadas do poder mas que guardam o futuro de sua afirmação. Logo, a hipótese
trazida por Manheim, no que se refere a utopia, está fundada na famosa idéia de Marx
segundo a qual são as condições da existência social dos homens que determinam sua
consciência social.
Para Manheim o conhecimento está socialmente condicionado, não existindo
conseqüentemente um saber absoluto. Ao negar, contudo as verdades relativas, nega a
existência de verdades objetivas. Ora, uma verdade pode ser objetiva sem que assuma
um caráter absoluto, porquanto está revelando um real que é objetivo no interior de um
momento que possibilita a apreensão desse real. E este obviamente não se eterniza, daí
31 Gramsci, A., A formação dos Intelectuais, M. Rodrigues Xavier, Venda Nova Amadora, 1972.
sua objetividade corresponder a uma realidade sobre a qual se tornou possível conhecê-
lo. Ele é, pois relativo porque o processo de sua existência se modifica. Da mesma forma
que os homens agindo sobre o mundo exterior o modificam e modificam sua própria
natureza e os meios com os quais operam o processo de conhecimento.
Ao insistir na impossibilidade de uma verdade objetiva, Manheim pretende
encontrar uma síntese, já que tanto as classes dominantes como as dominadas possuem
perspectivas ideológicas, ou mais precisamente ideologias e utopias. Ambas são
determinadas pelos seus condicionamentos sociais. Em conseqüência, não caberia a
nenhuma delas apreender a realidade, pois essa seria necessariamente a revelação de
suas visões de mundo. O pensamento válido corresponderia aquele que fosse produzido
por uma concepção à margem das classes, a dos “intelectuais socialmente
marginalizados”. Dessa maneira, só os intelectuais assim concebidos estariam em
condições de retratar o real em sua verdadeira essência, posto que não seriam eles
representantes das classes, nem formariam, enquanto intelectuais, nenhuma classe
específica, antes “um agregado sem classes”.
A própria formação da intelectualidade se deu, ainda segundo Manheim, forma
das instituições oficiais. Os “salões” e os cafés, deram a esses membros originais dessa
camada social que é a intelectualidade um aspecto de certa marginalidade. Neles
mesclam-se elementos oriundos de diversas classes e segmentos sociais. Os cafés
constituiriam, assim, os primeiros centros de opinião “de uma sociedade em parte
democratizada”, em virtude da ausência de discriminações de toda sorte.
A despeito desses argumentos, Manheim admitia que cada intelectual não se
desprendia totalmente de meio social. Mas, atribuía-se à atividade intelectual condições
para que tais resíduos fossem dissipados, dotando-os de condições para se conduzirem
isentos em seu labor científico. Os contatos entre os integrantes dessa comunidade
propiciava uma postura onde a rigidez dos julgamentos não tinha vez. Embora não
afirmasse que os intelectuais formavam uma classe acima das outras, a prática a eles
atribuída por Manheim fazia-o crer que os intelectuais situavam-se numa posição que os
tornava capazes de sobrepujarem a ideologia.
Marx, contudo já havia destruído essa concepção ao afirmar que a classe
dominante não precisava ocupar-se em desenvolver ou difundir seu ideário. A divisão
social do trabalho criara um grupo especial de ideólogos cuja tarefa principal e fonte de
vida consistia em desenvolver e aperfeiçoar as ilusões da classe acerca de si mesma e
veicular ideologicamente seus interesses.
Gramsci32 retoma a análise do papel do intelectual, dotando-o de uma nova
dimensão. Segundo Gramsci, qualquer grupo social que surge como base original de
uma função essencial no mundo da produção econômica cria seus intelectuais com a
função de reprodução dos valores inerentes à sua ocupação e o que dela sugere no
interior de uma organização social. É o conceito de intelectual orgânico, aquele que
emerge “no terreno das exigências de uma função necessária no campo da produção
econômica”.33 Na verdade, em Gramsci todo trabalho contém um caráter intelectual,
mesmo que se trate de uma atividade mecânica e desqualificada. Assim, “todos os
homens, à margem da sua profissão, manifestam alguma atividade intelectual e, embora
seja como filósofo, artista ou homem de gosto apurado, ele participa de uma concepção
do mundo, observa uma conseqüente linha de conduta moral e, portanto, contribui para
manter ou modificar um conceito universal e para suscitar novas idéias”.34
Gramsci rechaça a concepção vulgar de “intelectual”. A expressão função
empregada por Gramsci e seus seguidores recoloca, por assim dizer, toda a problemática
em torno da definição de intelectual. Não existiria um tipo de intelectual, muito menos
poder-se-ia falar em camada formada por intelectuais. Para Gramsci tal colocação é
resultante da “utopia social que levou os intelectuais a julgarem-se independentes e
autônomos, revestidos de uma própria representação”35 E, esta definição, estando
alicerçada numa concepção idealista segundo a qual é a idéia que cria a realidade,
produziu uma ilusão que arrastaria até hoje a um raciocínio dessa espécie. Na verdade,
Gramsci considera que é o caráter orgânico ou não da atividade do intelectual que se
determina a partir da análise da função que exerce no interior da superestrutura, o que
direciona toda e qualquer abordagem.
Numa sociedade de classes a luta pelos interesses de classe estende-se ao nível
das idéias. E, a classe mais bem preparada para empreender conseqüentemente a luta de
classes nesse nível será aquela que dispuser de um grupo de intelectuais em condições de 32 Id. Ibid., op. cit. p. 20.33 Id. Ibid., op. cit. p. 25.34 Id. Ibid., op. cit., pp. 22/23.35 Lênin, W., Duas Táticas da Social Democracia.
impor sua filosofia de vida e, conseqüência, seus interesses de classe. Dessa forma, as
classes dominadas precisam constituir sua própria intelectualidade com vistas a
condução de seu papel histórico de maneira conseqüente. Uma classe subalterna que não
cria seus instrumentos de defesa, ou que se serve de um ideário que não lhe é próprio,
não estará capacitada para exercer sua hegemonia.
Na verdade, Lênin já havia desenvolvido teses nessa direção.36 A luta ideológica
travada pelo líder da Revolução bolchevique o levou a encetar rigorosas campanhas
contra os “arrivistas” e os “oportunistas” de todos os matizes. Mas, os problemas
internos eram, na ocasião, uma conseqüência do agravamento das tensões internacionais.
A crise provocada pelo aguçamento das contradições inter-imperialistas que resultaram
no primeiro grande conflito em escala mundial, obrigou Lênin a um esforço intelectual
pouco comum. As novas formas assumidas pelo desenvolvimento do capitalismo,
exigiam prontas respostas dos teóricos marxistas. Por isso, toda teoria leninista sobre a
questão ideológica foi desenvolvida tendo como centro de sua problemática a questão do
imperialismo, sobre o qual Lênin legou aos estudiosos extraordinários trabalhos que
constituem até hoje referência obrigatória dos cientistas sociais.
Para Lênin os militantes bolcheviques deveriam transformarem-se em
verdadeiros ideólogos do Partido bolchevique que desempenha o papel de Estado-Maior
do proletariado. A originalidade dos bolcheviques em relação aos outros agrupamentos
políticos está, assim, na disciplina partidária e no estudo sistemático do marxismo. Este,
de acordo com Lênin, não deveria constituir-se em dogma, mas em guia para a ação
revolucionária.
Mais recentemente é com Louis Althusser37 que o estudo da ideologia ganha de
novo uma dimensão que parecia não mais adquirir. A ideologia em Althusser38 é um
elemento indispensável a toda sociedade. Esta, no entanto, deve ser considerada como
Modo de Produção específica, já que a expressão sociedade simplesmente, é desabonada
pelos autores que seguem a tradição marxista e, sobretudo pelos marxistas tout court.
A ideologia constituiria na ética althusseriana uma instância necessária de toda
formação social, qualquer que seja seu estágio de desenvolvimento, Logo, a ideologia
36 Id. Ibid., Imperialismo, Última etapa do Capitalismo.37 Althusser, L. - Pour Marx, Maspero, Paris, 1965.38 Karsz, S. – Théorie et Politique: Louis Althusser, Fayard, Paris, 1974.
não se desfaz nunca, até porque ela é uma representação do mundo. É indispensável
historicamente, pois os homens entendem o mundo da maneira como o mundo lhe
parece.
Althusser considera a existência numa sociedade determinada de duas tendências
ideológicas: a dominante e a(s) dominada(s). “Numa sociedade concreta, a medida em
que diferentes ideologias se desenvolvem, não é ao nível epistemológico que se pode
opor umas em relação a outras, como se fosse a verdade da outra. Não se trata de
pretender por exemplo, que uma ideologia dominante – ‘falsa’ – se defende contra uma
ideologia dominada - ‘verdadeira’-, (...). Com efeito, cada uma destas ideologias se
funda, sobre, e representa, posições econômicas e políticas que, (...) interditam em
última instância toda ‘discussão’ e toda ‘comunicação’ entre duas tendências ideológicas
antagônicas (...) a análise científica, aqui, não pode fazer senão uma coisa: não pretender
enunciar a ‘terceira’ via que ultrapassaria o antagonismo da ideologias mas a analisar
para mostrar o envolvimento econômico e político.”39
Althusser fala também em regiões ideológicas: as ideologias práticas e as
ideologias teóricas. Estas últimas comportariam duas subdivisões, as ideologias teóricas
vulgares e as científicas. Nesta última o exemplo mais marcante seria o de Marx.
As ideologias práticas são aquelas que se traduzem politicamente ou através de
manifestações que não escondem certas determinações político-sociais, como as
religiões, por exemplo. Esta região ideológica envolve todos os homens no interior do
processo das relações de produção. As ideologias teóricas são aquelas que envolvem um
setor da sociedade circunscrita, em geral, no meio intelectual. Não deixam, no entanto,
de traduzir uma região do embate ideológico, na medida em que ela se desenrola em
torno das idéias dominantes que são sempre os da ideologia dominante: a informação, o
ensino, as artes, que constituem domínios da classe dominante. São os aparelhos
ideológicos do Estado (A.I.E.) “Para avançar a teoria do Estado é indispensável
entender, não somente a distinção entre poder de Estado e aparelho de Estado¸ mas
também de uma outra realidade que está manifestamente do lado do aparelho
(repressivo) de Estado, mas que não se confunde com ele. Chamaremos esta realidade
por seu conceito:os aparelhos ideológicos de Estado.”40
39 Althusser, L. – Ideologie et Appareils idéologiques d’Êtat, La Pensée, Juin 1970, nº 151, pp. 3/38.40 Id. Ibid. – pp. 38 e segs.
O A.I.E. é ao mesmo tempo teórico e prático e constitui o instrumento de
irradiação e perpetuação dos princípios dominantes da ideologia dominante.
Entretanto, quando Althusser formula seu conceito de A.I.E. e o teoriza não faz
senão enfatizar as funções que, a rigor, nada mais constituem do que instrumentos que
são inerentes a todo o aparelho de Estado. A perda da visão de totalidade que está
implícita no conceito de Modo de Produção e, particularmente do A.E. leva-o a perder
de vista a necessária compreensão orgânica da totalidade social e suas contradições.
Quando Marx afirma que no nível das superestruturas se formam os princípios político,
jurídicos e ideológicos, ele não reduz a este nível as manifestações ideológicas. Apenas
acentua que é em sua institucionalidade, a do poder, que é organizada a ideologia. A
crítica a ideologia, em suas diferentes manifestações, constituiu a principal arma
empregada por Marx para investigar a relação entre sociedade e conhecimento. E, para
apreciar a verdade histórica de qualquer pensamento social, reveste-se de importância
decisiva a investigação das conseqüências que traz sua realização na práxis.
Aliás, Althusser em sua autocrítica admite ter incorrido num “desvio teoricista”.
Reconhece que a redução aliada à interpretação “desta cena racionalista-especulativa, a
luta de classes estava praticamente ausente” Conclui seu autojulgamento assim: “Sem
teoria revolucionária, dizia Lênin, não há movimento revolucionário. Podemos escrever
sem posição teórica (filosófica) proletária, não há desenvolvimento da teoria marxista, e
não há uma justa união do movimento operário e da teoria marxista”.41
O “flerte” de Althusser como o estruturalismo o fez perder de vista o que
diferencia o marxismo do estruturalismo: o primado do processo sobre a estrutura. E
para a história isso é fundamental, sem o que não se pode realmente conhecer a
produção social.
Na realidade, se admitirmos que toda ideologia é uma representação do real, a
mentalidade é o conduto através do qual essas ideologias operam, consagram e veiculam
esse real. Neste caso, o estudo da mentalidade é o pré-requisito para que se possa
entender as manifestações ideológicas, até porque possuindo as ideologias o poder de
legitimar essas imagens da realidade, cumpre que se investigue o meio social sobre o
qual essas ideologias se organizam.
41 Althusser, L. – Élements d’auto-critique, Hachette Littérature, Paris, 1974, p. 126.
Desse modo, que função social está reservada ao historiador diante desse
desafio? De que forma interpretar um objeto cada vez mais complexo e difuso se ele na
sua condição de historiador está, enquanto indivíduo que é, envolvido pelo fator
ideológico que independe dele e de sua formação profissional?
Submetido ao seu universo do qual não pode se desvincular, sua obra é o
resultado desse impasse. É um exercício de superação do qual nem sempre se dá conta.
Admitindo a mentalidade como a própria essência do social, responsável como tal pelos
elementos de permanência que personificam as sociedades, pode-se dizer que ao
historiador das mentalidades cumpre; buscar nas tradições sociais de uma comunidade
constituída historicamente as condições e os mecanismos de sua reprodução social, ou
seja, como suas crenças, costumes e conhecimentos adquiridos são perpetuados, e que
uso as ideologias dominantes fazem deles. Este último aspecto adquire fundamental
importância por sabermos que a tradição de cada sociedade propõe uma explicação do
mundo à seus membros. O papel cumprido pela moral, por exemplo, é de extrema valia,
pois ela torna inquestionável, como sua própria razão de ser, as práticas legitimadas
institucionalmente.
O que é, então, desprezível para a historiografia oficial merece um tratamento
prioritário da história das mentalidades. É preciso sublinhar, no entanto, que entendemos
a história das mentalidades como o estudo sistemático das práticas sociais, e não como
um setor “novo” do conhecimento histórico. Setorizar a mentalidade é não entender que
ela é um produto do social, e conhecer o conjunto da produção social é fundar as bases
do objeto histórico real.
II
Os comunistas e a questão nacional.
Na realidade, vinha sendo discutida no âmbito das esquerdas a
possibilidade de um conjunto de mudanças capaz de tirar o Brasil da inércia e da
dependência do capital estrangeiro. Para tanto, era preciso um processo
revolucionário, se possível sem derramamento de sangue, mas realizado sob o
signo da conscientização, palavra que figurou em quase todas as bocas e em
quase todos os documentos produzidos à época. O governo tolerante de JK,
especialmente em relação aos comunistas, que embora na ilegalidade
participavam ativamente das confabulações e dos encontros em torno de medidas
a serem adotadas num país que caminhava célere para um arranco econômico
cujas conseqüências dependeriam, portanto, de diretrizes a serem tomadas. Os
próprios comunistas, em 1958, lançaram um documento intitulado Declaração
de Março42, no qual passariam a apostar na via democrática e essencialmente
política.
A questão nacional retorna com força ao cenário brasileiro em fins dos
anos cinqüenta. Nesses anos os grandes debates se situavam em torno dos termos
nacional e nacionalismo como fronteira cognitiva e ideológica para uma geração
que buscou construir um projeto para o Brasil. Para tanto, podem-se situar três
tipos de fontes para sistematizar o problema proposto dentro desse universo, o do
partido dos comunistas, o PCB: o material da imprensa comunista, os
documentos de orientação política e ideológica divulgados pelos panfletos da
mesma inspiração, e os textos de intelectuais orgânicos pecebistas. Mais do que o
inventário de uma questão relacionada com um partido de época, expressão
usada para designar a presença de uma organização cuja influência não era
desprezível naqueles tempos não obstante sua pequena representação
institucional trata-se de examinar o problema proposto a partir de um olhar muito
particularmente expressivo sobre o tema que inspirou esse trabalho.
A freqüência com que se usava os termos nacional e suas derivações
decorre das condições políticas da época, eivada de pressupostos, tanto à direita
quanto à esquerda, segundo os quais a natureza de princípios puros e destituídos
de componentes indesejáveis encontrava-se no apego aos valores nacionais. Foi
assim com o comunismo soviético e com o nazifascismo, ambos interpretando o
nacional como eficiente instrumento de promoção do bem estar social, de acordo
42 Ver PCB: Vinte Anos de Política: 1959-1979, documentos. São Paulo: LECH-Livraria Editora Cioências Humanas, 1980;
com as respectivas concepções. Não fora a guerra fria a estimular um
anticomunismo virulento e as correntes que, no Brasil, haviam se colocado em
campos opostos nos anos trinta, estariam reunidos nos 50 em torno das bandeiras
caras ao nacionalismo. Mesmo assim não foram poucos os ex-itegralistas que
acabaram próximos dos nacionalistas antiimperialistas do pós-guerra.
A pergunta que se deve colocar desde o início é a seguinte: até que ponto
a conjuntura política da primeira década do pós-guerra explica a forte presença
dessa questão no cenário da sociedade brasileira? E a esta questão acrescentar-se-
ia uma outra, necessariamente complementar. Essa forte presença do elemento
nacional a nortear discursos e apelos foi mais notável no Brasil, ou o país apenas
conheceu, a sua maneira, uma tendência comum naquela época? Em ambos os
casos, se está diante da problemática conjuntural, e tanto o plano interno quanto
o externo suscitam dúvidas a respeito do encaminhamento dessas indagações.
Contudo, é preciso chamar atenção para a componente da ação política detentora
de uma relativa autonomia no contexto conjuntural. No caso brasileiro, a ação
política aludida assumira a representação de um ator político individual de
notável presença, Getúlio Vargas, líder e ideólogo do projeto nacional.
Sem negar as influências de uma conjuntura favorável à irradiação de
movimentos e manifestações de cunho nacional, uma vez que a guerra aflora esse
sentimento em países ainda submetidos a formas mais ou menos característica de
opressão colonial, o caso brasileiro dos anos de 50 possui um caráter muito
particular. Daí, estabelecermos essa fronteira a separar o fenômeno mais geral
daquele que guardou especificidades que procuraremos detalhar mais adiante.
Por outro lado, trataremos de acrescentar as novas leituras acerca da questão de
fronteiras ideológicas, desprovidas estas das inconveniências de uma época em
que tais parâmetros se encontravam inteiramente vinculados aos paradigmas
instituídos pela polarização que confrontava o capitalismo ao comunismo43,
como muitos preferiam, ao invés de socialismo. Essas novas leituras incluem a
idéia de fronteira como obstáculo e como conquista. No primeiro caso, a
expressar desafios de ordem epistemológica e superações de natureza teórico-
43 De um modo geral, a grande imprensa brasileira usava constantemente capitalismo versus comunismo;
metodológicas; e, no segundo, a marcar aquisições mais recentes provenientes da
contribuição dos diversos campos da ciência, para a qual, hoje, a fronteira do
conhecimento não obsta o diálogo entre os mais variados tipos de cientistas e
pesquisadores.
Os anos cinqüenta no Brasil despertaram o país para o desenvolvimento.
Mais até, para a possibilidade de alcançá-lo breve e sem grandes sacrifícios. Tal
expectativa derivou do pós-guerra a estimular mudanças estruturais postergadas
por muito tempo. O crédito pessoal junto à população, depois de 15 anos no
poder, muito provavelmente tenha beneficiado Getúlio Vargas em 1950, quando
se submeteu pela primeira vez às urnas.44 De posse de um projeto de
desenvolvimento nacional Vargas contribuiu para acrescentar ao excitado quadro
daquele pós-guerra nas nações periféricas do sistema capitalista uma forte
componente: o nacionalismo como instrumento e motor do desenvolvimento.
Mas esse componente que dotava o desenvolvimento desejado por todos
de um sentido, ao mesmo tempo em que estava destinado a impulsionar a nação
brasileira através de um projeto transformador, tinha contra si um obstáculo. O
projeto concebido por Vargas e depois levado a efeito pelo legado varguista
ancorava-se no fator econômico. Neste encontrava-se a chave para a travessia da
fronteira que levaria o país para o desenvolvimento e a afirmação nacional.
Dessa maneira, a questão nacional ao longo dos anos cinqüenta no Brasil
combinava desenvolvimento, nacionalismo e soberania. Além disso, escalava
como protagonistas desse empreendimento nacional o Estado e seus principais
coadjuvantes: as classes produtoras (leia-se, a burguesia empresarial) e os
trabalhadores.
Contudo, para atravessar a fronteira almejada era preciso remover duas
outras fronteiras, isto é, dois obstáculos, um interno, o latifúndio, e outro externo,
o imperialismo. Tanto os que se alinhavam em torno do projeto quanto os que o
combatiam, usavam argumentos de natureza ideológica. Esses argumentos eram
muito mais eficazes do que os de cunho técnico e científico. Isso se explica pela
componente radical e maniqueísta de uma época marcada pelos confrontos dos
44 Vargas concorreu pelo PTB nesse ano contra Eduardo Gomes, da UDN, e Cristiano Machado pelo PSD, obtendo quase 50% dos votos válidos;
que se identificavam com os sistemas de poder vigentes, mas também pelas
características da política de então profundamente emocional, dado o forte
contencioso que se acumulara ao longo de um processo histórico marcado por
dívidas em relação aos interesses das nações que haviam conhecido um passado
colonial.
Para os ideólogos da questão nacional era preciso que as forças vivas da
nação, unificadas em torno do Estado, capitaneassem o processo
desenvolvimentista. Criava-se, assim, o nacional como fronteira, isto é, como
parâmetro a partir do qual eram estabelecidos os limites e os instrumentos de
superação do subdesenvolvimento. Nação versus antinação45, nacionalistas em
oposição aos entreguistas, oponentes cujas teses transitavam pela via da
nacionalidade e de sua afirmação, fosse esta fruto da luta contra os grandes
proprietários de terras e o grande capital internacional, fosse no combate sem
tréguas ao comunismo e seus aliados.
Ao proclamar o nacional como fronteira, as partes litigantes -
nomeadamente à esquerda e a direita - sustentavam suas idéias pela negação de
seus interlocutores, desqualificando-os e, com isso, desobrigando-se de
apresentarem propostas concretas para o país. O exemplo mais notável ocorreu
por ocasião da criação da Petrobrás. Desde os fins da guerra e durante toda a
década de 1950, o que mais se debateu foi o monopólio instituído pelo Decreto
2004 que originou a implantação dessa estatal. Raras foram às vozes e,
principalmente, os estudos relativos aos investimentos tecnológicos e científicos,
só invocados para a reafirmação das teses conflitantes. Durante o tempo em que
o tema ocupou o cenário político do país, proliferaram os proselitismos prós e
contra a política monopolista definida pelo governo de então.
O apego ao fator econômico como símbolo das afirmações tanto de
esquerda como de direita explicava-se pela indisfarçável situação do país no que
concerne aos desequilíbrios sociais e regionais. A evidência do
subdesenvolvimento estava na subnutrição e no estágio desesperador de
inúmeros municípios do norte, nordeste e centro oeste. Os apologistas das
45 Essa expressão fora muito usada por Álvaro Vieira Pinto, filósofo e um dos nomes mais proeminentes do ISEB. Ele costumava contrapor Elite e massas;
transformações estruturais ou de seus reajustes encontravam-se na fronteira da
economia política, campo fértil para as pregações evocadas por seus líderes, seja
nos legislativos, na imprensa ou em entidades representativas da sociedade civil.
A lógica segundo a qual cabia ao Estado empreender os equipamentos infra-
estruturais para que as demais instâncias alcançassem as condições para o
desenvolvimento estava presente naqueles dias. Para todos os problemas,
preponderava uma mesma lógica, como observou uma estudiosa de um desses
problemas presentes na pauta política daqueles tempos. Segundo ela: “Neste tipo
de nacionalismo os possíveis ‘inimigos internos e externos’ não se definem por
oposições culturais, étnicas, lingüísticas ou religiosas. É, ao contrário, um
nacionalismo estritamente econômico”46
Neste sentido, destaca-se a ação do proselitismo dos comunistas brasileiros
organizados em torno do PCB. Nos documentos provenientes dos órgãos
dirigentes, de seus periódicos ou de pronunciamentos das lideranças mais
expressivas desse partido, encontram-se inúmeras manifestações que atestam o
nacionalismo econômico em vigor. A força desse argumento levou-o a alterar a
tática de lutas, sinalizando para a formação de uma aliança com a pequena
burguesia e setores de uma burguesia nacional, com vistas à revolução
democrático burguesa, então preconizada. Logo no início da já mencionada
Declaração de março de 1958, “Em direção a uma nova política”, os comunistas
não deixam dúvidas em relação a reavaliação do quadro nacional.
“Modificações importantes têm ocorrido, durante as últimas décadas, na
estrutura econômica que o Brasil herdou do passado, definido pelas
seguintes características: agricultura baseada no latifúndio e nas relações
pré-capitalistas de trabalho, predomínio maciço da produção agropecuária
no conjunto da produção, exportação de produtos agrícolas como eixo de
toda a vida econômica, dependência da economia nacional em relação ao
estrangeiro, através do comércio exterior e da penetração do capital
monopolista nos postos-chave da produção e da circulação.”
46 Moreira, Vânia M. Losada. “Nacionalismo e reforma agrária nos anos 50” in Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 18, nº 35, 1998, p. 336;
Antes, no entanto, que essa orientação viesse a se consagrar, os comunistas
insistiam nos discursos de condenação aos governos e as instituições vigentes.
Mesmo após a extraordinária consagração de Vargas nas eleições de 1950 e de
seu programa modernizador, o órgão oficial do PCB, A Voz Operária, de
primeiro de agosto de 1952, tecia considerações nada simpáticas aos novos
dirigentes. O exagero de cunho meramente panfletário dominava a redação do
jornal, para a qual, a “política do governo de Vargas, política de guerra, de
colonização, de fome e de reação crescente contra a classe operária e as massas
populares, impôs-se a intensificação das lutas da classe operária em defesa da
paz, contra a venda crescente do país aos monopólios ianques, contra a miséria e
a fome, pela salvaguarda dos direitos e conquistas dos trabalhadores.” Vê-se que
o espírito belicoso, profundamente amargo e naturalmente tendencioso sobre os
fatos, contrariava flagrantemente as proclamações a favor da paz, até porque
vigorava uma recomendação dos dirigentes do partido (Manifesto de agosto de
1950) abertamente insurrecional num país que acabara de reconquistar o direito
às urnas.
Predominava a época uma composição no Comitê Central do PCB francamente
tripartite, de acordo com os dados do IV Congresso de 1954, constituída de 48%
de trabalhadores manuais (operários), 28% de profissionais liberais e 24% de
militares. Considerando estes dois últimos segmentos, havia, portanto, uma
ligeira maioria formada de setores da classe média urbana desejosa, de um lado,
de mudanças rápidas e eficazes e, de outro, afirmação como protagonistas da
história, sem ter acumulado suficiente volume de experiência que os tornassem
capazes de conduzir tais transformações. A outra metade de operários pouca
influência tinha ao lado dos dois agrupamentos, responsáveis pelas lideranças
intelectuais de que valiam os dirigentes naqueles dias.
O quadro se alteraria um pouco por ocasião do V Congresso de 1960, onde, a
despeito das mudanças havidas na orientação do partido, prevaleciam os mesmos
grupos com números um pouco modificados em relação àquela composição
apontada anteriormente, passando para 36%, 36% e 28%, respectivamente O que
acarretou, então, a significativa mudança de rumos ocorrida entre o IV e o V
congressos e cuja repercussão se fará sentir, inclusive, no VI Congresso apesar
do golpe de 64 a alterar substancialmente o panorama do país? Esta pergunta não
chegou a ser plenamente respondida até hoje, e é importante que se procure
explicar essa questão. A hipótese que lançaremos mão nesse estudo é a de que da
mesma forma que os comunistas exerceram uma influência considerável na
política nacional, amparados que estavam no apego aos temas nacionalistas,
também eles foram alvos da influência dos debates a politizar a questão das
salvaguardas da nação e, portanto, elementos ativos na defesa da fronteira
nacional que se forjara principalmente a partir de meados dos anos 50. Nesta
época, o nacional passou a definir as pessoas, suas idéias e proposições, além de
seu caráter e de seu patriotismo. Quem não se filiasse as perspectivas dos que
sustentavam uma política nacionalista, era naturalmente identificado como
adepto de princípios e valores anti-nacionais.
Os comunistas, sem dúvida, engajaram-se nas lutas nacionalistas com muito
mais denodo do que os próprios trabalhistas filiados ao partido concebido por
Vargas, ainda ao término de seu governo de 15 anos consecutivos, para conduzir
o seu projeto de conciliação e colaboração de classe, o PTB. Além da militância
comum aos comunistas, pairava uma outra questão, a de que ambos os
agrupamentos disputavam as massas trabalhadoras, seus sindicatos e suas
reivindicações. Estas só foram, na verdade, objeto de real interesse dos
comunistas a partir da Resolução Sindical de 1952, pois antes dessa data tais
demandas eram solenemente ignoradas ou desprezadas como prioritárias uma
vez que se insistia no proselitismo doutrinário. A referida Resolução, para a qual
concorreu muito a percepção e astúcia política de Carlos Marighela, produziram
uma enorme mudança nas práticas dos militantes sindicais vinculados ao partido.
A partir dessa Resolução, os comunistas que atuavam no movimento sindical
passaram a desenvolver práticas políticas que se diferenciavam daquelas
usualmente adotadas pelo partido nas demais áreas de atuação, causando um
embaraço constante com as direções ainda presas à orientação que provinha da
direção nacional, regional ou municipal, todas profundamente marcadas pelo
sectarismo. Essas práticas políticas dos sindicalistas comunistas provocaram,
inclusive, a possibilidade de se construir alianças com os trabalhistas. As
questões concretas dos trabalhadores passavam a ter primazia no seio desse setor
do partido. É muito provável que essa composição política tenha trazido
influências recíprocas, mas devem-se destacar os elementos comuns,
responsáveis pela aglutinação de comunistas e trabalhistas: a bandeira do
nacionalismo. Foi essa cultura política comum que permitiu a identidade da
classe operária no Brasil dos anos cinqüenta.
A propósito é conveniente lembrar que o conceito de classe proposto por
Edward Thompson em The Making of the English Working Class (A Formação
da Classe Operária Inglesa ) resolve o impasse ideológico criado pela leitura
dogmática de Marx e Engels a respeito da classe operária, ao considerar tal classe
“uma categoria histórica que descreve as pessoas em termos de seu
relacionamento ao longo do tempo”, pois só poderemos entender essas pessoas
como produtos de uma “formação social e cultural”. Aqui há que esclarecer duas
coisas: a distinção entre história operária e história sindical ou movimento
operário e movimento sindical. No primeiro caso, as pessoas que integram essa
história ou esse movimento são pessoas que possuem um universo construído
historicamente, portanto integrados por força de um determinado modo de vida.
No segundo caso, são essas mesmas pessoas que atuam no seu ambiente de
trabalho e possuem interesses funcionais, profissionais, salariais, em comum,
independentemente de suas crenças, paixões, aptidões e escolhas. Todavia, o
estudo do movimento operário não pode deixar de referir-se ao outro, isto é, ao
sindical, pois trata-se de algo essencialmente indissolúvel e inseparável. E a
recíproca é verdadeira.
Quando invocamos o dado nacional (ismo) como um dado agregador,
unificador e mobilizador, estamos identificando um elemento comum que torna
próximo tanto a classe como o movimento, tanto o operário e sua dimensão de
cidadão a contemplar a possibilidade de ser partícipe de uma história nacional até
um sindicalista que percebe brechas no sistema que facilita a conquista de
reivindicações pleiteadas por seus companheiros. Se, no entanto, aceitarmos a
idéia de que o nacionalismo difundido e tornado instrumento de desenvolvimento
contêm uma componente ideológica, a derivação dessa premissa consiste em
considerar os trabalhadores como cooptados por um sistema de dominação que
teve a necessidade histórica de trazê-los para o campo do debate político mais
geral, transformando-os em atores coadjuvantes desse projeto de afirmação
nacional.
Ao longo dos anos cinqüenta, os comunistas foram paulatinamente se
aproximando da vertente trabalhista. O suicídio de Getúlio Vargas em agosto de
1954 levou-os a rever radicalmente a postura eqüidistante que vinham adotando -
aquela altura absolutamente imobilista e sem apoio nas bases - e tornaram-se
cada vez mais próximos dos acenos trabalhistas, fato este que os levou a
apoiarem a candidatura de JK em 1955. Consolidara-se neste momento o projeto
nacional desenvolvimentista primo irmão da etapa democrática burguesa
preconizada pelo PCB. As fronteiras internas e externas na ocasião não deixavam
mais dúvidas: de um lado, situava-se em fronteira oposta, o latifúndio e os
interesses antinacionais, de outro, o imperialismo yankee. Para um partido de
tradição e concepção proletária, cuja demanda internacionalista consubstanciara-
se em premissa básica, razão pela qual os desvios nacionalistas eram inaceitáveis,
essa nova situação era no mínimo instigante.
A Nova Política tornada pública pelos comunistas em 1958, depois de alguns
problemas internos derivados da denúncia dos crimes cometidos por Stálin
expostos pelo Relatório Kruschev, em 1956, e que no Brasil somara-se as crises
de 1955 que resulta no abandono de quadros como Agildo Barata entre outros,
cindiu de vez o partido com reflexos imediatos na tática comunista. O documento
lançado em março daquele ano reconhecia o avanço das relações capitalistas de
produção no país e a necessidade de dar-se sustentação política a esse processo,
cujos efeitos eram danosos para as forças do atraso. Estaria, assim, cristalizada a
nova fronteira de lutas a vislumbrar perspectivas bastante promissoras para o
projeto que parecia irmanar de vez o nacional desenvolvimentismo e a etapa
democrática burguesa. Cabia, pois, aos comunistas cerrar fileiras para isolar as
forças conservadoras, situação esta bafejada pelos êxitos alcançados pelos
processos de libertação nacional e descolonização.
A caracterização e a delimitação dessa fronteira política e ideológica ficaria
ainda mais evidenciada no ano de 1960, de vez que tanto no plano nacional
quanto no plano orgânico do PCB, haveria mudanças significativas. No Brasil, a
eleição de duas lideranças populares, na famosa dobradinha Jan-Jan, Jânio
Quadros e João Goulart (Jango), que a despeito de se situarem em chapas e
programas que se enfrentavam eleitoralmente, foram homogados pelas urnas,
cuja população estabeleceu seus próprios critérios de fidelidade. Não a partidária,
mas a de maior proximidade dos candidatos em relação ao povo, usando
mecanismos que os definiriam dentro dos marcos do que se convencionou
chamar de populismo. O fato é que de novo os comunistas foram às ruas em
apoio a candidaturas burguesas nacionalistas, como acontecera com Juscelino
anteriormente. Desta vez com mais entusiasmo porque as candidaturas
progressistas de Jango e do General Henrique Teixeira Lott47 eram dignas desse
apoio, já que vinculava a tradição militar nacionalista do Exército e de seu
próprio representante, que garantira a posse de JK, com a do político mais ligado
às tradições getulistas, João Goulart.
Ao transitar de uma atitude política estreita e avessa ao estabelecimento de
alianças para uma outra inteiramente aberta e capaz de contrair demandas
comuns com forças e correntes distintas ideologicamente, os comunistas que se
orientaram pelas novas diretrizes da Declaração de Março romperam
parcialmente a rígida fronteira ideológica que vigorava anteriormente, deram
início a construção de uma fronteira convergente em torno de uma bandeira
comum, o nacionalismo. Assim, o elo promovido entre comunistas, trabalhistas e
reformista de diferentes origens criou potencialmente as condições para a
reinvenção da fronteira nacional. Contudo, e na prática, esse renascimento do
elemento nacional padeceu de um pecado original: o povo esteve a reboque desse
processo. Neste sentido, aproximou-se mais de um momento de circulação das
elites, típica de sociedades marcadas por heranças coloniais e neocoloniais.
47 Ver Wagner William. O Soldado Absoluto Uma biografia do marechal Henrique Lott. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005;
Contribuiu para essa situação a convicção - ainda que jamais admitida - de que
na esfera da política convencional os impasses nacionais poderiam ser resolvidos
sem que houvesse necessariamente o concurso direto do povo de forma concreta,
figurando sua participação no discurso desse pacto de elites políticas,
intelectuais, sindicais e partidárias, certos os pactuantes de que se encontravam
legitimados pelas massas. Algumas dessas figuras integrantes das elites
intelectuais chegavam a sustentar tese contrária, como a do filósofo do ISEB e da
então Universidade do Brasil, Álvaro Vieira Pinto48. Segundo ele, a revolução
brasileira era uma tarefa das massas, e competia as massas orientar o processo de
transformação na sociedade brasileira.
Entretanto, da mesma forma que a noção de nacionalismo obedecia a um
mecanismo ideológico de convencimento, o mesmo se aplica a noção de massa,
termo adotado para caracterizar multidões que embora despreparadas para a
política, possuíam a faculdade de perceber onde estava o caminho para a sua
libertação. Esta conveniente convicção alardeada por ideólogos de uma
revolução sobre a qual todos verbalizavam chegara a academia, aos ambientes
intelectuais, mas não a ponto de integrar essas mesmas multidões ao processo
supostamente da revolução tão alardeada. Neste sentido, foram as revoluções
anunciadas, cuja realização ficou mais na vontade e na esperança de um êxito do
projeto nacional do que de um processo verdadeiramente real.
Mas a crença de que se estava em meio a um processo revolucionário parece
ter anestesiado esses ideólogos. Dentre os comunistas adeptos do estreitamento
de relações com os progressistas, e empurrados pela Declaração de Março de
1958 referendadas em seu V Congresso de 1960, havia uma outra questão não
menos importante. Tratava-se da possibilidade - pela primeira vez cogitada - de
que esse processo revolucionário tinha condições de ser culminado
pacificamente. Afinal, o amplo conglomerado de forças a apoiar a mudança
política e institucional prevista àquela altura por todos os aliados da revolução
brasileira era suficiente para reafirmar essa convicção. Desse modo, mais do que
a influência do quadro internacional produzia-se no Brasil dos anos cinqüenta
48 Ver Marcos Cezar de Freitas. Álvaro Vieira Pinto. A personagem histórica e sua trama. 1º edição. São Paulo: Cortez, 1998
uma significativa alteração nas fronteiras políticas, doutrinárias e ideológicas
ancorada na questão nacional, e neste processo de remover fronteiras
encontravam-se os comunistas brasileiros.
Com essa atitude de dar mais ênfase ao jogo político e aos marcos
de uma democracia burguesa mais tolerante em vista das atividades dos
comunistas, pode o PCB alcançar um grau de influência junto às correntes de
esquerda democráticas como nenhum outro partido de concepções socialistas ou
comunistas logrou atingir ao longo da República brasileira. De certa forma, os
comunistas brasileiros anteciparam-se ao degelo promovida pela política de
coexistência pacífica inaugurada pelos líderes soviéticos, tendo à frente Nikita
Krushev. O resultado dessa mudança teve reflexos internos, com a separação de
parte da direção sob os comandos de João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro
Pomar, entre outros, que mais tarde conseguem atrair também Diógenes de
Arruda Câmara, um dos quadros mais afinados com o estilo de direção stalinista
no PCB, formando um novo partido comunista dissidente, o PCdoB49.
Assim, o “novo” PCB, tendo à frente Prestes e a maioria dos dirigentes
comunistas, passaram a se aproximar ainda mais dos trabalhistas do PTB
firmando, com eles, uma aliança que nascera desde a Resolução Sindical de
1952, mas só concretizada com o apoio dos comunistas à dobradinha para
presidente JK-JG, pois tanto Juscelino quanto Jango acenavam com a disposição
de ter os comunistas como aliados, ainda que incômodo para ambos, mas de
grande valia nas relações com o crescente movimento sindical daquela época.
Essa tática não resultou de uma estratégia urdida com vistas a beneficiar-se de
eventuais cargos na administração pública. Por ética e princípios, os comunistas
pretendiam tão-somente influir nas tomadas de decisão que dissessem respeito
aos trabalhadores. A base essencial desse encontro histórico foi construída pela
imprensa das duas correntes, especialmente pela imprensa comunista, e
49 Trata-se de um resgate da velha sigla, que por motivos de exigência da justiça eleitoral foi forçado a abrir mão da preposição para que os comunistas se assumissem como agremiação efetivamente brasileira, daí o PCB tornar-se Partido Comunista Brasileiro, e não como era assim chamado o então Partido Comunista do Brasil. Os dissidentes fizeram questão de enfatizar o uso da preposição, isto é, retomam a velha sigla; assim como farão com o jornal oficial, A Classe Operária;
transformou-se num legado importante que o golpe de 64 atacou desde os
primeiros instantes.
Contudo, as expectativas de grandes mudanças levadas pelas forças
políticas comprometidas com as Reformas de Base do governo Goulart foram
frustradas duplamente. Em primeiro lugar, pela ação arquitetada da direita em
consonância com os interesses estratégicos norte-americanos para a América
Latina, acentuados freneticamente depois dos rumos da Revolução Cubana. E,
em segundo lugar, pela total desarticulação dos esquemas previstos de
sustentação do governo, seja nas forças armadas ou junto as entidades sindicais.
O próprio desinteresse de Jango diante da maré montante que contra ele e seu
governo estava sendo armada, que incluía até passeata de mulheres – a “Marcha
da Família, com Deus pela Liberdade”50 - contra uma suposta República
sindicalista acabou por levá-lo a jogar a toalha antes de se cogitar de algum tipo
de resistência. Esta nem precisaria ser necessariamente armada, pois bastaria
acionar a diplomacia e buscar apoios junto aos governos próximos com base no
princípio da legalidade constitucional.
Nem os trabalhistas que cerravam fileiras com o governo, muito embora
muitos deles já começassem a se bandear para as hostes oposicionistas –
principalmente os bigorrilhos51 -, nem os comunistas conseguiram promover
formas de resistir aos golpistas, que com o passar do tempo tornaram-se maioria52
na sociedade e principalmente nos meios militares até então divididos. Ainda que
a sociedade se mostrasse igualmente dividida em face de uma encruzilhada a
apontar entre a estrada da tradição, portanto, da imobilidade diante dos desafios a
serem vencidos e, de outro, das reformas a sugerir mudanças que poderiam
conduzir o país para sendas mais consentâneas com as necessidades de seu povo,
o espírito conservador acabou tendo prevalência nesse entrechoque, o que talvez
explique a atitude refratária a qualquer movimento de defesa das instituições
violentadas. O fato é que com o Golpe vitorioso perdia a República e o país. O 50 Ver Solange de Deus Simões. Deus, Pátria e Família. As mulheres no golpe de 64. Petrópolis: Vozes, 1985;51 Termo usado e popularizado pela imprensa política para se referir ao grupo trabalhista sem princípios doutrinários ou ideológicos, que costumavam agir de acordo com interesses imediatos, pragmáticos;52 Sobre o processo de deslocamento da base de apoio dos militares a favor da solução golpista ver os volumes sobre a Ditadura do jornalista Elio Gáspari, editadas pela Companhia das Letras;
que seria construído como sociedade pela ditadura que se implantou foi à
mediocridade dos sonhos, a acalentar o individualismo desenfreado e o
progressivo abandono da fraternidade, fatal para a República e suas instituições.
Com a implantação do regime ditatorial a partir de 64, o Brasil ingressou
definitivamente na rota da expansão capitalista sob o domínio do grande capital
internacional. Cresceu economicamente beneficiado por uma conjuntura aonde
foi relativamente fácil atrair investimentos de capitais, e fez crescer ainda mais o
fosso social entre os grandes proprietários e detentores de riquezas e as grandes
massas deserdadas e jogadas à própria sorte. Com a agravante de não ter mexido
em sua estrutura fundiária, o Brasil arrastou nessa onde de crescimento
vertiginoso um atraso histórico e estrutural tão vivamente denunciado por
revoltas e movimentos que sustentaram no passado remoto ou recente as
demandas por uma justa distribuição agrária. Reivindicação tão justa que os
próprios militares, durante o governo Castelo Branco, introduziu o Estatuto da
Terra.53
Portanto, não fora a bandeira da reforma agrária radical que teria
despertado os militares para a quebra da legalidade. Havia entre eles um
sentimento de vivo interesse pelas concessões que reduzissem a influência dos
latifundiários nas zonas por eles dominadas. É evidente que receavam a presença
de lideranças comunistas a orientar alguns dos movimentos agrários, bem como
de lideranças comunistas à testa de alguns sindicatos importantes. Mas, a quebra
da disciplina e da hierarquia, tão ciosamente prezadas pela corporação viram-se
atingidas com a predisposição do presidente da República, João Goulart, de dar
apoio às reivindicações de subalternos, seja no caso dos marinheiros punidos e
imediatamente anistiados pelo presidente, quando do confronto com seus
superiores, seja na reunião dos sargentos e sub-tenentes em cuja sede
compareceu, poucos dias antes do desfecho do golpe. Nos dois casos, a atitude
de Jango irritou os mais indecisos e os fez trilhar o caminho golpista. Nada,
contudo, justifica um golpe, sobretudo quando esse golpe é feito contra os
53 Lei 4.504 assinada em 30 de Novembro de 1964;
interesses nacionais e populares, como aconteceu com o regime que se instituiu
com a quebra da legalidade constitucional.
Tudo o que viria a acontecer no país depois de instaurado um sistema que
se estendeu por cerca de 20 anos foi conseqüência de uma decisão bem pensada.
As resistências foram pouco a pouco quebradas, e o dispositivo de segurança
com vistas a preservação dessa agressão à República e à democracia política,
demonstrou a razão de tanto empenho dos que se envolveram naquela trama. Não
foi um gesto de defesa da democracia como foi propalado à época. Tampouco
buscou conter um suposto continuísmo presidencial com apoio dos comunistas.
O proselitismo abundantemente usado pelos intérpretes golpista para justificar o
fato baseou-se no mais puro anticomunismo e no total desprezo pelo povo. Toda
a parafernália de atos institucionais e de medidas excepcionais foi praticada num
contexto adverso para as repúblicas e suas instituições, mormente na América
Latina, palco das mais sangrentas ações contrárias às massas populares.