Post on 13-Nov-2018
Danilo soares Marques
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Danilo Soares Marques
Inimigo
Interno
Inimigo Interno
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Danilo soares Marques
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“Esta é uma obra de ficção. Qualquer
semelhança com pessoas mortas ou vivas será
mera coincidência”.
Inimigo Interno
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Agradecimentos
À esposa, filhos e amigos, pelo incentivo e
apoio.
Danilo soares Marques
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Dedicatória
A_______________________
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com carinho, respeito e
gratidão.
(a)______________________
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Danilo Soares Marques
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Danilo soares Marques
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Introdução
A Doutrina de Segurança Nacional se assentava na
tese de que o inimigo da Pátria não era mais externo, e sim
interno. Não se tratava mais de preparar o Brasil para uma
guerra tradicional, de um Estado contra outro. O inimigo
poderia estar em qualquer parte, dentro do próprio país,
ser um nacional. Para enfrentar esse novo desafio, era
urgente estruturar um novo aparato repressivo.
Diferentes conceituações de guerra – guerra psicológica
adversa, guerra interna, guerra subversiva – foram
utilizadas para a submissão dos presos políticos a
julgamentos pela Justiça Militar.
Assim, já no final de 1969, estava caracterizada a
instalação de um aparelho de repressão que assumiu
características de verdadeiro poder paralelo ao Estado no
país. Seus agentes podiam utilizar os métodos mais
sórdidos, mas contavam com o manto protetor
representado pelo AI-5 e pela autoridade absoluta dos
mandatários militares, incluindo-se aí a suspensão do
direito de habeas-corpus, a formalização de decretos
secretos e a edição de uma terceira Lei de Segurança
Nacional (DL 898), introduzindo prisão perpétua e até
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mesmo a pena de morte para opositores envolvidos em
ações armadas que tivessem causado morte.
A estrutura de informação montada fortaleceu sua
capacidade para travar a guerra surda que se deu por meio
dos interrogatórios com torturas, das investigações
sigilosas, da escuta telefônica, do armazenamento e
processamento de informações sobre atividades
consideradas subversivas. Eram enquadradas nesse
campo, desde simples reivindicações salariais e pregações
religiosas, até as formas de oposição por métodos
militares.
O DNI tinha sido criado em 15 de junho de 1964
para recolher e processar todas as informações de interesse
da segurança nacional. Seu comandante, com status de
ministro, mantinha encontros diários com o presidente da
República e tinha uma grande influência sobre as decisões
políticas do governo.
A partir de então, num clima de verdadeiro “terror
de Estado”, o regime lançou ofensiva fulminante sobre os
grupos armados de oposição, que tinham imposto uma
derrota desmoralizante aos militares que cederam no
seqüestro do embaixador norte-americano, trocando-o pela
libertação de 15 prisioneiros políticos. Daí em diante
concentrou seu fogo, em primeiro lugar, contra as
organizações que agiam nas grandes capitais: ABN, VR-8,
PExtBR, Ala Vermelha, BPR, AR-Palmares e muitas
outras. Na década de 70, combateu e exterminou uma base
guerrilheira em treinamento na região do Rio Carijó desde
1966. Entre 1975 e 1976 aniquilou 15 integrantes do
Comitê Central do Partido Revolucionário, em
16/12/1976, cercou uma casa onde se reunia a direção do
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Partido, matando três dirigentes e prendendo quase toda a
direção daquele partido.
Capítulo 01
Eram os primeiros anos da década de 1960,
período de medos e incertezas. O ano estava apenas
começando e os destinos da nação estavam para mudar
drásticamente.
Falava-se que a capital do país sairia do Rio de
Janeiro, o que para muita gente era um completo absurdo.
Monte do Carmo ardia sob o escaldante sol de
janeiro. As ruas tortuosas e com calçamento irregular
lembrava de longe as antigas cidades do século XIX.
Fincada nos contrafortes da Serra da Mantiqueira,
tendo aos pés o Rio Preto, Monte do Carmo guardava em
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suas ladeiras difíceis de subir, em suas praças, em suas
casas simples alguma coisa de enigmático.
A Igreja de Nossa Senhora do Carmo era uma
construção de 1875 que estava ligada à própria história da
cidade e tinha na sua paisagem casas antigas enriquecendo
ainda mais sua história.
A cidade era servida por um terminal rodoviário,
possuindo no seu interior lanchonetes, lojas de artesanato,
guichês e sanitários. Durante o seu tempo de existência já
passou por várias reformas, e mesmo assim encontrava-se
em péssimas condições. Recentemente foram iniciadas
várias obras que pretendiam deixar mais bonito e
agradável aquele lugar bastante frequentado.
Apesar do calor, soprava um vento morno vindo do
norte, prenúncio, segundo os mais antigos, de chuva forte.
As crianças brincavam embaixo de uma árvore, e
do outro lado da rua uma babá cuidava de uma
menininha de no máximo três anos de idade que brincava
com sua boneca. Dava para escutar ao longe a buzina do
pipoqueiro; os tico-ticos faziam a festa no monte de areia
jogado à frente de uma construção inacabada. Era possível
se escutar uns trinados de pássaros que saltitavam nos
galhos de algumas árvores.
Subindo a rua principal em direção à rua da feira, a
mais ou menos duzentos metros de distância,
desembocava-se numa ruela estreita, sem calçamento. A
rua ficava no plano e, quando chovia, encharcava e ficava
tal qual um pântano.
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A casa simples, caiada de uma cor que outrora fora
branco, mas que agora estava amarronzada pela ação da
chuva e da poeira, ostentava na sua fachada um número 55
pintado sobre papelão e coberto com plástico.
Na varanda xaxins de samambaias enfeitavam e
arejavam o ambiente, numa falsa sensação de natureza.
Pela porta azul tinha-se acesso à pequena sala
pintada de amarelo aguado. No silêncio escutava-se
apenas o tique-taque do velho relógio de madeira
esquecido ao lado da janela.
No centro, havia uma pesada mesa redonda de
madeira fosca, rústica, de um marrom escuro atravessado
por listras mais claras e assimétricas. Sobre a mesa, um
antigo vaso branco de porcelana, com seu esmalte já meio
corroído pelo tempo e decorado com finos ramalhetes de
rosas vermelhas, abrigava seis flores grandes e amarelas,
de pétalas aveludadas e pistilos brancos ainda úmidos.
Diante da mesa havia um grande sofá em estilo antigo,
cujo estofado azul escuro era repleto de manchas pretas.
Em uma pequena almofada quadrada listrada de verde
folha e bege repousava desleixadamente uma toalha
branca. Nela, um início de bordado representava uma
pequena casa rosa de portas e janelas azuis à margem de
um rio de águas tranquilas que nascia num vale
verdejante. Em uma das paredes, um único retrato: a foto
de um homem em idade avançada pele levemente
bronzeada e cabelos grisalhos curtos. Os lábios rudemente
fechados sob um bigode cuidadosamente aparado; o nariz
reto lhe dava um ar petulante e astuto. Vestia um terno
negro e a gravata era de um vermelho berrante sobre a
camisa branca; seus olhos, apesar de parados, pareciam
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observar pacientemente o silêncio em que a sala estava
imersa.
(...)
O cheiro de temperos exalava na pequena cozinha.
O calor do forno penetrava nas suas entranhas e o suor
formava pequenas gotículas na sua testa bronzeada pelo
sol de verão.
Carolina, ou Carol como era conhecida pelos
amigos era uma rapariga de dezenove anos; era
morena, desse moreno pálido; os grandes olhos negros,
vivos e travessos; a mimosa boca facilmente sorria pondo
à mostra duas ordens de belíssimos dentes; era alta e
esbelta, o andar livre e desembaraçado.
Ela não era feia; amorenada, com os seus traços
acanhados, o narizinho malfeito, mas galante, e, a sua
aparência transmitia um ar de bondade passiva, de
indolência de corpo, de ideia e de sentidos. A natureza
colocou-lhe na cabeça um tabloide homeopático de
inteligência, um grânulo de memória, uma pitada de
raciocínio – e plantou a cabeleira por cima. Uma cabeleira
negra, lisa e brilhante como os pelos de um corcel negro
depois de uma grande corrida.
Preparando a receita que sua mãe lhe ensinara,
sonhava com uma vida melhor numa cidade maior, em um
mundo melhor. Sonhava casar, mas não com alguém
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daquele lugar pequeno, mas com alguém com cultura e de
preferência com dinheiro, muito dinheiro.
Gostava de andar bem arrumada, unhas feitas,
cabelos escovados, pele hidratada. Cortava, recortava,
reformava suas roupas, pois novas não podia comprar. Seu
pai, que juntamente com o irmão mais velho eram os
únicos que sustentavam a família. Não ganhavam lá essas
coisas, mal dava pra comer e pagar as contas que, por
sinal, eram muitas. Seu irmão, rapaz de 21 anos, até se
esforçava, mas não conseguia um emprego fixo,
duradouro. Vivia de fazer biscates, um conserto aqui,
outro ali.
Balançou a cabeça como se, com este gesto,
quisesse espantar seus pensamentos. Concentrou-se na
receita que sua mãe lhe ensinara. Ainda dava para ouvir a
voz de sua mãe lhe explicando o passo-a-passo desta
iguaria.
Comprou uma peça de carne de segunda, pois de
primeira não podia, para assar no forno. Era uma carne
que, apesar de barata, muito lhe agradava para esse fim
(assada). Na feira comprou batatas, pimentão e tomilho.
No mercado, sal, azeite e vinho branco. Fez uma pasta
com a massa de pimentão, sal (pouco), azeite e o tomilho
esfarelado. Besuntou a carne com essa pasta e colocou
num tabuleiro de barro. Juntou o vinho, cobriu com papel
alumínio e levou ao forno durante duas horas. Sempre que
achava necessário regava com o molho que se formou. Ao
fim desse tempo juntou umas batatas novas pequenas, e
envolveu no molho. Aumentou o calor do forno e deixou
assar as batatas sem o papel de alumínio. Foi o tempo
suficiente para a carne ficar com a textura de se comer à
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colher. Simplesmente “brutalíssima"... como diria sua
mãe. Serviria com uma salada verde e arroz branco.
Desligou o forno e começou a arrumar a mesa, pois logo o
pai e o irmão estariam chegando. Não demorou muito para
ouvir a voz dos dois adentrando a sala e como sempre
falando em altos brados, costume este que ela detestava e
não raro era motivo de muitas brigas.
Sua mãe não viria para o almoço, pois arrumara
uma faxina pra fazer e iria almoçar na casa da patroa.
Carol pedia a Deus pra arrumar um bom casamento e tirar
a família desta vida. Não que passassem necessidades,
mas também nunca podiam sair da trilha.
― Opa! O cheiro "tá bão demais" ― exclamou
Juventino farejando o ar.
Estatura mediana, já chegando à casa dos
cinquenta, Juventino era um sujeito calado, que só falava
o necessário. Seus cabelos curtos, escuros, mas já
agrisalhando na fronte, era liso e brilhante como o de
Carol. Seu rosto magro, oval e tostado pelo sol revelava
rugas profundas de preocupação e angústia. Lembrava de
longe o retrato da parede da sala. Perscrutou com seus
olhos pequenos, escuros, vivos e brilhantes, o ambiente
como se procurasse algo errado. O nariz achatado
continuava farejando o ar como se quisesse identificar o
cardápio e cada um dos seus temperos. Como não
identificasse de imediato o prato que a seguir seria
servido, deu-se por contente e sentou-se à mesa, não sem
antes levar uma bronca de Carol: