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ISSN 2358-6974
Volume 1 JUL / SET 2014
Doutrina Nacional / Gustavo Tepedino / Luiz Edson Fachin / Paulo Lôbo / Anderson Schreiber / Paulo Nalin / Rodrigo Toscano de Brito
Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci
Jurisprudência Comentada / Marília Pedroso Xavier / William Soares Pugliese
Pareceres / Judith Martins-Costa
Atualidades / Bruno Lewicki
Resenha / Carlos Nelson Konder
Vídeos e Áudios / Caio Mário da Silva Pereira
Revista
Brasileira
de Direito
Civil
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 2
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o
diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades
doutrinarias, jurisprudenciais e legislativas no ambito do direito civil e de areas
afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e a experiência comparada,
que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:
Editorial;
Doutrina:
(i) doutrina nacional;
(ii) doutrina estrangeira;
(iii) jurisprudência comentada; e
(iv) pareceres;
Atualidades;
Vídeos e áudios.
Endereço para contato:
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20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino,
Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela
Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado
Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di
Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil.
Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Brasil.
Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor
Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Pietro Perlingieri – Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da
Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Eduardo Nunes de Souza
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Greco Bandeira
Tatiana Quintela Bastos
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SUMÁRIO
Editorial
Um novo Instituto de Direito Civil? – Gustavo Tepedino 6
Doutrina nacional
Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos – Gustavo
Tepedino
8
O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem
cirurgia de redesignação – Luiz Edson Fachin
36
Direitos e conflitos de vizinhança - Paulo Lôbo 61
Contratos eletrônicos e consumo - Anderson Schreiber 88
A força obrigatória dos contratos no brasil: uma visão contemporânea
e aplicada à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em
vista dos princípios sociais dos contratos - Paulo Nalin
111
O ambiente da nova contratualidade e a tendência da jurisprudência do
STJ em matéria contratual - Rodrigo Toscano de Brito
135
Doutrina estrangeira
L’opaco profilo del risarcimento civilisitico nella complessa disciplina
ambientale - Gerardo Villanacci
160
Jurisprudência Comentada
AGRG NO RESP 827.143/DF: PRECEDENTE OU DECISÃO
JUDICIAL? - Marília Pedroso Xavier e William Soares Pugliese
209
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Pareceres
Contrato de seguro. Suicídio do segurado. Art. 798, código civil.
Interpretação. Diretrizes e princípios do código civil. Proteção ao
consumidor. - Judith Martins-Costa
223
Atualidades
Metodologia do direito civil constitucional: futuros possíveis e
armadilhas - Bruno Lewicki
Resenhas
271
O segundo passo: do consumidor à pessoa humana - Carlos Nelson
Konder
277
Submissão de artigos
Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de
Direito Civil - RBDCivil
281
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EDITORIAL
UM NOVO INSTITUTO DE DIREITO CIVIL?
Gustavo Tepedino
O surgimento do Instituto Brasileiro de Direito Civil –IBDCivil coincide com
cenário paradoxal. De um lado, proliferam-se nas últimas décadas organizações não
governamentais, em movimento associativo que, desde o retorno ao regime democrático, parece
se espraiar por todos os domínios, de norte a sul do Brasil. Por outro lado, contudo, talvez como
sequela renitente de nossas raízes históricas, a agenda associativa revela-se, as mais das vezes,
corporativista, expressão ampliada de individualismo coronelista que contraria a função
primordial da organização coletiva da sociedade.
No caso do Direito, em que acentuado individualismo tem sido justificado,
tradicionalmente, pela atividade solitária do profissional ou do estudioso, algumas
importantíssimas associações, como o nosso fraterno IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito
de Família, o Brasilcon – Instituto Brasileiro de Direito e Política do Consumidor, e o Conpedi
- Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, revelaram-se experiências
estimulantes e vitoriosas, exemplos a serem seguidos. O caminho associativo, contudo,
encontra resistências cuja superação depende de alteração cultural significativa, destinada a
rejeitar modelos organizacionais em que a pauta de reivindicações não é acompanhada de
compromisso para com as próprias instituições e com a sociedade. Há que se cultivar o
voluntariado, o altruísmo e a preocupação a longo prazo com as estruturas institucionais. Nos
últimos anos, usou-se e abusou-se de entidades com propósitos desviantes de suas finalidades
institucionais, banalizando, maculando e por vezes estigmatizando o conceito de organização
social.
Daí a necessidade de se revisitar a prática associativa, tendo-se em mente não
somente os propósitos estatutários imediatos, mas o repensar do papel e do comportamento de
cada associado, com vistas a, extrapolando os confins internos de cada organismo, impregnar
os centros de pesquisa e as Instituições Universitárias, com seu potente efeito multiplicador, em
busca de verdadeira e renovada cultura associativa.
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Nessa esteira, pretende-se com o IBDCivil congregar os estudiosos do direito
civil contemporâneo, promovendo espaço, até então inexistente, de diálogo e construção
coletiva da dogmática e da pesquisa jurídica. Ao lado e além, portanto, de indispensável fórum
de discussão e difusão do conhecimento, papel desempenhado por essa Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, e da rede de professores e profissionais que poderão interagir
positivamente no panorama editorial e acadêmico brasileiros, há em nosso novo IBDCivil o
propósito de semear consciência organizacional ainda não sedimentada na sociedade brasileira.
A vida institucional sólida substitui, assim, o individualismo em todos os níveis, afastando-se
as exageradas pressões corporativas voltadas a privilégios setoriais abençoados pelo Poder
Público.
Na área jurídica, onde a carência de pesquisa coletiva ainda predomina, deve-
se apostar urgentemente na vida institucional e na construção de modelos de convivência social
participativos, democráticos e igualitários. No âmbito do direito civil, especialmente, pela
amplitude de seu campo de conhecimento, o impacto dessa mudança de paradigma há de
repercutir de maneira decisiva nas profissões jurídicas, contribuindo para aproximar as
construções teóricas da práxis judiciária e do direito vivo.
Alexis de Tocqueville, em seu clássico De la démocratie en Amérique, escrito
em 1835, assinalou que o sucesso da democracia americana decorreria, mais do que da
organização do próprio Estado, da habilidade, herdada dos ingleses, da arte de se associar. Esse
predicado talvez seja a carência lancinante de nossa sociedade, e seu desenvolvimento se mostra
impostergável para a construção de instituições democráticas. Trata-se de consolidar a
percepção de que o fortalecimento institucional é indispensável ao crescimento civilizatório,
permitindo o aperfeiçoamento da democracia, da solidariedade social e da igualdade de
oportunidades no exercício das liberdades fundamentais.
G.T.
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SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional
ESBOÇO DE UMA CLASSIFICAÇÃO FUNCIONAL DOS ATOS JURÍDICOS*
Outline of a Functional Classification of Legal Acts
Gustavo Tepedino Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo: A alteração da noção de autonomia repercute profundamente na teoria da
interpretação. Na medida em que o espectro e os limites (das categorias e institutos jurídicos, e
especialmente) da autonomia atribuída aos particulares não são mais uniformes e abstratos
(vontade individual submetida unicamente ao limite negativo da ilicitude), mas dependem dos
valores que lhes servem de fundamento (para promoção de interesses socialmente relevantes),
verifica-se a funcionalização dos institutos de direito civil. Nessa direção, propõem-se a
classificação dos atos e negócios jurídicos a partir de sua análise funcional, tendo-se me conta
a atividade concretamente desenvolvida e os limites positivos impostos pelos valores e
princípios constitucionais (legalidade constitucional).
Palavras-chave: 1. Autonomia privada; 2. Ato jurídico; 3. Negócio jurídico; 4. Atividade
contratual sem negócio.
Abstract: The mutation of the notion of private autonomy has deep repercussions in the theory
of interpretation. As the range and the limits (of juridical categories and institutions, and
specially) of private autonomy attributed to individuals are no longer uniform and abstract
(individual will submitted solely to the negative limit of the illicit), but also depend on the
values that serve as their foundation (for the promotion of socially relevant interests), one can
verify the functionalization of private law institutions. Thus, this article proposes the
classification of juridical acts based on their functional analysis, taking into account the activity
that has been concretely developed and the positive limits imposed by constitutional values and
principles (constitutional legality).
Keywords: 1. Private autonomy; 2. Juridical act; 3. Juridical transaction; 4. Contractual
activity without juridical act.
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Sumário: 1. Autonomia privada e perspectiva funcional da atividade jurídica (fatos, atos e
negócios) – 2. Fato social e fato jurídico: superação da distinção – 3. Classificação dos fatos
jurídicos: fato, ato e negócio jurídico – os chamados atos-fatos – 4. A noção de negócio jurídico
– 5. Ato jurídico stricto sensu, ato-fato e negócio jurídico em uma perspectiva funcional – 6.
Negócio jurídico no Código Civil e seus três planos de análise: elementos, requisitos, fatores
de eficácia – 7. Classificação dos negócios jurídicos – 8. Atividade contratual sem negócio
jurídico.
1. Autonomia privada e perspectiva funcional da atividade jurídica (fatos, atos e negócios)
As liberdades fundamentais, asseguradas pela ordem constitucional,
permitem a livre atuação das pessoas na sociedade. Expressão de tais liberdades no âmbito das
relações privadas é a autonomia privada, como poder de auto-regulamentação e de auto-gestão
conferido aos particulares em suas atividades. Tal poder constitui-se em princípio fundamental
do direito civil, com particular inserção tanto no plano das relações patrimoniais, na teoria
contratual, por legitimar a regulamentação da iniciativa econômica pelos próprios interessados,
quanto no campo das relações existenciais, por coroar a livre afirmação dos valores da
personalidade inerentes à pessoa humana.
O principio da autonomia privada, entretanto, não é absoluto, inserindo-se
no tecido axiológico do ordenamento, no âmbito do qual se pode extrair seu verdadeiro
significado.1 Encontra-se informado pelo valor social da livre iniciativa, que se constitui em
fundamento da República (art. 1º, IV, C.R.),2 corroborado por numerosas garantias
fundamentais às liberdades, que têm sede constitucional em diversos preceitos, com conteúdo
negativo e positivo. Assume conteúdo negativo no princípio da legalidade, que reserva ao
legislador o poder de restrição a liberdades, tornando lícito tudo o que não for legalmente
proibido. Assim o art. 5º, II, da Constituição da República, em cuja linguagem se lê: “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
1 Conforme leciona JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, não há antecedência cronológica da relação social em
face da relação jurídica; ao revés, “o Direito é em si forma da vida social. Ele vive nas relações sociais, que muitas
vezes seriam inteiramente impensáveis sem a norma que as unifica (...). A concretização da norma cria sempre
realidade social valorada” (Direito Civil – Teoria Geral. Volume III. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 42). A
liberdade e, especificamente, a autonomia privada, assim, não correspondem a noções anteriores ao Direito, mas
são construídas juridicamente, no âmbito da axiologia do ordenamento.
2 Destaca a proteção constitucional da livre iniciativa como princípio informador da autonomia privada,
FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 359: “A liberdade de iniciativa
econômica é a fonte legitimadora da autonomia privada no campo constitucional, como princípio básico da ordem
econômica e social. São conceitos correlatos, mas não coincidentes, na medida em que a primeira focaliza o
aspecto econômico, e a segunda, o jurídico, do mesmo fenômeno, havendo, entre eles, uma relação instrumental”.
No mesmo sentido, ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 240.
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Na mesma direção, dotado de conteúdo meramente negativo, situa-se o art.
170, parágrafo único, do Texto Maior, o qual, ao fixar os princípios gerais da atividade
econômica, dispõe: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Tal conteúdo não esgota o sentido constitucional do princípio da autonomia
privada, que corporifica as liberdades nas relações jurídicas de direito privado. Segundo o Texto
Constitucional, a liberdade de agir, objeto das garantias fundamentais insculpidas no art. 5º,
associa-se intimamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), fundamento
da República, da solidariedade social (art. 3º, I) e da igualdade substancial (art. 3º, III), objetivos
fundamentais da República. Significa dizer que a livre iniciativa, além dos limites fixados por
lei, para reprimir atuação ilícita, deve perseguir a justiça social, com a diminuição das
desigualdades sociais e regionais e com a promoção da dignidade humana.3 A autonomia
privada adquire assim conteúdo positivo, impondo deveres à autoregulamentação dos interesses
individuais, de tal modo a vincular, já em sua definição conceitual, liberdade à
responsabilidade.4
Essa perspectiva caracteriza o princípio da autonomia privada no direito
contemporâneo, desde a promulgação, em diversos países da Europa Continental, ao longo do
Século XX, de Constituições intervencionistas, como o Texto Constitucional brasileiro de 1988,
que estabeleceram metas a serem alcançadas pelos particulares ao lado da liberdade de contratar
e circular riquezas. Anteriormente, por conta de conhecido processo histórico que serve de
moldura para as construções dogmáticas dos Séculos XVIII e XIX, o poder dos particulares de
gerir seus interesses era designado como autonomia da vontade, a enfatizar, já em sua definição,
o viés voluntarista mediante a qual se pretendia afastar a ingerência dos Estados nos espaços
jurídicos privados.5 Essa concepção, embora ainda presente na manualística, não se mostra
3 Na lição de PIETRO PERLINGIERI, “A Constituição operou uma reviravolta qualitativa e quantitativa na
ordem normativa. Os chamados limites à autonomia, postos à tutela dos contratantes vulneráveis, não são mais
externos e excepcionais, mas, sim, internos, enquanto expressão direta do ato e do seu significado constitucional”
(O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358).
4 Nesta direção, leciona FEDERICO CASTRO Y BRAVO, El Negocio Juridico, Instituto Nacional de Estudios
Politicos, Madrid, 1967, p. 29, segundo o qual, na dinâmica dos negócios jurídicos, a definição de finalidades a
serem alcançadas pelos particulares “no sopone disminuir el alcance de la autonomía de la volontad, sino pó el
contrario tenerla em cuenta em su doble aspecto de libertad y de responsabilitad”.
5 Assim define a autonomia da vontade FRANCISCO AMARAL, diferenciando-a da autonomia privada:
“Autonomia da vontade como manifestação de liberdade individual no campo do direito, e autonomia privada,
como poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale dizer, o poder de alguém dar a si próprio um
ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituído pelo agente, diversa mas
complementarmente ao ordenamento estatal” (Direito Civil: Introdução, cit., p. 347).
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consentânea com o sistema civil-constitucional. A ordem pública constitucional valoriza a
liberdade na solidariedade, impondo que a autonomia privada seja vista como poder de
regulamentação não necessariamente vinculada à vontade subjetiva, já que o interesse público
sobrepõe ao poder de agir dos particulares a tutela de valores socialmente relevantes. Alude-se,
nesta direção, à autonomia negocial, como noção substitutiva do conceito de autonomia
privada, por melhor traduzir o poder conferido aos particulares para deflagrarem negócios, não
necessariamente definindo os próprios regulamentos de interesse, dependendo dos interesses
em jogo.6 A autonomia privada, assim analisada, embora assegurada constitucionalmente, se
reduz, em algumas hipóteses normativas, à mera liberdade de iniciativa.
Nessa vertente, de acordo com o setor da economia, há maior ou menor
compressão do espaço de autonomia em favor de fontes heterônomas de integração dos modelos
de regulamentação do direito civil.7 Basta pensar nos contratos de locação residencial ou nas
relações de consumo para verificar que a debacle do império da vontade, ostensivamente
conduzida pelo legislador, permite compatibilizar interesses patrimoniais com valores
existenciais em potencial colisão. A autonomia privada convive, assim, com a intervenção
legislativa destinada a promover o direito à moradia, a solidariedade, a dignidade da pessoa
humana e a igualdade substancial, reduzindo-se situações de vulnerabilidade.
A alteração da noção de autonomia repercute profundamente na teoria da
interpretação. Tradicionalmente, a dogmática se restringia ao aspecto estrutural das categorias
jurídicas, ou seja, seus elementos constitutivos e os poderes atribuídos aos titulares. Na medida
em que o espectro e os limites (das categorias e institutos jurídicos, e especialmente) da
autonomia atribuída aos particulares não são mais uniformes e abstratos (vontade individual
submetida unicamente ao limite negativo da ilicitude), mas dependem dos valores que lhes
servem de fundamento (para promoção de interesses socialmente relevantes), alude-se à
funcionalização dos institutos de direito civil. Assim, as relações jurídicas estruturadas para a
proteção de interesses patrimoniais e individuais tornam-se vetores de interesses existenciais.
6 O conceito de autonomia negocial é desenvolvido por PIETRO PERLINGIERI, O Direito Civil na Legalidade
Constitucional, cit., p. 338.
7 Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma STEFANO RODOTÀ que o contrato, embora
decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção de fontes exteriores, alheias à vontade
individual: “è evidente, allora, che le diverse fonti si ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa
rilevare soltanto che tutte convergono nella finalità comune della costruzione del regolamento contrattuale;
rispetto a quest’ultimo la particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando esclusivamente
il modo in cui ciascuna di esse, in sé considerata, opera” (Le fonti di integrazione del contrato, Milano, Giuffrè,
2004, p. 87).
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Em última análise, o espaço de autonomia privada (a estrutura dos poderes conferidos para
exercício de direitos dela decorrentes) é determinado pela função que desempenha na relação
jurídica.8
Tal reflexão interfere diretamente na teoria dos atos e negócios jurídicos, no
sentido de superar a abordagem meramente estática de seus elementos estruturais – forma e
conteúdo –, para se alcançar a função – o porquê e para quê –, em modo a se identificar a
legitimidade objetiva da alteração propiciada pela autonomia privada nas relações jurídicas pré-
existentes.9
2. Fato social e fato jurídico: superação da distinção
Se a atuação do direito depende visceralmente dos fatos, em recíproco
condicionamento, a conceituação analítica das diversas espécies de fatos (jurídicos) mostra-se
indispensável para a definição da disciplina normativa correspondente. Fato social é o
acontecimento que, submetido à incidência do direito, torna-se, tecnicamente, fato jurídico.
Afirma-se, por isso mesmo, que um fato qualquer – pré-jurídico –, a partir do momento em que
deixa de ser indiferente ao direito, adquire aptidão para gerar efeitos jurídicos. Em
consequência, segundo lição clássica, fatos jurídicos são os eventos mediante o quais as
relações jurídicas nascem, se modificam e se extinguem.10 Ou, em refinada síntese, “os fatos
aos quais o direito atribui relevância jurídica no sentido de alterar as situações a eles pré-
existentes, e de configurar situações novas, às quais correspondem novas qualificações
jurídicas”.11
8 A respeito do conceito de função, cf. NORBERTO BOBBIO, Em direção a uma teoria funcionalista do direito.
Da estrutura à função. São Paulo, Manole, 2007, p. 53.
9 Sobre o ponto, magistralmente, EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, Torino, UTET,
1952, 2a ed., p. 170 e ss.
10 Assim o afirma, citando SAVIGNY, CLOVIS BEVILAQUA. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1976, p. 210. No mesmo sentido: ROBERTO DE RUGGIERO, Instituições de direito civil, vol. 1,
Campinas, Bookseller, 2005, p. 310; MIGUEL REALE, Lições preliminares de direito, São Paulo, Saraiva, 2012, p.
203. Do mesmo modo, afirma FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introdução, cit., p. 379. Conforme lembra,
oportunamente, ALBERTO TRABUCCHI: “Alcune volte l’intento negoziale non è quello di produrre nuove
consequenze giuridiche, ma di confermare una situazione esistente eliminando dubbi sulla sua consistenza
concreta. Si parla in tal caso di negozio di accertamento, nel quale c’è una volontà dichiarata, ma gli effetti giuridici
no saranno nuovi effetti voluti, bensí quelli della situazione accertata” (Istituzioni di diritto civile, Padova,
CEDAM, 1993, p. 124).
11 EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 3. No original, o texto em sua integralidade:
“Fatto giuridico sono pertanto i fatti ai quali il diritto attribuisce rilevanza giuridica nel senso di mutare le situazioni
ad essi preesistenti e di configurare situazioni nuove, cui corrispondono nuove qualificazioni giuridiche. Lo
schema logico del fatto giuridico, ridotto alla espressione più semplice, si ottiene prospettandolo come un fatto
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A construção, contudo, deve ser analisada com reservas, por duas razões
fundamentais. Em primeiro lugar, se é verdade que o dado social – como elemento da realidade
fática – não se confunde com o dado normativo – a norma jurídica –, parece arbitrário considerar
alguns fatos simplesmente alheios ao direito, ou despidos de relevância ou pressupostos de
eficácia, já que a experiência normativa alcança integralmente a vida social, mesmo os espaços
de liberdade que o direito, valorando-os, preserva deliberadamente contra qualquer tipo de
regulamentação. Diante de tal circunstância, afirma-se que todo fato social interessa ao direito,
já que potencialmente interfere na convivência social e, portanto, ingressa no espectro de
incidência do ordenamento jurídico.12 Na doutrina brasileira, argutamente assinalou-se: “não
há fato indiferente ao Direito, pois é o próprio Direito, através da norma positiva que, não
regulando uma conduta ou uma circunstância, chancela tal conduta ou tal circunstância de
irrelevante ou sem juridicidade”.13
Em segundo lugar, qualquer fato social é percebido de acordo com a
compreensão cultural da sociedade em determinado momento histórico, e assim também é
valorado pelo direito. Imagine-se o interesse pelo meio ambiente equilibrado; as interferências
consideradas normais de vizinhança; ou a crescente exposição da imagem das pessoas (como
comparar a repercussão de alguém na praia, há 50 anos, em sucintos trajes de banho e nos dias
de hoje).14 O direito traduz a realidade fática, a qual, em contrapartida, reflete a valoração da
dotato di certi requisiti presupposti dalla norma, i il quale incide in una situazione preesistente (iniziale) e la
trasforma in una situazione nuova (finale), per modo da costituire, da modificare o da estinguere poteri e vincoli o
qualifiche e posizioni giuridiche”.
12 Afirma PIETRO PERLINGIERI: “‘Fato’ não é um termo com um único significado: o ‘fato’ objeto de exame
de uma ciência natural não é o ‘fato’ objeto de uma ciência prática (como o direito), para a qual o fato é todo
evento que invoque a ideia de convivência (ou do caráter relacional)” (O direito civil na legalidade constitucional,
Rio de Janeiro, Renovar, 2009, p. 640).
13 LUIZ EDSON FACHIN, Novo Conceito de Ato e Negócio Jurídico: consequências práticas, Curitiba,
PUC/PR, 1988, p. 1. Com efeito, a afirmativa de que toda liberdade humana é juridicamente relevante (porque
garantida pelo Direito) não implica a negação de que existam liberdades não regulamentadas por lei, como registra
STEFANO RODOTÀ: “Ora ci troviamo di fronte a situazioni in cui l’indicare il fatto e dire il diritto appartengono
alla stessa persona, nel senso almeno che esiste un potere di scelta tra risposte giuridiche diversificate o, più
radicalmente, di entrata in uno spazio vuoto di diritto. Si può, dunque, uscire dal diritto e rientrare nella vita” (La
vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006, p. 62). Para uma perspectiva civil-constitucional
da questão, v. também SAMIR NAMUR, A inexistência de espaços de não direito e o princípio da liberdade, Revista
Trimestral de Direito Civil, Vol. 42, abr.-jun./2010; PAULA GRECO BANDEIRA, Espaços de não direito e as
liberdades privadas, Revista Trimestral de Direito Civil, Volume 52, out.-dez./2012.
14 O exemplo é configurado por Eros Grau, Técnica Legislativa e Hermenêutica Contemporânea, in
Gustavo Tepedino (org.), Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional, São
Paulo, Atlas, 2008, p. 286.
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ordem jurídica (como apreendida pelo grupo social).15 Há, portanto, íntima comunicação entre
fato e norma, de tal modo que não se pode conceber um desses elementos sem o outro. Supera-
se, desse modo, a distinção entre fato social e fato jurídico. Todo fato social – porque
potencialmente relevante para o direito, e porque moldado pela valoração (social decorrente)
do elemento normativo (o qual, ao mesmo tempo, é construído na historicidade evolutiva da
sociedade), é fato jurídico.
Compreende-se, assim, o vetusto brocardo latino ex facto oritur ius. Do fato
provém o direito. Vale dizer, sem se confundirem norma e fato, estes reciprocamente se
condicionam.16 A hipótese fática de incidência da norma (suporte fático, que equivaleria à
expressão italiana fattispecie ou à alemã Tatbestand) identifica-se com a descrição normativa,
ou seja, é construída pela valoração que lhe atribui o direito. Tenha-se como exemplo um
contrato de locação. As regras sobre ele incidentes dependerão das circunstâncias fáticas – valor
do aluguel, estado do imóvel, pontualidade no cumprimento das obrigações –, todas elas
capazes de produzir efeitos modificativos da relação jurídica, gerando novos fatos jurídicos,
que alteram o direito pré-existente e se amoldam, contemporaneamente, à previsão normativa
pré-existente. Por isso mesmo, considera-se “um equívoco conceber a fattispecie como
qualquer coisa de puro fato, despida de qualificações jurídicas, ou como qualquer coisa
materialmente separada ou cronologicamente destacada da nova situação jurídica
correspondente. Em realidade, esta não é senão um desenvolvimento daquela, uma situação
nova na qual se converte a situação preexistente com a superveniência do fato jurídico”.17
15
A conclusão de LUIZ EDSON FACHIN, ob. loc cit., é irrecusável: “ingressam no campo jurídico os fatos
valorados pela norma. Tais são os fatos jurídicos, que assim se constituem sem deixar o campo fático, uma vez
que este e aquele (o normativo) se interpenetram. Esse agasalho da norma é a guardiã ao suporte fático, sem
suprimi-lo. Exsurge, aí, a juridicidade que é por conseguinte um componente do binômio fato-norma”.
16 EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 5, sobre a máxima romana esclarece: “si
vuol dire con essa che la legge di per sé sola non dà mais vita a nuove situazioni giuridiche se non si avverano
taluni fatti da essa previsti: non già che il fatto si trasformi in diritto, bensì una situazione giuridiche nuova”. Em
direção análoga, MIGUEL REALE, Lições preliminares de direito, cit., p. 200: “Devemos entender, pois, que o
Direito se origina do fato, porque, sem que haja um acontecimento ou evento, não há base para que se estabeleça
um vínculo de significação jurídica. Isto, porém, não implica a redução do Direito ao fato, tampouco em pensar
que o fato seja mero fato bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito, são fatos humanos ou fatos naturais
objeto de valorações humanas”.
17 EMILIO BETTI, ob. loc. cit. No original, escrito em 1950: “Appare già dalla proposta definizione del fatto
giuridico che sarebbe un errore concepire la fattispecie come qualcosa di puro fatto, scevra di qualificazioni
giuridiche, o come qualcosa di materialmente separato o di cronologicamente staccato dalla nuova situazione
giuridica che vi corrisponde. In verità questa non è che uno svolgimento di quella, una situazione nuova in c si
converte la situazione preesistente col sopravvenire del fatto giuridico”.
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Em definitivo e afinal, como registrado em (esquecida) lição introdutória de
insuperável eloquência, “o encontro do Direito com os fatos verifica-se, portanto, não no
momento em que estes ocorrem, senão já antes, quando aquele lhes infunde potencialidade
jusgenética. Logo, o fato e o fato jurídico não são categorias ontológicas distintas, mas atitudes
axiologicamente diversas diante da mesma fenomenidade”.18
3. Classificação dos fatos jurídicos: fato, ato e negócio jurídico – os chamados atos-fatos
Afirma-se que os fatos (jurídicos) podem provir espontaneamente da natureza
(fatos naturais) ou da atuação humana (fatos humanos). Os primeiros são também chamados de
fatos jurídicos stricto sensu. Distinguem-se os fatos naturais em ordinários (o nascimento, a
morte, o curso dos rios) e extraordinários (fortuitos, imprevisíveis ou inevitáveis). Já os fatos
humanos, atribuíveis ao homem, traduzem-se em fatos lícitos (valorados positivamente pela
ordem jurídica) e fatos ilícitos lato sensu (reprovados pelo direito), que, a seu turno, se
distinguem em atos ilícitos (stricto sensu), dos quais decorrem o dever de reparar, e atos
antijurídicos, contrários ao direito e com eficácia distinta da reparação.19
Os fatos lícitos, ou seja, atribuídos à atividade humana e não reprovados pelo
direito, compreendem os negócios jurídicos, os atos jurídicos stricto sensu, também designados
atos lícitos de conduta, e os chamados atos-fatos, reconhecidos por parte da doutrina.20
Em imagem gráfica pode-se melhor perceber a classificação:
18
JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio: em busca da precisão conceitual, in Estudos em
Homenagem ao Professor Washington de Barros Monteiro, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 256. O autor aduz: “a
juridicidade não é um atributo intrínseco à materialidade dos fatos, mas uma propriedade que o Direito lhes
acrescenta, com base em puras razões de conveniência ou oportunidade. Logo é equivocado pretender-se fundar
uma tipologia dos fatos jurídicos a partir de uma angulação estática. Não há fatos jurídicos a priori. É no
dinamismo da sua apropriação axiológica que os fatos adquirem ou não o atributo, eminentemente extrínseco, de
serem jurídicos”.
19 A classificação é adotada por ROSE VENCELAU MEIRELES. O negócio jurídico e suas modalidades, in
Gustavo Tepedino (coord.), A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, Rio
de Janeiro: Renovar, 2003, p. 183: “Os atos antijurídicos se distinguem dos atos ilícitos (art. 186), sendo atos que,
por estarem em desconformidade com a ordem jurídico, não são merecedores de tutela”.
20 Adotam, igualmente, a designação “ato jurídico stricto sensu”, dentre outros, CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA, Instituições de Direito Civil: Volume I, Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 397 e MIGUEL REALE, Lições
Preliminares de Direito, cit., p. 209. Designando o ato jurídico stricto sensu como ato lícito de conduta, SAN
TIAGO DANTAS, Programa de Direito Civil: Teoria Geral, Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 211. No que tange à
classe dos atos-fatos jurídicos, seu maior defensor na doutrina brasileira é, provavelmente, Pontes de Miranda, que
assim os define: “Os atos-fatos são fatos humanos, em que não houve vontade, ou dos quais se não leva em conta
o conteúdo de vontade, aptos, ou não, a serem suportes fáticos de regras jurídicas” (Tratado de Direito Privado,
Parte Geral, Tomo I: Pessoas Físicas e Jurídicas, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 158).
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Fatos naturais
(fatos jurídicos
stricto sensu)
Fatos
jurídicos i) Ato ilícito
lato sensu Fatos ilícitos
Fatos humanos ii) Ato antijurídico
(atos jurídicos
lato sensu) i) Negócio jurídico
Fatos lícitos ii) Ato-fato jurídico
iii) Ato jurídico stricto sensu
Muito se disputa acerca da terminologia empregada, especialmente no que
concerne à inclusão dos atos ilícitos no âmbito dos atos jurídicos. Como bem destacado em
doutrina, embora terminologicamente fosse preferível afastar a ilicitude da qualidade jurídica,
consolidou-se, na linguagem corrente, a qualificação de jurídico não como atributo de
legitimidade, senão como gênero, a traduzir simplesmente a eficácia jurígena
independentemente de valoração positiva ou negativa: “quando se fala em ato jurídico, o que
se tem em vista é a relevância do acontecimento para o Direito, não a sua conformidade ao
Direito”.21
4. A noção de negócio jurídico
A categoria dos atos jurídicos associa-se ao agir humano e suas consequências
– e divergências – decorrem do papel atribuído, nessa atuação, à vontade humana, em maior ou
menor grau, daí decorrendo consequências diversas.
Chama-se negócio jurídico o regulamento de interesses estipulado pela
autonomia privada, ou autoregulamento ou ato jurídico apto a regular interesses. Constitui-se
21
JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio: em busca da precisão conceitual, cit., p. 259, o qual
anota: “Entre nós é da tradição subentender em ato jurídico a conformidade com o Direito (...) A bem da
estabilidade terminológica conviria, pois, não insistir no outro uso, cuja correção, entretanto, não pode ser
contestada. Ocorre que a língua não é apenas um fato da razão, mas também um fato socialmente estabelecido”.
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no principal instrumento engendrado pelo direito civil para o exercício da autonomia privada.
Formulação teórica do final do Século XVIII, a noção de negócio traduz o esplendor do
voluntarismo, procurando assegurar o mais amplo espaço para a autonomia privada regular seus
interesses.22 Daí sua definição tradicionalmente estabelecida como “manifestação de vontade,
dirigida a um escopo prático que consiste na constituição, modificação ou extinção de uma
situação juridicamente relevante”.23
Por ter sido concebido como instrumento de consagração da vontade
individual, a noção de negócio jurídico avoca acirradas disputas ideológicas a partir do final do
Século XIX e por todo o Século XX, ao longo das diversas fases e graus de intervenção do
Estado na economia de países de tradição romano-germânica. Os reflexos dessa controvérsia
ainda se fazem sentir nos dias de hoje, com significativas consequências práticas na aferição do
papel da vontade em tema de invalidade dos negócios.
Em síntese estreita, podem-se dividir as diversas posições doutrinárias em
dois grupos conhecidos como teorias subjetivista e objetivista. Pela primeira, o negócio jurídico
é definido como ato de vontade dirigido à produção de efeitos jurídicos. Concebida pelos
fautores do modelo voluntarista, tal concepção, em suas múltipas vertentes, a partir da
construção de Savigny, encontra-se amplamente divulgada na doutrina brasileira.24 A partir de
tal formulação, cumpre ao intérprete buscar a intenção do agente para aferir a legitimidade do
negócio, já que é o vetor volitivo, isto é, a vontade real, o elemento essencial dessa categoria
jurídica.
Em contrapartida, posicionaram-se os fautores da teoria objetivista, para os
quais a essência do negócio jurídico é a declaração como tal percebida, reconhecida e
considerada legítima pelo ordenamento, independentemente da intenção que possa ter tido o
emissor. O negócio, portanto, embora resulte de manifestação de vontade, desprende-se dela,
produzindo os efeitos autorizados pela ordem jurídica sem que se deva, portanto, por
irrelevante, perquirir a intenção do agente emissor da vontade.
22
Assim destaca FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: cit., p. 389: “A categoria do negócio jurídico surge,
assim, como produto de uma filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do sujeito, com base na liberdade
e igualdade formal, constrói uma figura unitária capaz de englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos
decorrentes das manifestações de vontade dos sujeitos no campo da sua atividade jurídico-patrimonial”.
23 ALBERTO TRABUCCHI, Istituzioni di diritto civile, Padova, CEDAM, 1993, p. 124.
24 V. SAVIGNY, Traité de Droit Romain, Tome 3ème, Paris, Firmin Didot Frères, 1856, p. 3 e ss. Sobre as
diversas correntes, ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia, São
Paulo, Saraiva, 2002, p. 4 e ss.
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Ambas as posições doutrinárias refletem períodos históricos antagônicos, de
coroamento do voluntarismo (individualismo iluminista que perdura do Século XVIII ao XIX),
e de sua rejeição (perspectiva socializante e intervencionista do final do Século XIX e primeira
metade do Século XX). 25 Levadas aos extremos, tais teorias não logram resolver a preocupação,
de ordem eminentemente prática, de conciliar o respeito ao alvedrio individual com a segurança
atribuída à manifestação de vontade, tal qual declarada.
Nesta linha de preocupação, desenvolveram-se, no âmbito das construções
objetivas, posições menos radicais e mais sofisticadas, admitindo a importância da vontade,
embora considerada como anterior ao negócio, em relação ao qual é a declaração, como
manifestação exterior, e não o ato volitivo em si considerado, elemento essencial. A vontade,
por sua vez, não decorre do simples querer individual, senão da autonomia privada como poder
autorizado e temperado, por balizas valorativas, pelo ordenamento jurídico.26 O principal
artífice de tais posições é Emilio Betti, formulador da teoria preceptiva. Segundo tal orientação,
o reconhecimento social da vontade tem por referência não elementos subjetivos internos ao
agente, senão a declaração, na forma como exteriorizada, que se constitui, assim, em preceito
vinculativo.
A vinculação do sujeito emissor da vontade à declaração é corroborada por
ulteriores elaborações doutrinárias, em especial as teorias da autoresponsabilidade e da
confiança. Pela primeira, embora o elemento subjetivo seja o vetor do ato de vontade, a
vinculação à declaração decorre da responsabilidade pessoal do seu emissor pela respectiva
exteriorização. Pela teoria da confiança, o preceito emanado pelo negócio, em virtude da
declaração, vincula o seu emissor em virtude da expectativa despertada no corpo social quanto
à correpondência entre a manifestação de vontade e a intenção do agente. Cabe ao direito,
portanto, prestigiar quem confiou na higidez da declaração volitiva.
A teoria da confiança ganha destaque no direito positivo pátrio, com intensa
repercussão em diversos dispositivos, pelos quais se considera o emissor responsável por suas
declarações, na forma como exteriorizadas, mesmo em situações de invalidade de negócios, em
25
Abordando essa passagem do Estado liberal do Século XIX para o Estado intervencionista, v. FRANCISCO
AMARAL, Direito Civil: Introdução, cit., p. 363.
26 Tratando da limitação da autonomia privada pelas balizas do ordenamento jurídico, expõe ORLANDO
GOMES, Introdução ao Direito Civil,cit., p. 242: “Mas esse vínculo, essa autolimitação, decorre, precisamente, do
ordenamento jurídico que lhe reconhece o poder de regular, pela forma permitida, seus interesses”.
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face de terceiros de boa-fé, ou seja, que desconheciam a causa da invalidade e que, por isso
mesmo, confiaram e agiram em conformidade com a expectativa gerada pela declaração.27
Com a redução do papel da vontade no direito contemporâneo (paralela ao
crescimento do papel do Estado na relações econômicas) e a consequente remodelação do
conceito de autonomia privada (como poder atribuído aos particulares associados a deveres
negativos e positivos), funcionalizada a valores constitucionalmente tutelados, mostra-se mais
consentânea com o sistema a definição de negócio jurídico como regulamento de interesses que
agrega fontes heterônomas ao autoregulamento.
Com efeito, pareceria ingênuo reduzir o autoregulamento preceptivo, em que
se constitui o negócio, em ato de vontade, pressuposto nem sempre íntegro da declaração. Como
melhor se verá adiante, a vontade, em si mesma considerada, não é elemento do negócio
jurídico, senão a declaração de vontade, conforme é manifestada e percebida no mundo social.28
5. Ato jurídico stricto sensu, ato-fato e negócio jurídico em uma perspectiva funcional
Ao lado dos negócios jurídicos, situam-se os atos jurídicos stricto sensu,
assim considerados os atos jurídicos que não se destinam a regulamentar, autonomamente,
interesses privados. Limitam-se a executar preceitos previamente estabelecidos por lei ou por
negócio jurídico antecedente, reduzindo-se, portanto, em sua ontologia, o espaço de atuação (e
de controle) da autonomia privada.
Afirma-se, por isso mesmo, que nos atos jurídicos stricto sensu ou atos lícitos
de conduta, a vontade tem papel menos relevante, já que se limita a dar eficácia a interesses
jurídicos previamente regulados por lei ou por negócio jurídico anterior. O agente, ao praticá-
los, submete-se às consequências jurídicas que lhes estão previamente reservadas.29
27
Percebe-se, assim, como a noção subjetiva de boa-fé pode influenciar a figura da boa-fé objetiva, embora
se trate de noções diferentes, conforme explica JUDITH MARTINS-COSTA: “a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma
condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se
estar lesando direito alheio, ou na adstrição ‘egoísta’ à literalidade do pactuado. Diversamente, ao conceito de boa-
fé objetiva estão subjacentes as ideias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta
fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do alter,
visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado” (A boa-fé no direito privado, São Paulo:
RT. 1999, p. 412).
28 Nesse sentido, ensina ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico, cit., p. 82: “A nosso ver, a
vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a declaração de vontade. Cronologicamente, ele
surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa nesse momento; todo o processo volitivo anterior
não faz parte dele; o negócio todo consiste na declaração”.
29 ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, na esteira da teoria preceptiva, define o negócio como “um ato
cercado de circunstâncias que fazem com que socialmente ele seja visto como destinado a produzir efeitos
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Como acima destacado, a aptidão a regular interesses confere ao negócio
jurídico atributo objetivo de produção de efeitos, independentemente da intencionalidade
subjetiva, voltando-se o ordenamento para o controle da higidez da declaração da vontade. Já
os atos lícitos de conduta, posto decorrentes da atividade humana, não contêm germe criador
de preceitos, já que a atuação se dá aqui em conformidade com disposição normativa
antecedente.
Em face de tal distinção, afirma-se que, se os efeitos produzidos decorrem do
regulamento definido pelo próprio ato, tem-se negócio jurídico, como na celebração de um
contrato de compra e venda. Se, ao reverso, a eficácia (finalidade) independe do ato do agente,
ainda que a escolha do meio empregado lhe seja assegurada, está-se diante de ato lícito em
sentido estrito, para qual se exige tão somente consciência de sua prática,30 não sendo decisivo
o papel da vontade31 – é o que ocorre, por exemplo, na fixação de domicílio ou no
reconhecimento de paternidade, cujo exercício deflagra consequências atribuídas por lei, e no
pagamento ou na quitação, que importam a incidência das regras fixadas por negócio jurídico
antecedente.
O Código Civil, no art. 185, prevê a figura dos atos jurídicos lícitos, distintos
do negócio jurídico, determinando-lhes a incidência, no que couber, das normas atinentes aos
atos negociais.32 Procurou o legislador, desta forma, abranger as duas espécies de atos
atribuíveis à vontade humana, sem regular, por considerar provavelmente desnecessário, a
terceira categoria de atos, designados como atos-fatos. Adotados de maneira bissexta pela
doutrina brasileira, são imputáveis ao agir humano embora desprovidos de elemento volitivo,
jurídicos”. Segundo o mesmo autor, “a correspondência, entre os efeitos atribuídos pelo direito (efeitos jurídicos)
e os efeitos manifestados como queridos (efeitos manifestados), existe, porque a regra jurídica de atribuição
procura seguir a visão social e liga efeitos ao negócio em virtude da existência de manifestação de vontade sobre
eles” (Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia, cit., p. 19).
30 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, O Negócio Jurídico no Anteprojeto de Código Civil Brasileiro, Arquivos
do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro, vol. 13, p. 3, set. 1974. V., também, em perspectiva crítica, JOÃO
BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio, cit., p. 263, que procura distinguir as noções de negócio e de ato jurídico
stricto sensu com base na “qualidade” da vontade emitida. No primeiro caso, ter-se-ia liberdade criadora de
regulamento. No segundo, comportamento adstrito a regulamento imposto ao agente.
31 Segundo PONTES DE MIRANDA, o ato jurídico em sentido estrito pode, residualmente, apresentar algum
elemento volitivo, mas este não constitui requisito seu, nem se volta à produção de seus efeitos jurídicos típicos:
“o conteúdo volitivo, que acaso tenha, não é suporte fático do fato jurídico e, pois, não alcança a eficácia jurídica
como eficácia do que o fato jurídico manteve de tal conteúdo. (...) Quem interpelou não precisa ter querido
determinado efeito, e só obtém os que a lei mesma atribui à interpelação” (Tratado de Direito Privado, Parte Geral,
cit., p. 159).
32 “Art. 185. Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as
disposições do Título anterior”.
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associando-se à atuação subjetiva tão somente por relação de causalidade, despida de qualquer
exigência de intencionalidade ou mesmo consciência de sua prática.33
Os atos-fatos foram concebidos por juristas alemães na primeira metade do
Século passado, adotados por parte da doutrina italiana e desenvolvida no Brasil por Pontes de
Miranda, que os divide em: (i) atos reais; (ii) indenização sem culpa; (iii) caducidades.34
Por meio dos atos-fatos procura-se explicar a produção de efeitos jurídicos
decorrentes de atos humanos, materialmente considerados, independentemente de controle
quanto à formação da vontade que o originou – e por isso chamado de atos-fatos – como ocorre
na responsabilidade por dano causado por incapaz (art. 932, I e II, do Código Civil), em que o
dever de reparar deriva do dano causado por alguém independentemente de ter tido este sequer
consciência de sua prática.
O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, admite regime diferenciado para
os atos atribuíveis ao agir humano. Prevê explicitamente a categoria dos atos jurídicos, em
sentido lato, compreendendo os negócios jurídicos e os atos jurídicos stricto sensu. A partir daí,
impõe controle rigoroso ao negócio jurídico, submetendo-o à extensa disciplina do Título I do
Livro III (arts. 104 a 184, do Código Civil), além das regras incidentes em cada espécie
negocial, quando tipificada (pensa-se no contrato de empreitada, que avocará os dispositivos
dos arts. 610 e ss., do Código Civil). Menos rigoroso, por não importar autoregulamento de
interesses, mostra-se o controle dos atos não negociais, já que o art. 185 se limita a autorizar a
33 SANTORO-PASSARELLI, FRANCESCO, Dottrine generali del diritto civile, Napoli, Jovene, 1966, p. 106-
107, leciona: “Sono pertanto da ascrivere alla categoria dei meri fatti giuridici non solo i fatti della natura
extraumani, ma anche quei fatti che sono, ma potrebbero non essere, dell’uomo, oppure che sono, ma potrebbero
non essere, volontari”. Non vale opporre che nei fatti umani il riferimento degli effetti giuridici dipende
dall’individuazione del soggetto agente. Non se ne può dedurre che essi siano da considerare atti in senso stretto,
perché il riferimento soggettivo degli effetti non discende dalla natura di quei fatti, ma dal nesso di causalità fra
gli effetti e il compimento del fatto”.
“Si comprende cosi come rientrino in questa categoria, ad esempio, non solo le accessioni naturali, ma
anche quelle che avvengono per fatto dell’uomo, quali l’inedificazione e la piantagione, altresì la confusione, la
commistione, la specificazione, l ‘invenzione delle cose smarrite e del tesoro, nel limite in cui non rileva per
l’effetto giuridico la volontà dell’agente (articoli 927 ss., 934 ss). Dire che si tratta di fatti in senso stretto significa
dire che non viene in questione rispetto ad essi né la capacità d’agire del soggetto, né l’elemento psichico, volontà
e coscienza, dell’azione”.
34 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. 2, Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, p. 372 e ss. A
conclusão é confirmada por JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro,
São Paulo, Saraiva, 2003, 2ª ed. atualizada, p. 103, que assim justifica o dispositivo do art. 185 do C.C., inspirado
em disposição semelhante do art. 295º do Código civil português: “ambas as normas esgotam a disciplina das
ações humanas que, por força do direito objetivo, produzem efeitos jurídicos em consideração à vontade do agente,
e não simplesmente pelo fato objetivo dessa atuação”. “Quando ocorre esta última hipótese, já não já que falar em
ato jurídico, mas sim – e é dessa forma que o considera o direito – em fato jurídico em sentido estrito (são os atos-
fatos jurídicos da doutrina germânica)”.
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aplicação, no que couber, dos dispositivos atinentes ao negócio jurídico, cabendo ao intérprete
definir o espectro de abrangência da remissão e o critério de incidência.
Finalmente, no que tange aos atos-fatos, sua disciplina não se encontra
prevista na Parte Geral do Código Civil, que regula difusamente sua incidência nos eventos
humanos específicos dos quais decorrem efeitos jurídicos para cuja produção não se cogita de
qualquer elemento volitivo na conduta do agente.
A classificação, contudo, a despeito de sua importância didática, mostra-se
estabelecida por critérios abstratos e estruturais (maior ou menor vinculação da conduta à
vontade humana, daí decorrendo gradação qualitativa da atuação humana), revelando-se
insuficiente para as finalidade propostas. Por isso, provavelmente, apresenta-se tão
controvertida a matéria, já que não soluciona com nitidez, na dinâmica das relações jurídicas, a
disciplina a ser aplicada.35 Somente a interpretação funcional, ao fotografar o regulamento de
interesses em seu todo, de modo a compreender o ato e suas circunstâncias, inserido na
atividade a ser analisada, permitirá qualificá-lo e estabelecer a disciplina aplicável.
No âmbito dos atos jurídicos não negociais, por exemplo, ex vi do art. 185, a
entrega de coisa determinável em uma compra e venda (art. 487, do Código Civil) invoca a
incidência das normas do negócio jurídico que lhe serve de título, incluindo o controle quanto
à validade do ato de entrega (nulidade ou anulabilidade do pagamento). Não se poderia tolerar
o pagamento praticado sob coação, por exemplo, ou a quebra da boa-fé objetiva no
cumprimento da prestação. Assim também deve-se exigir de quem reconheceu o filho (não
capacidade mas) a plena consciência do ato praticado. Por outro lado, reduzidíssima
importância terá o papel da construção da declaração de vontade na hipótese prescrita pelo art.
1.280 do Código Civil, em que o proprietário ou possuidor exige do vizinho demolição ou
reparação diante de iminente ruína (ato jurídico stricto sensu mandamental, para Pontes de
Miranda).36 Nesse caso, pouco importa a consciência da declaração, fixando o legislador no
fato objetivo suscitado pelo possuidor.
Em posição contraposta, a consciência do comportamento mostra-se
prudentemente exigida para atos materiais classificados como atos-fatos, como na ocupação de
35
Sobre o ponto, observa ORLANDO GOMES, Introdução, cit., p. 289: “Os atos jurídicos ‘stricto sensu’ não
formam, como visto, categoria homogênea. Da dificuldade de sistematizá-los, resulta hesitação quanto à
possibilidade de submetê-los a regras de aplicação geral”.
36 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. 2, cit., p. 461 e ss. A classificação é
minuciosamente resumida por MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico, São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 200-201.
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coisa sem dono (res nullius ou res derelicta), na lavragem de pedaço de madeira alheio por
parte do escultor ou no apossamento pelo exercício possessório. Dispensa-se nestas hipóteses a
capacidade de fato, mas não se poderia deixar de exigir a consciência do próprio
comportamento por parte de quem ocupa, especifica ou adquire a posse.37 Tal discrepância
serve de arrimo para a designação de tais eventos como atos jurídicos stricto sensu e a rejeição
da categoria dos atos-fatos por grande parte dos autores brasileiros.38
Aduza-se, ainda, que a sucessão de atos que compõem a atividade humana
pode ser heterogênea, ou por vezes desprovida de negócio inaugural, devendo ser examinada a
atividade em sua integralidade para a definição da disciplina aplicável. Neste caso, a função
desempenhada pela atividade determinará a disciplina aplicável, o que terá grande serventia nas
chamadas relações contratuais de fato.
Além disso, embora o negócio jurídico ofereça espaço exuberante de atuação
para a autonomia privada, é errôneo concluir que o ato jurídico não negocial deva escapar ao
controle de merecimento de tutela, por ausência de liberdade para autoregulamento do próprio
interesse. Mesmo circunscritos a regras cogentes, esses atos traduzem também atuação humana
e, por isso, submetem-se, por conta do art. 185, ao crivo do direito.39
Imagine-se a fixação do domicílio, considerado ato jurídico stricto sensu. Não
se pode afirmar que haja déficit de liberdade no momento da escolha, que muitas vezes abrange
uma série de decisões pessoais e profissionais, as quais, por outro lado, se tomadas ao longo do
tempo, na sucessão de atos que definem a atividade profissional e pessoal, por vez com
37
Conforme relatado por MOREIRA ALVES, trata-se da “consciência da aquisição da posse, ou seja, o
Besitzbegründungswille ou, mais simplificadamente, Besitzwille”. Explica o autor: “por não precisar essa vontade
de ser determinada, torna-se alguém possuidor daquilo a que se destina a receber sua caixa postal ou sua máquina
automática de venda (não, porém das cartas que não lhe são endereçadas ou das coisas para os quais o receptáculo
não se destina), e, por não ser ela juridicamente qualificada, pode o incapaz adquirir a posse desde que tenha
consciência do que quer, como o que, tendo sido curado de doença mental, ainda não deixou de estar interditado,
ou criança com alguns anos de vida (não, todavia, o recém-nascido, o louco, o que delira)” (O problema da vontade
possessória, in Revista do Tribunal Regional Federal, vol. 8, out-dez/1996, p. 22).
38 Dentre muitos outros, não reconhecem a categoria do ato-fato: CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA,
Instituições de direito civil, vol. I, Rio de Janeiro, GEN, 2009, p. 408; ARNOLDO WALD, Direito Civil: Introdução
e Parte Geral São Paulo: Saraiva, 2009, p. 217; SILVIO RODRIGUES, Direito Civil: Parte Geral, Volume I, São
Paulo, Saraiva, 2006, 158; SAN TIAGO DANTAS, Programa de Direito Civil, cit., p. 211.
39 Esta parece ser a posição de JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio, cit., p. 264, para quem “o
negócio se distingue do ato em que aquele é uma ação livre, este uma ação necessária”. O autor exemplifica:
“Pode-se fazer ou não a doação de um bem, ainda ciente do mau uso que terá, emitir ou não disposições
testamentárias, pactuar este ou aquele regime de bens no casamento etc., mas não se pode deixar de restituir a
soma mutuada, de recolher os alugueres convencionados, de despachar um processo ou proferir uma sentença.
Praticadas as ações, já no primeiro grupo de casos, negócios. No segundo, atos. Nos negócios pergunta-se pelo
quod placet. Nos atos, pelo quod oportet”.
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repercussão em toda a família, devem ser examinadas e valoradas em seu todo, e não como
eventos isoladamente considerados.
A percepção do conjunto dessas circunstâncias auxilia a compreensão da
disciplina aplicável aos atos não negociais e aos atos-fatos, e do âmbito de incidência do art.
185 do Código Civil. O dispositivo permite superar a discussão doutrinária, levada a cabo
alhures, acerca da aplicação analógica das normas do negócio jurídico. No caso brasileiro, o
Código Civil autoriza a utilização direta, no que couber, dos dispositivos pertinentes contidos
em todo o Título II. A pertinência de tal utilização dependerá da função concreta que
desempenha a atividade no âmbito da qual se situam os atos considerados.
Por outro lado, o afastamento de qualquer relevância subjetiva para certos
atos humanos, justificando a invocação dos atos-fatos, mostra-se útil, no direito brasileiro, não
por peculiaridade ontológica da noção, importada do direito alienígena, mas tão somente nas
hipóteses em que os efeitos atribuídos pelo legislador pátrio independam do comportamento do
agente, como parece ser exemplo típico a conduta do incapaz que causa dano indenizável (art.
932, II, do Código Civil).
6. Negócio jurídico no Código Civil e seus três planos de análise: elementos de existência,
requisitos de validade, fatores de eficácia
O Código Civil, na esteira das codificações dos países de tradição romano-
germânica, dedica ao negócio jurídico, significativamente, 80 artigos (arts. 104 a 184), que
compõem o Título I do Livro III, do Código Civil. A doutrina separa a análise do negócio
jurídico em três planos, de modo a verificar, em etapas sucessivas, os pressupostos de existência
(plano de existência), os requisitos de validade (plano de validade) e as condições para produção
de efeitos (plano de eficácia).40 Significa dizer que negócio há de ser, antes de mais nada,
existente, ou seja, conter os pressupostos para o seu surgimento do mundo jurídico.41 Em
seguida, uma vez estabelecida a existência jurídica do negócio, examinam-se seus requisitos de
40
A difusão dos três planos de análise do negócio jurídico no Brasil costuma ser atribuída sobretudo à obra
de PONTES DE MIRANDA. A respeito, v. Tratado de direito privado, t. 4. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, pp. 6 e ss.
41 Explica ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO: “Quando acontece, no mundo real, aquilo que estava previsto
na norma, esta cai sobre o fato, qualificando-o como jurídico; tem ele, então, existência jurídica” (Negócio jurídico:
existência, validade e eficácia, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 23).
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validade, isto é, os atributos considerados essenciais, sem os quais o negócio será considerado
nulo ou se sujeitará à anulação.42 Se os dois primeiros planos forem superados pelo intérprete,
ou seja, estabelecidas a existência e a validade do negócio, passa-se à última etapa, a saber,
investiga-se se o negócio, plenamente válido, mostra-se apto à produção de efeitos jurídicos.43
Em resumo, pode-se afirmar que os elementos do negócio jurídico são as partes integrantes do
ato, ao passo que os requisitos do negócio são as suas qualidades e os pressupostos são os fatos
jurídicos que lhe são anteriores.
Reputa-se, assim, existente o negócio que contém os seus elementos
essenciais. Com efeito, faz-se alusão na doutrina a ao menos três espécies de elementos:
a) elementos essenciais (essencialia negotti): são os elementos fundamentais
para o ingresso do ato no mundo jurídico. Trata-se da vontade declarada, do objeto, da forma e
da causa do negócio;44
b) naturais (naturalia negotti): são os elementos que, fixados supletivamente
pela lei para o negócio, por isso mesmo, comporão o regulamento de interesses se não forem
afastados pela autonomia privada.45 Pense-se, por exemplo, no lugar do pagamento, quando não
convencionado (art. 327 do Código Civil).46
42
Não se confunde a invalidade com a simples ineficácia, conforme assevera EMILIO BETTI: “A invalidade
é o tratamento que corresponde a uma carência intrínseca do negócio, no seu conteúdo preceptivo; a ineficácia,
pelo contrário, apresenta-se como a resposta mais adequada a um impedimento do caráter extrínseco, que incida
sobre o projetado regulamento de interesses, na sua realização prática” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., pp.
655-656).
43 Conforme explica CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “ineficácia, stricto sensu, é a recusa de efeitos
quando, observados embora os requisitos legais, intercorre obstáculo extrínseco, que impede se complete o ciclo
de perfeição do ato. Pode ser originária ou superveniente, conforme o fato impeditivo de produção de efeitos, seja
simultâneo à constituição do ato ou ocorra posteriormente, operando contudo retroativamente” (Instituições de
direito civil, vol. I, cit., p. 539).
44 Segundo ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, os elementos essenciais podem ser gerais (subdividindo-se
entre intrínsecos ou constitutivos – forma, objeto e circunstâncias negociais – e extrínsecos ou pressupostos –
agente, lugar e tempo do negócio) ou, ainda, categoriais (referentes a determinados tipos negociais, sendo que os
elementos categoriais inderrogáveis seriam espécies de essencialia negotii e os derrogáveis, de naturalia negotii)
(Negócio jurídico, cit., p. 40).
45 Afirma ROBERTO DE RUGGIERO: “Naturais são os [elementos] que correspondem à natureza típica do
negócio, os que são conforme com a sua índole, os que o próprio ordenamento refere e exige, ainda quando as
partes não os tenham incluído, como, por exemplo na venda, a garantia da evicção, pela qual responde qualquer
vendedor. Permite-se, porém, às partes excluir ou modificar à vontade esse elemento, visto não ser requisito nem
da existência, nem da validade do negócio” (Instituições de direito civil, cit., p. 321).
46 Código Civil: “Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes
convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias.
Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher entre eles”.
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c) acidentais (accidentalia negotti): podem figurar no negócio desde que
expressamente previstos pelas partes. São responsáveis por modificar apenas a eficácia do ato,
constituindo, principalmente, as chamadas modalidades dos negócios: condição, termo e
encargo.47
Embora a doutrina brasileira nem sempre o admita, a causa é elemento
essencial do negócio jurídico, ao lado dos elementos subjetivo, objetivo e formal. Não se
confunda causa com motivo, de natureza subjetiva ou psicológica. Do ponto de vista técnico, a
causa consiste na mínima unidade de efeitos essenciais que caracteriza determinado negócio,
sua função jurídica, diferenciando-o dos demais. Somente a identificação da causa pode
determinar a qualificação contratual, a invalidade ou ineficácia de certas relações jurídicas para
as quais o exame dos demais elementos mostra-se insuficiente. Bastaria lembrar os contratos,
como a compra e venda de coisa futura e a empreitada, que se diferenciam exclusivamente em
virtude da função ou causa que lhes é peculiar; ou a compra e venda de objeto lícito (uma arma,
por exemplo), mas cuja invalidade decorre da ilicitude do objeto no contexto causal (a arma
destinada à prática de certo crime).48
Existente o negócio jurídico, parte-se para a análise de sua validade, vale
dizer, para a verificação do cumprimento dos requisitos negociais previstos pelo art. 104 do
Código Civil. Trata-se das qualidades exigidas para os elementos essenciais: capacidade do
agente que declara a vontade, licitude do objeto negocial e legalidade da forma escolhida para
o ato (ou seja a sua correspondência à previsão ou não vedação legal).
Superadas as duas primeiras etapas, a produção de efeitos pelo negócio
jurídico depende ainda da análise de sua eficácia propriamente dita, que pode ser obstada pela
aposição de cláusula acessória ao negócio jurídico. A hipótese, a que se costuma denominar
modalidade do negócio, será objeto de capítulo específico.
7. Classificação dos negócios jurídicos
47
Segundo ROBERTO DE RUGGIERO, “Acidentais são aqueles [elementos] que são introduzidos pela vontade
das partes (visto o negócio ser suscetível disso) e que tendem a modificar o tipo abstrato na espécie concreta a que
se dá vida. São em número infinito, mas há três que têm principalmente importância e merecem um estudo especial
[...]: a condição, o termo e o modo” (Instituições de direito civil, cit., p. 321).
48 GUSTAVO TEPEDINO. A responsabilidade civil nos contratos de turismo. Temas de Direito Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, pp. 254-255.
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Classificam-se usualmente os negócios jurídicos em diversas categorias, cuja
identificação tem por escopo permitir ao intérprete a determinação de certos aspectos de sua
disciplina legal.
Uma primeira classificação divide os negócios jurídicos entre unilaterais,
bilaterais ou plurilaterais, conforme o número de partes que deles participem.49 Vale notar que
não se trata de classificação meramente quantitativa, mas também qualitativa, uma vez que o
mesmo centro de interesses na relação negocial pode ser ocupado por inúmeros indivíduos e,
ainda assim, representar uma única “parte” no que tange à presente classificação.50 Contam-se,
assim, a rigor não propriamente os sujeitos que tomam parte do negócio, mas o número de
centro de interesses contrapostos, o que permite tanto cogitar de negócios unilaterais (como o
testamento, reputado válido pela simples emissão de vontade do testador e antes que qualquer
outra pessoa tome conhecimento de seu conteúdo, ou o ato de renúncia a um direito), quanto
de negócios bilaterais (talvez a modalidade mais comum, como em um contrato simples de
compra e venda) ou mesmo plurilaterais (pense-se em atos mais complexos, como o contrato
de sociedade).
Os negócios jurídicos reputam-se ainda típicos ou atípicos, conforme sua
estrutura elementar tenha sido ou não prevista, junto à respectiva disciplina, pelo legislador. A
doação e a empreitada constituem negócios jurídicos típicos, uma vez que sua qualificação
remete ao modelo legal desses contratos previsto pelo Código Civil. No que tange aos negócios
atípicos, trata-se, não raro, de contratos complexos que combinam elementos de diversos tipos
legais; ilustrativamente, o contrato celebrado entre um viajante a agência de turismo, a envolver
serviços de transporte, hospedagem e diversos outros. Alude-se por vezes ao termo “negócio
misto” para designar as hipóteses de contratos que congregam elementos de diversos tipos
legais – terminologia de todo criticável, vez que pressupõe a possibilidade de um meio termo
49
ORLANDO GOMES, Introdução ao direito civil, cit., p. 277.
50 Assim observa PIETRO PERLINGIERI a respeito das relações jurídicas (inclusive aquelas de origem
negocial): “a ligação essencial do ponto de vista estrutural é aquela entre centros de interesses. O sujeito é somente
um elemento externo à relação jurídica porque externo à situação: é somente o titular, às vezes ocasional, de uma
ou de ambas as situações que compõem a relação jurídica; de maneira que não é indispensável referir-se à noção
de sujeito para individuar o núcleo da relação jurídica. O que é essencial é a ligação entre um interesse e um outro,
entre uma situação, determinada ou determinável, e uma outra” (O direito civil na legalidade constitucional, cit.,
p. 734). No mesmo sentido, ORLANDO GOMES: “as várias pessoas que constituem uma parte agem em bloco
unificadas pelo mesmo interesse. Por isso, a relação jurídica constituída não se desdobra em tantas relações quantas
sejam as pessoas componentes da parte pluripessoal” (Introdução ao direito civil, cit., p. 277). V., ainda, CAIO
MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “o conceito exato de parte pode-se dizer direcional, e traduz o sentido da declaração
de vontade” (Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 427).
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entre a tipicidade e a atipicidade, o que, ao menos à luz da doutrina causalista, resultaria
impossível.51
Dizem-se gratuitos os negócios que envolvem sacrifício patrimonial de
apenas uma das partes, ao passo que onerosos são os negócios que importam em diminuição
patrimonial para ambas.52 Tal conceituação, amplamente difundida pela doutrina, exige certa
cautela; de fato, não é propriamente o decréscimo patrimonial que caracteriza a onerosidade,
pois pode acontecer que a equação econômica do negócio não pressuponha o sacrifício do
patrimônio da parte onerada.53 Melhor, assim, compreender que será gratuito o negócio que
importe a obtenção de vantagem por apenas uma das partes, reputando-se oneroso o negócio
em que ambas as partes buscam obter vantagens patrimoniais.54
São inter vivos os negócios cuja eficácia se inicia durante a vida dos
negociantes, e causa mortis os que têm seus efeitos dependentes da morte de ao menos uma das
partes, sendo o exemplo clássico deste último tipo o testamento.55 Consideram-se solenes ou
formais os negócios que apresentam exigências de forma previstas em lei (tais como os
negócios envolvendo imóveis cujo valor supere o piso estabelecido pelo art. 108 do Código
Civil),56 por oposição aos negócios não solenes ou consensuais, que têm forma livre. Faz-se
51
Conforme já se afirmou em outra sede, os negócios atípicos não se confundem com os contratos
coligados, nem permitem a designação “negócios mistos”: “O que caracteriza o contrato atípico é precisamente
sua autonomia causal em relação aos tipos contratuais pré-dispostos pelo legislador. Nos contratos coligados, ao
contrário, malgrado a interdependência negocial que os vincula, normalmente com caráter de acessoriedade, cada
qual mantém sua própria função técnico-jurídica. Já os chamados contratos mistos, a doutrina os caracteriza pela
presença de elementos peculiares a dois tipos contratuais (com a predominância de um deles, de modo que se possa
defini-lo ou classifica-lo em um ou outro tipo legal). A conceituação, contudo, parece suscetível de objeção
evidente, ao menos para os fautores de doutrinas causalistas, já que a síntese dos efeitos essenciais fará de cada
contrato – lógica e ontologicamente –, ou bem típicos ou simplesmente atípicos, esvaecendo o valor dessa categoria
conceitual” (GUSTAVO TEPEDINO, A responsabilidade civil nos contratos de turismo, cit., p. 258).
52 Cf., por exemplo, uma das definições citadas por ORLANDO GOMES: “Negócio a título oneroso é o que
implica mútua transmissão de bens. Gratuito, o que se realiza com vantagem exclusiva para uma das partes, com
diminuição do patrimônio da outra” (Introdução ao direito civil, cit., p. 311).
53 Registra ORLANDO GOMES que a busca de um nexo causal entre duas atribuições patrimoniais
contrapostas acabaria por equiparar o negócio oneroso ao negócio bilateral sinalagmático, tornando inútil a
primeira classificação (Introdução ao direito civil, cit., p. 312).
54 Assim, por exemplo, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “É oneroso o que proporciona ao agente uma
vantagem econômica, à qual corresponde uma prestação correspectiva, e gratuito aquele no qual uma pessoa
proporciona a outra um enriquecimento, sem contraprestação por parte do beneficiado” (Instituições de direito
civil, vol. I, cit., p. 426).
55 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 426.
56 Código Civil: “Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos
negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis
de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
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alusão, ainda, aos negócios jurídicos puros e aos negócios com modalidades, conforme os
negócios apresentem ou não os elementos acidentais do termo, da condição ou do encargo.
8. Atividade contratual sem negócio jurídico
A despeito da prevalência, até os dias de hoje, da dogmática voluntarista, a
evolução política e econômica da sociedade, desde o final do Século XIX, exigiu a interferência
do Estado nas relações privadas, mitigando-se a força vinculante da vontade negocial.
Especialmente diante de situações específicas de vulnerabilidade, arrefeceu-se a tutela
concedida ao interesse individual em favor de outros interesses jurídicos socialmente
protegidos. Por conta da eclosão de movimentos sociais, no Brasil e alhures, a intervenção nas
atividades contratuais incidiu primeiramente nas relações laborais, tendo sido o direito do
trabalho precursor do que se convencionou chamar de dirigismo contratual, destinado a
proteger a parte mais desfavorecida – técnica e economicamente – do contrato de trabalho. O
desconforto do direito privado clássico com a intervenção heteronímica57 na deliberação das
partes levou à autonomia do direito do trabalho, afastando-se do direito civil tudo o que se
considerava destinado a reduzir o papel da vontade como fonte soberana de vínculos
obrigacionais.58
57
Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma STEFANO RODOTÀ que o contrato, embora
decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção de fontes exteriores, alheias à vontade
individual: “è evidente, allora, che le diverse fonti si ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa
rilevare soltanto che tutte convergono nella finalità comune della costruzione del regolamento contrattuale; rispetto
a quest’ultimo la particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando esclusivamente il modo
in cui ciascuna di esse, in sé considerata, opera” (Le fonti di integrazione del contrato, Giuffrè, Milano, 2004, p.
87).
58 Conforme se afirmou em outra sede: “Coincide, em certa medida, por isso mesmo, o movimento teórico
de sustentação do direito de trabalho com construções antiformalistas surgidas no final dos anos 60 do século
passado, que se opunham aos princípios dogmáticos do direito privado, inflexíveis no assegurar a vontade do
proprietário e do contratante. Em certa medida, o crescimento do direito do trabalho, na segunda metade do século
XX, coincide com a legitimação política do Welfare State e se aproxima a formulações teóricas que, na tentativa
de romperem com a lógica da igualdade formal, notabilizaram-se como o uso alternativo do direito. A afirmação
de direitos subjetivos extraproprietários, capazes de vergar as forças hegemônicas e de fazer prevalecer direitos
sociais, afigurava-se sediciosa, sendo significativa a alusão, por parte de conceituado teórico do direito francês, à
criação de contradireitos” (GUSTAVO TEPEDINO, “Direito civil e direito do trabalho: diálogo indispensável”, In
Gustavo Tepedino et al. (coords.), Diálogos entre o direito civil e o direito do trabalho, São Paulo: RT, 2013, pp.
14-15). Sobre a expressão “contradireitos”, veja-se MICHEL MIAILLE: “Todas as lutas políticas e sociais dos séculos
XIX e XX se desenrolaram sob esta palavra de ordem; todas as leis liberais que foram, assim, arrancadas à ordem
burguesa se justificam pelos direitos subjetivos, do direito à instrução ao direito de defesa, passando pelo direito
de associação. Neste sentido, como toda a ideologia de combate, a afirmação dos direitos subjetivos faz parte de
uma luta viva, ainda eficaz nos nossos dias [...] É o ‘contradireito’” (Uma introducao critica ao direito, Lisboa:
Moraes, 1919, p. 143‑144).
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Esse processo de intervenção legislativa, que muitos julgavam contingências
momentâneas de crises econômicas, mostrou-se inevitável e irreversível, acirrando-se na
primeira metade do Século XX como mecanismo de equilíbrio do mercado e do próprio regime
capitalista. Nessa esteira, as locações também foram objeto de forte intervenção legislativa,
com o intuito de gerir a escassez de imóveis e as crescentes demandas locatícias. Ao longo do
tempo, tem-se tutelado de modo imperativo tanto o direito à moradia quanto o fundo de
comércio, assegurando-se desde os anos 30 do Século passado a renovação do contrato de
locação para fins comerciais (Decreto 24.150, de 20 de abril de 1934). O legislador interveio
também intensamente na economia popular, combatendo os juros extorsivos, o curso de moeda
estrangeira e assim por diante.59
O incremento da intervenção estatal, que se acirrou na Europa a partir da
Segunda Grande Guerra, destinado à tutela de direitos fundamentais alcançados pela iniciativa
econômica privada e que, no Brasil, culminou com a Constituição da República de 1988, acaba
por colocar em crise a noção de autonomia privada e a teoria do negócio jurídico, incapazes de
abranger a variedade de modelos e interesses mediante os quais a atividade privada se
estabelece e é socialmente reconhecida.
Anotem-se, nesse longo itinerário histórico, ao menos duas relevantes
consequências para a teoria dos contratos. De um lado, o aparecimento de princípios
mitigadores da obrigatoriedade e da relatividade dos pactos, notadamente a boa-fé objetiva, o
equilíbrio econômico e a função social, que desde o início do Século XX foram incorporados
gradualmente às legislações nacionais, dando margem ao surgimento de numerosos
instrumentos de controle da justiça contratual (como a lesão, a revisão e a resolução por
excessiva onerosidade, o adimplemento substancial, a vinculação a deveres anexos, o dever de
mitigar danos, a proibição de comportamento contraditório, o abuso de direito). Essas e tantas
outras figuras, na experiência brasileira, foram absorvidas pela doutrina, legislação e
jurisprudência somente no final do Século XX, especialmente a partir da Constituição da
República de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor, de 1990. De outra parte, como
espécie de válvula de escape para o rigor técnico imposto pelo excessivo controle de validade
dos negócios jurídicos, desenvolveu-se, a partir do final da primeira metade do Século XX, a
teoria das relações contratuais de fato, a qual, ao confrontar a realidade jurídica à realidade
fática, teve o mérito de alargar a admissibilidade, pelo direito, de relações admitidas
59 Cfr., dentre outras normas, o Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933; Lei nº 1.521, de 26 de dezembro
de 1951.
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socialmente embora sem a proteção conferida pelo Direito ao negócio. De maneira geral, os
países da família romano-germânica que adotam, de forma direta ou indireta, a doutrina do
negócio jurídico, encontram dificuldade semelhante: o excessivo controle de validade do
negócio acaba por excluir de seu espectro de incidência certas atividades que, em sua
substância, despidas do aparato negocial, são admitidas como socialmente úteis e legítimas pelo
corpo social.
Diante do contraste entre a legitimidade da atividade desenvolvida e a
invalidação do ato negocial que a constitui, autores de renome sustentaram a preservação dos
efeitos de tais atos a despeito de sua invalidade. No início do Século XX, Haupt construiu teoria
pioneira nesta direção.60 Com resultados semelhantes, Larenz produziu trabalho
importantíssimo no qual concebeu a categoria dos comportamentos socialmente típicos.61 De
outra parte, na doutrina italiana, Ascarelli62 e inúmeros outros conceituados autores
desenvolveram, em diversos campos da autonomia privada, o que seria a teoria das relações
jurídicas de fato, a qual atingiu o seu apogeu nos anos 60 e 70, com o seu reconhecimento pela
Corte Suprema Alemã – BGH (Bundesgerichtshof).63
Paradoxalmente, o principal motor da teoria do comportamento socialmente
típico, consubstanciado na crítica à exasperação da vontade negocial como fonte primordial das
obrigações, transformou-se em sua maior vulnerabilidade. Associada ao processo histórico de
crítica ao poder impositivo das forças econômicas nos regulamentos contratuais, no âmbito da
60
GÜNTHER HAUPT, Über faktische Vertragsverhältnisse, 1941.
61 KARL LARENZ, O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento social típico
(1956), in Revista Direito GV, vol. 2, n. 1, jan-jun/2006.
62 Ao propósito, a obra de TULLIO ASCARELLI mostra-se particularmente importante. Cfr. Lezioni di diritto
commerciale - Introduzione,1955, Milano, Giuffrè, pp. 102 a 108, onde se lê: “L’attività dovrà essere valutata in
via autonomia, indipendentemente cioè dalla valutazione dei singoli atti, singolarmente considerati.
Indipendentemente dalla disciplina dei singoli atti può essere illecito (o sottoposto a norme particolari) l’esercizio
dell’attività” (p. 103). Sobre o tema, v. também o verbete fundamental de Giuseppe Auletta (Attività (dir. priv.),
in Enciclopedia del diritto, vol. III, Milano, Giuffrè, 1958, p. 982), que define attività “quale insieme di atti di
diritto privato coordinati o unificati sul piano funzionale dalla unicità dello scopo”.
63 Na doutrina italiana, CARLO ANGELICI analisa o caso julgado em 28 de Janeiro de 1976 pelo
Bundesgerichtshof em que uma criança se acidentou no supermercado enquanto a mãe comprava, e estava pagando
no caixa. Discutiu-se se a responsabilidade era contratual ou extracontratual e se haveria responsabilidade pré-
contratual. Exclui-se a responsabilidade pré-conratual já que a autora, sendo criança, não efetuaria compra alguma,
ou seja, não teria nada a comprar, o que a impediria de intentar a ação contra o supermercado (Responsabilità
precontrattuale e protezioine dei terzi in uma recente sentenza del Bundesgerichtshof, in Rivista del diritto
commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, I, ano LXXV, 1977, pp. 23-30). Segundo observa o autor,
o dever de boa-fé serve de fundamento para a relação de proteção em face de terceiros, aplicando-se a teoria
designada como Vertrag mit Schutzwirkung sugunsten Dritter, de modo a proteger terceiros alcancados pela
atividade contratual independentemente de qualquer vínculo negocial: “il Bundesgerischtshof accentua il profilo
del rapporto di protezione che deve intercorrere tra il contraente ed il terzo danneggiato e riconduce la vicenda ad
una sua rilevanza, tramite il contratto o l’attività precontrattuale, pure nei confronti della contraparte” (p. 25).
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massificação da economia e do fortalecimento dos mercados consumidores, a teoria do
comportamento típico passa a ser admitida a prescindir do elemento volitivo. Buscava-se
proteger a vontade do vulnerável, estigmatizando-se o poder da vontade como inevitável
imposição das forças econômicos na celebração dos negócios jurídicos. Em última análise, da
crítica ao voluntarismo opressor decorreu a hostilidade à vontade e a rejeição de seu papel como
motor da livre iniciativa. Tal perspectiva não resistiria à retomada dos movimentos liberais que,
ao lado do declínio do Welfare State, acabaram por sepultar a doutrina do comportamento
socialmente típico.
Com efeito, a partir dos anos 70 do Século passado, assistiu-se, tanto na
Alemanha quanto na Itália e em Portugal, à progressiva substituição dessa construção por uma
ampliação da categoria do negócio jurídico, cuja abrangência o tornaria apto a compreender
numerosas atividades socialmente típicas, ora mediante a invocação de vontade presumida dos
seus agentes (a ampliar o conceito de negócio jurídico), ora por meio da ratificação de atos
inválidos, ora mediante a mera admissão de efeitos patrimoniais ressarcitórios decorrentes de
negócios inválidos – cuja fonte, portanto, seria o ato ilícito, não já o contrato.
Do ponto de vista dogmático, não parece convincente a legitimação de efeitos
obrigacionais com base na técnica da vontade presumida ou, por outro lado, como mera
liquidação de danos. Basta lembrar a hipótese do incapaz que compra e vende artigos de suas
necessidades pessoais, faz-se transportar e assim por diante. Não seria razoável admitir como
válidos tais negócios com fundamento em suposta vontade presumida de seus responsáveis, já
que, por vez, as atividades desenvolvidas são levadas a cabo contra a vontade expressa de quem
deveria autorizá-las. Também em outras hipóteses de atividades desenvolvidas por pessoas
capazes, mostra-se insustentável cogitar-se de vontade presumida pelo simples fato de que o
agente se recusa a celebrar o negócio. E tampouco se sustentaria a explicação circunscrita à
liquidação de danos quando se pensa na execução específica de certos contratos fundados em
negócio nulo, na esteira de tendência progressiva do direito obrigacional.
Daí ser plausível a suspeita de que a rejeição à doutrina do comportamento
social típico se associe mais ao contexto histórico e ideológico em que se insere do que aos seus
fundamentos teóricos. Por ter sido germinada em oposição à Teoria do Negócio Jurídico, aquela
doutrina acabou sendo desenvolvida como construção crítica ao papel da vontade na teoria
contratual, associando-se a orientações que, por diversos matizes, enalteceram, ao longo do
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Século XX, o papel do Estado intervencionista, seja em regimes autoritários de diversos países,
seja no dirigismo contratual.64
As duas últimas décadas do Século passado, por outro lado, coincidem, em
diversos países europeus e da América Latina, com a densificação do neoliberalismo e,
especificamente na esfera jurídica, com a retomada entusiasmada do prestígio da autonomia
privada, reduzindo-se, em diversos setores – mercado de locação, relações de trabalho, setores
da economia privatizados – o grau de intervenção do Estado, que adquire feição regulamentar,
com suas agências e instrumentos que enaltecem o papel da livre contratação, ainda que sob
rígido controle do Estado.
A Europa, neste particular, diferencia-se da América Latina, onde, talvez
pelas contradições sociais ainda muito evidentes, e por não se terem alcançado níveis médios
satisfatórios na promoção dos direitos sociais, é compreensível que se propugne por um grau
de intervenção e de promoção de políticas públicas maior, capaz de favorecer a distribuição de
rendas e diminuir a desigualdade social. Tal diferença, superficialmente percebida, explica, em
certa medida, intensificação mais visível, na doutrina europeia, da retomada do papel da
vontade nas atividades privadas.
A preocupação com a preservação da vontade como elemento relevante da
iniciativa privada, associada à reação liberal ao dirigismo contratual, mostram-se eloquentes
para a compreensão do alargamento das doutrinas do negócio jurídico e da rejeição da doutrina
do comportamento social típico. Entretanto, a análise dos comportamentos socialmente típicos,
especialmente na perspectiva ascarelliana de atividade contratual sem negócio, não renega o
papel da vontade, limitando-se a considerar secundária, para determinadas atividades
socialmente típicas, a vontade negocial, ou seja, a existência de negócio jurídico que inaugure
64 Bastaria, para comprovar tal percepção, a crítica de DIETER MEDICUS à expressão “comportamento
socialmente típico” (Il ruolo centrale delle disposizioni relative al negozio giuridico, in I Cento anni del codice
civile tedesco in Germania e nella cultura giuridica italiana – Atti del convegno di Ferrara, 26-28 settembre 1996,
Padova, Cedam, 2002, pp. 155 a 176). O autor critica (p.165) especialmente a decisão da Corte alemã (sentenza
de 1966, Landgericht di Brema, in NJW 1966, p. 2360) que obrigou o pagamento de bilhete de trem em face de
um menino de 8 anos que havia realizado o trajeto, imputando-lhe também a multa. Invoca o festejadíssimo Flume
(civilista liberal que se transformou em uma lenda viva na Alemanha, por sua posição de resistência ao regime
nazista, quando se exonerou da Cátedra), que reduz a construção à retroatividade de efeitos para relações
obrigacionais inválidas. Afirma a p. 166: “Il ricorso alla formula ‘contratto di fatto’ ha consentito di trattare come
efficaci, per il periodo in cui era stata ad essi data esecuzione, contratti di lavoro subordinato e contratti di società
conclusi sulla base di accordi giuridicamente inefficaci (…). In definitiva, essa non fa altro che sostituire l’effetto
retroattivo della nullità, dell’annullamento e del recesso operante ex tunc (Rücktritt), con una causa di scioglimento
del rapporto non pienamente retroattiva, assimilabile al recesso operante ex nunc (Kündigung)”. E remata de forma
sarcástica: “In conclusione, si può dire che, nel complesso, il diritto classico dei contratti, imperniato sulla volontà
negoziale, ha saputo difendersi dagli attacchi che gli sono stati portati: i tentativi operati in questo senso da quella
che Flume ha efficacemente definito ‘giurisprudenza della corsa in tram’ sono falliti (Jurisprudenz der
Straßenbahnfahrt)”.
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a atividade já existente de fato. Considerando-se a insuficiência do negócio jurídico – e da
vontade presumida – para justificar a presença de atividades admitidas pelo grupo social, que
produzem efeitos jurídicos carecedores de qualificação, ainda que desprovidas de negócio
fundante, torna-se oportuno revisitar a doutrina dos comportamentos socialmente típicos.
Do ponto de vista metodológico, a atividade contratual sem negócio exige
qualificação da concreta relação jurídica a partir da sucessão de atos funcionalmente
interligados, sem prévia tipificação e reconhecimento jurídico do negócio. Corrobora-se o ocaso
da subsunção, como técnica hermenêutica a reclamar premissa legal abstrata, correspondente a
suporte negocial determinado, em favor da verificação em concreto da disciplina aplicável ao
conjunto de atos de natureza diversa. Amplia-se, dessa forma, o controle da atividade privada,
permitindo-se proteger efeitos socialmente relevantes decorrentes de negócios nulos ou
inexistentes, sem que a presença de negócio válido seja um pressuposto para a tutela jurídica.
O que se pretende propor, para a reflexão contemporânea, é a necessidade de
se reler a doutrina dos comportamentos socialmente típicos, a partir, não já do afastamento do
elemento volitivo como motor da livre iniciativa, mas da distinção entre a vontade negocial e a
vontade contratual. O negócio jurídico mantém-se vinculado ao controle estabelecido pelo
Código Civil. Ao seu lado, contudo, uma série de atividades socialmente típicas, decorrentes
de atos não negociais, é valorada positivamente e a ordem jurídica reconhece, como jurígenos,
seus efeitos. Enquanto no negócio jurídico a declaração de vontade hígida é um prius para a
sua validade (elemento essencial), nas atividades socialmente típicas a vontade suscita
verificação in posterius, a partir dos efeitos por elas produzidos, independentemente de
declaração destinada à instauração do vínculo, conferindo-se juridicidade a situações jurídicas
que, de outra forma, não poderiam ser admitidas.
A rigor, a admissão da relação contratual sem negócio permite atribuir
juridicidade a efeitos socialmente reconhecidos, a partir de qualificação a posteriori da função
da atividade realizada, estabelecendo-se, dessa forma, controle de merecimento de tutela, à luz
da legalidade constitucional, acerca de atos praticados sem negócio jurídico de instauração (mas
que, nem por isso, podem ser considerados fora da lei), cuja eficácia, de ordinário, é mais restrita
do que a gama de efeitos almejados pelo negócio. Basta lembrar as hipóteses do funcionário
público cujo acesso à carreira não se deu por concurso público;65 ou do vínculo empregatício
65
A respeito, v. o Enunciado nº 363 da Súmula do TST: “Contrato nulo. Efeitos (nova redação) - Res.
121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em
concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da
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do apontador de jogo do bicho;66 ou do policial militar em empresa de segurança privada, a
despeito de vedação legal expressa;67 ou do menor que adquire, por si mesmo, produtos ou
serviços; ou ainda o exemplo dos sócios de sociedade irregular ou da pessoa que integra
modalidade de família inadmitida pelo direito.68
Em todos esses casos, a invalidade dos negócios não exclui a admissibilidade,
para certos fins, de eficácia jurídica à atividade desenvolvida. E somente graças a artificialismo
retórico se poderia afirmar que se pretendeu, em tais hipóteses, celebrar ou extinguir uma série
de negócios, alçando-se o mesmo efeito rejeitado ora pela vontade expressa do declarante, ora
pela lei. Torna-se, assim, incongruente, nesses casos, falar-se em negócio jurídico, cuja
admissão colidiria com matéria de ordem pública, que pauta a teoria das capacidades, das
formas ad substantiam e da licitude dos bens passíveis de circulação.
contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário
mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.
66 A respeito, v. a O.J. nº 199 da SDI-1: “Jogo do bicho. Contrato de trabalho. Nulidade. Objeto ilícito
(título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010. É nulo o contrato de trabalho
celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que
subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico”.
67 A hipótese é disciplinada pelo art. 22 do Decreto-lei n.º 667/1969: “Art. 22. Ao pessoal das Polícias
Militares, em serviço ativo, é vedado fazer parte de firmas comerciais de empresas industriais de qualquer natureza
ou nelas exercer função ou emprego remunerados”.
68 Em interessante precedente, o Superior Tribunal de Justiça, baseado no princípio da monogamia
(compreendido pela Egrégia Corte como essencial ao regime das famílias no ordenamento brasileiro), decidiu, ao
analisar pretensões sucessórias das partes, pela impossibilidade de reconhecimento de duas uniões estáveis
simultâneas do de cuius – que, após se divorciar, manteve união estável com a própria ex-esposa, bem como com
segunda mulher. In casu, foi privilegiada a união estável com a companheira com a qual não foi casado, em
detrimento da união com a ex-esposa (iniciada após o divórcio), reputada concubinato diante da pré-existência da
outra união (STJ, REsp. 1.157.273, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 18.5.2010).
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O CORPO DO REGISTRO NO REGISTRO DO CORPO; MUDANÇA DE NOME E
SEXO SEM CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO
The registration’s body in the body’s registration; change of the name and sex without
reassignment surgery
Luiz Edson Fachin Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutor.
Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE).
Professor Visitante do King’s College, London. Advogado.
Resumo: Os direitos de personalidade se apresentam como essenciais para o paradigma do
Estado Democrático de Direito. Dentre eles, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo
assumem importante papel na criação da identidade do ser humano e em sua autodeterminação.
Na temática das pessoas transexuais, a garantia do livre exercício do direito ao nome e ao corpo
se torna ainda mais fulcral. Cada vez mais a jurisprudência vem admitindo a possibilidade de
alteração de prenome e sexo no registro civil de transexuais após a cirurgia de
transgenitalização. Quando não há a cirurgia, contudo, a jurisprudência torna a não permitir a
alteração. Considerando-se que a categoria de gênero ultrapassa a ideia de sexo biológico, e
levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, torna-se essencial a defesa da
possibilidade de alteração do registro civil mesmo sem a cirurgia de redesignação sexual, como
forma de garantia da dignidade.
Palavras-chave: Direito ao nome; direito ao corpo; dignidade da pessoa humana; identidade
de gênero; transexuais; cirurgia de transgenitalização.
Abstract: Personality rights are presented as essential to the paradigm of the Democratic State
of Right. Among them, the right to a name and the right to own body play an important function
in creating the identity of human beings and their self-determination. In the theme of the
transgender people, the guarantee to free exercise of the right to the name and the body becomes
even more crucial. Incrisingly, the jurisprudence has acknowledged the possibility of change of
the first name and sex in the civil registry of the transgender person after reassignment surgery.
When there isn’t the surgery, however, the jurisprudence returns to not allow de changing.
Considering that the gender category beyond the idea of biological sex, and taking into account
the principle of human dignity, it is essential defense the possibility of changing in the civil
registry, even without reassignment surgery, as a way to guarantee the dignity.
Key-words: Right to a name; right to the body, human being dignity; gender identity;
transgender; reassignment surgery
O autor agradece a percuciente pesquisa acadêmica sobre o tema de Mauricio Wosniaki Serenato.
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Sumário: Introdução – 1. Direitos da Personalidade em passant – 1.1 Direito fundamental ao
nome – 1.2 Direito fundamental ao corpo – 2. Transexualidade – 2.1 O Direito à mudança de
nome e sexo no Registro Civil – 2.2 O direito à mudança de nome e sexo sem a cirurgia de
redesignação sexual – 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275 – 4. Conclusões.
Introdução
Há íngremes desafios nas relações sociais contemporâneas; ao Direito Civil
brasileiro prospectivo, à luz da dimensão substancial da constitucionalização dos direitos,
impende arrostar as questões que demandam novas respostas, em homenagem ao Direito, à
segurança jurídica material e à liberdade. Uma hermenêutica de respeito à sociedade plural1 se
impõe.
A autodeterminação das pessoas configura-se como elemento fundamental
para a garantia de qualidade de vida. Autodeterminar-se não significa agir irresponsavelmente,
mas sim, exercer as liberdades pessoais do modo mais amplo possível, seja produzindo
escolhas, seja criando uma identidade própria ou mesmo tomando decisões quanto ao próprio
corpo. Essas temáticas todas serão tratadas no decorrer desse artigo, cujas reflexões principiam
elementos para embrenhar-se, mais adiante, nesse debate, e intentam contribuir nessa vereda.
Principiemos pela instalação do tema, pretendendo guiar-se pela sensibilidade
que tal horizonte suscita, sem negligenciar do mandatório baldrame da dogmática jurídica.
Justiça é conceito que em sua concretude não se aparta da segurança jurídica.
A questão posta à controvérsia beneplacita tema central na vida do Direito,
qual seja, o da identidade. A identidade pessoal, isto é, o direito ao ser, bem como o direito ao
corpo, se encapsulam como direitos de personalidade. A identidade, em termos gerais e na
cronologia da biografia jurídica do sujeito, tem como função a individualização e a identificação
da pessoa na sociedade2, de modo que o nome ganha especial relevo na construção identitária.
Mesmo diante da importância que o nome assume, a identidade vai além da mera nomeação,
encontrando eco nas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas das quais a pessoa
toma parte. Identidade, portanto, parte do pressuposto de como o indivíduo se reconhece e como
1 Exemplo lúcido dessa perspectiva encontra assento na importante obra Código Civil Interpretação
conforme a Constituição da República: “(...) No sistema constitucional, portanto, a família tem especial proteção
do Estado, mas não apenas a constituída pelo casamento” (In: TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena;
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Vol. IV. Rio de Janeiro : Renovar, 2014. p. 4).
2 CHOERI, Raul Cleber da Silva. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2010, p. 226.
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é reconhecido pela sociedade, e esse reconhecimento é muito mais complexo que os rótulos
simplistas que costumam se apresentar no campo das relações sociais. Tal reconhecimento logo
se deu no Direito Civil com os apelidos, no sentido menos técnicos da palavra, ou alcunhas.
Ao mesmo tempo, o direito ao corpo é também prerrogativa da personalidade,
na medida em que não é apenas a exteriorização da essência humana, pelo contrário, é também
parte integrante dela. Nele se apresentam, no palco da existência, o ser e o estar.
A transexualidade tem o condão de relacionar de modo imbricado o direito à
identidade com o direito ao corpo, de modo que a efetividade do direito à identidade só é
possível com o livre exercício do direito ao corpo. A relação de transgêneros3 com seu corpo é
essencial para a constituição de sua identidade, isto é, na forma em que se reconhecem e são
distinguidos. Nesse sentido, portanto, o direito ao corpo como formador de identidade deve ser
exercido em liberdade, por parte do transexual, de modo que a há que se questionar a
essencialidade da cirurgia de redesignação sexual para a mudança de nome civil e de sexo.
O presente trabalho, portanto, procurará explorar essa temática, ciente de que
não sustentará verdades absolutas ou dogmas. De início serão explorados os pressupostos dos
direitos da personalidade, em especial atenção ao direito fundamental ao nome e ao corpo como
conformadores de um direito à identidade; aqui será apenas uma retomada sucinta de conceitos
já espraiados na teoria jurídica, a fim de sistematizá-los. Em seguida, procurar-se-á perscrutar
as novas concepções acerca da transexualidade e os debates jurídicos que se aderem à temática,
como o direito à mudança de nome civil e sexo. Neste ponto entrará o questionamento
fundamental da necessidade da cirurgia de redesignação sexual como pressuposto para a
alteração de nome e sexo no registro civil. Além da análise doutrinária da área jurídica e das
modernas teorias de gênero e sexualidade, será esquadrinhada a jurisprudência pátria
concernente ao assunto, bem como a proposta de ADI impetrada pelo Ministério Público
Federal que procura justamente afastar o requisito da cirurgia.
Em suma, para arrematar esta nota introdutória: parece-nos, que a busca da
felicidade não pode ser barrada por preconceitos. Aqui não se subscreve, nem de longe, o
desvario individualista do consumo de tudo e a própria reificação do ser. Dignidade e
responsabilidade se conjugam com a liberdade. O coevo trabalho, portanto, arreia a felicidade
dos transexuais à sua realização pessoal no que tange a suas identidades e corpos, de modo que
3 Existe discussão científica acerca de diferenciação entre transexuais, travestis e transgêneros. Neste
trabalho, adotar-se-á, apenas para este fim, a corrente que trata as expressões como unívocas.
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nas páginas no decorrer deste artigo se elucidará essa relação fundamental. É no respeito que
se funda este caminhar.
1. Direitos da Personalidade en passant
A fim de prosseguir, cumpre, por ora, apenas de forma sumário, reincorporar
aqui conceitos e elementos já debatidos, úteis ao desenvolvimento da temática em exame.
Os direitos da personalidade, como se sabe, surgem em sua dimensão
substancial como corolários daquilo que se denominou Estado Democrático de Direito. Com
base teórica jusnaturalista, os direitos da personalidade se estruturam a partir da ideia de
essencialidade e inerência à própria condição humana. Logo após a Segunda Guerra Mundial,
procurou-se proteger o indivíduo contra os arbítrios provenientes do Estado, entrelaçando os
direitos da personalidade à ideia de dignidade da pessoa humana, e os alçando à proteção
constitucional e internacional. Anderson Schreiber bem versa sobre os direitos de personalidade
como “atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou
seja, na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento
constitucional e proteção nos planos nacional e internacional.”4
Os direitos da personalidade, portanto, dizem respeito aos mais essencial do
sujeito e seus prolongamentos ou projeções, de maneira que merecem especial atenção do
ordenamento jurídico, e, não por acaso, encontram eco na Constituição Federal. Na definição
de Euclides de Oliveira, “entende-se por personalidade o conjunto de caracteres físicos,
psíquicos e morais que compõem o ser humano. Daí decorrem os direitos concernentes à pessoa
humana, que são prolongamentos e projeções da personalidade.”5 Desta definição já se percebe
a amplitude dessa categoria de direitos, ao mesmo tempo em que se dá conta de sua
essencialidade.
Nesta senda, para a análise que se pretende fazer no presente trabalho, uma
reflexão mais detida acerca do direito ao nome e do direito ao corpo será feita, de modo a
conformar uma ideia de direito à identidade. É o que segue.
4 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 13
5 OLIVEIRA, Euclides de. Direito ao nome. In: DELGADO, M. L; ALVES, J. F. Questões controvertidas
no novo Código Civil, Vol. 2. São Paulo: Método, 2004.
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1.1. Direito fundamental ao nome
O direito ao nome é um dos direitos de personalidade positivados no Código
Civil de 2002. Exerce função essencial na individualização do sujeito e em seu reconhecimento,
de modo que recebe ampla proteção jurídica. Versando sobre a temática do nome, José Roberto
Neves Amorim apresenta uma definição para o instituto:
A melhor doutrina atribui ao nome a natureza jurídica de direito de
personalidade, na medida em que, como sinal verbal ou mesmo marca do
indivíduo, o identifica dentro da sociedade e da própria família e é capaz de
ser tutelado erga omnes. A lei assegura o direito ao nome, assim como seu
registro em local adequado, obedecidas as formalidades, criando a
particularização da pessoa, no mundo jurídico. Ele faz, pois, parte integrante
da personalidade.6
Sendo um direito da personalidade, a doutrina apresenta características
inerentes ao direito ao nome, pelo que se segue a classificação feita por José Roberto Neves
Amorim7, entre as quais se podem citar a obrigatoriedade, a indisponibilidade, a exclusividade,
a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a não-cessibilidade, a extracomercialidade, a
inexpropriabilidade, a intransmissibilidade , a irrenunciabilidade e a imutabilidade, neste caso,
relativa. Sem adentrar a esse âmago, impende singelo rememorar de tais atributos.
A obrigatoriedade diz respeito, como sugere a qualificação, a obrigação de se
ter um nome e de registrá-lo oficialmente perante Cartório de Registro Civil. Também se
entende a obrigatoriedade como a obrigação de usar o nome, sem embargo de eventuais
alcunhas. A indisponibilidade, por sua vez, diz respeito a incapacidade de dispor do nome, aqui
se tendo disposição em uma acepção ampla, como o poder de determinar o destino do direito
subjetivo. A exclusividade se baseia na ideia do nome pertencer a uma única pessoa. Por
evidente que se admite a existência de homônimos, de modo que a exclusividade resta
relativizada, sob tais limites e sentidos.
A imprescritibilidade se refere ao fato de o titular desse direito da
personalidade jamais perder o direito ao nome por ação ou inação. A inalienabilidade, por seu
turno, abrange a ideia que o nome, pelo menos da pessoa física, não pode ser alienado, trocado
6 AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 8.
7 Ibidem.
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por dinheiro, ou por qualquer outro mecanismo. De forma semelhante, a característica de
incessibilidade aduz que o nome não pode ser cedido, visto que impossibilitaria de exercer a
individualização que é sua função primordial. Ainda nesse sentido, a extracomercialidade
indica que o nome não é comerciável, sendo essa característica corolário da incessibilidade e
da inalienabilidade. O nome é também inexpropriável. Embora o termo ensaie a equivocada
ideia de que seria o direito ao nome um direito patrimonial, a essência dessa característica é,
em verdade, proteger o nome do indivíduo contra sua mudança arbitrária, ainda que por parte
do Estado em alegado interesse público. Também é intransmissível; não pode ser transferido,
justamente porque, sendo um direito da personalidade, deriva da ideia de inerência ao ser
humano, como outrora apontado. Ainda, há que se ponderar a irrenunciabilidade: o titular do
nome não pode dele renunciar, em função da própria de ideia de indisponibilidade sobre os
direitos da personalidade.
Por fim, entretanto não menos importante, há a imutabilidade, que, em
verdade, é predicado de máximo interesse para a presente análise. A imutabilidade, a rigor, é
mesmo relativa, como se reconhece em doutrina, pois “embora se preveja a imutabilidade do
nome, esta é relativa, pois devem ser consideradas as exceções legais, retirando-se o caráter
absoluto desse princípio.”8 Muito mais que uma limitação por meio de critérios hermenêuticos,
a imutabilidade do nome já se encontra relativizada na própria legislação, haja vista o próprio
Código Civil, na matéria de direito de família, ou ainda a Lei de Registros Públicos, que prevê
possibilidade de mudança de nome nas hipóteses de prenome ridículo, ou de integração de
apelido notório, por exemplo.
A grande ingente questão que se coloca, portanto, é o fato do nome ser
elemento constitutivo de magna importância para a formação da identidade pessoal. Isso
significa dizer que ao ser individualizado por um nome, a pessoa deve se sentir confortável em
relação a isso, e, a nomenclatura deve refletir a forma como a pessoa se sente sobre si mesma e
como é reconhecida pela comunidade. Direito fundamental ao nome, dessa forma, deve levar
em conta não apenas a existência de um nome em si, mas a sua função social na criação da
identidade do ser humano.
Cada vez mais se admite, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a
possibilidade de alteração do registro civil no caso de transexuais. O tema será mais bem
versado adiante, contudo, a título de se dar concretude ao argumento supra, a mudança de nome
no caso de transexuais é vital para a configuração de uma identidade que, de fato, represente o
8 Idem, p. 38.
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imo do indivíduo. Negar essa possibilidade ao transexual é violar um direito fundamental, visto
que o nome, conforme já defendido, não se resume a uma nomenclatura, apresenta uma função
social importantíssima na construção identitária do ser humano e mesmo em sua qualidade de
vida. Nesse sentido, comunga-se com a teorização de Patrícia Corrêa Sanches:
Isso porque uma pessoa com aspecto representativo social do gênero feminino
e que contenha documento de identificação com prenome masculino sofre
enorme constrangimento em suas relações sociais, haja vista o nome não
corresponder à identidade da pessoa, assim como a própria sociedade passa a
não conseguir êxito na identificação do sujeito.9
Sendo um direito fundamental de tamanha importância, é impensável que o
nome possa trazer sofrimento à pessoa. Se assim se sucede, por evidente, que tal direito não
cumpre função e é incoerente com a sistemática constitucional vigente a impossibilidade a
alteração do prenome. Adiante haverá maior aprofundamento nesta temática.
1.2. Direito fundamental ao corpo
O ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da autonomia privada
em vários campos do direito privado, desde a autonomia para contratar, até a autonomia sobre
a própria vida. É dentro desse contexto de autonomia e liberdade que se insere a discussão do
direito ao corpo. Por certo que a tutela jurídica que se destina a autonomia privada no campo
dos contratos em muito diverge da autonomia privada que se traduz no campo dos direitos da
personalidade. No entanto, cabe resgatar a nova concepção de autonomia privada, que
ultrapassou um modelo altamente liberal de autonomia da vontade, para encontrar dentro do
âmbito do ordenamento limites e restrições. Isso significa dizer que se assegura aos indivíduos
ampla margem de liberdade, contudo, restrita a uma ideia de funcionalização do direito e,
igualmente, dos parâmetros constitucionais de proteção à dignidade humana. Na ambiência do
direito ao corpo, portanto, o paradigma da autonomia privada deve ser analisada em sua
essencialidade, isto é, respeitando-se a liberdade que se deve conferir ao indivíduos, ao mesmo
tempo em que se emprega atenção, e no caso do direito ao corpo, especial atenção, aos limites
provenientes do ordenamento jurídico.
Os limites de que tratamos são os limites do ordenamento, vale dizer, campo
e o horizonte das limitações decorrem objetivamente da racionalidade sistemática do Direito,
logo não se confundem com limites de cunho moral e religioso. Pleno há de ser, por certo, a
9 SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, M. B. (Coord.).
Diversidade sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 426-427.
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liberdade de crença e de vivenciar a respectiva religiosidade numa sociedade democrática e
plural; por igual, pleno há de ser, no espaço social regulado pelo Estado democrático, o respeito
à diversidade. Nesse sentido, Anderson Schreiber apresenta uma elucidativa síntese:
O tratamento jurídico reservado ao corpo humano sofreu, ao longo da história,
profunda influência do pensamento religioso. Visto, por muitos séculos, como
uma dádiva divina, o corpo humano era considerado como merecedor de uma
proteção superior aos desígnios individuais. O pensamento moderno rompeu
com essa perspectiva, recolocando gradativamente a integridade corporal no
campo da autonomia do sujeito. Nesse sentido, passou-se a falar em ‘direito
ao próprio corpo’, expressão que procura enfatizar que o corpo deve atender
à realização da própria pessoa, e não aos interesses de qualquer entidade
abstrata, como a Igreja, a família ou o Estado.10
Tal como na discussão do direito ao nome, portanto, o corpo também cumpre
uma função social importante na conformação de uma identidade do sujeito e mesmo de sua
própria felicidade. Incontestável que no mundo contemporâneo há uma supervalorização da
estética, e, por conseguinte, do corpo humano, de modo que constitui elemento relevante na
qualidade de vida dos indivíduos.
Sem embargo da proteção jurídica que deve se destinar ao corpo, é fulcral que
seja garantido ao sujeito a autodeterminação sobre si mesmo, não sendo lícito que a guarida que
se procure dar a esse direito de personalidade configure restrição desmedida e arbitrária da
liberdade de dispor sobre a corporalidade. “A inviolabilidade da pessoa lhe garante o poder de
autodeterminação em relação ao seu corpo e a sua saúde.”11
O direito ao corpo encontra-se positivado no artigo 13 do Código Civil de
2002; ali, se proíbe a disposição sobre o corpo quando importar em diminuição permanente da
integridade física ou contrariar os bons costumes, salvo por exigência médica. A dicção da lei
quando analisada sob exegese literal lógico-dedutiva importaria em se proibir cirurgias de
natureza meramente estética, ou mesmo aplicações de tatuagens ou piercings no corpo humano.
Entende-se que o objetivo do legislador era vedar atos de violência contra o próprio corpo,
sendo outro o campo da liberdade e da autodeterminação oriundas da autonomia corporal.
Atente-se ainda para o relevante vocábulo “bons costumes”, um conceito jurídico
indeterminado que pode servir de ensejo para as mais infundadas restrições.
10
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. Op. cit., p. 32.
11 CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 77.
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No caso que pretende se analisar, ou seja, a transexualidade, o artigo 13
poderia, ser, como já foi, utilizado para barrar a disposição dos transexuais ao seu próprio corpo
e a formação de sua identidade e dignidade, na medida em que se veda(va) a possibilidade de
realização de cirurgia para redesignação de sexo. Atualmente, tendo em vista que a
transexualidade ainda vem sendo considerada no rol de doenças psíquicas, admite-se a cirurgia
sob o argumento da recomendação médica. Se por um lado é interessante que a cirurgia se afaste
do campo da estrita ilegalidade, por outro, tal discurso encontra eco em um tradicionalismo por
tratar uma dissonância entre identidade de gênero e sexo biológico como uma doença. Não se
está a defender que a/o transexual não tenha o devido acompanhamento psicológico e médico,
contudo, soa como um anacronismo histórico assentar que discussões de gênero e sexualidade
ainda sejam tratadas no rol de doenças. Schreiber, mais uma vez, apresenta ideia luminosa sobre
a temática:
Examinando a Resolução CFM 1.955/2010 em conjunto com o artigo 13 do
Código Civil, o leitor poderá facilmente perceber que a cirurgia de mudança
de sexo é lícita no Brasil, desde que um médico ateste o estado patológico do
seu paciente. Com isso, atende-se ao requisito da exigência médica, pois, nas
palavras do Conselho Federal de Medicina, a cirurgia de mudança de sexo
consiste em tratamento idôneo aos casos de transexualismo. O resultado pode
parecer progressista, já que se permite, ao menos nessas circunstâncias, a
realização da cirurgia. A abordagem, contudo, é a mais retrógrada possível. A
opção sexual (sic) vem tratada como doença. E o promissor debate jurídico e
ético em torno da autonomia corporal fica reduzido a uma discussão
supostamente técnica, em que o elemento determinante passa a ser um
atestado médico.12
A autonomia corporal em relação ao desejo do transexual realizar a cirurgia
de redesignação sexual, ou de não realizá-la, será ferida em breve. Por ora, resta frisar que o
direito fundamental ao próprio corpo, assim como todos os direitos, admite restrições atinentes
à própria Constituição. No caso dos transexuais, agressão à dignidade está em não permitir que
o indivíduo modifique seu corpo para se adaptar a sua identidade de gênero. Constitui igual
agressão determinar que o transexual realize a cirurgia de redesignação sexual para que só então
possa ter sua identidade de gênero reconhecida. De todo o modo, impende em preservar o poder
de autodeterminação sobre o próprio corpo em qualquer das situações.
2. Transexualidade; alguns apontamentos relevantes para o tema em desate jurídico
12
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. Op. cit., p. 44
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Para que se possa adentrar na discussão da mudança de nome e sexo no
registro civil, com ou sem a cirurgia de redesignação sexual, faz-se mister analisar, ainda que
brevemente e de modo não aprofundado, o fenômeno da transexualidade. Aqui serão
descortinados apenas alguns elementos que à guisa de apontamentos preambulares auxiliam no
exame jurídico da matéria.
Antes mesmo de perquirir a transexualidade, contudo, impende realizar uma
sintética definição de alguns conceitos fundamentais na temática dos estudos de gênero e
sexualidade, quais sejam, sexo biológico, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Sexo biológico pode ser definido como o conjunto de características
fisiológicas, nas quais se encontram as informações cromossômicas, os órgãos genitais e os
caracteres secundários capazes de diferenciar machos e fêmeas. Sexo, portanto, teria essa matriz
biológica. Sem embargo disso, muitos autores questionam essa pré-determinação que o sexo
biológico impõe. Judith Butler questiona o lugar pré-discursivo que se dá ao sexo biológico,
colocando-o como uma verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir13.
Juridicamente, há a determinação legal de designação de um sexo (masculino ou feminino) ao
indivíduo quando de seu nascimento, de modo que tal classificação toma como base apenas o
sexo biológico, por meio da observância da genitália.
O conceito de gênero, por sua vez, visa a suplantar as limitações do sexo
biológico, levando em consideração que não apenas características biológicas e anatômicas
determinam a identidade de cada sujeito. Trata-se de um conceito deveras complexo. O conceito
de gênero é formulado, numa certa perspectiva, a partir de discussões dos movimentos
feministas, justamente para contrapor a noção de sexo biológico. Não se trata de negar
totalmente a biologia dos corpos, mas enfatizar que existe uma construção social e histórica
sobre as características biológicas. Sendo assim, a categoria de homem e a categoria de mulher
se dariam em decorrência de uma construção da realidade social e não meramente de uma
diferenciação anatômica. Interessante analisar a definição da historiadora norte-americana Joan
Scott sobre essa terminologia:
Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais
entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as explicações biológicas,
como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de
subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma
13
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
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força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as
construções sociais: a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis
próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres.
O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um
corpo sexuado.14
Percebe-se, portanto, que a categoria gênero é muito mais ampla que a ideia
de sexo biológico. Mais uma vez ressalta-se que não se desconsidera os elementos biológicos
do corpo, pelo contrário, tal qual os elementos sociais, culturais, históricos e psicológicos, os
elementos anatômicos também são constitutivos do gênero, mas não há uma decorrência lógica
entre sexo e gênero. Importante fazer menção que as modernas teorias de gênero,
principalmente aquelas ligadas à Teoria Queer15 não restringem o gênero ao binarismo
masculino/feminino, admitindo, dessa forma, um gênero neutro.
Orientação sexual, ao seu turno, pode se referir ao sexo das pessoas que o
sujeito elege para se relacionar afetivamente e sexualmente. Importante frisar que não se trata
de uma opção sexual, visto que o indivíduo não escolhe deliberadamente por qual sexo sentirá
atração afetiva e sexual. Os estudos atuais sobre a temática, portanto, apontam para o inatismo
da orientação sexual, de modo que ela não pode ser “corrigida” socialmente como apontam
irresponsável e preconceituosamente alguns setores da sociedade. Tradicionalmente se
conformam três tipos de orientação sexual, a heterossexualidade, que se trata do desejo afetivo
e sexual por pessoas do sexo oposto, a homossexualidade, que se refere à atração afetiva e
sexual por pessoas do mesmo sexo, e a bissexualidade, que é a atração afetiva e sexual por
pessoas de ambos os sexos. A orientação sexual independe do gênero e da identidade de gênero
do sujeito, conforme se verá a seguir.
14
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórico. Educação e Realidade, Porto
Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99.
15 A Teoria Queer tem base sociológica no pós-estruturalismo, principalmente a partir das teorizações de
Michel Foucault. A ideia dessa corrente sociológica é desconstruir a classificação dos sujeitos prela aparência de
seus corpos, bem como problematiza comportamentos atribuídos a cada um dos gêneros. A Teoria Queer também
questiona a classificação dos gêneros em apenas masculino ou feminino, defendendo padrões de gênero que não
se enquadram nesse binarismo. “A teoria queer aposta na superação dos binarismos (masculino/feminino,
heterossexual/homossexual) por meio de uma desconstrução crítica, desafiando os conhecimentos que se
constroem os sujeitos como sexuados e marcados pelo gênero, e que assumem a heterossexualidade ou a
homossexualidade como categorias que definiriam a verdade sobre elas.” c.f. GORSDORF, Leandro Franklin.
Direitos LGBT e a identidade do sujeito constitucional: um caminho para além do arco-íris. In: CLÈVE, C. M.
(coord.). Direito Constitucional Brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 691.
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A identidade de gênero figura como conceito fundamental para compreender
a transexualidade. Trata-se da forma como o sujeito se sente e se apresenta para si e para a
comunidade na condição de homem ou de mulher, ou de ambos, sem que haja uma relação
direta com o sexo biológico. A identidade de gênero, portanto, diz respeito ao gênero com o
qual o sujeito se identifica, retomando a ideia de gênero como uma categoria ampla que vai
além da mera determinação biológica. Dessa forma é então, nessa linha, possível que o sujeito
que tenha nascido com órgãos genitais masculinos se identifique com o gênero masculino, ao
mesmo tempo em que também é totalmente possível que se identifique com o gênero feminino.
Para Judith Butler, identidade de gênero é um processo de se fazer o corpo feminino ou
masculino, de acordo com características que são tidas como diferenças e sobre as quais se
atribuem significados culturais16. Impende ainda notar que a identidade de gênero independe
da orientação sexual, de modo que o sujeito pode ter nascido com órgãos genitais masculinos,
se identificar com o gênero feminino, e apresentar orientação sexual heterossexual,
homossexual ou bissexual. Não há, portanto, qualquer decorrência lógica necessária entre a
identidade de gênero e a orientação sexual.
Compreendidos esses pressupostos teóricos, o entendimento da
transexualidade torna-se mais simples. Transexual, dessa forma, é o sujeito que possui uma
identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento, ou seja, há discrepância entre
os atributos físicos do sexo biológico e a forma como o indivíduo se reconhece em questão de
gênero. Trata-se do sujeito que nasce com genitálias correspondentes ao sexo masculino ou
feminino, mas que se identifica com o gênero oposto. Nas palavras de Paulo Roberto Iotti
Vecchiatti, “transexual é a pessoa na qual há dissociação entre o seu sexo biológico e sua
identidade de gênero (ou seja, entre o seu sexo físico e seu sexo psíquico).”17 A pessoa
transexual pode externar o desejo de passar por cirurgias para adequar seu corpo ao gênero com
a qual se identifica, inclusive buscando a cirurgia de redesignação sexual. Importante ressaltar,
contudo, e conforme se verá adiante, que o transexual pode não desejar a cirurgia de
readequação sexual e isso não significa que não haja dissociação entre seu sexo biológico e sua
identidade de gênero.
O termo “transexualismo” foi evidenciado, ao que se depreende, em 1923 sob
tal perspectiva; registros históricos já demonstravam a ocorrência do fenômeno. A partir da
16
BUTLER, Judith. Op. cit.
17 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento
civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense; São Paulo: Método,
2012, p. 88.
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medicalização da vida e da própria existência social, no século XX especialmente o campo
médico busca uma definição para a transexualidade, no rol de patologias. Essa visão da
transexualidade permanece até hoje no campo médico, a que se comprova pela Resolução nº
1.955/10 do Conselho Federal de Medicina que a define como: “desvio psicológico permanente
de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou
autoextermínio.” Tereza Rodrigues Vieira, por sua vez, aponta para o fato de existirem
correntes que pregam pela despatologização da transexualidade, conforme se observa:
Há uma corrente que prega a não exigência do Diagnóstico psiquiátrico como
condição de acesso ao tratamento, visto que a certeza quanto ao pertencimento
ao gênero oposto, a qual às vezes se expressa pela crença numa identidade
fixa, se repete no cotidiano do atendimento a pacientes transexuais. Porém,
afirmam que a transexualidade não necessariamente fixa uma posição
subjetiva, e destacam a importância de deslocar a manifestação social da
transexualidade da necessidade de traduzi-la imediatamente numa patologia,
numa estrutura ou num modo de funcionamento específico, o que nos
permitiria escapar da sua psiquiatrização. A experiência transexual, neste
sentido, comportaria várias formas singulares de subjetivização. Além disso,
discute-se também que não existe um processo específico de construção das
identidades de gênero nos transexuais, e desta forma não se deve esperar de
transexuais um comportamento fixo, rígido, adequado às normas da
feminilidade ou de masculinidade.18
Parece-nos coerente que a transexualidade também deixe de constar entre o
rol de doenças, por todo o estigma que isso acarreta aos transexuais. Isso não significa dizer
que não se deve destinar todo o apoio psicológico e mesmo médico aos transexuais, no entanto,
busca-se apenas tratar esse fenômeno de gênero de forma mais humanizada, em um âmbito
social, e não exclusivamente patológico.
Em qualquer situação, no entanto, o transexual deve ser tratado com
dignidade e com respeito. Isso significa que deve-se coibir qualquer forma de violência aos
transexuais, seja violência explícita, aqui considerando os altos índices de homicídios contra
pessoas transexuais, em virtude de um preconceito irracional, chamado transfobia, seja
violência simbólica. Neste sentido, é o que deflui quando se nega ao transexual o direito de
mudança de nome e mudança de sexo no Registro Civil. Da mesma forma, estabelecer a cirurgia
de redesignação sexual para que haja a mudança no registro Civil exige uma mutilação para o
reconhecimento de um direito. Esses temas serão versados a seguir.
18 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidadade. In: DIAS, M. B. (Coord.). Diversidade sexual e Direito
Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 413.
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2.1 O direito à mudança de nome e sexo no Registro Civil
Conforme já repassado, o direito ao nome é essencial na instauração da
identidade do sujeito, aqui se observando a identidade como a necessidade de afirmar a própria
individualidade, tendo, pois, o nome um lugar privilegiado em tal função19. Ao lado do nome,
o direito à devida designação sexual também cumpre papel salutar na criação da identidade
própria. Muito embora se compreenda que seria mais adequado falar em identidade de gênero,
considerando que no registro civil consta a palavra “sexo”, utilizar-se-á a nomenclatura oficial,
ainda que em desacordo com a linguagem acadêmica. Conforme se verá, a mudança de nome
sem a mudança de sexo é incompleta, ainda não dirime os constrangimentos pelos quais a
pessoa transexual é exposta, configurando ainda inconteste violência simbólica. Para fins
didáticos, no entanto, tratar-se-á primeiramente da mudança de nome e depois da transição de
sexo.
Retomando: a característica da imutabilidade do nome é relativa, na medida
em que tanto na legislação, quanto na jurisprudência se admite a mudança de nome em casos
específicos. Uma das hipóteses que dá ensejo à mudança do registro civil trata da situação de
prenome que exponha a pessoa ao ridículo, haja vista o parágrafo único do artigo 55 da Lei de
Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). Infraconstitucionalmente é justamente nesse ponto que se
ampara a possibilidade de mudança de nome de pessoas transexuais. O fato é que o nome,
mesmo que adequado à identidade de gênero que ele representa, torna-se vexatório quando
atribuído a uma identidade de gênero diversa daquela que busca indicar. Tal situação gera
inquestionável constrangimento à pessoa transexual, que é obrigada a tornar evidente o
descompasso entre sua identidade de gênero e seu sexo biológico. “Além do mais,
apresentando-se a pessoa que se submeteu à cirurgia para redesignação sexual com
características físicas femininas, obrigá-la a se identificar com documentos que contêm um
prenome masculino é exposição certa ao ridículo e a execração pública, como há muito vem
acontecendo.”20
19 DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel
Caeiro. Lisboa: Moraes, 1961.
20 LUZ, Antônio Fernandes da. Transexualismo: o direito ao nome e ao sexo. In: Bastos, E. F; Sousa, A. H.
(Coord.). Família e Jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
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Para além das justificativas infraconstitucionais que ensejam a alteração de
nome para transexuais, a fundamentação encontra eco na Constituição, sobretudo, por meio dos
princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Em verdade, a dignidade da
pessoa em muito está atrelada com a configuração de sua própria identidade. Uma vida digna,
portanto, pressupõe o autorreconhecimento e o reconhecimento da comunidade em consonância
com o reconhecimento de si mesmo. Impende notar, conforme aponta o Carlos Eduardo
Pianovski Ruzyk, que a dignidade da pessoa humana não se vincula ao “fundamento de uma
expressão abstrata, pautada no racionalismo, mas na realidade de sua intersubjetividade, como
ente que não prescinde da alteridade, encontrando nesta o lugar privilegiado em que a dignidade
da pessoa humana pode adquirir seu conteúdo.”21 Eis que daí surge a ligação com o princípio
da solidariedade constitucional, que se funda na ideia de alteridade. A solidariedade se engendra
na ideia de sociedade, vez que pressupõe a existência do outro, tendo em vista seu embasamento
na alteridade. O princípio da solidariedade constitucional, portanto, se configura como essencial
ao bem-estar social e se faz imprescindível na proteção de minorias e grupos vulneráveis. Pois
bem, garantir o direito ao nome à pessoa transexual é dar efetividade a esse princípio, na medida
em que garante ao transexual uma maior possibilidade de bem-estar e proteção, de que tanto
necessitam.
Dar a possibilidade ao transexual de modificar o nome (rectius: prenome),
portanto, configura elemento fundamental para assegurar sua dignidade e sua identidade.
Antônio Fernandes da Luz desenvolve bem essa relação, prontamente inserindo a
essencialidade de mudança de sexo que será explorado adiante:
O pedido de alteração do nome e do sexo no assentamento do registro civil,
formulado por aquela pessoa que se submeteu a cirurgia para a redesignação
sexual, tem por objeto o direito de expor o seu novo estado, sob pena de ver o
seu direito de personalidade violado, fato este que constitui mais uma
condenação à clandestinidade. (...) Portanto, a alteração do sexo e do nome
encontra fundamento na própria Constituição Federal e na legislação
infraconstitucional, e a sua não permissão constitui flagrante violação aos
direitos de personalidade da pessoa que se submeteu à cirurgia para
redesignação sexual que, aliás, há muito vem sofrendo constrangimentos e
agressões no meio social em que vive e por parte de agentes públicos. 22
21
PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Dignidade da pessoa humana. In: CLÈVE, C. M. (coord.).
Direito Constitucional Brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 171.
22 LUZ, Antônio Fernandes da. Op. cit.
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Ao lado da transformação de nome, a mudança da identidade de gênero, ou,
vulgarmente, sexo, também se faz essencial na construção da identidade do sujeito e na garantia
de sua dignidade e qualidade de vida. Tal qual o direito de mudança de nome, a mutação de
sexo também encontra respaldo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana
e da solidariedade social. Da mesma forma que configuraria imenso constrangimento a
constância de nome diverso da identidade de gênero que o sujeito proclama, a mudança de nome
sem a substituição do sexo em si também traduz compressão contra o transexual, que continuará
sendo estigmatizado e discriminado no âmbito social. Anderson Schreiber é judicioso em sua
análise:
A função do registro civil é dar segurança à vida em sociedade. Um registro
civil que atribua a uma pessoa um sexo que ela não ostenta na vida social é
um registro falso, errado, que exige retificação. Tal qual o nome, o sexo deve
ser visto não como um estado registral imutável ou como uma verdade
superior ao seu titular, mas como um espaço essencial de realização da pessoa
humana. Já se viu que o direito contemporâneo vem se abrindo a uma certa
autonomia da pessoa na alteração do seu nome, sempre que não haja risco a
um interesse coletivo (como no caso do devedor contumaz ou do suspeito de
investigação criminal, que pretende dificultar sua identificação). A mesma
abordagem deve ser reservada ao sexo, para reconhecê-lo como uma esfera de
livre atuação e desenvolvimento da pessoa. A ciência caminha nesse sentido
e aqui convém que o direito não fique para trás.23
Reconhecer o direito a mudança do sexo no registro civil, portanto, coloca o
direito em consonância com as modernas teorias sociais de gênero, que não se subsumem
apenas a um normativismo proveniente da anatomia, todavia considera os elementos sociais,
culturais e históricos da definição de gênero, e, acima de tudo, apontam uma função social para
o gênero, qual seja, a garantia da felicidade e qualidade de vida do indivíduo. Há que se frisar,
dessa forma, que não cabe ao Estado ou mesmo à sociedade fazer ponderação sobre a
possibilidade de mudança de nome e sexo dos transexuais. Sendo um direito deve apenas ser
reconhecido e declarado. Isso não significa dizer que não se deva prestar toda a assistência
necessária aos transexuais, e mesmo que se deva obstar as discussões jurídicas e sociológicas
sobre o fenômeno, no entanto, em se tratando de direitos fundamentais, nada disso deve
significar barreira ao seu livre exercício.
Conveniente realçar que a alteração do registro civil depende de sentença que
a consume, e a jurisprudência vem se pacificando no sentido de reconhecer o direito à mudança
do nome e do sexo. Nada obstante isso, veja-se:
23
SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 208.
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RETIFICAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. MUDANÇA DE NOME E DE
SEXO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. O homem que
almeja transmudar-se em mulher, submetendo-se a cirurgia plástica
reparadora, extirpando os órgãos genitais, adquire uma ‘genitália’ com
similitude externa ao órgão feminino, não faz jus à retificação de nome e de
sexo porque não é a medicina que decide o sexo e sim a natureza. Se o
requerente ostenta aparência feminina, incompatível com a sua condição de
homem, haverá de assumir as consequências, porque a opção foi dele. O
Judiciário, ainda que em procedimento de jurisdição voluntária, não pode
acolher tal pretensão, eis que a extração do pênis e a abertura de uma cavidade
similar a uma neovagina não tem o condão de fazer do homem, mulher. Quem
nasce homem ou mulher, morre como nasceu. Genitália similar não é
autêntica. Autêntico é o homem ser do sexo masculino e a mulher do feminino,
a toda evidência. (TJRJ, Ap. Cível 1993.001.06617, Rel. Des. Geraldo Batista,
DJ 18/03/1997)
Observam-se aí argumentos de caráter eminentemente naturalístico e sem
observância à realidade social; anote-se que se trata de julgado anoso do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, nada obstante ainda haja, em todo o Brasil, argumentos dessa monta; também
há julgados que caminham no sentido de indeferir o pedido de alteração do sexo no registro
civil:
RETIFICACAO NO REGISTRO CIVIL - CONVERSÃO DE SEXO
MASCULINO PARA O FEMININO - INADMISSIBILIDADE
TRANSEXUALISMO - CIRURGIA PARA MUDANCA DE SEXO -
PROCRIACAO - IMPOSSIBILIDADE - ESTADO CIVIL - CAPACIDADE
- CASAMENTO - REQUISITOS DIFERENCA DESEXO - AUSENCIA LEI
DE REGISTROS PUBLICOS - VEDACAO. APELACAO PROVIDA. Ação
que visa retificação no registro civil e conversão de sexo masculino para o
feminino. Mesmo tendo o apelado se submetido à cirurgia de mudança de
sexo o pedido de retificação no assento de nascimento não pode prosperar -
Caracteriza-se o transexualismo quando os genitais afiguram-se como de
um sexo, mas a personalidade atende a outro - Porém os transexuais, mesmo
após a intervenção cirúrgica não se enquadram perfeitamente neste ou
naquele sexo, acarretando-se problemas graves com tal intervenção. Não se
constitui, ademais o apelado como sendo do sexo feminino uma vez que ha
impossibilidade de procriação porquanto não possui o mesmo os órgãos
internos femininos. Ao se deferir o pedido do apelado estar-se-ia outorgando
a este uma capacidade que efetivamente não possui. Por outro lado ao
permitir-se a retificação do nome e sexo do apelado em possível casamento
que venha a se realizar estaria contrariando frontalmente o ordenamento
jurídico vigente, ademais estaria ausente um dos requisitos para o casamento,
qual seja a diferença de sexos. A Lei de Registros Públicos veda a alteração
pretendida, tutelando interesses de ordem pública. (TJPR, AC 300198 PR
Apelação Cível - 0030019-8, DES. REL. Osíris Fontoura, DJ 08/11/1994).
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Para além de uma matriz biologicista, o julgado leva em consideração para
sua definição de sexo feminino a capacidade de procriação. Atualmente o prognóstico assim
vem:
APELAÇÃO CÍVEL - REGISTRO CIVIL -
ALTERAÇÃO NOME E SEXO - AVERBAÇÃO Á MARGEM DO
REGISTRO: OBRIGATÓRIA - CERTIDÃO DE REGISTRO DE
NASCIMENTO: RESUMO DAS INFORMAÇÕES CONSTANTES NO
REGISTRO. 1. As alterações no nome e sexo do registrado devem ser
averbadas à margem do registro civil, em decorrência da Lei no 6.015 /1973,
não podendo haver omissões. 2. A certidão de nascimento é um resumo das
informações contidas no registro. 3. Para evitar constrangimentos ao
registrado, que alterou nome e sexo, nas certidões a serem expedidas deve
constar apenas que há averbações realizadas em virtude de decisão judicial,
sem menção à natureza ou conteúdo delas. (TJMG, AC 10024082645136001
MG, DES. REL Oliveira Firmo, DJ 21/05/2013)
APELAÇÃO CÍVEL - RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE REGISTRO
CIVIL - MUDANÇA DE NOME E SEXO - TRANSEXUAL -
POSSIBILIDADE - REALIZAÇÃO DE CIRURGIA ABLATIVA DANDO
CONFORMIDADE DO ESTADO PSICOLÓGICO AO
NOVO SEXO COMO MEIO CURATIVO DE DOENÇA
DIAGNOSTICADA - APLICAÇÃO DO PRINCÍCIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E DA IDENTIDADA SEXUAL - RELEITURA DA
LEI DE REGISTROS PUBLICOS AO MANDAMENTO
CONSTITUCIONAL - MUTABILIDADE DO NOME - ALTERAÇÃO
PARA CONSTAR ALCUNHA - POSSIBILIDADE - PROTEÇÃO
ALBERGADA PELO NOVO CÓDIGO CIVIL - APELO PROVIDO. "A
mudança de nome, em razão da realização de cirurgia de transgenitalização,
adequando o estado psicológico ao seu novo sexo, no caso de transexuais, é
possível pelo ordenamento jurídico pátrio, como corolário interpretativo a
partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do respeito
à identidade sexual do indivíduo, trazendo com isso, releitura hodierna aos
dispositivos normativos insertos na Lei de Registros Públicos , evitando a
exposição dos mesmos à situações de chacota social diante da
desconformidade entre seus documentos pessoais e a nova condição
morfológico-social. (TJPR, AC 3509695 PR 0350969-5, Des. Rel. Rafael
Augusto Cassetari, DJ 04/07/2007)
Muitos outros julgados poderiam constar neste trabalho, no entanto, os ambos
acima já dão conta de demonstrar a mudança de tônica da jurisprudência no sentido de
reconhecer o direito das pessoas transexuais de alterarem nome e sexo em seus registros. Esse
compreensão é tributária de uma aplicação constitucionalizada do direito, na medida em que
garante efetividade a princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana.
Também há de se levar em conta que cada vez mais, ainda que tardiamente, o direito tem se
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aberto às contribuições das demais ciências sociais, ampliando seu rol de intérpretes, como
defende Peter Häberle. Faz-se mister abandonar noções de completude e infalibilidade do
direito, ultrapassando de vez a visão kelseniana (aquela do normativismo positivista), para
atentar ao fato de que o direito positivado, por si só, merece hermenêutica atualizadora capaz
de dar justas soluções aos meandros da vida. Os desafios, contudo, ainda são muitos, como se
analisará a seguir.
2.2. O direito a mudança de nome e sexo sem a cirurgia de redesignação sexual
O direito ao próprio corpo deve ser tomado em uma ampla acepção, de modo
que envolve tanto ações quanto omissões, ou melhor dizendo, trata-se de poder fazer ou deixar
de fazer algo com o próprio corpo, sem que haja qualquer punição pela escolha deliberada.
Conforme já referido, o gênero exerce um lugar social notabilíssimo que está
acoplado a busca por uma vida de qualidade e a instituição de uma identidade própria. Ademais,
consoante aqui se adotou na linha da presente exposição, sem descurar de pontos de vista
distintos, gênero e sexo biológico são conceitos diversos, de modo que, muito embora a criação
de uma identidade de gênero leve em conta o fator biológico este não é causa determinante para
a compreensão do próprio gênero. Dessa forma, é totalmente compreensível que uma pessoa
transexual queira manter seu órgão biológico, tendo em vista não ser decisivo para a
configuração de sua identidade de gênero. Há também que se considerar que a manutenção da
genitália pode ser fator essencial para a qualidade de vida do transexual.
Pelo exposto, configura-se como infração ao direito ao próprio corpo que se
exija da pessoa transexual a cirurgia de redesignação sexual, para que só então tenha direito à
mudança de nome e sexo em seu registro civil. De fato, ordenar a outrem a mutilação do próprio
corpo, o uso de medicamentos necessários para que se reconheça um direito apresenta-se como
constrangimento. Nesta senda, salutares são as ponderações de Patrícia Corrêa Sanches:
Mas será que se faz necessária a mudança no corpo de uma pessoa a ensejar a
mudança do sexo? Atualmente delineia-se o gênero sexual por sua função
social, mais como um fenótipo comportamental do que o aspecto da genitália.
Assim o indivíduo teria deferido o pedido de mudança do gênero sexual desde
que demonstrasse que possui o sexo que socialmente representa, invertido
daquele fisicamente suportado. A temática aqui discutida tem por objetivo
pautar as discussões sobre a mudança de sexo, principalmente no tocante à
função social da determinação do gênero sexual na sociedade, demonstrando
assim que, para sua alteração, não há necessidade de uma intervenção
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cirúrgica de modificação das características físicas, estas sim restritas a um
ambiente de privacidade.24
Compete atinar que a cirurgia de redesignação sexual, como toda e qualquer
cirurgia, apresenta inegáveis riscos aos indivíduos, além de, por si só, ser uma cirurgia
demasiadamente agressiva e invasiva. Nos dizeres de Patrícia Sanches, “a cirurgia de mudança
de sexo, tecnicamente denominada de transgenitalização, demonstra-se absolutamente
agressiva, além de irreversível.”25 Não parece adequado, dentro do ponto de vista constitucional
da dignidade da pessoa humana, tornar a cirurgia condição sine qua non para a mudança de
nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria uma violação a um direito.
Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao nome e identidade negados, se fizer a
cirurgia para que então possa ter reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao
corpo agredido. Uma análise sistemática da Constituição de 1988 dá conta de demonstrar que
esse escambo entre direitos não parece ser a tônica que o constituinte pretendeu dar a lei
fundamental. A Constituição de 1988 surgiu como uma luz ao final de um sombrio túnel; sua
essência está na garantia de todos os direitos previstos em seu texto, de modo que se faz
inadmissível impor a uma parcela da sociedade que tenham que fazer uma opção entre direitos
fundamentais.
Note-se ainda que, em algumas situações, para além da autonomia privada do
indivíduo, que por si só já seria suficiente para garantir a possibilidade de mudança de nome e
sexo sem a cirurgia de transgenitalização, há outros empecilhos. Não é fato raro que as pessoas
se reconheçam como transexuais após idade mais avançada. Nesses casos não é incomum que
a cirurgia de redesignação sexual seja desaconselhada por médicos, haja vista a probabilidade
de complicação. Em situação como essa estaria o sujeito fadado ao constrangimento público,
sem nunca poder alterar nome e sexo sem seu registro civil? Por certo que se trataria de solução
deveras cruel e desproporcional. Não pode o indivíduo ser penalizado por não querer se
submeter aos riscos que a operação pode trazer. Argumentos poderiam destacar que se trata de
um ônus da escolha do sujeito, no entanto, como bem se sabe, a transexualidade não é uma
escolha pessoal, diversos são os fatores que produzem no indivíduo uma identidade de gênero
diversa do sexo biológico. Em todo caso, não há que se arrazoar em ônus quando, vez que o
direito fundamental à identidade do sujeito pode, sem qualquer problema, ser assegurado.
24
SANCHES, Patrícia Corrêa. Op. cit.
25 Idem.
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Outra situação que merece análise é o fato de que, por todo preconceito
existente na sociedade, as pessoas transexuais são discriminadas, excluídas, jogadas ao degredo.
De acordo com índices divulgados e conhecidos, a evasão escolar entre transexuais beira aos
73%. Inúmeras são as causas, desde o preconceito dos demais colegas, pais e professores, até
mesmo da instituição que não assegura o nome social, por exemplo. De toda sorte, fato é que
número expressivo da população de transexuais no Brasil encontra-se em vulnerabilidade
social. Muito embora o SUS realize as cirurgias de transgenitalização, a realidade da saúde
pública brasileira ainda é bastante conhecida. Nesse contexto, poucas são as pessoas transexuais
capazes de arcar economicamente com a cirurgia em instituições de saúde privadas. Não faz
qualquer sentido que em todo esse período de aguardo o transexual seja obrigado a permanecer
com um registro que não o representa. Não se pode admitir um critério censitário para o
reconhecimento de um direito.
Fica evidente, portanto, que a exigência da cirurgia de redesignação sexual
vai de encontra à eleição da pessoa transexual, de modo que cabe exclusivamente a ela,
compreendendo todas as suas implicações, realizá-la ou não. Impor um pré-requisito a um
direito fundamental mutila, em nosso ver, a própria definição de direitos fundamentais e direitos
de personalidade, que se baseiam na ideia de inerência ao ser humano. Uma vez se tratando de
direitos inerentes ao sujeito, impor condições se transmuta em genuíno autoritarismo, contra
sujeitos que tem a prerrogativa de viverem a vida exercendo suas potencialidades e suas
liberdades: é o que o direito deve garantir.
Há julgados na direção do reconhecimento de mudança de nome e sexo após
a cirurgia de transgenitalização. A jurisprudência nessa temática, sem embargo, se encontra
segmentada; colhe-se em Sérgio Carrara reflexão importante sobre a atuação jurisdicional:
A justiça também tem concedido, em muitos casos de cirurgia, o direito de
mudança de nome e redesignação do sexo em documento de identidade, mas
a decisão ainda depende do arbítrio dos juízes. O fato de a mudança
documental depender na maioria dos casos da realização da cirurgia de
transgenitalização tanto consagra a distância entre os diferentes saberes
autorizados (médicos, psicológicos e operadores do direito) e as experiências
concretas dos sujeitos sociais, quanto marca, sob a justificativa de sanar a
inadequação entre sexo e gênero, a reinstauração de um perverso binarismo.
Àqueles que não conseguem ou não desejam a operação, como é o caso de
muitas travestis, é em geral negado um direito fundamental intrinsecamente
relacionado à sua identidade.26
26
CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Revista Bagoas: revista de
estudos gays. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, n. 5, Natal: UFRN, 2010, p. 137.
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Observe-se agora os julgados que caminham no entendimento da
impossibilidade de mudança de sexo sem a realização da cirurgia de redesignação sexual:
RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - Pedido de alteração
de nome e sexo- Possibilidade apenas em relação ao nome - Pessoa que apesar
de não submetida à cirurgia de transgenitalização, se apresenta na sociedade
como do sexo feminino -Nome masculino que lhe acarreta constrangimentos
e aborrecimentos - Admitida a alteração do nome, negada a alteração para
constar ser do sexo oposto - Observância do princípio de veracidade do
registro público - Recurso parcialmente provido. (TJSP, APL
320109120108260602 SP 0032010-91.2010.8.26.0602, Des. Rel. Mendes
Pereira, DJ 28/11/2012)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.
SENTENÇA QUE EXTINGUIU O FEITO SEM RESOLUÇÃO DO
MÉRITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. INTERESSADO QUE
AINDA NÃO REALIZOU A CIRURGIA DE NEOVAGINOPLASTIA.
IMPOSSIBILIDADE. CARÊNCIA DE AÇÃO. SENTENÇA QUE DEVE
SER MANTIDA. O Apelante pleiteia alteração do nome e de sexo no registro
civil, afirmando que desde tenra idade, apesar da conformação genital
masculina, psicologicamente se sente mulher, fazendo-se tornar conhecido
pelo prenome de Milena. Todavia, o recorrente ainda não se submeteu à
cirurgia de mudança de sexo, o que não permite alteração do nome e
do sexo em seu registro civil. Precedentes jurisprudenciais. SENTENÇA
MANTIDA. Recurso NÃO provido. (TJBA, APL 03683226420128050001
BA 0368322-64.2012.8.05.0001, Des. Rel. José Olegário Monção Caldas, DJ
15/10/2013)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE
NASCIMENTO QUANTO AO NOME E SEXO DO AUTOR.
TRANSEXUALISMO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO
SEXUAL. INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO DO REGISTRO, UMA
VEZ NÃO PREVISTA CIRURGIA PARA MUDANÇA DE SEXO, NEM
MESMO PROVA ROBUSTA ACERCA DA ABRANGÊNCIA DO
TRANSTORNO SEXUAL. APELAÇÃO DESPROVIDA. (TJRS, Apelação
Cível Nº 70056132376, Sétima Câmara Cível, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol,
Julgado em 13/11/2013)
Os julgados acima sucintamente referidos demonstram, no conteúdo que
explicita a ementa, que o Poder Judiciário ainda reluta em reconhecer o direito dos transexuais
de mudarem nome e sexo em seus registros, sem a realização da operação. Cumpre respeitar o
posicionamento, mas parece-nos, salvo melhor juízo, que tal bússola limita o exercício de um
direito fundamental; julgados há, contudo, que não se eclipsaram diante dessa necessidade:
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APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.
TRANSGENÊRO.MUDANÇA DE NOME E DE SEXO. AUSÊNCIA DE
CIRURGIA DE TRANGENITALIZAÇÃO. Constatada e provada a condição
de transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização para
efeitos de alteração de seu nome e designativo de gênero no seu registro civil
de nascimento. A condição de transgênero, por si só, já evidencia que a pessoa
não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor, que a sua real
condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta
socialmente DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº
70057414971, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui
Portanova, Julgado em 05/06/2014)
RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. ALTERAÇÃO
DO NOME E DO SEXO. TRANSEXUAL. INTERESSADO NÃO
SUBMETIDO À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
CONDIÇÕES DA AÇÃO. PRESENÇA. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA.
AUSÊNCIA. SENTENÇA CASSADA. O reconhecimento judicial do direito
dos transexuais à alteração de seu prenome conforme o sentimento que eles
têm de si mesmos, ainda que não tenham se submetido à cirurgia de
transgenitalização, é medida que se revela em consonância com o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. Presentes as condições da ação
e afigurando-se indispensável o regular processamento do feito, com instrução
probatória exauriente, para a correta solução da presente controvérsia, impõe-
se a cassação da sentença. (TJMG, AC 10521130104792001 MG, Des. Rel.
Edilson Fernandes, DJ 07/05/2014)
Os entendimentos acima expostos demonstram uma tendência no Judiciário
brasileiro. Decisões que levam em conta as peculiaridades do caso concreto, as informações
advindas das demais ciências e a uma interpretação constitucionalizada do direito se mostram
essenciais para a construção de uma boa cultura judiciária no país, com justiça e segurança.
Passemos nessa toada aos termos da ADI que iremos, então, expor e examinar
quantum satis.
3. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4275
Em julho de 2009, o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria
Geral da República, em peça firmada pela Doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira,
ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF buscando dar ao artigo 58 da Lei
nº 6.015/73 interpretação conforme a Constituição, de modo a reconhecer aos transexuais,
independentemente da cirurgia de transgenitalização, o direito a substituição do prenome e sexo
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no registro civil. A ADI, ao tempo da feitura deste tempo, em agosto de 2014, aguarda
julgamento.
A petição inicial da referida ADI apresenta os pressupostos teóricos da
discussão, conceitos essenciais tais quais os tratados neste trabalho, bem como analisa os
pressupostos jurídicos que dão ensejo ao pedido, nomeadamente, o princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana. Trata da ADI da essencialidade da mudança de nome e sexo, de
modo que não basta apenas mudar o nome e manter o sexo biológico, pois a situação de
constrangimento se manteria, conforme se observa no seguinte trecho:
De resto, se a alteração de nome corresponde a uma mudança de gênero, a
consequência lógica, em seu sentido filosófico mesmo, é a alteração do sexo
no registro civil. Do contrário preserva-se a incongruência entre a identidade
da pessoa e os dados do registro civil.
Segue a petição inicial defendendo o direito das pessoas transexuais à cirurgia
de transgenitalização e de modo conexo, também defende a possibilidade de alteração de
prenome e sexo sem a realização da referida cirurgia. Ponto que se apoia no seguinte trecho:
(...) Não é a cirurgia que concede ao indivíduo a condição transexual. Portanto,
o direito fundamental à identidade de gênero justifica igualmente o direito à
troca de prenome, independentemente da realização da cirurgia, sempre que o
gênero reivindicado (masculino ou feminino) não esteja apoiado no sexo
biológico respectivo.
Trata-se ali de uma chance de autodeterminação. Ao fim da petição inicial
apresentam-se requisitos, tal qual propõe a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal
Alemão, a serem fixados no caso de não realização da cirurgia. São eles: a maioridade civil, a
convicção do transexual, há pelo menos três anos, de pertencer ao gênero oposto ao biológico,
a presunção, com alta probabilidade, de não mais modificação de gênero, requisitos a serem
atestados por um grupo de especialistas que avaliarão aspectos médicos, psicológicos e sociais.
Muito embora se subscreva aqui a necessidade de despatologização da
transexualidade e a possibilidade cada vez maior de autodeterminação dos transexuais, os
critérios elencados pelo MPF desempenham papel de relevo na destinação de assistência médica
e psicológica à pessoa transexual, na proteção e promoção dos direitos das pessoas transexuais,
e não sirvam de arbítrio para maior sofrimento dos transexuais.
4. Conclusões
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O exposto no presente trabalho requer, antes de tudo, pedir vênia à exposição
sucinta diante de questões tão sensíveis e de impacto na dogmática jurídica do Direito Civil
contemporâneo. Além disso, permite, ainda assim, concluir que a dignidade das pessoas
transexuais passa por sua capacidade de autodeterminação e pela possibilidade de criação de
uma identidade própria. Para tanto, é necessário que haja reconhecimento de direitos
fundamentais de personalidade, quais sejam, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo.
O reconhecimento do direito a mudança de nome e sexo por parte dos
transexuais é demanda que deve alcançar proteção. Não cabe ao Estado optar pela realização
da cirurgia de redesignação sexual ou não.
Segundo considerado ao longo deste estudo e trabalho modestos, conceitos
de identidade de gênero e sexo biológico se diferem, nada obstante este possa ser elemento de
construção daquele. A relação do sujeito com seu próprio corpo é elemento fundamental da
intimidade, não cabendo maiores questionamentos, mas sim o devido respeito. O transexual
pode se realizar mantendo o órgão genital biológico ou retirando. Em qualquer situação,
contudo, deve lhe ser assegurado o direito à felicidade e a realização própria. Para tanto, é
necessário tanto uma atividade institucional, no sentido de garantir os direitos a essa parcela da
situação, quanto uma atividade social e comunitária no sentido de integrar essa parcela e lhes
tratar com o devido respeito, sem preconceitos infundados. O caminho ainda é longo.
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DIREITOS E CONFLITOS DE VIZINHANÇA
Law and neighborhood conflicts
Paulo Lôbo Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.
Professor Emérito da UFAL. Doutor em Direito Civil (USP). Advogado.
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil.
Resumo: Estudo da ordenação jurídica brasileira dos direitos de vizinhança, sob a ótica
preferencial do direito civil contemporâneo. Apreciação das mútuas interferências com o
direito público, principalmente o direito urbanístico e o direito ambiental. Deveres de
vizinhança, interesse coletivo e a função social da propriedade e da posse.
Palavras-chaves: direitos de vizinhança; vizinhança; direito de construir
Abstract: Study of the Brazilian legal ordering of neighborhood rights under the
preferred viewpoint of contemporary civil law. Consideration of the interference with the
public law, especially the urban law and environmental law. Neighborhood duties,
collective interest and the social function of property and possession.
Keywords: neighborhood rights; neighborhood; right to build
Sumário: 1. Conteúdo e abrangência - 2. Uso anormal da propriedade - 3. Árvores
limítrofes - 4. Passagem forçada - 5. Passagem de cabos e tubulações - 7. Limites entre
prédios e direito de cercar ou murar - 8. Direito de construir.
1. Conteúdo e abrangência
Os direitos de vizinhança compreendem o conjunto de normas de
convivência entre os titulares de direito de propriedade ou de posse de imóveis localizados
próximos uns aos outros. Para efeitos legais, vizinhos não são necessariamente os
contíguos, mas todos os que possam ser afetados pelo uso do imóvel. As normas de
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regência dos direitos de vizinhança são preferentemente cogentes, porque os conflitos
nessa matéria tendem ao litígio e ao aguçamento de ânimos. Na dimensão positiva,
vizinhos são os devem viver harmonicamente no mesmo espaço, respeitando
reciprocamente os direitos e os deveres comuns. Vizinhos são não apenas os que estão ao
lado, mas os que habitam imóveis acima ou abaixo, daí porque as normas dos direitos de
vizinhança aplicam-se conjugadamente com as do condomínio edilício.
Para o direito brasileiro, os direitos de vizinhança são autônomos e
concebidos como limitações ao direito de propriedade. Algumas legislações inserem os
conflitos de vizinhança nas servidões legais, como direito real de servidão. Os direitos de
vizinhança constituem as mais antigas limitações ao direito de propriedade individual, no
mundo luso-brasileiro. As limitações são de natureza majoritariamente negativa e
preventiva. Mas há, igualmente, limitações positivas, das quais emergem deveres
positivos aos que se qualificam juridicamente como vizinhos.
As situações em que se classificam os direitos de vizinhança são as mais
comuns na vida social, a merecerem maior atenção do legislador. Segundo Pontes de
Miranda1, a técnica legislativa, a esse respeito, representa a elaboração de alguns séculos,
na qual muito se deve aos costumes. Para Orlando Gomes2, o critério regulador das
relações de vizinhança é dado por três teorias principais: (1) a da proibição dos atos de
emulação (utilidade ou inutilidade do ato do proprietário); (2) a do uso normal da coisa
própria; (3) a do uso necessário (os atos do proprietário são lícitos, se motivados pela
necessidade). O Código Civil de 2002 perfilhou a teoria do uso normal da coisa própria,
preconizada por Ihering, que procura estabelecer a linha demarcatória entre as
interferências lícitas e ilícitas, com apoio na ideia de que o exercício do direito de
propriedade não deve exceder as necessidades normais da vida cotidiana.
O Código Civil reformulou os tópicos cuja disciplina anterior era
considerada insuficiente, pela doutrina. Destacam-se as alterações e inovações relativas
ao uso anormal da propriedade, à passagem forçada, à passagem de cabos e tubulações,
às águas e ao direito de construir, que procuraram resolver demandas contemporâneas.
Os direitos de vizinhança atêm-se às relações jurídicas intersubjetivas
que emergem da convivência em determinado espaço territorial. Paralelamente, incidem
1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 449.
2 GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 221.
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as normas de direito administrativo, notadamente as de caráter urbanístico, emanadas do
legislador federal (Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 2001) e do legislador
municipal, relativamente às edificações e aos limites de tolerância entre vizinhos. São
igualmente incidentes as normas de direito ambiental. Os limites ao uso dos imóveis,
entre vizinhos, são tanto de direito privado, onde recebem a denominação de direitos de
vizinhança, quanto de direito público. Há outras normas de direito privado correlatas que
regulam a convivência entre vizinhos, em determinadas circunstâncias, como a Lei do
Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766, de 1979), a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245,
de 1991) e as normas do Código Civil sobre condomínio edilício.
Quando em conflito, os interesses coletivos prevalecem sobre os
interesses particulares. De acordo com San Tiago Dantas3, há casos em que os conflitos
entre vizinhos se compõem pela atribuição de um dever e de um direito fundados no
princípio da coexistência. Há outros em que se compõem pela atribuição de um dever e
um direito fundados no princípio da supremacia do interesse público. Os direitos de
vizinhança, relacionados ao primeiro princípio, são gratuitos, e os ônus do proprietário
são encargos ordinários da propriedade. Os relacionados ao segundo princípio são
onerosos e quem o suporta tem direito de ser indenizado.
2. Uso anormal da propriedade
O uso anormal da propriedade, ou da posse, é o que colide com os
padrões comuns de conduta, adotado na comunidade onde ela se insere, ou com as normas
legais cogentes. O parâmetro a ser observado nessa matéria é o da razoabilidade, ou da
conduta razoável. Conduta normal ou razoável é a que corresponde ao tipo médio de uso
do imóvel, de acordo com o consenso da comunidade (cidade, bairro, vila, rua), que
permite convivência harmônica, sem prejuízos ou incômodos evitáveis para o outro ou os
outros. O conceito é indeterminado, a reclamar a análise de cada caso, mas segundo os
parâmetros de razoabilidade. No regime da propriedade privada, o seu titular é
3 DANTAS, F. C. de San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro: Forense,
1972, p. 264.
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responsável pelas atividades de seu direito e pelos atos que se propagam para outros
objetos de apropriação4.
As expressões utilizadas na legislação anterior de “uso nocivo” e,
principalmente, “mau uso” revelaram-se inadequadas, porque restritivas, tendendo-se ao
abuso do direito da propriedade. Segundo Ebert Chamoun5, a parte geral do direito de
vizinhança sofreu total remodelação, no anteprojeto (e no Código Civil, que dele
resultou). Impunha-se a reforma, por causa da falta de critérios firmes de solução dos
variados e graves conflitos de vizinhança, que têm ensejado grandes dificuldades para os
juízes. Louva-se na teoria desenvolvida por San Tiago Dantas que conjuga a teoria do uso
normal e a da necessidade, que é o estatuto da vizinhança comum, e o princípio da
supremacia do interesse público. Devem sempre cessar as interferências anormais que
podem ser evitadas ou comprometem a habitação dos imóveis adjacentes.
O uso da coisa é anormal quando repercute no uso normal da outra, em
relação às pessoas que a habitam. Inclui-se no conceito legal de uso anormal, o não uso,
quando provoca interferências no vizinho (por exemplo, em casa fechada, água não
tratada de piscina na qual proliferam mosquitos transmissores de doença). Não se
confunde com o abuso do direito (CC, art. 187), que pode também decorrer dos conflitos
de vizinhança. O uso anormal não é apenas de imóvel, mas de coisas móveis, que possam
provocar tais interferências em quem habita um imóvel. Por exemplo, o barulho excessivo
de escapes abertos de veículos automotores. Os que sofrem são os que habitam o imóvel;
e, por ser imóvel, não podem deslocá-lo para distanciá-lo dessas interferências
prejudiciais.
As interferências são as que causam ou podem causar prejuízos à saúde,
ao sossego ou à segurança dessas pessoas, provocadas pelo uso de propriedade vizinha.
Não há necessidade se provar que o prejuízo já ocorreu, pois basta a ameaça ou o risco
de ofensa à saúde, ao sossego ou à segurança.
O vizinho prejudicado legitima-se às pretensões para prestação tanto
negativa, principalmente para cessação dos fatores de perturbação dos direitos de
vizinhança, quanto positivas, para prevenir a interferência ou o dano. Legitima-se,
igualmente e cumulativamente, à pretensão à indenização por danos materiais ou danos
4 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.
5 CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito das
Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: TJRJ,
v. 23, 1970, p. 22.
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morais. Estes últimos são pressupostos, in re ipsa, pois violam direitos da personalidade,
principalmente a integridade psíquica, a intimidade e a vida privada do vizinho
prejudicado pela interferência.
Não se exige a cessação de todas as interferências, razão porque a lei
refere aos “limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”. A lei leva em
conta certa tolerância indispensável para a viabilidade da vida contemporânea,
especialmente nos espaços urbanos. Os limites ordinários de tolerância são os que
resultam do uso normal da propriedade, segundo o tipo médio e razoável, além dos quais
o prejuízo não deve ser suportado. Por exemplo, a realização de uma festa eventual ou
episódica, com grande movimentação de pessoas no imóvel, animadores e músicas está
dentro dos limites ordinários de tolerância; mas estes são excedidos quando feitas com
muita frequência ou quando prejudicam o descanso noturno dos vizinhos. É normal que,
eventualmente, sejam modificadas as posições dos móveis, porque os moradores desejam
alterar a ambientação do apartamento; mas é anormal que todos os dias sejam arrastados
móveis, repercutindo o barulho nos vizinhos contíguos. Não há uso anormal da
propriedade se a interferência resultar de fato natural, não imputável ao titular do imóvel.
Não se inclui nos limites ordinários de tolerância a existência anterior
do uso anormal; no direito brasileiro não prevalece o modo de uso anterior ou da pré-
ocupação, porque tal conduta não configura direito adquirido. Assim, as atividades
poluentes, que existiam antes de a urbanização delas se aproximar ou cercá-las (por
exemplo, depósito de cal e cimento), não servem como óbice a que os direitos de
vizinhança a elas não se apliquem, uma vez que passaram a causar interferências na saúde,
na segurança e no sossego dos que habitam em suas proximidades. O STJ decidiu que
determinado Município se abstivesse de utilizar antiga pedreira como depósito de lixo,
pois o “interesse de poucos não podia prevalecer sobre o interesse de muitos” (REsp nº
163.483). Por igual, o novo proprietário ou possuidor é responsável pelo uso anormal
praticado pelo anterior, pois os direitos de vizinhança constituem obrigações propter rem,
vinculando-se ao imóvel e responsabilizando quem detenha sua titularidade.
O fato de permitirem as leis de direito público que se instalem indústrias
ou serviços em lugar em que não os havia, ou eram proibidos, de modo nenhum basta
para se entender que cessou o direito de vizinhança, pois a permissão somente pode
entender-se para eficácia no plano do direito público. Por essa razão, o art. 1.278 do
Código Civil estabelece que, se as interferências forem justificadas pelo interesse público,
o causador delas terá de pagar ao vizinho, ou vizinhos, indenização cabal.
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A tolerância às interferências, imposta por decisão judicial, não suprime
do vizinho afetado a totalidade do exercício dos direitos de vizinhança. Se o juiz se
convencer que a situação é de interferência que deva ser tolerada, considerando que o
prejuízo à saúde, ou ao sossego, ou à segurança é fato, o vizinho afetado tem direito de
exigir sua redução ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis, a qualquer tempo.
Cabe-lhe o ônus de provar tal possibilidade, o que demonstra que a decisão judicial não
é definitiva, mas sim alterável rebus sic stantibus, de acordo com as circunstâncias
supervenientes.
É imensa a casuística dos tribunais sobre o que se considera uso
anormal da propriedade: a fumaça que invade os imóveis vizinhos, a queima de material
inflamável, o badalar de sinos de igrejas sem necessidade de culto, a poluição das águas,
os odores fortes, o canto alto de aves, as águas não tratadas que facilitam a proliferação
de mosquitos transmissores de doenças, a pulverização com inseticidas, a manutenção de
fossa junto ao prédio de outrem, o barulho excessivo em bares, festas e cultos religiosos,
a prostituição em imóveis residenciais, a guarda e manuseio de explosivos, produtos
químicos e agrotóxicos. No caso dos cultos religiosos, a liberdade de religião há de se
harmonizar com os direitos de vizinhança.
Saúde é direito fundamental, constitucionalmente tutelado, abrangente
do físico ou da mente. A saúde psicofísica não pode ser prejudicada, por conduta de
terceiro vizinho, quando a conduta é evitável. A saúde é de quem habita ou tem de
frequentar o imóvel. Segurança é material e moral, tanto do imóvel quanto de quem o
habita. Sossego é a tranquilidade normal que a pessoa tem como legítima expectativa de
usufruir em sua habitação. Sossego não é ausência de barulho, mas convivência com
barulho por todos tolerável. O barulho que se tolera de dia não é tolerável à noite. O
sossego é comprometido não apenas pelo som insuportável, mas também pela luz, pelos
odores e por outros motivos de inquietação.
O barulho é, certamente, o maior problema decorrente dos crescentes
adensamentos populacionais em áreas urbanas. Os prédios, cada vez mais altos e
próximos, e os apartamentos cada vez menores, desafiam os limites da suportação dos
sons provocados pela utilização das propriedades vizinhas. O barulho adoece e
compromete a qualidade de vida. De acordo com estudos referidos pela revista de saúde
The Lancet (v. 383, p. 1.270, abr. 2014), o barulho pode provocar irritação e perturbação
do sono, aumentando a prevalência de estresse, doença cardiovascular e mortalidade nos
grupos expostos. Em crianças, o ruído ambiental também pode afetar negativamente os
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resultados de aprendizagem e o desempenho cognitivo. Segundo os estudos, mesmo
quando não é forte, o ruído pode perturbar o sono, desencadeando reações no organismo,
como aceleração dos batimentos cardíacos.
O Código Civil assegura ao proprietário ou possuidor direto do imóvel
o direito e a pretensão a que o dono do imóvel vizinho promova a demolição ou a
reparação necessária deste, quando haja ameaça de ruína. Pode, conjuntamente, exigir
caução pelo dano que julga iminente, também conhecida como caução de dano infecto.
A caução tem como pressupostos a grande probabilidade do dano e antecipação da
indenização. O vizinho, a quem cabe demolir ou reparar, não pode definir quais as
medidas que julgar adequadas.
Também pode o proprietário ou possuidor do imóvel exigir do vizinho,
que esteja a promover construção nova em terreno deste, garantias contra prejuízo
eventual, em caso de dano iminente ou provável. Pouco importa que a obra tenha recebido
autorização da administração pública competente, ou alvará de construção, ou que o
vizinho comprove que observa o projeto assim aprovado, ou que não teve culpa. Se ficar
constatada a probabilidade de dano iminente, é lícito ao vizinho, sob risco, exigir
garantias, que podem ser fiança pessoal, caução em dinheiro, penhor, hipoteca, seguro ou
fiança bancária. Não se obsta a obra, mas a garantia tem por fito prevenir sua segurança.
No caso de recusa à prestação de garantia, cabe ação judicial para sua obtenção. Enquanto
não se constrói a obra, o direito do vizinho pode ser exercido para que se abstenha. Se já
construiu, constatado o dano iminente, a pretensão é para a demolição ou reparação
necessária antes de qualquer dano.
A pretensão ou exigibilidade, no âmbito extrajudicial, e a ação judicial
pelo uso anormal da propriedade, podem ser dirigidas contra o proprietário do imóvel,
fonte das interferências prejudiciais, ainda que o causador seja locatário ou outro
possuidor direto (por exemplo, usufrutuário, usuário, comodatário). Do mesmo modo, a
pretensão e a ação judicial podem ser dirigidas ao possuidor direto, pois a obrigação de
não causar interferências não é apenas do proprietário, mas de quem esteja na qualidade
de vizinho. A legitimidade passiva expandida, na ação judicial, tem sido admitida pelos
tribunais (STJ, REsp 480.621 e REsp 622.203).
O uso é também anormal quando viola princípios fundamentais da
Constituição, tais como a garantia da vida privada, da intimidade, da inviolabilidade da
moradia e da proteção do meio ambiente. O Código Florestal (Lei nº 12.651, de 2012)
considera que, na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias
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às suas disposições são consideradas uso irregular da propriedade, conceito análogo ao
do uso anormal, passíveis, além de responsabilidade civil, de sanções de caráter
administrativo, civil e penal. As obrigações previstas na Lei nº 12.651 têm natureza real
e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio
ou posse do imóvel rural, ou seja, não podem ser afastadas por ato de autonomia privada.
3. Árvores limítrofes
As árvores integram o imóvel, quando localizadas dentro de seus
limites. O direito distribui as titularidades, quando as árvores têm seu tronco na linha
divisória, quando as raízes e galhos de árvores ultrapassam os limites e alcançam o imóvel
vizinho e quando os frutos estão pendentes ou caídos no imóvel vizinho, que são fontes
permanentes de conflitos. Essa matéria não diz respeito apenas ao conflito entre
particulares, mas também à proteção do meio ambiente, que sobre aquele prevalece.
Há presunção legal de pertencimento da árvore a ambos os titulares de
imóveis vizinhos, quando o tronco situa-se na linha divisória entre eles, tendo em vista
sua função de marco divisório. Pouco importa que o tronco esteja mais em um imóvel
que em outro. O tronco, para ser considerado comum, deve estar na linha divisória em
sua parte mais próxima da raiz. Cada vizinho é dono de metade, em parte indivisível. Não
é comum a árvore se o tronco enraíza-se inteiramente em um imóvel e inclina-se sobre o
outro. A lei (CC, art. 1.282) alude a tronco de árvore, mas há plantas que não são árvores,
como as palmeiras, principalmente os coqueiros, cujas plantações são comuns no litoral
tropical brasileiro. Não são consideradas árvore porque estas se caracterizam pelo
crescimento do diâmetro do seu caule para a formação do tronco, que produz a madeira e
tal não acontece com as palmeiras. Para os fins da lei, no entanto, as palmeiras se
enquadram no conceito genérico de árvore. Quando a árvore cresce, pode vergar-se para
um dos lados, podendo, inclusive, ultrapassar a linha divisória, no espaço aéreo; ainda
assim, pertence exclusivamente ao titular do imóvel onde estão suas raízes. Quando a
árvore inclina seu tronco sobre o imóvel vizinho, causando-lhe prejuízos (por exemplo,
quedas dos frutos ou palhas do coqueiro sobre telhado), o titular prejudicado tem
pretensão à indenização. A pretensão ao corte da árvore depende de parecer favorável das
autoridades ambientais, quanto ao risco de tombar, causando prejuízo aos que forem por
ela alcançados, ou de decisão judicial.
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O Código Civil mantém antiga regra, anterior ao advento do direito
ambiental, autorizativa do corte das raízes e ramos de árvores que ultrapassem o limite
do imóvel, pressupondo-se a existência de dano ou risco de dano para o imóvel vizinho.
O corte da raiz ou das raízes, que assim ultrapassam os limites, pelo titular do terreno
invadido, pode acarretar a morte do vegetal, mas essa é uma possível consequência que a
lei desconsidera. A norma legal alude a ramos e raízes, não se admitindo o corte do tronco
ou parte do tronco. O vizinho tem direito de se apropriar dos galhos e raízes que cortar,
sem necessidade de justificar ou alegar dano. Tem sido decidido ser dispensável o pedido
de autorização judicial para fazer o corte, que já é dada por lei. O direito ao corte dos
galhos e raízes não é admitido por algumas legislações estrangeiras e outras o
condicionam à prova de que são prejudiciais.
Com relação aos frutos, os que estão pendentes não podem ser colhidos
pelo titular do terreno sobre o qual parte da árvore se projeta; o dono da árvore pode
colhê-los, se for possível fazê-lo a partir de seu próprio imóvel. Porém, os frutos que
caírem sobre o terreno vizinho passam a pertencer ao titular deste, que livremente os pode
recolher e dar o destino que pretender. O fato do pertencimento é a queda sobre o terreno
do vizinho. Nesse sentido, Pontes de Miranda6: o direito de propriedade, no caso dos
frutos caídos, não é oriundo do direito de apropriação, mas de fato jurídico stricto sensu,
tal como acontece com a propriedade dos frutos da árvore que caem. A queda dos frutos
é natural, não pode ser provocada, tal como sacudir os galhos ou a árvore.
Para Serpa Lopes7, a solução do direito brasileiro é contrária à doutrina
romanista, consistente em manter no dono da árvore a propriedade dos frutos, mesmo
quando caídos além dos limites de sua propriedade. Os romanos entendiam que o dono
da árvore tinha o direito de colher e recolher os frutos que se encontrassem no terreno do
vizinho. O Código Civil português prevê, igualmente, o direito à apanha dos frutos, que
pode ser exigível contra o vizinho, sendo responsável pelo prejuízo que causar. A norma
do Código Civil brasileiro alude apenas ao vizinho particular; assim, se os frutos caírem
em terreno pertencente ao domínio público, eles continuam na titularidade do dono da
árvore, que os pode recolher.
6 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 485.
7 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 526.
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4. Passagem forçada
Todo aquele que é titular de imóvel encravado em outro ou que tenha
necessariamente de passar por outro imóvel para alcançar as vias públicas de circulação
ou os espaços públicos, ou para se chegar à fonte de água, tem direito à passagem forçada.
Esse direito não se confunde com a servidão de passagem, pois esta pode ser instituída
ainda que não seja caminho necessário. A passagem forçada, típico direito de vizinhança,
é limitação ao direito de propriedade. Funda-se, segundo Caio Mário da Silva Pereira8,
no princípio da solidariedade social, com origem no direito medieval. A pretensão a que
o vizinho suporte a passagem é imprescritível.
O direito de passagem existe por força de lei, não necessitando de
registro para que produza seus efeitos. Os requisitos são: (1) Falta ou perda de acesso a
via pública, nascente de água ou porto; (2) constrangimento ao vizinho para que assegure
a passagem; (3) pagamento de indenização ao vizinho.
A passagem forçada é suportada pelo imóvel, através do qual o caminho
necessariamente se dá, de acordo com condições e cultura do lugar. Ainda que o imóvel
beneficiado com a passagem forçada seja circundado por outro ou por outros imóveis, o
titular do imóvel que a suporta não pode se valer dessa circunstância para negá-la, pois o
critério é o que a lei determina: sofre o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais
natural e facilmente se prestar à passagem. É o critério da utilidade e do menor custo para
ambas as partes. Se o caminho ainda não existir, terá seu rumo fixado pelo juiz, que se
valerá, se preciso for, de perícia. A oposição ou a dificuldade postas pelo vizinho
caracterizam ilícito, qualificado como abuso do direito, fazendo nascer a ação. Por ser
limitação legal ao direito de propriedade, mister se faz a prova de sua necessidade.
Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção
de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela
motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse
público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do
respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem
inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação
8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Revista e atualizada por Carlos Edison
do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. IV, p. 186.
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do domínio (STJ, REsp 316.336). O Código Civil de 2002 abandonou o requisito do
imóvel encravado no outro, optando pela inexistência ou perda de acesso a via pública,
nascente ou porto.
Esclarece o enunciado 88 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ: o
direito de passagem forçada também é garantido nos casos em que o acesso à via pública
for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração
econômica. Na mesma direção, tem sido decidido que cabe a passagem forçada quando o
acesso à via pública seja perigoso ou insuficiente. Essa interpretação extensiva da norma
legal é a que melhor realiza a função social da propriedade. Porém, se o proprietário ou
possuidor tem servidão de caminho por outro imóvel, presume-se não precisar do acesso
forçado. Tampouco basta, para se reconhecer o direito de passagem forçada, a
comodidade em se encurtar a distância entre o imóvel e a via pública, ou a mera tolerância
do vizinho; a necessidade há de ser provada.
Se a perda de acesso resultar de alienação parcial e divisão de um
imóvel, se constrangerá à passagem uma das suas partes, sem agravamento para a situação
de terceiros. O titular da parte que ficou com o acesso, será constrangido a permitir a
passagem ao titular ou possuidor da parte que o perdeu. Essa situação ocorre, com
frequência, quando se extingue condomínio comum, pela divisão entre os ex-
condôminos; nem sempre é possível divisão cômoda que permita o acesso a via pública
a todas as partes resultantes. Se não houver explicitação da passagem, esta será
determinada judicialmente.
O imóvel (primeiro), cuja parte foi alienada a terceiro, poderia já utilizar
passagem forçada sobre terreno do vizinho (segundo). A alienação da parte do primeiro
imóvel não pode agravar a situação do segundo imóvel, que já suportava a passagem
forçada. O titular do segundo imóvel não está obrigado a tolerar nova passagem forçada.
O rumo permanecerá o mesmo, ainda que o adquirente tenha de passar, também, pela
parte restante do primeiro imóvel.
É admissível que o caminho tradicionalmente utilizado pelo titular do
imóvel como passagem forçada possa ser modificado, se não causar prejuízo ou agravar
a passagem. Tal ocorre quando o titular do imóvel que suporta a passagem forçada
necessita ocupar o rumo utilizado, ou parte dele, para construção de obras ou para
expansão de suas atividades. A mudança do rumo deve contemplar idênticas condições
de passagem para se alcançar a via pública.
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O direito à passagem forçada pode ser acidental e temporário, quando
o acesso a via pública é obstruído, sem culpa do titular do imóvel. Exemplifique-se com
inundação de rio ou queda de barreira, impedindo o acesso tradicionalmente utilizado. O
direito de passagem perdurará até que o acesso originário possa ser reutilizado, em
condições normais.
O direito à passagem forçada não é gratuito. O que a obtiver deverá
indenizar o titular do imóvel que tiver de suportá-la. Não é indenização para expropriação,
pois o trecho utilizado não se transfere para a titularidade de quem a utiliza. É indenização
pela limitação da propriedade. A hipótese é de responsabilidade pela indenização do uso.
A indenização será fixada por acordo mútuo ou pelo juiz, podendo ser paga de uma só
vez, ou em parcelas ou mediante renda. Ainda que a perda do acesso tenha causa que
possa ser imputável ao titular do próprio imóvel, persiste o direito à passagem forçada. O
Código Civil de 2002 não reproduziu norma da legislação anterior, que previa o
pagamento em dobro da indenização, se a perda fosse por culpa do interessado. O
exercício da pretensão à passagem forçada não depende de prévia oferta do valor da
indenização, pois esta é um direito do vizinho que suporta a limitação, podendo exercê-
lo ou não.
5. Passagem de cabos e tubulações
Além do trânsito ou passagem forçada de pessoas, a lei prevê tipo
específico de passagem permanente de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos
por imóveis, para fins de transmissão de energia, gás ou meios de comunicação. As
relações jurídicas decorrentes não são exclusivamente de direito civil, pois há
interferências do direito público administrativo. São requisitos: (1) Dever de tolerância
da passagem das instalações pelos imóveis particulares; (2) Utilidade pública dos serviços
que os utilizam; (3) Demonstração de que a transmissão fora do imóvel é impossível ou
excessivamente onerosa; (4) Indenização.
Superada a fase da concepção absolutista da propriedade, tem-se como
indeclinável o dever de tolerar que sobre o imóvel passem meios de transmissão de fontes
e serviços essenciais à vida contemporânea. As instalações podem passar pelo espaço
aéreo, ou sobre o solo ou pelo subterrâneo do imóvel, não se contendo nas instalações
subterrâneas, pois a alusão a estas feita pelo Código Civil não as restringe.
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Trata-se de limitação à propriedade, que não se confunde com
desapropriação. O imóvel permanece sob a titularidade do proprietário, mas sujeito a
restrição de uso, que é o de suportar a passagem das instalações e de não criar dificuldades
ou riscos a suas finalidades. Algumas, como os cabos aéreos de transmissão de energia,
não impedem que atividades agrícolas continuem sob eles; outros trazem potencial de
risco maior, com vedação de edificações, como os condutos de gás.
As empresas titulares dos meios de transmissão, ainda que regidas pelo
direito privado, prestam serviços públicos autorizados, fiscalizados ou concedidos pela
administração pública. Os trajetos pelos imóveis são definidos pela administração pública
competente, ou pela própria empresa, quando recebe delegação de competência para isso.
Não pode o proprietário contestá-los ou indicar outros rumos, que julgue mais
convenientes. Pode, no entanto, demonstrar em juízo que a passagem fora de seu imóvel
se faz possível e menos onerosa, pois a lei (CC, art. 1.286) abriu essa possibilidade,
quando alude que o dever de tolerância é exigível “quando de outro modo for impossível
ou excessivamente onerosa”. Pode, igualmente, exigir que a instalação seja feita de modo
menos gravoso no imóvel, se possível for e assim demonstrar. Depois de feitas as
instalações, pode exigir que sejam removidas para outro local do imóvel, ficando sob seu
encargo as despesas correspondentes. Pode, por fim, exigir obras de segurança, se as
instalações oferecerem grave risco, tais como cercados, redes de proteção, construção de
coberturas.
Embora não haja desapropriação da área a ser utilizada, o dever de
utilizar a passagem das instalações e a restrição ao uso correspondente do imóvel
importam o pagamento de indenização compatível. O valor da indenização deve levar em
conta a desvalorização que sofrerá o imóvel, como um todo, as limitações e restrições ao
uso e o dano emergente no local da passagem. As instalações apenas poderão ser feitas
após o pagamento da indenização, fixada amigável ou judicialmente, segundo os critérios
adotados para desapropriação.
6. Águas e vizinhança
As águas, potáveis ou servidas, que atravessam imóveis vizinhos
impõem disciplina que previnam ou resolvam conflitos entre os respectivos titulares,
proprietários ou possuidores. Não se trata de servidão, mas sim de direito de vizinhança,
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direito dependente, contido no direito de propriedade, correspondente à limitação que
sofre, em seu conteúdo, o direito de propriedade do imóvel vizinho. A lei (CC, art. 1.288)
pressupõe a existência de desníveis de solos, porque as águas seguem a gravidade,
qualificando-se os imóveis vizinhos em superiores e inferiores. Interessa saber até que
ponto os titulares dos imóveis inferiores e, eventualmente, superiores têm de suportar o
curso dessas águas ou, ante a crescente escassez, a falta ou redução delas, por fatos
imputáveis aos titulares dos demais imóveis. O dever de não impedir o curso natural é
dever de vizinhança.
Em matéria de águas, as intercessões entre o direito privado e o direito
público são intensas. As águas públicas integram o domínio da União ou dos Estados
membros (CF, arts. 20 e 26), não sendo reguladas pelo direito civil. A Constituição deixou
pouco para o domínio privado das águas, pois o art. 26 inclui entre os bens dos Estados
membros “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,
ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. A regulação
do uso das águas particulares ou das águas públicas pelos particulares, além das normas
de direito civil, compreende o que dispõe o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 1934,
com força de lei) e a Lei nº 9.433, de 1997, sobre a outorga de uso dos recursos hídricos.
Esta última lei estabelece (art. 1º) que a água é um bem público de uso comum, sem
qualquer ressalva, o que importa dizer que ninguém pode se apropriar de águas nascentes,
correntes ou subterrâneas para seu uso exclusivo e privativo, sem outorga pública.
O titular do imóvel superior não pode realizar obras ou serviços que
impeçam ou reduzam, injustificadamente, o fluxo das águas, em prejuízo do titular do
imóvel inferior, que delas também necessita. Se fizer obras para facilitar o escoamento,
deverá proceder de modo que não piore a condição anterior do outro. Não pode o titular
do imóvel superior desviar as águas que corriam para dois ou mais imóveis e as deixar
correr para um ou alguns, nem mudar a direção agravando a situação do imóvel inferior.
O titular do imóvel inferior não pode impedir ou reduzir,
injustificadamente, o fluxo natural das águas que descem do imóvel superior, sejam elas
pluviais ou de nascentes. Não pode construir obras que façam com que as águas retornem
ao imóvel superior, tais como barragens com esse propósito, ou fazê-las voltar para a
parte mais baixa do imóvel superior, além de estar obrigado a permitir que o titular do
imóvel superior entre em seu imóvel para executar serviços de conservação e manutenção,
de modo a que o fluxo natural não seja comprometido. Este é o dever legal de escoamento.
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Só há dever de escoamento das águas do fluxo natural; não assim se as
águas que descerem forem acumuladas artificialmente pelo titular do imóvel superior,
como as provenientes de poços, ou encanadas, ou decorrentes de obras de irrigação, ainda
que tenham sido utilizadas para suas atividades ou lazer. O titular do imóvel inferior
poderá exigir que essas águas sejam desviadas, além de indenização pelos danos
causados. Porém, se este tiver obtido algum beneficiamento das águas assim recebidas, a
indenização será reduzida nessa exata medida.
As águas pluviais, ou seja, as que procedem imediatamente das chuvas,
de acordo com o Código de Águas, pertencem ao dono do imóvel onde caírem
diretamente, mas não lhe é permitido desperdiçá-las em prejuízo dos outros imóveis que
delas possam aproveitar, sob pena de indenização aos respectivos proprietários, ou
desviá-las de seu curso natural, sem consentimento expresso dos que esperam recebê-las.
O direito ao uso das águas pluviais é imprescritível.
Ninguém pode poluir as águas que não consome, com prejuízo de
terceiros, máxime quando estes forem possuidores de imóveis inferiores. Segundo o
Código de Águas (art. 110), os trabalhos para a salubridade das águas serão executados à
custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas
perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos
administrativos. Regra conexa do Código Civil (art. 1.291) estabelece que as águas “que
poluir” o titular do imóvel superior deverão ser por este recuperadas, ressarcindo os danos
sofridos pelos titulares dos imóveis inferiores, se não for possível a recuperação ou o
desvio do curso artificial das águas. Não há direito a poluir, em desafio ao art. 225 da
Constituição. As duas regras hão de ser interpretadas conjugadamente, ou seja, ninguém
pode poluir as águas e se o fizer responde pelos deveres de indenização dos danos
materiais e morais causados aos prejudicados, de recuperação das águas e de desvio do
curso artificial das águas, além de responder administrativa e criminalmente.
É assegurado ao titular de qualquer imóvel (superior ou inferior) o
direito de construir barragens e açudes. As obras podem ter a finalidade de represamento
de águas pluviais ou particulares correntes. As barragens e açudes devem conter as águas
nos limites do imóvel do titular. Se os ultrapassar, deverá indenizar os danos sofridos
pelos vizinhos, deduzindo-se os que estes passaram a ter de efetivo proveito, em
homenagem ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa. A dedução leva em
conta apenas o benefício sob a ótica do titular cujo imóvel foi invadido pelas águas, e não
de quem fez o represamento. As águas podem não provocar qualquer benefício, se
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 76
destruir, por exemplo, plantações. A invasão das águas é fato objetivo, que independe de
demonstração de culpa.
A lei assegura “a quem quer que seja” o direito de construir canal ou
aqueduto através de imóveis alheios, para receber águas, observados os seguintes
requisitos: (1) pagamento de prévia indenização; (2) finalidades de atendimento das
primeiras necessidades da vida, ou de escoamento de águas supérfluas, ou de drenagem
de seu terreno; (3) não causar prejuízos consideráveis à agricultura ou a indústria dos
titulares dos imóveis onde deva passar o canal.
Sem a prévia indenização ao ou aos proprietários prejudicados, não
pode iniciar a construção do canal. A indenização deve ser ajustada entre as partes; se não
houver acordo, decidirá o juiz sobre o valor. O pagamento da indenização não tem
finalidade expropriatória, mas sim de compensação pela limitação da propriedade; a faixa
do imóvel por onde passar o canal continuará sob titularidade do dono respectivo. Para
Pontes de Miranda, rigorosamente não é de indenização que se trata, mas sim de
composição de interesses, diante da inevitabilidade do entrechoque dos direitos9.
Primeiras necessidades dizem respeito ao consumo humano dos que vivem e trabalham
no imóvel interessado e à manutenção básica das atividades pecuárias ou agrícolas. As
águas supérfluas são as de captação natural que excedem as necessidades das atividades
desenvolvidas no imóvel; não são assim consideradas as águas servidas, que devem ser
absorvidas no próprio terreno ou canalizadas para a rede pública de coleta e saneamento,
quando houver. A drenagem do terreno pantanoso ou alagadiço só autoriza a canalização
pelo terreno vizinho se não for possível ser feita e absorvida a água no mesmo terreno, ou
não forem viáveis processos de enxugo, além de estar em conformidade com a legislação
ambiental. O proprietário de uma nascente não pode desviar-lhe o curso, se esta servir
para abastecimento da população (Código de Águas, art. 94). O usuário do canal ou
aqueduto tem o direito e o dever de conservá-los e mantê-los em condições adequadas,
para suas finalidades e para evitar riscos de danos aos proprietários em cujos imóveis
atravessem.
O prejuízo do proprietário em cujo imóvel atravessa o canal é objetivo
e pressuposto. “Isso não significa prescindir da demonstração probatória, mas
9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 517.
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corresponde, isto sim, à possibilidade de superação dos meandros subjetivos circunscritos
à culpa ou ao dolo”10.
Ao proprietário prejudicado com o canal ou aqueduto cabe, além da
indenização prévia: (1) direito ao ressarcimento pelos danos futuros, em virtude
infiltração ou irrupção das águas, independentemente da conservação da obra, ou de sua
deterioração; (2) direito de exigir do proprietário beneficiário que a canalização seja
subterrânea, quando atravessar áreas edificadas, pátios, hortas, jardins e quintais. Pode,
por exclusão, ser superficial quando atravessar áreas agrícolas; (3) direito de
compensação pela desvalorização da área remanescente, notadamente quando se tornar
inaproveitável; (4) direito de exigir que a canalização seja feita de modo menos gravoso
no imóvel onde deva atravessar; (5) direito de remoção da canalização para outro lugar,
assumindo as despesas decorrentes; (6) direito de exigir obras de segurança, se a
canalização oferecer grave risco.
O direito ao canal ou aqueduto, em virtude de sua natureza de limitação
à propriedade para satisfação de interesses particulares, apenas existe para as finalidades
explicitadas na lei, não sendo admissível para outras, inclusive para fins de expansão de
atividades. A lei (CC, art. 1.293) não alude às finalidades de agricultura ou indústria. Há
entendimento, todavia, estampado no enunciado 245 das Jornadas de Direito Civil, do
CJF/STJ, de que a norma legal não exclui a possibilidade de canalização forçada pelo
vizinho, com prévia indenização aos proprietários prejudicados.
Terceiros podem se utilizar das águas canalizadas, que sejam
consideradas supérfluas, ou seja, não necessárias às finalidades do beneficiário. Nessa
hipótese, será devida indenização a ser compartilhada pelo proprietário beneficiário e o
proprietário prejudicado. Estabeleceu a lei, como parâmetro, a importância equivalente
às despesas que seriam necessárias para condução das águas retiradas por terceiros, se
elas chegassem ao destino. A preferência para utilização das águas supérfluas é a do
proprietário ou possuidor prejudicado pela canalização.
7. Limites entre prédios e direito de cercar ou murar
10
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 116.
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O proprietário ou possuidor pode demarcar e cercar o imóvel, nos seus
limites com os dos vizinhos confinantes. O fim social da norma legal é prevenir os
conflitos que as incertezas dos limites provocam e de estabelecer critérios para a solução
desses conflitos. Cerca é conceito amplo, abrangente de outros termos utilizados pela lei,
como muro, vala, valado, tapagem, sebe, intervalos, banquetas, além de outras expressões
regionais. O Código Civil alude a “tapagem”, termo de escasso uso linguístico, e que,
segundo os antigos significava exatamente cerca. Nas Ordenações Filipinas (Liv. II, Tít.
48, § 4º) há referência a “tapamento de suas herdades”, com significado de cerca. O direito
de cercar assenta-se na necessidade, não sendo cabível para fins de maior comodidade ou
de estética.
A demarcação tem por finalidade evitar a confusão de limites, ou por
fim à confusão já ocorrida. São legitimados a promover e a responder a ação, que é
declaratória, o proprietário, ou o possuidor, ou o titular de direito real limitado, pois a lei
(CC, art. 1.297) alude a confinante.
O direito à demarcação importa o de constrangimento aos vizinhos
confinantes de procedê-la amigável ou judicialmente, quando os rumos ou marcos
estejam destruídos, apagados ou confusos. Intenta-se, com a demarcação, aviventar e
tornar indiscutíveis os marcos e rumos. As despesas da demarcação amigável ou judicial,
inclusive com os serviços de técnicos ou peritos, são repartidas entre os vizinhos
confrontantes. O direito de cercar é dependente da definição precisa dos limites, operada
pela demarcação. A lei (CC, art. 1.298) estabelece três critérios sucessivos para a
demarcação, quando os limites estiverem confusos e os marcos indefinidos ou
desaparecidos: (1) Prevalecimento da posse justa (não violenta, precária ou clandestina)
do confinante que a tenha; (2) Se ambos os confinantes forem titulares de posses justas,
a parte contestada será dividida por igual entre os confinantes, passando a linha divisória
no meio dela; (3) Se a divisão pelo meio não puder ser feita, a parte contestada será
adjudicada a um dos confinantes, que deverá indenizar o outro.
As cercas já existentes, em qualquer de suas modalidades (muros de
alvenaria ou concreto, sebes vivas, cercas de arame ou madeira, valas) têm a presunção
legal de pertencerem em comum aos vizinhos confinantes. A presunção de condomínio é
relativa (juris tantum), pois podem ter sido feitas por um dos vizinhos dentro dos limites
de seu imóvel, pertencendo-lhe inteiramente. Podem ter sido feitas sobre a precisa linha
divisória por um dos vizinhos, com seus próprios recursos; nesta hipótese, pode cobrar
do outro vizinho a meação das despesas, uma vez que a cerca passa à titularidade de
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ambos. Cercar é direito e não obrigação, disse Darci Bessone11, “razão por que pode o
proprietário abster-se de tapar, cercar, ou murar o seu imóvel”. Porém, a obrigação do
confinante de concorrer com as despesas de construção e conservação das divisórias
resulta diretamente da lei, não se condicionando a que haja prévio consentimento; cumpre
a quem as realize demonstrar que se faziam necessárias, no momento em que foram
efetuadas. É direito e dever de vizinhança decorrente da limitação ao conteúdo do direito
de propriedade: cada confinante é obrigado a concorrer em partes iguais para as despesas
de construção e conservação. Essa obrigação, de natureza objetiva, prevaleceu nos
tribunais, antes mesmo do Código Civil de 2002, a exemplo do STJ (REsp 20.315 e REsp
238.559). Qual o meio que vai ser empregado (tipo de cerca, muro, sebe) depende dos
usos locais, ou da natureza da construção limítrofe.
A demarcação é cabível, mesmo quando definidos os limites divisórios,
quando ainda restem dúvidas sobre sua precisão, notadamente havendo divergência entre
o título de propriedade e as divisas. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp 759.018) que
havendo divergência entre a verdadeira linha de confrontação dos imóveis e os
correspondentes limites fixados no título dominial, é cabível a ação demarcatória para
eventual estabelecimento de novos limites.
Em áreas rurais, é comum constar em escrituras públicas e registros
imobiliários determinadas plantas, especialmente árvores e sebes vivas, como marcos
naturais divisórios dos imóveis, quando não há cerca, ou quando o rumo desta é
questionado. Cada uma dessas plantas não pode ser cortada ou arrancada, salvo se houver
acordo de ambos os confinantes. Se for arrancada por um deles, o outro poderá provar em
juízo sua exata localização, prevalecendo esta contra a que indicar o que arrancou a
planta, por pesar-lhe a ilicitude da conduta.
Excepcionalmente, há dever e obrigação de cercar do proprietário de
animais. Não está obrigado a concorrer com as despesas o proprietário vizinho, que exigir
a realização de cerca especial para impedir a passagem de animais ao seu imóvel. A cerca
é especial em razão dos tipos de animais. Assim, a cerca para animais de maior porte,
como gado vacum, é distinta da que se exige para animais de pequeno porte, como os
galináceos. As despesas são de responsabilidade do proprietário desses animais, os quais
provocaram a necessidade de cerca especial.
11
BESSONE, Darci. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 254.
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8. Direito de construir
Sob o título “direito de construir” tem-se a regulação do direito do
possuidor e do proprietário de edificar em seu terreno, observados os limites em relação
aos vizinhos, que também estão a ela sujeitos, e as normas instituídas pela administração
pública, principalmente o plano diretor, nas áreas urbanas. O direito de construir diz
respeito não apenas à edificação nova, como a reforma ou reconstrução de edificações
antigas.
O direito de construir não se confina ao direito civil, sendo matéria com
incidência transversal não apenas do direito urbanístico, como do direito ambiental, do
direito de defesa do patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e cultural, do
direito aeronáutico e outros direitos assemelhados, de ordem pública. Exemplo de
limitação administrativa ao direito de construir encontra-se na Súmula 142 do antigo
Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual a faixa non aedificandi imposta aos terrenos
marginais das estradas de rodagem, em zona rural, não afeta o domínio do proprietário,
nem obriga a qualquer indenização. Com efeito, o proprietário pode plantar nessa faixa,
mas não pode edificar, em razão da segurança das pessoas nessas vias. Para além das
normas de direito público, interessam ao direito civil as interferências do direito de
construir nas relações de vizinhança.
Seguindo a tradição arquitetônica portuguesa, as casas e sobrados
construídos em áreas centrais das cidades brasileiras eram contíguos ou com recuos
estreitos. Daí que se justifique a permanência da regra do art. 1.300 do Código Civil,
segundo a qual o proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje águas
diretamente no imóvel vizinho, que se incluía na actio de effusis et dejectis dos romanos.
Ou do Código de Águas (art. 105), de que o proprietário edificará de maneira que o beiral
de seu telhado não despeje sobre o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando
por outro modo não o possa evitar, um intervalo de 10 centímetros, quando menos, de
modo que as águas se escoem. Quando a legislação municipal admitir que a edificação
possa ir até o limite do terreno, terá de ser feita de modo a que as águas pluviais, correntes
ou servidas não vertam ou sejam despejadas no imóvel vizinho.
As janelas, os terraços cobertos ou descobertos, as sacadas, as varandas,
as portas devem distar, ao menos, um metro e meio da linha divisória dos terrenos. Essa
regra tem por fito a preservação mínima do direito à privacidade do vizinho, que é
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constitucionalmente garantida (CF, art. 5º, X) e alcança qualquer abertura superior a dez
por vinte centímetros. Admite-se que as janelas ou terraços que não se abram com visão
direta do imóvel vizinho, mas sim para dentro do próprio imóvel, possam ser feitos com
a distância de setenta e cinco centímetros da linha divisória dos terrenos, o que
corresponde à metade da distância anterior, tendo o Código Civil tornado sem efeito a
Súmula 414 do STF que não distinguia a visão direta da indireta ou oblíqua. Estima-se
que essa redução não prejudicará a privacidade do vizinho, pois a linha de visão não é
direta. Na zona rural, amplia-se a distância para três metros, até a linha divisória. O
conceito adotado pelo Código Civil é o de zona (urbana ou rural), e não o de destinação,
que é preferido pelo direito agrário; assim, ao imóvel com destinação agrícola ou
pecuária, mas situado dentro do perímetro urbano fixado pelo Município, aplica-se o
recuo menor de metro e meio.
O vizinho tem o prazo de um ano e dia, após a conclusão da obra, para
exigir que se desfaça a janela, ou o terraço, ou a varanda, ou a sacada, construídos com
distância menor que um metro e meio da linha divisória, se tiverem visão direta sobre seu
imóvel, ou de três metros se na zona rural, ou de setenta e cinco centímetros da linha
divisória, se não tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou do despejo de águas sobre seu
imóvel. No âmbito processual, esse embargo é denominado nunciação de obra nova. Esse
prazo é preclusivo ou decadencial, não podendo ser interrompido ou suspenso. Considera-
se conclusão da obra, para fins de contagem do prazo, a data do habite-se concedido pelo
Município, salvo se o vizinho construtor tiver como provar a data efetiva da conclusão e
sua ciência pelo vizinho. Conta-se a partir da conclusão de toda a obra e não da construção
da janela ou outra abertura. Não se exige a comprovação do devassamento, bastando a
construção da janela – terraço, sacada ou varanda - com distância menor que a legal.
Se o prazo se escoar, sem ajuizamento da ação pelo vizinho
prejudicado, este terá de suportar a obra invasiva, não podendo mais impedir ou dificultar
o uso do prédio beneficiado, inclusive o escoamento das águas. O vizinho prejudicado
terá, por sua vez, de recuar sua construção nova, de modo a que se mantenha o recuo de
um metro e meio (ou três metros); supondo-se que a janela foi aberta com a distância de
cinquenta centímetros da linha divisória, na zona urbana, o vizinho prejudicado terá que
recuar a parede da edificação nova até um metro dentro de seu próprio terreno, na largura
da janela, de modo a que esta mantenha um metro e meio de espaço aberto. O recuo
calcula-se a partir da janela ou outra abertura e não da linha divisória. Essa orientação
legal foi introduzida na segunda parte do art. 1.302 do Código Civil, contrariando o
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entendimento jurisprudencial que antes se tinha consolidado, no sentido de o proprietário
prejudicado não poder exigir o fechamento, após o escoamento do prazo, mas não estando
impedido de construir edificação vedando a abertura. A norma do Código Civil contempla
a função social da propriedade, ao contrário do entendimento jurisprudencial anterior, que
fazia prevalecer o interesse individual.
A distância de três metros, ou de metro e meio, ou de setenta e cinco
centímetros é contada a partir da construção irregular, e não da linha divisória. Segundo
orientação doutrinária12, constituiria servidão específica ou direito real sobre coisa alheia;
constituída a servidão, alcança-se esse objetivo, em detrimento do imóvel serviente, cujo
dono, não tendo embargado oportunamente a construção irregular e não pretendendo, no
prazo legal, que se desfizesse, teria de recuar sua própria edificação. Entendemos, todavia,
não se tratar de servidão, mas sim de limitação à propriedade, que é o fundamento dos
direitos de vizinhança, que independem, inclusive, de registro imobiliário. Também assim
entende Pontes de Miranda13, para quem os direitos de construir nascem de limitação ao
conteúdo do direito de propriedade; não nasce, com isso, servidão, pois o vizinho apenas
perdeu a pretensão ao desfazimento da obra e o dono desta foi beneficiado pela inércia
do titular da pretensão contrária a ela.
Permite-se que sejam feitas aberturas para luz ou ventilação, com
dimensões pequenas, sem respeitar qualquer distância com a linha divisória dos terrenos.
Diferentemente das janelas, terraços e varandas que facultam devassar o imóvel vizinho,
essas pequenas aberturas não comprometeriam a privacidade dos que o habitam. Permite-
se, assim, a iluminação ou a ventilação e, ao mesmo tempo, preserva-se o vizinho do
devassamento. A metragem admitida para a abertura é de, no máximo, dez centímetros
por vinte centímetros, desde que seja construída a partir da altura de dois metros do chão
de cada piso, que supera a altura da quase totalidade das pessoas humanas e impede a
visão sobre o vizinho. Não há impedimento para que sejam várias aberturas, para o lado
ou para cima. A tecnologia da construção desenvolveu o que denomina de elementos
vasados, de cerâmica, concreto, vidro ou madeira, alguns com visão indireta ou impedida,
o que melhor contempla os fins sociais da lei. A Súmula 120 do STF já previa que os
12
CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito
das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro:
TJRJ, v. 23, 1970, p. 23.
13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 546 e 569.
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tijolos de vidro translúcido podiam ser levantados a menos de metro e meio do imóvel
vizinho. Também não há impedimento para que as aberturas sejam construídas em
paredes limítrofes, o que tem sido objeto de conflitos.
As aberturas de luz ou ventilação, contudo, não geram limitação
permanente ao direito de propriedade do vizinho, ao contrário da construção de janelas,
varandas e terraços. Ainda que tais aberturas existam por muito tempo, para além de ano
e dia, pode o vizinho levantar edificação que as vede, uma vez que não há previsão legal
de prazo preclusivo. Não pode o vizinho pretender a demolição ou fechamento de
aberturas ou vãos de luz em parede limítrofe, mas ele não está impedido de construir
parede que as vedes, sempre que desejar, sem justificação. Escola mantida por instituição
considerada de utilidade pública abriu em parede limítrofe vãos de luz e ventilação, em
duas salas de aula, utilizando elementos vasados, sem objeção dos vizinhos. Estes, após
dez anos, resolveram edificar parede vedando os vãos, tendo a escola ingressado em juízo
para impedi-los. Em grau de recurso extraordinário, decidiu o STF (RE 211.385-9) que a
garantia da função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII) não afeta as normas de
composição do conflito de vizinhança previstas no Código Civil, “não se podendo impor
gratuitamente, ao proprietário, a ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela
circunstância de exercer este último atividade reconhecida como de utilidade pública”.
Parece-nos, no entanto, que a regra permissiva do art. 1.302, parágrafo
único do Código Civil, da desconsideração das aberturas de luz e ventilação, há de ser
interpretada em harmonia com o art. 1.278 do Código Civil, o qual estabelece que, se as
interferências prejudiciais ao vizinho forem justificadas por interesse público o causador
pagar-lhe-á indenização cabal; essa prescrição é geral, não estando adstrita às situações
específicas do uso anormal da propriedade. Assim, justificando-se o interesse público,
que é o caso da escola referida na decisão do STF - anterior ao início da vigência do atual
Código Civil - não pode prevalecer o interesse particular do vizinho. Interesse público,
para os fins da norma legal, não é o estatal, mas o social, expressado no direito dos alunos
de utilizar adequadamente as salas de aula. Para compensar o dever de suportar a
interferência, confere-se ao titular do imóvel o direito, a pretensão e a ação da indenização
cabal, harmonizando-se direito de propriedade e função social.
O Código Civil de 2002 manteve as regras advindas da legislação
anterior sobre o uso pelos vizinhos da mesma parede divisória, ou o condomínio da
parede-meia, em homenagem às edificações de casas conjugadas, vindas das tradições
coloniais, ainda existentes em muitas cidades brasileiras, de acordo com as respectivas
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legislações urbanísticas. A matéria retomou sua importância com a proliferação dos
condomínios edilícios, em cujos pisos ou andares as paredes divisórias são comuns das
unidades imobiliárias. As regras podem ser assim ordenadas:
(1) O proprietário ou possuidor tem direito de utilizar
a parede divisória, se ela suportar a nova edificação ou reforma,
reembolsando ao vizinho metade do valor da parede e do chão
correspondente. O vizinho pode travejar na parede-meia, cuja metade
foi edificada em seu imóvel, pois, por metade é sua, mas antes há de
pagar o meio valor dela. Se o proprietário faz a sua parede só no seu
terreno, toda ela é sua. Para Orlando Gomes14, o direito de madeirar ou
travejar condiciona-se à conjugação dos seguintes requisitos: a) que o
prédio seja urbano; b) que esteja sujeito a alinhamento; c) que a parede
divisória pertença ao vizinho; d) que aguente a nova construção; e) que
o dono do terreno vago pague meio valor da parede divisória.
(2) Quem primeiro construir a parede divisória tem
direito de fazê-la por sobre a linha que divide os dois imóveis, ocupando
meia espessura do terreno contíguo. O vizinho não perde a titularidade
sobre a parte ocupada pela parede, mas, se também a utilizar em
edificação sua, terá de pagar a metade do valor da parede ao que a
construiu.
(3) O vizinho apenas poderá utilizar a parede se ela
suportar a nova edificação; se dúvida ou risco houver, poderá quem a
construiu exigir do outro que preste garantia;
(4) Qualquer dos dois condôminos da parede-meia
tem o dever de informar ao outro das obras que desejar fazer, e o dever
de segurança, de modo a não por em risco a parede, com tais obras;
(5) Qualquer dos condôminos de parede-meia não
pode, sem o consentimento do outro, utilizar a parede para armários ou
assemelhados, ou encostar chaminés, fogões (salvo os fogões de
cozinha, desde que não sejam prejudiciais ao vizinho), fornos ou
aparelhos que possam produzir infiltrações ou interferências
14
GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 232.
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prejudiciais. O consentimento não necessita de ser expresso, bastando
a aquiescência duradoura ou renúncia do direito. A infiltração ou
interferência gera dever de indenizar sem culpa, podendo o prejudicado,
ainda, exigir a demolição. Se o dano é provável e iminente, cabe caução
de dano infecto;
(6) O condômino pode alterar a parede divisória,
desde que não prejudique o vizinho e assuma as despesas
correspondentes, salvo se o vizinho adquirir meação, com utilização da
parte acrescida.
Não há condomínio de parede-meia quando a parede é própria do
confinante, que a levantou justaposta à do vizinho. Nessa hipótese, salienta Hely Lopes
Meyrelles15, não há limitação ao seu uso e nela podem ser embutidos ou encostados
quaisquer aparelhos que o proprietário desejar, sem possibilidade de embargo ou caução
prévia para prosseguimento das obras. Somente a posteriori poderá o confrontante obter
a demolição e a reparação dos danos que tais obras lhe venham a causar, como resultado
do uso anormal da propriedade.
Com relação às águas de poço e de nascente, proíbe-se que a construção
seja causa de sua poluição, se (CC, art. 1.309) forem a ela preexistentes. Esclareça-se que
não se extrai dessa norma que haja um bill of indemnity, um poder para poluir, se o poço
ou a fonte do vizinho forem posteriores à construção, pois, de acordo com o § 3º do art.
225 da Constituição, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, em
qualquer dimensão, sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados, cuja responsabilidade
civil é objetiva. Além da indenização pelos danos, o causador tem o dever legal de demolir
a edificação ou a parte dela que os tiver provocado.
Igualmente, são proibidas as obras que tirem ao poço ou à nascente a
água indispensável às suas necessidades normais. O direito de vizinhança, por parte do
que tem a água para suas necessidades, consiste em que ela não seja tirada ou reduzida,
de modo a torná-la insuficiente para o uso normal. Vizinho não é necessariamente o
contíguo, pois se há o mesmo lençol de água em vários imóveis, todos são legitimados.
Note-se, todavia, que o particular tem, apenas, o direito de exploração das águas
15
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 49.
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subterrâneas mediante autorização do Poder Público, cobrada a devida contraprestação,
na forma da Lei nº 9.433, de 1997; se não houver autorização, não terá direito contra
quem a tenha obtido. Como lembrou o STJ (REsp 1.276.689), a necessidade de outorga
para a extração da água do subterrâneo é justificada pela problemática mundial de
escassez da água e se coaduna com o advento da Constituição, que passou a considerar a
água um recurso limitado, de domínio público.
São proibidas as obras que possam provocar desmoronamento ou
deslocação de terra, ou que comprometam a segurança dos imóveis vizinhos. Nesses
casos, a construção depende da realização de obras acautelatórias, que possam reduzir ou
impedir, substancialmente, os riscos de danos. Se, apesar das obras acautelatórias, os
danos ocorrerem, o vizinho prejudicado poderá exigir indenização correspondente. A
responsabilidade do dono da edificação é objetiva, independentemente de culpa, não
sendo atenuantes ou compensatórias as providências que tiver adotado para evitar os
danos. É ainda responsável pela demolição da construção, naquilo que tiver provocado os
danos. Até à conclusão da obra, cabe a nunciação de obra nova; após a conclusão, é
cabível a ação demolitória, dentro do prazo de um ano e dia.
A responsabilidade do direito de vizinhança não decorre da ilicitude do
ato de construir, e sim da lesividade da construção. Em consequência, investe-se no
direito de regresso contra o empreiteiro, projetista, construtor que tenha contratado para
execução da obra. Nesse sentido, decidiu o STJ (AgRg no REsp 473.107) que o contrato
firmado entre o proprietário da obra e o empreiteiro, quanto à responsabilidade por
eventuais danos, não produz efeitos contra terceiros, entretanto assegura o direito de
regresso contra o empreiteiro.
O possuidor ou o proprietário tem o dever de tolerância do ingresso em
seu imóvel do vizinho, quando este, após comunicação prévia, necessitar reparar, manter,
limpar ou reconstruir o prédio, ou instalações deste, ou cerca divisória de qualquer
espécie. O ingresso é devido quando for indispensável para tais providências, que não
poderão ser executadas a partir do próprio imóvel, salvo com custos muito elevados. Nos
condomínios edilícios, por exemplo, as instalações hidrossanitárias, situadas por baixo do
piso, apenas podem ser consertadas a partir do teto da unidade inferior. O direito de
ingresso é também assegurado quando o proprietário ou possuidor necessitar retirar suas
coisas, inclusive animais, que eventualmente tenham ido ou caído no imóvel vizinho. O
direito de ingresso não é indiscriminado e deve ser exercido de modo mais cômodo
possível, preferentemente em horários combinados, ou fora dos horários de repouso e
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alimentação habituais. O direito de ingresso pode ser impedido se o vizinho tomar a
iniciativa de entregar as coisas buscadas, pois não se admite o abuso do direito subjetivo.
Em qualquer hipótese, se o exercício do direito de ingresso causar danos ao vizinho, este
tem pretensão à indenização correspondente.
O direito de ingresso, em qualquer circunstância, é dependente de
consentimento de quem habite o imóvel onde as obras devam ser feitas ou onde as coisas
devam ser retiradas. Se houver recusa, o ingresso dependerá de decisão judicial. Assim é,
porque a Constituição (art. 5º, XI) assegura que “a casa é asilo inviolável do indivíduo,
ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial”.
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CONTRATOS ELETRÔNICOS E CONSUMO
Electronic contracts and consumption
Anderson Schreiber Professor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Direito Privado
Comparado pela Università degli studi del Molise (Itália). Mestre em Direito Civil pela UERJ. Autor dos
livros Direito Civil e Constituição e Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, entre outros.
“There is no spoon”
(Matrix, 1999)
Resumo: O artigo analisa o tratamento jurídico dos contratos eletrônicos, à luz do
ordenamento brasileiro, em especial nas relações de consumo. Examina controvérsias
relacionados à formação dos contratos, ao direito de arrependimento e à publicidade
eletrônica, colhendo parâmetros também na experiência jurídica estrangeira.
Palavras-chave: Contratos Eletrônicos; Direito do Consumidor; Direito de
Arrependimento; Formação dos Contratos; Publicidade Eletrônica; Consumismo na
Internet.
Abstract: The article provides a legal analysis of electronic contracts, under Brazilian
law, with special emphasis on business-to-consumer relationships. Contract formation,
right of withdrawal and electronic marketing are some of the issues examined on the
article, also in light of the standards used on foreign legal experience.
Key-Words: Electronic Contracts; Consumer Law; Right of Withdrawal; Contract
Formation; Electronic Marketing; Consumism on the Internet.
Sumário: 1. O comércio eletrônico no Brasil. – 2. Os chamados contratos eletrônicos e
os desafios trazidos pela contratação via internet. – 2.1. Quem contrata. Semianonimato
virtual e o dever de identificação do fornecedor eletrônico. – 2.2. Onde contrata. A
transnacionalidade do contrato eletrônico e o problema da lei aplicável. Stream of
commerce e as normas de ordem pública. – 2.3. Quando contrata. Momento de formação
do contrato eletrônico e o dever de confirmação de recebimento da aceitação à oferta. –
2.4. Como contrata. A informalidade do contrato eletrônico e sua prova. – 2.5. O quê
contrata. A paradoxal insuficiência da informação no ambiente eletrônico. Publicidade na
internet e outras técnicas de incentivo ao consumo. – 3. Direito de arrependimento.
Tratamento da matéria no direito brasileiro: Lei 8.078/1990 e Decreto 7.962/2013.
Experiência estrangeira: Diretiva 2011/83/CE. Análise comparativa. – 4. Conclusão.
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1. O comércio eletrônico no Brasil1
O comércio eletrônico ou e-commerce movimenta bilhões de reais por
ano no Brasil. Embora sua parcela mais significativa, sob o prisma econômico, ainda seja
representada por operações comerciais realizadas entre os próprios fornecedores, também
chamadas relações B2B (sigla em inglês para a expressão business to business), o
faturamento do varejo eletrônico ou B2C (business to consumer) tem crescido
exponencialmente entre nós.2 Um número cada vez maior de consumidores brasileiros
adquire produtos e serviços por meio da internet. O Brasil representa, segundo diversas
pesquisas, o maior e mais promissor mercado de e-commerce da América Latina, seguido
por México e Chile.3
Teoricamente, o consumidor brasileiro deveria ter mais facilidade de
exercer seus direitos no ambiente eletrônico. Sua comunicação com o fornecedor deveria
ser mais ágil e célere, por força das tecnologias de comunicação à distância (e-mail) e
interativa (chat). As informações sobre o produto ou serviço contratado deveriam ser, em
tese, mais amplas e mais acessíveis, já que, ao contrário do que ocorre no comércio
tradicional, não há limite físico-espacial para a exposição de dados sobre o objeto da
compra. O mesmo vale para os termos contratuais, que podem ser disponibilizados na
internet sem a necessidade de um suporte físico em papel e com o auxílio de realces
visuais ou de simples mecanismos de busca que facilitem a identificação da informação
específica buscada pelo consumidor. Em teoria, portanto, o consumidor deveria enfrentar
menos percalços no comércio eletrônico que no comércio tradicional.
1 O autor registra seu agradecimento ao acadêmico de Direito Robson Guimarães Filho, pelo
imprescindível auxílio nas pesquisas relativas ao comércio eletrônico e ao tratamento atualmente
dispensado à matéria pelos tribunais brasileiros.
2 Segundo dados da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico, o setor B2C foi responsável por um
faturamento de 22,5 bilhões de reais no ano de 2012, alcançando um total de 66,7 milhões de pedidos
(www.camara-e.net, 20.3.2013).
3 Além disso, o Brasil possui, segundo estudo realizado em 2010, o melhor índice de e-readiness da
América Latina. Tal índice procura refletir, por meio da combinação de uma série de variáveis (potencial
de demanda, infraestrutura tecnológica, penetração dos diferentes meios de pagamento etc.), a capacidade
de cada país para a conversão da internet em um meio efetivo de comércio (relatório da América Economia
Intelligence, disponível em www.ecommerceday.mx).
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Na prática, todavia, o que se verifica é que os direitos do consumidor
brasileiro têm sido frequentemente desrespeitados no e-commerce, cujos índices de
reclamação chegam a superar, proporcionalmente, aqueles do comércio tradicional em
algumas regiões do Brasil. Notícias recentes têm revelado um quadro de violações
sistemáticas à legislação brasileira por parte de grandes fornecedores eletrônicos de
produtos ou serviços. Tome-se como exemplo pesquisa recente realizada pelo Procon do
Rio de Janeiro4 que, analisando os sites de 25 fornecedores de produtos e serviços, em
diferentes setores da economia, concluiu que nenhum deles respeitava integralmente a
legislação brasileira em matéria de direitos do consumidor eletrônico.5
Fazer valer a legislação brasileira no e-commerce não é tarefa simples.
A contratação virtual traz uma série de dificuldades e desafios no campo jurídico.
2. Os chamados contratos eletrônicos e os desafios trazidos pela contratação via
internet.
Nos manuais de direito civil e empresarial publicados no Brasil nos
últimos anos, tornou-se comum encontrar referências aos “contratos eletrônicos”, como
um “novo” gênero de contratos que se afastaria das regras do direito contratual pátrio,
constituindo uma espécie de setor de exceção ou de capítulo à parte dentro do direito
privado, a exigir uma legislação própria.6 Em oposição a esta abordagem, há quem
sustente que os chamados contratos eletrônicos podem e devem ser tratados exatamente
como qualquer outro contrato, afirmando que toda a celeuma criada em torno do tema
4 No sistema brasileiro, os Procons são órgãos ou entidades estaduais ou municipais responsáveis
pela proteção dos direitos e interesses do consumidor.
5 Procon Carioca notifica 25 sites de comércio eletrônico, reportagem de Luiza Xavier, publicada
no O Globo Online, em 7.8.2013. O relatório do Procon revela, por exemplo, que nenhuma das 25 empresas
notificada exibia de forma clara o instrumento contratual.
6 Cite-se, como exemplo desse entendimento, a passagem de Gustavo Testa Corrêa: “A economia
está mudando. As transações de bens materiais continuam importantes, mas as transações de bens
intangíveis, em um meio dessa mesma natureza, são os elementos centrais da dinâmica comercial
contemporânea, do comércio eletrônico. A legislação deverá abraçar um novo entendimento: o de que as
mudanças fundamentais resultantes de um novo tipo de transação requererão regras comerciais compatíveis
com o comércio de bens via computadores e similares.” (Aspectos Jurídicos da Internet, São Paulo: Saraiva,
2000, p. 38).
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reduz-se ao problema da validade do documento eletrônico como meio de prova perante
o Poder Judiciário.7
A razão, contudo, não se situa em nenhum dos dois extremos. Por um
lado, o que se tem chamado de “contratos eletrônicos” nada mais são que contratos
formados por meios eletrônicos de comunicação à distância, especialmente a internet, de
tal modo que o mais correto talvez fosse se referir a contratação eletrônica ou contratação
via internet, sem sugerir o surgimento de um novo gênero contratual. Por outro lado,
parece hoje evidente que os desafios da matéria não se restringem à validade da prova da
contratação por meio eletrônico – que, de resto, consiste em ponto superado no direito
brasileiro –, mas envolvem diversos aspectos da teoria geral dos contratos que vêm sendo
colocados em xeque por essa significativa transformação no modo de celebração dos
contratos e no próprio desenvolvimento da relação jurídica entre os contratantes.
Com efeito, a contratação eletrônica veio abalar, de um só golpe, cinco
referências fundamentais utilizadas pela disciplina jurídica do contrato: quem contrata,
onde contrata, quando contrata, como contrata e o quê contrata. Essas cinco questões eram
respondidas de maneira relativamente segura nas contratações tradicionais e, por isso
mesmo, eram tomadas como parâmetros pelo legislador e pelos tribunais para a
determinação da solução jurídica aplicável. No campo dos contratos eletrônicos,
responder essas cinco perguntas básicas tornou-se um verdadeiro calvário, como se passa
a demonstrar.
2.1. Quem contrata. Semianonimato virtual e o dever de identificação do fornecedor
eletrônico.
Na contratação presencial entre pessoas naturais, há uma pronta
identificação dos sujeitos contratantes. Essa identificação não é tão imediata quando a
celebração do contrato envolve pessoa jurídica, já que, nessa hipótese, entram em jogo
7 É a posição de Carlos Gustavo Vianna Direito, para quem “muitas vezes o contrato que está sendo
feito por intermédio de uma nova forma de comunicação não traz nenhuma novidade, sendo, pois, um
contrato já regulado. A verdadeira questão dos contratos eletrônicos será a forma de prova destes perante o
Poder Judiciário.” (Do Contrato – Teoria Geral, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 119-120). Ver, em
sentido semelhante, Erica Aoki, para quem “contrato cibernético nada mais é do que aquele contrato
firmado no espaço cibernético, e não difere de qualquer outro contrato. Ele apenas é firmado em um meio
que não foi previsto quando a legislação contratual tradicional se desenvolveu.” (Comércio Eletrônico –
Modalidades Contratuais, Anais do 10º Seminário Internacional de Direito de Informática e
Telecomunicações, Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações, 1996, p. 4).
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questões atinentes à legitimidade da representação (rectius: presentação). Ainda assim,
há mecanismos jurídicos para a verificação da identidade dos contratantes e, mesmo na
ausência de sua utilização, o direito prestigia, por meio da teoria da aparência e de outras
construções doutrinárias e jurisprudenciais, a confiança depositada na identidade do
contratante a partir dos dados físicos que compõem a situação aparente.8 No comércio
eletrônico, o problema da identificação do contratante é mais complexo.
São numerosos os sites de fornecedores de produtos ou serviços que
sequer exibem o nome empresarial da pessoa jurídica responsável pelo fornecimento,
limitando-se a exibir um nome fantasia. Muitos sites não trazem informações acerca de
endereço físico ou mesmo de número telefônico para contato. O próprio domínio utilizado
para hospedar o site (endereço do site) pouco revela, na medida em que seu registro pode
ser feito sem a plena identificação do requerente e a consulta pública ao sistema brasileiro
de domínios não exibe o nome do titular, mas apenas o servidor DNS.9
O problema se torna ainda mais dramático quando o domínio não é
brasileiro (.br), já que cada país possui regras distintas para o procedimento de registro
de domínios e a imensa maioria deles não revela publicamente quem são seus titulares. A
figura do sujeito de direito se dissipa por completo na internet. O consumidor, confiando
na “marca” exibida ou mesmo na “boa aparência” do site, realiza a contratação eletrônica
e, somente diante do surgimento de defeitos posteriores, passa a buscar a identidade
jurídica do fornecedor, que acaba, em muitos casos, por permanecer oculta. Tal
circunstância compromete a efetividade das normas protetivas, na medida em que a
ausência de um sujeito passivo plenamente identificado dificulta as comunicações
formais entre as partes e impede a adoção de medidas judiciais ou extrajudiciais
(notificações etc.) por parte do consumidor lesado.
Com o propósito de combater essa e outras dificuldades inerentes ao
comércio eletrônico, a Presidente Dilma Rousseff fez publicar, em 15 de março de 2013,
o Decreto 7.962, cujo art. 2o determina:
Art. 2o Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados
para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar,
8 Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, A Representação no Novo
Código Civil, in Direito Civil e Constituição, São Paulo: Atlas, 2013, pp. 61-78. 9 O sistema de nome de domínio (DNS – Domain Name System) é um sistema que nomeia
computadores e serviços de rede e é organizado de acordo com uma hierarquia de domínios. Para maiores
detalhes, ver Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR – NIC.BR (https://registro.br).
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em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações:
I - nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando
houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro
Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;
II - endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para
sua localização e contato; (...)10
Como revelou, todavia, a já citada pesquisa do Procon do Rio de
Janeiro, numerosos fornecedores continuam descumprindo tais deveres, mantendo-se um
cenário de semianonimato eletrônico no Brasil. Tal omissão está a exigir ulterior esforço
de controle por parte dos órgãos brasileiros, com a aplicação de sanções mais severas,
uma vez que a identificação do fornecedor é imprescindível para a tutela adequada do
consumidor no ambiente eletrônico e para a efetiva aplicação das normas de direito
contratual.
Referido esforço não pode prescindir, contudo, de acordos e convênios
internacionais que permitam e imponham a identificação fácil e precisa das sociedades
empresárias por trás dos sites de vendas. Mesmo nos países que não contam com normas
cogentes nesse sentido, é preciso que se desenvolvam “selos” de qualidade para os sites
que cumpram padrões mínimos internacionalmente aceitos, facilitando o acesso do
consumidor à pessoa jurídica estrangeira com quem contrata. Nesse passo, assume
relevância um segundo aspecto da atividade contratual fortemente atingido pelo comércio
eletrônico: o lugar da contratação.
2.2. Onde contrata. A transnacionalidade do contrato eletrônico e o problema da lei
aplicável. Stream of commerce e as normas de ordem pública.
A internet suprimiu a referência física, geográfica, ao lugar da
contratação, noção que era tão cara ao raciocínio do direito civil e do direito internacional
privado. Um consumidor brasileiro, em viagem pela Europa, pode visitar o site de uma
livraria de Nova Iorque, hospedado em um provedor da Califórnia, para adquirir um livro
escrito por um autor francês, produzido por uma editora do Canadá, que lhe será expedido
por um distribuidor situado no México ou na Argentina. Tais contratos, como se vê, não
10
O texto do Decreto foi fortemente influenciado pelo Projeto de Lei nº 439 de 2011 (Senado
Federal), dedicado à atualização do Código de Defesa do Consumidor em matéria de comércio eletrônico.
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são meramente internacionais, no sentido tradicional do termo, mas são verdadeiramente
transnacionais, já que transcendem qualquer nacionalidade. A nacionalidade perde, em
larga medida, sua importância. O “lugar da contratação” passa, com o comércio
eletrônico, a ser uma espécie de abstração,11 uma ficção que os juristas lutam com unhas
e dentes para preservar, mas que se revela cada vez mais artificiosa e irreal.
Tamanha transformação – talvez a mais significativa dentre todas
aquelas trazidas pelo advento da internet – causa profundas consequências no modo de
aplicação do Direito, vinculado, desde a formação dos Estados Nacionais, ao território
(locus) de exercício da soberania estatal. A comunidade jurídica brasileira parece não ter
ainda despertado para a amplitude dessas consequências, que prometem afetar, em última
análise, a própria metodologia de produção das normas jurídicas e suas formas
tradicionais de aplicação. Em um plano mais específico e mais imediato, porém, a
jurisprudência brasileira tem revelado sensibilidade ao examinar ao menos um
subproduto dessa mudança: a discussão sobre a lei aplicável ao contrato.
A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-lei n.
4.657, de 4 de setembro de 1942) determina, em seu art. 9o, que as obrigações são regidas
pela “lei do país em que se constituírem”.12 A regra é de fácil aplicação nos contratos
celebrados entre presentes, em que a própria situação física dos contratantes já revela o
país em que o contrato é celebrado e, portanto, a lei que se destina a regê-lo. Em relação
aos contratos celebrados entre ausentes, tal critério afigura-se, porém, inaplicável, tendo
o legislador brasileiro recorrido aí a um artifício legal, segundo o qual, na contratação
entre ausentes, “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que
residir o proponente”.13
A aplicação literal destas regras ao comércio eletrônico resultaria em
constante reenvio à lei do país do fornecedor, na medida em que os sites de varejo exibem
propostas permanentes ao público que o consumidor simplesmente “aceita” mediante o
pressionar de um botão do seu teclado ou mouse.14 Dois problemas relevantes surgiriam.
11
Pense-se, por exemplo, na possibilidade, hoje cada vez mais freqüente, de que o contrato
eletrônico seja celebrado por meio de um dispositivo móvel, como telefone celular, tablet ou leitor digital,
por um usuário em trânsito.
12 “Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.” 13
Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, art. 9o, §2o. 14
Essa a conclusão praticamente unânime da doutrina brasileira: “Assim, devemos ter em mente
que a oferta feita via Web site é, em regra, ad incertas personas, não havendo como prever em que
localidade poderá ser acessada. Portanto, o usuário que acessa o site deve ter em mente que está negociando
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Primeiro, em um cenário em que, conforme já destacado, os sites muitas vezes omitem a
própria identidade do fornecedor e também o seu endereço físico, o consumidor brasileiro
acabaria por se sujeitar à legislação de um país que, no ato da contratação, sequer sabe
precisamente qual é, gerando uma situação de inequívoco desequilíbrio em seu desfavor.
Segundo, haveria forte estímulo para que fornecedores de produtos ou serviços online
transferissem suas sedes para países com baixo grau de proteção normativa ao
consumidor, replicando uma espécie de “manipulação” já adotada pelo mercado global
em relação à legislação trabalhista, o que geraria prejuízos evidentes à economia
brasileira.15
Por essas e outras razões, a jurisprudência brasileira tem caminhado no
sentido de afirmar que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às relações de
consumo estabelecidas entre fornecedores eletrônicos estrangeiros e o consumidor
brasileiro. Diferentes fundamentos têm sido utilizados para tanto. Invoca-se, de modo
geral, a imperatividade do respeito às normas de ordem pública, ao lado de argumentos
ligados à transnacionalidade das marcas comerciais em uma economia globalizada ou a
uma importação algo abrangente da teoria do stream of commerce, segundo a qual quem
direciona seu comércio aos consumidores de certos países assume o ônus de ter sua
atividade disciplinada pelas respectivas leis nacionais.16
Tais soluções não exprimem, como se pode notar, um retorno ou um
renovado compromisso com o “lugar da contratação”. Muito ao contrário: exprimem
novas formas de identificação da lei aplicável às relações contratuais, que deixam de estar
atreladas à geografia da celebração para passarem a exprimir critérios ratione personae,
fundados na pessoa do contratante (no caso, o consumidor brasileiro), ou critérios
teleológicos, como aqueles fundados na finalidade de proteção do consumidor frente às
práticas de mercado, sejam elas nacionais, internacionais ou transnacionais. Parece
inegável que o celebrado “fim das fronteiras” promovido pela globalização econômica
tem, no comércio eletrônico, servido preponderantemente ao interesse dos fornecedores,
que parecem pretender escapar no mundo virtual dos custos e ônus inerentes não apenas
sob as regras do local onde está o proponente, como esse estivesse negociando em viagem ao exterior”
(Erica Brandini Barbagalo, Contratos Eletrônicos, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 72).
15 O Brasil, convém lembrar, é considerado um país de forte legislação consumerista.
16 Ver Superior Tribunal de Justiça, Ação Rescisória 2.931/SP, 4.9.2003. Sobre a teoria do stream
of commerce, ver A. Kimberley Dayton, Personal Jurisdiction and the Stream of Commerce, 7 Review of
Litigation 239 (1987-88), William Mitchell College of Law.
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ao processo econômico de disponibilização dos produtos e serviços, mas também às
normas jurídicas que regulamentam sua relação com os consumidores. Impõe-se aqui a
resistência do direito às conveniências do mercado, resistência que não deve repousar
sobre conceitos como o “lugar da contratação”, mas que deve recorrer abertamente à sua
ratio fundamental neste campo: a proteção mais efetiva ao consumidor.
Sob o prisma estritamente jurídico, faz-se importante registrar que um
dos pilares mais tradicionais do direito dos contratos – aquele que estabelecia uma relação
quase “matemática” entre o local da contratação e a lei aplicável ao contrato – foi
definitivamente rompido pelo comércio eletrônico, com uma série de consequências
ainda não totalmente exploradas, quer no âmbito da teoria geral dos contratos, quer no
âmbito do direito internacional privado.
2.3. Quando contrata. Momento de formação do contrato eletrônico e o dever de
confirmação de recebimento da aceitação à oferta.
A terceira referência basilar da disciplina contratual afetada pela
contratação eletrônica diz respeito ao momento da contratação. Quando se reputa firmado
o contrato? Exatamente como ocorre em relação ao lugar da contratação, inexiste, no
direito brasileiro, uma regra específica que trate do tempo de formação dos contratos
celebrados eletronicamente. Aplica-se, a rigor, a norma geral estabelecida no art. 434 do
Código Civil, segundo a qual o contrato entre ausentes se forma, em regra, no momento
em que a aceitação é expedida17.
Trata-se da chamada teoria da expedição mitigada, de longa tradição no
direito civil brasileiro. Em um cenário de contratação física, a teoria da expedição traz
certa segurança ao aceitante, o qual, no momento em que envia a aceitação, sabe já
formado o vínculo contratual, sem que se faça necessária nova manifestação do
proponente – o que, em um contexto epistolar, exigiria maior dispêndio de tempo e custo.
O envio da aceitação deixa, ademais, vestígios físicos (registro do encaminhamento por
correio) que, em uma eventual dúvida quanto à formação ou não do contrato, favorecem
o aceitante. No ambiente eletrônico, todavia, essas vantagens desaparecem. O envio da
17 “Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida,
exceto: I - no caso do artigo antecedente (art. 432); II - se o proponente se houver comprometido a esperar
resposta; III - se ela não chegar no prazo convencionado.” O art. 433, por sua vez, considera “inexistente a
aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante”.
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aceitação ocorre, muitas vezes, por um mero “clique” do usuário e não deixa qualquer
prova ou indício de que a operação foi concluída.
Para evitar insegurança quanto à realização ou não do negócio virtual,
deixando o consumidor ao sabor da conveniência do fornecedor em cumprir ou não a
ordem expedida, muitos autores têm defendido o afastamento da teoria da expedição
mitigada no campo dos contratos eletrônicos. Nessa direção, o Enunciado 173 da Jornada
de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, chega a afirmar:
A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio
eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente.
Tal enunciado, a nosso ver, merece reforma. A uma, porque contraria
frontalmente a letra do art. 434, transcendendo o escopo interpretativo dos enunciados
para instituir uma orientação antagônica ao texto legal. A duas, porque a adoção da teoria
da recepção não resolve o problema da formação dos contratos eletrônicos, na medida em
que o consumidor eletrônico continua sem saber se o seu pedido de compra foi recebido,
questão que permanece inteiramente na esfera de poder do fornecedor. Em outras
palavras, condicionar a formação do contrato ao recebimento da aceitação não diminui
em nada a insegurança negocial no ambiente eletrônico.
Melhor rumo seguiu o Decreto 7.962, de 15 de março de 2013, que, em
seu art. 4o, inciso I, instituiu o dever de confirmação para garantir o atendimento facilitado
ao consumidor no comércio eletrônico. Não se trata, a rigor, de uma mudança no
momento de formação do contrato, já que o contrato continua se formando
independentemente da confirmação, mas sim de um dever legal: passa a incorrer em
infração o fornecedor que deixa, nos termos do Decreto, de confirmar “imediatamente o
recebimento da aceitação da oferta”.18 Com isso, a legislação brasileira passa a se alinhar,
nesse particular, ao direito europeu, que, desde a Diretiva Européia 2000/31/CE, já
instituía o dever de confirmação no comércio eletrônico (art. 11).19
Embora não se trate de uma alteração da teoria aplicável à formação
dos contratos, a verdade é que a instituição do dever de confirmar o recebimento da
18 “Art. 4o Para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico, o
fornecedor deverá: III – confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta (...)”.
19 O mesmo caminho é seguido no Projeto de Lei nº 439 de 2011, que se propõe a atualizar o Código
de Defesa do Consumidor com vistas à proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico (art. 45-
D, I).
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aceitação sujeita o fornecedor, ao menos em teoria, a sanções bem mais severas (multa,
suspensão da atividade etc.)20 que a simples indiferença jurídica ao vínculo formado – o
que, de resto, poderia acabar prejudicando o próprio consumidor. Ainda, portanto, que
não se tenha ressalvado a aplicação do art. 434 no caso das contratações eletrônicas, a
instituição do dever de confirmação modifica a própria abordagem jurídica do tempo de
formação do contrato, transcendendo o clássico binômio proposta-aceitação e revelando
a passagem de uma lógica puramente estrutural a uma lógica mais funcional e
decididamente protetiva.
2.4. Como contrata. A informalidade do contrato eletrônico e sua prova.
A forma do contrato desempenha historicamente uma dupla função: por
um lado, alerta os contratantes para a seriedade do vínculo contratual, fazendo-os refletir
sobre a contratação antes de conclui-la em definitivo.21 Por outro lado, serve, perante os
próprios contratantes e a sociedade, como meio de prova da formação do contrato e do
seu conteúdo. Ambas as funções se dissipam na internet, onde a contratação é
absolutamente informal, desprovida mesmo de qualquer suporte físico.
Em contraposição aos instrumentos escritos e assinados da contratação
tradicional, a forma da contratação eletrônica resume-se frequentemente à exibição de
uma tela ou página virtual que o consumidor pode, se cuidadoso, se dar ao trabalho de
imprimir ou copiar para o seu próprio computador ou dispositivo móvel. Pode ainda
dispor de um e-mail ou outra forma de aviso eletrônico, como uma breve mensagem ao
seu aparelho de telefonia celular (SMS, sigla de Short Message Service).22 Em um passado
recente, os juristas brasileiros (como, de resto, os juristas de todo o mundo) discutiam se
20
O art. 7o do mesmo Decreto determina que “a inobservância das condutas” nele descritas enseja
a aplicação das sanções previstas no art. 56 do Código de Defesa do Consumidor, que traz o rol genérico
de sanções administrativas aplicáveis às infrações da legislação consumerista, como multa, proibição de
fabricação do produto, suspensão temporária da atividade etc.
21 Daí as complexas solenidades (fórmulas verbais, atos simbólicos etc.) exigidas no âmbito do
direito antigo para a celebração de contratos, algumas das quais deixaram vestígios no hábito dos povos
europeus, como a entrega de uma moeda de baixo valor (denier à Dieu) ou a aplicação de uma palmada na
face do vendedor, costume ainda utilizado em alguns mercados de gado na Europa central (emptio non valet
sine palmata). Ver, sobre o tema, John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001, 3a ed., p. 734.
22 Embora seja possível a utilização de assinaturas eletrônicas e certificações digitais, seu emprego
para fins de aquisição de produtos ou serviços pelo consumidor é muito raro. Sobre o tema das assinaturas
eletrônicas e certificações digitais, ver Jorge José Lawand, Teoria Geral dos Contratos Eletrônicos, São
Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 141-146.
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tais impressões, cópias ou documentos digitais tinham ou não validade como meio de
prova, constituíam ou não meros indícios e outras questões que o avanço maciço da
cultura digital parece ter tornado um tanto folclóricas. Em que pesem as dificuldades do
sistema judiciário em lidar com documentos puramente eletrônicos e a suspeita quase
instintiva que recaía, até pouco tempo, sobre cópias impressas de páginas virtuais e e-
mails, não parece haver dúvida, atualmente, de que todos esses instrumentos devem ser
admitidos como meios probatórios dos direitos discutidos em juízo. O Código Civil
brasileiro, de 2002, posicionou-se claramente nesse sentido:
Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros
fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou
eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte,
contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.
O Enunciado 398 da IV Jornada de Direito Civil, realizada em outubro
de 2006, assegurou ainda maior clareza ao texto legal, ao concluir que “os arquivos
eletrônicos incluem-se no conceito de ‘reproduções eletrônicas de fatos ou de coisas’, do
art. 225 do Código Civil, aos quais deve ser aplicado o regime jurídico da prova
documental.” Em consonância com essa orientação, os tribunais brasileiros têm acolhido
como meio válido de prova os arquivos digitais.23 Em caso de impugnação da sua
veracidade, exige-se perícia, o que, de resto, pode ocorrer também com documentos
físicos. A questão meramente probatória parece, portanto, equacionada.24
O mesmo não se pode dizer em relação àquele outra função da forma
contratual: a de alertar as partes para a importância e seriedade do vínculo. A contratação
via internet realiza-se de modo cada vez mais veloz, sem a adequada pesquisa sobre as
características do produto ou serviço contratado, sobre a qualidade do fornecedor ou sobre
23
Ver, por exemplo, acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que se concluiu
que: “a despeito de o contrato de prestação de serviços não conter a assinatura da requerida, tal fato não é
apto a invalidar o referido ajuste, tendo em vista que o contrato de prestação de serviços educacionais é
informal e não exige forma prescrita em lei, podendo até ser firmado verbalmente. O contrato de prestação
de serviços, juntado aos autos, ainda que desprovido de assinatura da ré, é suficiente para provar a realização
do ajuste, visto que os documentos eletrônicos gozam de valor probante e o documento de fls. 06-09
demonstra que a requerida efetivamente aderiu ao aludido contrato, via internet.” (TJMG, Apelação Cível
1.0024.06.986334-8/001, 17ª Câmara Cível, Rel. Des. Lucas Pereira, DJ 12.7.2007). No mesmo sentido,
ver TJSP, Apelação Cível 0018518-77.2010.8.26.0005, 20ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Maria
Lucia Pizzotti, j. 27.8.2012; e TJMG, Apelação Cível 1.0024.07.691106-4/001, 17ª Câmara Cível, Rel.
Des. Marcia de Paoli Balbino, j. 19.2.2009, entre outros.
24 O mesmo vale para o cenário internacional em que um número cada vez maior de acordos,
convenções e modelos normativos reconhecem expressamente a validade jurídica dos documentos
eletrônicos. Cite-se, a título ilustrativo, o art. 5º da Lei Modelo da UNCITRAL sobre Comércio Eletrônico:
“Não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja na forma de
mensagem eletrônica” (Organização das Nações Unidas, Nova Iorque, 1997).
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as próprias condições do contrato firmado por meio eletrônico. Por mais alarmante que
possa parecer essa constatação, o fato é que o consumidor eletrônico não sabe muitas
vezes o quê está contratando.
2.5. O quê contrata. A paradoxal insuficiência da informação no ambiente
eletrônico. Publicidade na internet e outras técnicas de incentivo ao consumo.
Na contratação tradicional, o consumidor tem frequentemente a chance
de manusear o produto, de verificar a sua embalagem, de testar seu funcionamento ou
ainda de esclarecer dúvidas com um preposto do fabricante ou do comerciante no próprio
estabelecimento comercial. Nos sites da internet, ao contrário, as informações são pré-
dispostas; o produto é descrito por meio de imagens ou descrições técnicas padronizadas,
aplicáveis muitas vezes ao gênero do produto, e não àquela espécie que está sendo
efetivamente adquirida. O consumidor eletrônico não tem acesso físico ao bem.25 É certo
que poderia buscar, em outros sites da internet, informações, avaliações e depoimentos
sobre a qualidade do produto e do fornecedor – alguns sites de compras, inclusive, já
fornecem avaliações como parte da sua estratégia comercial –, mas tal conduta é, na
prática, rara, seja porque tais informações, potencialmente infinitas, não se encontram
ordenadas de modo a facilitar a pesquisa do consumidor, seja porque não são tidas como
inteiramente confiáveis, diante das suspeitas de que se prolifera na internet a manipulação
das ferramentas de avaliação por meio da contratação remunerada de usuários para que
se manifestem sobre certos produtos e serviços (em uma forma oculta e deturpada de
marketing, típica do ambiente virtual). O consumidor eletrônico acaba, assim, dispondo
paradoxalmente de pouca informação sobre o objeto da sua contratação.
Quase sempre o consumidor eletrônico desconhece, também, os termos
do contrato, ou seja, as condições contratuais, que são usualmente apresentados pelos
fornecedores em um formato que desestimula a leitura, por meio de páginas inteiras de
letras miúdas, que contrastam flagrantemente com os elevados investimentos em
programação visual realizados nas páginas dedicadas à oferta de produtos. Na maioria
dos sites, a passagem da página de ofertas à página que exibe os termos contratuais
25
Alguns autores especulam que, no futuro, essa “perda de aspectos do conhecimento da coisa ou
serviço contratado” poderá vir a ser suprida em alguma medida pelo próprio “desenvolvimento tecnológico
(vide 3D)” (Alberto Gosson Jorge Júnior, Aspectos da Formação e Interpretação dos Contratos
Eletrônicos, in Revista do Advogado, ano 32, n. 115, 2012, p. 17).
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configura uma mudança abrupta de formatação, que salta aos olhos do usuário da internet,
cada vez mais acostumado com gráficos e imagens de alta resolução. Muitos fornecedores
sequer se dão ao trabalho de dividir os termos contratuais em tópicos, o que dificulta a
localização pelo consumidor das informações consideradas relevantes para a celebração
do contrato.
Por todas essas razões, embora, em tese, o consumidor pudesse dispor
no ambiente eletrônico de maior tempo de reflexão e de mais instrumentos de busca para
obter informações sobre o objeto e os termos da contratação, o certo é que, atualmente, a
contratação via internet se faz de modo muito mais desinformado que a contratação física.
Tentado pela facilidade de um clique, o consumidor eletrônico compra muitas vezes por
mero impulso, sem a necessária reflexão. Técnicas de oferta de produtos impelem o
usuário à aquisição, como no exemplo corriqueiro em que, tendo realizado a inserção em
seu “carrinho de compras” virtual de um produto do qual realmente necessita, o
consumidor se vê prontamente provocado pelo site a adquirir produtos acessórios àquele
que foi selecionado, ou outros produtos daquele mesmo fabricante, ou, ainda, produtos
adquiridos por outras pessoas que adquiriram aquele mesmo produto,26 em um ciclo
interminável de estímulos ao consumo imediato.
A publicidade também desempenha aí um papel relevante. Ao contrário
do que ocorre no mundo físico – em que a publicidade se restringe a espaços e momentos
relativamente delimitados –, no mundo virtual, a publicidade ocorre em uma espécie de
fluxo permanente, que acompanha o usuário em qualquer momento da navegação.
Banners surgem nos rodapés e cabeçalhos de páginas que aparentemente não tinham
conteúdo comercial; pop-ups pipocam diante do usuário, impedindo-o de prosseguir
navegando; spams abarrotam caixas de entrada de e-mails. Em sites de busca, links
patrocinados se misturam a resultados relevantes, quando muito com uma sutil
diferenciação em relação à cor das letras ou do pano de fundo. Vídeos aparentemente
reais são postados em redes sociais, sem nenhum alerta acerca de seu cunho comercial,
para servirem de teasers de futuras campanhas publicitárias.27 Diversamente do
26
Técnica que explora nitidamente os sentimentos humanos de identificação com o próximo e de
pertencimento a grupos sociais, em estratégia que, embora não seja inédita no mundo comercial, assume
no ambiente eletrônico dimensões nunca antes imaginadas.
27 Exemplo recente foi o vídeo Perdi meu amor na balada, postado por um rapaz que pedia ajuda
para encontrar o número de telefone de uma moça que conhecera na noite paulistana. Revelou-se mais tarde
que o vídeo havia sido produzido por certa fabricante de celulares e integrava uma campanha publicitária
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espectador televisivo, que ainda tem a alternativa de mudar de canal durante o intervalo
comercial, o usuário da internet sujeita-se todo o tempo ao bombardeamento publicitário,
em um continuado e permanente incentivo ao consumo.
Resistir a tal incentivo torna-se tarefa ainda mais árdua na medida em
que a publicidade eletrônica vai ganhando, a cada dia, um perfil mais e mais
personalizado. A coleta de dados do usuário – por meio de cookies e outras técnicas de
transparência reduzida e legalidade duvidosa – tem permitido o desenvolvimento de
perfis de usuários que são utilizados pelos fornecedores para direcionar o conteúdo da
mensagem publicitária e da oferta de produtos na internet. Se a personalização da oferta,
por um lado, poupa tempo ao consumidor eletrônico (livrando-o do oferecimento de
produtos que seriam, provavelmente, “indesejáveis”), torna, por outro lado, muito mais
dificultosa a tarefa de refletir sobre a contratação, na medida em que dados pessoais
obtidos sem autorização do usuário são usados para estimular de modo praticamente
irresistível a aquisição dos produtos ou serviços de que supostamente necessitaria. A
manobra associa-se não raro a ofertas de financiamentos, com disponibilidade imediata
dos recursos econômicos exigidos para a aquisição, completando-se o ciclo do consumo
compulsivo, resumido no bordão “compre o que você não precisa com o dinheiro que
você não tem”.
Todo esse novo arsenal de técnicas de marketing eletrônico exige
posturas mais definidas por parte do sistema jurídico brasileiro, pouco preparado para
lidar com essas questões. Em primeiro lugar, impõe-se a aprovação imediata de uma
legislação que proteja efetivamente os dados pessoais. O Brasil não conta com um marco
normativo claro nessa matéria, encontrando-se, já há alguns anos, no Ministério da Justiça
um projeto de lei de proteção de dados pessoais, que, após um período de debate público,
parece aprisionado em um processo excessivamente lento de produção e aperfeiçoamento
dentro do próprio Ministério – prisão da qual não foi capaz de se libertar nem mesmo na
esteira do recente furor provocado pela descoberta de monitoramento da agência de
segurança dos Estados Unidos sobre as comunicações da Presidente Dilma Rousseff.28
que somente veio a público semanas depois. O caso rendeu procedimentos no Procon de São Paulo e no
CONAR (Conselho de Autorregulamentação Publicitária).
28 Uma das muitas repercussões do chamado caso Edward Snowden, a revelação do monitoramento
gerou a exigência de explicações por parte do Governo brasileiro, respondidas pela administração Barack
Obama com o argumento de que a legislação interna brasileira não veda as condutas adotadas. Ver, entre
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Além de uma política pública de proteção de dados pessoais impõe-se
uma regulamentação mais efetiva da atividade publicitária no Brasil, ainda disciplinada
de modo bastante lacônico pelo Código de Defesa do Consumidor, por meio de conceitos
excessivamente genéricos (como a “publicidade abusiva” do art. 37, §2o),29 cuja aplicação
acaba sendo controlada quase que exclusivamente pelo Conselho de
Autorregulamentação Publicitária. Em que pese o esforço do referido Conselho, suas
decisões acabam sendo guiadas pelo subjetivismo inerente à aplicação daqueles conceitos
abertos, sem a formulação de standards de comportamento, resultando em um conjunto
de precedentes que não dão maior segurança nem ao consumidor, nem ao mercado
publicitário.
Por fim, cumpre amparar e desenvolver, no campo das contratações
eletrônicas, mecanismos de “saída” ou reversão, voltados a tutelar o direito de reflexão
do consumidor no ambiente virtual. Esse é o ponto que tem maior relação com a temática
geral desse estudo e aqui o ordenamento brasileiro já tem dado alguns passos,
especialmente no tocante ao chamado “direito de arrependimento”. Convém examinar o
tema em separado.
3. Direito de arrependimento. Tratamento da matéria no Direito Brasileiro: Lei
8.078/1990 e Decreto 7.962/2013. Experiência estrangeira: Diretiva 2011/83/CE.
Análise comparativa.
O direito de arrependimento, também chamado direito de reflexão, foi
instituído pelo art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), em que se
lê:
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a
contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou
serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e
serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por
outras notícias, reportagem de Glenn Greenwald, Roberto Kaz e José Casado, EUA espionaram milhões de
e-mails e ligações de brasileiros, publicada no jornal O Globo Online em 6.7.2013.
29 O Código de Defesa do Consumidor, a rigor, não define a publicidade abusiva, mas apenas a
exemplifica, deixando ampla margem à interpretação do conceito: “Art. 37. (...) §2o. É abusiva, dentre
outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a
superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores
ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à
sua saúde ou segurança.”
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 104
telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento
previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título,
durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato,
monetariamente atualizados.
A norma já se aplicava, a toda evidência, às contratações eletrônicas,
realizadas inegavelmente “fora do estabelecimento comercial”.30 Para afastar, porém,
qualquer dúvida quanto ao ponto, o Decreto 7.962/2013 tratou expressamente do direito
de arrependimento ao cuidar do comércio eletrônico:
Art. 5o. O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os
meios adequados e eficazes para o exercício do direito de
arrependimento pelo consumidor.
§ 1o O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela
mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros
meios disponibilizados.
§ 2o O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos
contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor.
§ 3o O exercício do direito de arrependimento será comunicado
imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à
administradora do cartão de crédito ou similar, para que:
I – a transação não seja lançada na fatura do consumidor; ou
II – seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já
tenha sido realizado.
§ 4o O fornecedor deve enviar ao consumidor confirmação imediata do
recebimento da manifestação de arrependimento.
30
Como registrava Ruy Rosado de Aguiar Júnior, ao afirmar, em 2000, que o direito de
arrependimento (art. 49, CDC) “é perfeitamente aplicável aos negócios realizados através da rede mundial
de computadores” (Ministro do STJ alerta para a fragilidade jurídica dos contratos eletrônicos, 26.9.2000,
disponível em www.stj.gov.br). Em sentido contrário, doutrina minoritária invoca o conceito de
estabelecimento comercial virtual para sustentar que a compra realizada via internet não se dá fora do
estabelecimento comercial. Acrescenta que o consumidor eletrônico é quem tem a iniciativa da compra,
razão pela qual teria tempo de sobra para reflexão. Sobre o tema, com detalhes sobre os dois
posicionamentos, ver Caio Rogério da Costa Brandão, O Direito de Arrependimento nos Contratos
Eletrônicos, in Juris Plenum, ano III, n. 13, 2007, pp. 16-17.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 105
O decreto presidencial vai, como se vê, além do que já dispunha o art.
49 do código consumerista, contemplando alguns aspectos adicionais do tema, como a
facilitação da comunicação do exercício do direito de arrependimento pelo consumidor
eletrônico e o dever do fornecedor de confirmar imediatamente o recebimento da
manifestação de arrependimento, além dos efeitos do arrependimento sobre contratos
acessórios. O Projeto de Lei 439/2011, que trata do comércio eletrônico e se encontra
atualmente em tramitação no Congresso Nacional, dispõe sobre o tema no mesmo sentido.
Sua aprovação continua a se fazer necessária para evitar qualquer discussão jurídica
quanto à possibilidade de regulamentação do tema por meio de decreto.
O art. 5o do Decreto 7.962 representa, sem dúvida, um avanço, na
medida em que, para além de reiterar a aplicabilidade do direito de arrependimento ao
comércio eletrônico, aborda mais dois ou três aspectos do tema. Nada obstante, é certo
que a legislação brasileira poderia ter ido muito além. Uma incursão pelo cenário europeu
revela não apenas níveis de proteção mais elevados nessa matéria, mas também uma
abordagem de natureza distinta, que contribui para a efetividade do direito de
arrependimento no comércio eletrônico daquele continente.
Com efeito, a Diretiva 2011/83/CE ocupa-se de modo bastante
detalhado do direito de arrependimento, a que denomina “direito de retractação” (na
versão oficial em língua portuguesa).31 O artigo 9o da referida Diretiva institui o prazo de
14 dias para a retratação do contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento
comercial – o dobro, portanto, do prazo previsto na legislação brasileira. Registra, ainda,
expressamente a desnecessidade de indicação de qualquer motivo para o exercício da
retratação. O artigo 10 determina que, se o fornecedor deixar de informar ao consumidor
sobre a possibilidade, as condições, o prazo e o procedimento de retratação,32 o prazo se
estende adicionalmente por 12 meses após o término do prazo original de 14 dias. Ao
contrário, portanto, da legislação brasileira, que impõe o dever de informação sobre o
direito de arrependimento sem uma sanção específica,33 a Diretiva europeia estabelece
uma significativa extensão do prazo aplicável em caso de descumprimento.
31
Em inglês, right of withdrawal e, em espanhol, derecho de desistimiento.
32 Conforme impõe o artigo 6o, item 1, alínea h, da mesma Diretiva, que prevê ainda a
disponibilização de um modelo de formulário para o exercício do direito de retratação, sem prejuízo da
possibilidade de outros meios de comunicação do referido exercício (artigo 11, item 1, alínea b).
33 O art. 5o do Decreto 7.962 impõe o dever de informar “de forma clara e ostensiva” os meios
adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento, mas não contém qualquer sanção
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 106
A Diretiva 2011/83/CE regula, ainda, minuciosamente nos inúmeros
subitens dos seus artigos 13 e 14 os custos envolvidos no procedimento de retratação –
diferentemente da legislação brasileira que não traz quaisquer considerações específicas
sobre o assunto. De acordo com a Diretiva, o consumidor europeu está, em regra, isento
de custos e tem direito ao reembolso de suas despesas, mas o artigo 13 prevê algumas
situações de imunidade do fornecedor, como na hipótese em que o consumidor opta
livremente por uma modalidade mais onerosa de envio que a modalidade padrão (artigo
13, item 2). A Diretiva assegura, ainda, ao consumidor o direito de receber o reembolso
das suas despesas pelo “mesmo meio de pagamento que o consumidor usou na transação
inicial”, aspecto não regulado no direito brasileiro e que tem gerado, entre nós, numerosos
abusos no momento de exercício do direito de arrependimento, como a famigerada prática
de substituir o reembolso efetivo do consumidor por um “crédito” junto ao fornecedor.
A Diretiva europeia enfrenta, ainda, os dois principais aspectos que têm
sido invocados pelos fornecedores brasileiros em oposição ao direito de arrependimento.
São eles: (i) a questão da depreciação do produto já entregue ao consumidor; e (ii) a
inaplicabilidade do direito de arrependimento em casos envolvendo o fornecimento de
produtos e serviços de fruição imediata, especialmente conteúdo digital oferecido via
internet. Quanto ao primeiro aspecto, a Diretiva 2011/83/CE atribui ao consumidor
responsabilidade pela depreciação “que decorra de uma manipulação dos bens que exceda
o necessário para verificar a natureza, as características e o funcionamento dos bens”
(artigo 14, item 2).34 O consumidor europeu não é, como se vê, isento de responsabilidade,
devendo ter cautela no recebimento do produto adquirido à distância. A instituição de
norma semelhante é possível e recomendável no direito brasileiro, pois, além do
desestímulo a eventuais abusos episódicos, ajudaria a afastar em definitivo argumentos
ligados a uma certa “infantilização” do consumidor brasileiro e à instituição de ônus
insuportáveis sobre os fornecedores no cenário nacional.
específica para o descumprimento desse dever. O art. 7o do mesmo Decreto determina que “a inobservância
das condutas” nele descritas enseja a aplicação das sanções previstas no art. 56 do Código de Defesa do
Consumidor, que traz o rol genérico de sanções administrativas aplicáveis às infrações da legislação
consumerista, como multa, suspensão da atividade etc. Não há, todavia, menção à extensão de prazo, o que
afasta tal possibilidade no ordenamento brasileiro, diante do princípio da prévia estipulação legal da pena.
34 Também aqui a falta de informação sobre o direito de arrependimento sujeita o fornecedor a um
ônus agravado, dispondo a parte final do referido item 2 que “o consumidor não é, em caso algum,
responsável pela depreciação dos bens quando o profissional não o tiver informado do seu direito de
retractação”.
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Em relação ao segundo aspecto, que diz respeito aos casos de
inaplicabilidade do direito de arrependimento, a Diretiva europeia trata do tema no seu
artigo 16. Em treze alíneas prevê exceções à incidência do direito de arrependimento,
como, por exemplo, os “contratos celebrados em hasta pública”, o “fornecimento de bens
susceptíveis de se deterioarem ou de ficarem rapidamente fora do prazo”, o fornecimento
de bens ou serviços “cujo preço depende de flutuações do mercado financeiro que o
profissional não possa controlar e que possam ocorrer durante o prazo de retractação”, o
fornecimento de “gravações de áudio ou vídeo seladas ou de programas informáticos
selados a que tenha sido retirado o selo após a entrega” e o fornecimento de “conteúdos
digitais que não sejam fornecidos num suporte material, se a execução tiver início com o
consentimento prévio e expresso do consumidor e o seu reconhecimento de que deste
modo perde o direito de retractação”, entre outros.
Ao contrário do que poderia parecer em uma primeira leitura, tais
exceções não representam um decréscimo no nível de proteção ao consumidor europeu.
A incidência do direito de arrependimento já não seria reconhecida pelos tribunais dos
países europeus na imensa maioria dessas situações, muitas delas de clareza intuitiva. A
previsão explícita de tais situações traz, contudo, a necessária segurança ao mercado e
contribui para a instituição de cuidados recíprocos, como a obtenção do expresso
reconhecimento pelo consumidor da perda do direito de arrependimento como etapa
prévia do início da fruição de conteúdos digitais. Previne, ademais, o prolongamento de
discussões tautológicas – às vezes, puramente acadêmicas – que têm servido de entrave,
entre nós, para uma tutela mais efetiva do direito de arrependimento.
De modo geral, pode-se dizer que o movimento consumerista brasileiro,
após um momento inaugural altamente profícuo e feliz – representado pela edição da Lei
8.078, em 1990, e pela sua consolidação na jurisprudência nacional ao longo da década
seguinte –, tornou-se cauteloso, talvez excessivamente cauteloso. Os Projetos de Lei
apresentados no âmbito da chamada atualização do Código de Defesa do Consumidor
trazem inovações importantes (cujos efeitos transcendem, aliás, a própria esfera do direito
do consumidor), mas se restringem, essencialmente, a consagrar cláusulas gerais ou
normas abertas. Receosos talvez de retrocessos na proteção do consumidor e
cuidadosamente elaborados com vistas à facilitação da chancela do Congresso Nacional,
tais projetos evitaram o detalhamento e a especificação procedimental que poderiam
afastar perigos imaginários e contribuir para a elevação do nível do debate desses temas
no espaço público brasileiro.
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Se a postura adotada afigura-se adequada ou não só o tempo dirá. O que
parece insólito é que uma norma infralegal, como o Decreto 7.962, tenha se limitado ao
mesmo formato, disciplinando em termos vagos e genéricos aquilo que poderia ter
disciplinado em termos mais específicos, como é o caso do direito de arrependimento. Ao
lado da Diretiva europeia – que já é bem mais genérica que as leis nacionais dos países
europeus –, o Decreto 7.962 soa como norma programática, sem embargo das melhorias
gerais que trouxe ao campo da contratação eletrônica.
O que mais assusta, nesse exemplo recente, é a olímpica indiferença à
experiência estrangeira, especialmente a experiência europeia que, nesse campo, guarda
íntima proximidade com as bases do consumerismo brasileiro.35 Não se trata apenas de
observar a Diretiva 2011/83/CE; o comércio eletrônico europeu não é, obviamente,
regulado por uma norma única, mas por um complexo tecido normativo, composto de
diferentes Diretivas (Diretivas 2000/31/CE, 2002/65/CE, 2008/48/CE, entre outras), às
quais se somam diferentes leis nacionais que procuram incorporar as orientações contidas
nas Diretivas, mas não raro vão além, instituindo normas tipicamente locais. Há nesse
rico arcabouço uma série de normas que poderiam ter servido de inspiração ao legislador
brasileiro, mas que acabaram não refletidas nem no Decreto 7.962, nem no Projeto de Lei
439/2011, como o chamado “conteúdo mínimo” dos contratos eletrônicos e a
transparência na informação dos preços envolvidos na contratação à distância (sendo
certo que, no Brasil, tais preços são mal informados ao consumidor eletrônico,
surpreendido, não raro, com o acréscimo de fretes, comissões, taxas privadas e tributos
para cuja existência não é alertado no momento oportuno).
Essas e outras questões vêm sendo deixadas para o futuro pelo Poder
Legislativo brasileiro, prolongando um desnecessário desnível entre o tratamento
dispensado pelos mesmos conglomerados transnacionais aos consumidores brasileiros e
europeus, em flagrante desfavor dos primeiros e em assimetria injustificável num
mercado que se pretende global.
35
Para muitos autores, a abordagem norte-americana, especialmente em relação ao consumo via
internet, é considerada mais próxima de uma ótica de laissez faire ou de autorregulação, refletindo talvez
um maior entusiasmo norte-americano pelas novas tecnologias, em oposição a uma postura mais
ambivalente e cautelosa da União Européia (Jane Kaufman Winn e Jens Haubold, Electronic Promises:
Contract Law Reform and E-Commerce in a Comparative Perspective, disponível em
www.law.washington.edu, p. 3).
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4. Conclusão.
Os chamados contratos eletrônicos não representam um mundo à parte,
estranho ao direito dos contratos ou governado por regras próprias. Não se trata de uma
dimensão paralela que somente aparenta similaridade com a realidade tradicional, como
uma espécie de Matrix, lembrada na epígrafe a este artigo.36 A contratação eletrônica traz
inúmeras questões novas, mas se insere no tratamento sistemático dos contratos no direito
brasileiro. Seus pontos de dissonância com a teoria geral tradicional representam
frequentemente oportunidades para rever dogmas rígidos que já não se justificam mais,
nem mesmo fora do ambiente eletrônico (como se viu na discussão pertinente à prova do
contrato). Noutros casos, trata-se de instituir novos mecanismos jurídicos de proteção
contra novos riscos que surgem especialmente – mas nem sempre de modo exclusivo –
no ambiente eletrônico.
Foi o que se viu no tocante ao direito de arrependimento. A importância
da sua efetividade cresce exponencialmente com a ampliação do comércio eletrônico e
da contratação de produtos e serviços via internet. Nem por isso se trata de um instituto
exclusivamente eletrônico. Sua aplicação estende-se a toda contratação celebrada à
distância ou fora do estabelecimento comercial. Sua inspiração radica na ideia da falta de
reflexão adequada do consumidor sobre a contratação do produto ou serviço. Se é certo,
por um lado, que essa falta de reflexão se torna especialmente perceptível no ambiente
eletrônico, devido às notáveis técnicas de impulsão ao consumo virtual, situação muito
semelhante verifica-se com quem contrata por telefone ou por correspondência. Nem se
deve excluir sua aplicabilidade a contratações realizadas em determinadas circunstâncias
dentro do próprio estabelecimento comercial.
Embora essa última hipótese não seja reconhecida pela legislação
brasileira (nem pelas diretivas europeias, registre-se), pode-se defender a aplicação do
direito de arrependimento por analogia àquelas situações em que o contratante, embora
dentro do estabelecimento, é conduzido à contratação por circunstâncias que o impedem
de refletir. É o que ocorre diante de algumas estratégias agressivas de marketing, voltadas
36
Matrix foi uma produção cinematográfica de 1999, dirigida pelos irmãos Wachowski. Relata a
história de um mundo simulado criado por máquinas inteligentes para manter os seres humanos conectados
a uma rede de geração de bioenergia. Foi considerada, ainda em 1999, uma típica produção de estética pós-
moderna, por promover uma espécie de bricolagem de elementos de ficção científica, histórias em
quadrinho, animes, religião messiânica, ecologia e filosofia.
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a produzir artificialmente um cenário de contratação inevitável, como nos casos de
fornecedores que, para obter a venda de unidades imobiliárias em grandes complexos
residenciais, oferecem passeios a toda a família do consumidor para, logo em seguida,
conduzir todo o grupo ao estabelecimento para fins de assinatura do instrumento
contratual. Veja-se ainda o caso dos estabelecimentos comerciais multifuncionais, em que
não raro se misturam ofertas de serviços de lazer com a possibilidade de contratações
imediatas, calcadas justamente na impossibilidade de reflexão prolongada pelo
consumidor (como no exemplo do restaurante que contém loja de vinhos ou no clube
noturno que, próximo ao balcão de bebidas e coquetéis, oferece a venda de passagens
aéreas last minute para destinos exóticos).
Como se vê, o tema do direito de arrependimento – como tantos outros
aspectos que são discutidos sob a rubrica geral da contratação eletrônica – não consiste
em exclusividade do ambiente virtual. A contratação eletrônica representa, antes, uma
oportunidade para identificar o problema bem mais profundo da contratação irrefletida e
do estímulo ao consumo compulsivo. Um tratamento jurídico adequado não pode,
portanto, estar restrito ao locus onde a questão se coloca com maior frequência, mas deve
se inserir no sistema jurídico como um todo. Regras específicas podem e devem ser
editadas para o comércio eletrônico (como, por exemplo, as que dizem respeito à
identificação clara e precisa do fornecedor nos sites de ofertas), mas isso não faz da
contratação virtual um mundo apartado do sistema jurídico, sujeito a conclusões de
ocasião.
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A FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS NO BRASIL: UMA VISÃO
CONTEMPORÂNEA E APLICADA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM VISTA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS
DOS CONTRATOS1
The binding force of contracts in Brazil: a contemporary vision applied in the light
of superior court of law’s justice in view of social principles of contracts
Paulo Nalin Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná. Pós-doutor
pela Universität Basel (Universidade da Basiléia-Suíça). Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais
pela Universidade Federal do Paraná. Integrante e Coordenador de Eixo do Projeto de Pesquisa Virada de
Copérnico (UFPR/UERJ). Associado: Instituto de Direito Privado (IDP), Instituto dos Advogados do
Paraná (IAP), Instituto de Direito Civil (IDC), Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB).
Advogado e árbitro.
Resumo: O presente texto busca estabelecer um diálogo entre o clássico princípio
contratual do pacta sunt servanda e os princípios sociais da moderna teoria dos contratos.
Pretende responder em que medida e alcance pode se entender como obrigatório um
contrato diante de princípios ou valores sociais como a dignidade da pessoa human, a
função social do contrato e a boa-fé. Como critério de pesquisa, lançou-se mão da
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inclusive para demonstrar como a Corte
responde a tal diálogo e se dos seus julgados pode-se extrair uma linha jurisprudencial
uniforme.
Palavras-chave: contrato; princípios contratuais; pacta sunt servanda; função social do
contrato; dignidade da pessoa humana; boa-fé; jurisprudência; Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
Abstract: This paper seeks to establish a dialogue between the classical contractual
principle of pacta sunt servanda and social principles of the modern theory of contracts.
Aims to answer to how the contract can bind the parties and to what extent and scope it
can be understood as mandatory before a contract principles or social values such as
human dignity, the social function of the contract and good faith. As the search criteria,
it employed the jurisprudence of the Superior Tribunal de Justiça (STJ), including to
demonstrate how the Court responds to this dialogue and if one can extract a uniform
line of jurisprudence.
1 O presente trabalho foi pensado e desenhado para operadores do direito do common law, contando
com uma versão em inglês.
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Key-words: contract; contractual principles; pacta sunt servanda; social function of the
contract; human dignity; good faith; jurisprudence; Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Sumário: Introdução – 1. A força obrigatória dos contratos como princípio clássico e
estruturante do sistema contratual brasileiro – 2. Os princípios sociais da Constituição de
1988 – 3. O impacto do Código de Defesa do Consumidor e a lógica contratual do final
do séc. XX – 4. A força obrigatória e a sua relativização à luz do CC de 2002: ponto e
contraponto – 5. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a
obrigatoriedade dos contratos e os princípios sociais do Código Civil brasileiro – 6. Notas
conclusivas.
Introdução
O presente trabalho é destinado ao conhecimento essencial e
panorâmico do princípio da força obrigatória dos contratos, também conhecido como
princípio da intangibilidade dos contratos e no ambiente do civil law europeu
continental como pacta sunt servanda.
A análise será contextualizada no Brasil ao longo de aproximados 110
anos, entre o Século XX e início do corrente Século XXI. E apesar de o trabalho não ter
uma proposta histórica, utilizar-se-á uma cronologia identificada com quatro marcos
legislativos de substancial importância para a compreensão do versado princípio: o
Código Civil de 1916 (CC-16), a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CR), o Código de Defesa do Consumidor de 1990 (CDC) e o Código Civil de 2002 (CC-
02), em vigor.
A opção por relacionar o desenvolvimento do princípio em questão a
marcos legislativos contempla em si um paradoxo, qual seja, nenhum dos textos legais
mencionados, notadamente aqueles de natureza essencial privada (CC-16, CDC e CC-
02), estabilizou o princípio em suas bases estruturais, embora seja ele indispensável para
a operacionalização do direito contratual brasileiro. Em outros termos, o direito
infraconstitucional Brasileiro não regulamentou, na sua fonte positiva, o princípio da
força obrigatória dos contratos, sendo, portanto, princípio abstrato, embora isso não lhe
subtraia força ou minimize a sua eficácia nas relações contratuais.
De outro giro, o pacta sunt servanda é corolário lógico da autonomia
privada e da liberdade contratual, que também compõem a constelação principiológica
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 113
brasileira, sendo a autonomia privada assentada no próprio texto constitucional (arts. 170,
caput, CR2) e a liberdade contratual (na dição da lei seria “a liberdade de contratar”)
prevista pelo CC-02 (art. 421 CC-02). Também serão apresentadas algumas perspectivas
elementares sobre tais princípios, já que constituem premissas ideológicas e dogmáticas
sobre a obrigatoriedade dos contratos.
Após percorrer as sendas do Direito positivo e da doutrina brasileira
mais refinada, será analisada a recepção do princípio na sua forma contemporânea pelo
Superior Tribunal de Justiça, que por atribuição de competência constitucional oferece a
última palavra sobre o tema, quando posto a julgamento.
1. A força obrigatória dos contratos como princípio clássico e estruturante do
sistema contratual brasileiro
A força obrigatória dos contratos encontra nas premissas ideológicas da
Revolução Francesa a sua base dogmática, já que o Código Civil Francês de 1804 (Code)
incorporou liberdade, igualdade3 e solidariedade em sua estrutura. Por sua vez, servindo
o Code de grande referencial teórico para a Modernidade contratual4, não poderia ele
deixar de lançar luzes para todos os povos do cenário europeu-continental sob influência
politica, militar, econômica e cultural da França liberal.
Com efeito, o Brasil colonial recebeu as influências da onda liberal que
emanavam da metrópole portuguesa que, não obstante uma inegável aliança britânica,
especialmente ao longo do Sec. XIX, jamais se afastou das linhas jurídico-culturais
francesas. Tanto é assim que precedeu ao Código Civil de Seabra (1867) a ideia de ser
adotado, simplesmente, o próprio Code, em solo português5.
2 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
3 ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 32.
4 Entendo que a modernidade contractual iniciou com a Revolução Francesa, pois com ela consolida-
se a ruputura com o modelo contractual do medievo, a qual o iluminismo-racionalista tratou de modificar.
Sob o ponto de vista estrutural, o contrato é o mesmo desde o Code (acordo de vontades destinado a
produzir efeitos jurídicos). Com a pós-modernidade (que se inicial no espaço Europeu do entre Guerras) o
contrato passa a ser observado não só a partir da sua estrutura, mas também em vista da sua função (Vide,
sobre o tema, o nosso O conceito pós-moderno de contrato: em busca da sua formulação da perspectiva
civil-constitucional. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2006).
5 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil português. 3 ed. Coimbra: Almedina,
2005, t. 1, p. 123.
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Não obstante a originalidade dos códigos civis do séc. XIX, dentre os
quais o próprio Código Civil de Seabra e dentre todos, o mais notável, o Código Civil
alemão (BGB), nenhum deles teve a capacidade de romper com a ideologia liberal que
justificava a própria concepção de um modelo legal codificado, aos moldes do código
civil francês. Paradoxalmente, a ideologia que subjaz da concepção de código, único e
totalizante (uma síntese legal que se propõe a esgotar o fato social), é o reflexo do espírito
liberal que contemporaneamente não mais se apresenta nos Estados que adotaram e
segurem empregando o próprio modelo codificado, tal qual o Brasil.
Retomando a linha da formação do Direito Civil brasileiro, fruto de
amplos estudos, sucessivas comissões e codificadores do Séc. XIX, vem a tona o Código
Civil Brasileiro de 1916 (5/1/1916), por força do trabalho codificador de Clóvis
Beviláqua que em 1899 foi contrato pela jovem República Brasileira para codificar o
Direito Civil nacional.
Naturalmente, por se tratar de um Código Civil que encerrava o Séc.
XIX, antes de ser um trampolim para o Séc. XX, acabou por reproduzir toda a carga
ideológica liberal daquele século, nele se encontrando as premissas da igualdade e da
liberdade, tal qual no Code.
Na corriqueira esteira do envelhecimento de todos os códigos, observa-
se o fenômeno da descodificação e da recodificação do Direito Civil Brasileiro,
culminando tal processo no Projeto de Código Civil de 1975, o qual acabou por ser
promulgado em 10 de janeiro de 2002, com vacatio legis de doze meses. É nesse momento
que nos encontramos na base infraconstitucional e cujo texto legal será o objeto central
destas breves páginas.
Embora sejam legítimas e firmes as críticas que se levantaram contra a
recodificação do Direito Civil brasileiro, ao menos por meio de um modelo do tipo
francês, em verdade a orientação metodológica do CC-02 se baseia nas premissas da
socialidade e da concreção, abrindo campo para a atividade construtiva da
jurisprudência6, a justificar a metodologia aqui eleita.
6 Exposição de motivos do supervisor e da comissão revisora e elaboradora do código civil, p. 29-
30.
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Ademais, a proposta do codificador era a de substituir a concepção
individualista do sujeito de direito pelo conceito de pessoa humana, além de compreender
o CC-02 como lei básica, mas não global7 do Direito Privado brasileiro.
A rotação do atual CC-02 em favor da socialidade, da pessoa humana e
do reconhecimento da sua condição de “lei básica, mas não geral”, traz consequência
diretas para a reconstrução do princípio da liberdade contratual e da força obrigatória dos
contratos, pois a vontade negocial, antes dogmática e intangível mesmo ao juiz que se
submetia à vontade da partes, sede espaço à alteridade negocial e ao valor maior da pessoa
humana: mitiga-se o papel da vontade negocial para ganhar em dimensão o valor da
pessoa humana, na figura do contratante e dos seus interesses patrimonial e existencial.
A relação obrigacional, nesta toada, passa a ser uma situação jurídica complexa8
(patrimonial e existencial) fundada na cooperação entre contratantes. Essa é a mensagem
que nos é transmitida pela função social (art. 4219 CC-02) do contrato e pela boa-fé
objetiva (arts. 11310 e 42211 CC-02).
A questão central é saber em que medida o contrato ainda é obrigatório,
em vista da reconfiguração da liberdade contratual e do seu princípio consequente, a força
obrigatória do contrato, por conta desse novo modelo social do contrato brasileiro. E mais,
do ponto de vista metodológico, o CC-02 inovou ao incorporar o Direito de Empresas em
seu texto (arts. 966 a 1195) e por extensão os contrato então ditos comerciais
(empresariais) também foram inseridos no novo código. Consequentemente, uma
segunda provocação se apresenta: os contratos empresariais recebem do legislador
brasileiro a mesma valoração que os contratos civis, de modo a serem eles interpretados,
qualificados e integrados à luz de valores e princípios sociais, ou teriam eles uma lógica
própria?
7 Idem, p. 27.
8 NALIN, Paulo; XAVIER, Marilia Pedros; XAVIER, Luciana Pedroso. A obrigação como
processo: releitura essencial trinta anos após. Dialogos sobre o Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2008, v. 2, p. 299-322.
9 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
10 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da
sua celebração.
11 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé.
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Todavia, antes de se investigar tais questões, e uma vez rapidamente
percorrida a história da codificação civil brasileira, há de se concluir que a força
obrigatória dos contratos figura como um dos princípios clássicos do Direito Brasileiro,
ao lado do princípios do consensualismo e da relatividade dos efeitos do contrato, todas
figuras decorrentes da liberdade contratual e antes dela, numa escala hierarquizada e
abstrata de valores, da vontade dogmática e, por fim, da liberdade política enquanto
direito subjetivo constitucional ou fundamental (art. 5, caput, CR12).
Na fonte do CC-16 não se localizava um artigo expresso de lei a
consagrar a força obrigatória dos contratos, uma vez que a própria concepção de
obrigação contratual ou de contrato com efeitos intangíveis era uma das bases essenciais
daquele código. À luz das codificações civis do séc. XIX, dentre as quais a brasileira,
liberdade de contratar significava o exercício da autonomia da vontade contratual para
definir quando, como e com quem contratar e, por extensão, o direito de por fim ao
contrato, na hipótese de inadimplemento e da verificação do termo final do negócio. Por
consequência, exercitada livremente a vontade negocial, o contrato se tornava
obrigatório, intangível às partes que poderiam, no entanto, modificá-lo somente por meio
de um outro acordo, por meio de um renovado novo exercício de autonomia privada. O
contrato poderia ser distratado bilateralmente, portanto, mais uma vez, emergindo a sua
resolução da vontade contratual. Por consequência desse viés voluntarista, o juiz não
poderia interferir na vontade negocial e nos efeitos jurídicos extraídos do querer das
partes, a não ser se a vontade tivesse sido manifestada de modo viciado, sendo esta a
gênese da teoria dos vícios de consentimento (erro, dolo, coação).
Assim sendo, a intangibilidade contratual seguia uma linha dogmática
e absoluta, por força da qual nem as partes, unilateralmente, nem o Estado (na figura do
juiz), poderiam alterar os efeitos contratuais que vinham a constituir, modificar ou
extinguir situações jurídicas patrimoniais: pacta sunt servanda!
Similar metodologia legislativa foi empregada pelo CC-02. Com efeito,
atual Código Civil brasileiro não versa sobre a força obrigatória dos contratos de modo
expresso, porque se espera que o contrato cumpra o seu papel sócio-econômico de
circulação atributiva de riquezas em exercício de liberdade contratual. Portanto, o
contrato (rectius, seu efeito) continua sendo obrigatório no Brasil, a despeito dos novos
12
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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valores e princípios sociais que o submetem, com os quais se estabelece o diálogo entre
o velho e o novo direito contratual.
Tais princípios assim denominados de sociais têm em vista a
negociação pré-contratual, o fechamento do contrato e seu cumprimento de modo
equânime, sendo esta a grande diretiva que apresenta a boa-fé contratual (CC art. 422). O
contrato no Brasil deve ser um instrumento cooperativo e não de exploração e destruição
da outra parte, em vista do seu cumprimento a qualquer preço. A boa-fé atua
conjuntamente e não contrariamente ao cumprimento contratual, sendo esta uma
mensagem desenvolvida inclusive no sistema do common law, tal qual observa R.
SUMMERS: “[...] good faith (among other things) helps to particularise it meaning and
thus enforce what may be the unspecified ‘inner logic’ of the transaction or
arrangement.”13.
Brevemente, pode-se correlacionar a boa-fé brasileira com a teoria de
FARNSWORTH, uma vez que este autor teoriza o princípio como um “[...] standard
that has honesty and fairness at its core and that is impose on every party contract.”14
Ou seja, a boa-fé como um standard ético contratual que impõe deveres de cooperação é
a definição mais sintética possível para o princípio em tratamento, perspectiva esta
compartilhada entre os sistemas jurídicos do civil law e do common law.
A modificação apresentada pelo CC-02 em face do CC-16 está no
reconhecimento de que o contrato poderá ter seus efeitos econômicos mitigados pelo juiz,
perdendo a liberdade contratual o seu caráter dogmático e absoluto. Tal modificação
operacionalizada pelo juiz ocorrerá por meio da revisão do preço ou por meio da
resolução do contrato, por causa da excessiva onerosidade que atinge a prestação ou a
base contratual. Retomando o quadro da boa-fé, ela também serve de fundamento para
tais modificações da base econômica do contrato, pois somente será justo o contrato
equânime.
Estruturalmente posto, o CC-02 trabalha somente com as exceções à
força obrigatória dos contratos o que em si é um reconhecimento do princípio enquanto
regra. É um princípio abstrato de caráter deontológico, portanto. Evidentemente que o
13
SUMMERS, Robert S. The conceptualisation of good faith in American contract law: a general
account. In: ZIMMERMANN, Reinhard e WHITTAKER, Simon. Good faith in european contract law.
Cambridge: Cambridge, 2000, p. 136.
14 FARNSWORTH, E. Allan. Farnsworth on contracts. Boston: Little, Brown and Company, 1990,
v 2, p. 335.
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juiz também poderá extinguir o contrato quando constatada a invalidade do negócio como
um todo e não puder ser ele parcialmente preservado, mas tal aspecto foge da presente
abordagem.
De modo transverso, e sempre em vista da atribuição do juiz, o contrato
poderá ter seus efeitos modificados, quando nulo for o arranjo negocial e puder o juiz da
causa modificar a sua natureza, no sentido de preservá-lo (art. 170 CC-0215), o que
também vem a ser uma consequência da mitigação do princípio em análise, pois as partes
obterão efeito diverso do pretendido, de certa forma compreendido como um ato de
autonomia privada, contudo, do juiz. Trata-se, neste artigo de lei, da incorporação do
princípio da conversão essencial do negócio jurídico ou do princípio da conservação dos
negócios jurídicos, por força do qual será a discricionariedade do juiz que ditará os efeitos
do contrato, que serão necessariamente diversos do contrato que se evitou invalidar.
Observe-se, entretanto, que se um lado o juiz brasileiro pode alterar os
efeitos do contrato, com base em ruptura da sua base econômica e numa tentativa de
preservar o contrato, mesmo que posto em outra roupagem negocial, sob outro viés a
força obrigatória se mantém tal qual na sua remota origem clássica, ou seja, em relação
aos contratantes, os quais não podem alterar o negócios contratual por vontade unilateral.
2. Os princípios sociais da Constituição Brasileira de 1988
Pouco sentido faria passar os olhos no CC-02 sem compreender a lógica
da nova contratualística brasileira, fundada em valores sociais que dialogam com
princípios da ordem econômica. A dinâmica que se apresenta ao debate tem como
fundamento a Constituição da República de 198816, a qual serve de fonte normativa ao
Direito Privado nacional. Diversamente de outros modelos constitucionais que se
destinam à regulação das políticas e das práticas do Estado, a Constituição brasileira
também regula uma extensão fatia do Direito Privado brasileiro, dentre eles o direito
proprietário, sucessório e contratual, embora o faça de modo princípiologico. Por
15
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando
o fim a que visavam as parter permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
16 Sobre o tema o nosso Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na
perspectiva civil-constitucional). 2 ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 213-240.
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consequência, percorrer o diálogo normativo brasileiro civil-consititucional é um
pressuposto para se entender a sistemática contratual brasileira.
Os movimentos econômicos, sociais e políticos que marcaram o Séc.
XX17, sobretudo no cenário europeu, produziram forte impacto no Brasil, repercutindo
no sistema legal interno.
Se fosse possível localizar em um ou dois eventos de complexas
naturezas as mutações que provocaram a descodificação e a recodificação civil brasileira,
arriscar-se-ia afirmar que a discreta mas sempre crescente presença da mão invisível do
mercado e os extremos dos regimes de esquerda e direita produziram uma síntese social-
política-econômica brasileira que festeja a superação do racionalismo absoluto18,
compreendendo um homem relativo ao seu tempo e espaço, inserido em um contexto
meta-individual, sem contudo desconsiderar a sua personalidade.
Talvez esse pequeno recorte opinativo traduza o sentido e o alcance que
a vigente Constituição brasileira pretende com os arts. 1, III e IV, e 3, I e III, na sua base
republicada:
I – Dos Princípios Fundamentais
Art. 1º. A Replica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e dos Distrito Federal, constitui-se em Estado
democrático de direito e tem coo fundamentos:
III- a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
17
ITURRASPE, Jorge Mosset. Interpretation economica de los contratos. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, [sd], p 13-30.
18 A vontade dogmática é o símbolo acabado do racionalismo: a vontade determinante da vida do
homem permite-lhe correr os próprios riscos.
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III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais.
Uma vez adotada a concepção de sistema jurídico e absolutamente
superado qualquer espirito dicotômico entre o Direito Público e o Direito Privado, por
força do qual a Constituição encontra papel central e unificador no diálogo das fontes
jurídicas, compreende-se que o valor da sociabilidade constitucional implica a função
social do contrato e o princípio da dignidade da pessoa humana e, dentre outras
consequência, a boa-fé contratual, na sua vertente objetiva, a qual impõe condutas
contatuais conforme a boa-fé e de modo probo19.
A contratualidade privada passa a ter uma perspectiva que compartilha
o sistema de livre iniciativa com valores sociais da justiça social e do pleno emprego,
além do respeito à função social da propriedade (art. 170 CR). No campo dos contratos,
o mesmo artigo constitucional enaltece que a ordem econômica está fundada na defesa
do consumidor e na redução das desigualdades regionais e sociais.
Em síntese, encontra-se no Brasil um necessário diálogo entre a livre
iniciativa de mercado e os valores sociais. Por consequência, sustentar posições radicais
e extremas, seja em favor dos interesses do mercado, seja em favor dos anseios sociais, é
iniciativa fadada ao fracasso, já que assim procedendo o intérprete terá uma visão parcial
do complexo sistema jurídico nacional.
Para o presente trabalho importa destacar o grande esforço que o
constituinte de 1998 teve em alinhar as forças sociais e de mercado, mesmo que o texto
final da Constituição possa ser tecnicamente criticado pela sua assimetria legislativa e
extensão exagerada. E apesar de um pleno equilíbrio entre os operadores de mercado ser
um projeto ideológico do passado, soterrado desde a queda do Muro de Berlim, não
escapa a um Estado Brasileiro que se autoproclama Social de Direito obrar no sentido de
repersonalizar o Direito Privado e isto se faz através da mutação da função do contrato.
Assim sendo, não surpreende que o a Constituição de 1988 lance as
bases para a proteção do consumidor, já que até 1988 não havia no Brasil qualquer tutela
para o operador vulnerável do mercado. Até a edição do CDC, todos os contratos era
interpretados à luz do CC-16, o que importava em julgamentos contaminados pelo
princípio da igualdade formal dos contratantes e no exercício livre da vontade. E assim
19
NALIN, Paulo. Princípios do direito contractual: função social, boa-fé objetiva, equilíbrio, justice
contratual, igualdade. In LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore [coord.]. Teoria geral dos contratos.
São Paulo: Atlas, 2011, p. 97-144.
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se operando o Direito, a lei socorria invariavelmente ao predisponente das cláusulas
contratuais, livre que se encontrava para fixar os mais abusivos conteúdos negociais.
Por isso, deu-se grande passo na busca por um novo paradigma
contratual quando a Constituição de 1988 determinou que em cento e vinte dias da sua
promulgação seria elaborado o Código de Defesa do Consumidor, cuja importância
operacional do mercado será adiante abordada.
3. O impacto do Código de Defesa do Consumidor e a lógica contratual do final do
séc. XX
Quid dit contractuel dit just! Exaltavam os tratadistas franceses desde
o Código Napoleônico, já que somente o homem livre (o cidadão nascido da Revolução)
pode contratar: livre para concretizar a circulação atributiva proprietária e constituir em
favor do burguês emergente um direito proprietário que antes da Revolução era privilégio
da aristocracia e das concessões da Monarquia.
Uma vez livre e igual o homem (que passou a ser cidadão) realizava o
exercício contratual que superava os próprios efeitos do negócio, que seria a constituição
de uma nova situação jurídica em sua esfera individual; ia além pois contratar tinha os
ares do poder político consagrador dos princípios revolucionários.
Toda essa lógica, ao mesmo tempo privada e política, encontrava um
espaço (Europa Liberal) e um tempo (Séc. XIX) adequados aos seus propósitos e ao
desenho de uma economia agropastorial, um momento no qual as relações contratuais
eram de fato e de direito interprivadas (vis a vis), anterior à lógica massificada de
mercado. É claro que todo esse quadro cedeu com a Revolução Industrial, embora o
modelo liberal de contrato tenha servido à la carte aos novos detentores do poder
econômico (os burgueses do fin de siecle XIX), que usavam o mesmo instrumento que os
alçou à condição de detentores do mercado para dar vazão aos produtos industrializados
em grande escala. O contrato liberal, que passou a ser revestido da forma de adesão, se
utilizava da premissa, agora superada, da igualdade formal entre contratantes, para
consagrar a liberdade de contratar e proclamar: só contrata porque quer; por querer
livremente, o contrato e obrigatório ... pacta sunt servanda.
No Brasil, tal fenômeno somente foi percebido após a Década de 30
(Séc. XX) e a tentativa governamental de equalização das relações de trabalho. Para
atingir tal fim, e sem poder modificar o CC-16 em sua estrutura, sob pena de torná-lo uma
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consolidação, produziu-se a primeira grande fratura do CC-16, dele se retirando uma parte
contratual especial, destinada à locação de mão obra, para se erigir a Consolidação das
Lei do Trabalho, a regulamentar o contrato de trabalho e com ela uma jurisdição especial
do trabalho. Em que pese o tema das relações laborais não ser aplicável ao presente
estudo, deseja-se com ele marcar o tempo em que já se fazia necessária a revisão dos
pilares da igualdade formal e da liberdade plena encampados pelo Código de Civil de
1916, razão do início mais evidente da descodificação do CC-16.
O segundo marco legislativo que feriu de morte a lógica contratual
liberal, a qual era muito bem representada pelo CC-16, veio com o CDC, em 1990.
Além de o CDC reconhecer uma nova categoria contratual (o contrato
de consumo), seja para produtos, seja para serviços; além de o novo código consumerista
ter adotado uma metodologia sincrética de regras materiais e processuais, arranjadas em
técnica de cláusulas gerais; e, por último, ter incorporado princípios regentes da nova
contratualista brasileira (transparência, confiança, equidade), nucleados na boa-fé
objetiva, o que mais impressiona no CDC é o reconhecimento legal da vulnerabilidade
de uma das partes do contrato e a adoção de instrumentos materiais e processuais para a
equalização da relação jurídica contratual concretamente analisada.
Com efeito, ideologicamente, rompeu-se com a premissa da igualdade
formal das partes, implementando o CDC um sistema de igualdade material. E do ponto
de vista da teoria contratual, o novo código do consumidor lançou as bases para um novo
conceito de justiça contratual, baseado na equidade negocial.
Nesse ponto, destaca-se a mutação do conceito de justiça contratual, o
qual, à luz do então ainda vigente CC-16 era o pacta sunt servanda (contrato justo, é
contrato cumprido), para a justiça fundada na equidade, ou seja no equilíbrio das parcelas
e obrigações do contrato, pois só o contrato equilibrado é justo. De outro vértice, em
nenhum momento o CDC afasta do cenário principiológico Brasileiro o pacta sunt
servanda, mas estabelece que obrigatório será o contrato equilibrado, sob pena de revisão
dos seus termos, ex vi do art. 6º, V:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que
as tornem excessivamente onerosas.
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Inaugurava-se na fonte legislativa nacional um novo capítulo da
contratualística privada, tanto que logo após a vigência do CDC20 observou-se uma ampla
tentativa de migração dos sujeitos de direito não alcançados pela nova lei, conquanto
partes em relações contratuais civis e comerciais21, para o seio do CDC. Em termos mais
singelos, os sujeitos não consumidores (s.s.) e por consequência excluídos do alcance do
CDC buscaram ser judicialmente por ele tutelados, pois a justiça contratual proposta pelo
novo código era muitos mais moderada e adequada ao final do Séc. XX do que aquela do
CC-16, similar a do Código Comercial brasileiro (1850).
4. A força obrigatória e a sua relativização à luz do CC de 2002: ponto e contraponto
Desde 1975 agitava-se a civilistiva nacional em torno de um novo
Código Civil, sendo o Projeto de Código Civil uma peça jurídica fruto do acúmulo do
saber jurídicos civil-comercial-filosófico até os anos 60, do Séc. XX. Retomado o Projeto,
e sob a batuta do Supervisor da Comissão de Codificação, o jus-filosofo Miguel Reale,
passou ele por intensos debates e modificações no Senado e na Câmara dos Deputados,
sob a coordenação do Senador Josafá Marinho e do Deputado Ricardo Fiuza,
respectivamente, culminando com o vigente texto, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
No que concerne ao Livro dos Direito das Obrigações (art. 233 usque
1.195), estruturalmente ele é o maior dentre os demais Livros do Código Civil, até mesmo
porque incorporou praticamente todo o Direito de Empresas e todos os contratos típicos
comerciais (agora empresariais) na sua fonte positiva. Em grande linhas, o Direito Privada
Brasileiro hoje se encontra unificado. Ainda no contexto da sua estrutura, o CC não se
distanciou substancialmente do CC-16, em que pese a introdução pontual de alguns
temas, tal qual a assunção de dívida, cujo instituto, entretanto, já era conhecido e estudado
por meio da cessão de crédito.
Mas, então, o que se apresenta de novo no atual Código Civil Brasileiro,
em particular no Livro das Obrigações? Três pontos merecem destaque: (i) o emprego de
cláusulas gerais em campos nevrálgicos da codificação, enquanto nova técnica
legislativa; (ii) a funcionalização social da propriedade e do contrato; (iii) a consagração
20
Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, com vacatio legis de 180 dias.
21 O Código Comercial Brasileiro ainda estava em vigor na sua parte contratual em 1990.
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do princípio da boa-fé como princípio concreto e geral dos negócios jurídicos e, logo, dos
contratos.
O emprego das cláusulas gerais é crucial para compreender o novo
Direito Civil nacional, pois a técnica pressupõe uma redação de artigo de lei dotada de
um ou mais conceitos indeterminados e a ausência de sugestão sancionatória. Compete
ao juiz, diante do caso concreto, preencher tal moldura, conceituando o instituto jurídico
e definindo a sanção à hipótese, que será negativa ou positiva (premial, segundo N.
Bobbio). Afasta-se da técnica da casuística do dado A, deve ser B, cuja descrição da
hipótese e da sanção (sempre negativa ou de censura) era obra do legislador. Exemplifica-
se com um dos artigos mais emblemáticos do CC-02:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites
da função social do contrato. (grifei)
Rapidamente esmiuçando o artigo em comento, surgem as seguintes
indagações:
i. Qual é o atual conceito de liberdade contratual, uma
vez que historicamente este princípio implicava a escolha, livre e igual,
do objeto do contrato, do parceiro contratual e do próprio interesse em
celebrar o contrato?
ii. Qual é a racionalidade que se obtém da
função social do contrato, já que o legislador do CC-02 em nenhum
momento alude à razão (função) econômica do contrato, ao regular a
sua função social?
iii. Quais seriam os limites impostos pela
função social do contrato à liberdade contratual?
iv. Qual é o sentido e o alcance de tal
funcionalização social diante de contratos com funções econômicas
distintas, como os de consumo, civis e empresariais?
v. Por fim, mas não menos relevante, qual é a
sanção ao operador do contrato que desafia a função social do contrato?
A tentativa de se responder a essas indagações pressupõe uma escolha
metodológica que neste trabalho se pautará pelas decisões do Superior Tribunal de
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Justiça, mais adiante investigadas, e que laboram com a função social do contrato em
cotejo com a obrigatoriedade contratual.
Um necessário alerta, contudo, se mostra necessário ao leitor, relativo
ao papel desenvolvido pela jurisprudência no Brasil. Sabe-se que o Brasil é um pais do
sistema civil law, cujo ápice da pirâmide normativa é, desde 1988, ocupado pela
Constituição da Republica Federativa do Brasil e, hierarquicamente posto, em nível
inferior ou infraconstitucional, o Código Civil de 2002.
Assim, é necessário entender que a jurisprudência no Brasil, e que
explica as categorias jurídicas versadas neste texto, não tem força obrigatória perante as
partes de um contrato e sequer perante juízes de primeiro grau de jurisdição, muito
embora sejam acórdãos extraídos do acervo jurisprudencial do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), o qual constitucionalmente detém a última palavra sobre o Direito Civil.
Portanto, o papel exercido pela jurisprudência brasileira é de unificação do entendimento
interpretativo da lei, mesmo que dela não se obtenha uma força imperativa, tal qual a lei.
Por outro lado, a jurisprudência brasileira do STJ vem ganhando cada vez mais espaço e
força como instrumento de decisão em cortes inferiores, sendo, de fato, indispensável a
sua análise.
Retomando as questões supra, arrisca-se alguma explicação.
Inicialmente, o juiz, ao se deparar com um conceito indeterminado
procurará esclarecimento e preenchimento da moldura legal de formar interna ao próprio
CC-02 ou fora dele, observando-se nesta metodologia a razão de ser da ideia de sistema
jurídico. O caminho recomendado ao magistrado é que na sua pesquisa observe os valores
e princípios constitucionais, já que a funcionalização social de institutos privado não é
matéria a ser resolvida somente à luz da estrutura do código. Além do mais, em se tratando
de cláusulas gerais, não existem soluções prontas, sendo necessário lançar um olhar muito
particular para cada caso concreto.
Outro aspecto, a função social do contrato não desqualifica a função
econômica do contrato, em que pese exigir das partes um respeito a efeitos jurídicos do
contrato que serão internos à própria relação jurídica negocial (o respeito ao outro
contratante, em seus planos material e existencial, por força da boa-fé e de seus sub-
princípios) e externos à relação, pois, via de regra, poder-se-á observar terceiros atingidos
pelos efeitos do contrato, sobretudo em contratos corporativos, empresariais ou que
atinjam o mercado relevante.
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Em terceiro plano, qual é sanção prevista pelo CC-02 na hipótese de
violação da função social do contrato? A resposta mais adequada, ainda que sujeita a
reparos, uma vez abstrata, extrai-se do sistema sancionatório do Código Civil, que se
pauta pelas regras de invalidade (nulidade, anulabilidade, ineficácia), embora no caso ela
seja de nulidade virtual, pela redução do negócio jurídico (preserva-se uma parte dele, ao
se invalidar outra ilegal – art. 184 CC) e através das perdas e danos. Abstratamente, não
se tem como apontar a melhor solução decisória, já que se está diante de uma cláusula
geral dirigida ao juiz e ao caso concreto. Caberá a parte atingida e ao seu advogado
endereçar ao juiz o pedido (remedy) mais adequado à patologia do contrato.
Evidentemente que qualquer dessas consequências poderá aniquilar ou
mitigar a força obrigatória do contrato, devendo estar muito atento o operador jurídico
para os efeitos sociais do contrato, no Brasil. Isso porque, não seria equivocado impor,
como condição da eficácia patrimonial pretendida pelos contratantes, a observância a
interesses sociais das próprias partes e de terceiros e tal perspectiva é absolutamente
pitoresca do Direito brasileiro.
O princípio da boa-fé também merece um recorte a parte no novo
Código Civil brasileiro, pois ela estabeleceu uma nova lógica operacional às relações
obrigacionais, fundada na cooperação. O CC-02, diversamente do CC-16, positivou o
princípio da boa-fé em seu texto, como regra geral das relações contratuais, nos termos
do art. 422:
Art. 422. Os contratantes obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.
Com a brevidade que este texto permite, cumpre destacar as funções22
da boa-fé em linha de reequilíbrio entre as partes, o que impõe limites à livre iniciativa e
a adequação das bases econômicas do contrato em circunstâncias imprevisíveis e de
excepcional onerosidade23. A função em comento se apresenta retratada pelo no CC-02
em dois artigos:
22
Dentre as possíveis funções da boa-fé destacam-se: a função interpretativa dos negócios jurídicos
(contratos, inclusive); a função de criação de deveres jurídicos anexos, laterais ou correlatos; a função
corretiva da base econômica do contrato; a função revisional ou extintivas de cláusulas consideradas
iniquas.
23 Comparativamente, a leitura do art. 437º do Código Civil português23 não deixa dúvida de que a
pretensão revisional encontra a sua base no princípio da boa-fé, muito embora no Direito Brasileiro tal
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Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção
manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua
execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que
assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução ou diferida, se a prestação de uma
das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem
para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os
efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Da leitura comprada dos dois artigos de lei, algumas conclusão
simétricas e outra assimétricas são observadas:
i. Os artigos em comento têm finalidades distintas,
quais sejam, o art. 317 de destina somente à revisão do preço, para a
manutenção do contrato de longa duração; de outro lado, o art. 478 se
destina à resolução do contrato.
ii. A imprevisibilidade é um componente comum em
ambos os artigos, mas não se pode deixar enganar que o sistema
obrigacional brasileiro estaria apoiado numa visão subjetivista do
contrato, até mesmo porque o art. 422 CC-02 impõem dos contratantes
condutas probas, o que em ultima ratio significa posturas prudentes e
ajuizadas. A imprevisibilidade é um requisito revisional ou resolutório
sem real prestígio na atual lógica do sistema, refletindo uma cultura
francesa subjetiva do contrato que nem mesmo em França é mais
empregada.
iii. O art. 478 CC-02 deveria ser a regra jurídica nuclear
do equilíbrio contratual. Inclusive ele é dotado de um integral Seção
(Seção IV), do Capítulo II, da Extinção do Contrato. Por sua vez, o art.
317 CC-02 foi projetado para ter menor alcance, uma vez inserido nas
regras de pagamento, somente. Contudo, até mesmo por força da larga
experiência do CDC, que antecede o vigente Código Civil em mais de
princípio não esteja expressamente associado. Vejamos: “1. Se as circunstâncias em que as partes
fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à
resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das
obrigações por ela assumidas afecte gravemente ou princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos
próprios do contrato.”
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uma década, a revisão contratual passou a ser mais bem aceita pela
jurisprudência nacional, sendo excepcionalíssima a resolução do
contrato, por ônus excessivo. Com efeito, o art. 317 CC-02 passou a
ocupar o papel projetado para o art. 478 CC-02, preferindo-se a revisão
à resolução do contrato.
iv. Os requisitos do art. 478 CC-02, que são
absolutamente simulares ao art. 1.467 do Código Civil Italiano24, se
mostram quase intransponíveis de serem demonstrados em juízo,
sobretudo porque impõe ao demandante a investigação e a prova de
elementos subjetivos, a prova de fatos extraordinário e imprevisíveis
(para ambos os contratantes) e, por fim, demonstrar a vantagem
econômica do credor em desfavor do devedor.
v. O art. 317 CC-02 passou a ser a chave da revisão
obrigacional brasileira, embora a proposta do legislador tenha sido de
menor alcance, também em homenagem ao princípio da conservação
do contratos e, por consequência, da sua função social.
vi. De qualquer sorte, a revisão ou a resolução do
contrato têm como filtro a jurisprudência brasileira, a qual impõe maior
rigor de aplicação nas relações empresariais e, por consequência, maior
eficácia à autonomia privada dos contratantes.
Observa-se, sob outro giro, que o Código Civil não adotou
expressamente a possibilidade de a boa-fé determinar e conduzir a revisão contratual
como um todo (não só de cláusulas econômicas, por exemplo) e, tampouco, permite que
o juiz invalidade cláusulas contratuais iniquas, a não ser que ela estipule a renúncia
24 Art. 1.467. Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la
prestazione di una delle parti divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti
straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione pu domandare la risoluzione del contratto,
con gli effetti stabiliti dall’Articolo 1458 (att. 168).
La risoluzione non pu essere domandata se la sopravvenuta onerosit rientra nell’alea normale del
contratto.
La parte contro la quale domandata la risoluzione pu evitarla offrendo di modificare equamente le
condizioni del contratto (962, 1623, 1664, 1923).
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 129
antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do contrato25. Portanto,
nas relações formadas por contratos de adesão, nulas serão as cláusulas contrária à causa
do contrato26.
Entretanto, tais efeitos podem ser extraídos do citado art. 422 do CC-
02, por meio de decisão judicial, a qual, ao invalidar uma cláusula de conteúdo
econômico, por exemplo, que estabeleça um índice de correção monetária reputado ilegal
pelos tribunais brasileiros27, acaba esta mesma decisão por eleger um outro índice ou
critério de atualização monetária. Assim, observa-se uma revisão contratual indireta,
posto que o legislador nacional não previu tal hipótese de modo expresso no CC-02.
Em contraponto, é relevante salientar que o Código Civil segue sendo
a lei dos contratantes com equivalência de poder de barganha, tanto que é regra geral em
face de leis especiais, como o CDC que pressupõem a desigualdade entre os contratantes.
Assim sendo, o CC-02 mantém em sua base ideológica a igualdade formal entre partes,
embora relativizada pelos demais princípios que o ilustram, como a boa-fé.
5. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a obrigatoriedade
dos contratos e os princípios sociais do Código Civil brasileiro
Tendo em vista os fins a que se destina este breve trabalho, o qual
objetiva realizar um sobrevoo pelo direito contratual privado brasileiro, especialmente
traçando um paralelo entre princípios sociais da contratualista nacional face ao princípio
da obrigatoriedade dos contratos, optou-se pela análise jurisprudencial do Superior
Tribunal de Justiça como critério de legitimação deste “novo direito contratual”.
Outra metodologia de aferição deste novo sistema contratual Brasileiro
poderia ter sido empregada, como a evolução positiva do Direito Privado, desde a
Constituição de 1988 ou a comparação doutrinária nacional sobre a função social do
contrato, numa linha temporal. Porém, o olhar jurisprudencial sobre o tema parece
25
Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do
aderente a direito resultante da natureza do negócio.
26 A título de exemplo, a súmula 61 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): O seguro de vida cobre
o suicídio não premeditado.
27 STJ Súmula nº 176 (23/10/1996 - DJ 06.11.1996): É nula a cláusula contratual que sujeita o
devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID-CETIP.
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despertar maior curiosidade a projetar alguma segurança ao operador do mercado a partir
da previsibilidade das decisões, embora o Brasil não se vincule ao sistema jurídico da
stare decisis.
Naturalmente não se pretende esgotar toda a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça na presente análise, mas sim apesentar uma amostragem das 3ª, 4ª e
1ª Turmas do STJ, que vem a ser o tribunal superior competente para julgar o tema sob
enfoque.
Para tanto, elegeram-se cinco acórdãos, num recorte temporal de 2007
até 2012, visando, como isto, cobrir a linha de pensamento jurisprudencial do STJ sobre
a obrigatoriedade contratual em paralelo com os princípios sociais apresentados pelo
Código Civil e também pela Constituição da República.
A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel
primário e natural, que é o econômico. Ao assegurar a venda de sua
colheita futura, é de se esperar que o produtor inclua nos seus cálculos
todos os custos em que poderá incorrer, tanto os decorrentes dos
próprios termos do contrato, como aqueles derivados das condições da
lavoura. (REsp. 783404-GO – Min. Nancy Andrighi – 3 Turma -
28/06/07)
Salvo melhor análise, este foi o primeiro acórdão do STJ que apreciou
a material da revisão contratual e da onerosidade excessiva em vista do princípio da
função social do contrato.
No presente caso, discutiu-se a pretensão revisional do preço de venda
do soja em negócio aleatório, formalizado por meio de compra e venda futura (art. 459
do CC-02). O vendedor pretendia a elevação do preço pago no passado, pois quando da
entrega presente do soja, o mercado se lhe mostrava mais favorável.
O STJ negou a pretensão revisional, em síntese, sob o argumento da
previsibilidade do preço futuro do soja. Além disso, externou posicionamento no sentido
de que a função primária do contrato seria a econômica e não a social, mormente em se
tratando de relação jurídica empresarial.
O exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário,
para que ele construa soluções justas, rente à realidade da vida,
prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis,
harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a
aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento
jurídico, como a autonomia da vontade.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 131
Não se deve admitir que a função social do contrato, princípio aberto
que é, seja utilizada como pretexto para manter duas sociedades
empresárias ligadas por vínculo contratual durante um longo e
indefinido período. Na hipótese vertente a medida liminar foi deferida
aos 18.08.2003, e, por isto, há mais de 5 anos as partes estão obrigadas
a estarem contratadas. (Resp. 972.436-BA – Min. Nancy Andrighi – 3
Turma - 17/03/09)
No presente caso, sustentou-se que a resilição de um contrato de longa
duração, sem justa causa, mas por força da verificação do termo final do contrato,
confrontaria com a função social do contrato e o princípio da conservação do negócio.
O STJ julgou a validade e a eficácia do exercício potestativo
resolutório, embora imotivado, confirmando com isso a liberdade de contratar, cujo
princípio também proporciona ao contratante o exercício do direito à ruptura da avença,
verificado o inadimplemento (lato sensu) ou a verificação do termo final. Com efeito, o
argumento da função social do contrato não impede a ruptura contratual, enaltecendo-se,
assim, a liberdade de contratar em linha negativa (o direito de não contratar ou não se
manter na posição de contratante).
VII. Concreção do princípio da autonomia privada no plano do Direito
Empresarial, com maior força do que em outros setores do Direito
Privado, em face da necessidade de prevalência dos princípios da livre
iniciativa, da livre concorrência e da função social da empresa.
VIII. Reconhecimento da contrariedade aos princípios da
obrigatoriedade do contrato (art. 1056 do CC/16) e da relatividade dos
efeitos dos pactos, especialmente relevantes no plano do Direito
Empresarial, com a determinação de que o cálculo dos prêmios
considere a realidade existente na data em que deveriam ser pagos.
(REsp1158815-RJ – Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO – 3
Turma - 07/02/12)
Trata-se de debate sobre o valor do prêmio em contrato de seguro
coletivo.
Entendeu o STJ que nos contrato empresarias há de prevalecer os
princípios clássicos da contratualidade, sem embargo dos valores sociais do contrato, pois
a autonomia privada sobrepõe-se, na seara do Direito Privado empresarial, aos princípios
sociais.
2. A cláusula contratual que estipula o pagamento de multa caso o
contratante empregue um dos ex-funcionários ou representantes da
contratada durante a vigência do acordo ou após decorridos 120 (cento
e vinte) dias de sua extinção, não implica em violação ao princípio da
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 132
função social do contrato, pois não estabelece desequilíbrio social e,
tampouco, impede o acesso dos indivíduos a ele vinculados, seja
diretamente, seja indiretamente, ao trabalho ou ao desenvolvimento
pessoal. (REsp. 1.127.247-DF – Min. Felipe Salomão – 4 Turma -
04/03/10).
No corrente acórdão verifica-se uma mudança de entendimento do STJ,
pois, pela primeira vez, o Tribunal estabeleceu uma preocupação social a um contrato de
natureza entre empresários. Observe-se que os efeitos do contrato sob análise tocavam a
terceiros trabalhadores, os quais se encontravam impedidos de serem contratados, pelo
prazo de cento e vinte dias, por conta de cláusula contratual, sob pena de multa imposta
ao empregador.
A cláusula da multa foi julgada válida, já que os trabalhadores (terceiros
à relação contratual) não estavam impedidos de trabalhar, embora o contratante se
submetesse à multa, na hipótese de violação.
É um acórdão de transição ideológica e de compreensão de que o
contrato pode, não raramente, atingir terceiros em seus interesses patrimonial e
existencial, já que o direito ao trabalho é reputado um direito constitucional (subjetivo)
ou fundamental.
Vale dar destaque as normas insertas nos arts. 421 e 422 do CC, as quais
tratam, respectivamente, da função social do contrato e da boa-fé
objetiva. A função social apresenta-se hodiernamente como um dos
pilares da teoria contratual. É um princípio determinante e fundamental
que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art. 1 da CF),
deve determinar a ordem econômica e jurídica, permitindo uma visão
mais humanista dos contratos que deixou de ser apenas um meio para
obtenção de lucro.” (AgRg no REsp 1272995/RS - AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - 2011/0197420-7 – Min.
NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO – 1 Turma - 07/02/2012)
O acórdão sob análise se encontra ideologicamente e funcionalmente
no outro extremo daquele inicialmente analisado, já que impõe à instituição financiador
da educação a redução de multa (cláusula penal moratória) pelo atraso no pagamento do
financiamento, ao argumento de que a multa de 10% seria incompatível com a finalidade
social do contrato de ensino.
Observe-se, contudo, que o contrato julgado se estabelece entre
fornecedor de crédito e estudante, não sendo, por consequência, um contrato
interempresarial. O contrato em comento não é reputado de consumo, segundo
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entendimento consolidado da 1A. Turma do STJ, aplicando-se, porém, os princípios da
dignidade da pessoa humana (CR) e a função social do contrato (CC-02).
Ainda nesse quadrante, oportuno destacar que o tema foi posto em
julgamento de modo excepcional pela 1ª Turma do STJ, uma vez que a sua competência
de julgamento é a do Direito Público, embora a dignidade da pessoa humana e a função
social do contrato sejam matérias de ordem pública, conforme as fontes constitucional
(art. 1O, inc. III28) e civil (art. 2.035, parágrafo único29) Brasileiras.
6. Notas conclusivas
Ante o exposto ao longo do texto, algumas conclusões se apresentam
necessárias.
Inicialmente, mostra-se inegável o giro legal dos princípios contratuais
privados nacionais, sob influência inicial da Constituição da República de 1988, passando
pelo Código de Defesa do Consumidor e por fim pelo novo Código Civil Brasileiro.
Pode-se afirmar, em grandes linhas, que o direito contratual Brasileiro
se apresenta mais social com o atual Código Civil (2002) do que na vigência do Código
Civil de 1916, importando esta rotação em favor do viés social do contrato em
consequências hermenêuticas, estruturais e funcionais sem precedentes no Direito
Privado.
Especialmente no que toca ao princípio da força obrigatória dos
contratos, este sofreu notável mitigação, deixando de ostentar no Brasil a natureza
dogmática e liberal, histórica e ideológica que originariamente o caracterizou, além de
agir em coordenação com demais princípios clássicos e contemporâneos, como a boa-fé
objetiva e a função social do contrato.
28 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
29 Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em
vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos,
produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista
pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais
como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
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Em verdade, a mitigação do princípio da força obrigatória não é uma
novidade, nem mesmo para os operadores do Direito Empresarial, afetos que estão a
institutos de revisão negocial como a cláusula hardship. Ou seja, a mitigação Brasileira
da força obrigatória dos contratos não coloca o país numa condição, por assim dizer,
exótica, no cenário dos contratos internacionais e nacionais, em que pese a originalidade
da função social do contrato.
De qualquer modo, o que se revela, a partir do entendimento
jurisprudencial construído pelo Superior Tribunal de Justiça ao longo de mais de dez anos
de codificação civil é a inexistência de uniformidade entre as 1A., 3A. e 4A. Turmas,
embora se possa perceber uma linha de pensamentos mais favorável à liberdade de
contratar e por consequência da obrigatoriedade contratual na 3A. Turma em comparação
às demais.
Seguindo na análise dos julgados do STJ, percebe-se a grande
importância que o Tribunal emprega à condição econômica do contratante (empresário,
“civil” ou consumidor), traçando uma linha divisórias entre contratos empresariais ou de
lucro e contratos existenciais, de modo a calibrar os novos valores sociais do contrato em
vista da vulnerabilidade maior ou menor dos contratantes.
A partir dessa sub-classificação contratual (contratos empresariais ou
existenciais), o STJ julga com ênfase aos princípios da autonomia privada, se
empresariais, ou com maior observância aos princípios sociais se o contrato é daqueles
existências (civil e de consumo). O CC-02 não apresenta essa sub-classificação
contratual, sendo ela uma construção doutrinária brasileira que objetiva adaptar a lei ao
fenômeno contratual, que se mostra cada vez mais multifacetado.
A plasticidade do conceito de contrato possivelmente impedirá que o
STJ defina, com precisão e uniformidade, o papel e o alcance da força obrigatória dos
contratos vista à luz de princípios sociais. Sob outro viés, afigura cada vez mais definida
a posição do STJ em divisar contratos empresariais e contratos existenciais, aplicando de
forma modulada a função social dos contratos e a boa-fé na medida da maior ou da menor
vulnerabilidade dos contratantes.
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O AMBIENTE DA NOVA CONTRATUALIDADE E
A TENDÊNCIA DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ EM MATÉRIA
CONTRATUAL
The environment of the new contractuality and STJ’s justice trend in contractual
matters
Rodrigo Toscano de Brito Doutor e Mestre em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC-SP. Professor de Direito Civil da Universidade Federal da Paraíba e do UNIPÊ –
Centro Universitário de João Pessoa, nos cursos de graduação e pós-graduação. Advogado.
Resumo: O presente artigo tem por objetivo estudar a consolidação do cenário em que
estão inseridos os contratos, a partir da globalização e sua influência, e a dignidade da
pessoa humana como contraponto à pressão globalizante. Nesse sentido, faz-se uma visita
à doutrina constitucional e civil, para, ao final, trazer análises sobre a evolução legislativa
e jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, nesse “ambiente contratual”. Assim,
parte-se da análise de alguns recentes julgados do STJ que tragam, em sua essência, a
influência dos elementos inicialmente citados, levando em conta precedentes que
envolvam contratos civis, empresariais e de consumo.
Palavras-chave: Contratos; Globalização; Dignidade da pessoa humana; Precedentes
judiciais.
Abstract: This article aims to study the consolidation scenario in which contracts are
entered from the globalization and its influence, and the dignity of the human person, as
a counterpoint to globalizing pressure. In this sense, it is a visit to constitutional and civil
doctrine, in the end, bring analyzes of legislative and jurisprudential evolution of the
Superior Court in that "contractual environment". Thus, some recent sentences is
analyzed from the Supreme Court that carry, in essence, the influence of the elements
initially cited, taking into account precedents involving civil, business and consumer
contracts.
Key-words: Contracts; Globalization; Human dignity; Judicial precedents.
Sumário: 1. Nota introdutória em torno do atual cenário das contratações – 2.
Globalização: um ambiente consolidado e complexo para as relações contratuais – 3. A
dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão globalizante e como
balizamento maior na interpretação contratual – 4. Evolução legislativa e jurisprudencial
e a adaptação da interpretação dos contratos à realidade civil constitucional: análise de
precedentes do Superior Tribunal de Justiça – 5. Notas conclusivas.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 136
1. Nota introdutória em torno do atual cenário das contratações
As considerações iniciais que se pretende fazer neste ensaio perpassam
por uma conjuntura já conhecida em profundidade pelos civilistas que passaram a estudar
e discutir o direito civil brasileiro a partir do ângulo constitucional, mas que algumas
vezes ainda passa despercebido pela construção dos precedentes judiciais.
Na primeira parte deste artigo, pretende-se revisitar a percepção de
como a doutrina, especialmente a constitucionalista e a civilista, que analisaram o
fenômeno da constitucionalização do direto civil, num primeiro momento, sentiram-se
perto do influxo da Constituição de 1988, em matéria de direito privado. A ideia central
é mostrar o cenário da contratualidade na atualidade – que já não é novo, mas sim
consolidado. Para tanto, levar-se-á em conta uma análise à luz da globalização e sua
influência sobre os contratos, e a dignidade da pessoa humana, como contraponto à
pressão globalizante, sobretudo para revisitar a doutrina que, prospectivamente, viu
adiante, iluminando o horizonte1, esses efeitos, e mostrar como anunciou o que vemos
hoje, na construção jurisprudencial, de modo avançado, em determinados casos, e, ainda
de modo tímido, em outros, como se mostrará na última parte deste escrito.
Diante de um quadro econômico e social complexo, em que não se pode
mais se ater apenas às relações entre fornecedor e consumidor, que são relações frágeis e
que continuam a merecer especial cuidado, mas que também sofreram grande evolução
nas últimas décadas com a discussão do direito do consumidor, faz-se necessário uma
visão mais abrangente, uma teoria para os contratos que esteja comprometida com o
equilíbrio da contratação na conjuntura em que se encontra.
Diante dessa realidade, não se pode deixar de desenhar o palco, ou
melhor dizendo, o grande cenário, já consolidado, em que se encontra inserido o contrato,
1 Luiz Edson Fachin explicitava, desde a muito, que “avançar contra a Constituição é promover, no
tempo presente, a estagnação paralisante do ocaso pretérito. O Brasil constitucional de hoje pede respeito
ao futuro da Nação” e, mais adiante, afirma, sobre a dimensão prospectiva da Constituição, que esta “se
vincula a ação permanente e contínua, num sistema jurídico aberto, poroso e plural, de ressignificar os
sentidos dos diversos significantes que compõem o discurso jurídico normativo, doutrinário e
jurisprudencial, especialmente no que concerne a tríplice base fundante do governo jurídico das relações
sociais, isto é, propriedade, contrato e família.” (FACHIN, Luiz Edson. Em defesa da Constituição
prospectiva e a nova metódica crítica do direito civil e suas ‘constitucionalizações. In. Questões do Direito
Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7).
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 137
especialmente quanto à influência da jurisprudência brasileira, o que se pretende analisar
ao final deste ensaio.
Esse cenário tem, pelo menos, dois elementos que influenciam o
contrato e objetivam a busca de seu equilíbrio, num sentido mais amplo de contraposição
de forças. A primeira etapa da nossa caminhada será dedicada a demonstrar alguns
aspectos da globalização, criadora de um complexo ambiente para as relações contratuais
– o grande cenário. Em seguida, buscar-se-á visualizar o princípio da dignidade da pessoa
humana como o ator principal no grande palco contratual contemporâneo, que serve como
o verdadeiro orientador desse ambiente contratual. Por último, procurar-se-á ressaltar a
atividade legislativa e jurisprudencial, esta buscando se adaptar à nova contratualidade.
Antes de se passar para o estudo desse cenário em que se encontra o
contrato no Brasil, é importante observar que a nova contratualidade, que está inserida
em todo o cenário que aqui será visto, tem por principal objetivo, especialmente, na
análise da influência da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a busca pelo
equilíbrio da contratação, como elemento finalístico, hoje, ao que nos parece, consolidado
na legislação e em consolidação na jurisprudência daquela Corte Superior de Justiça.
2. Globalização: um ambiente consolidado e complexo para as relações contratuais
Apesar da crise econômica enfrentada nos últimos anos, talvez desde
Roma, até os dias atuais, a humanidade não tenha visto um país desejar tanto a
manutenção da hegemonia econômica e, na esteira dela, a cultural, como ocorre hoje com
os Estados Unidos da América, que impõem regras e um modo de vida semelhante para
qualquer parte do mundo.
É esse fator – de relevância para o raciocínio contratual contemporâneo
– conhecido de todos, que nos força a ponderar e tentar entender o fenômeno da
globalização. Aqui, de fato, a intenção não é considerar a globalização como mero
modismo. A necessidade de considerá-la é real. Com efeito, a globalização é e funciona
como o palco principal das contratações contemporâneas. É, a rigor, o fenômeno macro,
maior. Não se pode afirmar ser o principal, uma vez que aqui se considera sobremaneira
a dignidade da pessoa humana como contrapeso e elemento principal, mas é, sem
embargo, o que mais influencia e requer reflexão.
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Para Ronaldo Porto Macedo Júnior, em artigo que procura discutir o
fenômeno da globalização em face do direito do consumidor, “poder-se-ia definir
provisória e preliminarmente globalização como um processo de natureza econômica e
política marcado pelas seguintes características: a) ampliação do comércio internacional
e formação de um mercado global assentado numa estrutura de produção pós-fordista
(pós-industrial); b) homogeneização de padrões culturais e de consumo; c)
enfraquecimento da ideia de Estado-nação em benefício dos agentes econômicos do novo
mercado global; d) formação de blocos comerciais”.2
Numa visão que admite o aspecto político, Cristiano Chaves de Farias
assevera que “genericamente, pode-se afirmar que é a designação dada ao conjunto de
transformações de ordem política, social e econômica verificadas nos últimos tempos em
quase todos os estados democráticos de direito, tendentes à integração dos mercados,
possibilitando maior circulação de riquezas”.3
Como se vê, há um padrão de opiniões diante de uma noção
objetivamente imprecisa. O que se busca, porém, é o delineamento desse fenômeno
mundial que não parece esconder o real objetivo: padronizar comportamentos, consumo,
cultura, ciência, tudo em benefício de interesses mais fortes. É esse, sim, o principal
escopo pretendido, apesar de não se negar que em alguns casos traga bons frutos.
São inúmeras as variáveis da globalização. Para este ensaio, entretanto,
interessam os efeitos trazidos do ponto de vista econômico4 que afetam de frente os
contratos. Aliás, não se pode olvidar que é o contrato o elemento principal facilitador de
circulação de riquezas e é através dele que se pode aplicar e padronizar, em diversos
níveis de relacionamento, a padronização almejada pelos timoneiros da ideia globalizante.
Essa é uma realidade presente da atual contratualidade, que vive, talvez, seu auge, não só
vislumbrada nas relações de consumo, mas também nas relações empresariais.
2 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Globalização e direito do consumidor. In: SUNDFELD,
Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena (Coords.). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 225-239.
3 FARIAS, Cristiano Chaves de. A proteção do consumidor na era da globalização. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo, n. 41, p. 89, jan./mar. 2002.
4 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito do Estado federado ante a globalização econômica. Revista
Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série, Brasília, Universidade de Brasília, n. 8, p. 202, 2001. Para o
autor, “interessa sim, a chamada globalização econômica, notadamente quanto aos seus efeitos negativos e
destrutivos sobre os direitos nacionais, máxime dos direitos sociais e da ordem econômica”. (LOBO, Paulo
Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, p. 202).
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Não é demais ressaltar, como delineado por Ronaldo Porto Macedo
Júnior, que há uma indiscutível intenção de ampliação do comércio internacional e
formação de um mercado global. Ora, é esse comportamento sem fronteiras que
enfraquece as empresas nacionais, gerando, por via de consequência, um maior
enfraquecimento do consumidor doméstico e das empresas nacionais.
A teoria do contrato, que em momento histórico mais recente se
preocupou mais com a proteção dos envolvidos numa relação de consumo – e assim deve
continuar fazendo – teve de ajustar seu rumo, para viabilizar a proteção também em outras
relações que não contam, necessariamente, em seu bojo, com a presunção de parte
hipossuficiente. Ora, se há um mercado global, se há a ideia de enfraquecimento do
Estado-nação (antes especulado, hoje real), se há uma tendência de homogeneização de
consumo com a presença, em praticamente todos os países do mundo ocidental, das
mesmas empresas, dos mesmos grandes grupos empresariais, então deve haver um
deslocamento do intervencionismo contratual para além do contrato de consumo. Não se
poderá pensar de forma diversa, se se sabe que o elemento principal da globalização
econômica é o próprio capital financeiro.
Paulo Luiz Netto Lobo, em trabalho publicado há algum tempo,
comentava e alertava para o fato de que “até agora, o que se vê é o crescimento da
concentração de poder empresarial, em escala planetária impressionante, no qual os
valores hegemônicos são ditados pelos interesses das grandes empresas, com força
econômica e law making power superiores ao da maioria dos países”.5
Por seu turno, Paulo Bonavides consegue delinear, em poucas palavras,
toda a estrutura do fenômeno globalizante. Quando comentando o comportamento
neoliberal, diz: “Assim, por exemplo, quando intenta – e em alguns casos já o fez –
desnacionalizar a ordem econômica, despedaçar o Estado, abdicar a soberania nos
acordos lesivos ao interesse nacional, promover a recessão, perseguir com emendas
constitucionais e medidas provisórias o corpo burocrático da administração pública,
cercear direitos adquiridos, arruinar o pequeno e médio empresário, esparzir o medo e o
5 LOBO, Paulo Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, cit., p. 203.
Cristiano Chaves de Farias comenta o seguinte: “Ora, esse processo de mundialização do capital tende a
fomentar o consumo como forma de alcançar o lucro, que é o próprio resultado almejado. Nesse passo, é
imperioso reconhecer como consectários desse fenômeno a hegemonia do capital financeiro, o crescimento
de empresas transnacionais, a internacionalização da produção, a liberalização do comércio e o maior
oferecimento de produtos e serviços, mudança nas práticas contratuais, com repercussões claras na
sociedade organizada”. (A proteção do consumidor na era da globalização, cit., p. 89).
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sobressalto na classe média, diminuir o crédito ao produtor rural, elevar à estratosfera a
taxa de juros, esmorecer a reforma agrária, confiscar o bolso do contribuinte com novos
impostos, fazer da reforma tributária um engodo e da reforma administrativa uma falácia,
conduzir o trabalhador ao desespero, praticar sistematicamente uma política de
desemprego que, levando a fome ao lar de suas vítimas, desestabiliza a ordem social,
abater as autonomias estaduais e municipais, mediante mudanças na Constituição que
afetam os entes federativos e só fortalecem a União, semear a descrença do povo na
melhoria de sua qualidade de vida pela brutal indiferença com que trata a questão social,
estabelecer o retrocesso político nas instituições republicanas com a reeleição
presidencial, desestruturar o ensino público e comprimir com indigência de meios
financeiros a autonomia universitária, abrir sem freios o mercado à voracidade dos
capitais especulativos de procedência externa, que ameaçam de mexicanização a
economia brasileira, descumprir oito artigos da Constituição que regem interesses
fundamentais das Regiões, o que ocorre na medida em que sua política do Mercosul
acelera os desequilíbrios regionais no País e, finalmente, jungir o Brasil a uma política de
sujeição externa vazada na obediência aos interesses da chamada globalização
econômica”. Mais adiante, o autor arremata: “A globalização é ainda um jogo sem regras;
uma partida disputada sem arbitragem, onde só os gigantes, os grandes quadros da
economia mundial, auferem as maiores vantagens e padecem os menores sacrifícios.”6
Apesar de todas as palavras destacadas merecerem grifo, para o mister
pretendido nestas linhas que, como dito, ressalta o ambiente no qual está inserida a
contratualidade contemporânea algumas devem ter destaque especial: a ruína do pequeno
e médio empresário; a elevação à estratosfera da taxa de juros e a abertura do mercado à
voracidade dos capitais especulativos de procedência ou com a ajuda externa.
Mas, pode-se ir além. Outros aspectos facilitam sobremaneira a
expansão das ideias e do poder privado aqui já delineado. Trata-se da alta evolução
6 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 282-283. Sobre
o assunto e com referência expressa à influência exercida sobre os contratos, Maria Luiza Feitosa, comenta:
“Num mercado que se desenvolve para a pluralização do lucro e da rentabilidade, o risco deixou de ser
visto como instituto de negação do dano ou de prevenção das possibilidades de perdas, projetando-se sobre
a própria essência das transações, às vezes, como elemento central do binômio especulação versus
investimento. Nesse campo, tornou-se lícito, possível e determinável, podendo ser analisado, posto em
tratativas e pactuado. Vincula-se aos contratos de maneira cotidiana e regular, compondo uma equação em
perfeita sintonia e simbiose. Mesmo sem detalhar as diferenças encontradas, podem ser extraídas, nesta
breve discrição, importantes e substanciais diferenças em comparação à contratação tradicional”
(FEITOSA, Maria Luiza. Globalização financeira: mudanças que afetam o campo jurídico-econômico dos
contratos e os modos de lidar com o risco. In: Liber Amicorum – Homenagem ao Prof. Doutor Antonio José
Avelãs Nunes, 2009. p. 741-770.
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tecnológica, devida muito pelo desenvolvimento e utilização dos supercomputadores e da
internet. A partir de uma rede mundial de computadores ou televisão via satélite, é
possível difundir, disseminar ideias, produtos, moda, de forma a incutir na mente de cada
cidadão, isoladamente considerado, a necessidade de busca por determinada marca,
produto ou fornecedor que, na maior parte das vezes, são representantes abertos das tais
grandes empresas que acabam desestabilizando a economia de um país, com fortes
reflexos na própria economia contratual.
Mas, interessa também destacar aqui os principais efeitos do fenômeno
globalizante, de forma a encontrar pontos que interfiram direta ou indiretamente nos
contratos.
Em primeiro lugar, no estágio atual, percebe-se com mais clareza que
se procura afastar o Estado social, em face das garantias por ele promovidas. Como sabido
por todos, o Estado social veio se contrapor ao Estado liberal, da livre iniciativa, com
regras menos intervencionistas, da ampla utilização do voluntarismo, em que tudo era
regido única e exclusivamente a partir da vontade das partes. Constatado o afastamento
da igualdade real em face da existência de uma igualdade meramente formal, o Estado
passou a intervir com mais intensidade nas relações privadas, com o escopo de procurar
manter o equilíbrio das relações. É exatamente a época que coincide, segundo a tese de
Miguel Reale, com a segunda fase do direito moderno7. Pois bem, é essa fase mais
intervencionista que a globalização procura afastar, embora do ponto de vista
jurisprudencial, levando-se em conta os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, a
tendência parece ser outra, quanto à interpretação dos contratos.
O que procura fazer o fenômeno globalizante é, em poucas palavras,
desconsiderar as regras intervencionistas do Estado social, implantando suas próprias
regras e normas particulares, e aqui vale insistir, de um ponto de vista mais privado,
digamos, não só em relações jurídicas de consumo, como já se refletiu, mas nas relações
empresariais, e que, em face das consequências econômicas causadas, acabam por
influenciar as relações civis puras.
Qual a fonte geradora dessa força? Sem dúvida, a noção de
internacionalização de empresas, em que as opções de consumo e fornecimento de bens
e serviços nas relações empresariais, na medida em que o próprio fenômeno avança,
passam a ser mínimas, centralizadas nas mãos de poucos grupos empresariais, que tendem
7 REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 102-113.
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a ser os mesmos na América do Sul, na América do Norte, na Oceania, na Ásia, na Europa,
às vezes mudando, outras aproveitando o nome local de alguns produtos para dessa forma
se camuflarem.
Paulo Luiz Netto Lobo, sempre atento à ideia que se pretende aqui
realçar, assevera: “O meio mais eficiente de desconsideração do direito nacional é o da
utilização massificada de condições gerais dos contratos. Sob a aparência de contrato,
esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente revelável, que ostenta
características assemelhadas às da lei. A lei, no Estado moderno, ostenta características
que distanciam de qualquer ato de particulares ou de grupos. São eles: a generalidade, a
abstração, a uniformidade e a inalterabilidade. Pois bem, as condições gerais dos
contratos apresentam as mesmas características.”8
Voltando então para o ponto já referido, é dessa forma que a
globalização facilita o poder normativo das grandes empresas transnacionais. Não há mais
fronteira para a utilização de suas regras. Apesar de terem de se adaptar às normas locais,
em cada país, em cada bloco econômico, de uma forma geral, conduzem para os quatro
cantos do mundo a mesma regra, padronizada, imposta e consequentemente mais barata.
Mas a remoção do Estado social não é o único efeito de relevo do
fenômeno aqui estudado. Como já dito, há um evidente enfraquecimento das pequenas e
médias empresas, senão levadas à ruína total, pelo menos muitas se encontram em difícil
situação financeira, ante a consolidação da abertura da economia, nesse jogo de regras
unilaterais permitidas pelo próprio mercado, que funciona, de certa forma, como
mecanismo autorregulador.
Não há dúvida sobre a diferença do poderio econômico de uma empresa
nacional, seja ela pequena, média ou mesmo grande, e uma superempresa transnacional
que, como já suscitado, impõe suas próprias normas, não só em relação aos seus
consumidores, como também em relação às demais empresas domésticas. Carlos Alberto
Ghersi relata a experiência pela qual passou a Argentina, dizendo o seguinte: “El
8 LOBO, Paulo Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, cit., p. 204-
205. O autor faz um cotejo entre a lei e as condições gerais dos contratos. Segundo ele, as condições gerais
dos contratos também são gerais, pois se aplicam a todas os destinatários, sem individualização. Também
são abstratas, uma vez que são predispostas para reger situações futuras e não situação concreta e
determinada. De igual forma, são inalteráveis ou insusceptíveis de negociação individual com cada
interessado. São, igualmente, uniformes, porque padronizadas para utilização por todos que necessitam dos
produtos ou serviços oferecidos e, por último, são editadas pela parte interessada. Assim, o autor demonstra
claramente o law making power, já referido, indispensável para a interpretação do equilíbrio contratual de
hoje.
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mercado, como mecanismo autorregulador, produjo la quiebra de pequeñas y medianas
empresas ante la apertura de la economía sin restricciones; la desocupación estructural
llegó y permanece en niveles nunca antes existentes en la Argentina, entre algunas de
esas consecuencias disvaliosas.”9
Na mesma ordem de ideias, o fenômeno globalizante acabou trazendo
outra consequência relevante, notadamente para países em desenvolvimento como o
Brasil: a pressão para se realizar as privatizações das empresas que, segundo a ideia
dominante, não devem estar nas mãos estatais. Entre nós, como amplamente divulgado,
esse foi um passo dado, promovendo, como hoje se vê, após alguns anos da passagem de
várias estatais para a iniciativa privada, uma maior concentração de força econômica por
parte de grandes grupos econômicos internacionais, aumentando o poder de
“autorregulamentação” contratual de setores importantes da economia, como ocorre, por
exemplo, com a telefonia, apesar da insistente e mais do que necessária interferência
estatal, através do Poder Executivo, a exemplo do CADE (Conselho Administrativo de
Defesa Econômica), do Poder Legislativo, na gênese de novas regras intervencionistas, e
do próprio Poder Judiciário que passou a melhor entender a necessidade de intervir na
economia contratual, promovendo revisões de cláusula e declarando a sua nulidade,
conforme o caso, ainda que a relação não viesse a ser de consumo, estritamente.
É interessante anotar, como o faz com extrema sensibilidade Carlos
Alberto Ghersi, que, diante desses efeitos, outros da mais alta relevância surgem em
consequência. De fato, para o autor argentino, passa-se a vislumbrar uma pobreza
econômica e social que leva, por via de consequência, a uma pobreza jurídica, de direito,
afastando o indivíduo dos direitos fundamentais. Para ele, assim como do ponto de vista
econômico se impossibilita o acesso do cidadão a um recurso suficiente que lhe permita
exercer seus direitos de trabalhador e de consumidor, ou do ponto de vista social, com a
existência do analfabetismo ou do semianalfabetíssimo, impede-o de conhecer os seus
direitos, impossibilitando-o de exercitá-los, do ponto de vista jurídico, isso também
ocorre, em escala ainda pior. Como comenta, “en el derecho ello es peor aún, por
ejemplo, porque presume el conocimiento de la ley para aquellos (pobres ignorantes), lo
cual los torna peligrosamente impotentes, pues al firmar ‘contratos o pseudocontratos’
9 GHERSI, Carlos Alberto. La pobreza jurídica y el ejercicio de los drechos fundamentales: el valor
de las libertades negativas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 43, p. 16, jul./set., 2002.
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se les aplicara aquel criterio (la lei debe ser conocida por todos, art. 20 CC argentino),
colocándolos al margem de la protección jurídica”.10
Todos esses aspectos são típicos da contemporaneidade econômica que,
de fato, irradia efeitos em diversas direções. Como não poderia ser diferente, o direito se
sente influenciado e, no caso específico da interpretação da teoria geral dos contratos,
todos os pontos aqui discutidos são da mais alta relevância.
A globalização, nos seus primeiros passos, já embalados pelo pleno
vigor da sociedade massificada, fez com que ganhasse força uma legislação protetiva do
consumidor, realçando noções relevantes, como a da solidariedade social, o valor da livre
iniciativa e um real sentido da dignidade da pessoa humana. Agora, a teoria dos contratos,
em mais uma de suas adaptações evolutivas conta com intervencionismos estatais mais
abrangentes, voltando-se, não só para a realidade dos contratos consumeristas, mas para
o contrato como um todo, em face da influência da própria noção de globalização, que
funciona, conforme demonstrado, como palco que propicia essa mudança de visualização.
Para Antonio Junqueira de Azevedo, na fase moderna, buscou-se a lei
como porto seguro para todas as soluções. O autor assim argumenta: “Ora, sem
remontarmos a épocas mais remotas, qual era o paradigma até aproximadamente a
Primeira Grande Guerra Mundial? Era o paradigma da lei. Vindos dos traumas do
absolutismo, os juristas de então viam, na lei, o direito. Para dar segurança, a norma devia
ser clara, precisa nas suas hipóteses de incidência (fattispecie), abstrata e universal.”11
Para o citado autor, em momento subsequente, e ainda no modernismo,
o paradigma mudou, de forma que o centro das decisões saiu da lei e foi para o juiz, visto
como o representante do Estado, a pessoa capaz de tudo resolver. Nessa ordem de ideias,
diz o seguinte: “Introduziram-se, assim, nos textos normativos, os conceitos jurídicos
indeterminados, a serem concretizados pelo julgador no caso a decidir, e as cláusulas
gerais, como a da boa-fé (falou-se até mesmo em fuga para as cláusulas gerais, ou seja,
fuga da lei para o juiz).”12
Ao que nos parece, não há hoje a continuidade desse fenômeno, a ponto
de se afirmar que se foge do juiz. Ao contrário, o juiz passou a ser o principal elemento,
10
GHERSI, Carlos Alberto, La pobreza jurídica y el ejercicio de los derechos fundamentales: el
valor de las libertades negativas, cit., p. 18.
11 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, n. 33, p. 125, jan./mar. 2000.
12 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação, cit., p. 126.
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por assim dizer, na análise do ambiente em que se construiu o contrato e do seu entorno,
na aplicação do direito contratual, levando em conta especialmente a principiologia do
contrato.
Há, atualmente, uma maior intervenção estatal nas relações
empresariais e mesmo, em alguns casos, nas estritamente civis, como já ocorria nas
relações de consumo, mas com níveis de intensidade, evidentemente, diferentes, para
cada caso.
É esse, em rápidas noções, o ambiente no qual se encontram inseridas
as relações contratuais contemporâneas. Mas, conforme já dito, há um balizamento maior,
capaz de servir de grande contrapeso a toda a pressão imposta pelo perfil globalizante,
capaz mesmo de servir como um dos critérios maiores do equilíbrio entre as prestações:
a necessidade de observância do princípio da dignidade da pessoa humana.
3. A dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão globalizante e como
balizamento maior na interpretação contratual
Visto o cenário maior, como aqui se idealizou, no qual hoje se inserem
as contratações, passemos ao estudo de um dos seus elementos integrantes que tem, sem
embargo, o escopo de se contrapor ao meio-ambiente em que se encontra o contrato. Na
verdade, talvez fosse desnecessário desenvolver este tema como ele se encontra proposto.
De fato, parece óbvio que o princípio da dignidade da pessoa humana é, em qualquer
hipótese, o orientador nato das relações jurídicas modernas. Entretanto, apesar da
aparente obviedade, não se pode afastar sua importância num ensaio que se propõe a
visitar o atual estágio da nova contratualidade, com lastro num direito civil que tem seu
fundamento maior e seu principal conteúdo em sede constitucional.
Não se pode negar também que a ideia central destas linhas muito deve
à própria noção do princípio da dignidade da pessoa humana. Olvida-se da sua
penetrabilidade na seara privada, porque os próprios civilistas e, porque não dizer, a
doutrina menos avisada, associa com facilidade a noção desse princípio à dos direitos
humanos numa via publicista. No entanto, não se pode negar que está nele a gênese de
novas ideias, de novas fronteiras outrora exclusivamente privadas, como ocorre com o
contrato. Gustavo Tepedino, a partir da noção de personalidade, demonstra claramente
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 146
essa linha de pensamento, ao afirmar que os direitos da personalidade são os direitos
humanos, sob o ângulo privado.13
Como se não bastasse estar no princípio da dignidade da pessoa humana
o embrião do estudo aqui desenvolvido, não se pode deixar de dizer, na esteira do que
afirma J. J. Gomes Canotilho, que há uma base antropológica constitucionalmente
estruturante do Estado de direito que, em relação ao que sustentamos, deve ser
considerada como balizamento máximo14. Nesse sentido, ainda que o direito privado
tenha, historicamente, uma feição patrimonialista por excelência, não pode se afastar do
homem, da proteção da pessoa humana. Aliás, há, entre nós, claramente um deslocamento
da tutela meramente patrimonialista para a da pessoa humana como centro nervoso do
direito. A respeito desse tema, Eroulths Cortiano Junior diz que “o direito revolta-se
contra as concepções que o colocavam como mero protetor de interesses patrimoniais,
para postar-se agora como protetor direto da pessoa humana. Ao proteger (ou regular) o
patrimônio, se deve fazê-lo apenas e de acordo com o que ele significa: suporte ao livre
desenvolvimento da pessoa”.15
Além de tudo, é inegável também que não se pode contrapor à ideia
globalizante, que se reflete tão facilmente no mundo dos contratos, apenas com normas
positivadas específicas, ou mesmo com princípios fundamentais de direito privado. Com
arrimo na lição de J. J. Gomes Canotilho, faz-se mister seguir, como alicerce fundamental,
os princípios políticos constitucionalmente conformadores, como é o caso do princípio
da dignidade da pessoa humana.16
13
O autor explica seu posicionamento da seguinte forma: “Daí considerar-se que os direitos
humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se fala dos
direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando
desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos os direitos da
personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o ângulo do direito
privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados
por outras pessoas”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 33).
14 O princípio da dignidade da pessoa humana, entre nós, está positivado no artigo 1º, III da
Constituição Federal de 1988. José Joaquim Gomes Canotilho, em alusão a dispositivo constitucional
português análogo ao brasileiro, diz: “A Constituição da República não deixa quaisquer dúvidas sobre a
indispensabilidade de uma base antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de direito (cfr.
CRP, art. 1º: Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana)”. (Direito
constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1996. p. 362).
15 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da
personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p 33.
16 O professor da Universidade de Coimbra explica a noção dos princípios políticos
constitucionalmente conformadores da seguinte forma: “Designam-se por princípios politicamente
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Nesse contexto, é preciso, desde já, estabelecer o campo em que se
encontra a temática aqui desenvolvida. Ou seja, o princípio da dignidade da pessoa
humana deve ser visto como uma “via” na qual todos devem se manter, inafastavelmente.
O contratante, o julgador, o intérprete da norma de uma forma geral deve levá-lo sempre
em consideração como o balizamento interno, e isso tem sido verificado, gradativamente
na jurisprudência brasileira. De fato, não se pode transitar fora dessa “via”.
Na nova contratualidade, os contratantes, o magistrado – quando
chamado para resolução do conflito contratual –, o intérprete da norma enfim, deve se
manter dentro de uma “faixa” mais ampla – a dos princípios sociais dos contratos –, desde
que já tenha respeitado o limite interno, qual seja o da obediência à dignidade da pessoa
humana.
Como se nota, o princípio da dignidade da pessoa humana é orientador
também do contrato, notadamente dos seus efeitos. Para Gustavo Tepedino, “a escolha da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo
fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das
desigualdades sociais, justamente com a previsão do parágrafo 2º do artigo 5º, no sentido
da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que
decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira
‘cláusula geral de tutela da pessoa humana’, tomada como valor máximo pelo
ordenamento”.17
É essa “cláusula geral de tutela da pessoa humana” que guia, em suas
grandes linhas, os delineamentos e características da nova contratualidade e tem sido
essencial na evolução dos precedentes judiciais no sentido que já vem sendo trabalhado
pela doutrina desde a Constituição de 1988.
Nesse sentido, importa ter presente ainda que a dignidade da pessoa
humana irradia suas diretrizes não só observando os elementos natos da pessoa, como
conformadores os princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do
legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflete a ideologia
inspiradora da constituição”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional, cit., p. 172).
17 TEPEDINO, Gustavo, Temas de direito civil, cit., p. 48. Na mesma linha de raciocínio, Fernando
Rodrigues Martins assinala que “hoje, deve-se perceber que os direitos humanos que inspiraram o
constituinte pátrio de 1988 também compõe-se como cláusula geral para tutela de direitos privados, aqui
tratados como ‘direitos de personalidade’ ou ‘direitos civis’, já que a personalidade não pode ser vista, tão-
somente, como capacidade de direitos e obrigações, mas, muito além disso, como direito à existência e às
consequências de viver”. (Direitos humanos do devedor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n.
39, p. 148, jul./set. 2001).
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dito por Ingo Wolfgang Sarlet18. Não é, em igual sentido, um princípio apenas da ordem
jurídica, de vez que deve influenciar igualmente a ordem política, social, econômica e
cultural, agora nas palavras de José Afonso da Silva. Para o professor paulista, é desse
prisma que se tem a natureza de valor supremo da dignidade da pessoa humana, que deve
ser vista na base de toda a vida nacional.19
Arrimado nessas lições, é possível compreender o ponto central deste
item, não só como contraponto aos efeitos da globalização sobre os contratos, como se
ressaltou, mas também para demonstrar que devemos estar submetidos, no trato de
matérias privadas, igualmente ao princípio da dignidade da pessoa humana, como ficou
evidenciado.
Para ratificar esse entendimento, não é demais considerar as palavras
de Gustavo Tepedino, quando afirma: “Já na regulamentação das relações jurídicas
patrimoniais, ao revés, a dignidade da pessoa humana é o limite interno capaz de definir
com novas bases as funções sociais da propriedade e da atividade econômica”. Em outro
trecho, o autor arremata com aquilo que queremos aqui fique claro: “(...) tais diretrizes [o
autor se refere à pessoa humana e ao desenvolvimento da personalidade], longe de apenas
estabelecerem parâmetros para o legislador ordinário e para os poderes públicos,
protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a atividade privada,
informando as relações contratuais no âmbito da iniciativa econômica.”20
Levando-se em conta a temática aqui considerada, com inegável sede
civil-constitucional, como se fez questão de frisar e explicar, faz-se necessário parar para
algumas reflexões.
Analisando o que se procurou consignar aqui, o princípio da dignidade
da pessoa deve ser observado em pelo menos duas vertentes. Primeiro, não se pode
olvidar que se está diante de um grande cenário, o globalizante, como demonstrado, em
meio ao qual as grandes empresas transnacionais aparecem, impõem suas regras e criam,
em seu favor, um verdadeiro poder de autoelaboração de “leis privadas”, como referido
18
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 60.
19 José Afonso da Silva ressalta também que a “dignidade da pessoa humana não é uma criação
constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência
especulativa, tal como a própria pessoa humana”. (Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a
constituição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 146-147).
20 O autor aponta ainda que “(...) a validade dos atos jurídicos, por força da cláusula geral de tutela
da personalidade, está condicionada à adequação aos valores constitucionais e à funcionalização ao
desenvolvimento e realização da pessoa humana” (TEPEDINO, Gustavo, Temas de direito civil, cit., p. 52).
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no item que discutiu o impacto da globalização sobre os contratos. Nesse contexto, o
princípio da dignidade da pessoa humana deve ser visto como o verdadeiro contrapeso,
de forma que o legislador, o julgador ou qualquer pessoa envolvida na relação jurídica
privada deve nele se guiar como princípio máximo e capaz de evitar os descompassos
impostos por uma ideia, já comprovada, de mão única. Em sede contratual, no nosso
sentir, ninguém pode se sobrepor às diretrizes do princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana.
Nesse prisma, vale ressaltar as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet,
quando pondera: “Como ponto de partida – no âmbito do que se poderia designar de uma
concepção minimalista (nuclear) da dignidade, não há como deixar de citar a forma
desenvolvida por Dürig, na Alemanha, para quem (com fundamento direto e confesso na
concepção kantiana) a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida
sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento,
tratada como uma coisa – em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser
descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direito.”21
Essa análise é relevante não só para as relações que envolvem os
contratos meramente civis e de consumo – que por essência têm pessoas naturais a eles
vinculados – mas também aos contratos empresariais, tendo em vista que por trás da
empresa – especialmente as que têm característica familiar, estão as pessoas como um
dos elementos realizador do negócio, aliás, da sua função social. Dessa sorte, na
contratualidade contemporânea, esse raciocínio não só pode como deve ser levado em
conta na interpretação do contrato de modo geral.
Dessa sorte, está autorizado o magistrado, por exemplo, diante de um
litígio contratual, seja de consumo ou empresarial, a intervir na contratação para, revisá-
la e mantê-la, de forma a fazer com que o princípio maior possa efetivamente contrapor-
se às imposições e aos reflexos maléficos que as cláusulas contratuais possam gerar.
A segunda vertente veleja na direção de se considerar o princípio da
dignidade da pessoa humana como o balizamento incondicional na interpretação
contratual e na busca pelo seu equilíbrio22. É importante grifar aqui que o centro nervoso
21
SARLET, Ingo Wolfgang, Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da
pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, cit., p. 211.
22 Ingo Wolfgang Sarlet entende que “não obstante seu cunho elementar, não pode ser
desconsiderado, qual seja, o de que a dignidade, ainda que não se a trate como o espelho no qual todos
veem o que desejam, inevitavelmente já esta sujeita a uma relativização (de resto comum a todos os
conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz, legislador, administrador ou
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dessa discussão releva não apenas os reflexos produzidos pelos contratos que têm
nascimento na onda globalizante, mas também toda e qualquer contratação, vale dizer,
civil pura, empresarial e de consumo. Nesse sentido, todos os contratantes, exegetas,
julgadores, legisladores, necessariamente, como já dito, estão obrigados a seguir, como
balizamento estreito, primeiramente o princípio da dignidade da pessoa humana. Nos
dizeres de Flávia Piovesan, “seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz
do direito constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica
e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade.”23
Deve-se entender, por fim, que é a dignidade da pessoa humana que tem
permitido o equilíbrio do contrato, independentemente da relação contratual que se esteja
tratando.
Igualmente, vale considerar que o contrato, assim como qualquer
relação jurídica, seja pública ou privada, não pode ultrapassar os limites da dignidade da
pessoa humana. Esta deve servir de orientadora, não só na elaboração, quanto na
interpretação contratual. Deve ser vista, enfim, e como já grifado por Gustavo Tepedino,
como cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana. Esta tem servido de
orientadora na nomogênese legislativa, historicamente falando, e nos precedentes
judicias.
4. Evolução legislativa e jurisprudencial e a adaptação da interpretação dos
contratos à realidade civil constitucional: análise de precedentes do Superior
Tribunal de Justiça
Até aqui, a preocupação girou em torno da apresentação de dois
elementos de grande influência na delimitação da contratualidade contemporânea. Assim
foi que se estudou o fenômeno globalizante como o grande cenário em que se encontram
inseridos os contratos e cujo principal ator é o princípio da dignidade da pessoa humana
que, a um só tempo, funciona como contrapeso da globalização e como balizamento
fundamental na interpretação do contrato.
particular) sempre irá decidir qual o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso
concreto” (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., p.
126).
23 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In: LEITE,
George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 195.
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A influência do princípio da dignidade humana na seara privada dá-se
notadamente pela mudança de foco que sofreu o direito civil no Brasil, após o ingresso
de um conteúdo civil na Constituição. Cabe agora avançar, demonstrando como a
legislação que daí se seguiu acompanhou a trilha civil-constitucional e, principalmente,
como influencia a contratação. É certo que, antes da Constituição de 1988, já se
encontravam normas que caminhavam na direção esposada no texto constitucional.
Entretanto, aqui, procurar-se-á focar em grandes linhas microssistemas posteriores à
Constituição, engendrados a partir da perspectiva civil-constitucional. Também aqui, ver-
se-á, ainda que rapidamente, que o Código Civil, apesar de arraigado em alguns pontos à
tradição civilista do Code Napoleón, também caminhou em direção semelhante,
principalmente em matéria contratual.
O legislador, nessa esteira civil-constitucional, através dos ditos
microssistemas legislativos, no que diz respeito ao contrato, esteve mais preocupado, de
acordo com a evolução legislativa observada, com a tutela da parte mais fraca na relação
contratual.
A lei de locações de imóveis urbanos é um desses exemplos típicos (Lei
n. 8.245/91). O legislador, com a finalidade de fomentar o mercado de locação de imóveis
urbanos e de proteger melhor o locatário, retirou do Código Civil o regramento sobre o
assunto, e o redirecionou para uma lei especial. O locatário é considerado a parte fraca da
relação locatícia. A busca pelo ponto de equilíbrio no contrato de locação considera que
há uma parte débil que precisa de normas capazes de conduzi-la a uma situação de
igualdade. Vale notar que o pano de fundo da lei aqui mencionada é, de fato, e como
frisado, a proteção de aspectos habitacionais e de igualdade nas contratações, de sorte que
obedece ao princípio orientador da dignidade da pessoa humana.
A lei de locações urbanas não é o único nem o mais importante
microssistema contratual com fundamento civil-constitucional. Sem embargo, esse título
deve ser outorgado ao Código de Defesa do Consumidor que, melhor do que qualquer
outro, retrata a realidade legislativa dos primeiros anos do impacto da globalização no
Brasil e da absorção de uma cultura privada mais voltada para a pessoa e mais preocupada
com o entrelaçamento de institutos de direito público e privado, se assim pudéssemos
ainda dividir. Apesar de o Código de Defesa do Consumidor tratar de diversas matérias,
tais como responsabilidade civil, publicidade, normas administrativas, penais, entre
outras, é também ali que se encontra o ponto de referência para a maior virada de página
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 152
que assistimos na história do direito contratual brasileiro, nas últimas décadas: o
regramento do contrato de consumo.
Diz-se isso porque foi a partir do Código de Defesa do Consumidor que,
embora leve em consideração apenas a tutela da parte débil da contratação (o
consumidor), começou-se a vislumbrar um novo horizonte contratual – uma nova
contratualidade – capaz de tirar o contrato do sufoco proporcionado pelas normas liberais
presentes no Código Civil de 1916, já não mais adequadas à contratualidade que se seguiu
nos últimos 20 anos, no Brasil.
Essa questão é de relevo especial e muito se discutiu sobre a
possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos civis e
empresariais acirrando o debate entre os que sustentam a tese finalista e maximalista do
conceito de consumidor. Apesar de sustentarmos que a discussão perdeu força, pelo
menos do ponto de vista principiológico, após a entrada em vigor do Código Civil de
2002, no nosso sentir, não se pode deixar de referenciar que vários julgados no Brasil
seguiram a orientação de que o Código de Defesa do Consumidor também se aplicaria a
outras relações, que não as meramente consumeristas, embora não seja essa a posição
adotada pela 3ª Turma de Julgamento do STJ, conforme se infere da análise do Agravo
Regimental no Recurso Especial n. 1.193.293/SP, julgado em 27.11.201224.
A rigor, foi a partir do Código de Defesa do Consumidor que se pode
discutir o real alcance da autonomia privada, relativizada e limitada pelos princípios sociais.
Igualmente, foi a partir dele que se falou em uma nova contratualidade, que precisou ser
revista.
24
Apesar de se necessitar fazer as ressalvas de natureza processual sobre prequestionamento de
matéria essencial ao recurso especial, é importante observar que o Código Civil abriu igual possibilidade
de revisão e interpretação mais favorável ao aderente, o que inclui os contratos de franquia (artigos 423 e
424). Talvez por questões processuais, a 3ª Turma do STJ, especialmente diante da reconhecida aplicação
do viés civil-constitucional à interpretação dos contratos por parte do relator, assim decidiu, discutindo a
aplicação do CDC: “Processual Civil. Agravo Regimental. Recurso Especial. Ação de Revisão de Contrato
de Financiamento para Aquisição de Franquia Cumulada Com Repetição De Indébito. Relação de
Consumo. Inexistência. 1 - Conforme entendimento firmado por esta Corte, o critério adotado para
determinação da relação de consumo é o finalista. Desse modo, para caracterizar-se como consumidora, a
parte deve ser destinatária final econômica do bem ou serviço adquirido. 2.- No caso dos autos, em que se
discute a validade das cláusulas de dois contratos de financiamento em moeda estrangeira visando viabilizar
a franquia para exploração de Restaurante "Mc Donald's", o primeiro no valor de US$ 368.000,00 (trezentos
e sessenta e oito mil dólares) e o segundo de US$ 87.570,00 (oitenta e sete mil, quinhentos e setenta
dólares), não há como se reconhecer a existência de relação de consumo, uma vez que os empréstimos
tomados tiveram o propósito de fomento da atividade empresarial exercida pelo recorrente, não havendo,
pois, relação de consumo entre as partes”.
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Toda essa tendência é circundada pela observância do princípio
fundamental aqui já bastante referido, qual seja, o da dignidade da pessoa humana. Vale
dizer, foi a partir do microssistema consumerista que se passou a sentir a influência do valor
que tem a pessoa, frente às normas individualistas e meramente patrimonialistas, da época
anterior dos contratos. Leonardo Mattietto faz alusão a esse aspecto, dizendo que “a
conformação clássica de contrato, individualista e voluntarista, cede lugar a um novo
modelo deste instituto jurídico, voltado a obsequiar os valores e princípios constitucionais
de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana”.25
Pode-se dizer, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor
aparece como um dos microssistemas que mais facilmente evidenciam a influência
constitucional a partir da tutela da pessoa humana. Como observa Eduardo Carlos Bianca
Bittar, “é curioso notar a frequência de expressões vitais como saúde, segurança,
presentes no bojo da Lei n. 8.078/90 (‘saúde e segurança dos produtos’ – art. 8º; ‘perigo
à saúde e segurança’ – art. 9º; ‘periculosidade à saúde ou segurança’ – art. 10; ‘não oferece
a segurança’, § 1º, do art. 12; entre outras assemelhadas). Mas, não é sem menos que estas
expressões circulam com facilidade no interior dos artigos, incisos e alíneas, ou ainda
encabeçando títulos e capítulos da Lei, isto porque se trata de âmbito em que a pessoa
pode sofrer atentados de inúmeras naturezas a direitos da personalidade, uma vez inserida
em relação de consumo”.26 O levantamento dos dispositivos realizado por Eduardo Carlos
Bianca Bittar desbrava os inúmeros exemplos da influência civil-constitucional do
Código de Defesa do Consumidor.
Sem igual intensidade, mas também preocupado com esse mesmo viés,
o Código Civil de 2002 introduziu de modo claro através do capítulo que se passou a
chamar de “preâmbulo dos contratos” (artigos 421 a 424) os princípios sociais, que
fizeram com que se sedimentasse a ideia de que as relações contratuais civis e
empresariais deveriam ter a mesma linha de análise das relações contratuais
consumeristas, com as suas devidas adaptações e ponderações, especialmente quanto à
autonomia privada.
25
O autor diz em suas palavras conclusivas que “o direito do consumidor, pensado como parte da
ampla proteção que, a partir da Constituição, a ordem jurídica confere à pessoa, não pode ser entendido
apenas como estrutura repressiva ou ressarcitória, mas como um instrumento funcionalizado à tutela da
pessoa humana, a serviço do valor constitucionalmente definido de promoção da dignidade e do livre
desenvolvimento da personalidade do ser humano”. (MATTIETTO, Leonardo. O direito civil
constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 182).
26 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Direitos do consumidor e direitos da personalidade: limites,
intersecções, relações. Revista de direito do consumidor, n. 37, p. 200, jan./mar. 2000.
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Visto isso, há de se ter presente que a atividade legislativa, conforme
estudado, vem se consolidando na linha de raciocínio da tutela da dignidade da pessoa
humana. A legislação infraconstitucional, não só a que se refere à matéria contratual, mas
também a outras áreas, vem buscando delimitar a atuação, conforme o princípio
orientador. Além disso, não se pode perder de vista que a legislação brasileira das últimas
três décadas tem dado margem a interpretações mais abertas, capazes de fazê-la cumprir
com a outra função do princípio da dignidade da pessoa humana, qual seja, funcionar
como contraponto do fenômeno globalizante.
Aliás, sobre o assunto, e já enveredando pela análise de precedentes do
STJ, há um julgado do STJ que nos parece paradigma, da lavra do Ministro Sálvio de
Figueiredo Teixeira, que traduz, na seara consumerista, o que o tema aqui colocado pode
representar, do ponto de vista prático. O Superior Tribunal de Justiça determinou que a
Panasonic, no Brasil, trocasse produto defeituoso, da mesma marca, adquirido pelo
consumidor no exterior, sob a argumentação de que se a economia é globalizada, então
não há mais fronteiras rígidas, o que estimula e favorece a livre concorrência, de forma
que a lei de proteção ao consumidor deve ganhar maior expressão em sua exegese, na
busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas.27
Quando se parte para a análise do entrelaçamento entre o princípio da
dignidade da pessoa humana e questões de natureza contratual, estritamente, o Superior
Tribunal de Justiça tem um precedente que merece destaque. Com efeito, no Recurso
Especial n. 1.025.665/RJ, julgado em 09 de abril de 2010, ficou ressalvado que a
27
Vale conferir a ementa do julgado comentado, para se ter presente o alcance daquilo que foi
sustentado desde as primeiras linhas deste ensaio: Ementa: “Direito do consumidor. Filmadora adquirida
no exterior. Defeito da mercadoria. Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (Panasonic).
Economia globalizada. Propaganda. Proteção ao consumidor. Peculiaridades da espécie. Situações a
ponderar nos casos concretos. Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente
fundamentado. Recurso conhecido e provido no mérito, por maioria. I - Se a economia globalizada não
mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção
ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações
jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios
mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas,
multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico
da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País; II - O mercado consumidor,
não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado’ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a
aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta
diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca; III - Se empresas nacionais se
beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos
produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências
negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos”. (TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A proteção ao
consumidor no sistema jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 43, p. 78,
jul./set. 2002).
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jurisprudência do STJ se alinha à ideia de que o mero inadimplemento contratual não
ocasiona danos morais, mas esse entendimento, conforme ressaltou a Min. Nancy
Andrighi, naquele julgado, “deve ser excepcionado nas hipóteses em que da própria
descrição das circunstâncias que perfazem o ilícito material é possível extrair
consequências bastante sérias de cunho psicológico, que são resultado direto do
inadimplemento culposo”.
Para fundamentar a ressalva, a ministra relatora fez consignar no
julgado o fato da recorrente ter celebrado com a recorrida um contrato de compra e venda
de um kit de casa de madeira, cujo valor acordado fora pago a vista. A ministra relatora
considerou que, “após alguns meses, pouco antes da data prevista para a entrega da casa,
a recorrente foi informada, por terceiros, que a recorrida inadimpliu o contrato”. Segundo
consta no acórdão, “a conduta da recorrida violou, portanto, o princípio da dignidade da
pessoa humana, pois o direito de moradia, entre outros direitos sociais, visa à promoção
de cada um dos componentes do Estado, com o insigne propósito instrumental de torná-
los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como
pessoa humana”28.
Por sua vez, na análise de julgados que se voltam aos contratos que não
são estritamente consumeristas, como já vimos em outro precedente que discutiu um
contrato de franquia, a questão ainda merece melhor evolução, embora o Superior
Tribunal de Justiça já tenha sinalizado na direção de se admitir uma interpretação
conforme a vulnerabilidade da parte, independentemente da relação ser ou não de
consumo, quando aquela for marcante.
De fato, no Recurso Especial n. 1.299.422/MA, julgado em 06 de
agosto de 2013, cujo voto também é da lavra da Min. Nancy Andrighi, vê-se essa
tendência da 3ª Turma do STJ. O julgado está assim ementado: “Direito Processual Civil.
Recurso Especial. Exceção de Incompetência. Ação de Reparação de Danos. Contrato de
Concessão Comercial por Adesão. Cláusula de Eleição de Foro. Validade. 1. A cláusula
que estipula a eleição de foro em contrato de adesão é válida, salvo se demonstrada a
hipossuficiência ou a inviabilização do acesso ao Poder Judiciário. 2. A superioridade do
porte empresarial de uma das empresas contratantes não gera, por si só, a hipossuficiência
28
A respeito do assunto, vale grifar a posição de Flávio Tartuce, ao dizer: “Caracterizando a
proteção da pessoa humana no contrato, pode ser citada a tendência de reconhecimento da possibilidade de
reparação por danos morais em decorrência do mero inadimplemento”. Em seguida, o autor cita o
Enunciado 411, da “V Jornada de Direito Civil” do CJF.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Teoria geral
dos contratos e contratos em espécie. São Paulo: Método GEN: 2014, p. 57).
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da outra parte, em especial, nos contratos de concessão empresarial. 3. As pessoas
jurídicas litigantes são suficientemente capazes, sob o enfoque financeiro, jurídico e
técnico, para demandarem em comarca que, voluntariamente, contrataram. 4. Recurso
especial provido”.
A ressalva referida na ementa, “salvo se demonstrada a hipossuficiência
ou a inviabilização do acesso ao Poder Judiciário”, parece-nos que dá o tom da tendência
atual de interpretação do contrato. Realmente, resta claro que o fato de se estar diante de
um contrato empresarial de “concessão comercial”, não inviabilizaria a decretação da
nulidade da cláusula de eleição de foro, sobretudo quando se esteja diante de um contrato
adesivo.
Ainda na seara dos contratos empresariais, a 3ª Turma do STJ também
já se deparou com a discussão em torno do alcance do “pacta sunt servanda” em matéria
de contrato empresarial, conforme se infere do Recurso Especial n. 1.158.815/RJ, julgado
em 07 de fevereiro de 2012.
O julgado analisou a possibilidade de revisão de “contrato de prestação
de serviço” empresarial, preferindo, como nos pareceu correto no caso, manter a cláusula,
tendo em vista as circunstâncias fáticas de sua formação, constante nos relatórios
analisados. Na ementa do acórdão, da lavra do Min. Paulo de Tarso Sanseverino,
encontra-se o seguinte: “Recurso Especial. Direito Empresarial. Contrato de Prestação de
Serviços. Expansão de Shopping Center. Revisão do Contrato. Quantificação dos Prêmios
de Produtividade Considerando a Situação dos Fatores de Cálculo em Época Diversa da
Pactuada. Inadmissibilidade. Concreção do Princípio da Autonomia Privada. Necessidade
de Respeito aos Princípios da Obrigatoriedade ("Pacta Sunt Servanda") e da Relatividade
dos Contratos (‘Inter Alios Acta’). Manutenção Das Cláusulas Contratuais Livremente
Pactuadas”.
Houve no julgamento do precedente supra citado, um voto-vista que
caminha na linha de raciocínio disposta nestas linhas que, a rigor, não é absoluta29, e não
se poderia aplicar ao caso julgado, conforme a análise do fato ali disposto. Entretanto,
mesmo assim, é importante a análise da linha central de raciocínio do voto-vista. O Min.
Massami Uieda, autor do voto vencido, proferiu seu voto nos seguintes termos: “Por fim,
29
Sobre a questão relacionada à ponderação de níveis de intervenção estatal nos contratos civis,
empresariais e de consumo, cf., BRITO, Rodrigo Toscano de. Equilíbrio e dirigismo contratual e o
Enunciado n. 21 da ‘I Jornada de Direito Comercial’ do CJF. In. Atualidades Jurídicas. Coord. DINIZ,
Maria Helena. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 213-231.
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quanto à aplicação do princípio do ´pacta sunt servanda´, também não assiste razão à
recorrente CEI. Na verdade, não se olvida que a relativização do princípio do "pacta sunt
servanda" – informado pelos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual –, com a
consequente possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, impõe que se reconheça
abusividade de cláusulas que impliquem em desequilíbrio entre as partes, sem, entretanto,
afastar o princípio da autonomia da vontade, dentro de uma lógica razoável sobre o
mercado, ao tempo, ao modo e ao espaço da contratação. Em rega, pois, há que se
respeitar o que for livremente avençado no contrato, cabendo a intervenção judicial para
revisão de suas cláusulas somente em situações excepcionais, legalmente prevista, tal
como nas relações de consumo. Da análise dos autos, contudo, observa-se que, embora
não haja efetivamente relação de consumo entre as partes, faz-se necessária a intervenção
do Judiciário no contrato de que cuidam os autos. Na espécie, veja-se que, no contrato de
prestação de serviços firmado pelas partes, os parâmetros relativos ao pagamento da parte
variável - consistente nos prêmios de produtividade -, embora livremente ajustados no
momento da celebração do acordo, ocasionaram, de fato, um flagrante desequilíbrio no
decorrer da execução do contrato, uma vez que a base de cálculo, que servia pra
quantificação de valores dos prêmios de produtividade, não se concretizou de acordo com
o inicialmente previsto, seja porque as locações foram pactuadas em valores superiores
aos de mercado, seja em razão do alto grau de inadimplência dos locatários das unidades”.
Embora, no caso, a tese do voto-vista tenha ficado vencida é importante
tirar como lição que a contratualidade, atualmente, conforme aqui já explanado, tem
permitido ao STJ discussões nesse sentido, para além dos contratos de consumo.
Minimamente, pode-se dizer que o Tribunal tende a avançar nessa linha, embora enfrente
entraves naturais de impossibilidade de análise fática e de prova, que, sem embargo,
auxiliaria na aplicação do viés aqui estudado.
A análise, ainda que rápida, da evolução legislativa e dos julgados aqui
colacionados, chamam a atenção para um ponto: há uma preocupação com a tutela da
parte mais fraca na relação jurídica, seja ou não de consumo, que é realmente um elemento
marcante da nova contratualidade, em face da influência e constatação, na construção
jurisprudencial, dos dois grandes elementos que compõem o cenário da contratualidade,
conforme aqui estudado.
5. Notas conclusivas
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A globalização, nos seus primeiros passos, fez com que surgisse uma
legislação protetiva do consumidor, realçando noções relevantes, como a da solidariedade
social, o valor da livre iniciativa e um real sentido da dignidade da pessoa humana.
Agora, a teoria dos contratos conta com intervencionismos estatais mais
abrangentes, através da consolidação de normas de natureza principiológicas, como se
reverbera da jurisprudência brasileira, especialmente para as questões relacionadas aos
contratos consumeristas. A jurisprudência do STJ, diante de uma nova contratualidade,
passa, aos poucos, a se dedicar, não só a realidade dos contratos consumeristas, mas do
contrato como um todo, em face da influência da própria noção de globalização, que
funciona, conforme demonstrado, como palco que propicia essa mudança de visualização.
Considerou-se ao longo deste artigo que o contrato, assim como
qualquer relação jurídica, seja pública ou privada, não pode ultrapassar os limites da
dignidade da pessoa humana, como aliás, já se mostra como tema consolidado na doutrina
brasileira. A dignidade humana tem servido de orientadora, não só na elaboração, quanto
na interpretação contratual, numa jurisprudência protetiva da parte mais vulnerável na
contratação, em sentido amplo.
Diante da análise dos precedentes julgados pelo Superior Tribunal de
Justiça, vê-se que o Tribunal tem discutido e avançado em questões contratuais à luz do
direito civil-constitucional, embora já fosse possível ter dado um passo mais adiante, em
vista das regras presentes no Código Civil, quando se leva em conta os contratos civis
puros e empresariais. Essa sensação de que o avanço já poderia ter sido maior, deve ser
seguida da ressalva dos limites de direito processual a que estão submetidas as partes
quanto às questões atinentes ao prequestionamento de matéria essencial para que seja
analisado o recurso especial. Essa questão sobressaltou-se, inclusive, na análise de
precedente que envolvia contrato de franquia, por exemplo, tendo em vista que a
discussão, no caso concreto, dizia respeito à aplicação do Código de Defesa do
Consumidor, que de fato não se aplica, quando a questão poderia ter sido discutida pela
parte interessada à luz de regras postas e de viés protetivo do aderente em contrato não
consumerista, como acontece com a franquia.
Também se verificou, diante da análise dos precedentes, que está aberta,
no STJ, no sentido de poder ser aplicada, teses que protejam a parte mais fraca na relação
contratual, ainda que não seja de consumo e que tenha natureza adesiva, como se viu na
análise do julgado que teve por objeto um contrato de concessão comercial de adesão.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 159
Por último, os precedentes demonstram que o STJ tem considerado a
aplicação de uma interpretação constitucionalizada aos contratos, mas sem olvidar,
quando for o caso, o prestígio da autonomia privada, que deve conviver com os princípios
sociais dos contratos que surgiram em meio a esse grande cenário globalizado e de
consideração à dignidade da pessoa humana.
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SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Estrangeira
L’OPACO PROFILO DEL RISARCIMENTO CIVILISITICO NELLA
COMPLESSA DISCIPLINA AMBIENTALE
O perfil opaco do ressarcimento civil na complexa legislação ambiental
Gerardo Villanacci Professor ordinário de Direito Privado da Università Politecnica delle Marche e
professor da Scuola di specializzazione in Diritto civile dell’Università di Camerino (Itália).
Sommario: 1. L’ambiente: il contesto sovranazionale – 2. La nascita del diritto
costituzionale dell’ambiente – 3. Principi di diritto ambientale – 4. Ambiente paesaggio
e governo del territorio – 5. L’interesse all'ambiente – 6. Il risarcimento del danno
ambientale: l’opaco profilo.
1. L’ambiente: il contesto sovranazionale
L’accezione ambiente irrompe nel linguaggio corrente a partire dagli
anni settanta del secolo scorso e si presta a riassumere le variegate sfaccettature che
delineano il rapporto fra l’uomo e il mondo che lo circonda nonché le molteplici
articolazioni territoriali in cui prende forma tale relazione alla luce del suo continuo
evolversi1.
1 S. NESPOR (a cura di), Rapporto mondiale sul diritto dell’ambiente, A World Survey of
Environmental Law, Milano, 1996, in particolare il capitolo introduttivo. Gli studi sul tema, e sulle sue
differenti e molteplici problematiche, sono numerosissimi; nell’impossibilità di darne atto in maniera
esaustiva si segnalano, oltre al fondamentale contributo di M. S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi
aspetti giuridici, in Riv. trim. dir. pubbl., 1973, p. 15 ss.; M. ARENA, L’Ambiente territorio come bene
oggetto di tutela giuridica e la sua proiezione costituzionale, in Il Foro napoletano, 1981, p. 241 ss.; M.
BELLO, Principi fondamentali della tutela dell’ambiente, in Nuova rass., 1989, p. 2193 ss.; E.
CAPACCIOLI - D. DAL PIAZ, voce Ambiente (tutela dell’), Parte generale e diritto amministrativo, in
Noviss. Dig. It. App., Torino, 1980; M. CECCHETTI, Rilevanza costituzionale dell’ambiente e
argomentazioni della Corte, in Riv. giur. ambiente, 1994, p. 252.; M. CECCHETTI, Principi costituzionali
per la tutela dell’ambiente, Milano, 2000; P. M. CHITI, Ambiente e ‘Costituzione’ europea: alcuni nodi
problematici, in Riv. it. dir. pub. com., 1998, p. 1423 ss.; G. COCCO, Nuovi principi ed attuazione della
tutela ambientale tra diritto comunitario e diritto interno, in S. Grassi, M. Cecchetti, A. Andronio (a cura
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 161
Viene in tal modo rimarcato l’indissolubile legame dello stesso a fattori
di ordine sociale, economico, culturale ed etico, connessi alle condizioni e ai luoghi nei
quali la persona umana vive ed esplica le proprie attività. Al contempo, con analoga
incidenza, assume rilevanza il bene ambientale dal punto di vista giuridico; deriva da ciò
la consapevolezza che, per la sopravvivenza sulla terra e la salvaguardia delle generazioni
future, i problemi debbono essere affrontati e le emergenze disciplinate2.
Ad oggi è prevalente il dibattito sul “degrado” dell’ambiente, che si
assume essere determinato dalla piena conoscenza o prevedibilità che alcune attività
umane, anche se necessarie, possono risultare devastanti per l’ecosistema3; si pensi
all’assottigliamento dello strato dell’ozono nell’atmosfera4, all’innalzamento della
temperatura terrestre5, ai detriti presenti nello spazio extra-atmosferico: fenomeni di
di), Ambiente e diritto, vol. I, Firenze, 1999, pp. 147 ss.; G. COCCO - A. MARZANATI – R. PUPILELLA
– A. RUSSO, Ambiente, in M. P. Chiti – G. Greco, Trattato di diritto amministrativo europeo, Milano,
1997; G. CORDINI, Principi costituzionali in tema di ambiente e giurisprudenza della Corte
Costituzionale italiana, cit., p. 611 ss.; S. DE LAURENTIS, L’evoluzione della disciplina prevista in tema
di paesaggio tra modelli di tutela di fonte costituzionale e onnicomprensività della nozione di ambiente, in
Riv. giur. edil., 2010, p. 756 ss.; P. DELL’ANNO, La tutela dell’ambiente come ‘materia’ e come valore
costituzionale di solidarietà e di elevata protezione, in Ambiente e sviluppo, 2009, p. 585 ss.; R. FERRARA,
La tutela dell’ambiente fra Stato e regioni: una storia infinita, in Foro it., 2003, I, c. 692 ss.; Id., voce
Ambiente (dir. amm.), in S. Patti (a cura di) Il diritto. Enciclopedia giuridica del «Sole- 24 Ore», vol. I,
Milano, 2007; F. FRACCHIA, Sulla configurazione giuridica unitaria dell’ambiente, 2007, p. 187 ss.; L.
FRANCARIO, Danni ambientali e tutela civile, Napoli, 1990; M. FRANZONI, Il danno all’ambiente, in
Contratto e impresa, 1992, p. 1015 ss.; S. GRASSI, L’ambiente come problema istituzionale in Lo Stato
delle istituzioni. Problemi e prospettive, Milano, 1994; E. LECCESE, Danno all’ambiente e danno alla
persona, Milano, 2011, p. 30 ss.; P. LOMBARDI, I profili giuridici della nozione di ambiente: aspetti
problematici, in Foro amm., 2002, p. 764 ss.; P. MADDALENA, Il diritto all’ambiente ed i diritti
dell’ambiente nella costruzione della teoria del risarcimento del danno pubblico ambientale, in Riv. giur.
ambiente, 1990, p. 469 ss.; P. MANTINI, Per una nozione costituzionalmente rilevante di ambiente, in Riv.
giur. ambiente, 2006, p. 207 ss.; M. PATRONO, I diritti dell’uomo nel paese d’Europa. Conquiste e nuove
minacce nel paesaggio da un millennio all’altro, Padova, 2000; S. PATTI, La tutela civile dell’ambiente,
Padova, 1979; G. TORREGROSSA- A. CLARIZIA (a cura di), Tutela del paesaggio e vincoli sulla
proprietà nella recente L. 8 agosto 1985, n. 431, Rimini, 1986.
2 LOMBARDI, I profili giuridici della nozione di ambiente: aspetti problematici, cit.; R.
MONTANARO, L’ambiente e i nuovi istituti di partecipazione in A. Crosetti, F. Fracchia (a cura di),
Procedimento amministrativo e partecipazione. Problemi, prospettive ed esperienze, Milano, 2002, p. 107
ss. 3 P. SOAVE, Lo sviluppo sostenibile nella prospettiva dell’Agenda 21. Il programma d’azione
lanciato dalla Conferenza di Rio de Janeiro, in Riv. giur. ambiente, 1993; M. JURI, The concept of
environmental security and sustainable development - il concetto di sicurezza ambientale e di sviluppo
sostenibile, in La comunità internazionale, 1997, p. 438 ss.; M. ARCARI, Tutela dell’ambiente e diritti
dell’uomo: il caso Lopez Ostra contro Spagna e la prassi di Commissioni e Corte Europea dei diritti
dell’uomo, in Riv. giur. ambiente, 1996 p. 745 s. 4 S. BATTINI, Il sistema istituzionale internazionale dalla frammentazione alla connessione, in Riv.
dir. pubb. comun., 2002, p. 969 s.; E. DE SOMBRE, Riduzione della fascia dell’ozono: l’esperienza del
protocollo di Montreal, in Riv. giur. ambiente, 2001, p 581 s. 5 F. RAMMELLA, Effetto serra: siamo prudenti, stiamo a guardare, in Riv. dir. fin. e sc. fin., 2004,
p. 196 s.; S. NESPOR, Oltre Kyoto: il presente e il futuro degli accordi sul contenimento del cambiamento
climatico, 2004, p. 1 ss.
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inquinamento globale6 frutto di un uso distorto delle risorse ambientali e in parte
dell’esplosione demografica, unita allo sviluppo industriale che la nostra Nazione ha
conosciuto nel secondo dopoguerra.
Fino alla metà del secolo scorso i problemi ecologici erano scarsamente
considerati7 tant’è che la Costituzione del 1948 non faceva menzione all’ambiente8 che
entra, invece, nel lessico costituzionale soltanto nel più ampio contesto di revisione della
parte seconda del titolo V, della stessa9. La decisione di introdurre alcune norme
concernenti la materia tra quelle di rilevanza sovraordinaria è stata senz’altro frutto della
necessità di adeguamento di tutela sollecitato a più riprese dalle direttive europee10.
Infatti, seppur in difetto di un esplicito riferimento normativo, nel trattato istitutivo della
CEE l’ambiente e nello specifico la sua protezione, risulta essere una delle finalità
6 T. SCOVAZZI, Il riscaldamento atmosferico e gli altri rischi ambientali globali, in Riv. giur.
ambiente, 1988, p. 707 s. 7 Si vedano al riguardo i rilievi di M. S. GIANNINI, << Ambiente>>: Saggio sui diversi suoi
aspetti giuridici, cit., p. 16, il quale indica nella legge 26 aprile 1964, n. 310 – “Costituzione di una
Commissione d’indagine per la tutela e la valorizzazione del patrimonio storico, archeologico, artistico e
del paesaggio” (c.d. Commissione Franceschini) - il primo fatto di rilievo normativo. Il nostro sistema,
prima della legge 349/1986 istitutiva del Ministero dell’ambiente, era privo di un’indicazione normativa
quale, ad es., l’art. 3.3 del Trattato sull’Unione Europea (ex art. 2 del Trattato istitutivo della Comunità
europea) che attribuisce alla Comunità un elevato livello di protezione dell’ambiente; con l’introduzione la
legge 349/1986, è stata istituzionalizzata la funzione di assicurare la “promozione, la conservazione ed il
recupero delle condizioni ambientali conformi agli interessi fondamentali della collettività ed alla qualità
della vita, nonché la conservazione e la valorizzazione del patrimonio naturale nazionale e la difesa delle
risorse naturali dall'inquinamento”. Nel 2006, il legislatore dell’ambiente ha posto, con l’art. 2 del codice
ambientale, “come obiettivo primario della legislazione in materia, “la promozione dei livelli di qualità
della vita umana, da realizzare attraverso la salvaguardia ed il miglioramento delle condizioni
dell’ambiente e l’utilizzaione accorta e razionale delle risorse naturali”. Sul tema, v. anche, V. GUARINO,
Tutela dell’incolumità da inquinamento, aspetti emergenti dell’interesse sociale nell’adozione dei
provvedimenti straordinari, in Nuova rass., 1978, p. 1942 s.; G. DE ROSA, Il problema ecologico in Italia,
in La Civiltà cattolica, 1988. 8 S. GRASSI, Costituzioni e tutela dell’ambiente, in S. Scamuzzi (a cura di), Costituzione,
razionalità, ambiente, Torino, 1994, pp. 389 ss.; G. CORDINI, Il diritto ambientale comparato, in G.
CORDINI - P. FOIS - S. MARCHISIO, Diritto ambientale, Profili internazionali europei e comparati,
Giappichelli, Torino, 2005, p. 95 ss.; R. FERRARA, La protezione dell’ambiente nella Repubblica
Federale Tedesca: tendenze evolutive, in Foro it., 1987, V, cc. 22 ss. 9 Art. 117 lettera -s della legge 18 ottobre 2001 n. 3.
10 V. CAPUZZA, La tutela dell’ambiente nell’ordinamento giuridico internazionale, comunitario e
interno. Origini, principi, funzioni e applicazioni, in Riv. amm., 2009 p. 5 s.; G. CORDINI, Rilevanza
dell’interesse all’ambiente, effettività degli obblighi comunitari e inadempimenti degli Stati nel
recepimento delle direttive europee, in Dir. pubbl. comp. ed europeo, 1999, p. 1583 s.; E. FINAZZER,
Responsabilità degli Stati membri nei confronti dei cittadini per inadempimento di Direttive ambientali.
Gli orientamenti della Corte di Giustizia., in Resp. civ. e prev., 1999, p. 705 s.; V. GASPARINI CASARI,
L’attuazione in Italia delle direttive comunitarie in materia ambientale. Introduzione al tema, in Dir. econ.,
1993, p. 9 s.; M. GASLINI, Sul concetto di tutela dell’ambiente come principio generale dell’ordinamento
comunitario europeo, in Dir. econ., 1993, p. 241 s.; E. MELE, L’ambiente, le direttive comunitarie e
l’ordinamento interno, in Foro amm., 1989, p. 1655 s.
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principali; appunto per questo, a far data dalla prima metà degli anni settanta11, furono
approntati Piani di Azione12 che mirando al raggiungimento di effetti ben precisi13
enucleavano, tra l’altro, materie ad alta priorità, per le quali venivano richiesti interventi
puntuali soprattutto attraverso l’utilizzo delle disposizioni sul mercato interno14. Furono,
altresì, disciplinati settori come l’inquinamento delle acque e dell’aria per armonizzare le
legislazioni nazionali al fine di non ostacolare il commercio intracomunitario,
salvaguardando, al contempo, la protezione della salute umana e dell’ambiente. In
definitiva centinaia furono le misure introdotte in grado di condizionare quasi tutte le aree
del diritto dell’ambiente nazionale degli Stati Membri in materia di gestione di
inquinamento15 e rifiuti pericolosi16.
Qualche anno dopo il Trattato CEE viene modificato dall’Atto Unico
Europeo17 che esplicitamente richiama l’ambiente nell’articolo 100A18 introducendo un
11 P. FOIS, Il diritto ambientale nell’ordinamento dell’Unione Europea in G. CORDINI - P. FOIS -
S. MARCHISIO, Diritto ambientale, Profili internazionali europei e comparati, Giappichelli, Torino, 2005,
p.51 ss.; O. PORCHIA, Le competenze dell’Unione Europea in materia ambientale in R. Ferrara (a cura
di), La tutela dell’ambiente, Torino, 2006, p 37 s. 12
G. CORDINI, Il terzo programma d’azione della comunità europea in materia di ambiente, in
Foro pad., 1983, p. 247 s.; G. AMATO - E. GRIGLIO - V. MARROCCOLI - S. NAPOLITANO - G.
VARANI - E. VARANO, Il percorso giuridico per la creazione di una comunità sostenibile, in
federalismi.it, 2011, p. 35 s. 13
La Politica comunitaria di carattere generale, inaugurata col Vertice di Parigi del 1972, aveva
prodotto il Primo Programma di Azione per l’ambiente (1973), che aveva il “limitato” obiettivo di evitare
che i diversi sistemi nazionali in materia di protezione dell’ambiente fossero idonei a falsare la concorrenza
nel mercato comune. Il Programma non era vincolante, ma la sua importanza consisteva nell’aderenza ai
Principi della Dichiarazione di Stoccolma del 1972. Quanto agli atti approvati prima dell’AUE, si ricordano
alcune direttive, precedenti e successive al Programma d’Azione del 1973, che avevano l’obiettivo primario
di migliorare il funzionamento del mercato interno e che nel far questo prevedevano obblighi in materia
ambientale; si tratta della direttiva 79/409/CEE sulla conservazione dei volatili selvatici; la direttiva
85/337/CEE concernente la valutazione d’impatto ambientale di determinati progetti pubblici e privati (c.d.
direttiva VIA); e la direttiva 75/442/CEE sui rifiuti. 14
Si v. art. 114 T.F.U.E. 15
M. CASTELLANETA, Lo Stato deve applicare le direttive a tutela dell’uomo e dell’ambiente, in
Guida al diritto, 2007 p. 121 s.; L. BARONI, Ambiente (rifiuti), in Riv. dir. pubbl. comun., 2012, p 1183 s. 16 G. CORDINI - P. FOIS - S. MARCHISIO, Diritto ambientale, Profili internazionali europei e
comparati, Giappichelli, Torino, 2005; G. STROZZI, Diritto dell’unione europea. Parte istituzionale: dal
trattato di Roma al trattato di Nizza, Torino, 2001; S. CASSESE (a cura di), Diritto Ambientale
comunitario, Milano, 1995; O. PORCHIA, Le competenze dell’Unione Europea in materia ambientale, in
R. Ferrara, (a cura di), La tutela dell’ambiente, Torino 2006, p. 37 s. 17
La politica ambientale viene per la prima volta disciplinata a livello di diritto primario nell’AUE
del 1986. L’ambiente viene espressamente menzionato nell’art. 100A TCE (ora art. 114 TFUE sul mercato
interno) e viene introdotto un nuovo Titolo VII dedicato all’ambiente (artt. 130R, 130S e 130T, ora Titolo
XX, artt. 191-193 TFUE). Tuttavia la protezione dell’ambiente non è ancora inclusa formalmente tra gli
obiettivi della Comunità. 18
Ci si riferisce all’art.100 A della CE così come modificato dall’art. 18 dell’atto unico europeo e
che confluirà successivamente nell’art. 114 T.F.U.E, capo dedicato al riavvicinamento delle legislazioni.
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proprio titolo separato, l’articolo 130R-T19; ma è con l’entrata in vigore del Trattato di
Maastricht che la protezione dell’ambiente viene esplicitato tra gli obiettivi della CE20 .
Con il trattato di Lisbona21 è stata eliminata la struttura in pilastri,
decretata la codecisione di Consiglio e Parlamento come procedura legislativa ordinaria22
e introdotto l’art. 194 T.F.U.E sulla competenza in materia di energia, a tenore del quale
la politica dell’ Unione nel settore dell’energia deve tener conto dell’esigenza di
preservare e migliorare l’ambiente, nel quadro dell’instaurazione o del funzionamento del
mercato interno e in uno spirito di solidarietà tra gli Stati Membri23.
Nell’ambito dei Principi stabiliti in via generale nella Parte Prima, l’art.
2 del Trattato è posto anche a presidio della qualità dell’ambiente e l’art. 6 promuove lo
sviluppo sostenibile24, principio introdotto dal Trattato di Amsterdam25 il cui contenuto,
negli anni, è stato oggetto di diverse interpretazioni26 per la sua rilevanza in ambito
internazionale. Va, infatti, ricordato che la World Commission on Environment and
19
Da questo momento la Comunità ha tra i suoi obiettivi quello "di salvaguardare, proteggere e
migliorare la qualità dell'ambiente, di contribuire alla protezione della salute umana, di garantire
un'utilizzazione accorta e razionale delle risorse naturali" delimitando il suo campo di azione ai soli casi in
cui un'azione possa essere meglio realizzata a livello comunitario piuttosto che a livello nazionale. 20
Con il Trattato di Maastricht del 7 febbraio 1992 viene introdotto all’art. 2 T.C.E l’obiettivo di
assicurare una crescita sostenibile che rispetti l’ambiente; si valorizza il principio di precauzione accanto a
quello di prevenzione e si riconosce la necessità di coordinare l’azione comunitaria a tutela dell’ambiente
con quella a livello globale. 21
Noto anche come trattato di riforma, firmato il 13 dicembre 2007 ed entrato ufficialmente in
vigore il 1° dicembre 2009. 22
Si v. art. 294 T.F.U.E in cui si specifica che il Parlamento interviene attivamente nel processo
legislativo comunitario, non solo attraverso pareri, ma anche con eventuali proposte di modifica del testo
sottoposto all’esame degli organi legislativi della Commissione. 23
In attuazione di tale disposizione gli obiettivi della politica energetica debbono necessariamente
essere sottoposti ad un corretto giudizio di bilanciamento con altre politiche europee, in primis con quella
ambientale, in modo da rafforzare la coerenza tra la dimensione interna ed esterna della competenza
energetica. 24 A. LÜTTEKEN - K. HAGEDORN, Concepts and Issues of Sustainability in Countries in
Transition. An Institutional Concept of Sustainability as a Basis for the Network, Humboldt University of
Berlin (consultabile all’indirizzo: http://www.fao.org/regional/SEUR/ceesa/concept.htm); F. SALVIA,
Ambiente e sviluppo sostenibile, in Riv. giur. ambiente, 1998, pp. 235 ss.; P. FOIS, Il diritto ambientale
nell’ordinamento dell’Unione Europea, cit. 25
Con il trattato di Amsterdam del firmato il 2 ottobre 1997 ed entrato in vigore il 1° maggio 1999
il principio dello sviluppo sostenibile entra a far parte degli obiettivi dell’Unione europea, con la
precisazione nell’ottavo considerando del preambolo che gli Stati membri sono “determinati a promuovere
il progresso sociale ed economico dei propri popoli, tenendo conto del principio dello sviluppo sostenibile
nel contesto della realizzazione del mercato interno e del rafforzamento della coesione e della protezione
dell’ambiente”. Sul punto si v. anche R GARABELLO, Le novità del trattato di Amsterdam in materia di
politica ambientale comunitaria, in Riv. giur. ambiente, 1999, p 151 s. 26
F. FRACCHIA, Sviluppo sostenibile e diritti delle generazioni future, in Riv. quadr. dir. amb,
2010, p. 41 s.; M. ALBERTON – M. MONTINI, Le novità introdotte dal Trattato di Lisbona per la tutela
dell’ambiente, in Riv. giur. ambiente, 2008, p. 505 s.; V. PEPE, Lo sviluppo sostenibile tra diritto
comunitario e diritto interno, in Riv. giur. ambiente, 2002, p. 209 s.
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Development27 ha fissato le coordinate del dibattito fornendo un’ampia definizione di
sviluppo sostenibile che secondo il Rapporto Brundtland deve soddisfare “i bisogni del
presente senza compromettere la capacità delle generazioni future di soddisfare i
propri”28. L’idea è di lasciare ai nascituri almeno le stesse opportunità di chi li ha
preceduti, anche se è difficile comprendere quali siano le misure da adottare per
raggiungere un punto di equilibrio tra bisogni dell’oggi e del domani tanto che la
definizione, sollevando interrogativi e scetticismi29 , ha dato luogo ad un nuovo summit
della Conferenza delle Nazioni Unite su ambiente e sviluppo (UNCED, United Nations
Conference on Environment and Development)30, al fine di delineare il concetto di
sviluppo sostenibile come rappresentato a conclusione del Vertice31.
Il principio è stato inoltre accolto anche nei trattati ambientali
sottoscritti a Rio32; in particolare l’art. 2 della Convenzione sulla biodiversità lo fa
definendo sostenibile l’uso delle risorse biologiche secondo modalità che non ne
comportino una riduzione a lungo termine e che preservino le capacità di soddisfare le
esigenze delle generazioni presenti e future33.
27
Ci si riferisce alle riflessioni scaturite in occasione della Conferenza delle Nazioni Unite per
l’ambiente e lo sviluppo (UNCED) tenutasi nel 1987, in cui la Commissione sposò l’idea secondo la quale
lo sviluppo è inestricabilmente collegato ad altri fattori di cui si deve tener conto nel dettare le coordinate
di azione dell’Unione Europea.
28 Si fa riferimento al documento rilasciato nel 1987 dalla Commissione mondiale sull'ambiente e
lo sviluppo (WCED) che per la prima volta definisce il concetto di sviluppo sostenibile. Il documento
(Rapporto Brundtland, Il nostro futuro comune, 1987, pubblicato con il titolo Il futuro di noi tutti,
Bompiani, 1988, con prefazione di G. Ruffolo) prende il nome dalla coordinatrice Gro Harlem Brundtland,
che in quell'anno era presidente del WCED ed aveva commissionato il rapporto.
29 Si consideri in proposito la diatriba sviluppatasi in seguito tra i sostenitori di un criterio
antropocentrico, per il raggiungimento di un’equità intergenerazionale, e i sostenitori di un criterio
ecocentrico, che vorrebbero maggiori garanzie giuridiche per quello che prende il nome di “diritto
soggettivo dell’ambiente”. 30
La Conferenza delle Nazioni Unite su ambiente e sviluppo (UNCED, United Nations Conference
on Environment and Development), si è tenuta a Rio de Janeiro nel 1992. 31
Si fa riferimento agli atti adottati a conclusione del vertice e in particolare alla Dichiarazione di
Rio su ambiente e sviluppo, all’Agenda 21 e alla Dichiarazione sulla gestione, la conservazione e lo
sviluppo sostenibile delle foreste. 32
Ci si riferisce alla Convenzione sulla diversità biologica, entrata in vigore nel 1993, e alla
convenzione sui cambiamenti climatici, entrata in vigore nel 1994. 33 E. CICIGOI – P. FABBRI, Mercato delle emissioni e dell'effetto serra. Istituzioni ed imprese
protagoniste dello sviluppo sostenibile, Bologna, 2007.
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Gli atti di Rio e le successive conferenze mondiali promosse dalle
Nazioni Unite34, confermano un concetto di sviluppo sostenibile fondato su tre fattori
interdipendenti: tutela dell’ambiente, crescita economica e sviluppo sociale35.
Tra gli intenti della Comunità si annoverano anche la salvaguardia,
tutela ed il miglioramento della qualità dell’ambiente; protezione della salute umana;
utilizzazione accorta e razionale delle risorse naturali e promozione sul piano
internazionale di misure destinate a risolvere i problemi dell’ambiente a livello regionale
e mondiale36. Gli atti adottati dall'Unione Europea hanno prodotto effetti oltre il territorio
comunitario così che sono stati promulgati regolamenti che vietano l’importazione di
avorio, con lo scopo di proteggere l’elefante africano, e l’esportazione di rifiuti in Stati al
di fuori dell’OCSE, per preservare i paesi del terzo mondo37.
Altre analoghe iniziative provvedimentali di natura proteiforme sono
state adottate per la prevenzione degli inquinamenti ovvero ricerca in campo ambientale,
promozione di strategie di sensibilizzazione, educazione nelle scuole e adozione di nuove
tecnologie, molte delle quali finalizzate anche alla protezione della salute umana38.
Si può affermare, dunque, che le finalità perseguite dall’Unione
Europea siano il miglioramento dell'ambiente e la protezione della salute umana, valori
spesso interconnessi come dimostrato in modo quasi icastico dalla recente definizione
34
Ci si riferisce in specie alla Conferenza di Johannesburg del 2002, vertice organizzato dalle
Nazioni Unite con la partecipazione di 189 dei 195 Stati membri dell’ONU, di numerosi capi di Stato e di
governo, dei rappresentanti delle Organizzazioni non governative del settore privato e di altri gruppi di
interesse che hanno ribadito formalmente il loro impegno a conseguire uno sviluppo sostenibile adottando
un documento che di tale intento riassume l'oggetto e le modalità di attuazione. Il documento consiste in
una Dichiarazione politica sullo sviluppo sostenibile, in cui gli Stati firmatari hanno dichiarato di voler
perseguire molteplici obiettivi tra cui: lo sradicamento della povertà; il cambiamento dei modelli di
consumo e produzione insostenibili; la protezione e gestione delle risorse naturali. E’ stato adottato inoltre
un Piano di azione diretto ad affrontare tematiche non adeguatamente discusse in occasione del Vertice sulla
Terra al fine di raggiungere un equilibrio tra sviluppo economico e sociale, nel rispetto all'ambiente e del
futuro del genere umano. 35 E. ROZO ACUNA, (a cura di), Profili di diritto ambientale da Rio de Janeiro a Johannesburg.
Saggi di diritto internazionale, pubblico comparato, penale ed amministrativo, Torino, 2004; v., ivi, i saggi
di S. MARCHISIO, Il diritto internazionale ambientale da Rio a Johannesburg, pp. 21 ss. e G. CORDINI,
Il diritto ambientale da Rio a Johannesburg, pp. 101 ss.; C. ROMANO, La prima conferenza delle Parti
della Convenzione quadro delle Nazioni Unite sul cambiamento climatico, Da Rio a Kyoto via Berlino, in
Riv. giur. ambiente, 1996, 1, p. 163 s. 36
Si v. art 191 T.F.U.E, ex art. 174 T.C.E. in cui vengono definiti tali piani di azione in maniera
testuale. 37 L. KRAMER, Manuale di diritto comunitario per l'ambiente, Milano, 2002; G. STROZZI, Diritto
dell'Unione Europea, cit. 38
Espressamente menzionata nell’art. 191 T.F.U.E tra gli obiettivi della politica dell’Unione
Europea.
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adottata dal codice dell'ambiente39 che qualifica come danno al terreno qualsiasi
contaminazione dello stesso che crei un rischio significativo di effetti negativi sulla salute
umana40.
Anche la Carta dei diritti fondamentali dell’uomo, nonostante sia solo
allegata al Trattato, assume valore giuridico pieno e vincolante a partire del 200941. La
linea tracciata dalla stessa impone agli Stati Membri dell’Unione Europea di integrare le
proprie politiche per tutelare e migliorare l’ambiente garantendo un suo sviluppo
sostenibile42; l’art. 37 prevede standards qualitativi di livello elevato basati sul tale
principio e rappresenta il tentativo di ricercare un equilibrio tra progresso tecnologico e
ambiente, il cui bilanciamento è irrinunciabile per il progresso umano43 .
2. La nascita del diritto costituzionale dell’ambiente
39
Ci si riferisce alla norma adottata in seguito al recepimento della direttiva in materia di danno
ambientale 2004/35/CE. Sui profili evolutivi della direttiva, e per una sintesi delle più rilevanti iniziative
europee, dalla Convenzione di Lugano alla direttiva in materia di responsabilità per danno all’ambiente
(Convenzione di Lugano sulla responsabilità civile per danni all’ambiente derivanti da attività pericolose,
21-22 giugno 1993, in Riv. giur. ambiente, 1994, pp.145-160; Libro Verde sulla responsabilità per i danni
causati all’ambiente, COM(93) 47, GUCE, 29 maggio 1993, n. C 149/12; Libro Bianco sulla responsabilità
per danni all’ambiente, COM(2000), 66 def., pp. 2-3; Proposta di direttiva del Parlamento europeo e del
Consiglio sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale
(COM(2002)17 def. 2002/0021[COD]), GUCE, 25 giugno 2002, n. C151E; Direttiva 2004/35/CE del
Parlamento europeo e del Consiglio del 21 aprile 2004, sulla responsabilità ambientale in materia di
prevenzione e riparazione del danno ambientale, GUCE, L 143, 30 aprile 2004, pp. 56-75) v., B. POZZO,
Verso una responsabilità civile per danni all’ambiente in Europa: il nuovo libro Bianco della Commissione
delle Comunità europee, in Riv. giur. ambiente”, 2000, p. 623 ss.; ID., La Proposta di nuova Direttiva sulla
prevenzione e il risarcimento del danno all’ambiente, in Danno e resp., 2002, p. 11 ss.; ID., I problemi
della responsabilità per i danni causati dall’inquinamento: profili di diritto comparato, in La nuova
responsabilità civile per il danno all’ambiente, a cura di B. Pozzo, Giuffrè, Milano, 2002, p. 23 ss.; L.
BUTTI, L’ordinamento italiano e il principio ‘chi inquina paga’, in Contratto e impresa, 1990, p. 561 ss.;
F. M. PALOMBINO, Il significato del principio ‘chi inquina paga’ nel diritto internazionale, in Riv. giur.
ambiente, 2003, p. 871 ss.; G. TUCCI, Tutela dell’ambiente e diritto alla salute nella prospettiva del diritto
uniforme europeo, in Contratto e impresa Europa, 2003, p. 1141 e ss.; A. VENCHIARUTTI, Il Libro
Bianco sulla responsabilità civile per danni all’ambiente, in La nuova responsabilità civile per il danno
all’ambiente, a cura di B. Pozzo, Giuffrè, Milano, 2002, p. 77 ss.; C. VIVANI, Origini e linee evolutive del
principio ‘chi inquina paga’ nell’ordinamento comunitario, in Resp. civ. e prev., 1992, p. 752 ss.
40 G. RECCHIA, La tutela dell’ambiente in Italia: dai principi comunitari alle discipline nazionali
di settore in Diritto e gestione dell’ambiente, 2001, p. 29 s.; G. STROZZI, Diritto dell’unione europea, cit. 41 R. BIFULCO, M. CARTABIA, A. CELOTTO (a cura di), L’Europa dei diritti. Commento alla
Carta dei diritti fondamentali dell’Unione Europea, Bologna, 2001. 42 P. MADDALENA, L’evoluzione del diritto e della politica per l’ambiente nell’Unione Europea.
Il problema dei diritti fondamentali, in Riv. amm. R. it., 2000; U. FANTIGROSSI, Debole sull’ambiente il
progetto di carta fondamentale dell’Unione, in, Riv. amm. R. it., 2000. 43 M. S. GIANNINI, Difesa dell’ambiente e del patrimonio naturale e culturale, in Riv. trim. dir.
pubbl., 1971, p.1122 ss.; P. D’AMELIO Ambiente (Tutela dell’), Vol. II, in Enc. Giur., Roma, 1988, 1 ss.;
G. MORBIDELLI, Il regime amministrativo speciale dell’ambiente, in Scritti in onore di Alberto Predieri,
Milano, 1996, pp. 1121 ss.; G. RECCHIA, La tutela dell’ambiente in Italia: dai principi comunitari alle
discipline nazionali di settore, cit.
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Il diritto dell’ambiente, per sua natura, deve essere confrontato con altri
di rango Costituzionale, tra i quali ed in primo luogo la libertà di iniziativa economica
privata; l’art. 41 Cost. nell'enunciare che la stessa non può svolgersi in contrasto con
l’utilità sociale44 ne dispone il contro bilanciamento con altri distinti ontologicamente45,
per evitare che possa porsi in contrasto con l’ecosistema46.
D’altra parte, la mancata indicazione della locuzione ambiente nella
Costituzione47, - introdotta soltanto con il novellato art. 117, in sede di ripartizione delle
competenze tra Stato e regioni48- non ha impedito l’interpretazione espansiva di alcune
44
Cfr. Corte cost., 3 giugno 1998, n. 196, Giur. cost., 1998, per la quale nell’ambito dell’utilità
sociale “sicuramente rientrano gli interessi alla tutela dell’ambiente e della salute”.
45 F. SABATELLI, Diritti economici e solidarietà ambientale. Spunti per una funzionalizzazione
delle disposizioni costituzionali sui rapporti economici a fini ambientali - Economics rights and
environmental solidarity. Ideas for the “functionalization” of constitutional provisions to economic
transactions for environmental purposes., in Dir. econ., 2013, p. 211 s.; C. SALVI, Libertà economiche,
funzione sociale e diritti personali e sociali tra diritto europeo e diritti nazionali - Economic freedom,
personal and social rights and social scope between European and state law, in Eur. dir. priv., 2011, p. 437
s.
46 M. S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici, cit.; G. MORBIDELLI, Il regime
amministrativo speciale dell'ambiente, cit., pp. 1121 ss. 47
Ci si riferisce alla legge Costituzionale 18 ottobre 2001, n. 3, cit.. 48 G. DE VERGOTTINI, La ripartizione dei poteri in materia ambientale, tra comunità, Stato e
Regioni, in C. Murgia (a cura di), L'ambiente e la sua protezione, Milano, 1991, pp. 39 ss.; ID., La tutela e
la valorizzazione del patrimonio storico-artistico fra Unione Europea, Stato e Regioni, in Riv. giur. urb.,
1996. Per una sintesi del confronto sulla configurabilità dell’ambiente come “materia” o come “valore”
dopo la riforma del titolo V della Costituzione, v. P. DELL’ANNO, La tutela dell’ambiente come ‘materia’
e come valore costituzionale di solidarietà e di elevata protezione, cit.; R. FERRARA, La tutela
dell’ambiente fra Stato e regioni: una ‘storia infinita’, cit.; M. OLIVETTI, Tutela dell’ambiente in
Costituzione: una buona occasione da non perdere, in Guida dir., 2004, n. 34, p. 10; N. OLIVETTI
RASON, Tutela dell’ambiente: il giudice delle leggi rimane fedele a se stesso, in Foro it., 2003, I, c. 696
ss.; C. SARTORETTI, La tutela dell’ambiente dopo la riforma del titolo V della seconda parte della
Costituzione: valore costituzionalmente protetto o materia in senso tecnico?, in Giur. it., 2003, p. 417 ss.;
Id., La ‘materia’ e il ‘valore’ ambiente al vaglio della Corte costituzionale: una dicotomia davvero
impossibile?, Giur. it., 2003, p. 1995 ss. La Corte costituzionale, con due pronunce di fondamentale
importanza perché alla base di tutto il filone giurisprudenziale successivo (Corte cost., 26 luglio 2002, n.
407, in Giur. it., 2003, p. 417; Corte cost., 20 dicembre 2002, n. 536, in Giur. it., 2003, p. 1995 ss.), ha
sostenuto la natura di “valore trasversale” dell’ambiente e la sua immanenza all’ordinamento costituzionale
anche prima della riforma, con ciò chiarendo significato e valenza dell’introduzione nel lessico
costituzionale del termine ambiente ad opera dell’art.117, 2° co., lett. s, cost.; afferma la Corte
“l’evoluzione legislativa e la giurisprudenza costituzionale portano a escludere che possa identificarsi una
‘materia’ in senso tecnico, qualificabile come ‘tutela dell’ambiente’, dal momento che non sembra
configurabile come sfera di competenza statale rigorosamente circoscritta e delimitata, giacché, al
contrario, essa investe e si intreccia inestricabilmente con altri interessi e competenze. In particolare, dalla
giurisprudenza della Corte antecedente alla nuova formulazione del titolo V della Costituzione è agevole
ricavare una configurazione dell’ambiente come ‘valore’ costituzionalmente protetto, che, in quanto tale,
delinea una sorta di materia ‘trasversale’, in ordine alla quale si manifestano competenze diverse” (Corte
cost., 26 luglio 2002, n. 407, cit.). Nella successiva pronuncia (Corte cost., 20 dicembre 2002, n. 536, cit..)
viene chiarito il rapporto tra testo originario e testo novellato dell’art. 117: “già prima della riforma del
titolo V della parte seconda della Costituzione, la protezione dell’ambiente aveva assunto una propria
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disposizioni già presenti nella Carta fondamentale per conseguire una maggiore tutela del
bene in esame49.
L’art. 9 Cost. che garantisce la tutela del paesaggio e del patrimonio
storico - artistico - nazionale50, già volto alla rappresentazione del paesaggio quale
semplice somma di alcuni beni giuridici determinati (ville, giardini di interesse artistico
o storico e complessi di cose immobili avente valore estetico e tradizionale) esprime oggi
una nozione più ampia non limitata alle bellezze naturali da conservare come aspetto e
forma del territorio statico51, bensì valore in costante evoluzione e mutamento. La tutela
paesaggistica è ora improntata a criteri di integrità e globalità che comportano una
autonoma consistenza (…). La natura di valore trasversale, idoneo a incidere anche su materie di
competenza di altri enti nella forma degli standards minimi di tutela, già ricavabile dagli artt. 9 e 32 della
Costituzione, trova ora conferma nella previsione contenuta nella lett. s, secondo comma, dell’art. 117
della Costituzione, che affida allo Stato il compito di garantire la tutela dell’ambiente e dell’ecosistema”.
Da allora, e con continuo rinvio a tali pronunce, la giurisprudenza costituzionale afferma che l’ambiente è
un “valore trasversale” di natura primaria più che una “materia” in senso stretto (Corte cost., 5 maggio
2006, n. 182, in Giur. it., 2008, p. 41; Corte cost., 31 marzo 2006, n. 133, in Foro it., 2007, I, c. 1076;
Corte cost., 10 febbraio 2006, n. 49, in Urbanistica e app., 2006, p. 409; Corte cost., 31 maggio 2005, n.
214, in Foro it., 2006, I, c. 1990; Corte cost., 24 marzo 2005, n. 135, in Foro it., 2006, I, c. 1990; Corte
cost., 18 marzo 2005, n. 108, in Urbanistica e app., 2005, p. 535; Corte cost., 22 luglio 2004, n. 259, in
Urbanistica e app., 2004, p. 1281; Corte cost., 28 giugno 2004, n. 196, in Riv. giur. urbanistica, 2005, p.
41). 49
A partire dagli anni settanta, infatti, gli artt. 2, 9 e 32 della Costituzione, sono stati posti a
fondamento della rilevanza sovraordinaria dell’ambiente, a prescindere dalla mancata previsione testuale
del bene in questione nella Carta Fondamentale. Si v. sul punto E. GIARDINI, La nozione giuridica di
ambiente e la sua configurazione nella disciplina costituzionale, in Arch. giur. CCXXV, 2005. p. 199 s. 50 F. MERUSI, Art. 9, in G. Branca (a cura di), Commentario della Costituzione. Principi
fondamentali, Bologna – Roma, 1975; S. LABRIOLA, Dal paesaggio all’ambiente un caso di
interpretazione evolutiva della norma costituzionale, in Dir. e soc., 1987, p 113-129. Si v. anche, a titolo
esemplificativo e non esaustivo, Corte Cost. n. 151/1986; Corte Cost. n. 417/1995 e Corte Cost. n. 49/2006. 51 Sul concetto di ambiente da individuarsi “con riferimento allo spazio che ci circonda, ai luoghi
nei quali l’uomo vive e svolge la sua attività” v. S. PATTI, Ambiente, in N. Irti, (a cura di ), Dizionario di
diritto privato, Milano 1981, p. 32. Per la nozione di paesaggio come forma dell’ambiente creata dall’uomo
cfr: A. PREDIERI, voce Paesaggio, in Enc. dir., XXXI, Milano, 1981, p. 503 ss., per il quale: “il
paesaggio... viene a coincidere con la forma e l’immagine dell’ambiente, come ambiente visibile, ma
inscindibile dal non visibile, come un conseguente riferimento di senso o di valori a quel complesso di
cose”(p. 507); nello stesso senso, più recentemente, v. M. FRANZONI, Il danno all’ambiente, cit., p. 1017,
in senso contrario, invece, G. TORREGROSSA, Profili della tutela dell’ambiente, in Riv. trim. dir. proc.
civ., 1980, p.1441; si segnala al riguardo la pronuncia della Corte cost., 28 giugno 2004, n. 196, in Riv.
giur. urbanistica, 2005, p. 41, ove si afferma che “non v'è dubbio che gli interessi coinvolti nel condono
edilizio, in particolare quelli relativi alla tutela del paesaggio come ‘forma del territorio e dell'ambiente’,
siano stati ripetutamente qualificati da questa Corte come ‘valori costituzionali primari’ (cfr., tra le molte,
le sentenze n. 151 del 1986, n. 359 e n. 94 del 1985)”. In dottrina, v.,ancora, P. MANTINI, Per una nozione
costituzionalmente rilevante di ambiente, cit., p. 207 s.; P. CARPENTIERI, La nozione giuridica di
paesaggio, in Riv. trim. dir. pubb., 2004, p. 363 s.; F. S. MARINI, Profili costituzionali della tutela dei beni
culturali, in Nuova rass. leg. dottrina giur., 1999, p. 633 s.; B. CARAVITA, Profili costituzionali della
tutela dell’ambiente in Italia, in Pol. dir., 1989, p. 569 ss.; A. PREDIERI, Urbanistica, tutela del paesaggio,
espropriazione, Milano, 1969; A. M. SANDULLI, La tutela del paesaggio nella Costituzione, Giuffrè,
1967, Vol. III, p. 893 s.
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riconsiderazione dell’intero territorio nazionale in ragione ed attuazione del valore
estetico culturale52.
Anche l’art. 32 Cost. concorre alla qualificazione del bene ambiente53,
posto che la giurisprudenza costituzionale, superando l’originario significato di tutela del
singolo, ha interpretato la disposizione come diritto di ciascuno a vivere in un ambiente
salubre54 colmando un vuoto di disciplina contrastante con la pregnanza del bene in
52 Cfr. Corte cost., 27 giugno 1986, n. 151, in Foro it., 1986, I, c. 2689 ss. e Corte cost., 15 novembre
1998, n. 1029, in Cons. Stato, 1988, II, p.2031 e in Foro Amm., 1988, p. 2739 con nota di Barbagallo; Riv.
giur. ambiente, 1989, p. 330;
Riv. Amm. della Repubblica Italiana, 1989, p. 230, secondo cui la tutela del paesaggio è contrassegnata da
una strettissima contiguità con la protezione della natura in quanto caratterizzata da interessi estetico-
culturali che, ancorché presenti nella materia disciplinata dall’art. 83 del d. P.R. n. 616/ 77, sono in
quest’ultimo caso intesi in una visione più ampia, basata primariamente sugli interessi ecologici e sulla
difesa dell’ambiente come bene unitario, pur se composto da molteplici aspetti per la vita naturale e umana.
In dottrina per un concetto di ambiente “progressivamente arricchito di valori anche storici ed estetico-
culturali” L. BIGLIAZZI GERI, Divagazioni su tutela dell’ambiente e uso della proprietà, in Riv. critica
dir. priv., 1987, p. 496 ss. Id., L’art. 18 della legge 349/1986 in relazione all’art. 2043 ss. c.c., in Il danno
ambientale con riferimento alla responsabilità civile, a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 75 ss.,
p. 75 ss.; F. GIAMPIETRO, La valutazione del danno all’ambiente: i primi passi dell’art. 18, legge
349/1986, in Foro amm., 1989, p. 2958; Id., Il danno all’ambiente innanzi alla Corte costituzionale, in
Foro it., 1988 I, c. 698; P. TRIMARCHI, Istituzioni di diritto privato, Giuffrè, Milano, 2007, p. 115, per
il quale ambiente è “la situazione generale dello spazio in cui si svolge la vita di tutti, con le sue
caratteristiche di salubrità, il suo equilibrio ecologico e i pregi estetici e i valori culturali del paesaggio”. 53 R. FERRARA, Salute (diritto alla), in Digesto pubbl., vol. XIII, Torino, 1997; M. LUCIANI, Il
diritto Costituzionale alla salute, in Dir. soc., 1980, pp. 769 ss.; B. CARAVITA, La disciplina
Costituzionale della salute, in Dir. soc., 1984, pp. 21 ss.; V. F. MASTROPAOLO, Il risarcimento del danno
alla salute, Jovene, Napoli, 1983. 54 Si v. ex plurimis: Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, in Foro it., 1988, I, cc. 705-706 ss secondo
cui l’ambiente è protetto come elemento costitutivo e determinativo della qualità della vita, da intendersi
non in modo astratto ma come esigenza concreta di un habitat nel quale l’uomo vive ed agisce e dal quale
la collettività non può prescindere; Corte Cass. S.U. n. 5172/1979 in base alla quale la tutela garantita
dall’art. 32 Cost. non si limita all’incolumità fisica dell’uomo preso come singola unità nella sua abitazione,
ma come effettivo partecipante alla comunità familiare, abitativa e di lavoro e tutte quelle in cui si svolge
la sua personalità. Ne consegue che la tutela si estende alla vita associata dell’uomo nelle varie aggregazioni
in cui si articola l’attività umana, in modo da assumere non solo un contenuto di socialità e di sicurezza ma
di vero e proprio diritto ad un ambiente salubre; tale diritto ha “la strumentazione giuridica del diritto
soggettivo, anzi del diritto assoluto”, (Cass., Sez. un., 6 ottobre 1979, n. 5172, cit., c. 2305), il diritto
all’ambiente tuttavia non assume autonomia ma viene comunque riferito alla salute; appaiono significative
al riguardo le riflessioni della dottrina (P. Perlingieri, Il diritto alla salute quale diritto della personalità, in
Rass. dir. civ., 1982, p. 1020 ss., che sottolinea come la salute sia “nozione esprimibile non soltanto dal
punto di vista strettamente sanitario, ma anche da quello comportamentale, sociale e ambientale” (p. 1022);
tale interesse è “indissolubile da quello del libero sviluppo della persona e si può atteggiare in forme diverse,
assumendo rilevanza e configurazioni diverse, secondo se inteso come diritto al servizio sanitario, alla
salubrità dell’ambiente, all’integrità fisica o a quella mentale” (p. 1025). L’approdo delle Sezioni unite in
tema di diritto all’ambiente salubre rappresenta una tappa significativa di un iter giurisprudenziale che solo
qualche mese prima aveva portato le stesse Sezioni Unite della Cassazione (Cass., Sez. un., 9 marzo 1979,
n. 1463, in Foro it., 1979, I, c. 939 ss.) a riconoscere in capo al singolo l’esistenza di una situazione
soggettiva di interesse alla fruizione dell’ambiente “connessa al particolare legame che, nei casi concreti
viene a stabilirsi tra l’individuo e l’ambiente che lo circonda (...) può assumere la configurazione del diritto
soggettivo quando sia collegato alla disponibilità esclusiva di un bene, la cui conservazione, nella sua
attuale potenzialità di recare utilità al soggetto, sia inscindibile dalla conservazione delle condizioni
ambientali”: Cass., Sez. un., 9 marzo 1979, n. 1463, cit. ,c. 943. In dottrina, per lo stretto collegamento tra
ambiente e salute, v., oltre alla ricordata posizione di P. Perlingieri, v., anche, A. CORASANITI, Interessi
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questione55. Tale evoluzione pretoria ci consegna una definizione di ambiente quale bene
immateriale unitario, protetto come elemento determinativo della qualità della vita alla
cui base c’è l’esigenza di vivere in un habitat salubre che non limiti la libertà d’azione
dell’uomo né arrechi ad esso pregiudizio nello sviluppo della sua personalità56.
3. Principi di diritto ambientale
Un primo delineato concetto unitario di ambiente va ascritto alla
giurisprudenza costituzionale57, alla quale si deve anche l’individuazione dei principi58
che regolano la materia tra i quali, primo ad emergere sullo sfondo del più ampio contesto
diffusi, in Dizionario del diritto privato, a cura di Natalino Irti, 1, Diritto civile, Giuffrè, Milano, 1980, p.
442, per il quale la tutela ambientale è volta alla preservazione “delle condizioni naturali d’insieme
(equilibrio ecologico) che secondo le conoscenze in un dato momento storico si ritengono indispensabili
alla salute dell’uomo, intesa questa a sua volta come benessere, cioè come modo essenziale di essere
dell’uomo sotto l’aspetto biologico e psichico, sempre secondo le conoscenze (o le valutazioni) di un dato
momento storico”; R. TOMMASINI, Danno ambientale e danno alla salute, in Il danno ambientale con
riferimento alla responsabilità civile, a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 139 ss.) per il quale il
concetto di ambiente comprende necessariamente la salute. 55
Si v. Cass. civ. n. 5172/1979 in Giur. it., 1980, I, 1, p. 859 in cui i giudici di legittimità specificano
che l’art. 32 Cost. si configura come diritto fondamentale dell’individuo protetto in via primaria, in maniera
incondizionata ed assoluta come modo d’essere della persona umana. Il collegamento tra l’art. 32 e l’art. 2
Cost. attribuisce al diritto alla salute un contenuto di socialità e di sicurezza tale che esso si presenta non
solo come mero diritto alla vita e all’incolumità fisica, ma come vero e proprio diritto all’ambiente salubre
che neppure la pubblica amministrazione può sacrificare o comprimere in ragione della salute pubblica; si
v. anche S. GRASSI, Costituzione e tutela dell’ambiente, cit., p. 389 s.; A. ALBAMONTE, Il diritto
all’ambiente salubre: tecniche di tutela, in Giust. civ., 1980 II p. 479 s.; in senso opposto si v. anche G.
TORREGROSSA, Profili di tutela dell’ambiente, cit. 56
Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., cc. 705-706.
57 Cfr. ex plurimis: Corte Cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., cc. 705-706 nella quale si definisce
l’ambiente come valore assoluto primario ed unitario, se pur composto da molteplici aspetti rilevanti per la
vita naturale ed umana, bene immateriale unitario, anche se formato da varie componenti, ciascuna delle
quali può anche costituire, isolatamente e separatamente, oggetto di cura e tutela; Corte cost., 28 maggio
1987, n. 210, in Foro it., 1988, I, c. 329 ss; Corte Cost. n. 1029/1988; Corte Cost n. 1031/1988; Corte Cost.
n. 67/1992; Corte Cost. n. 318/1994. In senso opposto si v. M.S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi
aspetti giuridici, cit., il quale adotta un approccio settoriale nella considerazione giuridica di ambiente,
sostenendo che non esiste un interesse ecologico unitario, ma vi sono molteplici principi e criteri nel campo
della tutela del diritto ambientale. 58
Si v. sul punto M. CECCHETTI, Principi costituzionali per la tutela dell’ambiente, cit., il quale
compie una ricognizione dei principi in materia di ambiente suddividendoli in tre categorie: la prima
raccoglie i principi che identificano i caratteri fondamentali dell’ambiente come oggetto di tutela giuridica
(il principio dell’antropocentrismo, il principio di unitarietà, il principio di primarietà e il principio di
economicità, che comprende il principio “chi inquina paga”); la seconda comprende i principi inerenti alla
tutela dell’ambiente, che indicano le esigenze fondamentali cui deve essere orientata la concreta
predisposizione delle azioni di tutela (il principio dell’azione preventiva ed il principio di precauzione, il
principio del bilanciamento, con i due corollari della gradualità e della dinamicità delle misure di tutela,
nonché il principio dell’informazione ambientale); nella terza, infine, i principi sul ruolo dei soggetti
pubblici e privati nella tutela dell’ambiente (il principio di corresponsabilità o della condivisione delle
responsabilità, il principio di cooperazione e i principi di sussidiarietà, dell’azione unitaria del livello
territoriale superiore, della tutela più rigorosa del livello territoriale inferiore).
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internazionale, è l’antropocentrismo59 volto a significare come
la normativa sulla tutela dell’ambiente sia ispirata all’incessante ricerca di equilibrio tra
la concezione ecocentrica e quella antropocentrica da intendere, quest’ultima, non come
centralità dell’uomo sull’ambiente, ma come sistema imperniato su una dialettica naturale
il cui risultato non sia la manipolazione dell’ecosistema quanto, piuttosto, la sintesi della
comunione di vita quotidiana tra l’essere umano e ciò che lo circonda60.
In quest’ottica l’approccio antropocentrico ai problemi di diritto
ambientale non concerne una contrapposizione utilitaristica tra uomo ed ecosistema bensì
una relazione tra gli stessi in cui il primo, in ragione del radicamento nel mondo in cui
vive, è responsabile dell’equilibrio con il suo habitat61.
Anche il principio di globalità o unitarietà, caratterizza il diritto
dell’ambiente; sul punto a lungo vi è stata contrapposizione tra coloro che lo ritenevano
un bene giuridico unitario62 e chi, al contrario, gli attribuiva una natura frazionata63.
Tuttavia da tempo si è approdati alla prima formulazione, secondo cui il diritto
dell’ambiente non mira a proteggere in maniera distinta singoli fattori (aria, acqua,
59
Principio che la Corte Costituzionale ritiene collegato inscindibilmente a quello di sviluppo
sostenibile, con ciò prendendo coscienza dell’importanza delle risorse ambientali necessarie alla
conservazione della vita umana, come affermato dal Principio 1 della Dichiarazione di Rio su Ambiente e
sviluppo. Si v. inoltre V. S. GRASSI, Principi costituzionali e comunitari per la tutela dell'ambiente, in
Scritti in onore di Alberto Predieri, Milano, 1996; P. DELL’ANNO, Principi del diritto ambientale europeo
e nazionale, Milano, 2004, p. 75 ss. La formulazione dell’art. 37 della Carta di Nizza rafforza il richiamo
al principio dello “sviluppo sostenibile” (l’integrazione deve essere garantita “conformemente” a tale
principio; laddove l’art. 6 del Trattato prevede l’integrazione solo “nella prospettiva di promuovere” la
sostenibilità). 60 S. GRASSI, Costituzioni e tutela dell’ambiente, cit. 61 Si v. Corte Cost. n 210/1987, cit., in cui i giudici della Consulta evidenziano come l’ambiente
comprenda “in definitiva la persona umana in tutte le sue estrinsecazioni”, cosicché emerge un
“riconoscimento specifico alla salvaguardia dell’ambiente come diritto fondamentale della persona ed
interesse fondamentale della collettività”; Corte Cost. n. 641/1987 ancora più esplicita nell’affermare che
l’ambiente è protetto come elemento determinativo della qualità della vita. La sua protezione non concerne
astratte finalità naturalistiche o estetizzanti, ma esprime l’esigenza di un habitat naturale nel quale l’uomo
vive e agisce, necessario alla collettività.
62 In questo senso B. CARAVITA, Diritto dell’ambiente, Bologna, 2005, p. 17 ss.; M. CATENACCI,
La tutela penale dell’ambiente, Padova, 1996, p. 2 s.; L. RAMACCI, I reati ambientali e il principio di
offensività, in Giur. mer., 4/2003, p. 820 s.; L. SIRACUSA, La tutela penale dell’ambiente: bene giuridico
e tecniche di incriminazione, Milano, 2007 p. 8 e s.
63 Cfr. M. S. M. S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici, cit., p. 15 ss. Sul
concetto giuridico di ambiente si ricordano inoltre: P. D’AMELIO, Tutela dell’ambiente, cit., 1 ss.; A.
GUSTAPANE, voce Tutela ambiente (diritto interno), in Enc. dir., XLV, Milano, 1992, p. 413 ss.; F.
FONDERICO, La tutela dell’ambiente, in S. Cassese (a cura di), Trattato di diritto amministrativo, Vol. V,
Diritto amministrativo speciale, 2003, 2015 ss.; A. MONTAGNA, Ambiente (dir. pen.), in A. Cassese (a
cura di), Dizionario di diritto pubblico, Milano, 2006, p. 229 ss.; R. FERRARA, voce Ambiente, cit.; F.
GIUNTA, voce Ambiente (dir. pen.), in S. Patti (a cura di), Il diritto, cit., Vol. I, 280 ss.
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paesaggio ecc.), ma persegue una tutela integrale e complessiva dell’ecosistema64. Sulla
stessa lunghezza d’onda si è schierata da tempo la giurisprudenza del Consiglio di Stato65
che ha fatto proprio l’orientamento per il quale non si può ritenere l’intervento del potere
pubblico autonomo e distinto per ogni singolo settore afferente all’ambiente, dovendo
questo assumere un ruolo unificante nelle modalità e, in particolare, nello scopo da
raggiungere recependo in questo modo le coordinate dettate dalla Corte Costituzionale66
Il principio di prevenzione o precauzione67, che anche ispira il diritto
ambientale, traccia concreti interventi ratione temporis, al fine di evitare la
concretizzazione irreversibile dell’evento lesivo sul bene ambientale68.
La centralità del momento preventivo dell’azione evidenzia come il
modello generale, in materia di politica ambientale, imponga di preservare, piuttosto che
ripristinare, equilibri compromessi, cosicché il principio di precauzione giustifica e anzi
fornisce la copertura giuridica a risoluzioni legislative che, per quanto improntate ad un
giudizio di ragionevolezza69 e proporzionalità70, possano risultare limitativi di diritti
64 A. PREDIERI, Paesaggio, cit., p. 511 ss. 65 “La tutela dell'ambiente, lungi dal costituire un autonomo settore d'intervento dei pubblici poteri,
assume il ruolo di momento unificante e finalizzante di distinte tutele giuridiche predisposta a favore dei
beni della vita che nell'ambiente si collocano”: Cons. Stato, sez. IV, 11 aprile 1991, n 257, in Cons. Stato,
1991, I, p.605; in Foro Amm., 1991, p.1023; in Giut. Civ., 1991, I, p.2512. 66 Ex plurimis: Corte Cost. n 641/1987, c. 705, dove si afferma che la costituzione del Ministero
dell’ambiente ha lo scopo di realizzare “il coordinamento e la riconduzione ad unità delle azioni politico-
amministrative finalizzate alla tutela dell’ambiente”; Corte Cost. n. 800/1988 in cui la Corte fa riferimento
a “esigenze di carattere unitario connesse con l’interesse generale indivisibile ad una politica organica di
risanamento dell’ambiente”; Corte Cost. n. 1029/1988 che definisce l’ambiente come “bene unitario pure
se composto da molteplici aspetti rilevanti per la vita naturale e umana”. 67 C. M. GRILLO, Radiazioni elettromagnetiche (nel dubbio difendiamoci), in Riv. amb., 2002, pp.
77 ss.; M. TALLACCHINI, Ambiente e diritto della scienza incerta, in Grassi, Cecchetti, Andronio (a cura
di), Ambiente e diritto, Vol. I, pp. 57 ss.; S. GRASSI, Prime osservazioni sul principio di precauzione come
norma di diritto positivo, in Dir. gest. amb., 2001, pp. 37 ss.; E. D. COSIMO, Il principio di precauzione
fra Stati membri e Unione Europea, in Dir. pubb. comp. Europ., 2006, pp. 1121 ss.; L. BRUTTI, Principio
di precauzione, Codice dell'ambiente e giurisprudenza delle Corti comunitarie e della Corte Costituzionale
in Riv. giur. ambiente, 2006, pp. 809 ss. 68 Si v. Corte. Cost. n. 142/1972, in cui la Corte afferma che la tutela del suolo e la tutela
idrogeologica esigono interventi volti a prevenire danni provenienti da eventi naturali o da opere dell’uomo,
capaci di comprometterne l’integrità; Corte Cost n. 72/1977, arresto dal quale emerge con nitidezza il
principio di precauzione quando la Corte afferma che lo svolgimento di una politica ecologica non sarebbe
proficua senza interventi idonei a prevenire catastrofi naturali o derivanti dall’attività dell’uomo; Corte
Cost. n. 96/1994, ove si sottolinea la necessità di agevolare un’efficace vigilanza e controllo sull’intero
processo di smaltimento dei rifiuti, anche mediante la preventiva individuazione di soggetti che provvedono
ad una o più fasi dell’attività di smaltimento. 69
R. BIN, Diritti e argomenti: il bilanciamento degli interessi nella giurisprudenza costituzionale,
Giuffrè, Milano, 1992; G. SCACCIA, Controllo di ragionevolezza delle leggi e applicazione della
Costituzione, in Nova juris interpretatio, Roma 2007, p 286 s; G. ZAGREBELSKY, Il diritto mite, Einaudi,
Torino, 1992, p. 203 s. 70 Cfr. Corte Cost. n. 116/2006 in tema di OGM, in cui i giudici hanno avuto modo di prendere in
esame un bilanciamento tra principi contrastanti: da un lato la libertà di iniziativa economica e dall'altro la
coppia ambiente – salute, in ciò rilevando il principio di precauzione quale limite della libertà di iniziativa
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Costituzionali come la libertà personale, di circolazione, di iniziativa economica se
finalizzati alla tutela del diritto dell’ambiente.
Strettamente correlato al principio di prevenzione è il concetto di
sviluppo sostenibile71, obiettivo da perseguire a fronte della consapevolezza che la
rimissione in pristino mediante l’eliminazione degli eventi dannosi all’ambiente, talvolta,
può essere tecnicamente molto più complessa, se non addirittura impossibile e molto
gravosa, rispetto al mantenimento dello status quo.
Senza dubbio apprezzabile è l’elaborazione della giurisprudenza
costituzionale dei principi di primarietà72 e bilanciamento73, la cui distinzione non ne
elide il collegamento, poiché il primo presuppone che la tutela dell’ambiente sia collocata
tra i principi fondamentali della Costituzione con conseguente vincolo per il legislatore e
l’interprete, di vagliare e decidere quali siano gli interessi prevalenti ai fini della soluzione
della contrapposizione74.
economica e soglia oltre la quale si mette in pericolo l'ambiente e la salute. La Corte considera tale principio
quale parametro per il giudizio di bilanciamento al fine di perimetrare la compressione di uno dei valori
contrapposti ed individuare il punto di equilibrio tra di loro. Si v. anche G. MASTRODONATO, I principi
di proporzionalità e precauzione nella giurisprudenza della Corte di giustizia verso l'effettività della tutela
del cittadino (nota a Corte giust. Ce, sez. IV, 8 luglio 2010 n. C-343/09), in Riv. e giur. Agr., 2011, 183, pp.
3 ss. 71 F. SALVIA, Ambiente e sviluppo sostenibile, cit.; V. PEPE, Lo sviluppo sostenibile, cit., pp. 209
ss.; G. GRASSO, Solidarietà ambientale e sviluppo sostenibile in Pol. Dir., 2003, pp. 581 ss.; A.
MARZANATI, Lo sviluppo sostenibile, in AA.VV., Studi sulla costituzione europea. Percorsi e ipotesi, (a
cura di) A. Lucarelli – A. Patroni Griffi, Napoli, 2004, pp. 139 ss. 72
La primarietà consiste nella necessaria considerazione del valore ambientale all’interno di tutti i
processi decisionali: v., S. GRASSI, La carta dei diritti dell’Unione Europea ed il principio di integrazione
per la tutela dell’ambiente, in Diritti, nuove tecnologie e trasformazioni sociali, Scritti in memoria di Paolo
Barile, Padova, 2003, p. 393 s.; sul punto si v. Corte Cost., 7 novembre 2007, n. 367, in Riv. giur. ambiente,
con nota di F. DI DIO, Lo Stato protagonista nella tutela del paesaggio: la Consulta avvia l'ultima riforma
del Codice dei beni culturali e del paesaggio; in Giur. cost., 2007, 4075; Cfr. anche Corte Cost. n 46/2001
in cui viene precisato che la tutela del paesaggio rientra tra i principi fondamentali della Costituzione come
forma di tutela della persona umana nella sua vita, sicurezza e sanità, con riferimento anche alle generazioni
future, in relazione al valore estetico - culturale assunto dall’ordinamento quale valore insuscettibile di
essere subordinato a qualsiasi altro.
73 Cfr. Corte Cost. 127/1990, ove il rapporto tra gli interessi primari dell’ambiente (in quel caso la
tutela della salute) e gli interessi dello sviluppo economico non può superare i limiti di tollerabilità per la
salute; si v. anche R. ROMBOLI, Il significato essenziale della motivazione per le decisioni della Corte
costituzionale in tema di diritti di libertà pronunciate a seguito di bilanciamento tra valori costituzionali
contrapposti, in V. Angiolini (a cura di), Lib. giur. cost., Torino, 1992 p. 206 s.; A. CERRI, Appunti sul
concorso conflittuale di diverse norme della Costituzione, in Giur. cost., 1976, pp. 272 s.; N.
BOBBIO, L’età dei diritti, Einaudi, Torino, 1990, p. 11 s.
74 Il predetto giudizio è particolarmente difficile poiché il perseguimento dell’enunciata tutela
richiede un doppio ordine di bilanciamento, verso l’interno e verso l’esterno; nel primo caso, come si è
evidenziato, l’ambiente è un bene giuridico unitario, frutto della sintesi di molteplici interessi tutti di natura
ambientale che dovranno essere considerati nella loro globalità al momento della identificazione delle
misure più efficaci; verso l’esterno, invece, il bilanciamento si riferisce al rapporto con gli altri beni di
rango costituzionale. Per un approfondimento sul punto si v. M. CECCHETTI, Principi costituzionali per
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Anche alla luce del principio di precauzione, quello di bilanciamento
non si esaurisce nella mera ricerca dell’interesse prevalente ma assurge a strumento utile
per determinare in che misura i diritti in contrasto con l’ambiente possano essere
compressi nella tutela dell’equilibrio dell’ecosistema75, dal che il bilanciamento tra diritti
costituzionalmente rilevanti costituisce il presupposto logico di ogni intervento
normativo, provvedimento amministrativo ovvero statuizione giurisdizionale, per
l’intrinseca capacità dell'ecosistema di entrare in contatto con altri beni giuridici
fondamentali.
Valga considerare, altresì, il principio di responsabilità76 per danni
ambientali e minacce imminenti di danni risultanti da attività professionali ove sia
rinvenibile un nesso di causalità tra il danno e l'attività in questione77. Il principio è posto
in stretta correlazione dalla direttiva 2004/3578 con quello del “chi inquina paga”79, ed ha
prodotto una distinzione tra attività pericolose o potenzialmente pericolose
(specificatamente indicate) e quelle che non sono considerate tali in quanto non
la tutela dell’ambiente, cit. In giurisprudenza, cfr. Corte cost., 24 luglio 2009, n. 250, in
www.cortecostituzionale.it (sito uff. Corte cost.), che, con riferimento all’attività d’impresa, ha affermato:
“l’esigenza di tutelare l'affidamento dell'impresa circa la stabilità delle condizioni fissate
dall'autorizzazione è certamente recessiva a fronte di un’eventuale compromissione, se del caso indotta dal
mutamento della situazione ambientale, del limite «assoluto e indefettibile rappresentato dalla tollerabilità
per la tutela della salute umana e dell'ambiente in cui l'uomo vive” (sentenza n. 127 del 1990). Essa, inoltre,
non può prevalere sul perseguimento di una più efficace tutela di tali superiori valori, ove la tecnologia
offra soluzioni i cui costi non siano sproporzionati rispetto al vantaggio ottenibile: un certo grado di
flessibilità del regime di esercizio dell'impianto, orientato verso tale direzione, è dunque connaturato alla
particolare rilevanza costituzionale del bene giuridico che, diversamente, ne potrebbe venire offeso, nonché
alla natura inevitabilmente, e spesso imprevedibilmente, mutevole del contesto ambientale di riferimento”.
75 Si afferma, cioè, che la tutela dell’ambiente deve essere costantemente esaminata in relazione agli
altri diritti costituzionali con cui entra in contatto, senza che ciò comporti necessariamente un obbligo
assoluto di non facere, ma piuttosto un’attenta riflessione sulla disciplina generale da applicare e sulle
singole misure di prevenzione da attuare in relazione alle istanze di fondo del sistema e alle necessità legate
alla fruizione ed allo sfruttamento dell’ambiente. Il divieto assoluto di porre in essere qualsiasi tipo di
condotta rappresenta quindi l’extrema ratio, utilizzabile quando non vi sia altro modo per tutelare
efficacemente il bene ambientale.
76 A fondamento del quale c’è l’idea che si possa attribuire un valore economico al bene ambiente,
prendendo le mosse dall’idea che ogni danno all’equilibrio ambientale ad opera dell’uomo possa essere
ripristinato o convertito in termini economici, ancorché gravosi, che ricadono sul danneggiante.
77 Cfr. Direttiva 2004/35 CE del Parlamento Europeo e del Consiglio, del 21 aprile 2004, in materia
di prevenzione e riparazione del danno all'ambiente. 78
B. POZZO, La proposta di nuova Direttiva sulla prevenzione e il risarcimento del danno
all’ambiente, cit., p. 11 ss..
79 Principio inserito nell’art. 174 del Trattato CE, come fattore autonomo e distinto dai principi di
prevenzione e correzione, formulato per la prima volta nella OECD Recomendation of the council n. 128,
26 Maggio 1972 e successivamente ripreso al punto 16 della Dichiarazione di Rio de Janeiro del Giugno
1972.
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esplicitamente elencate nel correlato allegato III. Per le prime80 l'operatore può essere
considerato responsabile anche se non ha commesso errori e senza per ciò versare in
colpa, in base alla sola sussistenza del nesso causale tra la condotta e l'evento dannoso,
mentre per le seconde81 sarà soggetto a tale disciplina solo quando avrà colposamente
prodotto il danno, salvo che si configurino particolari situazioni di esclusione della
responsabilità ambientale82. Nell’impianto normativo italiano il legislatore, al momento
della redazione del d. lgs. n. 152/2006, ha dovuto fare i conti con una normativa specifica
e settoriale già vigente, stabilendo un regime generale imperniato su una responsabilità
per colpa83. Tale impianto ha subito più di una modifica a seguito della procedura di
infrazione avviata proprio per la non corretta trasposizione della direttiva sotto il profilo
dei criteri di imputazione della responsabilità. Più nel dettaglio, però, il sistema ci
consegna un quadro multiforme84; dalle norme del codice si evince, infatti, che se da un
lato - in una fase iniziale, e sino all’esito della procedura d’infrazione - non è stato
accantonato il principio della responsabilità per colpa85, dall’altro la disciplina di
80
Si tratta in particolare di attività agricole o industriali soggette ad un’autorizzazione ai sensi della
direttiva sulla prevenzione e riduzione integrate dell’inquinamento, di attività che comportano lo scarico
di metalli pesanti nell’acqua o nell’aria, di impianti che producono sostanze chimiche pericolose, di attività
di gestione dei rifiuti, nonché attività concernenti gli organismi e i microrganismi geneticamente modificati.
81 Si fa riferimento a tutte quelle estranee all’allegato III della direttiva, più nel dettaglio quando un
danno o una minaccia imminente di danno siano causati a specie e habitat naturali protetti dalla legislazione
comunitaria.
82 Ciò in caso di danno o minaccia imminente di danno derivante da un conflitto armato, una
catastrofe naturale o un'attività prevista dal Trattato che istituisce la Comunità europea dell'energia atomica,
da un'attività di difesa nazionale o di sicurezza internazionale, nonché un'attività che rientra in alcune
convenzioni internazionali elencate all'allegato IV.
83 Non è stata prevista una differenziazione di criteri di imputazione della responsabilità in base al
tipo di operatore, a seconda cioè che venga o meno esercitata un’attività tale da comportare un rischio per
la salute umana e per l’ambiente e al contempo non è stato stilato un elenco di attività pericolose in
difformità alla normativa comunitaria. La mancata introduzione di un modello di responsabilità oggettiva
per le attività rischiose previste all’allegato III della direttiva comunitaria ha formato oggetto di un ricorso
di infrazione da parte della Commissione Europea n. 4679/2007 per inesatta trasposizione della direttiva e,
nonostante l’intervento del legislatore con l’art. 5 bis del d. l. n. 135/2009 (intervenuto a riscrivere il titolo
VI del d. lgs. 152/2006), la responsabilità per colpa ha continuato a costituire il modello su cui poggia la
tutela dell’ambiente fino alle attuali modifiche apportate dalla Legge 6 agosto 2013, n. 97 - Legge europea
(sul punto, e per le modifiche al sistema apportate a seguito della procedura di infrazione, v. §6).
84 Si consideri il titolo III della parte sesta del decreto legislativo che prevedeva, prima delle
modifiche apportate dalla Legge 97/2013, una tutela risarcitoria di tipo civilistico (che va dagli artt. 311 a
318) che si integrava con un sistema di misure a carattere preventivo e ripristinatorio disciplinato dal titolo
II (che va dagli artt. 304 a 310) ponendo non pochi problemi di coordinamento fra le due forme di tutela.
85 Si v. l’art 311 del d. lgs. n. 152/2006 che ricalcava in parte le scelte fatte con la legge n. 349/1986
sancendo un generale principio di responsabilità per colpa.
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prevenzione e ripristino, prevista dal titolo II86, ha recepito la normativa comunitaria
delineando un criterio di imputazione oggettivo87 così come può evincersi anche dall’art.
308, nella parte in cui non limita la prova liberatoria alla dimostrazione dell’assenza di
colpa ma la condiziona all’eventuale riconducibilità dell’evento in capo ad un terzo
oppure al rispetto di un ordine pubblico ovvero, infine, con riferimento alla minaccia di
danno ambientale, quando l’operatore è costretto a provare la sussistenza di altre
condizioni diverse dalla sua condotta colposa88.
4. Ambiente paesaggio e governo del territorio
La tutela del bene ambiente è in stretta correlazione alle variegate
attività di pianificazione urbanistica e disciplina del paesaggio89, fino alla localizzazione
di opere pubbliche. Di conseguenza, materie come l’urbanistica hanno risentito, già a
cominciare dal periodo successivo alla seconda guerra mondiale, della rilevanza che
l’ambiente ha acquistato nel nostro ordinamento90. A riprova si consideri che la Corte
Costituzionale, nell’estendere la tutela dei beni culturali a quella del paesaggio, ha
precisato che la stessa costituisce compito della Repubblica nelle sue diverse
articolazioni: Regioni ed Enti Locali91. In linea il legislatore ha previsto la possibilità per
le Regioni di adottare “piani urbanistico-territoriali con specifica considerazione dei
86
Ci si riferisce alla parte VI del Codice dell’ambiente intitolata prevenzione e ripristino ambientale
che recepisce criteri di responsabilità oggettiva così come indicati nella direttiva comunitaria recepita dal
legislatore del 2006 nel codice dell’ambiente.
87 Nell’ipotesi in cui un danno ambientale ancora non si sia verificato ma esista una minaccia
imminente si ha l’obbligo per l’operatore di adottare a proprie spese le necessarie misure di prevenzione e
messa in sicurezza, intendendosi per operatore colui che esercita o controlla l’attività, e responsabile in via
solidale il soggetto (ex art. 313, comma terzo) nel cui effettivo interesse il comportamento fonte del danno
è stato tenuto o che ha tratto obiettivamente vantaggio dal fatto dannoso.
88 Ci si riferisce all’art. 308 del d. lgs. n. 152/2006 nella parte in cui richiede la prova del rispetto
delle autorizzazioni ambientali o l’inesistenza di un rischio conosciuto o conoscibile relativo ad
un’emissione, a un’attività o modo di utilizzo di un prodotto.
89 M. CAMMELLI, (a cura di) Il codice dei beni culturali e del paesaggio - Commento al decreto
legislativo 22 gennaio 2004, n. 42, Il Mulino, Bologna, 2004. 90 M. S. GIANNINI, “Ambiente”: saggio sui diversi suoi aspetti giuridici, cit., pp. 15 ss. 91
Si v. Corte Cost n. 183/1983 in cui i giudici delle leggi ritengono non sia configurabile una
competenza statale rigorosamente circoscritta e delimitata giacché il paesaggio, e in senso più ampio
l’ambiente, si intreccia inestricabilmente con altri interessi e competenze; si consideri, anche, Corte Cost.
n. 536/2002 che ribadisce nuovamente la valenza trasversale dell’ambiente e l’ammissibilità in capo alle
Regioni di competenze legislative su materie come il governo del territorio e la tutela della salute per le
quali il valore ambiente assume rilievo.
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valori paesistici ed ambientali92 anche se un decisivo avvicinamento delle materie, dal
punto di vista della distribuzione delle funzioni amministrative, si è avuto con il decreto
legislativo 22 gennaio 2004, n. 42 noto come “codice Urbani”93.
Si deve in ogni caso tener presente che le due discipline, quella
ambientale e del governo del territorio, pur se contigue, sono da ritenersi distinte ed
operanti mediante istituti giuridici ed effetti diversi94. La ratio della differente
attribuzione di competenza è da rinvenirsi nella vis expansiva della materia ambientale in
grado di investire tutti settori nei quali il legislatore ha il compito di assicurare, sull’intero
territorio nazionale, il godimento di prestazioni garantite e standards minimi di
soddisfacimento95, tutelando e perseguendo un interesse che non esclude la sussistenza in
capo alle Regioni di competenze legislative se costituzionalmente rilevanti. In definitiva
l'ambiente è un valore trasversale96 idoneo ad incidere anche su ambiti settoriali attribuiti
ad altri enti, eguale, nei livelli minimi di tutela non derogabili in peius, in tutte le
articolazioni territoriali senza, tuttavia, escludere che le leggi regionali emanate
nell’esercizio della potestà concorrente, prevedano gradi di salvaguardia più elevati97.
92 Ci si riferisce all’art. 1-bis del d.l. 27 giugno 1985, n. 312 convertito in legge 8 agosto 1985, n.
4. 93
Si v. art. 143 del d. lgs. n. 42/2004 in cui si fa riferimento ai piani come strumenti obbligatori e in
grado di definire trasformazioni compatibili con i valori paesaggistici, le azioni di recupero e
riqualificazione degli immobili e aree sottoposti a tutela, nonché gli interventi di valorizzazione del
paesaggio anche in relazione alle prospettive di sviluppo sostenibile.
94 Si prenda in considerazione l’art. 117 della Costituzione in cui “tutela dell’ambiente,
dell’ecosistema e dei beni culturali” sono oggetto di legislazione esclusiva dello Stato in base alla lettera
s), mentre a tenore del comma seguente il “governo del territorio” spetta alla legislazione concorrente tra
Stato e Regioni.
95 Si v. Corte Cost. n. 222/2003; Corte Cost. n. 407/2002; Corte Cost n. 507/2000; Corte Cost. n.
382/1999 e anche Corte Cost. n 282/2002 in cui si specifica che i livelli essenziali delle prestazioni
concernenti diritti civili e sociali non costituirebbero una “materia” in senso stretto ma “una competenza
del legislatore statale idonea ad investire tutte le materie, rispetto alle quali il legislatore deve assicurare il
godimento di prestazioni garantite a tutti i cittadini sul territorio, senza che la legislazione regionale possa
limitarle o condizionarle”. 96
Per un approfondimento del concetto di “materia trasversale” si v. V. MOLASCHI, Sulla
“determinazione dei livelli essenziali delle prestazioni”: riflessioni sulla vis espansiva di una “materia”
in San. pubb e priv., 2003, p. 523 s., G. ARCONZO, Le materie trasversali nella giurisprudenza della Corte
costituzionale dopo la riforma del Titolo V, in N. Zanon, A. Concaro (a cura di), L’incerto federalismo,
Milano, 2005, p. 181 s.
97 Si confronti Corte Cost. n. 222/2003 e Corte Cost. n. 307/2003: in entrambe si evidenzia che lo
Stato conserva il potere di dettare standards di protezione uniformi validi in tutte le Regioni e non
derogabili ma ciò non esclude affatto la possibilità che leggi regionali, emanate nell'esercizio della potestà
concorrente o di quella residuale, possano assumere fra i propri scopi anche finalità di tutela ambientale.
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Per quel che riguarda il paesaggio98 l’art. 117 Cost., nella rinnovata
formulazione, attribuisce alla potestà legislativa esclusiva dello Stato la “tutela
dell’ambiente, dell’ecosistema e dei beni culturali” e inserisce, nell’elenco delle materie
di competenza, la “valorizzazione dei beni culturali e ambientali”, ma non menziona il
paesaggio, benché espressamente enunciato nell’art. 9 Cost., inducendo ad una riflessione
sulla sua nozione che, come è già stato detto, ha subito nel tempo profondi mutamenti. La
materia è stata disciplinata dalla legge 29 giugno 1939 n. 1497 “sulla protezione delle
bellezze naturali”, per la quale il paesaggio era essenzialmente caratterizzato dal suo
pregio estetico99 e la protezione del patrimonio della collettività affidata all’imposizione
di un controllo preventivo di ogni intervento sul bene vincolato, che potesse “recare
pregiudizio a quel suo esteriore aspetto”100 protetto dalla legge opportunamente
predisposta.
L’individuazione degli immobili vincolati doveva avvenire con
apposito procedimento diretto ad accertare di volta in volta l’esistenza del valore da
difendere. Con la legge 8 agosto 1985, n. 431 (legge Galasso) la nozione di paesaggio
cambia radicalmente, oltre ai beni oggetto di specifico procedimento di accertamento del
valore da tutelare, vengono sottoposti a vincolo paesaggistico ex lege un’ampia serie di
territori tra i quali le coste marine e lacuali, le sponde dei fiumi, le montagne, i boschi,
ecc. La dichiarata prerogativa della disposizione legislativa è la conservazione delle
caratteristiche naturali, mettendo in luce il valore estrinseco e relazionale del bene in
questione e relegando ad un piano di minore importanza il valore intrinseco dello stesso;
finalità poi recepita a chiare lettere dal decreto legislativo 22 gennaio 2004, n. 42 che
prevede la tutela del paesaggio non tanto per la sua connaturata bellezza quanto per “i
valori che esso esprime quali manifestazioni identitarie percepibili”101.
98 M. A. CRESCENZI, in P. Dell'Anno, Manuale di diritto ambientale, Padova, 1995, pp. 467 ss.; F.
CARTEI, La disciplina del paesaggio, tra conservazione e fruizione programmata, Torino, 1995. 99
Tale normativa riguardava, infatti, gli immobili aventi “cospicui caratteri di bellezza naturale”,
“le ville i giardini e i parchi che si distinguono per la loro non comune bellezza”, “i complessi di cose
immobili che compongono un caratteristico aspetto avente valore estetico e tradizionale”, nonché “le
bellezze panoramiche considerate come quadri naturali e così pure quei punti di vista o di belvedere
accessibili al pubblico, dai quali si gode lo spettacolo di quelle bellezze”.
100 Ci si riferisce all’art. 7 della legge n. 1497/1939 che in particolare inibiva qualsiasi condotta
volta a modificare i beni sottoposti a vincolo paesaggistico senza previa autorizzazione di competenza della
Soprintendenza.
101 Si veda in particolare l’art. 131 del d. lgs. n. 42/2004.
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Proprio la mutata rappresentazione di paesaggio da nozione meramente
estetica (tutela del paesaggio come tutela del bello naturale) a concezione basata su
caratteri che identificano il territorio, ha fatto sì che il paesaggio e il governo del territorio,
temi originariamente distinti, abbiano finito per sovrapporsi. D’altro canto il motivo della
separazione originaria era duplice: il primo riguardava la non interferenza geografica,
poiché il piano regolatore generale comprendeva solamente l’abitato e le eventuali zone
di espansione102, mentre il vincolo paesaggistico le bellezze naturali e quindi zone non
costruite103; il secondo le finalità104.
La limitazione di ambito materiale viene meno con l’art. 1 della legge
19 novembre 1968, n. 1187 perché il piano regolatore si estende alla totalità del territorio
comunale e l’eventuale sovrapposizione è risolta privilegiando l’interesse paesaggistico,
pacificamente prevalente nella gerarchia degli interessi pubblici105. La sovrapposizione
di campi produce problemi di portata limitata dato che il vincolo paesaggistico è legato,
in questa fase, ad un procedimento di verifica del notevole interesse pubblico106. Si giunge
così ad una vera e propria esplosione del vincolo, che viene esteso a numerose tipologie
zonali107. Per altro verso si attribuisce alle Regioni, seppure limitatamente alle aree
sottoposte a restrizione, la competenza per la redazione di piani urbanistico territoriali
102
Si prenda a riferimento la legge urbanistica nazionale, legge 17 agosto 1942, n. 1150, in cui si
traccia una figura di piano avente come unico oggetto di interesse il regolamento della crescita urbana.
103 Si confronti la Legge n. 1497/1939 e la Legge 431/1985 per la tutela dei beni naturalistici ed
ambientali sulle bellezze naturalistiche classificate in base alle loro caratteristiche peculiari e suddivise per
classi morfologiche.
104 Infatti, la legge urbanistica aveva ad oggetto l’assetto e l’incremento edilizio dei centri abitati e
lo sviluppo in generale del territorio; la legge sulle bellezze naturali, invece, aveva riguardo alla tutela
dell’aspetto esteriore dei luoghi al fine di non utilizzare le aree delle località in questione in modo
pregiudizievole rispetto alla bellezza panoramica.
105 Si v. Corte Cost. n. 367/2007 ove si afferma che il concetto di paesaggio indica, innanzitutto, la
morfologia del territorio (riguarda cioè l’ambiente dal punto di vista visivo) ragione per cui non si
riscontrano particolari specificazioni nell’art. 9 Cost., a voler significare la rilevanza in sé dell’aspetto
esteriore del territorio; ne consegue la sua primazia nei confronti degli altri interessi pubblici assegnati alla
competenza concorrente delle Regioni in materia di governo del territorio e valorizzazione dei beni culturali
e ambientali. Nello stesso senso Corte Cost n. 180 e n. 232 del 2008. In senso critico si v. D. TRAINA, Il
paesaggio come valore costituzionale assoluto, in Giur. cost., 2007, p. 4108 ss., in cui l’autore evidenzia
come il paesaggio non sia completamente sovrapponibile al bene ambiente, contenendo al suo interno
componenti identitarie e di civiltà di natura essenzialmente culturale, oltre che ecologiche e naturalistiche.
106 Il riferimento è alla Legge 8 agosto n. 435/1985 che ha introdotto una serie di vincoli sui beni
paesaggistici ambientali e che prende il nome dal politico e storico Giuseppe Galasso.
107 Si prenda in considerazione l’art. 1 della Legge n. 431/1985.
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con specifica considerazione dei valori paesaggistici ed ambientali108. La previsione
costituisce indubbiamente un primo passo verso l’unificazione delle distinte discipline
dell’urbanistica e paesaggio, che hanno quale denominatore comune il territorio.
Una completa sovrapposizione, come già precedentemente annunciato,
si ha con il D. lgs. n. 42 del 2004, secondo cui il piano paesaggistico si estende all’intero
territorio regionale, sottopone a specifiche misure di salvaguardia e di utilizzazione anche
aree ulteriori rispetto a quelle già impegnate, ed inoltre definisce parametri vincolanti per
le specifiche previsioni da introdurre negli strumenti urbanistici, acquistando, in questo
modo, una funzione di regolazione alla discrezionalità insita nel potere di pianificazione
urbanistica, vale a dire di disciplina sostanziale del potere stesso109.
Il piano paesaggistico è particolarmente efficace poiché non si limita
alla creazione di un obbligo di adeguamento degli strumenti urbanistici comunali sul
modello del tradizionale piano di coordinamento, ma produce disposizioni
immediatamente prevalenti tra quelle difformi, eventualmente contenute negli stessi
incidendo direttamente sulle singole proprietà e stabilendo norme di salvaguardia
applicabili in attesa del loro adeguamento110. In definitiva il piano paesaggistico e quelli
comunali coprono oggi l’intero medesimo territorio e, per quanto nel rapporto tra i due
prevalga il primo, può essere utile analizzare le diverse finalità poiché la legge
urbanistica111, da questo punto di vista, ammette espressamente l’introduzione di vincoli
propri diversi da quelli regionali.
Viene così in evidenza che manca un orientamento giurisprudenziale
circa la possibilità che il piano paesaggistico comprenda anche prescrizioni non attinenti
alla tutela del paesaggio. Il testo del decreto legislativo, inoltre, non è esplicito sul punto,
108 P. STELLA RICHTER, I principi del diritto urbanistico, Milano, Giuffrè, 2002. 109
La particolare efficacia del piano paesaggistico si manifesta nel non limitarsi alla creazione di
un obbligo di adeguamento degli strumenti urbanistici comunali, sul modello del tradizionale piano di
coordinamento, ma nell’essere le sue previsioni immediatamente prevalenti sulle disposizioni difformi
eventualmente contenute negli strumenti urbanistici e nell’incidere altresì sulle singole proprietà, stabilendo
norme di salvaguardia in attesa dell’adeguamento degli stessi.
110 Come si ricava in particolare dall’articolo 145, comma terzo, del Codice ove si dispone che “le
previsioni dei piani paesaggistici di cui agli articoli 143 e 156 non sono derogabili da parte di piani,
programmi e progetti nazionali o regionali di sviluppo economico, sono cogenti per gli strumenti urbanistici
dei comuni, delle città metropolitane e delle province, sono immediatamente prevalenti sulle disposizioni
difformi eventualmente contenute negli strumenti urbanistici, stabiliscono norme di salvaguardia
applicabili in attesa dell’adeguamento degli strumenti urbanistici e sono altresì vincolanti per gli strumenti
settoriali”. Cfr. anche T.A.R Umbria, Perugia, sez. I, n. 402/2006.
111 Si veda art. 7 della legge n. 1150/1942
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anche se ci sono degli elementi che inducono a ritenere che esso possa contenere
prescrizioni urbanistiche112. In ogni caso il codice dei beni culturali e del paesaggio
prevede che le Regioni approvino “piani paesaggistici ovvero piani urbanistico-
territoriali con specifica considerazione dei valori paesaggistici”113.
La totale sovrapposizione di cui si è detto sussiste anche in relazione ai
piani di rilevanza ambientale (si pensi ai parchi, alle aree protette, ai piani di bacino) in
quanto lo stesso Decreto stabilisce espressamente che “le previsioni dei piani
paesaggistici sono altresì vincolanti per gli interventi settoriali”114.
Emblematica in tal senso è stata l’istituzione dell’Autorità di Bacino115
e del relativo “piano di bacino”116 che essendo un modello pianificatorio con obiettivi di
carattere ambientale, può anche eseguire valutazioni urbanistiche117, prevalendo sugli
altri piani, generali e di settore, assurgendo a piano dei piani; strumento a scala territoriale
in cui le ragioni dell'ambiente e le trasformazioni urbanistiche possono trovare una sintesi
compiuta da far valere sul resto della pianificazione118.
112
Si consideri ad esempio l'art. 15 nella parte in cui si precisa che, “per quanto attiene alla tutela
del paesaggio, le disposizioni dei piani paesaggistici sono comunque prevalenti sulle disposizioni contenute
negli atti di pianificazione” e che prevede, anche se con un linguaggio contraddittorio, disposizioni non
funzionali al paesaggio; inoltre si consideri che il piano paesaggistico non solo è preceduto da una
necessaria “ricognizione dell'intero territorio”, ma dispone una ripartizione dell'intero territorio regionale
in ambiti omogenei (art. 143, primo comma), dato confermato dall'art. 135, secondo il quale i piani
concernono “l'intero territorio regionale” e disciplinano finanche le zone prive di pregio paesistico. Non
ultimo, si consideri la complessità dell’elaborazione del piano paesaggistico ormai divenuta così elevata da
indurre a ritenere che, almeno di regola, la Regione competente ad adottare il proprio piano territoriale, vari
un solo piano attuativo di tutte le proprie scelte di assetto del territorio e perciò anche quelle concernenti la
distribuzione degli insediamenti e localizzazione delle infrastrutture.
113 Si v. a tal proposito l’art 135 d. lgs. n. 42/2004.
114 Si v. art. 145, comma terzo, del d. lgs. n 42/2004.
115 L’autorità di bacino è un ente istituito dalla legge 18 maggio 1989, n.183 (Norme per il riassetto
organizzativo e funzionale della difesa del suolo) con l’obiettivo di superare le frammentazioni di
competenza ed istituzionali che non consentono una pianificazione unitaria ed integrata.
116 Il piano di bacino ha valore di piano territoriale di settore, nel senso che può intervenire nei
settori di riferimento al bacino idrografico di propria competenza, senza la possibilità di sostituirsi agli
strumenti urbanistici per quanto attiene all'assetto del territorio.
117 Si confronti l’art. 17, comma terzo, del capo II della legge n. 183/1989, norme per il riassetto
organizzativo e funzionale della difesa del suolo.
118 F. MIRABELLI, Il Governo del Territorio. Aspetti Culturali, Evoluzione normativa, in Formez-Progetto
Ripam, Febbraio 2002.
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A conferma della ritenuta sovrapposizione si consideri l’orientamento
della Corte Costituzionale119, pacifico nel ritenere che non tutti gli ambiti specificati nel
comma 2 dell'art. 117 Cost. sono materie nelle quali l’ambiente interseca
trasversalmente120 le competenze statali e regionali121 in raccordo con altri interessi e
competenze122.
In tal senso la Consulta ha rimarcato che l'art.117, comma 2 (lettera –
s) Cost. esprime “una esigenza unitaria per ciò che concerne la tutela dell'ambiente e
dell'ecosistema”123 e si pone come limite per gli interventi regionali che possono
pregiudicare gli equilibri ambientali, senza tuttavia escludere la titolarità in capo alle
Regioni di competenze legislative in tema di governo del territorio o tutela della salute124.
Ecco che l'evoluzione della disciplina amministrativa delle tre materie:
paesaggio, governo del territorio e ambiente, pur nettamente distinte quanto a potestà
legislative, convergono o divergono dal medesimo centro istituzionale, in ragione del
119
Ci si riferisce in particolar modo a Corte Cost. n. 407/2002 che ha avuto modo di affermare la
capacità dell’ambiente, inteso come materia, di incidere per sua stessa natura su di una molteplicità di settori
inerenti al territorio.
120 In particolare dalla giurisprudenza della Corte, antecedente alla riforma del titolo V Cost., si
ricava una configurazione dell'ambiente come materia trasversale, in ragione della quale si manifestano
competenze diverse, anche regionali, spettando allo Stato le determinazioni che rispondono ad esigenze
meritevoli di disciplina uniforme sull'intero territorio nazionale. Si v. sul punto ex multis: Corte Cost. n.
507 e n. 54/2000, Corte Cost n. 382/1999 e, ancora, Corte Cost. n. 273/1998.
121 Si v. sul punto anche Corte Cost. n. 282/2002, in Foro amm., CdS., 2002, 2791 con nota di C.E. GALLO,
La potestà legislativa regionale concorrente, i diritti fondamentali ed i limiti alla discrezionalità del
legislatore davanti alla Corte costituzionale; in Le Regioni, 2002, 1144, con nota di R. BIN, il nuovo riparto
di competenze legislative: un primo, importante chiarimento. 122
In tal senso Corte Cost. n. 407/2002 in cui i giudici delle leggi evidenziano che “I lavori
preparatori riguardanti la lettera -s del nuovo art 117 Cost. inducono, d'altra parte, a considerare che
l'intento del legislatore sia stato quello di riservare comunque allo Stato il potere di fissare standards di
tutela uniformi sull'intero territorio nazionale, senza peraltro escludere in questo settore la competenza
regionale alla cura degli interessi funzionalmente collegati con quelli propriamente ambientali. In
definitiva si può ritenere che riguardo alla protezione dell'ambiente non si sia sostanzialmente inteso
eliminare la preesistente pluralità di titoli di legittimazione per interventi regionali diretti a soddisfare
contestualmente, nell'ambito delle proprie competenze, ulteriori esigenze rispetto a quelle di carattere
unitario definite dallo Stato”, in tal senso confronta anche Corte Cost. n. 307/2003.
123 Ci si riferisce testualmente a Corte Cost. n. 536/2002.
124 Cfr. sent. Corte Cost., n. 407 del 2002 in cui i giudici ammettono standards di tutela uniformi sull'intero
territorio nazionale, anche incidenti sulle competenze legislative regionali ex art 117 Cost. Già nel 1982 la
Corte costituzionale aveva affermato che la protezione dell’ambiente “in senso lato comprende com’è
comunemente ammesso, oltre la protezione ambientale collegata all’assetto urbanistico del territorio, anche
la tutela del paesaggio, la tutela della salute nonché la difesa del suolo, dell’aria e dell’acqua
dall’inquinamento”: Corte cost., 29 dicembre 1982, n. 239, in Foro it., 1983, I, c. 5 ss.
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principio di sussidiarietà125 ed alla capacità di dare prevalenza all'ambiente su tutte le
attività legate al territorio e alla sua trasformazione.
5. L’interesse all'ambiente
Per quanto riconosciuta l’importanza dell’ambiente in relazione alla sua
vis expansiva multisettoriale e alla capacità di condizionamento di ogni attività umana sul
territorio, non è rinvenibile un’esplicita e soddisfacente disciplina in ordine alle tutele dei
singoli o privati aggregati in associazioni126, in caso di negativa incidenza nella loro sfera
del danno ambientale.
D’altra parte, la definizione di ambiente come interesse “adespota”127,
fonda sul presupposto che si tratti di un bene la cui tutela non è suscettibile di essere
ascritta in modo frazionato ai singoli128 né all'amministrazione in via esclusiva, bensì in
capo all'intera collettività, per quanto sfornita di un centro istituzionalizzato cui
attribuirne la titolarità. Poiché tali interessi in quanto appartenenti ad una serie
indeterminata di soggetti e, nel contempo, riferibili a ciascuno di essi nella loro
interezza129, rappresentano uno dei punti critici in materia di diritto ambientale e rendono
125
Si fa riferimento alla legge n. 59/1997, cui si deve la prima applicazione del principio in
questione nella distribuzione delle funzioni amministrative tra i vari livelli di territorio. In tema di
sussidiarietà verticale, principio dirimente in tema di esercizio e allocazione delle funzioni amministrative,
si v. anche l’art. 118, primo comma, e l’art. 120, secondo comma, Cost, nonché gli artt. 2, 7 e 8 della legge
n. 131/2003. L’operatività di tale principio in materia ambientale si ricava dall’art. 3 quinquies, commi 3 e
4, del d. lgs. n. 152/2006, inserito nel codice dell’ambiente dal d. lgs. n. 4/2008.
126 Appare inadeguata la disciplina del risarcimento del danno ambientale nel caso di lesione ai
singoli cui si fa riferimento nel comma settimo dell’art. 313 ove si dispone che “resta in ogni caso fermo il
diritto dei soggetti danneggiati dal fatto produttivo di danno all’ambientale, nella loro salute o nei beni di
loro proprietà, di agire in giudizio nei confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”.
127 V. CAIANIELLO, La tutela degli interessi ambientali e delle formazioni sociali nella materia
ambientale, in G. De Vergottini, Localizzazione degli impianti energetici e tutela dell’ambiente e della
salute, Rimini, 1988, p. 35 ss.; M.S. GIANNINI, Difesa dell’ambiente e del patrimonio naturale e culturale,
cit. Si veda Cass. S.U. n. 440/1989 in cui i giudici di legittimità affermano la natura adespota dell’ambiente
quale bene immateriale e giudicano irrilevante il profilo dominicale delle sue componenti naturali.
128 Cfr. T.A.R. Lazio, sez. I, 19 gennaio 1983, n. 47, in Foro amm.,1983, 1071 secondo cui il
fenomeno degli interessi diffusi riguarda le utilità che attengono identicamente e indivisibilmente ad una
pluralità di soggetti, nessuno dei quali, pertanto ne ha la totale disponibilità. 129 V. CAIANIELLO, La tutela degli interessi individuali e delle formazioni sociali nella materia
ambientale, in Foro amm., 1987, pp. 1318 ss. L'autore dopo aver rilevato come la locuzione “interesse
adespota” non neghi l'esistenza di una titolarità, se non a pena di capovolgere la concezione stessa di
interesse privandola del necessario riferimento soggettivo, osserva che tale formula utilizzata come
sinonimo di interesse diffuso è stata coniata per interessi che, pur riguardando non i singoli ma la
collettività, non siano stati istituzionalizzati dall’ordinamento mediante l'attribuzione della titolarità ad una
soggettività pubblica.
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complesso il riconoscimento di coloro che, differenziandosi in qualche misura dal resto
della collettività, potrebbero essere legittimati ad agire, sia in fase procedimentale che
processuale, per la loro tutela130, si è ritenuto di affiancarli a quelli cd. collettivi131
connotati dal peculiare loro riferimento ad un ente esponenziale organizzato132. In pratica
l’ambiente, originariamente configurato come interesse diffuso, si tramuterebbe in
collettivo ogniqualvolta un ente legittimato decidesse di farlo valere in concreto133. In tal
modo alle associazioni ambientaliste, in considerazione della loro competenza ed
organizzazione stabile sul territorio, nonché per la dotazione di strumenti in grado di
svolgere interventi di affiancamento all’amministrazione in difesa delle risorse
130 In conseguenza di questo dibattito ha preso piede, nel corso degli anni, la figura dell’associazione
ambientalista, ente in grado di rappresentare quel necessario momento di aggregazione spontanea attraverso
cui l'originario, e soggettivamente indifferenziato, interesse diffuso trova una sua concreta titolarità
giuridica, che risulta differenziata sia rispetto a quella facente capo alla generalità dei cittadini, sia a quella
propria degli appartenenti alla categoria. La legge 349/1986 attribuiva, inizialmente, la legittimazione
all’azione solo allo Stato e agli enti territoriali; i commi 4 e 5 dell’art. 18 l. 349/1986 riservavano alle
associazioni ambientaliste esclusivamente il potere di denuncia dei fatti lesivi (potere, quest’ultimo,
attribuito anche a ogni singolo cittadino) e di intervento nei giudizi per danno ambientale. In virtù delle
modifiche apportate dall’art. 4, 3º comma, della legge 3 agosto 1999, n. 265 la legittimazione all’azione 16
è stata estesa anche alle associazioni ambientaliste di cui all’art. 13 della legge. L’art. 309 del codice
ambientale prevede ora che “le organizzazioni non governative che promuovono la protezione
dell'ambiente, di cui all'articolo 13 della legge 8 luglio 1986, n. 349” che “sono o che potrebbero essere
colpite dal danno ambientale o che vantino un interesse legittimante la partecipazione al procedimento
relativo all'adozione delle misure di precauzione, di prevenzione o di ripristino previste dalla parte sesta
del presente decreto possono presentare al Ministro dell'ambiente e della tutela del territorio, depositandole
presso le Prefetture - Uffici territoriali del Governo, denunce e osservazioni, corredate da documenti ed
informazioni, concernenti qualsiasi caso di danno ambientale o di minaccia imminente di danno ambientale
e chiedere l'intervento statale a tutela dell'ambiente a norma della parte sesta del presente decreto”.
131 A. PROTO PISANI, Appunti preliminari per uno studio sulla tutela giurisdizionale degli
interessi collettivi (o più esattamente: superindividuali) innanzi al giudice civile ordinario, in Dir. giur.,
1974, p.801 ss. ; C. M. BIANCA, Note sugli interessi diffusi, in La tutela giurisdizionale degli interessi
collettivi e diffusi, a cura di Lanfranchi, Torino, 2003, p. 67 ss.; M. CAPPELLETTI, Appunti sulla tutela
giurisdizionale di interessi collettivi o diffusi, in Giur. it., 1975; A. CARRATTA, Profili processuali della
tutela degli interessi collettivi e diffusi, in La tutela giurisdizionale degli interessi collettivi e diffusi, a cura
di Lanfranchi, Torino, 2003, p. 79 ss.; R. DONZELLI, La tutela giurisdizionale degli interessi collettivi,
Napoli, 2008; V. DENTI, Le azioni a tutela degli interessi collettivi, in Riv. dir. proc., 1975, 361 ss.; G.
COSTANTINO, Brevi note sulla tutela giurisdizionale degli interessi collettivi davanti al giudice
civile, in Le azioni a tutela di interessi collettivi, Padova, 1976, p. 223 ss.; V. VIGORITI, Interessi collettivi
e processo, Milano, 1979, p. 58; A. CORASANITI, La tutela degli interessi diffusi davanti al giudice
ordinario, in Riv. dir. civ., 1978, I, p.196 ss.; M.S. GIANNINI, La tutela degli interessi collettivi nei
procedimenti amministrativi, in Le azioni a tutela di interessi collettivi, Padova, 1976, p. 23 ss.; E.
GRASSO, Gli interessi della collettività e l'azione collettiva, in Riv. dir. proc., 1983, p. 24 s.
132 M. NIGRO, Le due facce dell’interesse diffuso: ambiguità di una formula e mediazione della
giurisprudenza in Foro it., 1987, V, p. 7 ss.
133 M. S. GIANNINI, Diritto amministrativo, Milano, 1970, definisce appunto gli interessi diffusi
come privi di un soggetto titolare individuabile ex ante, in quanto attribuibili unicamente a categorie
indeterminate di persone, ma capaci di trasformarsi in interessi collettivi o pubblici non appena trovano un
loro portatore determinato.
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naturali134, viene attribuita una posizione centrale anche per la possibilità loro accordata
di svolgere, tra le varie funzioni, quelle di denuncia, all’autorità amministrativa
competente, i fatti lesivi di beni ambientali dei quali siano a conoscenza, partecipando
inoltre a programmi di ricerca, formazione e gestione di alcune aree protette135.
Per completezza è necessario ricordare che gran parte delle attività sono
esercitabili soltanto dalle associazioni136 ambientali maggiormente rappresentative, alle
quali sia stata previamente riconosciuta rilevanza giuridica dall’ordinamento137.
La carente linearità della scelta operata138 si sostanzia nella violazione
del diritto di difesa ex art. 24 Cost.139, in quanto l’impostazione restrittiva (a tenore della
quale solo le associazioni individuate mediante il procedimento dell'art. 13 della L. n.
349/1986 sarebbero legittimate a tutelare il bene ambiente), assegna in via esclusiva140
alla amministrazione il potere di selezionare i soggetti titolati ad agire avverso i propri
atti, ex art. 310 del d. lgs. 152/2006141. E’ opinione condivisibile quella di affiancare alla
134 V. CAIANIELLO, La tutela degli interessi individuali e delle formazioni sociali nella materia
ambientale, cit.; A. POSTIGLIONE, L'azione civile in difesa dell'ambiente, in Riv. trim. dir. pubb., 1987
ove si osserva come l'associazione che si erge a difesa dell'ambiente sia espressione sociale della personalità
individuale dei suoi membri, rafforzando un valore ambientale che già esiste a livello personale e facilitando
la sua difesa in giudizio. 135
Si v. l’art. 13 della L. 349/1986 e da ultimo l’art. 309 del Codice dell’ambiente (d. lgs. n.
152/2006); sul punto cfr. anche B. POZZO, Danno ambientale, in Riv. dir. civ., 1997, II, p. 775 ss.
136 Se ne riportano di seguito alcune a titolo esemplificativo e non esaustivo: A.C.L.I, Agriambiente,
ANEV, ANIS, A.S.I, A.N.P.AN.A, Associazione ambiente e lavoro, Associazione Italiana insegnanti di
Geografia, Associazione Nazionale per la Tutela dell'Ambiente. 137
L'art. 13, comma 1, della legge n. 349 del 1986 prevede questo procedimento di individuazione,
il cui contenuto è destinato a confluire in un decreto del Ministero dell'Ambiente e della Tutela del
Territorio, con il quale si verifica la sussistenza o meno, in capo all'associazione, dei requisiti necessari per
ottenere il riconoscimento. Si tratta sostanzialmente di accertare: il carattere nazionale, la presenza in
almeno cinque Regioni, la sussistenza di un ordinamento interno a carattere democratico e la previsione
come finalità della tutela dell'ambiente all'interno dello statuto; per quanto concerne invece gli aspetti
relativi non alla struttura, bensì all'attività svolta da tali enti, l'esame ministeriale tiene conto della continuità
e della rilevanza esterna dell’attività svolta.
138 Si v. art. 18, L. n. 349/1986 istitutiva del Ministero dell’ambiente.
139 Diritto in base al quale tutti possono agire in giudizio per la tutela dei propri diritti e interessi per
ottenere il risarcimento del danno da fatto illecito, con il solo limite rappresentato dall’art. 2697, comma
prima, c.c. in base al quale chi vuol far valere un diritto in giudizio deve provare i fatti che ne costituiscono
il fondamento.
140 Pur considerando che questa risoluzione avrebbe il pregio di risolvere il problema della tutela
della posizione lesa e della qualificazione come “adespota” del diritto all'ambiente, il riconoscimento
ministeriale è senz’altro elemento arbitrario e lesivo della tutela dell’interesse in questione.
141 Sul punto è intervenuta la giurisprudenza con sentenze plurime che hanno affermato la non
vincolatività del dato normativo. Si cfr. ad esempio Consiglio di Stato, sez. IV, n. 2151/2006, in cui si
afferma che la legittimazione ad agire per le associazioni ambientaliste riconosciute (ex art. 18 L. 8 luglio
1986 n. 349) non preclude l’accertamento in concreto della legittimazione di altre che si assumano portatrici
di interessi diffusi, purché venga verificata la sussistenza di una pluralità di indici: finalità statutarie, grado
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predetta criptica opzione legislativa i previgenti criteri giurisprudenziali che
permettevano anche alle associazioni non riconosciute142, pur tuttavia operanti sul
territorio e rappresentative della collettività, di agire concretamente a tutela del bene143.
D’altra parte l'art. 13 della L. n. 349/1986144 piuttosto che creare un numero chiuso di
associazioni ambientaliste, le ha distinte in due categorie: quelle individuate, la cui natura
di soggetti portatori di interessi diffusi è presunta e le altre, per le quali si applicano le
regole ordinarie al fine di comprovare la loro legittimazione procedimentale e
di rappresentatività, maggiore o minore persistenza temporale, iniziative ed azioni intraprese nonché il
concreto e stabile collegamento con un dato territorio tale da rendere localizzabile l’interesse esponenziale
dell’associazione.
142 In sostanza si è messa in discussione la bontà dell'idea secondo la quale ci sarebbe bisogno di un
riconoscimento ministeriale in grado di differenziare tra di loro le organizzazioni private operanti nel settore
della tutela dell'ambiente. Sul punto si veda F. DE LEONARDIS, Verso un ampliamento della
legittimazione per la tutela delle generazioni future, in Cittadinanza e diritti delle generazioni future (Atti
del Convegno di Copanello, 3-4 luglio 2009), F. Astone, F. Manganaro, A. Romano Tassone, F. Saitta (a
cura di), Catanzaro, Rubbettino, 2010, p. 51 s.; TIGLIONI, L'azione civile di difesa dell'ambiente. La tutela
civile del danno ambientale, in Riv. trim. dir. pubb., 1987, pp. 304 ss.; in particolare l’autore criticamente
osserva che il riconoscimento delle associazioni con decreto ministeriale rappresenta “un errore non solo
politico ma anche giuridico”, giuridico in quanto le condizioni di ammissibilità al giudizio appartengono
alla valutazione del singolo giudice, caso per caso, politico, invece, in quanto il Ministero sarà costretto a
forme di mediazione improprie, sotto la spinta delle forze politiche diverse e persino delle associazioni già
consolidate, gelose di cedere spazio a nuovi fenomeni associativi. 143 Com'è noto la giurisprudenza amministrativa aveva elaborato diversi criteri di selezione,
attraverso cui poter individuare caso per caso la sussistenza o meno di elementi in grado di differenziare e
qualificare gli interessi di cui le singole associazioni sono portatrici; tra questi il più idoneo rimane tuttora
quello della vicinitas, strumento che permette di individuare caso per caso la legittimazione ad agire in base
ad uno stabile collegamento di interessi sul territorio, quale elemento sintomatico della sussistenza di un
pregiudizio concreto ed attuale (Cons. St., sez IV, 13 luglio 1998, n. 1088, in Giur. it., 1990, 180 ss.). Sul
punto M. CALABRO', Sui presupposti della legittimazione ad agire delle associazioni ambientaliste, in
Foro amm. TAR, 2003, 412.
144 Art.13.
1. Le associazioni di protezione ambientale a carattere nazionale e quelle presenti in almeno cinque
regioni sono individuate con decreto del Ministro dell'ambiente sulla base delle finalità programmatiche e
dell'ordinamento interno democratico previsti dallo statuto, nonché della continuità dell'azione e della sua
rilevanza esterna, previo parere del Consiglio nazionale per l'ambiente da esprimere entro novanta giorni
dalla richiesta. Decorso tale termine senza che il parere sia stato espresso, il Ministro dell'ambiente decide
(1).
2. Il Ministro, al solo fine di ottenere, per la prima composizione del Consiglio nazionale per
l'ambiente, le terne di cui al precedente art. 12, comma 1, lett. c) , effettua, entro trenta giorni dall'entrata
in vigore della presente legge, una prima individuazione delle associazioni a carattere nazionale e di quelle
presenti in almeno cinque regioni, secondo i criteri di cui al precedente comma 1, e ne informa il Parlamento
(2).
(1) Così modificato dall'articolo 17 della legge 23 marzo 2001, n. 93.
(2) A norma dell'articolo 4 della legge 3 agosto 1999, n. 265 le associazioni di protezione
ambientale di cui al presente articolo, possono proporre le azioni risarcitorie di competenza del giudice
ordinario che spettino al Comune e alla Provincia, conseguenti a danno ambientale. L'eventuale
risarcimento è liquidato in favore dell'ente sostituito e le spese processuali sono liquidate in favore o a
carico dell'associazione.
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processuale.145 Non solo; l’interpretazione restrittiva del combinato disposto degli artt.
13 e 18, L. n. 349/1986, palesa146 in modo plastico l’ inadeguatezza applicativa del
principio di sussidiarietà orizzontale147 secondo il quale alla cura dei bisogni collettivi e
delle attività di interesse generale debbono provvedere direttamente i privati cittadini (sia
come singoli che come associati) relegando ai pubblici poteri una funzione appunto
sussidiaria di programmazione, coordinamento e gestione148. L’azione pubblica è
ravvisabile nella sola ipotesi di incapacità dei privati o delle associazioni, di soddisfare
efficacemente interessi ed esigenze di ordine generale149.
145 N. LUGARESI, Diritto dell'ambiente, Padova, 2004, p. 69; si veda anche T.A.R Veneto, 12
agosto 1998, n. 1414, in Riv. giur. ambiente, 1999, p. 364, ove si specifica che l'accertamento della
rappresentatività delle associazioni ambientaliste si basa su un duplice sistema ricavabile dagli artt. 13 e
18, L. 8 luglio 1986, n. 349, il secondo dei quali lascia al giudice l'accertamento dei requisiti di
legittimazione. 146 G. DE MINICO, Brevi note sulle associazioni ambientali ex art. 18 della L. n. 349 del 1986, in
Riv. giur. edil., 1994, pp. 23 ss. 147
E. FASOLI, Associazioni ambientaliste e procedimento amministrativo in Italia alla luce degli
obblighi della Convenzione UNECE (United Nations Economic Commission for Europe) di Aarhus del
1998 – (Environmental associations and administrative procedure in Italy in the light of the requirements
of UNECE Aarthus Convention of 1998), in Riv. giur. ambiente, 2012, p. 331 ss.; A. MAESTRONI,
Sussidiarietà orizzontale e vicinitas, criteri complementari o alternativi in materia di legittimazione ad
agire?, in Riv. giur. ambiente, 2011, p. 528 s.; A. POGGI, Autonomie funzionali e sussidiarietà orizzontale,
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Studi in onore di Giorgio Berti, vol. I, Napoli, 2005; L. GRIMALDI, Il principio di sussidiarietà orizzontale
tra ordinamento comunitario e ordinamento interno, Bari, 2006.
148 Il principio di sussidiarietà orizzontale, solo accennato nelle leggi Bassanini, è stato poi
formalmente introdotto nel nostro ordinamento ad opera dell'art. 2 della legge 265 del 1999 (poi confluito
nell'ultimo comma dell'art. 3 del D. Lgs. n. 267 del 2000) ai sensi del quale “i comuni e le province sono
titolari di funzioni proprie e di quelle conferite loro, con legge dello Stato e delle Regioni, secondo il
principio di sussidiarietà. I comuni e le province svolgono le loro funzioni anche attraverso le attività che
possono essere adeguatamente esercitate dalla autonoma iniziativa dei cittadini e delle loro funzioni
sociali”. Invero in dottrina era auspicata già da tempo una riforma in tal senso, osservando come una corretta
interpretazione degli artt. 2 e 18 Cost., nonché la più generale tensione pluralistica della Costituzione
finivano inevitabilmente per rendere “gli interessi superindividuali non più appannaggio esclusivo dello
Stato”. Si v. F. SALVIA, L'inquinamento, profili pubblicistici, Padova, 1984, 65; Per un approfondimento
sul principio di sussidiarietà si rinvia a A. D'ATENA, Il principio di sussidiarietà nella costituzione
italiana, in Riv. dir. pubb. com., 1997, pp. 603 ss.; P. DURET, La sussidiarietà «orizzontale»: le radici e le
suggestioni di un concetto, in Jus, 2000, pp. 95 ss.; G. PASTORI, La sussidiarietà «orizzontale» alla prova
dei fatti nelle recenti riforme legislative, in A. Rinella, L. Coen, R. Scarciglia (a cura di) Sussidiarietà e
ordinamenti costituzionali. Esperienze a confronto, Cedam, 1999, p 177 ss. 149 L'azione dei pubblici poteri è sussidiaria a quella di singoli e associati, nel senso che gli enti
istituzionali possono legittimamente intervenire, ove le funzioni amministrative assunte siano svolte in
modo più efficiente e con risultati più efficaci che se fossero lasciate alla libera iniziativa privata. Cfr.
T.A.R. Liguria, sez. I, 18 marzo 2004, n. 267, in Riv. giur. edil.,2004, 1445.
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In particolare, alla luce del principio di effettività di tutela150 del bene
in questione e del più ampio contesto europeo151 nel quale la stessa si incardina, il
legislatore meglio avrebbe dovuto mitigare il profilo formalistico, preservando la
sostanziale legittimazione processuale dei danneggiati piuttosto che limitare in modo
apodittico o, per meglio dire, aprioristico i soggetti lesi dal danno all’ambiente,
considerando l’interesse non soltanto come requisito processuale di esperibilità di
un’azione a tutela del proprio diritto, ma vero e proprio interesse sostanziale alla tutela e
al risarcimento del danno, il quale non può essere enucleato in astratto152 bensì valutato
in base al caso concreto, lasciando al giudice, organo di raccordo tra l’ordinamento ed i
privati, la possibilità di individuare le posizioni che siano effettivamente bisognose di
essere salvaguardate153.
La progressiva rivalutazione del concetto di interesse ha condotto ad
identificarlo con il valore che rappresenta per il soggetto, piuttosto che con il bene, in
ordine al quale, peraltro, è possibile una gradazione di interessi154.
Interesse, quindi, come ragione di agire, fondamento della situazione
giuridica soggettiva155 che opera alla stregua di un criterio di ricostruzione della
valutazione normativa ovvero come misura di valore156.
150
G. BRONZINI, Le tutele dei diritti fondamentali e la loro effettività: il ruolo della Carta di
Nizza, in Riv. giur. lav. prev. soc., 2012, p. 53 s.
151 La politica della Comunità in materia ambientale mira a raggiungere livelli elevati di tutela,
tenendo conto della diversità delle varie regioni della Comunità. Essa è fondata sui principi della
precauzione e dell'azione preventiva, sul principio della correzione, alla fonte, dei danni causati
all'ambiente, nonché sul principio «chi inquina paga».
152 Il legislatore del 2006 con il Codice dell’ambiente riserva allo Stato la legittimazione ad agire in
giudizio, sia in sede penale che in sede civile, per il risarcimento del danno ambientale (art. 311 D. Lgs.
152/2006) escludendo, con l'abrogazione dell'art. 18 della L.349/86, la possibilità per gli enti territoriali di
promuovere la stessa azione.
153 In questo senso, dunque, è fondamentale l’utilità che la cosa o il bene rappresenta per l’individuo,
in guisa tale da poter assurgere a livello di interesse giuridicamente tutelabile. La teoria maggiormente
diffusa nella dottrina tradizionale, infatti, è quella che definisce l’interesse come rapporto di tensione tra un
soggetto ed un bene, destinato a risolversi con la soddisfazione del soggetto interessato. Per tutti, si v. F.
CARNELUTTI, Teoria generale del diritto, Roma, 1951, p. 11 s.; A. LEVI, Teoria generale del diritto,
Padova, 1953, p. 264 s.
154 Così, testualmente, F. SANTORO PASSARELLI, Dottrine generali del diritto civile, Napoli,
1981, p. 69 s., che interpreta il diritto soggettivo come potere riconosciuto al singolo per la realizzazione di
un suo interesse.
155 A tal proposito, P. FEMIA, Interessi e conflitti culturali nell’autonomia privata e nella
responsabilità civile, Napoli, 1996, p. 347 ss.
156 G. ROMANO, Interessi del debitore e adempimento, Napoli, 1995, p. 44 s.
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D’altronde spetta all’associazione o al singolo che lamenta una lesione,
dimostrare di aver patito un danno157 di un interesse costituzionalmente qualificato come
diritto della personalità158, nettamente distinto dal diverso danno pubblico preso in
considerazione nel codice dell’ambiente le cui coordinate fondano sulla sussidiaria
disciplina in tema di responsabilità civile159.
Nel delineare il danno non patrimoniale160 è stato posto l’accento sulla
gravità dell’offesa161, ineludibile per l’ammissione al risarcimento dei danni non
patrimoniali alla persona, anziché sull’ingiustizia costituzionalmente qualificata162.
157
Ai sensi dell’art. 313, comma 7, “resta in ogni caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati dal
fatto produttivo di danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di agire in giudizio nei
confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”. Questa disciplina deve ritenersi senza
dubbio di completamento e non sostitutiva di quella prevista da codice civile, sicché le associazioni
ambientaliste sono senz’altro legittimate a costituirsi parte civile iure proprio nel processo penale per il
risarcimento del danno direttamente subito, in quanto diverso ed ulteriore rispetto a quello contemplato,
avente natura pubblica. Sul punto abbondante la giurisprudenza della Cassazione penale: ex plurimis Cass.
pen., sez. III n. 2010/41015, Cass. pen. sez III 14828/2010, Cass. pen. sez. III n. 36514/2006.
158 Si cfr. Corte Cost. n. 210/1987, cit., e 641/1987, cit., ove si rinviene un riconoscimento specifico
della salvaguardia dell’ambiente non solo come diritto fondamentale della collettività ma anche come
diritto fondamentale della persona. Si consolida una concezione unitaria del bene ambientale, comprensiva
di tutte le risorse naturali e culturali. Esso comprenderebbe: la conservazione, la razionale gestione ed il
miglioramento delle condizioni naturali, l’esistenza e la preservazione dei patrimoni genetici terrestri e
marini, di tutte le specie animali e vegetali che in esso vivono allo stato naturale e in definitiva la persona
umana in tutte le sue estrinsecazioni; cfr. anche P. RESCIGNO, Premesse civilistiche, AA. VV., La
responsabilità dell’impresa per i danni all’ambiente e ai consumatori, Giuffrè, Milano, p. 69 s. E’ la nota
tesi di Patti (S. PATTI, La tutela civile dell’ambiente, cit.; Id., voce Ambiente (tutela dell’) nel diritto civile,
in Digesto civ., I, Utet, Torino, 1987, p. 289; Id., Diritto all’ambiente e tutela della persona, in Giur. it.,
1980, I, 1, p. 868, per il quale il diritto all’ambiente si configura quale diritto della personalità, situazione
soggettiva autonoma rispetto al diritto alla salute da classificarsi tra i diritti fondamentali della persona; tale
inquadramento soddisfa l’esigenza “della ricorrenza di una situazione giuridica soggettiva qualificabile
come diritto soggettivo perché sia possibile il ricorso agli strumenti di tutela presenti nel sistema –
soprattutto alle regole della responsabilità civile – in caso di sua violazione” (p.199); v., però, in senso
contrario, G. Alpa, Pubblico e privato nel danno ambientale, in Contratto e impresa, 1987, p. 701 e Id.,
La natura giuridica del danno ambientale, in Il danno ambientale con riferimento alla responsabilità civile,
a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 110 per il quale si tratta di un interesse collettivo
159 D. MESSINETTI, Voce “Personalità (diritti della)”, in Enc. dir., XXXIII, Giuffrè, Milano p
355 s.; P. PERLINGIERI, Il diritto civile nella legalità costituzionale, Napoli, 1991; V. SCALISI, Danno
alla persona e ingiustizia, in Riv. dir. civ., 2007, I, p. 152 s.
160 Ci si riferisce a Cass. S.U. n. 26793/2008.
161 La lesione deve superare una certa soglia di offensività rendendo il pregiudizio sufficientemente
serio e perciò meritevole di tutela, tale giudizio determina il bilanciamento tra il principio del neminem
laedere e quello di tolleranza ex art. 2 Cost., con la conseguenza che il risarcimento del danno non
patrimoniale si configura solo nel caso in cui sia superato un certo livello di tollerabilità e il danno sia reale,
mutatis mutandis in campo ambientale, significa discernere interessi astratti non risarcibili, da quelli
concreti meritevoli di tutela.
162 Si ritiene pacificamente superata la stretta connessione tra l’art. 185 c.p e l’art. 2059 c.c., che
aveva dato luogo alla stagione del “travaso” inaugurata negli anni ottanta dalla Corte Costituzionale per
rendere risarcibile il danno alla salute, che altrimenti avrebbe potuto essere tutelato solo in caso di reato e
con modalità analoghe a quelle previste nel processo penale. L’interpretazione costituzionalmente orientata
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Tuttavia, ciò che più rileva è che le conseguenze, se del caso apprezzabili anche sul piano
economico, sono rimesse alla valutazione del danneggiato tenuto, nel rispetto della
disciplina dell’illecito aquiliano, a provare: la colpa163, il nesso di causalità164 tra la
condotta e fatto illecito, l’effettiva produzione del danno165 per causa diretta ed immediata
del fatto illecito altrui166, ponendo così fine alla discutibile distinzione tra danno evento
o in re ipsa e danno conseguenza167.
Valga poi ricordare che ai sopraindicati vagli, connotati da tipicità
ordinamentale, si aggiunge quello non meno importante dell’abuso del processo168 filtro
atipico ma ormai pacificamente fatto proprio dalla giurisprudenza169 che consente,
dell’art. 2059 c.c. e la sua tipicità relativizzata riconducono il danno alla salute nell’alveo del danno non
patrimoniale unitamente al danno morale soggettivo. Sul punto si v. Corte Cost. n. 233/2003 in base alla
quale possono individuarsi altre ipotesi di danni non patrimoniali, derivante dalla lesione di interessi
costituzionalmente garantiti e perciò risarcibili a prescindere dalla configurabilità di un reato.
163 Sul punto si v. già cit. Corte Cost. n. 233/2003 ove si precisa che la colpa dell’imputato può
essere provata anche in base a presunzione di legge e non necessariamente dimostrata dal soggetto che
lamenta il pregiudizio, secondo rigidi paradigmi penalistici. In tal senso si v. Corte Cost. n. 365/2003.
164 Si v. la notissima Cass. pen., S.u., n. 30328/2002 che ha fissato in maniera inequivocabile le
regole e i principi in base ai quali il nesso di causalità si può dire accertato; tali principi hanno poi trovato
applicazione anche in campo civile, con una differenza di non poco momento: ciò che muta sostanzialmente
tra il processo penale e quello civile è la regola probatoria, in quanto nel primo vige la regola della prova
“oltre ogni ragionevole dubbio”, mentre nel secondo vige la regola della preponderance of evidence ossia
del più probabile che nonostante la diversità dei valori in gioco nel processo penale tra accusa e difesa. Si
cfr. sul punto Cass. civ. S.U. n. 584/2008 e Cass. civ. sez. III n. 12961/2011.
165 Cfr. sul punto Corte Cost. n. 372/1994 in tema di danno biologico, ove si specifica che la lesione
in sé non è sufficiente ai fini del risarcimento del danno, perché è sempre necessaria l’ulteriore prova del
quantum, cioè la concretizzazione di un pregiudizio consistente nella diminuzione o privazione di un valore
personale (non patrimoniale), al quale il risarcimento deve essere equitativamente commisurato. In senso
opposto si v. Corte Cost n. 184/1986.
166 Si v. sul punto Cass. S.U. n. 9556/2002 e Cass. Civ. sez III n. 882/2003 ove si chiarisce che il
collegamento giuridico tra il fatto e le conseguenze dannose va operato in base alla causalità giuridica
regolata dall’art. 1223 c.c., che limita il risarcimento ai soli danni che siano conseguenza immediata e diretta
dell’illecito.
167 Si v. la già menzionata sentenza della Corte Cass. S.U n. 26793/2008 e Cass Civ. sez. III n.
7844/2011 ove si chiarisce che il danno, in caso di lesione ai diritti della persona non può considerarsi in re
ipsa, in quanto ne risulterebbe snaturata la funzione, non più conseguenza dell’effettivo accertamento di un
danno bensì pena privata per una condotta antigiuridica. I giudici affermano che gli stessi paradigmi sono
applicabili anche al danno non patrimoniale la cui prova può essere data con ogni mezzo, anche con
presunzioni legali. In tal senso si v. anche Cass civ., sez III, n. 2228/2012. Sulla questione della prova si
tenga in considerazione A. ASTONE, I danni non patrimoniali alla persona: il problema della prova,
Milano, 2011, p. 41 s.
168 M. TARUFFO, Elementi per una definizione di abuso del processo, in AA. VV., L’abuso del
diritto, Padova, 1998, p. 435 s.; L. P. COMOGLIO, Abuso dei diritti di difesa e durata ragionevole del
processo: un nuovo parametro per i poteri direttivi del giudici?, in Riv. dir. proc. 2009, p. 1686 s.
169 Ex multis Cass. S. U. n. 23726/2007 in Foro. it, 2008, I, 1514; Cass. sez. I n. 11271 e n.
6900/1997; Cass. sez. III n. 28286/2011 e ancora Cons. di Stato n. 656/2012.
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proprio per la sua peculiarità il rifiuto di tutela a tutte quelle situazioni che non abbiano
altro scopo che un utilizzo strumentale o distorto del sistema giudiziario, al fine di evitare
proliferazioni di giudizi e condotte dilatorie non sostenute da un effettivo interesse del
ricorrente170. In buona sostanza, alla luce del principio del giusto processo legato a filo
doppio con quello di lealtà e probità delle parti, l’interprete dispone di mezzi idonei171 ad
evitare che l’esercizio dell’azione assuma forme eccedenti o devianti rispetto ad un
interesse sostanziale che rappresenta presupposto e limite del diritto potestativo ad
intermediazione giudiziaria del privato.
6. Il risarcimento del danno ambientale: l’opaco profilo
L’opacità del profilo risarcitorio del danno nella complessa disciplina
ambientale si palesa nell’avvicendarsi di disposizioni che si sono succedute nel tempo,
dall’originaria stesura del 2006 sino alle attuali previsioni172. Il susseguirsi di norme ha
condotto ad un assetto, probabilmente definitivo, dove, a seguito della procedura
d’infrazione per non corretta trasposizione della direttiva sulla responsabilità
ambientale173, il legislatore nazionale ha reciso il contestato legame tra responsabilità e
criteri di imputazione soggettivi e tra risarcimento per equivalente patrimoniale e danno
ambientale, dando così corretta attuazione alla direttiva.
170
Si v. ex multis Cass. S.U n. 155/2011 ove si afferma che l’abuso del processo consiste in un vizio
per sviamento della funzione ovvero in frode alla funzione e si realizza tutte le volte in cui un diritto o una
facoltà processuale vengano esercitati per scopi diversi da quelli per i quali l’ordinamento astrattamente li
riconosce.
171 Si pensi all’inammissibilità che è un vizio che osta alla disamina della pretesa avanzata dalla
parte, non presentando i requisiti stabiliti dalla legge. Il codice prevede numerose ipotesi di inammissibilità
come sanzione posta a carico della parte, per un vizio intrinseco nell’atto di impugnazione, ovvero per
difformità dal paradigma legislativo. Con riferimento al processo civile il codice detta singole ipotesi di
inammissibilità in materia di impugnazione (artt. 331, 342, 348 bis, 360 bis, 365, 398 c.p.c). Più in generale
una valutazione di merito sulla fondatezza della domanda è rinvenibile nell’art. 140 bis del Codice del
Consumo (d. lgs. n. 206/2005), la cui finalità è senz’altro quella di evitare lungaggini processuali e utilizzi
distorti della giustizia.
172 Legge 6 agosto 2013, n. 97 - Legge Europea. Sui profili evolutivi dei modelli di tutela
dell’ambiente nella successione delle discipline sulla responsabilità per danno all’ambiente, v. U.
SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente alla luce dei principi europei: profili
sistematici della responsabilità per danno ambientale, in Nuove Leggi Civili, 2013, 4, p. 795 ss .
173 Procedura di infrazione 2007/4679 – Violazione del diritto UE – Non corretta trasposizione della
direttiva 2004/35/CE sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno
ambientale – La Commissione europea ha deciso l’archiviazione della procedura il 23 gennaio 2014.
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In antitesi con l’esigenza di tutela perseguita dal diritto Unionale, ancor
prima che nazionale, che ha trovato espressione nella direttiva 2004/35/CE finalizzata ad
armonizzare i regimi di responsabilità civile degli Stati membri, con l’introduzione di
discipline che, alla luce del principio «chi inquina paga», si muovessero nella prospettiva
della “oggettivazione” della responsabilità ambientale, il d. lgs. n. 152/2006, pur
abrogando l'art. 18174 della L. 349/1986 (ad esclusione del quinto comma) che, com’è
noto, tratteggiava un modello di responsabilità soggettiva aveva delineato un modello
risarcitorio sostanzialmente ancora plasmato sul principio dell’illecito doloso o colposo.
La disciplina dettata in sede di trasposizione della direttiva, fortemente
innovativa quanto ai profili dell’affermazione dei principi comunitari di prevenzione,
precauzione, correzione e riduzione degli inquinamenti, rimaneva ambigua quanto alle
formule di responsabilità civile che avrebbero dovuto dare attuazione al principio “chi
inquina paga”.
Il Codice ambientale prevedeva, infatti, differenti criteri di imputazione
(soggettivi, oggettivi) a seconda che si trattasse del sostenimento dei costi delle attività di
prevenzione e ripristino o del risarcimento del danno; in particolare, la normativa, nel
disciplinare in titoli differenti le azioni di prevenzione e ripristino ambientale (Titolo II)
e il risarcimento del danno (Titolo III) individuava negli operatori professionali i soggetti
tenuti a sostenere i costi della prevenzione e del ripristino ambientale mentre lasciava
priva di ogni specificazione la norma volta ad individuare i soggetti tenuti al risarcimento
del danno. L’art. 311175, rubricato “azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente
174
U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente, cit., p.795 ss., sottolinea
come “nel modello originario, la responsabilità per danno all’ambiente costituisce un rimedio ancillare al
sistema di tutela modale dell’ambiente, da applicare ogni qualvolta l’atto lesivo sia già vietato e sottoposto
a sanzioni penali o amministrative: l’insufficienza dell’apparato sanzionatorio di diritto penale o
amministrativo ad eliminare integralmente il pregiudizio causato dal comportamento vietato costituisce
pertanto la ragione di fondo giustificatrice del rimedio risarcitorio”.
175 Il testo della norma, prima della modifica apportata dall’art. 25, lett. i), L. 6 agosto 2013, n. 97
era il seguente:
Art. 311 (Azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente patrimoniale).
1. Il Ministro dell’ambiente e della tutela del territorio agisce, anche esercitando l’azione civile in
sede penale, per il risarcimento del danno ambientale in forma specifica e, se necessario, per equivalente
patrimoniale, oppure procede ai sensi delle disposizioni di cui alla parte sesta del presente decreto.
2. Chiunque realizzando un fatto illecito, o omettendo attività o comportamenti doverosi, con
violazione di legge, di regolamento, o di provvedimento amministrativo, con negligenza, imperizia,
imprudenza o violazione di norme tecniche, arrechi danno all’ambiente, alterandolo, deteriorandolo o
distruggendolo in tutto o in parte, è obbligato all’effettivo ripristino a sue spese della precedente situazione
e, in mancanza, al risarcimento per equivalente patrimoniale nei confronti dello Stato.
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patrimoniale”, ricollegava l’obbligo risarcitorio al comportamento di “chiunque”, con
violazione di legge, di regolamento, o di provvedimento amministrativo, con negligenza,
imperizia, imprudenza o violazione di norme tecniche, avesse arrecato danno
all’ambiente”. La formulazione, che mal cela la riproposizione dell’art. 18 della l.
349/1986, ha sollevato il problema della responsabilità oggettiva, la cui affermazione di
principio rappresenta la struttura portante dell’impianto di responsabilità ambientale
comunitaria che vede nel libro Verde, nel Libro Bianco, nella proposta di direttiva e nella
direttiva i punti fondamentali176.
Proprio la questione della responsabilità oggettiva ha dato luogo alla
procedura d’infrazione per violazione della direttiva 2004/35/CE sulla responsabilità
ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale.
In particolare, e sotto il profilo in discorso, la Commissione177 ha
rilevato come la regola generale, stabilita dalla direttiva, della responsabilità oggettiva
degli operatori economici che esercitino le attività professionali elencate nell’allegato tre
della direttiva sia stata violata sotto il duplice profilo dell’ambito soggettivo di
applicazione e della non previsione della responsabilità oggettiva. Al riguardo, si segnala
come “l’art. 311, comma 2, del d. lgs. 152/2006 non si riferisce affatto ad attività
professionali di alcun tipo e pone obblighi in capo a <<chiunque>> anziché in capo ad
<<operatori>>, le due disposizioni riguardano due fattispecie diverse: l’articolo 3,
paragrafo 1, della direttiva riguarda la responsabilità ambientale degli operatori
economici; l’articolo 311, comma 2, del d. lgs. 152/2006 riguarda invece la
responsabilità ambientale di qualunque soggetto, a prescindere dal fatto che tale
soggetto abbia causato il danno ambientale nell’esercizio, o al di fuori dell’esercizio, di
un’attività professionale”178.
3. Alla quantificazione del danno il Ministro dell’ambiente e della tutela del territorio provvede in
applicazione dei criteri enunciati negli Allegati 3 e 4 della parte sesta del presente decreto. All’accertamento
delle responsabilità risarcitorie e alla riscossione delle somme dovute per equivalente patrimoniale il
Ministro dell’ambiente e della tutela del territorio provvede con le procedure di cui al titolo III della parte
sesta del presente decreto.
176 Per i riferimenti, v. retro, nota 39
177 Cfr. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.
2012
178 V. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.
2012.
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Tale responsabilità, si ribadisce, deve avere natura oggettiva: in forza
del “combinato disposto degli articoli 3 e 6 della direttiva (...) nel caso in cui il danno
ambientale sia stato causato da una delle attività professionali elencate nell’allegato III
della direttiva, l’operatore è tenuto ad adottare le necessarie misure di riparazione anche
qualora non vi sia stata colpa o dolo da parte sua”179; l’art 311, comma 2, del d. lgs.
152/2006 – rileva la Commissione – àncora, invece, la responsabilità per danno
ambientale ai requisiti del dolo o della colpa, anche nel caso in cui il danno ambientale
sia stato causato da una delle attività professionali elencate nell’allegato III della direttiva,
violando con ciò l’articolo 3, paragrafo 1, lettera a), e l’articolo 6 della direttiva.
Anche la norma relativa all’eccezione a tale regola – che la direttiva
espressamente prevede (art.8) e in forza della quale l’operatore può esonerarsi dalla
responsabilità oggettiva se soddisfa alcune condizioni (articolo 8, paragrafi 3 e 4) – non
è stata correttamente trasposta. La normativa italiana, infatti, “prevede solo le eccezioni
(articolo 308, commi 4 e 5, del d. lgs. 152/2006) senza aver prima stabilito la regola
generale della responsabilità oggettiva, come risulta dal fatto che il d. lgs. 152/2006 ha
omesso del tutto di recepire l’articolo 3, paragrafo 1, della direttiva”.
Ulteriore, ed altrettanto importante, addebito mosso dalla Commissione
nel parere motivato riguarda il risarcimento pecuniario in luogo della riparazione, in
violazione degli articoli 1 e 7 e dell’allegato II della direttiva; la riparazione costituisce,
infatti, il principale strumento attuativo del principio “chi inquina paga”, la cui operatività
risulta fortemente depotenziata dalla previsione relativa alla possibilità di sostituire la
riparazione (primaria, complementare o compensativa) con il risarcimento.
In ottemperanza agli obblighi derivanti dalle violazioni contestate, il
legislatore nazionale aveva modificato, con l’articolo 5-bis della legge 166/2009,
l’articolo 311, commi 2 e 3, del decreto legislativo 152/2006, aggiungendo un riferimento
alle misure di riparazione complementare e compensativa; restava però la previsione
dell’obbligo per il danneggiante al risarcimento pecuniario in via sostituiva, qualora la
riparazione, primaria, complementare e compensativa, venisse omessa o risultasse
impossibile o eccessivamente onerosa; pertanto – osserva la Commissione – “per quando
riguarda la suddetta modifica dell’articolo 311, comma 2, del decreto legislativo
152/2006, (...) il nuovo testo della disposizione, pur migliorando la normativa italiana in
179
V. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.
2012.
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quanto aggiunge il riferimento alle misure di riparazione complementare e compensativa
(laddove il testo originario si riferiva soltanto alla riparazione primaria),conferma
tuttavia che ai sensi della normativa italiana un operatore che abbia causato un danno
ambientale può essere tenuto al risarcimento pecuniario in luogo della riparazione
primaria, complementare e compensativa. Pertanto, a parere della Commissione, tale
modifica dell’articolo 311, comma 2, del decreto legislativo 152/2006 non fa cadere
l’addebito mosso nel parere motivato.”
Con il nuovo testo della disposizione, dunque, il legislatore italiano
confermava la possibilità – nell’ipotesi di danno ambientale causato da un operatore – del
risarcimento pecuniario in luogo della riparazione e ciò in palese contrasto con la direttiva
a tenore della quale si può usare il metodo della valutazione monetaria per determinare
quali misure di riparazione complementare e compensativa siano necessarie (Allegato II,
punto 1.2.3, della direttiva), ma non si possono sostituire le misure di riparazione
mediante risarcimenti pecuniari.
Ulteriori addebiti, poi180, ineriscono all’ambito di operatività delle
direttiva che la non corretta trasposizione ad opera del legislatore italiano avrebbe
limitato.
In adempimento degli obblighi derivanti dall’appartenenza dell’Italia
all’Unione Europea, la legge 6 agosto 2013, n. 97, Legge europea 2013, con l’art. 25, ha
apportato le modifiche alla parte VI del codice ambientale; in particolare, e sotto il profilo
che ci occupa, si è operata, quanto all’ambito di operatività della normativa, la
suddivisione tra danno ambientale causato da attività professionali (elencate nell’allegato
5 della parte sesta) e danno ambientale causato da attività diverse da quelle elencate
180 C) L’esclusione prevista dall’articolo 303, lettera i), del decreto legislativo 152/2006: violazione
degli articoli 3 e 4 della direttiva. Nel parere motivato la Commissione ha inoltre rilevato come l’articolo
303, lettera i), del decreto legislativo 152/2006 escluda dall’ambito di applicazione della normativa italiana
sulla responsabilità ambientale le “situazioni di inquinamento per le quali siano effettivamente avviate le
procedure relative alla bonifica, o sia stata avviata o sia intervenuta bonifica dei siti nel rispetto delle norme
vigenti in materia, salvo che ad esito di tale bonifica non permanga un danno ambientale”, esclusione che
non è prevista dall’articolo 4 della direttiva. Poiché tale norma sembra introdurre un’indebita limitazione
del campo d’applicazione della direttiva, se ne conclude che l’articolo 303, lettera i), del decreto legislativo
152/2006 viola gli articoli 3 e 4 della direttiva. La Commissione osserva che a tutt’oggi le Autorità italiane
non hanno fornito alcun chiarimento sull’effettiva portata dell’articolo 303, lettera i), del decreto legislativo
152/2006, con particolare riferimento al rapporto tra la Parte Quarta, Titolo V (Bonifica di siti contaminati),
del decreto legislativo 152/2006 e la Parte Sesta (Norme in materia di tutela risarcitoria contro i danni
all’ambiente) dello stesso decreto legislativo.
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nell’allegato 5 della parte sesta in caso di comportamento doloso o colposo181. Si è,
inoltre, eliminato ogni riferimento al risarcimento del danno per equivalente patrimoniale,
concentrandosi invece sulla riparazione e sul ripristino (art. 25, n. 1, lett. c, d, f ,g, h che
sostituisce l’intero terzo comma dell’art. 311, lett. i e lett. l); in particolare, la lettera i) ha
modificato parte del comma dell’art. 313, precisamente la previsione della possibilità del
risarcimento per equivalente pecuniario nel caso in cui il ripristino risulti “in tutto o in
parte impossibile, oppure eccessivamente oneroso ai sensi dell’art. 2058 del codice
civile”. La modifica apportata all’art. 313 ha eliminato tale opzione, prevedendo che
qualora il responsabile del fatto che ha provocato danno ambientale non provveda in tutto
in parte al ripristino nel termine ingiunto «o all'adozione delle misure di riparazione nei
termini e modalità prescritti, il Ministro dell'ambiente e della tutela del territorio e del
mare determina i costi delle attività necessarie a conseguire la completa attuazione delle
misure anzidette secondo i criteri definiti con il decreto di cui al comma 3 dell'articolo
311 e, al fine di procedere alla realizzazione delle stesse, con ordinanza ingiunge il
pagamento, entro il termine di sessanta giorni dalla notifica, delle somme corrispondenti».
In linea con lo spirito della normativa, la lettera l) sopprime il 3 (oltre che il 2°) comma
dell’art. 314 relativo alla quantificazione del danno che l’ordinanza ministeriale doveva
contenere; la norma, oltre a determinare i criteri di quantificazione del danno (da valutare
con riferimento al costo necessario per il ripristino), faceva espresso riferimento al
risarcimento per equivalente patrimoniale nell’ipotesi di impossibilità di quantificazione
del danno non risarcibile in forma specifica.
La procedura d’infrazione ed i rilievi mossi hanno portato alle
modifiche attuali (Legge Europea) con le quali l’illecito ambientale ha cambiato
fisionomia, abbandonando lo schema della tutela aquiliana (art. 2043) nel cui ambito la
corte costituzionale, nel 1987, aveva ricondotto la responsabilità per danno
all’ambiente182, circostanza che rispecchia la concezione di ambiente quale interesse
fondamentale della collettività; “interesse pubblico ambientale”183 il cui deterioramento
deve essere riparato, data la natura primaria del bene e la sua appartenenza collettiva, e
181
V. l’art. 298-bis, Principi generali, introdotto dall’art. 25, n. 1, lett. a, della L. 6 agosto 2013, n.
97 , ed il “nuovo” secondo comma dell’art. 311 interamente riscritto dalla lett. g) del medesimo art. 25, n.
1, della L. 97/2013.
182 Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit. c. 706.
183 Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., c. 706.
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non risarcito alla stregua della lesione di un qualsiasi altro bene di appartenenza
individuale.
Il precipuo rilievo del recupero delle risorse collettive e l’esclusione di
ogni riferimento ai profili risarcitori sembrerebbe chiudere per sempre la possibilità di
ingresso ad ogni rivendicazione privata, con ciò ponendosi in contrasto, però, con quella
definizione di ambiente quale interesse fondamentale dell’individuo, che la Corte
costituzionale184 e lo stesso legislatore dell’ambiente185 riconoscono e che ha portato la
giurisprudenza di legittimità ad affermarne la triplice dimensione186. Ad un’evoluzione
verso una tutela risarcitoria anche del singolo può, però, pervenirsi, abbastanza
semplicemente ma non semplicisticamente, ove si assuma a punto focale dell’indagine la
natura di valore primario del bene ambiente, del suo essere interesse fondamentale della
collettività e al tempo stesso della persona, con la conseguente pluridimensionalità del
danno187.
A conclusioni più coerenti e comprensibili può giungersi, però, solo
dopo un’attenta disamina dell’illecito ambientale nella sua evoluzione e nel confronto con
l’illecito civile.
184
Corte cost., 28 maggio 1987, n. 210, cit.. c. 346.
185 Sono più di uno i riferimenti allo stretto collegamento tra la qualità della vita umana (art. 1) e le
condizioni dell’ambiente la cui tutela costituisce attuazione dell’art. 2 della Costituzione (oltre che di altre
norme costituzionali, nel rispetto del Trattato dell’ Unione europea: v. art. 3-bis)
186 “II danno ambientale risarcibile presenta una triplice dimensione: personale quale lesione del
fondamentale diritto all’ambiente salubre da parte di ogni individuo; sociale quale lesione del diritto
all’ambiente nelle articolazioni sociali nelle quali si sviluppa la personalità umana; pubblica quale lesione
del diritto-dovere pubblico spettante alle istituzioni centrali e periferiche”: Cass. pen., sez. III, 5 aprile 2002,
n. 22539, Giur. it., 2003, p. 696; tale ultimo principio, affermato in precedenza da Cass. pen., sez. III, 1º
ottobre 1996, n. 9837, Arch. nuova proc. pen., 1996, p. 871, è stato successivamente ribadito da Cass. pen.,
21 ottobre 2004, sez. III, n. 46746, Arch. nuova proc. pen., 2005, p. 181; Cass. pen., sez. III, 6 marzo 2007,
n. 16575, Danno e resp., 2008, p. 406 ss. e Cass. pen., sez. II, 25 maggio 2007, n. 20681, CED, 2007; Cass.
pen, sez. III, 11 febbraio, 2010, n. 14828, CED, 2010.
187 Cfr. Cass. pen., sez. III, 11 febbraio 2010, n. 14828, CED, 2010: “Tale nocumento ha dimensioni
diversificate: la giurisprudenza di legittimità ha chiarito che il danno in esame presenta, oltre a quella
pubblica, una dimensione personale e sociale quale lesione del diritto fondamentale all’ambiente salubre di
ogni uomo e delle formazioni sociali nelle quali si sviluppa la personalità: il danno ambientale in quanto
lesivo di un bene di rilevanza costituzionale, quanto meno indiretta, reca una offesa alla persona umana
nella sua sfera individuale e sociale. In tale contesto, è riscontrabile in capo alle associazioni ecologiche un
interesse legittimo alla tutela del territorio ed è stata riconosciuta la loro possibilità di costituirsi parti civili
nel processo alle seguenti condizioni. Le ricordate associazioni non possono costituirsi parte civile al fine
di chiedere la liquidazione del danno ambientale di natura pubblica (a sensi della legge 348/1986, art. 18 e
ora del D. lgs. 152/2006), ma possono agire in giudizio – in virtù del principio fondamentale in tema di
nocumento ingiusto risarcibile enucleato dall’art. 2043 c.c. – per il risarcimento dei danni patiti dal sodalizio
a causa del degrado ambientale”.
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L’assetto attuale rappresenta il punto d’arrivo, il precipitato di un
processo osmotico dove il danno all’ambiente188 e la responsabilità che ne deriva hanno
a lungo oscillato tra disciplina privatistica e disciplina pubblicistica, tra funzione
compensativo-satifattoria e sanzionatorio-riparatoria, per assumere una connotazione
decisamente pubblicistica189 con l’elaborazione di un modello risarcitorio strutturato con
modalità volte alla pressoché esclusiva tutela dello Stato.
Di ciò ne è riprova il fatto che il Codice dell’ambiente assegnando al
Ministro competente due rimedi alternativi190 e caducando l’art. 18, L. n. 349/1986,
determina l’inammissibilità di un’autonoma azione risarcitoria da parte delle associazioni
ambientaliste, in capo alle quali residua il potere di partecipare al procedimento relativo
all'adozione di misure di precauzione, prevenzione o ripristino dello status quo ante
188
Il Codice ambientale esprime la nozione di “danno ambientale” in due norme: gli artt. 300
(Danno ambientale) e 311 (Azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente patrimoniale); tali
disposizioni se collocano la nozione in una dimensione comunitaria la agganciano, al tempo stesso,
all’impianto normativo precedente. Il legislatore del 1986 forniva con l’art. 18 una nozione di danno ampia
idonea a ricomprendere tutti i possibili interessi tutelati facenti capo al concetto di ambiente (v. R.
TOMMASINI, Danno ambientale e danno alla salute, cit., p. 145; L. BARBIERA, Qualificazione del danno
ambientale nella sistematica generale del danno, in Il danno ambientale con riferimento alla responsabilità
civile, a cura di P. PERLINGIERI, Esi, Napoli, 1991, p. 115); nel nuovo assetto normativo, il danno
ambientale è qualsiasi deterioramento delle risorse naturali e il deterioramento causato alle biodiversità
protette; l’art. 300 infatti che espressamente definisce il danno ambientale ai sensi della direttiva
comunitaria (1. È danno ambientale qualsiasi deterioramento significativo e misurabile, diretto o indiretto
di una risorsa naturale o dell’utilità assicurata da quest’ultima. 2. Ai sensi della direttiva 2004/35/CE
costituisce danno ambientale...), fornisce, una descrizione analitica e molto dettagliata di pregiudizi a beni
ambientali. L’art. 311, contiene, invece, così come l’abrogato art. 18, una nozione di danno lata, senza
specificazioni quasi a significare l’impossibilità di ridurre il danno ambientale alle sola lesione alle risorse
naturali (a quei pregiudizi da ritenersi indicati, dunque, solo in via esemplificativa e non tassativa dall’art.
300) e ciò in linea con quell’ idea, di “danno all’ambiente considerato in senso unitario, quale bene a sé
stante, ontologicamente diverso dai singoli beni che ne formano il substrato” che si rinviene nella
giurisprudenza di legittimità (Cass., 3 febbraio 1998, n. 1087, in Foro it., 1998, I, c. 1151) e costituzionale
(Corte cost, 30 dicembre 1987, n. 641, cit. e, tra le più recenti Corte cost., 14 novembre 2007, n. 378, in
Giur. it., 2007, p. 1628 ss) e che riflettere la complessità, unitarietà e immaterialità dell’ambiente (Cass.,
17 aprile 2008, n. 10118, in Giur. it., 2008, p. 2708; Cass. pen., 6 marzo 2007, n. 16575, in Danno e resp.,
2008, p.406 ss.; Cass., 3 febbraio 1998, n.1087, cit.; Cass., 1 Settembre 1995, n. 9211, in Riv. giur.
Ambiente, 1996, pp. 472-473; Cass., 9 aprile 1992, n. 4362, in Mass. Giur. it., 1992).
189 V. sul punto U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente alla luce dei
principi europei, cit., p.795 ss.
190 Il primo rimedio è l'azione civile innanzi al giudice ordinario, il secondo concerne l'adozione di
un'ordinanza ex art. 313 d. lgs. n. 152/2006 con cui si dispone il risarcimento del danno e qualificabile come
provvedimento autoritativo. La legittimazione a ricorrere al G.A., in sede esclusiva, avverso gli atti e i
provvedimenti assunti in violazione delle disposizioni del decreto, nonché contro il silenzio inadempimento
del ministro dell'ambiente e per il risarcimento del danno da ritardo nell'attivazione delle misure di
precauzione, prevenzione, o di contenimento del danno ambientale compete ex art. 310 «alle regioni, le
province autonome e gli enti locali, anche associati, nonché le persone fisiche o giuridiche che sono o
potrebbero essere colpite dal danno ambientale».
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oltreché la facoltà di invocare l'intervento dello Stato a tutela dell'ambiente attraverso la
presentazione di denunce e osservazioni191.
Quanto al primo dei rimedi cui si è fatto cenno, è utile sottolineare il
radicale mutamento della tutela ambientale attraverso l'ordinanza dello Stato192 che ha
conferito l’esclusiva legittimazione all’azione all’autorità deputata piuttosto che al
soggetto direttamente leso, in tal modo configurando il danno ambientale come illecito
amministrativo193 sanzionato con il ripristino o con l’adozione delle misure di
riparazione194.
Ma vi è di più; la disciplina codicistica195 palesa la propria
inadeguatezza salvaguardando il risarcimento dei soli beni elencati in modo tassativo196
e determinando, al contempo, una condizione di incertezza procedurale poiché omette
l’indicazione del giudice competente, diversamente da quanto previsto dall'abrogato art.
18197.
L’intelligibilità dell’assunto normativo è reso ancora più complesso ove
il danno venisse accertato e quantificato dall'ordinanza ministeriale, poiché in questa
ipotesi la potestas iudicandi traslerebbe in capo al giudice amministrativo soltanto nel
caso in cui il provvedimento venisse impugnato198.
In base alle sinteticamente ricostruite coordinate, anche la nuova
responsabilità per danno ambientale anziché porre attenzione ai soggetti danneggiati
191
Cfr. art. 309 d. lgs. n. 152/2006 ove si specifica che le associazioni sono considerate soggetti
titolari della facoltà di presentare al Ministero dell’ambiente e della tutela del territorio denunce e
osservazioni corredate da documenti, concernenti fattispecie di danno ambientale o di minaccia imminente
al fine di sollecitare l’intervento statale.
192 Si veda la disciplina prevista nell’art. 313 del d. lgs. n. 152/2006.
193 M. ATELLI, Prime note sul danno ambientale nel nuovo codice dell’ambiente, in resp. civ.,
2006, p. 669s..
194 Cfr. art. 313, comma 2, così modificata dall’art. 25, lett. i) L. 6 agosto 2013, n. 97 (Legge europea
2013).
195 Ci si riferisce in particolare alla opaca formulazione del comma settimo dell’art. 313 del d.lgs.
n. 152/2006.
196 L’art. 313 del d.lgs. 152/2006 si riferisce espressamente alla salute e ai beni di proprietà.
197 L’articolo 18 della legge n. 349/1986 radicava, infatti, expressis verbis la giurisdizione in capo
al giudice ordinario e tutt’ora non si può dubitare, in base al normale riparto che tale soluzione sia quella
preferibile.
198 Si v. art. 316 del d. lgs. 152/2006 ove si specifica che il ricorso debba essere presentato al
Tribunale amministrativo regionale competente in relazione al luogo nel quale si è prodotto il danno
ambientale.
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appare protesa a sanzionare l’autore dell'illecito per i danni procurati alla collettività199,
e ciò in antitesi con il sistema della responsabilità civile e piuttosto in linea con la vecchia
sistematica del Codice Codacci-Pisanelli del 1865, ove l'illecito civile altro non era che
la trasposizione in campo civilistico della fattispecie penale200.
Il dissenso a detto orientamento è in primo luogo dovuto dall’attuato
pieno riconoscimento dell’autonomia dell'illecito civile rispetto a quello penale,
evidentemente distinti in quanto a genesi, funzione e struttura201. Inoltre giovi ricordare
che nel sistema penale la finalità è sanzionatoria allorquando in quello civile
precipuamente riparatoria, tant’è che nel reato al centro del palcoscenico troviamo il
carnefice da sanzionare nel mentre nell’illecito civile la vittima ovvero il danneggiato da
risarcire202. Ciò spinge a considerare quanto possa essere irragionevole che il danneggiato
subisca le conseguenze altrui piuttosto che il danneggiante renda conto dell’illecito
commesso203.
La responsabilità ambientale che riecheggiava alcuni elementi di quella
civile204, si sarebbe caratterizzata per difetto di tutela ove si fosse negata la possibilità di
199 M. LIBERTINI, La nuova disciplina del danno ambientale e i problemi generali del diritto
dell'ambiente, in Riv. critica dir. priv., 1987, pp. 581 ss.; F. GIAMPIETRO, La responsabilità per danno
all’ambiente in Italia: sintesi di leggi e di giurisprudenza messe a confronto con la direttiva 2004/35/CE e
con il T.U. ambientale, in Riv. giur. ambiente, 2006, fasc. 1, p. 19 s. 200
Il codice previgente del 1865 poneva l’illecito civile sullo stesso piano del reato nell’ambito di
un sistema tratteggiato da perfetta omogeneità sul piano della finalità e degli altri profili disciplinari. Si cfr.
sul punto B. ALBANESE,voce Illecito (storia), in Enc .dir., XX, Milano, 1970, p. 50 s.
201 Sul punto è illuminante la Corte di Cass., S.U., n. 581/2008 con riferimento alla causalità e ai
diversi criteri di accertamento. Si v. anche Cass., S.U., n. 1768/2011 ove si afferma che disposizioni come
quella dell’art. 652 c.p.p. costituiscono eccezioni al principio di autonomia e separazione dei giudizi penale
e civile.
202 È questa una considerazione condivisa dalla dottrina; cfr., tra gli altri, C. SALVI, Il danno
extracontrattuale, modelli e funzioni, Napoli, 1985, 85; L. CORSARO, Tutela del danneggiato e
responsabilità civile, Milano, 2003, 2. In giurisprudenza si consideri sul punto Cass. sez. III n. 11755/2006.
203 Questo perché il sistema penale è imperniato su principi come quello della presunzione di
innocenza, personalità della responsabilità, funzione rieducativa della pena che non sono presenti nel
sistema civile e che ad esempio determinano l’assoluzione ex art. 530 c.p. per insufficienza o
contraddittorietà della prova della colpevolezza. La privazione della libertà del singolo si concreta solo
quando non residui alcun dubbio sulla prova della colpevolezza o della causalità. Nel sistema civile, al
contrario dove questi principi non hanno medesima forza e soprattutto dove sono pacificamente ammissibili
ipotesi di responsabilità oggettiva, è più giusto che le conseguenze dannose di un rischio vengano traslate
in capo al danneggiante, piuttosto che sul danneggiato incolpevole.
204 Ciò dallo stretto legame tra l’art. 2043 c.c. e l’art 18 dell’art. 349/1986 nella parte in cui
disponeva che qualunque fatto doloso o colposo che compromettesse l’ambiente obbligava l’autore del fatto
al risarcimento nei confronti dello Stato. Sulla possibilità di sussumere la responsabilità ambientale sotto
quella da illecito extracontrattuale si v. G. GRECO, Danno ambientale e tutela giurisdizionale, in Riv. giur.
ambiente, 1987, p. 525 s.
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una interpretazione ed applicazione, per quanto rispettosa, non vincolata al dato
normativo.
La tipizzazione della condotta illecita205, il richiamo all’inosservanza di
leggi o di provvedimenti adottati in base alle stesse206 e, non ultimo, il riferimento alla
gravità della colpa nella valutazione del risarcimento207, ci consegnavano uno schema
prevalentemente basato su logiche penalistiche non condivisibile per l’assenza del
vincolo di solidarietà tra i danneggianti, che le modifiche alla norma hanno conservato,
nell’ipotesi di pluralità di condotte lesive dell’integrità ambientale,208 e la preferenza per
il ripristino della situazione lesa in luogo del risarcimento per equivalente209.
Le attuali modifiche alla parte VI del Codice dell’ambiente che – come
si è detto – hanno caratterizzato l’illecito ambientale in termini amministrativo-
penalistici, sembrano non tenere conto della “triplice dimensione” – pubblica, personale
e sociale210 – dell’ambiente e della circostanza che il fatto dannoso per l'ambiente può
comportare conseguenze pregiudizievoli anche di interessi privati quindi non
205
L. BIGLIAZZI GERI, Quale futuro dell’art. 18 legge 8 luglio 1986 n. 349? in Riv. critica dir.
priv., p. 685 s.; C. CASTRONOVO, Il danno all’ambiente nel sistema di responsabilità civile, in Riv.
critica dir. priv., 1987, p. 512 s. U. NATOLI, Osservazioni sull’art. 18 legge 349/86, in Riv. critica dir.
priv., 1987, p. 703 s.
206 Cfr. RICCARDO BAJINO, Profili penalistici nella legge istitutiva del Ministero dell'Ambiente,
in Studi parlamentari e di politica costituzionale, n. 71 1986, p.81-86.
207 S. PATTI, La valutazione del danno ambientale, in Riv. dir. civ., 1992, p. 447 ss.
208 L’art. 311 d. lgs. n. 152/2006 dispone che “nei casi di concorso nello stesso evento di danno,
ciascuno risponde nei limiti della propria responsabilità personale”, introducendo un’eccezione alla più
generale disciplina prevista dall’art. 2055 c.c. sulla responsabilità dei condebitori che sono tenuti a
rispondere in modo solidale nei confronti del soggetto leso. Sulle obbligazioni solidali si v. A. DI MAJO,
voce Obbligazioni solidali (e indivisibili), in Enc. dir., XXIX, Milano, 1979, p. 323 s.
209 Questa asserzione trova conferma sia nella originaria previsione dell’art. 311, comma secondo,
che in quella successiva, conseguente alla riforma del 2009 (art. 5-bis, DL 25 settembre 2009, n. 135), che
diversamente da quanto previsto dall’art. 2058 c.c., ove è sancito il principio generale del risarcimento per
equivalente, prevedeva per il responsabile l’obbligo all’effettivo ripristino a sue spese della precedente
situazione e, in mancanza, all’adozione delle misure di riparazione complementari e compensative di cui
alla direttiva 2004/35/CE. Solo nel caso in cui ciò sia omesso, attuato in modo incompleto oppure risulti
impossibile o eccessivamente oneroso “il danneggiante è obbligato, in via sostitutiva, al risarcimento per
equivalente patrimoniale nei confronti dello Stato”. Sulla quantificazione del danno si v. da ultimo Cass.
n. 6551/2011 in Giur. it., 2012, p. 554 s.
210 V. retro, nota 186.
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contemplabile entro rigide pareti dispositive211 o limitato212 al fine di restringere l’area
del danno risarcibile213 per evitare il rischio di mettere a repentaglio l’integrale
risarcimento dello Stato.
Una corretta lettura della responsabilità in epigrafe impone un disegno
di tutela che riconosca il diritto del privato ad ottenere il risarcimento del danno non solo
nel caso di lesione alla salute o alla proprietà214, in quanto l’ingiustizia inevitabilmente
determina il pregiudizio di una posizione giuridicamente rilevante, allocabile ben oltre le
frontiere del diritto soggettivo215, rendendo trascurabile la qualificazione formale
dell’ambiente e ponendo l’accento sull’id quod interest di una situazione giuridicamente
qualificata in quanto meritevole di tutela216. I diritti fondamentali come l’ambiente217,
211
L’art. 300 del d. lgs. n. 152/2006 qualifica il danno ambientale come “qualsiasi deterioramento
significativo e misurabile, diretto o indiretto, di una risorsa naturale o dell’utilità assicurata da
quest’ultima”, facendo poi riferimento, nel secondo comma, a particolari risorse naturali elencate in modo
tassativo che vengono tutelate. Sul concetto di ambiente delimitato alle fattispecie indicate nella norma si
v. U. SALANITRO, Il risarcimento del danno ambiente: un confronto tra vecchia e nuova disciplina, in
Riv. giur. ambiente, 2008, p. 939 s.; F. GIAMPIETRO La nozione di ambiente e di illecito ambientale: la
quantificazione del danno, in Ambiente e sviluppo, 2006, p. 463 s.
212 Si pensi al comma settimo dell’art. 313 che sembra limitare il danno risarcibile alla salute o alla
proprietà, quando dispone che “resta in ogni caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati dal fatto
produttivo del danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di agire in giudizio nei
confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”, non considerando ad esempio, il danno
esistenziale per perdita della possibilità di svolgere le attività dinamico-relazioni o il danno morale come
sofferenza transeunte, patiti in conseguenza di un danno all’ambiente produttivo di conseguenze
pregiudizievoli sulla sfera giuridica di chi assuma violato il proprio diritto all’ambiente.
213 Sul punto si v. Cass. sez. III n. 4186/98 ove si afferma che la questione da risolvere non è tanto
quella dell’ammissibilità o meno del risarcimento del danno morale, quanto piuttosto la dimostrazione sul
piano probatorio delle conseguenze dannose. Cfr. anche Corte Cass. n. 8827/2003.
214 Nel caso di perdita di una risorsa naturale in seguito alla distruzione di un bosco, contaminazione
del terreno, dell'aria o dell’acqua, si potrebbe ricorrere ad un intervento legislativo che consenta al
proprietario dell'immobile che abbia provveduto al ripristino dello status quo ante di chiedere il rimborso
delle spese al danneggiante come accade in Germania; Sul punto cfr. E. REHBINDER, ‘A German Source
of Inspiration? Locus Standi and Remediation Duties under the Soil Protection Act, the Environmental
Liability Act and the Draft Environmental Code’ in Betlem, G. and Brans, E. (eds.), Environmental Liability
in the EU – The Proposed Directives, GMOs and Mineral Resource Extraction (London, Cameron May,
forthcoming 2004). Si potrebbe, inoltre, ipotizzare il riconoscimento della legittimità ad agire non solo in
capo singolo, ma anche a tutte quelle associazioni portatrici di questi interessi che dal danno ambientale
subiscano un pregiudizio non necessariamente legato alla salute o alla proprietà, qualificabile tuttavia come
danno serio e apprezzabile in termini di danno conseguenza ex artt. 1223 e 1227 c.c.; si veda, però, in senso
contrario,U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente, cit.
215 S. RODOTA’, Il problema della responsabilità civile, Milano 1964, p. 139 ss.; C.
CASTRONOVO, La nuova responsabilità civile, Milano, 2006, p. 22 s.
216 Sul punto si v. P. RESCIGNO, Introduzione al codice civile, Bari, 1991.
217 Si cfr. Corte Cost. n. 210/1987, cit., ove si afferma che già prima della riforma del titolo V è
rinvenibile nella Costituzione un riconoscimento specifico della salvaguardia dell’ambiente come diritto
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dunque, non possono esserne privati218 con conseguente ammissibilità al risarcimento del
danno non patrimoniale prodotto dalla compromissione degli stessi, per realizzare una
riparazione piena ed integrale non soltanto nel caso di pregiudizio nominato dalla
legge219, ma anche quando, per l’appunto, esso rappresenti conseguenza diretta ed
immediata220 della lesione di un interesse221. L’indirizzo ha trovato peraltro conferma
nella più attenta giurisprudenza di legittimità222 che, seppur non indicando un criterio di
selezione delle situazioni giuridiche rilevanti223, rimanda alla mera sussistenza di una
causalità immediata e diretta di un interesse meritevole224, qual è il danno morale
soggettivo all’ambiente, ammettendone il risarcimento quando sia conseguenza
dell'attività illecita altrui.
Inoltre non si può non tener conto del parallelismo tra l’ingiustizia del
danno225, riferita a situazioni giuridiche diverse dal diritto soggettivo assoluto,
fondamentale della persona ed interesse fondamentale della collettività; in tal senso si v. anche Corte Cost.
n. 641/1987.
218 F. D. BUSNELLI, Il danno alla persona: un dialogo incompiuto tra giudici e legislatore, in
Danno e resp., 2008, p. 609 s.
219 In tal senso si cfr. l’art. 313 del d. lgs. n. 152/2006 cit. con riferimento alla salute e ai beni di
proprietà dei singoli.
220 L’art. 1225 c.c. in tema di causalità giuridica dispone expressis verbis il risarcimento di tutti quei
pregiudizi che siano conseguenza diretta ed immediata o mediata purché normale dell’evento di danno.
221 Cfr. M. FRANZONI, Dei fatti illeciti (artt. 2043-2059) in Commentario del codice civile
Scialoja-Branca a cura di F. Galgano, Bologna-Roma, 1993.
222 Cass. S.U. n. 2515/2002, in Giur. it, 2002, 1270, ove i giudici ammettono che in caso di disastro
colposo è risarcibile il danno non patrimoniale sub specie di danno morale soggettivo subito da chi abita o
lavora in un certo contesto se si prova in concreto di aver subito un turbamento psichico di natura transitoria
a causa dell'esposizione a sostanze inquinanti. 223
L’art. 2 Cost. è clausola generale aperta, che non ammette una elencazione tassativa di diritti
inviolabili, potendo essi cambiare, modificarsi o nascere in base all’evoluzione dei rapporti sociali. Sul
punto si v. F. GAZZONI, L’art. 2059 c.c. e la Corte costituzionale: la maledizione colpisce ancora, in
Resp. civ. prev., 2003, p. 1306 s.; E. NAVARRETTA, Diritti inviolabili e risarcimento del danno, Torino,
1996.
224 Sul punto si veda, anche, la storica sentenza n. 500/1999 delle Sezioni Unite di Cassazione che,
nell’ammettere la risarcibilità dell’interesse legittimo, afferma che è sufficiente l’esistenza di una posizione
meritevole di tutela in base all’ordinamento per poter accedere alla tutela risarcitoria ex art. 2043 c.c.; cfr.
C. M. BIANCA, La responsabilità, Milano, 1994, p. 113 s.
225 Sulla nozione di ingiustizia del danno ampia la letteratura: G. ALPA, La responsabilità civile.
Parte generale, Milano, 2010, p. 358 ss.; R. SACCO, L’ingiustizia del danno di cui all’art. 2043, in Foro
pad., 1960, p. 1420 s.; P. SCHLESINGER, La “ingiustizia” del danno nell’illecito civile, in Jus, 1960, p.
338. s.; S. RODOTA’, Il problema della responsabilità civile, cit., p. 46. s.; G. CIAN, Antigiuridicità e
colpevolezza. Saggio per una teoria dell’illecito civile, Padova, 1966, p. 154 s.; P. TRIMARCHI, voce
Illecito (diritto privato), in Enc. dir., XX, Milano, 1970, p. 90 s.; R. SCOGNAMIGLIO, Responsabilità
civile, in Nuovo Dig. it., Torino, 1962, XV, p. 628; P. G. MONATERI, La responsabilità civile, in Trattato
di diritto civile, diretto da R SACCO, Torino, 1998, p. 567 s; E. NAVARRETTA, Il danno ingiusto, in
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ciononostante meritevoli di tutela, e il venir meno della rigorosa tipicità del danno non
patrimoniale226, risarcibile anche laddove una norma puntuale non lo contempli, a fronte
della lesione di valori inviolabili della persona ex art. 2 Cost. e per ciò solo in grado di
soddisfare la riserva di legge dell’art. 2059 c.c.227.
La violazione del diritto all'ambiente, in quanto diritto fondamentale,
non può essere sottoposto ad altri limiti oltre quelli della meritevolezza228 e dimostrazione
del pregiudizio subito, in quanto si configura oltre che nel venir meno di utilità ambientali
(sulle quali il privato ha fatto affidamento) anche nella sincopata libertà di azione e di
vita, oltre che nei controlli sanitari, talvolta coattivi, determinando, in tutti questi casi,
posizioni soggettive differenziate229 che pongono il soggetto leso in una condizione
tutt’altro che assimilabile al resto della collettività e come tale, meritevole di salvaguardia
dall'ordinamento giuridico230.
Diritto civile, diretto da N. LIPARI e P. RESCIGNO coordinato da A. ZOPPINI, Attuazione e tutela dei
diritti, IV, La responsabilità e il danno, III, Milano, 2009, p. 137 s.; G. VISINTINI, Trattato breve della
responsabilità civile. Fatti illeciti, inadempimento, danno risarcibile, Padova, 2005, p. 38 s.
226 L’impostazione più risalente ammetteva il risarcimento del danno non patrimoniale solo nel caso
di espressa previsione legislativa; nel corso degli ultimi anni si è abbracciato, al contrario, l’approccio che
relativizza il principio di tipicità del danno non patrimoniale e che prevede la possibilità di agire in giudizio
ogni volta che ad essere leso sia un diritto fondamentale della persona, anche senza che vi sia una norma
specifica che ne ammetta la risarcibilità.
227 Per “casi previsti dalla legge” si intendono non piu e non solo norme puntuali, ma anche tutti
quei precetti costituzionali che garantiscono i diritti inviolabili e ne impongono la piena tutela
indipendentemente dall’illecito penale, introducendo così un concetto di ingiustizia costituzionalmente
qualificata rafforzata dall’inerenza del diritto leso ai valori inviolabili della persona. Sul punto illuminante
la più recente giurisprudenza della Corte di legittimità: Cass. Civ. n. 8827 e n. 8828; Cass. Sez. un. 11
novembre n. 2008/26972.
228 Si potrebbe utilizzare il criterio della vicinitas, non solo come riconoscimento della
legittimazione dei singoli che agiscano a tutela del bene ambiente ma anche quale criterio che evidenzi la
stretta correlazione tra soggetto e bene di cui si lamenti la lesione, in modo da distinguere pretese serie da
quelle prive di fondamento. Sul criterio della vicinitas si v. Cons. Stato Sez. V, 31-03-2011, n. 1979.
229 P. RESCIGNO, Introduzione al codice civile, cit., p. 159 s. l’autore sottolinea che “oggetto di
tutela non è solamente il diritto soggettivo ma ogni interesse socialmente apprezzabile”. Nel fare ciò
richiama, tra le più pregnanti novità in tema di fatto illecito, la disciplina del danno ambientale.
230 Sul danno ambiente come danno ingiusto si cfr. in particolare E. LECCESE, Danno all’ambiente
e danno alla persona, cit., p. 247 s. Il danno all’ambiente è danno ingiusto anche alla luce della recente
giurisprudenza della Corte europea dei diritti dell’uomo. La Corte di Strasburgo (Sentenza della Corte
Europea dei Diritti dell'Uomo del 10 gennaio 2012 – Ricorso n 30765/08 – Di Sarno e altri c. Italia) ha
ritenuto che il danno ambientale, provocato dal cattivo funzionamento del sistema di gestione dei rifiuti (e
denunciato da diciotto cittadini italiani, con ricorso proposto contro la Repubblica italiana per violazione
dei diritti garantiti dalla Convenzione, in particolare l’art. 8), sia tale da “colpire il loro benessere” e ha
dichiarato che vi è stata violazione dell’art. 8 della Convenzione, sotto il profilo materiale, con ciò
riconoscendo il lamentato danno morale che, tuttavia, è stato ritenuto sufficientemente riparato con la
constatazione della violazione. La Corte (par. 104) ha ricordato “che i gravi danni ambientali possono
incidere sul benessere delle persone e privarle del godimento del loro domicilio in modo da nuocere alla
loro vita privata e familiare”; in particolare, si afferma nella pronuncia: “i ricorrenti sono stati costretti a
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Ciò collide con la disciplina del codice dell’ambiente; infatti, da
un'attenta ermeneusi delle norme sul danno si può dedurre che l'obiettivo principale
perseguito dal legislatore è stato ottenere, in modo anche derogatorio alla normale
disciplina in tema di illecito civile, il ripristino della situazione originaria senza la
necessità di una specifica richiesta della parte in causa in quanto disposta ex officio231.
La ratio della disciplina mira alla ricomposizione dello stato dei luoghi
preesistenti all’eventus damni ponendo l’accento sul ruolo rieducativo più che sul fine
riparatorio che dovrebbe, al contrario e più giustamente, connotare tale disciplina.
La Corte di legittimità delle Sezioni Unite ha chiarito che la
giustificazione alla base di questo ordine di preferenza dei rimedi è rinvenibile nell'intento
di favorire una coincidenza tra i soggetti portatori degli interessi lesi dal degrado
ambientale ed i beneficiari del ripristino dello stato dei luoghi232, dimenticando però che
non sempre il risarcimento in forma specifica233 è sufficiente alla ricomposizione e
riparazione degli interessi in gioco potendo gli stessi essere diversi da quelli del semplice
ripristino del bene o dal pagamento di una somma idonea ad una messa in ripristino234.
La configurazione del danno non patrimoniale, alla stregua di lesione
di un interesse della personalità, pone l’accento su un piano diverso da quello del
vivere in un ambiente inquinato dai rifiuti abbandonati per le strade almeno dalla fine del 2007 al mese di
maggio 2008. La Corte ritiene che questa situazione abbia potuto portare ad un deterioramento della qualità
di vita degli interessati e, in particolare, nuocere al loro diritto al rispetto della vita privata e del domicilio.
Pertanto nel caso di specie è applicabile l'articolo 8 (...). La Corte ritiene che la presente causa verta non su
una ingerenza diretta nell'esercizio del diritto al rispetto della vita privata e del domicilio dei ricorrenti che
si sarebbe materializzata con un atto delle autorità pubbliche, ma sulla lamentata omissione di queste ultime
nell'adottare misure adeguate per assicurare il corretto funzionamento del servizio di raccolta, trattamento
e smaltimento dei rifiuti nel comune di Somma Vesuviana. La Corte ritiene quindi appropriato porsi sul
piano degli obblighi positivi derivanti dall'articolo 8 della Convenzione” ed afferma che “gravava sullo
Stato l'obbligo positivo di adottare delle misure ragionevoli ed idonee in grado di proteggere i diritti delle
persone interessate al rispetto della loro vita privata e del loro domicilio e, in genere, al godimento di un
ambiente sano e protetto”.
231 S. PATTI, La valutazione del danno ambientale, in BUSNELLI-PATTI, Danno e responsabilità
civile, Giappichelli, Torino, 2003, p. 100 ss.; S. MAZZAMUTO, Osservazioni sulla tutela reintegratoria
di cui all’art. 18 della legge n. 349 del 1986, in Riv. critica dir. priv., 1987, p. 699 s.; M. MORBIDELLI,
Il danno ambientale nell’art. 18 L. 349/86. Considerazioni introduttive, in Riv. critica dir. priv., 1987, p.
599 ss.; L. M. DELFINO, Ambiente e strumenti di tutela: la responsabilità per danno ambientale, in Resp.
civ. e prev., 2002, 873. 232 Sul punto interessante l’arresto della Cass. Civ. S.U. n. 440/1989. 233
Si cfr. C. CASTRONOVO, Il danno all’ambiente nel sistema della responsabilità civile, cit., p.
517 s, ID., Il risarcimento in forma specifica come risarcimento del danno, in Processo e tecniche di
attuazione dei diritti, a cura di S. Mazzamuto, Napoli 1989, p. 513 s.
234 Basti ricordare i disastri ambientali di Chernobyl (26 aprile 1986), di Seveso (10 luglio 1976) e,
più di recente, la catastrofe in Giappone.
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risarcimento in forma specifica, essendo il danno alla persona235 campo di elezione del
risarcimento per equivalente. Se al danno biologico236, che fa perno su criteri obiettivi,
come l’accertamento medico-legale, si può agevolmente affiancare il sistema tabellare237,
ciò non può dirsi per il danno morale soggettivo e per quello esistenziale, attinenti
entrambi a profili intrinseci della persona238. E’ chiaro dunque che l’accertamento è
opinabile basandosi prevalentemente, ai fini dell’an e del quantum, su presunzioni
legali239.
Data l’impossibilità del ripristino dello status quo ante del bene in
questione240, assume ruolo determinante la valutazione equitativa di cui agli artt. 1226 e
235
G. BONILINI, Il danno non patrimoniale, Milano, 1983, p. 29 ss.; ID., Il danno non
patrimoniale, in La responsabilità civile, V, diretta da G. Alpa e M. Bessone, in Giur. sist. dir. civ. e comm.,
fondata da W. Bigiavi, Torino, 1987, p. 388; L. BIGLIAZZI GERI, Interessi emergenti, tutela risarcitoria
e nozione di danno, in Riv. critica dir. priv., 1996, p. 54 s.; G. ALPA, Responsabilità civile e danno.
Lineamenti e questioni, Bologna, 1991, p. 463 ss.; C. SCOGNAMIGLIO, Il danno biologico: una categoria
italiana del danno alla persona, in Europa e dir. priv., 1998, p. 274 s.; V. SCALISI, Danno alla persona e
ingiustizia, cit., p. 147 s.
236 Si v. art. 313. del d. lgs. 152/2006 cit.
237 Si v. Cass. n. 8827/2003 in Corriere giur., 2003, p. 1017 ss., con nota di M. FRANZONI, Il
danno non patrimoniale, il danno morale: una svolta per il danno alla persona; in Danno e resp., 2003, p.
819 s., con note di F. D. BUSINELLI, Chiaroscuri d’estate. La Corte di Cassazione e il danno alla persona
e G. PONZANELLI, Ricomposizione dell’universo non patrimoniale: le scelte della Corte di Cassazione,
in Resp. civ. e prev., 2003, p. 675 s.; si v. anche Cass. n. 8828/2003, in Corr. giur., 2003, p. 1024 s.; in
Rass. dir. civ., 2005, p. 1104 s., con nota di G. CAIAFFA, L’art. 2059 c.c. profili riparatori (e risarcitori?)
del danno alla persona; in Danno e resp., 2003, p. 816 s, con nota di M. DI MARZIO, Il danno esistenziale
e le sentenze gemelle; in Giur. it , 2004, p. 29. Cfr. inoltre Corte Cost. n. 233/2003, in Danno e resp., 2003,
p. 939 s. con note di M. BONA, Il danno esistenziale bussa alla porta e la Corte Costituzionale apre (verso
il “nuovo” art. 2059); P. PERLINGIERI, L’art. 2059 c.c. uno e bino: una interpretazione che non convince,
in Corriere. giur., 2003, p. 1028 s.
238 Si v. Cass. civ. sez. III n. 14402/2011 che afferma la necessaria integralità del risarcimento del
danno esistenziale che non può essere ridotto, neppure indirettamente ad una frazione del danno biologico,
ma deve essere valutato equitativamente in relazione al caso concreto, in quanto motiva la S.C., occorre
verificare quali aspetti relazionali siano stati presi in considerazione nel caso sottoposto al vaglio del
giudice.
239 Cfr. Cass. n. 6572/2006 che ha affermato che il G.L. può far ricorso in via esclusiva alla
presunzioni “purché, secondo le regole di cui all'art. 2727 c.c. venga offerta una serie concatenata di fatti
noti, ossia di tutti gli elementi che puntualmente e nella fattispecie concreta (e non in astratto) descrivano:
durata, gravità, conoscibilità all'interno ed all'esterno del luogo di lavoro della operata dequalificazione,
frustrazione di (precisate e ragionevoli) aspettative di progressione professionale, eventuali reazioni poste
in essere nei confronti del datore comprovanti la avvenuta lesione dell'interesse relazionale, gli effetti
negativi dispiegati nella abitudini di vita del soggetto; da tutte queste circostanze, il cui artificioso
isolamento si risolverebbe in una lacuna del procedimento logico (tra le tante Cass. n. 13819 del 18
settembre 2003), complessivamente considerate attraverso un prudente apprezzamento, si può
coerentemente risalire al fatto ignoto, ossia all'esistenza del danno, facendo ricorso, ex art. 115 c.p.c., a
quelle nozioni generali derivanti dall'esperienza, delle quali ci si serve nel ragionamento presuntivo e nella
valutazione delle prove”.
240 In particolare si v. Cass civ. sez. III n. 16448/2009 ove si afferma che l’unica forma di
liquidazione, per ogni danno privo delle caratteristiche della patrimonialità, è quella equitativa. Una precisa
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2056 comma secondo, c.c.241, sorretta dagli elementi di esperienza e coscienza sociale, di
cui il giudice è l’interprete, oltre che su prove presuntive o indiziarie a fondamento del
pregiudizio subito242.
Per eludere il rischio di un meccanismo di tipo quasi indennitario243 che
allarghi in modo tendenzioso l’area del danno risarcibile244, si dovrà partire
dall’interesse245 quale elemento costituzionale imprescindibile in ogni situazione posta al
vaglio dell’interprete e dal quale si potrà poi procedere, secondo le coordinate qui
tratteggiate, per distinguere richieste futili da quelle meritevoli.
quantificazione pecuniaria è solo quando esistano dei parametri normativi fissi di commutazione, in difetto
degli stessi non può mai essere provato il suo preciso ammontare fermo restando il dovere del giudice di
dar conto delle circostanze di fatto e di diritto da lui apprezzate nel compimento della valutazione equitativa
e del percorso logico giuridico che lo ha condotto a quella soluzione.
241 Sulla valutazione equitativa si v. C. CASTRONOVO, Il danno alla persona tra essere e avere,
in Danno e resp., 2003, p. 237 s.; R. SCOGNAMIGLIO, Il danno morale, in Riv. dir. civ., 1957, p. 597 s.;
G. PONZANELLI, Le tre voci di danno non patrimoniale: problemi e prospettive, in Danno e resp, 2004.
242 Sul punto si v. Corte dei Conti, Sezioni riunite, n. 10/2010.
243 G. PONZANELLI, Il “nuovo” art. 2059, in G. Ponzanelli (a cura di), il “nuovo” danno non
patrimoniale, Cedam, Padova, 2004, p. 66 s.
244 Si v. Cass. n. 3284/2008, in Danno e resp., 2008, p. 445 s. Nel caso in questione la pretesa
risarcitoria avanzata era stata avanzata in ordine alla collocazione di un lampione per l’illuminazione
pubblica, posizionato ad una distanza tale da consentire a eventuali malintenzionati di accedere
all’appartamento. La vicenda giunta alla Suprema Corte è stata l’occasione per affermare che stress
psicologico e timore vengono in gioco solo quando siano conseguenza di un interesse costituzionalmente
protetto, il quale va previamente individuato in quanto “né la serenità né la sicurezza costituiscono diritti
fondamentali di rango costituzionale inerenti alla persona”.
245 Cfr. in tema di disastro ambientale, Cass. n. 11059/2009 nella quale si fa riferimento all’interesse
per distinguere posizioni tutelabili da quelle che invece non risultano pregiudicate. In particolare la Corte
afferma che è ammissibile il risarcimento del danno non patrimoniale, derivante dal reato di disastro
ambientale, a coloro che si trovano con stabilità in prossimità del luogo in cui si è verificato l’evento e che
siano stati sottoposti, in quanto soggetti a rischio, a ripetuti controlli sanitari sia nell’immediatezza
dell’evento sia successivamente per parecchi anni.
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SEÇÃO DE DOUTRINA: Jurisprudência Comentada
AGRG NO RESP 827.143/DF: PRECEDENTE OU DECISÃO JUDICIAL?
Marília Pedroso Xavier Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo (USP). Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora das Faculdades Integradas
do Brasil e do Centro Universitário Curitiba. Advogada.
Dr. William Soares Pugliese Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito das Relações Sociais pelo
PPGD/UFPR. Advogado.
Não se pode trazer, apenas
por força de interpretação literal da lei, a
conclusão de que, com a morte do segurado,
toda a situação de fato se alterou de um dia
para o outro, com vistas a igualar o percentual
de recebimento de pensão, sob pena de se
retirar de quem necessita do percentual maior,
para atribuir mais a quem antes não
necessitava de tanto. (TRF2, AC
20025101503923-2/RJ, Rel. Juiz Federal Abel
Gomes, DJU 08/08/2005)
Resumo: A partir da análise do acórdão proferido no Agravo Regimental no Recurso
Especial n. 827.143/DF, que aplicou o texto literal do art. 218, §1º, da Lei 8.112/1990,
aos casos em que há concorrência entre dois ou mais beneficiários de pensão por morte,
o presente artigo procura questionar a possibilidade de se considerar como precedente
uma decisão judicial que deliberadamente deixa de considerar os argumentos levantados
pelas partes. Para tanto, argumenta-se que a definição de um precedente depende dos
requisitos da potencialidade da decisão firmar-se como paradigma e do enfrentamento de
todos os argumentos relacionados ao caso pelo tribunal. Ao final, observa-se que o
tratamento de uma decisão com mero potencial de aplicação como precedente pode ser
extremamente prejudicial ao ordenamento jurídico.
Palavras-chave: precedente; decisão judicial; fundamentação.
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Abstract: From the analysis of the judgment on the Special Appeal no. 827.143/DF,
which applied the literal text of art. 218, Paragraph 1, of Statute no. 8112/1990, to cases
where there is a concurrence between two or more beneficiaries to death pension, this
article seeks to question the possibility to consider as a precedent the judicial decision
that deliberately fails to consider the arguments raised by the parties. For this, it is argued
that the definition of a precedent depends on the requirements of the potentiality of the
decision to establish itself as a paradigm and the confrontation of all arguments related to
the case by the court. At the end, it is observed that the treatment of a decision with mere
potential of application as a precedent can be extremely harmful to the legal system.
Keywords: precedent; judicial decision; reasoning.
Sumário: Introdução – 1. Breve exposição do REsp 827.143/DF – 2. Ausência de respeito
à segurança jurídica – 3. Respeito ao princípio da autonomia privada – 4. Respeito ao
princípio da boa-fé e vedação do venire contra factum proprium – 5. Enriquecimento sem
causa – 6. Observância do princípio da distributividade na prestação – 7. Conclusão.
Introdução
Luiz Guilherme Marinoni afirma que precedente não é sinônimo de
decisão judicial.1 Para o autor, fundado na melhor doutrina internacional, só há sentido
falar em precedentes quando se observa que uma decisão é dotada de determinadas
características, “basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a
orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”.2 Sem esta pretensão de universalidade,
tem-se uma simples decisão judicial. Mas apenas isso não basta: para se ter um verdadeiro
precedente “é preciso que a decisão enfrente todos os principais argumentos relacionados
à questão de direito posta na moldura do caso concreto”,3 deste modo conferindo
materialidade ao direito legislado.4
Ainda, convém mencionar que o precedente pode ser formar a partir de
um conjunto de decisões, a que se dá o nome de jurisprudência. É de se notar, porém, que
1 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,
p. 215.
2 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,
p. 215.
3 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,
p. 216.
4 PUGLIESE, William Soares. Teoria dos Precedentes e Interpretação Legislativa. Dissertação
(Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 80 e ss.
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a jurisprudência pode ou não formar um precedente, pois para Marinoni esta definição
depende dos requisitos da pretensão de universalidade e da completude do julgado ao
analisar os argumentos pertinentes.
Em síntese, “é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que
elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a
cristalina”.5 Para tanto, a decisão precisa ser contundente ao acolher e rejeitar argumentos,
bem como se mostrar adequada para a orientação dos demais juízes e cidadãos.
Deve-se ressaltar, porém, que os requisitos estabelecidos por Marinoni
estão em planos distintos, sob uma ótica hartiana: a qualidade da decisão de acolher e
rejeitar argumentos de forma exauriente encontra-se na dimensão interna, ou seja, está
relacionada à possibilidade de completude e inteligibilidade do discurso jurídico.6
Por outro lado, o requisito da referida potencialidade de se firmar como
um paradigma de orientação está relacionado à dimensão externa, pois sua constatação
depende mais do tribunal que proferiu a decisão e de uma constatação de eficácia social
do que, propriamente, das qualidades da decisão judicial. Em outras palavras, esta
característica, quando vista de modo isolado, significa que pode se tornar um precedente
qualquer decisão, desde que proferida por um tribunal de alta hierarquia e de sua aplicação
posterior pelos demais magistrados.
É justamente esta a hipótese que se pretende apresentar e discutir no
presente artigo: como se classifica e quais são os efeitos de uma decisão
argumentativamente pobre mas com potencial de generalidade? Ou, de modo ainda mais
objetivo, como tratar uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que não apreciou todos
os argumentos necessários para concluir a análise da questão, mas ainda assim passa a ser
aplicada pelos demais magistrados e chamada de “precedente”?
Infelizmente, esta hipótese não se verifica apenas na teoria, como se
observa no seguinte julgado:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL.
ADMINISTRATIVO. PENSÃO VITALÍCIA. SERVIDOR
PÚBLICO. MAIS DE UM BENEFICIÁRIO HABILITADO.
5 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,
p. 216.
6 Ver, neste sentido, HART, H. L. A. The concept of Law. 3ª Ed. Oxford: Oxford University Press,
2012; SHAPIRO, Scott J. What Is the Internal Point of View? 75 Fordham L. Rev. 1157, 2006.
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DIVISÃO EM COTAS-PARTES IGUAIS. ART. 218, § 1º, DA LEI Nº
8.112/90.
Nos termos dos arts. 217 e 218, § 1º, ambos da Lei nº 8.112/90, havendo
mais de um beneficiário habilitado à percepção do benefício de pensão
por morte de servidor público, o rateio deste será feito em cotas-partes
iguais.
Agravo regimental desprovido.7
A decisão acima é responsável por um fenômeno pouco conhecido,
inesperado e temerário que pode ser assim sintetizado: após o falecimento do servidor
público, todos os beneficiários da pensão por morte do de cujus dividem o benefício em
partes iguais, sem consideração dos valores percebidos antes da morte. Na prática, o
resultado é o de que um dos beneficiários pode ser “premiado” pela morte do servidor,
recebendo um aumento no valor da pensão, enquanto outro deverá suportar a dor de
perder o companheiro e grande parte da renda familiar.
O caso julgado não só decidiu uma situação concreta mas também
firmou o entendimento do STJ a respeito do tema, e por consequência determinou o rumo
a seguir de toda a jurisprudência. Apesar disso, de todos os argumentos e fundamentos
que mereciam ser considerados no caso, a corte utilizou apenas um: a literal aplicação de
dispositivo legal.
Tem-se aqui, lamentavelmente, uma decisão exatamente como a
concebida na hipótese acima firmada, ou seja, destituída de fundamentação mas com
amplo potencial para ser seguida. Aliás, é o que o próprio STJ vem praticando:
DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR
PÚBLICO FEDERAL. PENSÃO POR MORTE. MAIS DE UM
BENEFICIÁRIO HABILITADO. DIVISÃO EM PARTES IGUAIS.
ART. 218, § 1º, DA LEI 8.112/90. RECURSO CONHECIDO E
PROVIDO.
1. Nos termos dos arts. 217 e 218 da Lei 8.112/90, havendo a habilitação
de vários titulares à pensão vitalícia (no caso viúva e ex-esposa separada
judicialmente, com percepção de pensão alimentícia), o valor do
benefício deverá ser distribuído em partes iguais entre eles. Precedentes
do STJ. 2. Recurso especial conhecido e provido.8
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
7 BRASIL. STJ. AgRg no REsp 827.143/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,
julgado em 21/11/2006, DJ 05/02/2007, p. 358.
8 BRASIL. STJ. REsp 721.665/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA
TURMA, julgado em 08/05/2008, DJe 23/06/2008
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 213
ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENSÃO POR
MORTE DE MAGISTRADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI
N.º 8.112/90. BENEFICIÁRIAS LEGALMENTE HABILITADAS.
RATEIO EM PARTES IGUAIS. DECISÃO MANTIDA POR SEUS
PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.
1. A Agravante não trouxe argumento capaz de infirmar as razões
consideradas no julgado agravado, razão pela qual deve ser mantido por
seus próprios fundamentos.
2. Diante da ausência de previsão expressa na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional acerca do presente tema, é cabível a aplicação
analógica do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União
– Lei n.° 8.112/90.
3. Nos termos do art. 217 c.c.o 218, § 1.° da Lei n.º 8.112/90, a divisão
da pensão vitalícia entre as beneficiárias habilitadas deve ser
feita em partes iguais. Precedentes.
4. Agravo regimental desprovido. Petição n.º 204868/07 não
conhecida.9
Uma vez constatado que uma decisão com fundamentação deficitária
alcançou o status de precedente, como mencionado pelas decisões do próprio STJ, passa
a ser imprescindível sua análise.
Destaque-se, porém, que comentar uma decisão judicial não significa
um ataque pessoal ao relator ou ao tribunal responsável pelo julgamento. Pelo contrário,
este é um dos papeis da doutrina,10 que deve se manter atenta às decisões em busca do
constante aprimoramento do Direito.
Para cumprir seu objetivo, o artigo apresentará de forma breve as
circunstâncias que deram origem ao caso e às razões que fundamentam o acórdão. Em
seguida, serão considerados outros fundamentos ignorados pelo Tribunal e sumariamente
excluídos do âmbito de conhecimento da decisão. Ao final, será considerada a validade
da definição de precedente diante do caso em apreço com vistas à necessidade de
mudança de postura diante das decisões judiciais quando precedente não reflete
entendimento adequado.
9 BRASIL. STJ. AgRg no RMS 24.098/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA,
julgado em 26/06/2008, DJe 04/08/2008.
10 Sobre o tema ver: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência
(ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais. v. 891. São Paulo, 2010, p. 65-106;
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2011, p. 33 e ss.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 214
1. Breve exposição do REsp 827.143/DF
No ano de 2006, foi distribuído à Quinta Turma do STJ o recurso
especial 827.143/DF, que teve como relator designado o Min. Felix Fischer. A recorrente
questionava a aplicação literal dos artigos 217 e 218, ambos da Lei 8.112/91, que
determina a divisão em partes iguais da pensão por morte do servidor público. No caso
concreto, a recorrente era a companheira do de cujus que viveu a seu lado até o último
dia; do outro lado, encontrava-se a ex-esposa, que percebia 13% (treze por cento) de seus
vencimentos em vida, percentual definido por decisão judicial.
Monocraticamente, o relator considerou apenas que a ex-esposa do de
cujus recebia pensão alimentícia por conta do divórcio e que, por consequencia, era titular
da pensão vitalícia juntamente com a companheira do servidor falecido. Por conta disso,
aplicou a literalidade da lei ("ocorrendo habilitação de vários titulares à pensão vitalícia,
o seu valor será distribuído em partes iguais entre os beneficiários habilitados") e decidiu
que a pensão fosse rateada entre as duas beneficiárias, companheira e ex-esposa.
Provocado por agravo regimental a levar o caso para o colegiado, o
Ministro relator apresentou seu voto, fundamentalmente idêntico à decisão monocrática
e com ele votaram os demais ministros. Note-se, portanto, que não houve qualquer
dissidência no julgamento.
Em uma última tentativa, a recorrente opôs embargos de declaração
questionando que o acórdão "teria dado tratamento igual a duas beneficiárias de pensão
que se encontram em situações jurídicas distintas relativamente ao de cujus". O que a
recorrente pretendia, aqui, era demonstrar que uma das pensionistas teria uma evidente
diminuição de seu padrão de vida enquanto a outra receberia um aumento da pensão e
que estas duas consequências teriam como origem a morte de um indivíduo.
Ao julgar os embargos de declaração, os argumentos do recurso foram
novamente afastados e não apreciados, sob o exclusivo fundamento de que a legislação
aplicável à espécie regula o tema de forma cogente e impõe a divisão da pensão em partes
iguais.
Esta decisão, que aplicou friamente o texto da lei sem considerar os
argumentos da parte recorrente e sem observar os efeitos produzidos pelo entendimento
tomado, tornou-se o precedente firmado pelo STJ a respeito da matéria. Neste sentido,
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 215
passou a ser amplamente aplicado pelos tribunais brasileiros que reduziram a pensão de
uns e ampliaram a de outros, com fundamento na morte de um servidor público.
O caso narrado suscita ao menos duas questões. A primeira diz respeito
aos riscos de se firmar um precedente sem ampla discussão das questões em juízo. A
segunda volta-se, justamente, aos fundamentos não considerados pela corte: segurança
jurídica, autonomia privada, o enriquecimento a partir da morte de uma pessoa, dentre
outros. Os itens seguintes apresentarão tais argumentos com a intenção de demonstrar que
o caso em análise tem uma dimensão muito mais ampla e que a ele não é adequado a
simples aplicação do texto legal.
Ao final, retorna-se à primeira pergunta, se os precedentes firmados
sem discussão aprofundada podem ser considerados pelos tribunais e se vinculam os
demais juízes e o jurisdicionado.
2. Ausência de respeito à segurança jurídica
Não foi apenas o julgado, mas é possível afirmar que o próprio artigo
218, §1º da Lei 8.112/1990 desrespeita a garantia de constitucional da segurança jurídica,
especialmente nos planos da coisa julgada e do ato jurídico perfeito. Neste sentido, a
exigência literal da norma não pode prevalecer diante das decisões proferidas e transitadas
em julgado. Afinal, as decisões dos juízos de família costumam são mais acuradas do que
a previsão geral da Lei 8.112/90, uma vez que para definir o valor dos alimentos leva-se
em consideração as necessidades e possibilidades dos envolvidos.
A legislação previdenciária, ao definir um único critério para a divisão
da pensão por morte, deixa de observar que o caso pode ter sido previamente analisado
pelo Judiciário e ter uma decisão coerente e adequada regulando-o.
Vale destacar, aqui, que a no mesmo período que o precedente do STJ
foi firmado haviam outros entendimentos a respeito da matéria. Dentre as decisões então
proferidas, destaca-se a seguinte:
ADMINISTRATIVO. RATEIO DE PENSÃO POR MORTE ENTRE
A VIÚVA E EX-ESPOSA. PENSÃO ALIMENTÍCIA DEVIDA À
EX-ESPOSA FIXADA POR SENTENÇA DO JUÍZO DE FAMÍLIA.
RESPEITO À COISA JULGADA. INTELIGÊNCIA DOS ART. § 1º
ART. 128 DA LEI 8.112/90 e § 2º ART. 76 DA LEI 8.213/91.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 216
Recurso de apelação interposto para reformar a sentença que manteve
a divisão igualitária de pensão por morte de servidor entre a viúva e a
ex-esposa. A interpretação da norma deve ser feita no sentido de
adequá-la à coisa julgada, expressa na sentença proferida pelo Juízo de
Família, que fixou os alimentos devidos à ex-esposa em observância às
necessidades da mesma. Reforma da sentença para que o rateio respeite
os alimentos fixados em ação própria, devendo a viúva receber a
diferença. Recurso parcialmente provido.”11.
Além dos casos transitados em julgado, também é importante
considerar que após a Lei 11.441/2007, os divórcios de casais sem filhos menores de
idade podem ser realizados por escritura pública, na qual pode haver estipulação de
pensão alimentícia. O divórcio direto assinado pelas partes é um caso de ato jurídico
perfeito, assim definido o ato realizado e acabado de acordo com a lei vigente ao tempo
em que se efetuou. Se este ato seguiu os requisitos formais para gerar a plenitude de seus
efeitos, ele se torna perfeito. A este respeito, vale destacar os requisitos legais exigidos
pelo art. 1.124-A, do Código de Processo Civil, incluído pela Lei 11.441/2007:
Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não
havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os
requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura
pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à
partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo
quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à
manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
§ 1o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título
hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
Por outro lado, a Lei 8.112/90 considera todo cônjuge que percebe
alimentos como beneficiário vitalício. Independentemente da origem – se por decisão
judicial ou por escritura –, a sorte dos alimentandos também é alterada pelo falecimento
do servidor público, sendo sempre divididas em partes iguais. Portanto, pelo
entendimento do STJ, nem a coisa julgada nem o ato jurídico perfeito sobrevivem diante
da conversão da pensão alimentícia em pensão por morte.
Não por acaso, é razoável sustentar que a interpretação da norma
prevista no art. 218, §1º, da Lei 8.112/90 poderia ser interpretada à luz da coisa julgada e
do ato jurídico perfeito, de modo que a divisão em partes iguais fosse aplicada apenas na
11
BRASIL. TRF da Segunda Região; Apelação Cível – Processo n. 1999.51.01.059876-0; Oitava
Turma Especializada; Relatora Juíza Maria Alice Paim Lyard; 26/09/2006.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 217
hipótese de não haver previsão anterior a respeito da divisão das quotas da pensão. Nos
demais casos, por força do princípio da gravitação jurídica, a pensão por morte
(assessória) segue a sorte da pensão alimentícia (principal).
3. Respeito ao princípio da autonomia privada
Da mesma forma que a decisão em comento não respeitou a exigência
constitucional de preservação da segurança jurídica, a aplicação irrazoada do art. 218,
§1º, da Lei 8.112/1990, também viola a autonomia privada. Entendida como o poder que
os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que
participam12, esta garantia parte do pressuposto que as normas jurídicas de natureza
patrimonial são disponíveis.
Desta forma, na hipótese em que as partes estipulam consensualmente,
mediante acordo judicial ou extrajudicial, os valores da pensão alimentícia, não cabe à
legislação previdenciária impor uma modificação na relação jurídica previamente
consolidada. Também, se o quantum fixado pelo magistrado não for impugnado, parte-se
da premissa que houve concordância de ambas as partes ou a conformação com o
resultado da demanda.
Destaque-se, ainda, que a manutenção da divisão dos valores da pensão
nos moldes fixados ainda em vida não importa em qualquer prejuízo para os cofres
públicos. Trata-se, simplesmente, de uma revisão da interpretação da legislação,
beneficiando a parte que mais necessita com um valor proporcionalmente maior.
4. Respeito ao princípio da boa-fé e vedação do venire contra factum proprium
Tem-se como um princípio geral do Direito Civil, mais especificamente
do Direito Obrigacional e da Boa-fé no Direito Privado, a regra de que a ninguém é dado
agir contra um fato previamente praticado – nemo potest venire contra factum proprium13.
12
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 347.
13 Nesse sentido, ver SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela
da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 218
Quer isto dizer que na medida em que a parte eventualmente concorda
com um determinado pensionamento quando da assinatura do divórcio, não tem o direito
de pleitear sua revisão simplesmente porque a parte alimentante faleceu.
Sabe-se que a matéria de alimentos admite revisão a qualquer tempo.
No entanto, essa revisão deve ser fundamentada em uma mudança de estado posterior ao
momento em que o pensionamento foi fixado, caso contrário, incide sobre o caso a
proteção da coisa julgada ou do ato jurídico perfeito.
Se algum fato tivesse prejudicado a situação econômica de uma das
partes, caberia ajuizar uma ação de revisão de alimentos, medida processual adequada
para rever esse valor. Sendo assim, não se observa qualquer fundamento para que o valor
seja dividido entre dois pensionistas de forma absolutamente igual.
5. Enriquecimento sem causa
De acordo com o art. 884, do Código Civil, “[a]quele que, sem justa
causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido,
feita a atualização dos valores monetários”. Trata-se da definição de enriquecimento sem
causa.
No presente caso, deve ser problematizado o fato de que subitamente
haverá uma alteração radical no quantum da pensão alimentícia justamente no momento
de fragilidade de um parente próximo. Enquanto uma parte verá seus proventos reduzidos,
a outra perceberá considerável aumento injustificado. O fato descrito pode, assim,
configurar o enriquecimento sem causa.
Talvez o ponto mais sensível seja que a leitura literal do art. 218, §1º,
da Lei 8.112/1990 conduz ao seguinte resultado paradoxal: para uma das partes,
geralmente a que menos tinha vínculo, a morte do servidor terá natureza premial.
O que deve pesar para o órgão previdenciário, ao analisar a divisão da
pensão, são os princípios norteadores da família e da dignidade da pessoa humana. Desta
forma, a divisão das cotas de pensão deve ser realizada sem conferir a nenhum dos
beneficiários qualquer tipo de vantagem exagerada.
Neste sentido, apresenta-se outra decisão que apreciou caso semelhante
em que acertadamente se refutou a interpretação literal do art. 218, §1º, da Lei
8.112/1990:
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 219
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE
SEGURANÇA CONTRA ATO DO CONSELHO DE
ADMINISTRAÇÃO DO E. TRF 2A REGIÃO. PENSÃO POR
MORTE. RATEIO DE PENSÃO ESTATUTÁRIA DE JUIZ
FEDERAL. DIVISÃO ENTRE A EX-ESPOSA, VIÚVA E
COMPANHEIRA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DIREITO
LÍQUIDO E CERTO DAS IMPETRANTES.
1. Decisão do Conselho de Administração deste E. TRF da 2a Região
concedendo pensão vitalícia por morte de magistrado à ex-esposa e à
viúva, mantendo o percentual já auferido pelas Impetrantes a título de
alimentos, destinando o percentual restante à companheira que manteve
com o falecido entidade familiar até o seu óbito.
2. Ato administrativo que rende homenagem aos princípios
consagrados na Constituição Federal de proteção à família, mormente
considerando a realidade fática. Manutenção por seus próprios
fundamentos.
3. Interpretação funcional e teleológica do art. 218, § 1º da Lei nº
8.112/90, em consonância com os princípios norteadores da ordem
constitucional.
4. Ausência de violência a direito líquido e certo das Impetrantes, que
não tiveram qualquer alteração fática, no que tange à necessidade do
pensionamento, em razão do falecimento do instituidor do benefício.
5. Denegação da Ordem.14
Também merece destaque julgado do ano de 2005, portanto anterior ao
assim propalado “precedente” firmado pelo STJ, que reduz a pensão por morte para o
patamar que orientou o pagamento dos alimentos em vida. Além de constar na própria
epígrafe deste artigo, destaca-se o seguinte trecho:
O só fato de ser cônjuge não pode fazer com que se majore uma pensão
por ocasião da morte do segurado, além daquilo que necessitava o outro
cônjuge que antes vivia sob dependência econômica dele. Assim como
não será o fato de ser companheira, que acarretará a majoração do
percentual que recebia em vida, de alimentos incidentes na
aposentadoria do segurado, se era este o percentual que cobria a
necessidade econômica da referida companheira.15
14
BRASIL. TRF2, MS 20030201006967-4/RJ, Rel. Juiz Federal Paulo Barata, DJ 24/11/2006.
15 BRASIL. TRF2, AC 20025101503923-2/RJ, Rel. Juiz Federal Abel Gomes, DJU 08/08/2005.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 220
Igualmente nesta tônica, desde 1998 já se encontravaM
fundamentações semelhantes ao da decisão acima transcrita. Em caso levado a
julgamento naquele ano, o Poder Judiciário entendeu que não admite à divorciada ter sua
pensão majorada em razão do falecimento do instituidor, até porque não é viúva. Deveria
receber a mesma proporção que recebia, a título de pensão, quando ainda em vida o
alimentante 16.
Ora, causa estranheza que nenhuma dessas decisões tenham sido
mencionadas no julgado selecionado para comento. Ao contrário, o tom utilizado na
decisão monocrática do AgRg no REsp 827.143/DF é de obviedade na aplicação da letra
da lei.
6. Observância do princípio da distributividade na prestação
O princípio da distributividade, próprio do Direito Previdenciário,
refere-se à seleção das pessoas que deverão ser protegidas prioritariamente pela
Seguridade Social. A preocupação relacionada à distributividade é a de atender,
prioritariamente, aqueles indivíduos que estão em maior estado de necessidade.
Em consonância com o princípio da distributividade, o TRF da Quarta
Região já decidiu em sentido diverso do empregado pelo caso paradigma do STJ, embora
a legislação interpretada tenha sido a de pensão de militares:
ADMINISTRATIVO. MILITAR. PENSÃO. ORDEM DE
PRIORIDADE. RATEIO. EX-ESPOSA, VIÚVA E FILHA. LEI
3.765/60. A parcela deixada à viúva se sujeita a rateio, com a ex-esposa
pensionada ou companheira, eis que o direito de ambas origina-se da
relação conjugal. A cota-parte da pensão devida à ex-esposa deve
guardar proporção com os proventos que auferia quando o de
cujus ainda era vivo, em face de acordo realizado por ocasião do
divórcio. Consoante dispõe a legislação de regência, os filhos oriundos
de outro matrimônio, ou de outro leito, fazem jus à metade da pensão.
Portanto, a metade da filha não pode ser alcançada para fins de rateio
com a mãe.17
16
BRASIL. TRF4; Apelação Cível – 1996.0446149-4; Terceira Turma; Rel. Juíza Maria de Fátima
Freitas Labarrére; DJU: 25/11/1998.
17 BRASIL. TRF Quarta Região; Apelação Cível n. 2001.04.01.078846-7/RS; Terceira Turma;
Relatora Juíza Taís Schilling Ferraz, 30/02/2002.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 221
Desta forma, em conformidade com o princípio da distributividade e
por força do direito fundamental à igualdade, parece adequada a interpretação segundo a
qual o pensionamento do ex-cônjuge deve ser proporcional aos proventos que recebia
quando o de cujus era vivo.
No direito brasileiro, à luz do princípio da justiça distributiva, o
princípio da isonomia deve ser lido com vistas ao alcance de uma igualdade material que
leve em conta a situação fática, e não uma mera igualdade formal e matemática. É o que
considerou o TRF2, em decisão que desafiou o precedente do STJ:
DIREITO ADMINISTRATIVO – PENSÃO ESTATUTÁRIA –
DIVISÃO ENTRE VIÚVA E EX-ESPOSA DIVORCIADA – COTA-
PARTE CALCULADA DE ACORDO COM O PERCENTUAL
FIXADO JUDICIALMENTE NA AÇÃO DE ALIMENTOS.
I - Trata-se de ação na qual a autora, viúva, objetiva a majoração
do percentual de sua pensão vitalícia de 50% para 85%, tendo em vista
que a segunda ré, ex-esposa divorciada, era beneficiária da pensão
alimentícia de 15% dos vencimentos do falecido instituidor da pensão;
II - Tendo sido fixada pensão alimentícia por sentença judicial para a
ex-esposa, os parâmetros adotados naquela decisão devem ser
respeitados no cálculo da pensão vitalícia, de forma a garantir o sustento
da dependente dentro dos limites da obrigação do ex-marido à prestação
de alimentos. Tal se deduz da própria alínea “b”, do inciso I, do art.
217, da Lei 8.112/90, que indica a necessidade de se respeitar a decisão
judicial que estipulou alimentos a favor da ex-esposa. Precedentes
desta Corte;
III - Recursos e remessa a que se nega provimento.18
Como se vê, algumas decisões mais recentes indicam que o art. 218,
§1º, não deve ser interpretado de forma literal. Esta observação reacende a esperança de
que o Poder Judiciário tem condições de examinar criticamente a sua própria produção,
sempre em busca do aprimoramento das interpretações e do esgotamento dos argumentos
das partes.
7. Conclusão
18
BRASIL. TRF2. AC 200651020001587. Sexta Turma Especializada. Rel. Juíza Carmen Silvia
Lima De Arruda. J. 08/09/2010.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 222
Após a detida análise do caso selecionado para análise, é chegada a hora
de se retornar à lição de Marinoni: precedente é a decisão judicial com (i) potencialidade
de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados e
que (ii) enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito posta
na moldura do caso concreto. A hipótese suscitada para desenvolvimento do trabalho era
a de investigar a natureza do ato judicial dotado apenas da primeira característica. Seria
a decisão dotada apenas da pretensão de universalidade um precedente?
É pouco mais do que evidente que não. Caso um ato dotado de simples
autoridade e generalidade tivesse, por si só, o condão de ser integrado ao ordenamento
jurídico, qualquer ato normativo aprovado pelo Poder Legislativo e regularmente
sancionado pelo Executivo seria válido, inclusive uma lei que autorizasse a tortura, outra
que regulasse atos de racismo e uma terceira que conferisse a onze pessoas poder absoluto
sobre o Estado. Pior: as três leis cogitadas poderiam, neste caso, ter validade e eficácia
pelo simples fato de existirem, sem qualquer fundamentação ou justificativa.
O mesmo raciocínio se aplica à formação dos precedentes. Não é
suficiente que uma decisão judicial tenha sido proferida por um dos tribunais superiores.
Para que ela alcance o patamar de um verdadeiro precedente, o tribunal deve examinar
exaustivamente os argumentos, considerar todas as teses levantadas e todos os possíveis
resultados do julgamento. Não basta, assim, que repita o texto legal.
Afirmar o contrário e chamar de precedente uma decisão destituída de
fundamentação é mais do que se afastar do conceito. Ao decidir de modo sintético, como
fez o STJ, a decisão se mostra em descompasso com os ditames da legislação processual
(seja do Código de 1973, em seu artigo 458, II, bem como do Código vindouro) como
também à Constituição da República de 1988, especialmente o art. 93, IX.
Na hipótese em que a fundamentação é insatisfatória, as decisões não
podem ser tratadas como precedentes. Insistir nesta tese é condenar o Estado brasileiro a
um ciclo de incertezas e à pobreza argumentativa.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 223
PARECER
CONTRATO DE DE SEGURO. SUICÍDIO DO SEGURADO. ART. 798,
CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO. DIRETRIZES E PRINCÍPIOS DO
CÓDIGO CIVIL. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.
Insurance contract. Suicide of insured. Art. 798, civil code. Interpretation.
Guidelines and principles of the civil code. Consumer protection.
Judith Martins-Costa Livre Docente e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Lecionou entre 1992 e 2010 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado, as disciplinas: Direito Civil (Parte Geral,
Obrigações e Contratos); Fundamentos Culturais do Direito Civil; Direito Comparado e História do
Direito. É atualmente Professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina
da UFRGS e profere palestras em Universidades brasileiras e estrangeiras. Escreveu, entre outros, os
livros: A Boa-Fé no Direito Privado (1999); Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro (2002);
Comentários ao Novo Código Civil - Do Adimplemento das Obrigações (2005); Comentários ao Novo
Código Civil - Do Indimplemento das Obrigações (2009); Narração e Normatividade (org., 2012);
Modelos do Direito Privado (org., 2014). É Presidente do Comitê brasileiro da Association Internationale
des Sciences Juridiques e Vice-presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC).Também atua como
Árbitra e Parecerista em litígios civis e comerciais no Brasil e no Exterior.
Sumário: Consulta. II. Parecer. A) Do modelo jurídico do “seguro de pessoa” e da
hipótese do suicídio do segurado (i) Do Seguro como Contrato Comunitário. (ii) Do
suicídio e da questão de sua “voluntariedade”, ou não. B) Da regulação da matéria no
Código Civil de 2002. (i) Do art. 798: a diretriz da operabilidade e o critério objetivo
adotado no “Substitutivo Comparato” e acolhido no Anteprojeto e no Projeto de Código
Civil. (ii) Da interpretação do art. 798 do Código Civil em vista do sistema civil e
constitucional, e de seus princípios e valores. III. Das Conclusões sintéticas.
I. Consulta
O ilustre Colega, Doutor Moulin Vert, procurador da Seguradora
Pamplemousse, dá-me a honra de formular Consulta acerca da interpretação a ser
conferida ao texto do art. 798 do Código Civil de 2002, versando sobre o “prazo de
carência” para o recebimento do capital, pelo beneficiário, quando do suicídio do
segurado. A Consulta vem formulada nos seguintes termos:
"Senhora Professora,
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 224
Na qualidade de procurador da Seguradora Pamplemousse, vimos
consultar V. Senhoria acerca da interpretação a ser conferida ao art. 798 do Código Civil
de 2002.
Nesse sentido, pediríamos a atenção de V. Senhoria em especial
para os seguintes tópicos:
a) A evolução legislativa do CC, tanto omissiva como
comissivamente, no que se refere ao pré-falado artigo 798 do CC, admite a conclusão de
presunção absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
b) A recepção do Substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio Konder
Comparato, municiado da sua indiscutível exposição de motivos, e consagrada,
positivamente, na derradeira exposição de motivos do CC, da lavra do Eminente Mestre
Miguel Reale, admite, no que se refere ao artigo 798 do CC, a conclusão de presunção
absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
c) A não-recepção do Esboço ou Anteprojeto do CC de 1965, no que
se refere ao artigo 798 do CC, prejudica a aceitação, para fins de norte da doutrina do
Eminente Mestre Caio Mario da Silva Pereira?
d) As súmulas 105 do STF (que inclusive despreza a carência,
reconhecida nos artigos 797 e 798 do CC) e 61 do STJ, amplamente conhecidas na
gestação do CC, permanecem efetivas no que se refere ao “fenômeno” do suicídio,
doravante e durante o hiato do artigo 798 do CC?
e) O artigo 798 do CC, cuidando do suicídio, sem qualquer indexação,
melhor, adjetivação (“voluntário ou involuntário”), em comparação com o Código
Beviláqua e com o Anteprojeto de 1965, admite a conclusão de presunção absoluta de
suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
f) A consolidação do CC, em especial do artigo 798 do CC, como
“produto” do poder Executivo e “verdade” do Poder Legislativo, permite a rediscussão
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da mens legis (não se falando da discricionariedade propiciada pelas cláusulas abertas),
em vertente hermenêutica, pelo Poder Judiciário?
g) A ruptura legislativa do CC de 2002, lançando idéia inédita na
discussão quanto ao suicídio (artigo 798 do CC), admite a manutenção/utilização do
mesmo universo/desfecho jurisprudencial de outrora, antes do seu nascimento?
h) A destinação da chamada “prova diabólica”, foi, no artigo 798 do
CC, o banimento ou o seu endereçamento ao beneficiário?
i) O entendimento de presunção relativa de suicídio premeditado, a
partir e com vistas ao puerpério estabelecido no artigo 798 do CC, atenderia aos “fins” da
lei, considerando a perpetuação do tormentoso ônus da carga dinâmica das provas?
Esses motes, resumidos, são alguns vetores, sem embargo de outros,
para o pleno exercício e fomento intelectual de V.Exa., preambularmente, apenas no que
se refere à decisão de enfrentamento, formal, da quaestio.
Acompanha esta: (i) cópia do substitutivo de lei do Eminente Mestre
Fábio Konder Comparato; (ii) cópia do acórdão proferido pelo TJRS; (iii) indicações
doutrinárias.
No mais, insistimos no agradecimento pela disponibilidade,
cordialidade e, sobretudo, sinceridade de V.Exa., a quem rendemos, independente do
parecer pretendido, as mais altas homenagens científicas, acadêmicas e profissionais.
No vosso aguardo.
Dr. Moulin Vert
Passo, em separado, a emitir o meu parecer.
De Porto Alegre para o Rio de Janeiro, em 25 de junho de 2008,
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II. Parecer
1. O questionamento proposto pelo ilustre Consulente exige a
apreciação preliminar do modelo jurídico do “seguro de pessoa”, em que se inclui a
hipótese de suicídio do segurado tal qual regulado no art. 1.440, parágrafo único, do
Código de 1916, origem da orientação sumulada indicativa da distinção entre “suicídio
voluntário” e “suicídio involuntário” (Parte A). Subsequentemente deverei determinar o
sentido e o alcance da regra do art. 798 do Código Civil de 2002 para o que se fará
necessário buscar as suas raízes, trazendo à baila os critérios para a sua adequada
interpretação (Parte B). Ultrapassados esses pontos poderei expressar, em modo
conclusivo, as razões de minha convicção, respondendo aos quesitos propostos
(Conclusão).
A) Do modelo jurídico do “seguro de pessoa” e da hipótese do suicídio do segurado
2. O contrato de seguro se insere entre os chamados “contratos
comunitários”, classificação que pretende por em evidência a sua base transindividual,
pois impensável seria o seguro na relação exclusivamente intersubjetiva (i). Dentre as
hipóteses de seguro de pessoa está a que contempla o suicídio do segurado, tema a que
subjaz à regulação legal uma perspectiva mais ampla, de ordem meta-jurídica (ii).
(i) O Seguro como Contrato Comunitário.
3. Muito embora apresente peculiaridades relativamente aos seguros de
danos, o seguro de pessoa não foge ao modelo geral do seguro como contrato tipicamente
comunitário. Isto significa dizer que, diferentemente dos contratos estruturados na
contraposição de interesses individuais, como a compra-e-venda, o contrato de seguro se
caracteriza pela transindividualidade ou comunitariedade do interesse (na acepção
jurídica deste termo) subjacente à concreta relação creditícia. Como sintetiza Ovídio
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Batista da Silva configura o seguro “um sistema de poupança, ou de economia coletiva,
impensável quando ajustado individualmente1”.
4. Todo e qualquer contrato constitui, nas conhecidas palavras de Enzo
Roppo2, a veste jurídica de determinada operação econômica. A dimensão
“exclusivamente” jurídica não é uma realidade autônoma, constituída apenas pelas letras
dos textos legais ou dos livros de doutrina, antes refletindo uma realidade exterior a si
própria, “uma realidade de interesses, de relações, de situações econômico-sociais,
relativamente aos quais cumpre, de diversas maneiras, uma função instrumental3”.
Assim sendo, falar em contrato significa, sempre, remeter “explícita ou implicitamente,
direta ou indiretamente, para a idéia de operação econômica4”.
4.1. A operação econômica que está na base dos diferentes tipos
contratuais é apreendida, no Direito, pela idéia de causa, ao sentido que dá a essa
expressão Emílio Betti5, isto é, determinada função econômico-social que o particulariza
frente aos demais tipos contratuais, refletindo determinado escopo prático típico que
governa a circulação de bens e a prestação dos serviços, conforme certos valores
ordenados pelo Direito. A sua causa é, nessa acepção, a “razão prática típica que lhe é
imanente (...) um interesse social objetivo e socialmente verificável” 6, ao qual o negócio
deve corresponder.
4.2. Assim sendo, para compreender a causa, ou função social típica do
contrato de seguro, é preciso, como pressuposto iniludível alcançar a idéia que lhe subjaz
orientando teleológicamente a sua função. Essa é, justamente, a idéia de relação jurídica
comunitária expressa pela técnica do mutualismo e revelada pela obrigação principal do
1BAPTISTA DA SILVA, Ovídio, Natureza Jurídica do Monte de Previdência, in Anais do II Fórum
de Direito do Seguro José Sollero Filho, Porto Alegre, novembro de 2001, p. 105.
2ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,
Almendina, 1988.
3ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,
Almendina, 1988, p. 7.
4ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,
Almendina, 1988 p. 8.
5BETTI, Emilio, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I, tradução de MIRANDA, Fernando,
Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 333 e ss.
6BETTI, Emilio, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I, tradução de MIRANDA, Fernando,
Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 334.
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segurador, de garantir risco previamente determinado, mediante o pagamento de um
prêmio, como ora está no texto do art. 757 do Código Civil (“obrigação de garantia”).
5. A noção de comunidade subjaz ao contrato de seguro, em primeiro
lugar, porque este é um mecanismo de diluição de riscos e sempre que há um risco, seja
provocado por acidentes naturais, seja pela vida em sociedade, os homens - cuja
existência “n’est que une quête de securité 7” - esperam estar mais bem protegidos se
reagrupando.
5.1. Na impossibilidade de eliminar os riscos, busca-se, pelo seguro,
oferecer paliativos às suas conseqüências, mediante a diluição dos seus efeitos. E diluir
significa, como expressa Veronique Nicolás, “se regrouper pour constituer une
collectivité, repartir sur plusieurs ce que quelques uns ont subi”8.
5.2. Uma coletividade não é formada, todavia, pela mera soma de
individualidades, já tendo percebido a filosofia grega que o todo não é apenas a mera
soma das partes: no todo, há um plus que se agrega, e este é o interesse comum ao grupo
ou a coletividade de interessados. Esse interesse é inconfundível com cada interesse
isoladamente considerado. É justamente a existência de um interesse comum a todos os
membros que conduz à idéia de comunidade e é justamente esse o sentido do “interesse”
a ser considerado para a visualização do interesse contratual típico, qualificador do
seguro como tipo contratual. Interesse - ensina a etimologia - é o inter est, o quid que está
entre a pessoa (o credor) e o bem, tendo em vista a necessidade ou a utilidade que pode
ser proporcionada por aquele bem9.
5.3. Esse modelo contratual não se iguala àqueles outros baseados na
contraposição de interesses individuais. Por isso mesmo, é preciso – principalmente no
plano hermenêutico - compreender o contrato de seguro como um arranjo jurídico-
econômico distinto dos vínculos bilaterais que unem indivíduos isolados e cujos
interesses são contrapostos. É que, no contrato de seguro a idéia de comunidade reside
7NICOLAS, Véronique, Essai d’une nouvelle analyse du contrat d’assurance, Paris, LGDJ, 1996,
p. 11. Em tradução livre : « nada mais é do que a busca de segurança”.
8NICOLAS, Véronique, op. cit., p. 11. Em tradução livre: « reagrupar-se para constituir uma
coletividade, repartir sobre muitos aquilo que muitos ou alguns sofreram”.
9 “Assente na necessidade ou carência de que aquele [bem] é portador”, afirma João Calvão,
lembrando ainda as palavras de Gropalli para quem interesse é “a exigência de um bem que se considera
útil, isto é, apto a satisfazer uma necessidade”. (CALVAO DA SILVA, João. Cumprimento e Sanção
Pecuniária Compulsória. 4ª ed. Coimbra, Almedina, 2002, p. 61 e nota 121).
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em sua própria natureza, consistindo, como diz Calmon de Passos, “uma técnica a serviço
do interesse geral”10 estruturada sobre a base econômica comunitária apreendida pela
técnica jurídica por meio do mecanismo do mutualismo.
6. O mutualismo é um mecanismo econômico e contábil no qual
assentada toda a técnica do seguro como operação jurídico-econômica. Partindo-se do
pressuposto de que é mais fácil suportar coletivamente as conseqüências danosas dos
riscos individuais do que suportá-las sozinho, distribui-se, "pulveriza-se” ou se opera a
dispersão do custo, para o efeito de diluir entre todos os participantes da operação o
prejuízo patrimonial do dano, o que é feito por meio do mutualismo. Esse mecanismo,
afirma STiglitz11 e explicitam Tzirulnik e Octaviani consiste na “linha mestra da
estruturação jurídica da operação securitária”12. Para esses autores, com efeito, “a
função social do seguro revela-se de forma cristalina: garantir, com o auxílio de muitos,
que a desorganização que atingiu a uns poucos possa ser superada. Satisfaz-se o interesse
de todo o ´sistema´ em questão, uma vez que as relações podem continuar a se
desenvolver, de tal forma que praticamente não sejam sentidas as conseqüências do
ocorrido”13.
6.1. Direcionado pelos valores jurídicos do interesse comum e da
função social do contrato, o mutualismo é estruturado consoante modelos matemáticos
que determinam preços, estabelecendo equilíbrio entre as receitas e despesas de um plano
de seguro por um período de cobertura determinado14 (“regimes financeiros”). Os
regimes financeiros constituem técnicas voltadas a repartir os custos entre os segurados e
patrocinadores dos planos de seguros15. Conforme se trate de seguro de danos ou de
pessoas será diversa a equação, havendo ainda distinções entre as espécies, pois no seguro
10
CALMON DE PASSOS, J. J, A atividade securitária e sua fronteira com os interesses
trasindividuais – responsabilidade da SUSEP e competência da Justiça Federal, RT 763, p. 97.
11STIGLITZ, Rubén S. Derecho de Seguros, T. I, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 3ª edição
atualizada, 2001, p. 27.
12TZIRULNIK, Ernesto, e OCTAVIANI, Alessandro, Fraude contra o seguro, Revista dos Tribunais
v. 722, p. 12.
13TZIRULNIK, Ernesto, e OCTAVIANI, Alessandro, Fraude contra o seguro, Revista dos Tribunais
v 722, p. 12..
14 BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e
acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004. p.30.
15 SOUZA, Antonio Lober Ferreira de. et. al. In Dicionário de Seguros. RJ: Funenseg, 2000, p. 98.
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para o caso de morte (incluso aos seguros de pessoas) o risco é a morte do segurado,
sendo o prêmio estipulado de acordo com a taxa de mortalidade de pessoas com condições
normais de saúde16 que se baseia em uma “tábua de mortalidade” 17.
6.1.1. Essa é a equação que subjaz à obrigação de garantia que é a
obrigação principal (“dever principal de prestação”) tendo, como tal, papel estruturante
do contrato de seguro, definindo a sua configuração típica18 e correspondendo
diretamente ao direito de crédito atribuído ao credor (segurado ou beneficiário).
6.2. A obrigação de garantia, no seguro de pessoas, vincula o segurador
a “prestar capital, ou renda periódica, a partir de determinado momento, no caso de morte
do contraente, ou de outrem (satisfeitos os pressupostos especiais), ou no caso de duração
da vida” 19. Todo o equilíbrio do contrato (atingindo a comunidade segurada e não apenas
à relação bipolar segurado-seguradora) repousa sobre a equação do mutualismo, na
medida em que a garantia (constituinte da obrigação principal da seguradora) é
viabilizada pelo fundo de previdência constituído pela poupança coletiva da comunidade
segurada de cujo quantum “haverão de sair as indenizações devidas pelo sistema”20.
7. Do ponto de vista econômico, o mecanismo do mutualismo está
assentado naquilo que no léxico securitário denomina-se “surplus cooperativo”.
7.1. O sistema de Direito Privado requer dos privados – participantes
ativos das dinâmicas do mercado, e, como tal, para tal se valendo do instrumento jurídico
16
BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e
acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004. p. 23.
17Assim entendida como o instrumento básico utilizado pelo atuário para medir a probabilidade
de morte. Conforme explica BERTOCHE, em sua forma mais elementar, a tábua de mortalidade é uma
tabela que registra – partindo de um grupo inicial de pessoas de mesma idade e sexo – o número daquelas
que vão atingindo, sucessivamente, as idades subseqüentes, até a extinção completa do grupo”.
BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e acidentes
pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004, p. 27.
18 A obrigação principal constitui o núcleo, a “alma da relação obrigacional” (ALMEIDA COSTA,
Mário Júlio, Direito das Obrigações, 10ª edição, Coimbra, Almedina, 2006, p.p. 75-80), pois está voltada
a realizar os interesses do credor à prestação (“interesses de prestação”). No mesmo sentido CARNEIRO
DA FRADA, Manuel,Contrato e Deveres de Proteção, Coimbra, 1994, Separata do vol. XXXVIII do
Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 37 e o meu: MARTINS-
COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil- Do Adimplemento das Obrigações. Tomo I. Rio de
Janeiro, Forense, 2ª edição, p. 45-51.
19 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. v. 46, p. 3.
20BAPTISTA DA SILVA, Ovídio, Natureza Jurídica do Monte de Previdência, in Anais do II
Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho, Porto Alegre, novembro de 2001, pp. 105 e 106.
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denominado “contrato” – que levem em conta o resultado global da operação econômica,
e não apenas alguns dos seus aspectos parciais.
7.1.1. Como explicita Alberto Monti, trata-se de considerar o produto
do interesse conjunto das partes contratantes, ainda que em prejuízo de eventuais
vantagens imediatas (oportunistas) de caráter individual21. O surplus cooperativo explica,
portanto, a razão pela qual certas desvantagens (assim tidas se adotada exclusivamente a
ótica de um ou de alguns contratantes, individual e individualistamente considerada)
serão, na verdade - se considerarmos o conjunto de contratantes - vantagens. Uma
vantagem dada indevidamente a um só, ou a alguns, atingirá o surplus cooperativo,
transmutando-se em desvantagem à comunidade de interesses envolvidos na relação
securitária.
7.2. Bem por isso, o valor “cooperação” que embasa toda relação
contratual22, tem, na relação contratual securitária, uma valência transindividual. Em
outras palavras: aqui não se trata apenas da cooperação devida por um membro do
conjunto social no interesse típico de outro membro do conjunto social, mas, igualmente,
no interesse típico de um conjunto (o grupo segurado).
8. O mais relevante, para os fins do presente estudo é que esta acepção
da idéia de cooperação, vinculada à causa ou função econômico-social do seguro, terá
reflexos imediatos no plano da hermenêutica contratual, tanto na interpretação legal
quanto na contratual. A interpretação concretizadora postulada pela unanimidade da
doutrina contemporânea23 significa, justamente, a atenção, no momento aplicativo do
21
MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 14.
22 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Tradução espanhola de Jaime Santos Briz. Madrid:
EDERSA, 1958. Tomo I. p. 37-45. Acerca da relação obrigacional como um processo e como totalidade
veja-se, além de COUTO E SILVA, Clóvis. A Obrigação como Processo. . Rio de Janeiro: FGV, 2006;
ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em Geral. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1973. Vol.
I.; CALVÃO DA SILVA, João.Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. Coimbra: Almedina, 4ª.
Edição, 2002, p.70-75; a crítica de MENEZES CORDEIRO, A. M. Direito das Obrigações. Lisboa:
Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980. v. 1; e ALMEIDA COSTA, Mário Júlio.
Direito das Obrigações. 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2006. Permito-me ainda referir o meu: Comentários
ao Novo Código Civil - Do Adimplemento das Obrigações. Tomo I. Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição, p.
27-60.
23 Exemplificativamente: KAUFMANN, Arthur e HASSEMER, Winifried (org.). Introdução à
Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Gulbenkian, Lisboa, 2002, pp. 381-408;
CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais. Coimbra Editora.
Coimbra,1993, p. 15; MULLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Trad. fran. de Olivier
Jouanjan. Paris. PUF, 1993, p. 221 e ss;. VIOLA, F., e ZACCARIA, F. Diritto e Interpretazione –
Lineamenti di teoria ermeneutica del diritto. Roma: LATERZA, 1999, p. 428; ESSER, J. ESSER,
Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del diritto. Trad. de: Vorverständnis
und Methodenwahl in der Rechtsfindung por Salvatore Patti e Giuseppe Zaccaria. Camerino : Edizioni
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Direito, aos dados de realidade normativa e fática envolvida no caso, evitando que o
intérprete utilize os conceitos jurídicos como meras “palavras encantadas”24, divorciadas
da realidade que ao Direito é dado regular e ordenar.
8.1. Para que possamos compreender os conceitos utilizados pelo
Código ao regular a hipótese de suicídio do segurado - assim adotando uma interpretação
concretizadora do art. 798 do Código Civil - é necessário desvendar os elementos da pré-
compreensão que, na vigência do Código de 1916 embrulhavam a hermenêutica das
regras legais atinentes ao contrato de seguro em uma verdadeira teia de considerações
meta e extra-jurídicas.
(ii) Do suicídio e da questão de sua “voluntariedade” ou não.
10. Segundo o filósofo e escritor Albert Camus “só há um problema
filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”25. Tema filosófico por excelência – e assim
já discutido por Platão, no Fédon e nas Leis, justificado pelos estóicos, como Cécero e
Sêneca, escolhido por Hume, no séc. XVII e tornando o centro da filosofia existencialista
no séc. XX 26 - o suicídio interessa à religião, à antropologia, à sociologia, à literatura e à
psicologia, cada um desses campos dando respostas próprias a questão de “julgar se a
vida merece ou não ser vivida”27. Considerado paradoxalmente ato de coragem28 e de
Scientifiche Italiane, 1983, p. 4 e REALE, Miguel. A Teoria da Interpretação Segundo Tullio Ascarelli, in
Questões de Direito, Ed. Sugestões Literárias, São Paulo, 1981, p. 9 e também em Diretrizes de
Hermenêutica Contratual, in Questões de Direito Privado, São Paulo, Saraiva, 1997, pp. 1-19. Ainda
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo:
Malheiros, 2002, p.p. 72-73. Permito-me ainda lembrar do meu:MARTINS-COSTA, Judith. O Método da
Concreção e a Interpretação dos Contratos: Primeiras Notas de Uma Leitura Suscitada Pelo Código Civil”.
In: SOTO COAGUILA, Carlos Alberto (org.). Tratado de la interpretación del Contrato en la América
Latina. 1. ed. Lima-Perú: Editora Jurídica Grijley, 2007, v.1. p. 683-719.
24A expressão “palavra encantada” está em COHEN, F. S. El método funcional en el Derecho.
Tradução espanhola de Genaro CARRIÒ. Abeledo-Perrot, Buenos Aires,1961, p. 55.
25 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo, Record,
2004, p. 17
26 Para uma síntese v. PAGENOTTO, Maria Lígia. Um Absurdo Razoável. Revista Filosofia, ano
1, n. 11, Ed. Escala, São Paulo, 2007, pp. 24 et seq.
27 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo, Record,
2004, p. 17
28 Catão, o Jovem (95-46 a. C) cometeu suicídio em nome da justiça e da liberdade para se opor ao
Império Romano, assim como no séc. XX os monges vietnamitas se imolavam em protesto contra a
destruição do seu povo. Na Renascença Michel de Montaigne defendia que “na pior hipótese, a morte pode
por termo, quando bem nos pareça e cortar as amarras a todos os outros inconvenientes” (Filosofar é
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covardia29; glorificado como o resultado de uma mente sábia30 (então sendo tido,
inclusive, como a “positivação máxima da vontade humana", como na frase atribuída a
Schopenhauer), ou repudiado como produto de grave perturbação mental, sendo a “causa
mais comum de emergências psiquiátricas”31; reputado pelos cristãos ato contra o
mandamento divino32 e pela cultura oriental como um modo honroso de escapar a
situações vergonhosas ou desesperadoras (como no caso do seppuku japonês geralmente
usado para limpar o nome da família na sociedade, ou como na religião hinduísta); ou,
ainda, tido como uma resposta radical ao absurdo da vida33 como querem os filósofos
existencialistas, o suicídio é fonte permanente e interminável de dissenso.
10. Assim sendo, não se poderia esperar consenso na qualificação do
suicídio e de suas causas. O suicida se mata por estar perturbado ou por ser
demasiadamente lúcido? O ato suicida decorreria sempre de um “incapaz” (nos termos
do Código Civil) por ter o seu processo volitivo perturbado, ou seria, por definição, um
ato de livre vontade?
10.1. Se a Filosofia, a Literatura, a Religião e a Antropologia dão a essas
perguntas respostas díspares e paradoxais conforme o credo adotado ou a cultura em que
vive quem julga o ato suicida, nem mesmo nos campos mais próximos à certeza científica,
como a Sociologia, a Psicologia e a Medicina, se chega a uma resposta minimamente
consensual, capaz de oferecer ao Direito pontos de apoio unívocos e seguros para o
delineamento de suas regras.
aprender a morrer, Liv. I, Cap. XIX, in: MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Seleção e tradução de J. M.
Toledo Malta, Rio de Janeiro, José Olympio, 1961 p.30.
29 Assim Platão em As Leis, embora justifique, com quatro exceções, o cometimento de suicídio.
30 Os estóicos, como Sêneca, justificavam o suicídio porque “o essencial não é viver, mas viver
bem” ( V. PAGENOTTO, Maria Lígia. Um Absurdo Razoável. Revista Filosofia, ano 1, n. 11, Ed. Escala,
São Paulo, 2007, pp. 24 et seq).
31 KAPLAN, B. e SADOCK, V. Compêndio de Psiquiatria. 9ª ed. Porto Alegre, Artmed, 9ª ed,
2007, p. 477.
32 O Cristianismo o veda, taxativamente, por ser ato contra o mandamento divino (“Não matarás”),
o que vem de Agostinho de Hipona (354-430): os cristãos não podem cometer suicídio, pois estariam a
infringir o mandamento ‘Não matarás’ (Êxodo 20.13) que proíbe matar a nós mesmos.
33 Para Camus, “matar-se, em certo sentido é confessar”, é confessar que “fomos superados pela
vida ou que não a entendemos”, é admitir “o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do
sofrimento”. (O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo, Record, 2004, p.
19).
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10.2. Durkheim, em 1897, ao tratar sociologicamente do suicídio,
restringia-o aos casos em que a vítima atentou conscientemente contra a própria vida,
definindo-o como "todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por um ato
positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que devia provocar
esse resultado"34 O suicídio, portanto, seria sempre um ato intencional na qual a vítima
age com objetivo de provocar sua própria morte, tendo conhecimento de que tal ato
produziria a morte.
10.3. Na tradição psicanalítica, diferentemente, diz-se haver “fatores
inconscientes” ligados ao ato, a maioria dos suicídios estando ligada a transtornos
psiquiátricos35. Segundo esse entendimento, raramente um suicídio decorre de uma
escolha “livre e premeditada, não relacionada a doença mental”, então se classificando
tais suicídios, psicanaliticamente, como “suicídios racionais”36.
11. Conquanto essa radical incerteza, atestada por todos os campos do
saber, na vigência do Código de 1916 a doutrina jurídica e a jurisprudência pretenderam
traçar uma firme linha divisória entre “suicídio voluntário” e “suicídio involuntário” para
o efeito de liberar, ou não, o segurador.
11.1. A impropriedade da adjetivação (pois do ponto de vista lexical
todo o suicídio é voluntário, podendo, igualmente ser considerado, do ponto de vista
psicanalítico, como não-voluntário!) servia como uma cunha na rigidez da construção
jurídica que, fortemente embasada em percepções morais e religiosas, condenava o
suicídio, considerando a cobertura do risco de suicídio pelo seguro uma forma de
induzimento. Por esta razão, explicava Pedro Alvim, “a legislação civil a proíbe”37, o
suicídio liberando o segurador na forma do art. 1.440 do Código de 1916 porquanto
compreender-se que a exclusão do risco consistia em “imperativo de ordem pública”38.
Na voz doutrinária, “a admitir-se a cobertura seguradora, não raro veríamos indivíduos
decididos a cometer suicídio celebrarem contratos de seguro a fim de garantirem a
34
DURKHEIM, Emile - Suicídio: definição do problema, Suicídio Altruísta, Suicídio Egoísta,
Suicídio Anômico. Coleção Grandes Cientistas Sociais, 7ª Edição, Atica, 1995, pp. 103 a 122.
35 SERRANO, Alan I. Suicídio: Epidemiologia e Fatores de Risco. In: CATALDO NETO, A, et
allii. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003, p. 665.
36 SERRANO, Alan I. Suicídio: Epidemiologia e Fatores de Risco. In: CATALDO NETO, A, et
allii. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003, p. 665.
37 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.
38 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.
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subsistência dos seus ou o enriquecimento de amigos, o que é profundamente imoral, ou,
o que se nos afigura mais grave, por sentirem garantida essa subsistência, decidirem por
termo aos seus dias, decisão que de outro modo não tomariam. Assim, a cobertura de
risco de suicídio não só fomenta a fraude, como pode constituir a razão determinante de
um ato que a sociedade tão veementemente reprova, aviltando o seguro, na medida em
que o transforma num instrumento de dissolução de costumes” 39.
11.2. A concepção moral subjacente ao Código de Bevilaqua fazendo
essa tão radical vedação à cobertura do risco do suicídio motivou aquela distinção entre
“voluntariedade” e “involuntariedade” que decorria do emprego, pela lei, da palavra
“premeditação” conectada a “suicídio”. Assim, conquanto a palavra “suicídio” indique
do ponto de vista léxico-gramatical de per si a morte voluntária (por isso mesmo
“premeditada”), o Código de 1916 optou por se distanciar do vernáculo e, incorrendo em
evidente contradictio in adjectum no parágrafo único do art. 1.440, adjetivou o suicídio
liberatório para o segurador de “suicídio premeditado”.
12. Foi sobre essa contraditória adjetivação que trabalharam a doutrina
e a jurisprudência. A regra do parágrafo único do art. 1.440 incorria em contradictio in
adjectum porque o suicídio é, per definitionem, a morte voluntária e a voluntariedade
implica, em certa medida, em “premeditação”, isto é, no agir para que certo resultado
aconteça, a “premeditação” consistindo na meditação prévia ao ato suicida, e só medita
previamente ao suicídio quem voluntariamente pensa na própria morte. Quem não quer
dar a morte a si mesmo, mas esta acaba acontecendo, não se suicida: ou sofre um acidente,
ou tem morte derivada de outras causas que não o ato voluntário próprio40, distinção que
não está cingida aos dicionários, pois também a doutrina jurídica anota: “Suicida è infatti
chi si cagiona volontariamente la própria morte e suicídio l’atto con il quale un individuo
cagiona volontariamente la propria morte. Il suicidio pressuppone la volontarietà dell’atto
39
J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, transcrito por ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed.
Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.
40Assim registram os dicionários, vg. Suicida [do lat. Sui, ‘de si’+ se].S. 2g. 1. Pessoa que se matou
a si próprio, que se suicidou. Adj. 2 g. 2. Que serviu de instrumento de suicídio; arma suicida. 3. De que se
participa com a certeza de morrer, ou como que com essa certeza. Luta suicida, ação suicida. 4. Que envolve
dano ou ruína certa: a oposição do Ministro à decisão presidencial foi atitude suicida (Novo Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª ed. revista e atualizada. Ed. Positivo, Curitiba, 2004, p.1891. Assim
também em outros idiomas, vg: Suicide: n.m. 1. Action de causer volontairement as propre mort (Micro
Robert – Dictionnaire du Français Primordial, S.N.L.- Le Robert, Paris, 1976, p.1028) ; Suicide. N. 1. the
act of killing oneself deliberately: he tried to commit suicide. 2. a person who kills himself or herself
intentionally. (Collins – Compact English Dictionary. Harper Color Edition 2th ed., reprinted (1997),
Wrothan, 1997, p. 878.
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e questa la sua coscienza: senza coscienza non vi è volontà e senza volontà non vi è
suicidio. La morte autocagionatasi per errore (ad. es., chi ingersisce una dose troppo forte
di un fármaco) o per negligenza (ad es.chi si sporge eccessivamente da una finestra),
morte cioè autocagionatasi involontariamente, non è dovuta a suicidio bensì ad
infortunio”41.
13. Assim não pensava, porém, o legislador brasileiro de 1916. O
Código então vigorante previa em seu art. 1.440, a possibilidade de a vida ser estimada
como objeto segurável, nos casos de “morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou
outros semelhantes”, afastando totalmente dessa possibilidade (por considerar hipótese
de morte premeditada) aquela “recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por
pessoa em seu juízo”. Explicitando essa regra dizia Bevilaqua: “O suicídio para annular
o seguro deve ser conscientemente deliberado porque será, egualmente, um modo de
procurar o risco, desnaturando o contracto. Se, porem, o suicídio resultar de grava ainda
que subtanea perturbação da intelligencia, não anulará o seguro. A morte não se poderá,
neste caso, considerar voluntária; será uma fatalidade; o individuo não há quiz, obedeceu
a forças irresistíveis”42. E João Luiz Alves, outro comentarista do então novel Código
Civil, também se referindo ao parágrafo único do art. 1.440, ajuntava: "O caso de duelo
não oferece dificuldade; o de suicídio, porém, na prática, pode oferecê-la. Todavia, a
premeditação e a sanidade de espírito são questões de fato, dependentes da prova. Essa
prova incumbe ao segurador: a presunção é que o suicídio é um ato de desequilíbrio
mental, que torna involuntário o ato”43.
14. Como se pode perceber, a doutrina então distinguia (ainda que com
terminologia equívoca) entre duas situações de fato: o suicídio de segurado motivado por
dolo contra a comunidade segurada e o suicídio não-doloso porque resultado de um
41
DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 1882-
1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265. Em tradução livre: “Suicida é aquele que
ocasiona voluntariamente a própria morte e suicídio é o ato com qual um indivíduo ocasiona
voluntariamente a própria morte. O suicídio pressupõe a voluntariedade do ato e sua consciência: sem
consciência não há vontade e sem vontade não há suicídio. A morte auto-ocasionada por erro (i.e., quem
ingere uma dose muito forte de um remédio) ou por negligência (i.e., quem se pendura excessivamente de
uma janela) morte, isto é, auto provocada involuntariamente, não é devida a suicídio, mas sim à desgraça”.
42 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. Vol. V. São
Paulo, Francisco Alves, 1919, p. 192.
43 ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil Anotado. 5o vol.
3 ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, p. 102.
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desequilíbrio mental, de uma ausência de premeditação, a ser comprovada pela
seguradora.
14.1. O chamado “suicídio voluntário” ou “premeditado” era aquele em
que o segurado, para fraudar o seguro (e, assim, prejudicar a comunidade de pessoas
segurada) contratava o seguro já com a intenção de por cabo à própria vida, visando,
muitas vezes, proporcionar ao beneficiário meios de fazer frente aos credores. O suicídio
dito “involuntário”, diferentemente, prescindia dessa intencionalidade. Assim, por
exemplo, o caso de segurado que, posteriormente à conclusão do contrato de seguro de
vida se via acometido por forte doença mental que o levava a atentar contra a própria
vida.
14.2. Como é facilmente compreensível, a prova da intencionalidade, a
cargo da seguradora, consistia, verdadeiramente, numa prova diabólica e, no mais das
vezes, dolorosa para a família e atentatória à privacidade do de cujus, sabendo-se que os
direitos de personalidade têm projeção para após a morte. Não raramente, as seguradoras,
para comprovar a intencionalidade, que as liberaria, se viam obrigadas a invadir a esfera
de privacidade do suicida, buscando os indícios da inexistência ou irrelevância de
elementos psicológicos capazes de motivar (psicologicamente) o ato extremo.
Paralelamente, os beneficiários do seguro se viam constrangidos a afirmar a ausência de
higidez mental do falecido (inclusive apresentando em juízo documentos médicos, o que
pode ofender a esfera da privacidade de quem já não mais se pode defender), tudo para
comprovar a “involuntariedade” do suicídio e, assim, receber o benefício.
15. Essas circunstâncias todas subjazem ao entendimento doutrinário
expresso por Bevilaqua e por Alves, entre outros – construído, note-se bem, na primeira
metade do séc. XX sobre a regra do art. 1.440 do Código hoje revogado – que a
jurisprudência reiterou ao sumular a matéria.
15.1. No Supremo Tribunal Federal editou-se em 13 de dezembro de
1963 a Súmula 105 pela qual se assentou: “Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio
do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do
seguro”.
15.2. Na fundamentação dos acórdãos que a ensejaram explicitou-se,
ora que o suicídio “presume-se ato de inconsciência”44 ora que se equiparava à morte
44
STF, AI 30858, in: Publicação: DJ de 5/5/1964.
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natural, salvo se “o segurado celebrasse o contrato de caso pensado e se suicidasse para
deixar bem à família com o seguro”45.
15.3. Quase trinta anos mais tarde o Superior Tribunal de Justiça
reiterou a distinção e editou a Súmula 61 afirmando: “O seguro de vida cobre o suicídio
não premeditado” 46. A jurisprudência posterior explicitou a extensão da distinção,
realizando a sinonímia entre “voluntário” e “premeditado” como, exemplificativamente,
nos acórdãos cujas ementas são abaixo transcritas47.
15.4. Em suma: doutrina e jurisprudência, com a louvável intenção de
dar uma explicação satisfatória à qualificação legal (“premeditado”) do parágrafo único
do art. 1440, levaram a uma sindicância no âmbito da formação da vontade do suicida em
relação às eventuais causas patológicas que pudessem ter alterado a sua livre
determinação.
15.5. Essa sindicância, para além de consistir em prova diabólica para
a seguradora, era também de molde a atingir direito de personalidade do suicida
(protegido mesmo post mortem48). É que a investigação sobre a voluntariedade, ou não,
45
STF, RExt. n. 50.389 DJ de 5/7/1962. Foram ainda precedentes, além do AI acima citado: RE
31331 embargos, in DJ de 9/7/1959 e RTJ 10/95; RE 47991, in: DJ de 7/8/1961; RE 47991, in: : DJ de
12/4/1962 e RTJ 22/295.:
46 STJ - S2 - SEGUNDA SEÇÃO. J. em 14/10/1992. In: DJ 20.10.1992 p. 18382.RSTJ vol. 44 p.
81;RT vol. 688 p. 172. Precedentes: REsp 16560 SC 1991/0023696-9, j. em 12/05/1992, in: DJ de
22/06/1992, p.09765. REsp 6729 MS 1990/0013089-1. J. em 30/04/1991. In: DJ de 03/06/1991, p. 07424.
REsp 194 PR 1989/0008427-5, de 29/08/1989, in DJ de 02/10/1989, p. 15350.
47 STJ, AgRg no Ag 868283 / MG,Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. Quarta Turma . J. em
27/11/2007 , in: DJ 10.12.2007 p. 380, in verbis: "(...) Seguro. Suicídio. Não premeditação.
Responsabilidade da Seguradora. Agravo Regimental Improvido. 1. O suicídio não premeditado ou
involuntário, encontra-se abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo que é ônus que compete à
seguradora a prova da premeditação do segurado no evento, pelo que se considerada abusiva a cláusula
excludente de responsabilidade para os referidos casos de suicídio não premeditado. Súmula 83/STJ.
Precedentes. 2. "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de
carência não exime o segurador do pagamento do seguro." Súmula 105/STF. 3. Agravo regimental
improvido". E ainda, no STF, RE 100485 / SP – Rel. Min. Néri da Silveira. J. em 06/03/1989. Primeira
Turma. In: DJ 18-10-1993 PP-14550, EMENT vol-01638-02 pp-00245, in verbis: Recurso extraordinário.
Seguro de vida. Morte do segurado. Alegação da seguradora de ter ocorrido suicídio do segurado.
Divergência do acórdão com súmula 105 do STF. Premeditação do ato não demonstrada. Código Civil, art.
1.440. Cláusula da apólice reguladora do seguro não prevalece, quando contrariar disposição legal. Código
Civil, art. 1.435. De acordo com art. 1.440 do Código Civil, considera-se morte voluntária a recebida em
duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo. Não pode se eximir do pagamento
pactuado a seguradora, se não provou que o suicídio foi voluntário ou premeditado. CPC, art. 333, II.
Recurso extraordinário conhecido e provido, para restabelecer a sentença que rejeitou os embargos da
seguradora a execução". Idem, para a distinção (embora julgando a voluntariedade do suicídio) o RE 79956
/ SP – Rel. Min. Aldir Passarinho, Segunda Turma. J. em 19/11/1982. In: DJ 13-05-1983 PP-06501,
EMENT vol 01294-02 pp-00368.
48 Embora morto não tenha direitos, protege-se, para certos efeitos, a sua personalidade, como o
direito ao resguardo de seu bom nome e de sua privacidade (v.g, no célebre “caso Almir”o STF, RE 112263
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do suicídio, comporta uma avaliação das causas do suicídio para só então se decidir se
estas são de molde (ou não) a retirar do agente a sua plena capacidade e liberdade de
determinação.
16. O Direito Comparado é de extrema valia no exame dessa matéria
porque também em outros sistemas vivenciou-se idêntica problemática.
17. Na vigência do velho Codice Commerciale italiano, de 1882, havia
regra por tudo similar a do parágrafo único do art. 1440 do Código de Bevilaqua, dando
azo às mesmas dificuldades probatórias que aqui se verificavam, como relatam Mariano
D'Amelio e Enrico Finzi ao aludir às “gravi questioni” e às ‘notevoli dissensi in dottrina
e in giurisprudenza”49 suscitadas pela expressão legal “suicidio volontario” do antigo art.
45050. Por isso mesmo, o Código italiano de 1942 modificou totalmente a orientação,
fazendo dispor no seu art. 1927 a seguinte regra: "1927- Suicidio dell'assicurato. - In caso
di suicidio dell'assicurato, avvenuto prima che siano decorsi due anni dalla stipulazione
del contratto, l'assicuratore non è tenuto al pagamento delle somme assicurate, salvo patto
contrario. L'assicuratore non è nemmeno obbligato se, essendovi stata sospensione del
contratto per mancato pagamento dei premi, non sono decorsi due anni dal giorno in cui
la sospensione è cessata51.
17.1. Essa “nova” regra foi logo elogiada pela doutrina, justamente por
tornar superadas as discussões e dificuldades probatórias suscitadas pelo critério legal
/ RJ - , Rel. Min. SYDNEY SANCHES. Julgamento: 28/03/1989 - Primeira Turma.In: DJ DATA-10-08-
89 PG-12918 EMENT VOL-01550-03 PG-00458; no Direito alemão é célebre o “caso Mephisto” referido
por MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de
Direito Constitucional. São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1998, pp. 87-89).Também
se protege, desde a antiguidade grega (v. Antígona, de Sófocles) o direito a ser dignamente sepultado (v.g,
TJRS, 20aC, Civ. Ap. Civ.n.º 70002434710, Rel. Des. ARMINIO JOSE LIMA DA ROSA, j. em 25 de
abril de 2001).
49 AMELIO, M. e FINZI, E. (org.). Codice Civile. Libro delle Obligazioni. Vol. II. Dei Contratti
Speciali, Parte II. Barbera, Florença, 1949, PP. 342-343.
50 Entre as várias causas de sinistro que a seguradora, no caso de morte, contratava sobre a vida do
mesmo estipulante implicavam a liberação da seguradora (condenação judicial, duelo, crime ou delito
cometido pelo segurado dos quais ele poderia prever as conseqüências) o artigo 450 do código comercial
italiano contemplava o “suicídio voluntário”. As apólices de seguro às vezes usavam a mesma expressão
do código, às vezes, por outro lado, a substituíam por “suicídio premeditado ou não” ou por “suicídio
consciente”, ou mesmo simplesmente “suicídio” (Assim relata DONATI, Antígono. Il contrato di
Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 1882-1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni,
1943, p. 260-265).
51 Em tradução livre: “Em caso de suicídio do segurado, ocorrido antes que tenha passado dois anos
da estipulação do contrato de seguro, a seguradora não deve pagar as somas seguradas, salvo pacto em
contrário./A seguradora não é nem mesmo obrigada se, tendo sido suspenso o contrato por falta de
pagamento do prêmio, não tenha se passado dois anos do dia em que a suspensão acabou”.
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anterior. Escrevendo em 1949, D’amelio e Finzi registravam: " “Bene a fatto dunque il
nuovo codice a parlare sic et simpliciter di suicidio/ (...). La distinzione tra suicidio del
capace d’ intendere e volere e quello dell’incapace, se si poteva fare sotto il vecchio
codice, dato che ad essa si poteva cientificamente ricondurre (anche con l’aiutto dell’art.
85 cod. pen) la distinzione legale tra suicidio volontario e suicidio involontario non mi
sembra possibile invece con il nuovo codice, il quale, allo scopo di evitare ogni questione
al riguardo, non fa alcuna distinzione, confidando il favor assecurati alla piena
obbligazione dell’assicuratore decorso un certo tempo”52.
17.1. A doutrina subseqüente seguiu idêntica orientação. Veja-se,
exemplificativamente, a lição de Renato Miccio para quem o Código italiano de 1942
com a sua formulação desprovida de distinção e especificação53 teve o mérito de eliminar
a fonte principal das graves questões que, sob o rigor do Código revogado, apareciam
sobre hipótese de suicídio no caso de seguro de vida. No regime anterior, dizia Miccio, o
artigo 450 continha disposição “infeliz e contraditória”, de interpretação “quase
impossível”, liberando a seguradora da obrigação de pagar a soma segurada no caso de
suicídio voluntário, locução legal que se podia considerar, do ponto de vista filológico e
lexical, “um mero pleonasmo” e, do ponto de vista jurídico, “um autêntico quebra-
cabeça” 54.
17.2. Foi assim comemorada como positiva a disposição do Código de
1942 que veio impedir a verificação da motivação do suicídio e das condições psíquicas
do suicida, cortando a discussão sobre o fato de a decisão de tirar a própria vida implicava,
ou não, fraude à seguradora e ilícita vantagem para uma determinada pessoa. No consenso
doutrinário considerou-se dever excluir a hipótese de um suicida que, com um período de
52
AMELIO, M. e FINZI, E. (org.). Codice Civile. Libro delle Obligazioni. Vol. II. Dei Contratti
Speciali, Parte II. Barbera, Florença, 1949, p. 344, em tradução livre: “Fez bem o Novo Código em falar
sic et simpliciter do suicídio/ (...) A distinção entre o suicídio do capaz de entender e de querer daquele do
incapaz, se se podia estabelecer sob o velho código, dado que a essa se podia cientificamente reconduzir
(também com o auxílio do art. 85 do código penal) a distinção legal entre suicídio voluntário e suicídio
involuntário não me parece possível fazer com o novo código, o qual, com o escopo de evitar toda questão
sobre o referido [problema], não faz nenhuma distinção, conferindo o favor assecurati a plena obrigação
do segurador [uma vez]passado um certo tempo”.
53 MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV. Unione
Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 391-394. Alude o autor ainda à doutrina de BUTTARO, Il suicidio
nell’assicurazione sulla vita di un terzo. Em Assicur. 1955, I, 68; e de GHERSI, Il rischio suicidio
dell’assicurazione vita, ivi, 1954, I, 145.
54 MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV. Unione
Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 391.
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tempo tão longo (dois anos) tivesse não apenas premeditado a própria morte, mas mantido
firmemente a determinação, a ponto de realizar, depois de dois anos, “o plano traçado no
momento da conclusão do contrato”55.
18. Os elogios à redação do art. 1927 do Codice Civile vinham de ter
proporcionado aos operadores um critério seguro e unívoco, qual seja, o transcurso do
lapso temporal de dois anos, findo o que o dever de garantia, a cargo da seguradora, é
indiscutível. O critério anterior, obrigando à pesquisa dos elementos “voluntariedade/
involuntariedade” levava à insegurança de se ter que decidir – resguardados os princípios
da isonomia e da segurança jurídica – se era ou não excludente da obrigação da seguradora
o reconhecimento de um estado de insanidade momentânea (por exemplo, suicídio
durante um acesso de febre); ou uma depressão intermitente; ou num período de
superexcitação nervosa devida à paixão ou prostração física derivada de um excesso
alcoólico ou medicamentoso.
18.1. Na ausência do critério objetivo prevaleceria o entendimento
(também expresso, entre nós, nas citadas Súmulas de jurisprudência) de constituir o
suicídio ou um ato não-imputável à vontade do segurado suicida, ou uma espécie de
fraude do segurado em relação à seguradora (pois se trata de um ato que altera o curso
natural dos acontecimentos e provoca à seguradora a obrigação de cumprir a sua
prestação).
19. Foi por conta dessas dificuldades que o Código italiano (tal qual o
Código Civil brasileiro de 2002) mudou o critério, assinalando a doutrina de Antigono
Donati que a distinção entre suicídio voluntário e involuntário, não mais seria possível
com o Código de 1942, pois este objetivou, justamente, evitar as tormentosas questões a
respeito não fazendo nenhuma distinção e confiando o favor assecurati a plena obrigação
da seguradora decorrido um certo tempo56.
20. A invocação à legislação e doutrina italianas justifica-se, no
presente caso, porque foi justamente a regra do art. 1.927 do Codice Civile o modelo
adotado pelo legislador brasileiro ao editar o Código de 2002. Nesta matéria o nosso
Código – tal qual o seu congênere italiano – expurgou totalmente o exame do pressuposto
subjetivo (qual seja, a voluntariedade ou não do ato), atendo-se exclusivamente ao
55
MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV. Unione
Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 394.
56 DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 1882-
1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265.
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requisito temporal, de ordem objetiva, na esteira, aliás, de outras legislações
contemporâneas, como a recentíssima Lei Geral dos Seguros portuguesa (Decreto-Lei n.º
72 de 16 de Abril de 2008) e o Substitutivo do Projeto de Lei n. 3555/2004, em tramitação
no Congresso Nacional. É tempo, pois, de voltar os olhos a estes pontos.
B) Da regulação da matéria no Código Civil de 2002
21. Vigente uma nova lei é preciso averiguar quais são os seus
pressupostos teóricos e quais são as suas diretrizes, pois, ao assim não proceder,
estaremos emprestando a força de inércia – ao meramente repetir a tradição – àquilo que
o legislador democraticamente eleito decidiu modificar. Cabe, pois, examinar essas
diretrizes e fundamentos teóricos, tais como expressos nos textos dos responsáveis pela
redação da regra hoje posta no art. 798 (i), alcançando, assim, a sua adequada
interpretação (ii).
(i) Do art. 798: a diretriz da operabilidade e o critério objetivo adotado no
“Substitutivo Comparato” e acolhido no Anteprojeto e no Projeto de Código Civil.
22. Para compreensão da dialética “permanência e mudança, tradição e
ruptura” que perpassa constantemente o fenômeno jurídico é preciso mais que atenção: é
preciso um trabalho de arqueologia jurídica para se chegar aos fundamentos e diretrizes
inspiradoras do legislador, assim se iluminando a tarefa do intérprete que, embora em
parte criador, não deve ser traidor àqueles fundamentos e diretrizes.
22.1. Como é por todos sabido, Miguel Reale, o Presidente da Comissão
Elaboradora do Código Civil, deixou expresso, em numerosas passagens, as diretrizes
que guiaram o trabalho daqueles juristas a quem foi cometida a responsabilidade de
elaborar um novo Código Civil. Entre essas está a diretriz da operabilidade, explicitada
na seguinte forma: "(...) toda vez que tivemos de examinar uma norma jurídica e havia
divergência de caráter teórico sobre a natureza dessa norma ou sobre a conveniência de
ser enunciada de uma forma ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz
que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado;
Direito que não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora – é como chama
que não aquece, luz que não ilumina. O Direito é feito para ser realizado; é para ser
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operado. (...) Então, é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim de evitar uma
série de equívocos e de dificuldades, que hoje entravam a vida do Código Civil”57.
23. Uma dessas dificuldades que efetivamente “entravavam a vida” do
Código de 1916 estava, justamente, na artificiosa e insegura distinção entre suicídio
voluntário e involuntário.
23.1. Como acima já anotado, do ponto de vista de uma análise
gramatical e semântica, todo o suicídio é, por definição, voluntário. Porém, se partirmos
de uma análise psicanalítica ou cristã, poderíamos chegar a uma conclusão polarmente
oposta, a saber: que todo o suicídio é, por definição, involuntário, pois para praticar o ato
extremo (contra a vida, ou contra o “dom de Deus”) a pessoa humana deveria,
necessariamente, estar incapacitada, entendendo-se a capacidade jurídica como
discernimento, como é requerido pelos artigos 3°, inciso II e 4°, inciso II do Código Civil.
23.2. Ocorre que, conquanto tenha o Código Civil de 2002 muito
aprimorado essa temática em relação ao Código de 1916, ao substituir pelo topos do
“discernimento necessário” (elemento comum tanto à incapacidade absoluta do art. 3º
quanto à incapacidade relativa do art. 4º) a categoria dos “loucos de todo o gênero”, a
verdade é que ainda não está clara a eficácia (ou eficácias) ligadas às formas
intermediárias de capacidades. Não se têm ainda bem delimitadas (nem do ponto de vista
médico, nem do jurídico) as conseqüências ligadas a certas formas de transição entre a
capacidade e a incapacidade ou a certos estados transitórios de inconsciência ou de
alienação regular, e nem mesmo a certas formas de psicopatia que provocam
incapacidades para determinados atos, mas não para outros. A imensa tipologia de
deficiências mentais e a igualmente grande diversidade no grau de discernimento das
pessoas atingidas por um déficit proveniente de suas condições psíquico-sociais ou
atribuíveis ao vício de drogas, por exemplo, torna impossível um tratamento unitário.
Também o discernimento não é uma categoria homogênea, apresentando um extenso
leque de variações em sua graduação. Existem (sem que a técnica jurídica delas se ocupe)
situações de “para-incapacidades58”; de incapacidades intermitentes, e mesmo de
57
REALE, Miguel, na “Exposição de Motivos do Projeto de Código Civil”, ora em O Projeto de
Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 10, grifei.
58 A expressão é de Bulhões Carvalho que reclamava uma “ação socializadora do Estado para
enfrentar os “às vezes estranhos fatos sociais que vão eclodindo à nossa volta” a fim de enfrentar-se os
“estados fronteiriços entre incapacidade e restrição ao exercício da capacidade”. (BULHÕES DE
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“incapacidades mitigadas”59.
Qual dessas seria hábil para etiquetar um suicídio como “involuntário”?
23.3. Justamente pelas incontornáveis dificuldades práticas derivadas
dessas distinções é que o legislador de 2002 fez substituir o critério constante do Código
de 1916 – critério subjetivo, ligado à pesquisa das condições psíquicas do suicida, critério
causador de dificuldades práticas e hermenêuticas – por um critério temporal objetivo,
idêntico ao do Código italiano de 1942, que dispensa a perquirição sobre a voluntariedade
ou não do ato suicida, sendo, assim, plenamente adequado à “diretriz da operabilidade”,
além de estar em consonância – como veremos oportunamente – com outras legislações
contemporâneas.
24. O intento do legislador em adotar um critério puramente objetivo,
expurgando a pesquisa sobre a subjetividade e afastando o estabelecimento de presunções
de premeditação (ou de não-premeditação) é indubitável. Para comprová-lo basta que nos
demos ao trabalho de examinar, em ordenada cronologia, os documentos que levaram à
edição do Código Civil de 2002.
24.1. A primitiva redação do que viria a ser o vigente art. 798,
apresentada por Agostinho Alvim aos seus colegas na Comissão Elaboradora do
Anteprojeto ainda continha uma mescla de critérios, o subjetivo e o objetivo, alinhando à
manutenção da distinção entre “suicídio premeditado” e “não-premeditado” um critério
objetivo temporal:
Art. 570/0. “O seguro de vida somente diz respeito à morte involuntária.
CARVALHO Francisco Pereira de. Incapacidade Civil e Restrições de Direito. Tomo II, § 422. Rio de
Janeiro, Borsói, 1957.., p. 403. n. 336).
59 Atento a variabilidade das situações de incapacidade e às formas intermédias, o Direito
Comparado aponta aos casos e às soluções que vêm sendo intentadas. Uma autora italiana alude ao
necessário reconhecimento de uma “capacidade graduável” a fim de atender-se o interesse de certas
“subjetividades marginais”, como os embriões. (v. SERRAVALE, Paola d’Andino. Questione
Biotecnologiche e Soluzione Normative. ESI, 2001. p. 23.); para o Direito DIAS PEREIRA, André Gonçalo.
A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In: Comemorações dos 35 anos do
Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1975. vol. II. A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do
Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, 2006. No Brasil,
referências também em STANCIOLI, Brunello Souza. Relação Jurídica Médico-Paciente. Belo Horizonte,
Del Rey, 2004, pp. 44-48 e, na Argentina, em português v. KEMELMAJER DE CARLUCCI, Aida. El
Derecho del Menor a su propio Cuerpo, in BORDA, Guillermo. (org.) La Persona Humana. Buenos Aires,
La Ley, 2001, pp. 249-286.
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§ 1°. Considera-se morte voluntária a recebida em duelo bem como o
suicídio premeditado por pessoa em seu juízo.
Nunca se considera premeditado o suicídio que só ocorreu mais de dois
anos depois de firmado o contrato.
§ 2°. Não se tem como voluntária a morte que ocorreu por ter a pessoa
arriscado a vida por finalidade científica, altruística ou esportiva”60.
24.2. Essa redação era diversa61 daquela constante de outro Anteprojeto
que não fora aprovado, a saber, o Anteprojeto de Código das Obrigações do Professor
Caio Mario da Silva Pereira que em 1963 preparara um Anteprojeto do Código das
Obrigações. Este, em seu artigo 798, dizia:
Art. 798. Depois de emitida a apólice, o segurador não pode recusar o
recebimento do prêmio, nem o pagamento do seguro de vida, salvo se
provar a má-fé do segurado, ou que a morte ou incapacidade tenha
resultado de duelo, ou suicídio premeditado, por pessoa em seu juízo
perfeito.
24.3. Como se vê, na proposição original de Caio Mario adotou-se um
critério exclusivamente subjetivista.
60
Conforme manuscrito dos integrantes da Comissão Elaboradora intitulado Código Civil –
Anteprojeto com m/ revisões, correções substitutivas e acréscimos. Biblioteca de Miguel Reale, p. 85.
61 Nos itens subseqüentes, as fontes de pesquisa foram: Código Civil: anteprojetos. Brasília: Senado
Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1995. 5 v:V. 1. Anteprojeto de Código das Obrigações - parte
geral (1941) / Comissão: Orosimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães. Anteprojeto
de lei geral de aplicação das normas jurídicas (1964) / Haroldo Valladão. --- V. 2. Anteprojeto de Código
Civil (1963) / Orlando Gomes. Anteprojeto de Código Civil - revisto (1964) V. 3. Anteprojeto de Código
Civil das Obrigações / Caio Mario da Silva Pereira (1963), Sylvio Marcondes (1964), Theophilo de
Azevedo Santos (1964) --- V. 4. Projeto do governo Castello Branco: projeto de Cóodigo Civil (PL n.
3.263/65), projeto de obrigações (PL n. 3.264/65) --- V. 5, Tomo 1. Anteprojeto de Código Civil (1972) /
Comissão elaborada e revisora: Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves; Agostinho de Arruda Alvim,
Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva e Torquato Castro; Tomo 2. Anteprojeto de
Código Civil - revisto (1973)/ Comissão elaboradora e revisora: Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves;
Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva e Torquato
Castro. E ainda: O Projeto de Código Civil no Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 1998. 2 v:V. 1.
Projeto de lei da Câmara n. 118, de 1984, n. 634/5 na Casa de Origem --- V. 2. Opinião do Min. Moreira
Alves Sobre as Emendas dos Senadores Relativas à Parte Geral. Opinião do Prof. Miguel Reale Sobre as
Emendas dos Senadores Relativas à Parte Especial. Sugestões dos Profs. Alvaro Villaça Azevedo e Regina
Beatriz Tavares S. P. dos Santos Sobre o Direito de Família. Estudo e Sugestões do Prof. Mauro Rodrigues
Penteado Sobre Títulos de Crédito. Sugestões do Prof. Luiz Edson Fachin Sobre Direito das Coisas.
Sugestão do Prof. Fabio Konder Comparato e de Marcelo Gazzi Taddei Sobre Desconsideração da Pessoa
Juridica. Contribuição do Prof. José Teixeira Sobre Vários Pontos, e da Consultoria Legislativa Sobre o
Direito de Família e das Sucessões. Também: em COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo
referente ao Contrato de Segurado no Anteprojeto de Código Civil. In: Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econômico e Financeiro n. 5, p. 144 a 151. Também referências em REALE, Miguel. História
do Novo Código Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 23.
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24.4. Porém, em 1965, o Anteprojeto Caio Mario foi encaminhando ao
então Presidente Castello Branco, que o reenviou ao Congresso Nacional (Projeto n. PL
3264/65). Nesse intervalo, foi o Anteprojeto revisado, alterando-se a redação do artigo
798 e, ainda, se acrescentando um parágrafo único. A redação do artigo (agora, numerado
como 748), ficou com o seguinte texto:
Art. 748. Depois de emitida a apólice, o segurador não pode recusar o
recebimento do prêmio, nem o pagamento do seguro de vida, salvo se
provar a má-fé do segurado, ou que a morte ou incapacidade tenha
resultado de duelo, ou suicídio premeditado.
Parágrafo único. Decorridos dois anos da celebração do contrato, o
suicídio do segurado, qualquer que seja a causa, não obsta ao
pagamento do seguro.
24.5. Repare-se que a expressão 'por pessoa em seu juízo perfeito' foi
suprimida da redação do artigo, adotando-se parágrafo único o critério objetivista,
mesclado, porém, com o subjetivista, constante do seu caput.
24.5. Entretanto, como é por todos sabido, o Projeto Caio Mario, bem
como o Projeto de Código Civil, redigido por Orlando Gomes, apresentados em 1965
pelo Executivo ao Congresso Nacional não vingaram. Foi criada nova Comissão de
Revisão do Código Civil, em 1969, chefiada por Miguel Reale que apresentou seu
primeiro Anteprojeto em 1972.
24.6. Nesse, o capítulo referente ao Contrato de Seguro ficou regulado
nos artigos 784 a 830 (46 artigos).
24.7. Os dispositivos acerca da 'carência e suicídio no contrato de
seguro de vida’, tiveram suas redações, e objetivos, radicalmente alterados, em
comparação com o Anteprojeto e o Projeto (1963 e 1965) do professor Caio Mario e
mesmo com a primitiva redação apresentada por Agostinho Alvim aos seus colegas na
Comissão Elaboradora. Confira-se:
Art. 825. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro do qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
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Art. 826. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o
segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
28. A alteração radical foi fruto do acolhimento, pela Comissão, em
1969, da proposta de substitutivo do professor Fabio Konder Comparato em relação ao
capítulo do Contrato de Seguro. Pela simples leitura, percebe-se que a redação do
primeiro Anteprojeto (de 1972) e do Substitutivo Comparato são idênticas. Assim estava
no Substitutivo:
Art. XXXVII - No seguro de vida para o caso de morte, é lícito
estipular-se um prazo de carência, dentro do qual o segurador não
responde pela ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. XXXVIII – O beneficiário não tem direito ao capital segurado
quando o segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de
vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso,
observado o disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único – Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
28.1. Contudo, o primeiro Anteprojeto foi revisado pela Comissão
chefiada pelo professor Miguel Reale, e, novamente publicado para apreciação, críticas e
sugestões da comunidade jurídica nacional. Neste, chamado de “Segundo Anteprojeto”,
em 1973, o capítulo de seguro perdeu um artigo (o artigo 803 no Primeiro Anteprojeto:
“Quando houver no contrato cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a
interpretação mais favorável ao segurado.”) e ficou regulamentado nos artigos 773 a 818.
Os textos referentes ao tema 'carência e suicídio' eram os 813 e 814. A redação
permaneceu inalterada considerados o Primeiro e o Segundo Anteprojetos). Novamente,
confira-se:
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Art. 813. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro do qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 814. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o
segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
28.2. Com esse texto, o Segundo Anteprojeto foi encaminhado ao
Congresso Nacional pelo Poder Executivo. Tramitando inicialmente na Câmara dos
Deputados, recebeu a numeração PL 634/75. Depois de nove anos, foi aprovado e enviado
ao Senado Federal, onde recebeu nova numeração: PLC 118/84.
29. Na forma como o Projeto foi recebido no Senado, o Contrato de
Seguro estava regulado nos artigos 757 a 802, e os referentes à 'carência e suicídio', com
redação idêntica foram numerados como 797 e 798, da seguinte forma:
Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro no qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o
segurado se suicida dentro nos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
29.1. Após longos 14 anos de tramitação no Senado Federal, em 1998,
o PLC 118/84 foi então aprovado e enviado, novamente, para a Câmara dos Deputados.
Na versão final aprovada pelos senadores, o Contrato de Seguro estava capitulado entre
os artigos 756 e 801. Os artigos 797 e 798 tiveram somente suas numerações alteradas,
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para 796 e 797, respectivamente, ficando sua redação incólume. Veja-se:
Art. 796. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro no qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 797. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o
segurado se suicida dentro nos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
29.2. Novamente na Câmara dos Deputados (sob o número - Projeto
634/75), foi o Projeto reapreciado, sem nenhuma alteração, porém, dos textos ora em
análise. A versão final, aprovada e sancionada pelo então Presidente Fernando Henrique
Cardoso, trouxe o Capítulo de Seguro nos artigos 757 a 802. Com as redações ainda
inalteradas, o tema 'carência e suicídio no contrato de seguro de vida’, na Lei
10.406/2002, ficou assim redigido:
Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, durante o qual o segurador não responde pela
ocorrência do sinistro.
Parágrafo único. No caso deste artigo o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o
segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do
contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
30. De tudo resultam cristalinas e insofismáveis certezas que podem
assim ser sumarizadas: a) a proposição do ilustre professor Caio Mario não teve nenhuma
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influência na formação da vontade legislativa, sendo inclusive totalmente distante do
texto aprovado; b) o legislador brasileiro rejeitou a solução proposta pelo insigne
professor Caio Mario da Silva Pereira, de modo que as suas lições, por valiosas que sejam,
não servem para aclarar o sentido e o alcance do art. 798; c) durante toda a tramitação do
Código Civil, desde o acolhimento do “Substitutivo Comparato”, os textos em causa não
sofreram nenhuma modificação, afirmando-se e se reafirmando, sem dissensões e na
forma prevista pelo princípio democrático, a vontade legislativa de consagrar-se o critério
objetivista, exclusivamente, na regulação dos efeitos do suicídio do segurado; d) o
legislador brasileiro, ao acolher o “Substitutivo Comparato” e ao aprovar a redação do
art. 798 do vigente Código, optou por um critério objetivista, afastando, explicitamente,
o critério subjetivista, bem demonstrando, assim, a firme, coerente e reiterada intenção
legislativa de por uma pá de cal nas tormentosas discussões acerca da voluntariedade, ou
não, do suicídio; e) o art. 798 foi expressamente inspirado no art. 1927 do Código Civil
italiano, razão pela qual os subsídios doutrinários e jurisprudenciais daquele sistema são
de valia para a compreensão da nossa regra.
31. Fábio Konder Comparado adotou a redação que provinha, em linha
reta, do art. 1927 do Código Civil italiano. Explicitando o teor da redação proposta,
correspondente integralmente ao teor dos vigentes arts. 797 e 798, dizia o Professor, nas
Notas Explicativas ao Substitutivo:
No art. XXXVIII vem regulada a debatida questão do direito do
beneficiário ao capital garantido, na hipótese de suicídio do segurado.
O atual Código Civil exclui a garantia em se tratando de “suicídio
premeditado (art. 1440, parágrafo único). O Projeto de 1965[n: ref. ao
chamado Projeto Caio Mario], após reproduzir essa disposição,
acrescenta que passados dois anos da conclusão do contrato “o suicídio
do segurado, qualquer que seja a sua causa, não obsta ao pagamento do
seguro”.
Como é sabido, a fim de evitar a probatio diabólica da premeditação do
suicida segurado, as companhias brasileiras sempre inseriram em suas
apólices de seguro de vida a cláusula de exclusão da garantia quando o
suicídio, qualquer que seja o grau de voluntariedade do ato, ocorre
dentro dos primeiros dos anos de vigência do contrato. Essa cláusula
porém, não foi admitida nos tribunais (Súmula do Supremo Tribunal
Federal n. 105).
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A orientação do Projeto de 1965, copiada do Código Civil, não parece
a melhor. Ao falar em suicídio premeditado o legislador abre ensejo a
sutis distinções entre a premeditação e a simples voluntariedade do ato,
tornando na prática sempre certo o direito ao capital segurado, pela
impossibilidade material de prova do fato extintivo, o que não deixa de
propiciar a fraude.
Preferimos seguir nesse passo o Código Civil italiano (art. 1927),
excluindo em qualquer hipótese o direito ao capital estipulado se o
segurado se suicida nos primeiros dois anos da vigência inicial do
contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, e proibindo em
contrapartida a estipulação de não pagamento para o caso de o suicídio
ocorrer após esse lapso de tempo. O único fato a ser levado em
consideração é, pois, o tempo decorrido desde a contratação ou
renovação do seguro, atendendo-se que ninguém, em são juízo, contrata
o seguro exclusivamente com o objetivo de se matar dois anos após 62.
32. De tudo se conclui, com base nos métodos hermenêuticos genético
e histórico, acima desenvolvidos63, que as referências feitas em certas obras doutrinárias
e mesmo em alguns acórdãos às origens do art. 798 (situando-as no Anteprojeto Caio
Mario) não estão conformes ao que indicam os documentos relativos à tramitação do
Código Civil, conforme atestado, inclusive, pelo jurista encarregado de presidir a
Comissão Elaboradora.
33. O método da interpretação genética, conquanto relevantíssimo
(principalmente para a análise de uma nova lei) não é, contudo, suficiente, devendo ser
conectado aos demais métodos de interpretação das leis.
34. Já bem assentada a intenção firme e indiscutível do legislador bem
como o processo genético do texto em exame, cabe agora contrastá-lo com os demais
critérios hermenêuticos, a saber, o literal, o lógico-sistemático e o axiológico, estes
últimos exigindo a conjugação entre valores postos na Constituição Federal, no Código
Civil e no Código de Defesa do Consumidor.
62
COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Segurado no
Anteprojeto de Código Civil. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro n. 5,
p.p. 150-151, grifei.
63Os argumentos históricos não se confundem com os argumentos genéticos: enquanto os
argumentos históricos fazem referência a textos normativos anteriores, e com semelhante âmbito de
incidência relativamente ao da norma objeto de interpretação, os argumentos genéticos dizem respeito a
textos não-normativos (discussões parlamentares, projetos de lei, discursos legislativos, exposições de
motivos), e se referem à formação do próprio dispositivo objeto de interpretação. (assim FERRARA,
Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues de .Ensaio sobre a
Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p., p. 143.
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(ii) Da interpretação do art. 798 do Código Civil em vista do sistema civil e
constitucional, e de seus princípios e valores.
35. Segundo Larenz, a apreensão do sentido literal das expressões
constantes do texto constitui o ponto de partida da atividade hermenêutica64. Também
assim Francesco Ferrara, para quem a interpretação literal é o primeiro sentido da
interpretação65.
35.1. Com efeito, o intérprete não pode deixar de considerar o dado
lingüístico, ponto de partida da atividade hermenêutica, sendo permitido o afastamento
da littera só em ocasiões muito excepcionais (quando evidente o erro de redação por parte
do legislador, conforme podem indicar dados históricos e a interpretação sistemática).
Assim refere Friedrich Müller em sua excepcional obra Juristische Methodik, em que
afirma consistir o texto da lei um elemento de “delimitação do espaço de um jogo de
concretização regular”66, porque afeiçoado aos valores democráticos. Num Estado
Democrático de Direito o seu afastamento pelo intérprete só se justifica, pois, quando
“incontestável” o erro, para serem superadas antinomias sistemáticas (lógicas e
axiológicas) acaso existentes.
35.2. Por isso a importância de se conjugar a interpretação literal
(gramatical) com a interpretação histórico-genética, a lógico-sistemática e a axiológica
(ou teleológica).
35. 3. A importância da conjugação entre os métodos hermenêuticos
resulta da circunstância, também apontada por Larenz, de o texto só “falar” ao intérprete
quando considerado certo contexto, fático e normativo. Conquanto o objeto da
interpretação seja o texto, este "nada diz a quem não entenda já alguma coisa daquilo
que ele trata", assim expressando o grande jurista germânico que o texto só "fala" a quem
o interroga corretamente. É, pois, essencial, para formular corretamente a pergunta,
64
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução portuguesa de José Lamego,
Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 3ª edição,1997 , p. 451.
65 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.139.
66 MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Tradução francesa de Oliver Jouuanjan.
Paris, P.U.F, 1996, p. 240 em que afirma o valor democrático do texto como limite da concretização regular,
ressalvando apenas a possibilidade da existência de um erro (“d'une erreur de rédaction incontestée") que
tenha se introduzido no texto.
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"conhecer a linguagem da lei e o contexto de regulação em que a norma se encontra” 67,
por isso o contexto (histórico, lingüístico, lógico, sistemático e axiológico) sendo da
maior importância: um mesmo vocábulo pode ter significações diversas e convém preferir
a que se mostrar mais idônea, dada a sua relação com a conexão68. Por isso têm os autores
acentuado que os critérios hermenêuticos não constituem categorias entre si estanques,
mas “subsídios” a que recorre concorrentemente o intérprete, havendo entre eles, como
explicam Viola e Zaccaria a existência de uma “contaminação”69.
35.4. Já vimos que a hipótese de “erro do legislador” não é sequer
pensável no caso ora examinado. Em face do texto do art. 798 - considerada a sua história
legislativa, as suas declaradas origens italianas e o explícito propósito em acabar com a
prova diabólica e com presunções de difícil averiguação - de erro do legislador não se
pode cogitar.
36. Não há, igualmente, nenhuma contradição lógico-sistemática com
os demais artigos do Código Civil. A redação do Capítulo tem, como reiteradamente
assinalado, uma única e mesma proveniência, o Subsídio oferecido à Comissão
Elaboradora pelo Professor Fabio Konder Comparato, havendo total coerência entre o art.
798 e o que lhe antecede.
36.1. Na doutrina tradicional, o método lógico visa “estabelecer os
motivos que determinaram o preceito” 70. É a investigação da ratio, que “consiste em
apreender a causa justificadora do preceito”, ou, como diz Ferrara, aquela que “remonta
ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que a inspiraram”71, por isso
sendo conectada à investigação histórica. Autores mais modernos entendem que o
elemento lógico concentra a sua atenção na relação recíproca entre as partes do enunciado
67
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução portuguesa de José Lamego,
Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 3ª edição,1997, p. 441.
68 RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil- vol. I. Tradução de Ary dos Santos. São
Paulo: Saraiva, 1957, p. 155.
69VIOLA, Francesco, e ZACCARIA, Giuseppe.Diritto e Interpretazione. Lineamenti di teoria
ermeneutica del diritto. Roma: Laterza,1999, p.221.
70 RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil- vol. I. Tradução de Ary dos Santos. São
Paulo: Saraiva, 1957, p. 157.
71FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.140.
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normativo, o que conduz a sólidos vínculos entre a interpretação lógica e a sistemática
bem como entre a lógica e a gramatical e a lógica e a teleológica72.
36.2. Ora, contrariaria a lógica e ao sistema considerar lícito estipular-
se um prazo de carência “durante o qual o segurador não responde pela ocorrência do
sinistro” em qualquer seguro de vida para o caso de morte, como permite o art. 797 do
Código Civil e entender-se, no caso de morte por suicídio, estar a incidência desse prazo
de carência dependente da prova da intencionalidade do suicida. Haveria, na verdade,
uma dupla contradição lógica: em caso de morte por doença ou por acidente (morte
incontrolável e não-programável pelo agente/paciente) no período de carência, nada seria
devido ao beneficiário; em caso de morte por suicídio (em tese “programável” pelo
agente/paciente, podendo consistir em ato contra a comunidade segurada e à função social
do contrato) o beneficiário receberia bastando provar não ter sido a morte “deliberada”.
A hipótese menos geral (suicídio) seria mais ampla que a geral (qualquer outra causa de
morte)!
36.3. A ilogicidade é manifesta, seja ao atribuir-se o onus probandi à
seguradora, seja ao próprio beneficiário. Mas essa última é a interpretação expressa no
Enunciado nº 187 da III Jornada de Direito Civil (com a qual absolutamente não se pode
concordar) segundo a qual “[n]o contrato de seguro de vida, presume-se, de forma relativa
ser premeditado o suicídio cometido nos dois primeiros anos de vigência da cobertura,
ressalvado ao beneficiário o ônus de demonstrar a ocorrência do chamado "suicídio
involuntário"73. Tal qual a primeira exegese (defendida em alguns julgados do Colendo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul74), esta outra, para além de divorciada do texto
legal, infringe, ainda, o sistema – e não apenas o do Código Civil, mas, igualmente, o do
Código de Defesa do Consumidor.
36.4. Com efeito, ao se entender pela existência “implícita”, no art. 798,
de presunção relativa (iuris tantum) no sentido de que o suicídio dentro do prazo de dois
anos é premeditado, afastando o direito à garantia, atribuiu-se ao beneficiário “demonstrar
72
VIOLA, Francesco, e ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e Interpretazione. Lineamenti di teoria
ermeneutica del diritto. Roma: Laterza,1999, p. 227.
73 Conforme proposição de Guilherme Couto de Castro/ Guilherme Calmon Nogueira da Gama,
Juiz Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro/ Juiz Federal Convocado 5ª Turma - TRF/2ª Região. In:
http://www.consulex.com.br/news.asp?id=2523 (acessado em 14 de junho de 2008)
74 Confira-se, adiante, nota n. 98.
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que o suicídio não foi premeditado, fazendo jus ao recebimento do capital segurado”75.
Assim, ao beneficiário do seguro (parte vulnerável na relação de consumo) caberia se
desincumbir, no biênio, do ônus de provar que o segurado não premeditou o suicídio.
36.5. Essa interpretação não pode prevalecer porque prejudica o
contratante que a Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXII) e o Código de Defesa do
Consumidor (art. 6°, inc.VII) visaram favorecer.
37. Desde os monumentais estudos de Savigny, no século XIX, é
assente que um princípio jurídico (ou uma regra) não existe isoladamente, mas está ligado
por nexo íntimo com outros princípios e regras, havendo entre as leis conexões inter e
intra-sistemáticas76. Não se interpreta o Direito “em tiras”, diz Eros Grau77, assim
expressando que o direito objetivo não é um aglomerado de disposições, mas um
“organismo”, um sistema de preceitos coordenados.78 Há portanto conexões (por relações
de geral a particular, deduções ou corolários), das quais “cada norma particular recebe a
sua luz79.
37.1. Consideradas as conexões entre as regras do próprio Código Civil
(arts. 797 e 798) e entre este último e o Código de Defesa do Consumidor, anti-sistemática
seria a interpretação pela qual se atribuísse: (i) a possibilidade de ter-se um prazo de
carência fixado contratualmente para quaisquer seguros por morte (art. 797) e a limitação
do prazo de carência fixado legalmente para o caso de morte por suicídio (art. 798),
limitação essa derivada da existência de uma presunção pela qual esse prazo poderia ser
afastado; (ii) a possibilidade de uma presunção vindo em desfavor do próprio beneficiário
do seguro.
38. Superados esses pontos resta examinar o art. 798 à luz do critério
axiológico, para saber se a interpretação que ali percebe um critério puramente objetivo
(o transcurso de dois anos), afastando a sindicância sobre a
75GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 26ª ed. (atualizada por Antônio
Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino) p. 513.
76 Permito-me aludir ao meu: Culturalismo e Experiência no Novo Código Civil. Revista do
Tribunal Regional Federal 1. Região, v. 6, p. 21-34, 2006.
77 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo:
Malheiros, 2002, XVIII.
78 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.143.
79 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.143.
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voluntariedade/involuntariedade do ato suicida, é ou não compatível com os princípios
valorativos expressos no Código Civil e na Constituição da República.
38.1. Já observamos que o art. 798 é plenamente compatível com a
diretriz da operabilidade. E também o é com as diretrizes da eticidade (expressa no
princípio da boa-fé, Código Civil, art. 422) e da socialidade (expressa no princípio da
função social do contrato, Código Civil, art. 421).
39. A expressão “boa-fé”, embora semanticamente vaga, não expressa
“qualquer coisa”, não lhe podendo, por isso, ser imputado qualquer conteúdo ao alvedrio
isolado do intérprete. Em sua raiz romana, fides, está a fé como reitora das condutas
comunicativas na ordem social, de modo a suscitar a confiança (cum fides). Na sua origem
está, portanto, uma relação de recíproca fidúcia e está (na relação de crédito) aquele que
acredita (creditor) em algo que possa ser objeto de crença fundada, pois do seu
qualificativo bona vem a noção de uma fé justa ou virtuosa80.
39.1. Dessas raízes resulta a expressão boa-fé objetiva81 que exprime o
standard de lisura, correção, probidade, lealdade, honestidade – enfim, o civiliter agere
que deve pautar as relações inter-subjetivas regradas pelo Direito sob pena de o próprio
80
Assim escrevi em MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do
Inadimplemento das Obrigações. Vol. V, Tomo II, 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p.73 et seq.
81 Permito-me lembrar, entre outros: COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro
e português. In: Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: [s.n.], 1986. p. 55 et seq.;
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-
fé e justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994; AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O princípio da boa-fé
nos contratos. Revista do CEJ, Brasília, vol. 9, 1999, disponível em
http://www.cjf.gov.br/Publicacoes/Publicacoes.asp; NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma
interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; MOREIRA ALVES,
José Carlos. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Revista Roma e América: Diritto Romano
Comunne, Roma, vol. 7, p. 187-204, 1999, p. 192; REALE, Miguel. Um artigo-chave do Código Civil. In:
Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, pp. 75-80; SAMPAIO,
Laerte Marrone de Castro. A Boa-Fé Objetiva na Relação Contratual. Manole – Escola Paulista da
Magistratura, 2004; e os nossos: MARTINS-COSTA, Judith. Princípio da Boa-Fé. Revista AJURIS, Porto
Alegre, vol. 50, p. 207-227, 1990; A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões
em torno de uma notícia jornalística. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 4, p. 140-172,
1992; A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; O Direito Privado como um
sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista dos Tribunais,
São Paulo, vol. 753, p. 24-48, julho 1988 (também em Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 139,
p. 5-22, 1998); A Boa-Fé como Modelo: uma aplicação da Teoria dos Modelos de Miguel Reale. (In:
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil
Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 187-226); Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a
boa-fé nas relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito
Privado: reflexos dos princípios, garantias e direitos constitucionais fundamentais no Direito Privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 611-661; Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três
perspectivas do Direito privado brasileiro, publicado in Revista do Consumidor, Universidade de Coimbra,
nº6, Coimbra/ Portugal, 2005, pp 85 – 128 e em Revista Forense vol. 382, Rio de Janeiro, 2005, pp.120-
143; Os avatares do Abuso do direito e o rumo indicado pela Boa-Fé, in Novo Código Civil – Questões
Controvertidas. In: NICOLAU, Mário Júnior (org.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 193-232.
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Ordenamento não ser funcional, pois sem um mínimo de lealdade entre os participantes
do tráfego jurídico, permitindo confiar na palavra dada e nas “regras do jogo”
predispostas impossível se torna a gestão do risco e a previsibilidade das ações futuras.
39.2. Justamente por conta desses significados e destas funções, a boa-
fé objetiva, quando apreendida em um princípio jurídico (como está no Código Civil e no
Código de Defesa do Consumidor) tem por função estabelecer um padrão
comportamental. Esse padrão é o da conduta proba, correta, leal, que considera os
legítimos interesses do alter, tendo em vista a natureza, a ambiência e a função da relação,
pois visa, imediatamente, a lograr o correto processamento da relação e, mediatamente,
assegurar a confiança no tráfego negocial. Na relação obrigacional, portanto, considerado
o mandamento de “agir segundo a boa-fé”, as partes se devem mutuamente lealdade e
probidade (como correção de condutas) no trato dos interesses envolvidos naquela relação
a fim de que esta chegue ao adimplemento satisfativo.
39.3. Do vetor “correção” ou “probidade” nascem os deveres de
cooperação mútua; do vetor “lealdade” e “consideração aos interesses alheios” nascem as
especiais cautelas de proteção para que, da relação jurídica em que estão co-envolvidos,
não resultem danos injustos à pessoa e ao patrimônio da contraparte. Estes significados
são indiscutíveis em face da tendência contemporânea em matéria de Teoria dos
Contratos (revelada em várias legislações) de realizar uma revisão crítica dos paradigmas
contratuais “clássicos” e de introduzir, nas relações entre empresas e Mercado (incluindo
os consumidores) padrões de lealdade ou fairness. Assim registra ALBERTO MONTI ao
perceber o direcionamento das regras concernentes à boa-fé ao asseguramento da
transparência e das expectativas razoáveis dos contraentes82. E assim está, igualmente, no
Código de Defesa do Consumidor em cujo texto se revela a boa-fé como padrão de
conduta dirigido a ambos os contraentes (art. 4°, inc. III), assegurando a “transparência”
que permitirá reduzir a assimetria informativa e como regra de limite às condutas
contratuais abusivas (art. 51, inciso IV).
39.4. Em exaustivo trabalho de Direito Comparado, em que compara os
sistemas norte-americano, inglês, italiano, francês, indiano e chinês, conclui Alberto
Monti que a operacionalidade da boa-fé no contrato de seguro persegue dois objetivos
principais: a redução do “tecnicismo exasperado que prejudica a plena
compreensibilidade da linguagem” e a “eliminação de qualquer efeito surpresa derivado
82
MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 20 et seqs.
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da modalidade de apresentação da garantia securitária oferta a fim de proceder a um
tendencial realinhamento entre os termos reais da apólice e as expectativas contratuais
suscitadas no segurado”83.
39.5. Essa é, com efeito, a tendência mundial, apresentada tanto nos
países super-desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento e também entre nós
verificada, em que a lei acolhe a boa-fé em sua feição objetiva. Especificamente no que
toca ao suicídio do segurado, a adstrição à boa-fé (como regra de compreensibilidade na
comunicação com o contratante vulnerável) está em que o Código substitui critérios
subjetivistas, de difícil averiguação e comprovação, por critério objetivo que implementa
a segurança de ambas as partes contratantes, eis que cientes, pela mera leitura do texto
legal, com razoável dose de certeza, do que esperar da relação de seguro em que
envolvidas.
39.6. Ora, não se pode imaginar hipótese de afronta à boa-fé ou de
violação à legítima expectativa do segurado derivada da incidência do art. 798 e de sua
interpretação como regra fundada exclusivamente em critérios objetivos.
39.6.1. Não há “tecnicismo exasperado” nem linguagem abstrusa
(“suicídio voluntário”), prejudicando a plena compreensão do segurado. O prazo
carencial é derivado de lei geral (Código Civil) e não de imposição unilateral e abusiva
do fornecedor (seguradora). Não há, também, “efeito surpresa”, em prejuízo do
beneficiário do seguro, pois tanto o segurado, ao contratar, quanto o beneficiário, sabem
de antemão que este último só terá direito capital estipulado passados dois anos da
contratação (vigência inicial) ou recondução (depois de suspenso), pois ninguém se
escusa de não conhecer a lei.
39.6.2. Se o contrato contém idêntica regra, ou a remissão à lei, com o
devido destaque, como exigido pela tutela do contratante vulnerável (Código Civil, art.
424; Código de Defesa do Consumidor, art. 51, inc. I), onde estaria a deslealdade, a
surpresa desleal? Em que se embasaria a “justeza da expectativa” a receber o capital antes
de transcurso o biênio? Onde haveria abusividade contra o segurado, se a regra é
estabelecida com clareza por lei democraticamente votada pelo Congresso Nacional, e
83
MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 265, em tradução livre.
No original: “(...) la riduzione dei tecnicismi esasperati che pregiudicano la piena comprensibilità del
linguaggio e la eliminazione di ogni effeto sorpresa derivante dalle modalità di presentazione della garanzia
offerta, al fine di procedere ad umtendenziale riallineamento tra reali termini di polizza e apettative
contrattuali inerate nell’assicurato.”
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não imposta unilateralmente pela contratante seguradora?
40. Do mesmo modo, não vejo afronta – antes, percebo congruência –
com o princípio da função social do contrato. A existência de um critério objetivo,
exclusivamente temporal, que afasta discussões tormentosas, atende à utilidade social e
ao próprio caráter transindividual do seguro, permitindo a melhor realização do chamado
“surplus cooperativo”. A seguradora é gestora de um “fundo” de interesse comum.
Sempre que esse “fundo” é atacado, a massa de segurados é prejudicada. Custos judiciais
oneram o “fundo” distorcendo a equação em que se ampara a técnica do mutualismo e,
assim, desequilibram as receitas e despesas de um plano de seguro. Não há como imaginar
que essa regra (que protege o interesse transindividual em causa) 84 viole os interesses
institucionais que, segundo Calixto Salomão Filho são, justamente os interesses
protegidos princípio da função social do contrato.
41. O critério temporal objetivo posto no art. 798 também é congruente
com valores situados constitucionalmente, de modo implícito ou explícito. Assim,
nomeadamente, os princípios da segurança jurídica e da proteção à privacidade, este
também de índole infra-constitucional.
41.1. O princípio da segurança jurídica é atendido quando a lei, clara,
genérica e impessoal, estabelece critérios facilmente compreensíveis e observáveis pelos
seus destinatários; quando reduza litigiosidade baseada em contorções do vernáculo ou
nas dissensões entre os vários campos de vida meta-jurídicos envolvidos no problema que
se está a regular, como ocorre justamente com o suicídio - grave pecado para um cristão,
gesto nobre e virtuoso para um hinduísta; e quando, por sua formulação clara, geral e
impessoal, reduz a incerteza e a possibilidade de o beneficiário do seguro deparar-se com
“cláusulas surpresa”, pois de antemão é fixado um critério objetivo, para cuja averiguação
basta a prova do decurso do tempo.
42.2. A proteção da intimidade, como Direito Fundamental (CF, art. 5,
inc. X) e bem jurídico integrante da personalidade (CC, art. 21) também será melhor
observada com o critério objetivo. A sindicância sobre o discernimento (ou ausência de
discernimento) do suicida e as dolorosas pesquisas sobre os motivos que o levaram a
tolher a sua própria existência deixam de ser necessárias. Ao intérprete cabe apenas
constatar se o biênio transcorreu, ou não. Não mais carecerão os advogados das partes
84
SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações. In Revista dos
Tribunais, vol. 823, São Paulo, 2004, p.p. 71-73.
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digladiarem-se em busca da penosa comprovação da causa do ato extremo: mera
debilidade psíquica? Um temperamento influenciável pelas alterações dos estados de
ânimo? Um coração partido insuportavelmente pela dor de amor? A iminência de uma
revelação desonrosa? Um estado de pânico? Uma total alienação mental?
42.3. Uma interpretação polarizada pelos vetores constitucionais
fundamentais se inclinará, em caso de dúvida, à interpretação que melhor concretize a
fundamentalidade constitucional dos Direitos de Personalidade, objeto, ao mesmo tempo,
da proteção da Constituição e do Código Civil. A proteção a esses direitos não se encerra
com a morte, como decidiram o Tribunal Supremo (BGH) e a Corte Constitucional da
Alemanha no célebre “caso Mephisto”, ainda em meados do séc. XX, ao assentar:
“Resultaría inconciliable con el precepto constitucional de la inviolabilidad de la dignidad
humana que preside todo Derecho Fundamental, que el hombre, al que corresponde dicha
dignidad por ser persona, pudiera quedar desposeído de ella o vejado en su consideración
después de la muerte”85.
42.4. Não parece haver dúvidas que a investigação sobre as condições
mentais do suicida; a pesquisa invasiva de sua privacidade ou a exposição de suas mais
íntimas dores – tudo para demonstrar se houve ou não “voluntariedade” e
“premeditação”- pode, efetivamente, levar ao vexame na consideração que, todavia, lhe
é devida mesmo post mortem. Assim, se dúvida houvesse sobre o teor do art. 798 do
Código Civil – e não as há, dada a clareza do texto, graças ao expresso expurgo do critério
subjetivo - melhor andaria o intérprete que adotasse o caminho ditado pelos vetores
constitucionais.
43. Nessa linha anda também parcela da doutrina brasileira que
escreveu após a vigência do Código de 2002 ainda que não motive a interpretação do art.
798 pelo viés da proteção aos Direitos Fundamentais. Colha-se, exemplificativamente, a
abalizada opinião de Tzirulnik, Cavalcanti e Pimentel: "Este artigo [n: o art. 798]
pretendeu encerrar a discussão acerca da cobertura, ou não, de suicídio no seguro de
pessoas. (...). Ao que tudo indica, o legislador pretendeu pôr fim ao debate, estabelecendo
o critério da carência de dois anos para a garantia de suicídio. O critério é objetivo: se o
85
BGH 250, 133; Tribunal Constitucional, 30, 194, s. Conforme comentário e transcrição de
HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Tradução de Pablo S. Coderch.
Ariel, Barcelona, 1987, p. 26, grifei. Na doutrina brasileira v. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos
Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Instituto
Brasileiro de Direito Constitucional – Celso Bastos Editos, 1998, p. 87-90.
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suicídio ocorrer nos primeiros dois anos, não terá cobertura; se sobrevier após este
período, nem mesmo por expressa exclusão contratual, poderá a seguradora eximir-se do
pagamento. Não se discute mais se houve ou não premeditação, se foi ou não
voluntário”86.
44. Com igual precisão, e atentos aos elementos genéticos da regra
codificada, anotam Fiúza e Figueiredo Alves: "Agora, porém, a lei veio a estabelecer um
limite temporal, como condição para pagamento do capital segurado, ao afirmar,
categoricamente, que somente após dois anos da vigência inicial do contrato é que o
beneficiário poderá reclamar o seguro devido em razão de suicídio do segurado. A rigor,
é irrelevante, doravante, tenha sido, ou não, o suicídio premeditado, pois a única restrição
trazida pelo NCC é de ordem temporal. A norma, ao introduzir lapso temporal no efeito
da cobertura securitária em caso de suicídio do segurado, recepciona a doutrina italiana,
onde o prazo de carência especial é referido como spatio deliberandi. Esse prazo de
inseguração protege o caráter aleatório do contrato, diante de eventual propósito de o
segurado suicidar-se” 87.
45. Registrando as posições divergentes, também Venosa observa: "O
atual Código procura solucionar de forma mais prática e objetiva a questão, estatuindo
que o suicídio não gerará indenização, se ocorrido nos primeiros dois anos de vigência
inicial do contrato, ou de sua recondução depois de suspenso, permitida esta pelo
ordenamento (art. 798). Sob tal prisma, afastar-se-á a discussão acerca da premeditação.
Com esse período de dois anos, afasta-se a possibilidade de eventual fraude de quem faz
seguro de vida com a intenção precípua de suicidar-se. Esse mesmo art. 798 é expresso
no parágrafo único, estatuindo que "ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado"88.
46. Por igual exprime Paulo Nader: "O Código Civil estipula um
conjunto de critérios a ser considerado na hipótese de suicídio do segurado. O legislador
buscou o fiel da balança, a fim de promover a justiça do caso concreto, dando a César o
que é de César. Partiu do pressuposto de que o suicídio, quase sempre, é ato de
86
TZIRULNIK, Ernesto, CAVALCANTI, Flávio Queirós e PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de
Seguro. Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo, IBDS, 2002, p. p.212-213, grifei.
87 FIUZA, Ricardo e FIGUEIREDO ALVES, Jones. Novo Código Civil comentado. São Paulo:
Saraiva, 2006. 5ª ed. p. 654
88 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos em espécie. São Paulo: Atlas, vol. III, 2004.
4ª ed. p. 408, grifei.
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desequilíbrio, algumas vezes circunstancial e na maioria dos casos não comporta uma
espera superior a dois anos. O legislador não quis facilitar o pagamento da indenização,
a fim de não incentivar o ato tresloucado, nem pretendeu impedir a contraprestação em
situações justas, que não oferecem indicativos de má-fé. Em caso de suicídio do segurado,
para que o beneficiário faça jus ao pagamento, é preciso que tenha havido, entre a
formação do contrato e o evento, uma carência mínima de dois anos ou, igual prazo, após
o fim da suspensão do contrato. Não preenchida uma destas exigências, a sociedade
seguradora haverá de pagar ao beneficiário o valor correspondente ao da reserva técnica
formada. É a dicção do art. 798” 89.
47. Com base em cuidadosa pesquisa de Direito Comparado, leciona
Kriger Filho: "Entre nós também não passou desapercebido da atenção do legislador [o
tema do suicídio], tanto que o artigo em comento expressamente exclui o direito à
cobertura securitária se o mesmo ocorrer dentro do lapso de dois anos da vigência inicial
do contrato ou da sua recondução, se seus efeitos restarem suspensos. Este tempo de
"carência", pelo qual se outorga ao segurador legitimidade para negar o pagamento da
indenização em caso de suicídio do segurado, é conhecido como "regra da
indisputabilidade" ou spatio deliberandi dos italianos, pertencendo inclusive à
sistemática legal de vários países, a exemplo da Alemanha, em que é de dez anos, da
Argentina, três anos, da França, dois anos e de Portugal, um ano”90.
89 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, vol. 3, 3ª ed., 2008,
P. 385.
90 KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Seguro no Código Civil. Florianópolis: OAB/SC, 2005, pp.
246-244-245.
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48. É bem verdade haver interpretações divergentes na doutrina91 e,
bem mais raramente, na jurisprudência92. Porém, não se afiguram como as mais
adequadas em face da letra expressa do Código, da expressa motivação do legislador
(revelada nas Notas Explicativas de Comparato, da incolumidade da regra por todo o
período da tramitação legislativa do Projeto) bem como em face dos vetores
constitucionais antes referidos.
48.1. Com todo o respeito aos seus ilustrados autores, parecem-me, na
realidade, conclusões ilógicas, efetivamente contraditórias e anacrônicas. Isto porque não
haveria razão para adotar-se um critério temporal objetivo para, em seguida, desmanchá-
lo com a criação de presunções não previstas e justificáveis tão somente se tivesse sido
considerado pela lei o critério subjetivo, como ocorria na vigência do Código de 1916.
48.2. Nesse particular – volto a insistir – são de valia a doutrina italiana,
que enfrentou a questão há sessenta anos, respondendo com firmeza e coerência ao fato
de o novo texto expurgar o critério ligado ao sujeito (premeditação, ou não), substituindo-
o pelo critério objetivo bem como a história da tramitação legislativa, a evidenciar a
91 A doutrina que sustenta a persistência do critério do Código de 1916 parece hesitar. Confira-se,
exemplificativamente em Rizzardo, que, embora registrando a “notável mudança quanto ao sistema do
Código de 1916” e afirmando a “pela presente ordem a única limitação é temporal devendo, para ensejar o
direito, que não ocorra depois do prazo de carência de dois anos. No mais, é indiferente tenha ou não
ocorrido a premeditação, ou a voluntariedade do ato", em outra passagem admite a sindicância sobre a
“alterações da vontade”do suicida (RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 6ª ed.
p. 874). Outros autores (como TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; e MORAES, Maria
Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme a Constituição da Républica. Rio de Janeiro: Renovar,
vol. II, 2006, p. 608), reconhecendo a mudança, utilizam o tempo verbal condicional para expressar:
“Discute-se se o dispositivo em questão prevê, na verdade, apenas uma inversão do ônus da prova. Assim,
nos primeiros dois anos, incumbiria ao beneficiário comprovar a não premeditação do suicídio pelo
segurado. Se o beneficiário lograsse comprovar a não premeditação, a seguradora não poderia se eximir da
sua obrigação, ainda que o suicídio ocorra nos primeiros dois anos de vigência do contrato." Do mesmo
modo os atualizadores da obra de Orlando Gomes, Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de
Crescenzo Marino, que aludem: “Há duas interpretações possíveis desta regra. De acordo com a primeira,
trata-se de espécie de prazo de carência para a cobertura nos casos de suicídio. A estipulação de prazo de
carência será lícita, à luz do art. 797 do Código Civil. Consoante outra interpretação, o dispositivo instituiria
presunção relativa (iuris tantum) no sentido de que o suicídio dentro do prazo de dois anos é premeditado,
afastando o direito à garantia. Nesse caso, seria possível ao beneficiário demonstrar que o suicídio não foi
premeditado, fazendo jus ao recebimento do capital segurado. Esse é o teor do Enunciado nº 187 da III
Jornada de Direito Civil." (GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 26ª ed., 2008, p. 513).
Já para Cavalieri “A norma é surpreendente e nada feliz, porque estabeleceu uma espécie de suicídio com
prazo de carência, inovando em uma matéria que já estava muito bem equacionada pela doutrina e pela
jurisprudência.”( CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro:
Malheiros, 2004. 5ª ed ,p. 443).
92 TJRS Apelação Cível nº 70022770879, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Paulo Sérgio Scarparo, Julgado em 12/03/2008. Idem: Apelação Cível nº 70017404088, Sexta Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ubirajara Mach de Oliveira, Julgado em 13/12/2007 e Apelação
Cível nº 70020123949, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari
Sudbrack, Julgado em 21/11/2007, todas do mesmo Tribunal.
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reiterada vontade democrática. Ademais, é de se perguntar: porque razão teria o Código
de 2002 mudado radicalmente a regra se fosse para a interpretação continuar a mesma
atribuída ao art. 1.440 do Código revogado? Não se estaria então a repetir o célebre – e
cínico - dito de Trancredi a Don Fabrizio Corbera, Príncipe di Casa Salina, de que “tudo
deve mudar para continuar no mesmo?” 93.
49. Também – como acabamos de anotar - não se afiguram adequadas
por uma interpretação literal, lógico-sistemática e axiológica, à luz dos princípios da
Constituição e do Código Civil.
50. Por fim, não configuram hipóteses de permissão para a livre criação
judicial do sentido do texto.
50.1. Tem a doutrina acentuado, ao longo do séc. XX o abandono do
estreito positivismo legalista que tinha a letra da lei como intocável fetiche. Isto não
obstante, há consenso acerca da existência de espaços e limites para a atividade do
intérprete.
51. Os estudiosos do “Direito dos Juízes” (Richterrech), ao afirmar a
criatividade judicial como “insuprimível e irrefutável94” acentuam, concomitantemente,
o seu espaço, qual seja, o espaço legislativo lacunoso ou aquele que, por mudança
ponderável na realidade fática somada à inércia do legislador, transformou o sentido
originalmente conferido à disposição legal. É este o âmbito do Direito jurisprudencial
que, nessa medida, “vive accanto, o complementarmente, al diritto legale,
determinandolo, arrichendolo o consolidandolo”95 e assim promovendo a permanente
adaptação da lei aos fatos. Há, ademais, técnicas para tanto, seja a interpretação ab-
rogante, seja a analógica, seja a extensiva, não se devendo esquecer que a legitimidade
democrática repele o voluntarismo. É o que lembra Müller ao versar o “estatuto de
93
A famosa frase é: "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi!. (v.
LAMPEDUSA, Giuseppe Tommaso di. Il Gattopardo. 90ª ed. Roma: Feltrinelli, 2008.)
94 ORRU, Giovanni. Richterrech. Il Problema della Libertà e Autorità Gudiziale nella dotrina
tedesca comtemporânea. Milão, Giuffrè, 1988, p. 139. Em tradução livre: “Vive ao lado, ou
complementarmente, ao direito legal, determinando-o, enriquecendo-o ou consolidando-o”. Em similar
sentido REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 29-30.
95 ORRU, Giovanni. Richterrech. Il Problema della Libertà e Autorità Gudiziale nella dotrina
tedesca comtemporânea. Milão, Giuffrè, 1988, p. 139.
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prioridade dos dados lingüísticos” típico dos sistemas de direito escrito96 e ao enfatizar
que a concretização jurídica não é a mera “reelaboração” (Nachvollzug) de valorações
legislativas, mas integra um processo mais complexo, do qual a interpretação é “apenas
um elemento entre outros”97.
52. Como bem esclarece Teresa Arruda Alvim Wambier, “(...) o juiz
“cria” direito no sentido de poder engendrar soluções para casos que não sejam rotineiros,
que não estejam “prontas” no sistema (para que a situação fática se encaixe
automaticamente nelas). Mas essas soluções, sob pena de se deixar definitivamente de
lado o valor segurança, devem ser “criadas” a partir de elementos constantes no sistema
jurídico, somados, combinados, engrenados, etc., e não com base em elementos que o
sistema não tenha encampado”98.
53. Não há dúvidas que o sistema não “encampou”, na matéria, o
critério subjetivo que animara o Código de 1916, sendo claro o expurgo do elemento
“discernimento”, afastado que esteve durante toda a tramitação do Anteprojeto, do
Projeto e, finalmente, do Código Civil de 2002. Não podem, portanto, persistir as
interpretações que o tomam em consideração, sob pena de ensejar o arbítrio, o
voluntarismo, contrário ao jogo democrático e aos valores contidos no Estado e Direito,
não se justificando emprestar ao art. 798 o que ele efetivamente não contém99.
96
MULLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Trad. fran. de Olivier Jouanjan. Paris.
PUF, 1993, p.383.
97 MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. São Paulo, Max Limonad,
2ª ed. revista, 2000, pp. 66-67.
98 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das Decisões Judiciais por Meio de Recursos de
Estrito Direito e da Ação Rescisória. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 394.
99 Assim o faz a jurisprudência que “lê” no texto legal a exigência da prova da premeditação.
Exemplificativamente a Ap. Civ. Cível nº 70023566433, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 21/05/2008, com a seguinte ementa: “APELAÇÃO
CÍVEL. SEGUROS. AÇÃO DE COBRANÇA. COBERTURA DO RISCO DE MORTE. SUICÍDIO NÃO
PREMEDITADO.ÔNUS DA PROVA. NEGATIVA POR PARTE DA SEGURADORA. INDENIZAÇÃO
DEVIDA. 1. O objeto principal do seguro é a cobertura do risco contratado, ou seja, o evento futuro e
incerto que poderá gerar o dever de indenizar por parte do segurador. Outro elemento essencial desta espécie
contratual é a boa-fé, caracterizada pela sinceridade e lealdade nas informações prestadas pelo segurado ao
garantidor do risco pactuado, cuja contraprestação daquele é o pagamento do seguro. 2. Consoante
entendimento jurisprudencial assentado nesse Colegiado e no STJ, haverá pagamento do seguro se o
segurado vier a falecer em razão de suicídio não premeditado, mesmo que dentro do interregno de tempo
assinalado pelo art. 798 do Código Civil. 3. A seguradora não logrou êxito em comprovar a premeditação,
ônus que lhe incumbia e do qual não se desincumbiu, a teor do que estabelece o art. 333, II do CPC,
mostrando-se devida a indenização securitária. Por maioria, negado provimento ao recurso, vencido o
Revisor”. (grifei).
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54. O critério temporal objetivo que dispensa a investigação sobre a
voluntariedade ou não do suicídio é também acolhido pelas mais recentes legislações. A
titulo de exemplo veja-se o que diz novíssima Lei Geral dos Seguros, de Portugal bem
como a lei a argentina, e a francesa, e, inclusive, o Substitutivo do Projeto de Lei n°
3555/2004, em tramitação no Congresso Nacional.
54.1. Na legislação portuguesa, o Decreto Lei n.72 de 16 de abril de
2008 estabelece em seu artigo 191 que está excluída a cobertura da morte em caso de
suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato, salvo convenção em contrário.
Na legislação argentina também predomina o critério objetivo, visto que a Lei de Seguros
n.º17.418 de 1967, em seu art. 135, dispensa a investigação da voluntariedade do suicídio
depois de três anos de decurso do contrato100. Na França outro não é o critério senão o
temporal, conforme dispõe o art. L132-7 do Code des Assurances: “O seguro em caso de
morte deve cobrir o risco de suicídio a contar do décimo ano do contrato”101.
55. Posso, assim, com base nesses fundamentos, anunciar as minhas
conclusões, o que o faço ao modo sintético, acompanhando o questionamento proposto
pelos Consulentes.
III. Das Conclusões sintéticas
a) A evolução legislativa do CC, tanto omissiva como comissivamente,
no que se refere ao pré-falado artigo 798 do CC, admite a conclusão de presunção
absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
R:A evolução legislativa, evidenciada pela pesquisa genética e
histórica, demonstra ter ocorrido, na matéria, alteração radical passando-se de um critério
baseado na sindicância da premeditação ou não do suicídio, e de presunções de
premeditação, para um critério puramente objetivo, de ordem temporal, exclusivamente,
de modo a afastar a pesquisa sobre o estado mental, as intenções, o dolo ou qualquer outro
aspecto concernente à subjetividade do suicida (conforme itens 21 a 50, supra);
100 In verbis o art. 135: “El suicidio voluntario de la persona cuya vida se asegura, libera al
asegurador, salvo que el contrato haya estado en vigor ininterrumpidamente por tres años.”
101 No original o art. L132-7: “L'assurance en cas de décès doit couvrir le risque de suicide à compter
de la deuxième année du contrat.”
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b) A recepção do Substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio Konder
Comparato, municiado da sua indiscutível exposição de motivos, e consagrada,
positivamente, na derradeira exposição de motivos do CC, da lavra do Eminente Mestre
Miguel Reale, admite, no que se refere ao artigo 798 do CC, a conclusão de presunção
absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
R. Como acima registrado, não há que se falar em presunção. O critério
é objetivo, e nada se presume: se ocorrida no biênio pós conclusão do contrato, a morte,
por suicídio, não gera ao segurado o direito ao recebimento do capital; se ocorrida após
esse período, a seguradora deve pagar, qualquer que seja a causa do suicídio (conforme
item 43 supra);
Além do mais, se presunção houvesse (como quer o Enunciado n. 187
da III Jornada sobre o Código Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal) essa
seria uma presunção violadora do sistema, pois estaria posta contra a parte vulnerável
(beneficiário) do contrato (vide item 36.3 supra).
c) A não-recepção do Esboço ou Anteprojeto do CC de 1965, no que se
refere ao artigo 798 do CC, prejudica a aceitação, para fins de norte da doutrina do
Eminente Mestre Caio Mario da Silva Pereira?
R. Sim. O Anteprojeto elaborado pelo Eminente Caio Mário não foi
objeto da deliberação e aprovação pelo Congresso Nacional e, no particular, sequer
influenciou, minimamente que seja, o teor do vigente art. 798 na medida em, na redação
proposta pelo ilustre Professor, mantinha o critério subjetivista, sequer o mesclando com
o critério objetivista. Como fica claro nas Notas Explicativas do Professor Fábio Konder
Comparato, as soluções propostas tanto no Anteprojeto de Caio Mário quanto no de
Miguel Reale, não foram consideradas as melhores. Com a humildade intelectual que é
própria dos grandes juristas, o Professor Miguel Reale reconheceu a superioridade da
proposição de Comparato e a acolheu, apoiando a substituição que, efetivamente, veio a
ser concretizada, sem ter sofrido a menor alteração pelos longos anos em que o Projeto
tramitou no Congresso Nacional. Assim, afirmou-se e reafirmou-se, sem sombra de
dúvidas, a vontade democrática de ver adotado unicamente o critério objetivista (ver itens
30 a 33, acima).
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d) As súmulas 105 do STF (que inclusive despreza a carência,
reconhecida nos artigos 797 e 798 do CC) e 61 do STJ, amplamente conhecidas na
gestação do CC, permanecem efetivas no que se refere ao “fenômeno” do suicídio,
doravante e durante o hiato do artigo 798 do CC?
R. Não. Essas Súmulas, fundadas em Código revogado e em
disposições e presunções que não mais se sustentam em vista da legislação vigente,
perderam a sua razão de ser. (ver item 15, acima)
e) O artigo 798 do CC, cuidando do suicídio, sem qualquer
indexação, melhor, adjetivação (“voluntário ou involuntário”), em comparação com o
Código Beviláqua e com o Anteprojeto de 1965, admite a conclusão de presunção
absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
R. Prejudicada. Como já registrado acima, não há mais que cogitar de
presunções. O critério é exclusivamente o temporal, pois se seguiu, expressamente, o
modelo do Código Civil italiano (ver itens 41 a 43, acima).
f) A consolidação do CC, em especial do artigo 798 do CC, como
“produto” do poder Executivo e “verdade” do Poder Legislativo, permite a rediscussão
da mens legis (não se falando da discricionariedade propiciada pelas cláusulas abertas),
em vertente hermenêutica, pelo Poder Judiciário?
R. Não. Por mais que a doutrina contemporânea valorize o espaço do
“Richterrech” ou “Direito dos Juízes”, afastando-se de um estreito positivismo legalista,
tal não significa que o espaço da decisão judicial possa recair no voluntarismo. Ao
intérprete é dado afastar o texto legal nos casos permitidos pelo sistema (vide item 50,
supra).
Realizada a exaustiva análise dos métodos hermenêuticos (genético-
histórico; literal; lógico-sistemático e axiológico) constatou-se que todos convergem no
sentido de afastar a interpretação ab-rogante proposta por alguns autores e exposta em
alguns julgados, tendo-se por ab-rogante a interpretação que nega valor a uma disposição
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de lei, o que só é admissível quando se verifica a sua absoluta contraditoriedade e
incompatibilidade com outra norma, supra-ordenada e principal.
Também não se justifica a interpretação restritiva, assim considerada a
que constata que a fórmula textual exprime menos do que o pensamento legislativo quis
(minus scripsit quam voluit) porque a restrição só tem lugar quando o texto, entendido
de modo geral, como está redigido, viria a contradizer outro texto ou se contivesse uma
contradição interna ou se ultrapassasse o fim para a qual foi ordenada , hipóteses que se
não verificam (ver itens 41 a 51, supra).
g) A ruptura legislativa do CC de 2002, lançando idéia inédita na
discussão quanto ao suicídio (artigo 798 do CC), admite a manutenção/utilização do
mesmo universo/desfecho jurisprudencial de outrora, antes do seu nascimento?
R. Não. A interpretação é a ponte que une o texto normativo à realidade,
produzindo a norma jurídica. Se alterados os dados do texto normativo – e radicalmente
alterados, pela substituição dos critérios da norma, como na espécie – não se pode, pena
de inconcebível anacronismo, sustentar e privilegiar interpretação congruente com a
realidade normativa já extinta (conforme itens 19 a 28, supra).
h) A destinação da chamada “prova diabólica”, foi, no artigo 798 do
CC, o banimento ou o seu endereçamento ao beneficiário?
R. O destino da “prova diabólica” foi o banimento. Foi esse o expresso
intento a motivar a proposição resultante no texto aprovado (sem ressalvas) do art. 798
do Código Civil. Em face do expresso texto legal não mais se justifica a argumentação
que, para um lado (beneficiário) ou para o outro (seguradora) preserve as discussões
probatórias e/ou sindicâncias acerca da motivação do suicídio no puerpério bienal do
artigo 798 do CC. Esgotado esse prazo, há o dever da seguradora garantir o capital (itens
19 a 28, supra).
i) O entendimento de presunção relativa de suicídio premeditado, a
partir e com vistas ao puerpério estabelecido no artigo 798 do CC, atenderia aos “fins”
da lei, considerando a perpetuação do tormentoso ônus da carga dinâmica das provas?
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 270
R. Não. Entender-se como proposto pelo Enunciado nº 187 da III
Jornada de Direito Civil acarretaria violação aos fins da lei (Código Civil), que pretendeu
pacificar as discussões e onerar o beneficiário/consumidor com a prova diabólica que foi
tout court banida (assim violando também os fins de proteção do Código de Defesa do
Consumidor). Ao contrário desse entendimento penso estar atendidos os fins de segurança
jurídica e proteção ao beneficiário quando a lei, clara, genérica e impessoal, estabelece
critérios facilmente compreensíveis e observáveis pelos seus destinatários, evitando-se a
possibilidade de “cláusulas surpresa” em detrimento do segurado bem como a
litigiosidade baseada em contorções do vernáculo ou nas inevitáveis dissensões entre a
compreensão dada ao suicídio pelos vários campos de vida meta-jurídicos envolvidos no
problema; se está a proteger bens da personalidade do suicida, nomeadamente, a sua
privacidade, expurgando-se a pesquisa e as discussões sobre a sua motivação com o que
melhor se concretiza a fundamentalidade constitucional dos Direitos de Personalidade,
objeto, ao mesmo tempo, da proteção da Constituição e do Código Civil; resguarda a
técnica do mutualismo, atada à função social do seguro, pondo-se um freio aos contratos
preordenados ao suicídio; determina, de modo claro, à seguradora, que cumpra a
obrigação de garantia, ultrapassado o biênio; protege-se, ao fim e ao cabo, os próprios
interesses dos consumidores, não adstritos ao interesse meramente individual e até mesmo
“egoístico” de uns ou de alguns, privilegiando-se a função social, dirigida à
implementação do interesse (coletivo) do grupo segurado. (ver itens 37 a 49, supra).
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ATUALIDADES
METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL: FUTUROS
POSSÍVEIS E ARMADILHAS
Bruno Lewicki
Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ.
Esse é um momento de balanço para a metodologia civil constitucional:
olhar para trás e ver o que alcançamos e olhar para o futuro e ver o que queremos alcançar.
Em momentos assim retrospectivamente descobrimos em nosso passado verdadeiros anus
mirabilis, anos de nossas vidas em que várias epifanias ocorreram e informaram o que
viríamos a viver, estudar e produzir depois.
Em determinado ano da minha vida participei do meu primeiro evento
científico, um congresso do Brasilcon, alguns dias após evento ainda mais marcante: meu
primeiro carnaval em Recife. Naquele mesmo ano me formei em Direito e teria outra
epifania: ler, e por incrível que pareça, assistir a Pietro Perlingieri pela primeira vez, na
minha querida Faculdade de Direito da UERJ. Naquele dia de agosto eu entendi tudo e vi
que não sabia nada. E assim a montanha russa começou sua viagem.
Hoje, passados tantos anos, muita coisa mudou no quadro do direito
civil brasileiro. Lemos e escrevemos páginas e páginas. Mas para fazer esse breve
balanço, não vejo outra saída senão mostrar que aprendemos a lição do mestre Italo
Calvino, e voltar aos clássicos. Após me aventurar com as bibliografias mais exóticas e
os assuntos mais específicos, preciso voltar à base que me fez dar os primeiros passos:
Professor Perlingieri e sua lição sobre a complexidade do ordenamento.
Boa parte da metodologia civil constitucional assenta-se no
reconhecimento da historicidade dos institutos jurídicos, o que normalmente associamos
à releitura de institutos do passado à luz das demandas do presente. Mas igualmente
importante é reconhecer a historicidade do próprio momento presente; a importância do
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que vivemos hoje é diametralmente oposta à duração deste momento histórico, que nada
mais é do que a passagem para outros instantes de contínua evolução.
Pensando nessa contínua evolução, é impossível resistir à tentação de
arriscar um exercício improvisado de futurologia. Pensar alguns cenários que podem
caracterizar o direito civil brasileiro e analisar qual o papel que a metodologia civil
constitucional pode ter nesses futuros possíveis.
O primeiro e principal cenário que sugiro diz com a multiplicação de
matérias, assuntos e interesses subjacentes ao direito civil. Como os outros cenários que
mencionarei, este futuro possível traz em si uma armadilha: o estilhaçamento do
ordenamento calcado na ideia de legalidade constitucional.
A quebra da antiga tabuada “teoria geral-obrigações-contratos-direitos
reais-família-sucessões” é evidente. Campos como responsabilidade civil, direito do
consumidor, direitos da personalidade e direito das garantias vão ocupando também o
proscênio das discussões, por sua importância funcional e relevância prática. Isso tem
impacto inclusive nos currículos dos cursos de graduação, cada vez mais criativos, e é
ainda reflexo de influências norteamericanas: afinal, falar em “direito civil” para um
jurista proveniente da Common Law nos leva a um clássico problema de tradução.
A privacidade é um exemplo. Partimos de um direito à privacidade,
pobremente expresso na ordem infraconstitucional no art. 21 do Código de 2002, para o
surgimento de um Direito da Privacidade. Em pouco tempo teremos um Marco Civil da
Internet regulando alguns aspectos desta questão; logo depois, espera-se, uma lei geral
de proteção de dados, em discussão no Ministério da Justiça. Paralelo a isso tudo temos
o projeto da chamada lei das biografias. Ontem havia quase nada. Amanhã, tudo novo e
cheirando a tinta, leis novas e modernas. Depois de amanhã elas serão duramente
questionadas, senão pelo descasamento com as tendências sociais, quem sabe justamente
pela natureza esparsa. Daí para a futura aprovação de um Código da Privacidade terá sido
um pulo.
Ou seja, a partir de algo que era mero detalhe brota aos poucos o que
aparenta ser outro ordenamento, convivendo com outros tantos. Adverte contudo
Perlingieri que “a teoria da interpretação assume, em um ordenamento complexo e aberto,
a função mais delicada de individuar a normativa a ser aplicada ao caso concreto,
combinando e coligando disposições, as mais variadas, mesmo de nível e proveniência
diversos, para conseguir extrair do caos legislativo a solução mais congruente aos valores
constitucionais”. Há uma lógica que precisa perpassar todos estes dispositivos, leis e
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 273
regulações, e essa lógica precisa estar presente também nas decisões que aplicam esse
ordenamento positivo. Uma coisa não existe sem a outra, como lembra, novamente,
Perlingieri: “a produção da lei e a produção da decisão acabam por representar uma
vicissitude incindível [...] A lei, o fato concreto, a lide e a decisão da lide se configuram
como um procedimento sem fim, onde a situação final se torna inicial, pronta para assumir
o provisório papel final”. O ciclo é infinito.
Bom exemplo de campo onde esta retroalimentação funciona de forma
feroz e necessária é a responsabilidade civil. As tentativas de construir uma teoria geral
propriamente dita da responsabilidade civil mostram-se visivelmente insatisfatórias, tanto
do ponto de vista abstrato - trata-se de uma suposta catedral cujas paredes não se
sustentam, de tantos furos que têm - como do ponto de vista concreto, nas respostas que
são trazidas às questões reais e judicializadas.
Muitos prevêem um futuro de atomização da responsabilidade civil,
com a criação de standards e regras próprias para os diferentes setores da vida em que
esse instituto se manifesta. Esse cenário não deixa de ser desejável quando pensamos na
mencionada insuficiência da sua chamada “teoria geral”, mas os riscos que daí advém são
imensos. Nas palavras de Perlingieri, “qualquer instituto, matéria etc. é sempre e somente
o resultado hermenêutico de todo o direito positivo. A interpretação ou é sistemática (a
360 graus) ou não é interpretação. Os chamados sistemas parciais são, no mais das vezes,
o resultado de uma primeira, provisória, abordagem, diante da qual o intérprete não pode
se ater, especialmente, na presença de valores fundamentais destinados a funcionalizar
cada instituto e à luz dos quais é mister exprimir valorações de validade e de
legitimidade”.
Podemos, assim, escapar à armadilha do estilhaçamento. Mas mesmo
que olhemos para o ordenamento atentando para sua inequívoca unidade, temos que nos
manter alertas para driblar outro problema: a armadilha do esquecimento de certos
institutos. Isso é particularmente importante no cenário de um futuro possível de
ressurgimento com toda a força da autonomia da vontade, inclusive como reação ao
movimento crescente de maior intervenção na liberdade contratual.
Não podemos simplesmente ignorar institutos como a cláusula
resolutiva expressa, hoje mais morta do que a discriminação legal dos filhos adotivos ou
a pena de torturas e galés, apesar de presente no Código Civil como sempre esteve.
Podemos e devemos, como lembra o mote desse nosso encontro, ressignificar esses
institutos; entender seus limites e possibilidades, o que eles representam hoje,
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 274
devidamente filtrados pela legalidade constitucional, em oposição ao que significavam
em outro contexto. Podemos atacá-los e pregar sua obsolescência ou mesmo sua
inconstitucionalidade.
Mas não podemos fingir que eles não estão ali. Não se faz pesquisa em
Direito ignorando o dado normativo. Nunca mais esqueci certa reunião de orientação que
tive com o Professor Tepedino a respeito do meu (então) projeto de tese sobre as
limitações ao direito autoral. Basicamente eu achava que os dispositivos vigentes sobre
aquele assunto eram horrendos. Sabendo onde aquela opereta ia terminar, argutamente
ele me fez ver que nós somos pesquisadores em Direito, não legisladores. Antes de me
arvorar a dizer como as coisas deveriam ser, o meu dever de doutorando era esgotar as
possibilidades interpretativas da lei vigente. Mas isso sem recorrer ao, com o perdão da
expressão, atalho de pular diretamente para uma aplicação direta da normativa
constitucional.
Depois de sangue, suor e lágrimas, naquele capítulo de lei onde antes
eu via terra arrasada passei a ver diversas possibilidades interpretativas. A norma
infraconstitucional que eu julgava fosca e feia ganhou vida com interpretações
sistemáticas, extensivas e analógicas, sempre à luz da Constituição.
Ou seja: não podemos encarar o ordenamento como o proverbial bufê,
onde nos servimos um pouco de cada coisa, a nosso gosto, deixando para lá aquilo que
não nos agrada tanto. Afinal, ele é uno.
Assim como não podemos ignorar normas e institutos, temos também
o dever de nos reconhecer nas demais teorias e escolas que campeiam pela ciência
jurídica, sabendo dialogar com elas, construir pontes e minimizar preconceitos. É
inegável que foram os civilistas, que, a partir da Constituição de 1988, difundiram a
perspectiva relativizadora da summa divisio público-privado entre os estudiosos do
Direito Brasileiro com o direito civil constitucional. Essa primazia não dá, porém, salvo
conduto para fechar-nos em nosso “clube” - e por isso quero falar da armadilha do
ensimesmamento.
É claro que precisamos sempre permanecer ciosos da integridade da
nossa metodologia. Mas se é verdade que só somos nós mesmos porque nos
reconhecemos nos outros, também para corretamente percebermos nossos perfis e
confins é indispensável que nos inteiremos do que está sendo discutido por outras escolas
e metodologias. Isso nos leva a um outro cenário, outro futuro possível que já está se
materializando, que é o crescimento da interseção entre Direito e Economia. Não é mais
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possível reduzir a análise econômica do direito à caricatural adoração de um idealizado
conceito de eficiência, erigido à altura de norma fundamental para aqueles cultores.
Podemos e devemos rechaçar qualquer metodologia que rejeite a noção do Direito como
força transformadora da sociedade e que queira reduzir a decisão jurídica a funções
matemáticas. Nas palavras de Perlingieri, “é necessário rejeitar a pretensão de quem acaba
por reconhecer como válida somente a norma jurídica que responda a um critério de
eficiência econômica preestabelecido - e não assente em critérios de valor aceitos
democraticamente”. Ou, como lembra o próprio Guido Calabresi, “sem se basear em
valores que lhe são externos, a maximizacão do bem-estar é um conceito sem
significado”. Mas é o próprio Perlingieri quem alerta que “o mercado necessita de normas
que o legitimem e o regulamentem: entre mercado e direito não há um antes ou um depois,
mas uma inseparabilidade lógica e histórica”. Ou seja, ignorar os influxos e os insumos
que uma visão de mercado possa trazer à metodologia civil constitucional é também
ignorar esta inseparabilidade.
Mas quando falamos da armadilha do ensimesmamento, e já que
estamos falando de metodologia, isto me remete também a um verso de Allen Ginsberg
de que gosto muito: “O método deve ser a mais pura carne, e nada de molho simbólico”.
Há muitas lições contidas aí, e uma das minhas preferidas diz com a linguagem. Sendo o
direito uma ciência interpretativa, a linguagem é uma das ferramentas mais importantes
para sua correta apreensão. Temos que ser precisos em seu manejo.
Evidentemente há espaço para a criatividade ao se escrever sobre
Direito. Pesquisadores experientes podem e devem recorrer a um estilo mais ensaístico,
sobretudo como forma de provocar o leitor. Mas, com o perdão da manjadíssima
comparação, estilo é de certo modo tempero, e é preciso chefs experimentados para usar
dele em fartas quantidades e produzir obras-primas. A tarefa da metodologia civil
constitucional, se não queremos pregar para convertidos, dependerá sempre da nossa
capacidade de comunicarmos nossos entendimentos à comunidade, não apenas jurídica.
Resumo, assim, este acanhado exercício de futurologia de araque a
essas tarefas que nos são impostas: escapar às armadilhas do estilhaçamento, do
esquecimento e do ensimesmamento.
A lição final, voltando sempre aos nossos clássicos, é uma vez mais do
professor Pietro Perlingieri: “Abre-se para o civilista um vasto e sugestivo programa de
investigação, que se propõe a realização de objetivos qualificados: individuar um sistema
do direito civil mais harmonizado com os princípios fundamentais e, em particular, com
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as necessidades existenciais da pessoa; redefinir o fundamento e a extensão dos institutos
jurídicos, especialmente civilísticos, destacando os seus perfis funcionais, em uma
tentativa de revitalização de cada normativa à luz de um renovado juízo de valor; verificar
e adequar as técnicas e noções tradicionais em um esforço de modernização do
instrumentário e, especialmente, da teoria da interpretação. Muitas das investigações já
realizadas nesse sentido indicam que a estrada traçada é rica de resultados, destinados, na
sua totalidade, a dar uma nova feição ao direito civil, contribuindo à criação do direito
civil constitucional”. Obrigado.
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RESENHAS
O SEGUNDO PASSO: DO CONSUMIDOR À PESSOA
HUMANA
Resenha de SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores
hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.
Carlos Nelson Konder Doutor e mestre em direito civil pela UERJ. Especialista em direito civil pela
Universidade de Camerino (Itália). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ e do
Departamento de Direito da PUC-Rio
I. Não se pode deixar de reconhecer que algumas das conquistas mais
importantes no âmbito das relações privadas no Brasil, nas últimas décadas, ocorreram
graças à atuação dos juristas dedicados ao direito do consumidor. O impacto social do
advento da Lei 8.078/90 e da jurisprudência que lhe deu aplicação é dos mais relevantes
em termos de efetivação do objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa
e solidária. Estas vitórias somente foram possíveis graças à incansável atividade dos
“consumeristas”, desde os debates sobre a redação do anteprojeto do CDC até a influência
sobre a consolidação e o desenvolvimento das decisões que efetivaram as conquistas
daquele diploma. Esses juristas assumiram um duplo papel. De um lado, cientistas do
direito, enfrentando a aridez da civilística clássica e superando as divisões tradicionais da
dogmática jurídica (privado x público, substancial x processual) para desenvolver novas
técnicas e instrumentos idôneos à efetivação da tutela dos consumidores. De outro lado,
ativistas sociais, lutando pela eficácia de tais instrumentos contra gigantescas forças
econômicas que, resistentes à mudança, buscavam interferir nos mais diversos níveis. As
conquistas são inquestionáveis. Ainda que o processo não esteja findo, eis que sempre se
abrem novos fronts de batalha (tenha-se em vista as batalhas pela reforma do CDC,
envolvendo o superendividamento, o comércio eletrônico e a tutela coletiva), foram
vencidos os argumentos ad terrorem de que a proteção do consumidor levaria à quebra
da atividade empresarial e a um retrocesso econômico.
Por isso, é com enorme satisfação que assistimos alguns daqueles
juristas darem um segundo passo. A conquista da proteção do consumidor, ainda que em
constante expansão, não é suficiente. Embora a categoria do consumidor seja mais
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concreta e específica do que a generalidade seca do “sujeito de direito” da civilística
clássica, ainda é dotada de alguma abstração, demandando a persistência no esforço de
concretização. O consumidor padrão, ou ainda mais o consumidor pessoa jurídica, não
pode receber o mesmo tratamento protetivo que o consumidor criança, o consumidor
idoso, o consumidor portador de necessidades especiais. Essa constatação conduziu à
recuperação, entre esses juristas, da categoria da vulnerabilidade. Trazida do cenário da
saúde pública, foi presumida e generalizada nas relações de consumo, mas a recente
doutrina a devolve à sua origem natal, restabelecendo e aprofundando o vínculo entre esse
conceito e a inexorável fragilidade da condição humana. Nessa toada, diversos estudos
foram publicados, dedicando-se à construção de mecanismos de tutela diferenciados para
esses sujeitos submetidos, em sua humanidade, a condições ainda mais delicadas e mais
necessitadas de tutela, com fundamento na solidariedade. Ante a insuficiência da
vulnerabilidade consumerista, padronizada para todos os consumidores, construiu-se a
categoria da hipervulnerabilidade, que ganhou ampla difusão a partir de alguns julgados
do Superior Tribunal de Justiça. A categoria, contudo, ainda carecia de sistematização
doutrinária adequada. Esse é o contexto em que surge a bem-vinda obra de Cristiano
Heineck Schmitt.
II. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de
consumo aborda o dramático problema social dos abusos perpetrados sobre os idosos no
âmbito das relações de consumo. Em uma sociedade em que a novidade é supervalorizada
e o que é antigo é tratado como obsoleto, o idoso é cada vez mais relegado ao segundo
plano no que tange ao adequado acesso a bens e serviços fundamentais como no que se
refere à assistência de saúde e, ao mesmo tempo, quando titular de patrimônio e, muitas
vezes, fonte de renda estável, decorrente de pensões e aposentadorias, vítima fácil da
indústria do superendividamento. A previsão constitucional da tutela do idoso, e mesmo
sua regulamentação pelo Estatuto do Idoso, ainda demandam eficácia adequada para a
viabilização de uma proteção real e concreta. Neste sentido, é mais do que louvável o
objetivo de Cristiano Heineck Schmitt de ampliar a efetivação dessa tutela por meio da
categoria da hipervulnerabilidade.
Para tanto, o autor compõe sua bela obra em três capítulos. No primeiro,
busca estabelecer uma ligação entre direitos do consumidor e direitos fundamentais. Rico
na doutrina acerca da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais e nas
reflexões acerca do impacto do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações
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privadas, alça o consumidor que for “sujeito vulnerável do mercado” a “sujeito
constitucional”. No segundo capítulo, dedica-se à tutela constitucional do consumidor
idoso, com grande manancial de pesquisas e dados empíricos, além de uma análise
minuciosa do superendividamento de idosos. O terceiro capítulo estabelece a passagem
final: da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo à hipervulnerabilidade
do consumidor idoso. Com fundamento nos princípios da igualdade e da
proporcionalidade, o autor parte da premissa de que “a vulnerabilidade é uma
circunstância inseparável da noção jurídica de consumidor” e, diante da vulnerabilidade
potencializada do idoso, como de crianças e enfermos, propõe a figura da
hipervulnerabilidade, que “resulta da soma da vulnerabilidade intrínseca à pessoa do
consumidor, com a fragilidade que atinge determinados indivíduos”. Ao final, recorre ao
ilustrativo exemplo dos contratos de planos e de seguros de assistência privada à saúde,
identificando na aplicação do CDC e da Lei n. 9.656/98 formas de redução dos cenários
de espoliação do idoso.
III. A obra de Cristiano Heineck Schmitt é enriquecedora em diversos
níveis. Em primeiro lugar é um alerta. Os dados apresentados pelo autor revelam a
intensidade e a frequência dos mecanismos negociais de exploração de idosos e a urgência
da atuação dos juristas em prol de soluções mais eficazes. Em segundo lugar, é um
diálogo. O autor estabelece ligações entre teorias e doutrinas que, para prejuízo da
sistematicidade do ordenamento, são muitas vezes tratadas em apartado, como as
reflexões constitucionalistas sobre direitos fundamentais, as informações apresentadas
pela sociologia do direito, as difundidas técnicas do chamado microssistema consumerista
e as tradicionais estruturas do direito privado. E é, ainda, em terceiro lugar, uma proposta
inovadora. Defende, com simplicidade e clareza, a construção de uma nova categoria,
para além do consumidor padrão, a dos “hipervulneráveis”. Reconhece, portanto, que no
mesmo espírito que a categoria dos consumidores foi criada, para tratar de forma
privilegiada uma categoria socialmente desprivilegiada, é necessário ir além. Tratar todos
os consumidores da mesma forma, desconsiderando suas fragilidades humanas, seria
desprestigiar, nesse segundo momento, o princípio da igualdade. Daí a proposta, no
sentido de construir uma nova categoria, para diferenciar, alguns, dentre os já
diferenciados.
Pode-se destacar como um dos pontos altos do trabalho não apenas o
chamado diálogo entre as fontes, mas o diálogo com os direitos fundamentais de alçada
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constitucional que, nesse caso, é menos diálogo e mais monólogo: a normativa
consumerista como forma de efetivação do ditado constitucional. Pode-se salientar
também a passagem da tutela geral do equilíbrio econômico nas relações de consumo
para uma tutela de matiz existencial, fundada na dignidade humana do sujeito consumidor
em concreto. Pode-se questionar a conveniência da criação de mais uma categoria abstrata
para diferenciar a sempre mais rica e complexa condição humana. Como toda grande
obra, suscita reflexões e gera questões, permitindo ao leitor que, após a imersão no texto,
continue a pensar sobre o assunto, instigado pela qualidade do trabalho. Mais um ponto
está fora de questão: Cristiano Heineck Schmitt deu o segundo passo. Cabe a nós o
acompanharmos no diálogo.
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designam a natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo:
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DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
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jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5.
A Constituição – 6. A chamada descodificação.
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