Post on 10-Nov-2018
Rui Jorge de Sousa Coelho
Um
inho
|201
5
julho de 2015
Universidade do MinhoInstituto de Ciências Sociais
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel deOliveira
Rui
Jor
ge d
e So
usa
Coe
lho
O M
eu
Po
nto
de
Vis
ta é
um
Po
nto
de
Esc
uta
. O
Po
de
r d
o S
om
no
s F
ilme
s d
e M
an
oe
l de
Oliv
eir
a
Trabalho realizado sob a orientação doProfessor Doutor Moisés de Lemos Martinse doProfessor Doutor Nelson Zagalo
Rui Jorge de Sousa Coelho
julho de 2015
Universidade do MinhoInstituto de Ciências Sociais
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel deOliveira
Tese de Doutoramento em Ciências da ComunicaçãoEspecialidade em Comunicação Audiovisual
AGRADECIMENTOS
Aos meus orientadores, professores Moisés Martins e Nelson Zagalo, por teremconfiado em mim e aceitarem acompanhar-me neste projecto arriscado de falarsobre o som em era de ecrãs.
À Regina e ao Saguenail, pela amizade, os conselhos, e tudo o mais...
Às minhas filhas Alice e Maria, por terem aturado estes quatro anos de especial"mau feitio" e défice de atenção.
v
DEDICATÓRIA
A Manoel de Oliveira
À memória de Antoine Bonfanti
vii
RESUMO
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O poder do som nos filmes de Manoel de Oliveira
A proposição que defendo nesta tese é a de que na percepção da mensagem audiovisual os sons que
escutamos provindos dos altifalantes são tão importantes para a construção de sentido(s) como as imagens
que vemos projectadas no ecrã. Estudo o caso do cinema de Manoel de Oliveira, procurando compreender o
modo como, e a medida em que o sonoro contribui para a construção do sentido nos seus filmes. A análise
parte do argumento de que numa era em que constantemente somos bombardeados por imagens
audiovisuais, a atenção que se tem dedicado aos ecrãs -- ou seja, à componente visual dessas imagens --
precisa ser complementado com a compreensão do que (se) passa nos altifalantes -- isto é, com a sua
componente sonora. Pelo caminho, tento descobrir as possíveis razões por que o som tem sido praticamente
ignorado nos estudos sobre comunicação: as dificuldades na sua definição ontológica; o seu carácter fluido e
efémero; a sua invisibilidade. Chamo a atenção para a importância na nossa vida quotidiana urbana, cada
vez mais repleta de sons artificiais ou mediados electronicamente. Concluo que o cinema de Manoel de
Oliveira demonstra bem a pertinência e o mérito da tese. O som, nas três modalidades em que o cinema o
concebe – voz, música e ruídos – é sustentáculo, tão fundamental como as imagens que se projectam no
ecrã, desse “templo grego” que Manoel de Oliveira diz ser o cinema. Não apenas o sonoro se articula com o
visual de modo indissociável, como pode ser o motor da própria construção audiovisual.
Palavras chave: som, cinema, audiovisual, Manoel de Oliveira
ix
ABSTRACT
My Point of View is a Point of Listening. The power of sound in the movies of Manoel de Oliveira
In this thesis is I argue that for the perception of the audiovisual message, sounds we hear proceeding from
the speakers are so important to the construction of meaning(s) as the images we see projected on the
screen. I study the case of Manoel de Oliveira's cinema, trying to understand how, and the extent to which
sound contributes to the construction of sense in his films. My analysis stands on the argument that in an age
where we are constantly bombarded by audiovisual images, the attention that has been devoted to screens -
that is, the visual component of these images -- must be complemented with an understanding of what
happens in the loudspeakers -- that is, with its audible component. Along the way, I try to find out the possible
reasons why sound has been virtually ignored in communication studies: the difficulties in its ontological
definition; its fluid and ephemeral character; its invisibility. I draw attention to its importance in our urban
everyday life, more and more filled with artificial or electronically mediated sounds. I conclude by stating that
the films of Manoel de Oliveira clearly demonstrate the relevance and the merits of my argument. Sound, in
the three modalities in that cinema conceives it -- voice, music and noise -- is a mainstay, as fundamental as
the images projected on the screen, of this " Greek temple" that Manoel de Oliveira says to be cinema. Not
only the audible is articulated with the visible in an inseparable way, as it can be the very engine of the
audiovisual construction.
Keywords: sound, film, audiovisual, Manoel de Oliveira
xi
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO 11.1. PORQUÊ ESTUDAR O SOM QUANDO VIVEMOS NA "ERA DA IMAGEM"? 51.2. TESE 71.3. ESTRUTURA DA TESE 9
2. O SOM 112.1. PORQUE É RELEVANTE ESTUDAR O SOM 112.1.1. A importância do som 112.1.2. Condenados à escuta 152.1.3. As três escutas 172.2. O SOM COMO OBJECTO DE ESTUDO 192.2.1. Visualismo 202.2.2. Invisibilidade 242.2.3. Afinal o que é essa coisa a que chamamos som? 262.2.4. Algumas breves palavras acerca do silêncio 292.3. TEORIA DO SOM 302.3.1. Film (sound) studies 352.3.2. Chion e a audiovisão 40
3. O SOM NO CINEMA 453.1. CINEMA CLÁSSICO 453.1.2. O que é então o cinema clássico? 473.1.3. O som no cinema clássico 543.1.4. Cinema sonoro ou cinema falado? 563.2. A CONSTRUÇÃO SONORA NO CINEMA 603.2.1. Não (h)à banda sonora 603.2.2. O som no cinema e no audiovisual 613.2.3. Como escutamos um filme 653.2.4. A realização sonora do filme 673.2.5. Relação dos objectos sonoros com o ecrã 703.2.6. Funções clássicas do som no cinema 72
4. MÉTODO 804.1. A QUESTÃO DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 824.2. A QUESTÃO DO CORPUS 834.3. A QUESTÃO DAS FERRAMENTAS 844.4. PRÓS E CONTRAS DE "OUVER" OS FILMES EM CÓPIAS DIGITAIS 864.5. O QUE FOI ANALISADO NOS FILMES 88
5. ESTUDO DE CASO: MANOEL DE OLIVEIRA 905.1. OS FILMES 905.2. A ANÁLISE 955.3. INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS 1385.3.1. Ruídos 1405.3.2. Música 1435.3.3. Voz 1475.3.4. Ponto de escuta 1515.3.5. Plano subjectivo 1525.3.6. Relação áudio-visual 1545.3.7. Alguns princípios orientadores 1565.3.8. Um cinema épico? 1615.3.9. Um cinema ético? 1635.3.10. As três fases do cinema de Manoel de Oliveira 166
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 169
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 173
FILMOGRAFIA DE MANOEL DE OLIVEIRA 191
xiii
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
1. INTRODUÇÃO
Como se presumirá pelo título, nesta tese fala-se sobre cinema. Do cinema como arte também
sonora (Chion, 2003) e não apenas visual, como vulgar mas incorrectamente é considerado. Mais
precisamente, fala-se do papel do som na construção de sentido(s) no audiovisual, tomando como
exemplo o cinema. Daqui que o título anuncie um ponto de escuta, em lugar de um ponto de vista.
O ponto de vista recorta uma perspectiva. "Como forma simbólica, a perspectiva encarnava a
crença do humanismo ocidental num mundo 'centrado' no indivíduo único, cujo quadro perceptivo é
alinhado ou equiparado com um acto de possessão e no qual a janela do mundo se pode tornar
tanto em cofre na parede como em montra dum mundo de objectos e pessoas como mercadorias"
(Elsaesser e Hagener, 2010:20). Materializando a ideia de que o “homem é a medida de todas as
coisas” enunciada por Protágoras (Platão, 2010:205), a perspectiva alimenta a falsa noção de que
observador e coisa observada não interagem nem participam ambos do mesmo universo. Ao
mesmo tempo que é inventada a perspectiva, consolida-se a ciência como única actividade/atitude
capaz de levar a encontrar o ponto de vista certo.
Conceitos como fidelidade e objectividade passam a medir a analogia entre o real e a sua imagem.
Aproximação da representação às qualidades inerentes ao objecto representado, a fidelidade será
proporcional à capacidade da técnica se sobrepor ou contornar o processo perceptivo que medeia
entre o olhar e o gesto da mão do pintor. A fotografia e o cinema vêm aprofundar a ilusão de
objectividade ao fazerem uso de uma máquina que supostamente torna a representação
independente duma vontade pessoal que a possa tornar menos fiel ao representado. A convicção de
que o meio técnico pode ser assim transparente é uma falácia. A câmara não é capaz de registar e
reproduzir a natureza sem a alterar ou, de alguma maneira, filtrar; o que ela faz é transformar em
objecto aquilo está à sua frente: para isso está provida de uma objectiva.
A distinção entre um som original e a sua representação por meio de tecnologia áudio não é sempre
evidente e oferece muito mais dificuldade do que a distinção entre uma imagem visual e o que ela
representa. É muito difícil tornar um som num objecto, pois ele não tem uma forma que o contenha
1
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
e porque as suas propriedades mudam constantemente no tempo. A essência do som é o
movimento. Não o podemos parar no tempo nem no espaço. Se o tentamos parar deixa de existir,
passa a ser outra coisa, a que chamamos silêncio.
A outra intenção do título, ao contrapor um ponto de escuta como alternativa a um ponto de vista, é
a de afirmar que, para se falar adequadamente sobre som, é necessário evitar os conceitos que
remetem para a visão e o visível (como é exemplo o termo transparente acima usado). Sempre que
possível, há que substituí-los por outros mais adequados a exprimir os fenómenos auditivos.
Evidentemente falta (ainda) dimensão metafórica ao conceito de ponto de escuta, pelo que, para
além da ironia do título, a expressão será usada no texto apenas para significar a colocação física do
ouvinte em relação ao espaço sonoro que o envolve.
A analogia entre os conceitos de ponto de escuta e de ponto de vista resume-se aqui a uma noção
comum de posicionamento num espaço físico, a partir do qual se escuta ou se observa uma
paisagem, que para um sentido é sonora e para o outro é visual. Desde logo, porque a audição não
está sujeita à limitação axial que condiciona a visão, a percepção do espaço difere conforme usamos
o sentido da visão ou o da audição (ou ambos em simultâneo), criando perspectivas diferentes.
Enquanto a nossa visão é frontal e está limitada a um ângulo horizontal e outro vertical, a audição
recebe igualmente o som que chega de todas as direcções do espaço. Como escrevem Elsaesser e
Hagener (2010:129-130), "ver é sempre direccional porque vemos apenas numa direcção, enquanto
que a audição é sempre uma percepção tridimensional e espacial, i.e., cria um espaço acústico
porque ouvimos em todas as direcções". Além disto, apesar das semelhanças quanto às
propriedades físicas entre luz e som, este é praticamente invulnerável aos mesmos obstáculos que
impedem a passagem daquela. Não existe matéria que seja verdadeiramente opaca ao som.
Dependendo da sua intensidade e timbre, a vibração sonora é capaz de contagiar toda a matéria.
Apenas o vazio é capaz de impedir a sua propagação.
O jogo de palavras tem uma dupla intenção. Por um lado quer chamar a atenção para o facto de
que a linguagem nos impõe uma percepção do mundo – “a língua não só produz realidade como
propaga realidade” diz Flusser (1962:20) – e que ela o faz dando privilégio à visão em detrimento
dos outros sentidos. Ponto de vista não significa apenas o local e a colocação que o observador
assume para olhar a paisagem. Tem também o sentido metafórico de opinião, de juízo sobre o que
é observado. Na linguagem corrente (e também na da ciência) é usado sobretudo neste sentido
2
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
figurado. Com a mesma facilidade falamos da nossa visão do mundo, e partimos do princípio de
que todas as imagens são visuais.
E, porquê o cinema? A escolha do cinema foi óbvia: uma questão de gosto pessoal; a minha
formação académica em cinema; trinta anos de actividade regular na captação, montagem e
mistura de som para filmes. Em termos de método de pesquisa, a escolha do cinema justifica-se
pela facilidade de acesso a uma grande variedade de obras e a circunstância de quase toda a pouca
literatura existente sobre o som no audiovisual se encontrar no campo dos estudos sobre cinema
(os chamados Film Studies).
O cinema tornou-se um objecto de estudo muito acessível desde que se tornou produto de consumo
domiciliário. A edição de cópias digitais tornou disponível uma enorme quantidade de filmes a que
podemos ter acesso imediato. Simultaneamente, a proliferação dos sistemas de cinema caseiro
(home cinema) permite-nos assistir à reprodução dessas cópias em alta definição sonora e visual,
sentados no sofá da nossa sala de estar. Muitas obras, a que dantes apenas poderíamos ter acesso
através de cineclubes ou cinematecas (e mesmo outras, esquecidas ou até dadas como perdidas),
estão agora acessíveis em DVD, Bluray, ou online. Esses filmes, realizados durante o mais de um
século de existência do cinema, permitem estudar a evolução de um medium ao longo de toda a
sua história. Ao contrário de outras artes, cujas origens se perdem na distância temporal,
praticamente toda a história do cinema – obras, autores, equipamentos – está ao nosso alcance
para o estudo da sua evolução enquanto técnica, enquanto arte e enquanto meio de comunicação.
O facto de o cinema ter sofrido a transição de uma fase muda para outra sonora – com todas as
dificuldades técnicas e artísticas que esse processo acarretou – oferece dados valiosos para a
compreensão do papel do som na relação com o visual. No que diz respeito ao som no audiovisual,
é uma vantagem acrescentada poder estudar um meio que nasceu mudo e que não só hoje está na
vanguarda da tecnologia áudio (com os sistemas digitais multi-canal surround) como tem sido, ao
longo da sua história, um dos principais motores do desenvolvimento desta tecnologia.
Considerado uma arte – a sétima arte –, o cinema é antes de mais um meio de comunicação. E
como tal é tratado nesta tese. Como medium, o cinema é mais simples de definir do que os outros
media audiovisuais. Mais fácil de delimitar como objecto de estudo. Os produtos do cinema são os
filmes. Indiferentemente de a ele assistirmos na sala de cinema ou em casa, cada filme é uma
3
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
unidade autónoma que depende apenas de si própria para produzir sentido. Hoje em dia já não
podemos identificar um filme pelo suporte físico que lhe deu o nome – filme ou película – mas,
mesmo assim, continuamos a identificar facilmente um filme porque ainda respeita uma série de
convenções comuns a todos os filmes, convenções que se sobrepõem à grande diversidade que
podem apresentar. Apesar de uma grande maioria dos filmes que povoam o nosso quotidiano serem
obras industriais, ainda reconhecemos a cada um deles o carácter de obra em que é possível
(mesmo que vagamente) identificar uma autoria. O cinema mantém ainda resquícios de um
processo artesanal que o dispositivo televisivo e de outros media já não comportam (nem admitem).
A escolha dos filmes de Manoel de Oliveira como corpus de estudo foi quase inevitável: a admiração
pela pessoa e pelo cineasta, e uma obra fascinante que imediatamente evoca a memória indelével
de três filmes em que o som é tratado com grande originalidade – Amor de Perdição, O Meu Caso,
Os Canibais. Apesar de o cinema de Manoel de Oliveira ser objecto de um número crescente de
ensaios críticos e dissertações académicas, muito pouca atenção e reflexão têm sido dedicadas à
componente sonora dos seus filmes. É quase um lugar comum reconhecer-se a Manoel de Oliveira
um grande domínio técnico e estético sobre a cinematografia (isto é, a fotografia de cinema), mas
pouco se questiona o processo de construção sonora dos seus filmes. Nem um filme como O Meu
Caso, em que é óbvia a manipulação dos sons e o jogo de assincronismo com as imagens visuais,
parece fugir a esta espécie de surdez generalizada.
Não obstante todas as vantagens que possa aqui invocar, não é o cinema em si que constitui o
objecto de estudo deste trabalho. Surge aqui como representante (privilegiado) do chamado
audiovisual. À nossa volta foram rapidamente proliferando os media audiovisuais: primeiro o
cinema, mais tarde a televisão, os computadores pessoais, os telemóveis... e a internet, que os
integra e interliga. Vivemos numa sociedade em que os meios de comunicação escrita, dominantes
até meados do século passado, foram em grande parte substituídos por outros, que fazem uso do
sonoro e do visual para construírem as suas mensagens. Só os que souberam, de alguma maneira,
integrar o audiovisual nas suas práticas tradicionais é que não foram completamente substituídos.
4
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
1.1. PORQUÊ ESTUDAR O SOM QUANDO VIVEMOS NA "ERA DA IMAGEM"?
Não se trata de uma questão de querer ser original. Há mais de trinta anos que a minha vida tem
sido dedicada à prática e ao estudo do som no cinema (por afecto) e no teatro (por profissão). Uma
e outro têm incidido inevitavelmente sobre a tecnologia áudio e o chamado sound design. Esta
designação estrangeira, de que não sou adepto, prefiro substituí-la por desenho de som quando me
quero referir às questões da concepção do dispositivo técnico envolvido (muito variável na sala de
teatro) e sonoplastia, quando me refiro ao processo de criação artística da componente sonora do
filme, ou do espectáculo teatral. O conhecimento da tecnologia impõe-se pela necessidade de
domínio do dispositivo técnico que escolhemos para comunicar. Mas, tanto o desenho de som como
a realização da sonoplastia colocam questões que, por um lado, são prévias e, por outro, vão para
além daquelas de natureza mecânica, electrónica ou digital. Refiro-me ao(s) sentido(s) que
desejamos produzir: a intenção de comunicar é prévia, mas a forma de o fazermos
(independentemente de o método ser considerado artístico ou não) é, em grande medida,
determinada pela tecnologia que usamos.
Perante a complexidade e a riqueza significante do som, sou sensível ao desprezo que o seu papel
tem merecido da sociedade em geral e da academia em particular. Sou especialmente crítico da
ideia generalizada de que, nos media audiovisuais, a produção de sentido depende exclusivamente,
ou em primeiro lugar, do visual e de que o áudio, contrariando a sua posição de prefixo no vocábulo,
é secundário e mero acompanhante ou, quando muito, coadjuvante. A única excepção a esta regra
tem sido a atenção dada ao som da voz humana que, no entanto, é apenas encarada como veículo
da linguagem verbal. A própria linguagem espelha – e alimenta, segundo Flusser (1962) – o
enviesamento, a submissão do sonoro ao visual. Vamos ao cinema ver um filme ou ficamos em
casa a ver televisão, e nem temos consciência de que este ver inclui inevitavelmente o escutar.
Os novos media fazem igualmente uso do sonoro e do visual mas, no entanto, continuamos a ler ou
ouvir dizer frequentemente que vivemos na era da imagem. Esta ideia feita congrega dois
preconceitos: 1) que imagem é um conceito que se aplica exclusivamente ao visual; 2) que o
audiovisual se pode reduzir ao visual. A expressão tem a pretensão de designar uma sociedade em
que a realidade chega até nós mediada pelos inúmeros ecrãs que povoam o nosso quotidiano (da
televisão, do computador, do telemóvel), mas ignora que esses ecrãs estão, cada vez mais,
indissociavelmente ligados a altifalantes. E, portanto, ignora completamente o papel do som nessa
5
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
mediação que é audiovisual e não simplesmente visual.
Em O Sofista, pelas palavras da personagem Teeteto, Platão (1972:166) define a imagem como "um
segundo objecto igual, copiado do verdadeiro", o que dá ao conceito o sentido de representação que
resulta de algum tipo de imitação (mimese) do original. Aristóteles (2010:123), no seu tratado Sobre
a Alma, diz que "as imagens são, pois, como sensações, só que sem matéria", o que significa que a
imagem é uma construção mental, uma percepção de algo que não está presente diante de nós.
Nenhuma destas definições implica que a imagem seja obrigatoriamente visual. E a de Aristóteles
deixa mesmo lugar a especular que nem precisa ser obrigatoriamente uma imitação.
No entanto, o conceito de imagem remete quase exclusivamente para o domínio do visível, tanto na
terminologia corrente como na usada na maioria dos trabalhos académicos. O entendimento de que
os media audiovisuais actuam em nós predominantemente pelo sentido da visão – menosprezando
o poder imagético da audição – é muito redutor, se não completamente falso. A visão é,
provavelmente, de todos os nossos sentidos, o que menos estimula a imaginação e, certamente, o
que menos impressiona a memória (Tomatis, 1995). Não está comprovado que tenha o poder de
apreender o mundo que geralmente lhe atribuem, e é facilmente influenciada pela audição. Como
não vemos sem simultaneamente ouvir, é muito difícil definir os limites e o contributo de cada um
dos sentidos para a percepção que designamos por visual (O’Callaghan, 2007). O que os estudos
da percepção auditiva humana parecem indicar é que "tal como a vista organiza os estímulos
visuais numa representação, uma 'imagem' dos objectos visuais do mundo exterior, o ouvido
constrói uma 'imagem' dos vários sons a partir da mistura de fragmentos que recebe – objectos
auditivos a serem aprendidos e reconhecidos" (Plomp, 2002:145).
Tomando a palavra imagem como sinónimo de representação (sem mais), temos de reconhecer que
os meios audiovisuais trabalham com imagens sonoras tanto como com imagens visuais. Porque,
efectivamente, os equipamentos áudio representam o som e não simplesmente o reproduzem,
como vulgar mas incorrectamente se julga e, portanto, o que ouvimos no filme são imagens sonoras
e não uma pura (transparente) reprodução dos sons tal como eles acontecem na realidade.
Ou então, talvez mais adequadamente, devemos falar de imagens audiovisuais, tendo em
consideração a "multimodalidade" (Naumer & Kaiser, 2010; Handel, 2006) ou, mais
especificamente, a "bimodalidade" (O’Callaghan, 2007:177) perceptiva promovida pela audição e
6
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
visão simultâneas. A percepção de um filme é um processo que envolve principalmente (mas não
só) a interacção destes dois sentidos, pelo que apenas analiticamente podemos distinguir o efeito
do filme sobre cada um deles, e considerar a percepção de imagens visuais e imagens sonoras
como fenómenos distintos.
É, portanto, o papel do som na construção dessas imagens audiovisuais que estará em análise e
discussão neste trabalho. O sonoro como parte do imaginário com que se constrói o sentido da
mensagem audiovisual.
1.2. TESE
A proposição que pretendo defender nesta tese é a de que, na percepção da mensagem
audiovisual, os sons que escutamos, provindos dos altifalantes, são tão importantes para a
construção de sentido(s) como as imagens que vemos projectadas no ecrã.
Defendo que os media audiovisuais – cinema, televisão, internet – não actuam apenas sobre a
nossa percepção visual e não comunicam unicamente com recurso a imagens visuais. Tal como o
nome indica, o audiovisual actua igualmente sobre a audição, induzindo uma bimodalidade
perceptiva que não é apenas visual, nem apenas auditiva (nem uma mera adição das duas) e a que,
portanto, devemos chamar audiovisual. Dito de outro modo, “não vemos a mesma coisa quando
ouvimos e não ouvimos a mesma coisa quando vemos” (Chion, 1994:xxvi). Usando como matéria
os filmes de Manoel de Oliveira, pretendo mostrar como sonoro e visual agem em conjunto nessa
construção de sentido(s).
Os media audiovisuais agem sobre a audição e a visão de um modo em que os dados, com que
cada um dos sentidos contribui para a percepção, não se podem completamente discriminar. Como
tal, esses media só podem ser entendidos completamente se estudarmos a componente sonora
com atenção idêntica à que tem sido dedicada à visual, e em articulação com esta. E mais, esta
atenção ao sonoro não pode reduzir-se à sua condição de veículo da linguagem: não se pode
pretender estudar o sonoro quando apenas se dá atenção ao discurso, reduzindo o estudo à análise
de conteúdo verbal que o som pode carregar. Neste trabalho não irei entrar pelos campos da
linguística ou da semiótica da música, que se dedicam a este tipo de análise de conteúdo, senão no
7
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
que for estritamente indispensável e operativo para a investigação.
Defendo que o som é determinante para a produção de sentido no audiovisual e que,
consequentemente, o seu estudo é relevante e merecedor, por parte das Ciências da Comunicação,
de uma atenção que raramente lhe tem sido concedida. Numa época em que se deseja promover
uma tão necessária literacia mediática não podemos ignorar o papel que o som, em todos os seus
aspectos e dimensões, tem na construção de sentido, nem continuar a encará-lo apenas como
veículo para a palavra.
Ao chamar a atenção para o sonoro não desejo fazê-lo em detrimento do visual. Sonoro e visual não
são concorrentes. A combinação dos dois enriquece-os mutuamente ao fazer apelo a uma
“multisensoralidade”, a uma “percepção multimodal” (Naumer & Kaiser, 2010) que amplia o
potencial de ambos enquanto “recursos semióticos” (Leeuwen, 2005). Insisto, a percepção resulta
da interacção dos dois sentidos envolvidos e não da soma dos dados que cada um individualmente
poderá fornecer. Os media audiovisuais dirigem-se, conjunta e simultaneamente, à audição e à
visão, e não a cada um dos sentidos separadamente. Não defendo, portanto, que a questão de
saber como o sonoro opera a produção de sentido possa ser respondida pela análise do som
isoladamente, mas sim que o auditivo deve ser estudado na sua relação com o visual.
Mais ou menos conscientemente, implícita ou explicitamente, quem está envolvido na realização
audiovisual tem a noção de que precisa actuar sobre os dois sentidos. Mesmo quem acredita num
valor superior da imagem visual sabe que o som é necessário e que há que estabelecer uma
relação entre os dois. Vulgarmente essa relação é entendida como de subserviência e o som
considerado como parte da imagem visual. Mas ainda que seja com esse estatuto de menoridade a
presença do som é sentida como uma necessidade. Portanto, esta relação de interdependência
entre os sentidos reflecte-se na própria concepção das mensagens audiovisuais.
Por estas razões, embora dando destaque ao sonoro, este trabalho não trata da escuta de filmes
mas da sua “audiovisão” (Chion, 1994), isto é, de um exercício simultâneo de escuta e observação
que adequadamente se poderia exprimir pelo neologismo que resulta da fusão das palavras ouvir e
ver: ouver.
Também será reduzida ao mínimo necessário a discussão das questões relacionadas com a
evolução técnica do som no audiovisual. Embora inevitavelmente a sofisticação cada vez maior da8
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
tecnologia tenha influência na construção da componente sonora do audiovisual, esta influência
exerce-se sobretudo nos processos de realização técnica do filme e não se tem revelado
determinante para a produção de novos significados. O Dolby, a estereofonia e depois o surround
vieram alterar os procedimentos técnicos da construção sonora, mas estas inovações técnicas não
implicaram uma mentalidade diferente no modo como a maioria dos cineastas valorizou (e valoriza)
a componente auditiva do cinema. Os filmes tornaram-se mais barulhentos, com sons mais
detalhados, mas não necessariamente mais ricos em significado. Pelo contrário, o principal
contributo desta evolução técnica foi o do "silêncio nos altifalantes" que, esse sim, segundo Chion
(2001:151), introduziu um "novo elemento expressivo" no cinema.
Paradoxalmente, a alta fidelidade com que os media áudio actualmente representam os sons
naturais acaba por, em grande medida, esvaziar de sentido essa mesma representação ao
assemelhá-la a uma simples reprodução da realidade (o que lhe reduz o sentido à mera afirmação
de que existe som). Esta aproximação ao original, do som mediado pelos sistemas de áudio digital
multicanal actuais, tem (res)suscitado alguma discussão quanto à possível tendência ou, pelo
menos, tentação para o uso naturalista do som no cinema. Ao perder uma certa dose de distorção
que a técnica introduzia na mediação do som e que ajudava à distinção entre este e o som original,
não se sentirá o espectador menos inclinado a um exercício de “suspensão de descrença”
(Coleridge, 1817:2) necessário à sua aceitação da ficção fílmica? Em contrapartida, o
desenvolvimento dos meios áudio multiplicou as possibilidades de transformar os sons, afastando-
os da realidade, através do uso de efeitos ou mesmo pela geração de sons totalmente sintéticos.
Esta ambivalência, de resto, caracteriza as tecnologias da informação, cujo desenvolvimento se faz
reflectir numa "transformação radical da nossa relação com a natureza", provocando "alterações
profundas no aparelho de percepção" (Martins, 2007:6). Para uma reflexão sobre a relação entre
humanidade e tecnologia na contemporaneidade ver, por exemplo, o número 12 da revista
Comunicação e Sociedade (Martins & Oliveira, 2007).
1.3. ESTRUTURA DA TESE
Após a introdução, em que tento dar conta das motivações que me levaram a este trabalho, abordo
a problemática do som no capítulo 2: a importância que tem, não só na comunicação humana9
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
como na própria vida quotidiana, com reflexo inevitável no cinema e no audiovisual; falo também do
estudo que tem (e do que não tem) sido dedicado ao som no audiovisual e nos media em geral, dos
obstáculos que se levantam a esse estudo e da dificuldade de classificar ontologicamente esse
fenómeno a que damos o nome de som, assim como uma breve discussão da literatura que serviu
de orientação para o trabalho. No capítulo 3 defino o cinema clássico narrativo desenvolvido pela
indústria localizada em Hollywood; apresento a definição e as principais características desse
modelo de cinema, e o modo como trata o som nos seus filmes; explico as etapas básicas por que
passa a realização sonora de um filme e introduzo alguma terminologia específica. O capítulo 4 é
dedicado ao método e ao percurso algo sinuoso da investigação que aqui relato. No capítulo 5 falo
dos filmes de Manoel de Oliveira: começo por uma muito breve caracterização do seu cinema,
resumindo em traços largos o que tem sido dito e escrito sobre o mesmo até à data; em seguida
transcrevo o essencial das notas tiradas ao longo da fase de análise dos filmes, acrescentadas de
algumas observações pessoais e alheias sobre aspectos relacionados com o som; finalmente, a
partir da análise e das posteriores leituras que efectuei em resposta às questões que ela me
colocou, elaboro algumas propostas de conclusões. Finalmente, no capítulo 6 faço uma reflexão
sobre todo o processo de investigação, terminando com a sugestão de possíveis desenvolvimentos.
10
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2. O SOM
2.1. PORQUE É RELEVANTE (ESTUDAR) O SOM
2.1.1. A importância do som
“Durante vinte e cinco séculos, o conhecimento ocidental tem olhado para o Mundo. Falhou em
compreender que o Mundo não é para contemplar. É para escutar. Não é legível, mas audível.”
(Attali, 2009:3)
A nossa relação com o mundo começa pelo som. Aos quatro meses e meio de gestação o ouvido já
está completamente desenvolvido e plenamente operativo. "O feto cresce no útero ao som do
coração da mãe, e as sensações rítmicas de tensão e repouso, de contracção e distensão vêm a ser,
antes de qualquer objecto, o traço de inscrição das percepções" (Wisnik, 1999:29). Fechados na
"noite uterina" (Tomatis, 1999) escutamos a voz de nossa mãe, a sua respiração, os ruídos da
circulação sanguínea, da digestão.
A audição desenvolve-se muito antes da visão ou dos outros sentidos. Escutamos o mundo antes de
o poder ver ou tactear. Os sons do exterior chegam-nos aos ouvidos filtrados pelo líquido amniótico.
No momento do nascimento emergimos num ininterrupto fluxo de sons que nos acompanhará toda
a vida. Ao contrário de outros sentidos que, de uma forma ou outra, podemos isolar dos estímulos a
que são sensíveis, não podemos impedir-nos de ouvir. Mesmo quando dormimos a nossa audição
está activa, pronta a despertar-nos perante a presença de algum som inusitado ou ansiado.
Incapazes de fechar os ouvidos ao som do mesmo modo que com as pálpebras fechamos os olhos
à luz, ou que optamos por não tocar nos objectos que nos rodeiam, somos condenados a uma
audição contínua e perpétua.
É pelo ouvido que tomamos consciência do espaço à nossa volta. O ouvido não só nos faculta
percepcionar a tridimensionalidade do espaço, através do reconhecimento do seu comportamento
acústico (o som é difundido diversamente conforme os obstáculos que encontra no caminho), como
nos proporciona o sentido de equilíbrio e orientação nesse espaço. O ouvido interno é um órgão
11
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
duplo formado pela cóclea onde é feita a análise dos sons e o vestíbulo que fornece os dados sobre
a verticalidade e o movimento do corpo. A informação conjunta fornecida ao cérebro em simultâneo
pela cóclea e o vestíbulo, faculta-nos a percepção auditiva do que nos rodeia e, ao mesmo tempo,
localiza-nos no espaço onde nos encontramos.
Segundo Tomatis, é a própria vontade de escutar que estimula o desenvolvimento fisiológico do
ouvido: "a escuta existe previamente e determina a sua função que decide a construção do aparelho
auditivo" (Tomatis, 1999:149). Assim sendo, é a necessidade de ouvir que dá origem ao ouvido. O
que contraria a ideia mais comum de que a audição (ou outro sentido qualquer) é efeito da
preexistência de um órgão adequado e de que a formação deste é causa que precede qualquer
necessidade de comunicação. Aliás, o ouvido não é o único órgão capaz de sentir os efeitos do som:
a pele, todo o nosso corpo vibra com o som. As nossas entranhas vibram com os sons de muito
baixa frequência (por vezes tão baixa que escapa mesmo ao ouvido).
Se a alguns sons é difícil atribuir uma intencionalidade – um trovão, um chiar de travões, o marulhar
das ondas – muitos outros devem-se a um expresso propósito comunicacional – um rugido, uma
buzinadela, uma campainhada. E, evidentemente, a voz humana: a palavra, a poesia e o canto. Mas
independentemente da sua origem, ou da possibilidade de lhe podermos reconhecer uma clara
intencionalidade, não deixamos de procurar sentido em todo o som que ouvimos. É nesse acto
voluntário que se instaura a escuta: na necessidade de seleccionar o som que significa (para poder
decidir o que significa o som). Não se pode entender a audição como simples reacção biológica
instintiva ao ambiente que nos rodeia. O modo como activamente escutamos determina a nossa
percepção do mundo. "O apanágio do ouvido não é ouvir mas saber o que ouvir" (Tomatis,
1999:28).
"A audição é o principal instrumento pelo qual comunicamos com o mundo exterior em geral e com
os outros seres humanos em particular" (Plomp, 2002:131). É essencial para o nosso modo de vida
em sociedade no qual a necessidade de comunicar se tornou tão premente (mesmo se o que
comunicamos é muitas vezes aparentemente fútil ou até inútil). O nosso quotidiano social depende
da produção e percepção de todo o tipo de sinais sonoros. Uma parte destes sons é codificado e
organizado no que designamos por linguagem. Embora ainda haja muito por conhecer, a produção
sonora e a escuta associadas à linguagem têm sido bastante estudadas. Sabemos como a
linguagem enforma a nossa percepção do mundo ao condicionar o modo como nos habituamos a
12
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
pensar (seguindo um raciocínio lógico e verbal), como claramente mostra Flusser (1962), embora
isso não nos diga muito sobre o som em si. A língua, o vocabulário usado, os modos de enunciação
empregue..., tudo são sinais a que temos acesso pela escuta.
O autor que talvez mais se empenhou em demonstrar a importância da escuta na vida humana foi
Alfred A. Tomatis. Segundo ele, o ouvido não só tem um papel fundamental na nossa vida
quotidiana e social como é determinante para o nosso desenvolvimento equilibrado e saudável (de
corpo e mente) desde o útero. "É a partir da voz da mãe encarada no seu aspecto maternal que se
instala a estrutura relacional, na qual o desejo de comunicar encontra os seus pontos de apoio"
(Tomatis, 1999:151). Tomatis investigou o processo de formação do ouvido durante a gestação e
verificou que toda a nossa existência depende do que e do como escutamos. Segundo ele, o ouvido
"é um dínamo que permite ao cérebro estar sempre carregado de potencial eléctrico" (Tomatis,
1995: 84). Quanto mais desenvolvemos (educamos) a escuta, mais ampliamos a nossa acuidade
perceptiva, mais ganhamos consciência do que nos rodeia.
Ao mesmo tempo, o seu trabalho e o resultado da respectiva aplicação prática no tratamento de
insuficiências auditivas mostram como a audição é uma competência aprendida e não inata. Saber
escutar não depende apenas da posse de um aparelho auditivo saudável mas de um treino, de um
exercício continuado. A premissa de que a audição é resultado duma aprendizagem e não uma
reacção natural de um sentido inato, é importante como sustentação da relevância desta tese. Se a
audição não passasse de uma resposta inata e automática a um determinado tipo de estímulo,
qualquer investigação sobre o som seria irrelevante para as ciências sociais e apenas poderia
despertar o interesse da Física ou da Fisiologia.
Para além do que permitem conhecer essas ciências, está a complexidade do fenómeno que é a
percepção auditiva. Esta ultrapassa a função sensorial natural e envolve um processo de selecção
daquilo que o ouvido é capaz de sentir. Implica um comportamento activo e inteligente. Depende da
vontade e não apenas da necessidade. Alicerça-se na experiência e na cultura. Não percepcionamos
o mundo que nos rodeia de mente aberta; constantemente interpretamos o que os nossos sentidos
apreendem (Plomp, 2002). Mais do que simples avaliação das qualidades intrínsecas do som, trata-
se da percepção do sentido que esse som pode ter para nós. Cada evento sonoro sentido pelos
nossos ouvidos é relacionado com a nossa experiência anterior, contextualizado e incorporado.
Porém, esta é uma actividade quase sempre inconsciente.
13
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
A aprendizagem da escuta é um processo social e não meramente pessoal. "Crescemos numa
cultura com a ajuda da percepção dos barulhos, das sonoridades, das tonalidades e das palavras.
Esses processos começam antes do nascimento, e se intensificam depois do nascimento e na
primeira infância" (Wulf, 2007:58). O significado que atribuímos ao som não está limitado aos
códigos instituídos que possamos aprender na escola ou nos livros – como a linguagem, os sinais
de trânsito e em certa medida a música. Resulta de processos que evoluem constantemente
conforme as interacções sociais que se estabelecem entre produtores e receptores das mensagens
sonoras. A educação da escuta raramente faz parte dos currículos da escola, mesmo nos cursos de
música. Estes normalmente apenas promovem as competências específicas para o reconhecimento
dos elementos musicais considerados básicos, como o timbre e a harmonia.
Nem os códigos prevêem toda a significação que o som pode exprimir. Por exemplo, quando
falamos, uma boa parte do sentido é transmitido não pelas palavras mas pela sua enunciação, que
não está inscrita no código da língua. "Pelo balanço do timbre da voz, de sua tonalidade, de sua
intensidade e de sua articulação, o locutor se mostra ao ouvinte. Esta transmissão tem um aspecto
expressivo e social" (Wulf, 2007:58). Segundo Bakhtin, a enunciação é mesmo o mais importante
na linguagem: "para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma linguística figure num
dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada.
Para o locutor, a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si
mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível". E o mesmo é válido para o
receptor pois ele também pertence "à mesma comunidade linguística, também considera a forma
linguística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre
idêntico a si mesmo" (Bakhtin, 2006:94).
No campo dos media, alguns agentes têm, ao longo do tempo, mais ou menos sistematicamente,
envidado esforços para instituir regras de escuta que reduzam o potencial de significação dos sons
dentro de limites que permitam prever o tipo de recepção por eles induzido, integrando-os numa
espécie de linguagem. É o caso da produção de som no cinema. O cinema clássico (Bordwell,
Staiger & Thompson 2005) procurou sempre encontrar esses sentidos universais que pudessem ser
facilmente reconhecidos e descodificados por qualquer espectador independentemente do seu
referencial cultural. O esforço de codificação abarca tanto a atribuição a sons não linguísticos de um
predeterminado valor simbólico – no limite transformados em estereótipos ou clichés – como a
limitação das formas de enunciação a reportórios simplificados – por exemplo, os fixados em14
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
determinados géneros cinematográficos: drama, comédia romântica, musical, western, terror,
policial, kung fu. Mas nenhuma codificação esgota o potencial significativo do som, que depende
sempre em última instância do modo como aprendemos a escutar.
2.1.2. Condenados à escuta
“Não existe essa coisa do silêncio. Há sempre algo a acontecer que produz som.” (Cage, 1961:191)
Como podemos ignorar todo o som que nos rodeia vinte e quatro horas por dia, em todo o lado e a
toda a hora? A nossa vida quotidiana é crescentemente invadida por uma miríade de sons
produzidos mecânica ou electronicamente. A "paisagem sonora" (Schafer, 2005) que nos envolve é
repleta de vozes, música e ruído. "Tudo tem o seu som – mesmo os objectos silenciosos.
Conhecemos os objectos silenciosos batendo-lhes. A caixa está vazia, o vidro é fino, a parede oca"
(Schafer, 2005:7). Tudo o que existe é potencialmente uma fonte sonora. O tipo de som, e o modo
como o produz, participam na caracterização de cada ser. É geralmente nomeando a fonte sonora
que identificamos o som, embora alguns sons tenham direito a nome próprio: grito, trovão, chilreio,
zumbido, rugido, ...
A vida urbana é particularmente ruidosa. Não será rigoroso dizer que nos habituamos ao ruído, mas
é o silêncio que mais parece nos aborrecer. Tendo reduzido, na paisagem sonora contemporânea, a
quantidade de ruídos mecânicos, herdados da revolução industrial, sentimos a necessidade de os
replicar nos actuais equipamentos electrónicos, cujo funcionamento é inquietantemente silencioso.
Quase nenhuma das actividades do nosso dia a dia está isenta de algum tipo de evento sonoro.
Mais do que acompanhar, os sons impõem um ritmo à nossa vida: no nosso telemóvel ou
computador, a cada gesto nosso, a cada tarefa cumprida corresponde um chilrear, uma frase
musical; ou então é um bip, ou cranc, ou plop desagradável que nos informa de que algo corre mal.
Cada loja do centro comercial que visitamos impõe-nos um tema musical de acordo com a moda do
momento ou o estilo de vida com que pretende identificar-se. Em todo o lado, o ruído dos motores e
do trânsito automóvel... A todo o momento há algo que soa.
A humanidade foi transformando a paisagem sonora que a rodeia: aos sons da natureza, foi
acrescentando os mecânicos, os electrónicos e os digitais. Música e ruído aumentam em
15
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
quantidade e em intensidade. Estão presentes em tudo e em toda a parte. O som, ou mais
propriamente o áudio – versão eléctrica e agora digital do som –, integra praticamente todos os
media que quotidianamente utilizamos – cinema, televisão, computador, telemóvel – e pode
mesmo, por si só, constituir-se num medium autónomo – a rádio, o CD, o MP3, o podcast.
Os equipamentos ditos de registo e transmissão de som foram invadindo o nosso habitat natural
quase sem darmos conta. O telefone, a rádio, a televisão e a internet fazem já parte do nosso
habitat, já foram naturalizados. Outros tornaram-se rapidamente obsoletos e estão em vias de
extinção: o gira-discos, o Walkman, o Discman, o Minidisc, o DAT,… Os media portáteis, do primitivo
transístor ao mais recente smartphone, permitem comunicar via áudio em qualquer momento e em
qualquer lugar. Jovens (e menos jovens) adquiriram o hábito de usar constantemente enfiados nas
orelhas "fones" (auscultadores) com que escutam repetidamente as suas músicas favoritas.
Conversar ou trocar mensagens ao telemóvel deixou de ser uma utilidade para se tornar num
passatempo, quando não num vício. Cada vez mais, construímos ou deixamos que construam para
nós a banda sonora do nosso dia a dia.
O som (cada vez mais o artificial e menos o natural) está presente nas nossas vidas vinte e quatro
horas por dia. Os ouvidos não têm pálpebras, não podemos abrigar-nos do chinfrim que nos
envolve. E o som é tão permanente e contínuo que a maior parte do tempo nem temos consciência
da sua presença. Normalmente, ouvimos apenas o suficiente para estabelecer uma relação de
sentido com o que vemos, sem verdadeiramente escutarmos.
A maior parte do tempo, ouvir é como respirar: um acto reflexo que depende da presença da
atmosfera que nos envolve. A este nível a audição não passa de uma resposta automática aos
estímulos do meio. Percepcionamos vulgarmente o som como parte integrante de um ser (vivo ou
inanimado), indício da sua existência e presença, mero subproduto da acção mecânica sem
qualquer outro valor significante. No dia a dia não costumamos dar-lhe mais atenção do que aquela
que é necessária à nossa sobrevivência: os ruídos do trânsito quando temos de atravessar a rua, as
vozes dos colegas que se nos dirigem com uma questão de trabalho.
Se dedicamos uma maior atenção a alguns sons é porque os consideramos avisos úteis e por vezes
vitais: o toque do despertador pela manhã, a buzinadela de uma automóvel, a voz da pessoa que
não queremos encontrar, o rugido ou o uivo de um animal selvagem. São geralmente desagradáveis
16
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
e de intensidade elevada. Provocam em nós uma atitude de alerta para o que acontece à nossa
volta. Aos sons a que não reconhecemos uma utilidade imediata atribuímos uma função estética. A
sua apreciação torna-se então uma questão de gosto. Demasiado subjectivo para que lhes
possamos atribuir um significado preciso e consensual.
A presença do som é geralmente tida como uma evidência e uma inevitabilidade. Não estamos
habituados a reflectir sobre a intencionalidade com que os sons são produzidos. Existem ou
acontecem. Interessam ou não. Incomodam ou agradam. E pouco mais... Ouvimos como
respiramos ou caminhamos, sem consciência de o fazer. Não entendemos cada evento sonoro
como um acto deliberado de comunicação.
2.1.3. As três escutas
A maior parte dos sons que escutamos no dia a dia é, contudo, produzida com a intenção de
comunicar algo mais do que a presença do seu produtor. O som da fala é o que mais explicitamente
cumpre essa vontade. Mas todos reconhecemos essa intenção na música e nos ruídos que usamos
como avisos sonoros que alertam e informam sobre o que se passa à nossa volta. É o que acontece
também com todos os sons que nos chegam pelos media que fazem uso do áudio. A própria
existência da mediação é sinal evidente de uma dupla intencionalidade: 1) não apenas a vontade de
nos fazer chegar os sons mas também 2) a de que esses sons produzam em nós um algum
sentido.
Não devemos ignorar que toda a cacofonia que nos é imposta como inevitável na sociedade
contemporânea não resulta apenas da circunstância factual de existirmos numa civilização que se
foi recheando de máquinas barulhentas (até porque isto é cada vez menos verdade). Corresponde
sim a uma estratégia de poder com o fim de ensurdecer para finalmente silenciar. É essa uma das
funções que Attali (2009) atribui à música e que se pode estender à generalidade do som produzido
nesta nossa sociedade dita civilizada. A produção de som de grande intensidade é um exercício de
poder, que actua como uma censura física e psicológica, que impede o outro de pensar e de se
fazer ouvir. "Nas estruturas despóticas, onde o corpo da terra e do som é apropriado pelo poder
mandante, o som passa a ser privilégio do centro despótico, e as margens e as contestações
tendem a se tornar ruídos, cacófatos sociais a serem expurgados" (Wisnik, 1999:34).17
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Simultaneamente o som organiza-se como música para, à semelhança do que afirma Martins
(2011b:132) acerca da “imagem tecnológica”, simular a “transparência e a harmonia do mundo, ao
projectar uma beleza que não fana, uma juventude que não fenece e uma saúde que não é
corruptível”. Uma harmonia ilusória, que não pertence ao mundo real mas a um outro virtual que a
música organiza. Uma tripla acção sonora – "fazer as pessoas Esquecer, fazê-las Acreditar, Silenciá-
las" (Attali, 2009:19) – promove a passividade dos sentidos e alimenta uma atitude de
inconsciência para o que nos rodeia.
Só com algum esforço de atenção nos apercebemos de todos os sons que chegam aos nossos
ouvidos. Se não nos concentramos numa atitude de escuta e, em vez disso, nos satisfazemos com
um ouvir superficial, não tomamos consciência da paisagem sonora que nos rodeia, da dimensão
da sua artificialidade, do modo como enforma a representação que fazemos do mundo e de nós
próprios. "Escutando o ruído, podemos entender melhor onde a insensatez dos homens e dos seus
cálculos nos conduz, e que esperança é ainda possível" (Attali, 2009:3).
É portanto necessária uma diferente atitude de escuta. Chion (1994) redefine os conceitos
anteriormente estabelecidos por Schaeffer na sua obra Tratado dos Objectos Musicais (2003) e
sistematiza três tipos de atitude do ouvinte: escuta causal, escuta semântica e escuta reduzida
(Chion, 1994). Escuta causal é a que se satisfaz com o simples reconhecer da origem ou fonte do
som, com identificar a sua causa. Este reconhecimento não é sempre fiável: nem todos os sons têm
características que os distingam inequivocamente e o ouvido pode ser iludido com a presença visual
de uma aparente fonte sonora. O cinema e o audiovisual aproveitam-se deste facto para criar
associações fictícias entre imagens visuais e sonoras. Escuta semântica é a que permite identificar
e interpretar um código ou uma linguagem ou, mais genericamente, procura significação em cada
som que ouvimos. Enquanto a escuta causal se fica pela identificação da fonte sonora, a escuta
semântica quer saber qual é o sentido de ela soar. Escuta reduzida é a que busca para além da
origem mecânica ou biológica do som e para além do sonoro organizado em código; interessa-se
pelas características próprias do som. Em certa medida, obriga a uma abstracção da causa e do
sentido do som, isolando-o artificialmente da realidade em que existe. É necessária para uma
análise científica, mas pouco útil na vida quotidiana em que temos de perceber o sentido e reagir
aos sons de imediato. As três escutas não se excluem mutuamente. Funcionam antes como três
níveis diferentes, sucessivos em complexidade mas não em cronologia, pois acontecem quase em
simultâneo. Mesmo uma escuta reduzida não pode excluir o conhecimento do contexto em que o18
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
som é produzido, especialmente quando se estudam as suas características intrínsecas para
procurar conhecer em que medida influenciam o sentido.
2.2. O SOM COMO OBJECTO DE ESTUDO
Até recentemente, o estudo do som não mereceu a atenção de muitos investigadores, para além de
algum interesse no seu modo de funcionamento, sobretudo nos campos da acústica física e da
audição musical. Estudar o som no audiovisual é uma tarefa improvável que parece destinada ao
fracasso. Desde logo, porque a tendência dominante é considerar o cinema e o audiovisual como
media essencialmente visuais. No audiovisual, só a componente visível é entendida como
significante e a audível tida como efeito do movimento perceptível naquela, sem um sentido próprio.
Mesmo o som da voz humana só é tido como significante na medida em que é percebido como
linguagem. Ao ruído e, sobretudo, à música é concedido algum poder de influir emocionalmente no
espectador; mas este efeito parece demasiado subjectivo para que a um ou a outra seja atribuído
um sentido intrínseco, minimamente independente da interpretação individual de cada ouvinte.
A desvalorização do auditivo em relação ao visual não é exclusivo da análise do audiovisual. É uma
prática quotidiana. Estamos mais habituados a ignorar os sons que nos rodeiam e que
consideramos insignificantes do que a dar atenção aos que valorizamos. Vivendo numa sociedade
que considera a visão como o sentido que promove o conhecimento, aceitamos sem questionar o
predomínio do visual sobre o auditivo. Numa sociedade em que o valor financeiro é a medida de
todas as coisas, o baixo custo da produção áudio – cerca de 3% do total do orçamento de um filme
de Hollywood –, muito provavelmente, concorre para o menosprezo pelo contributo do som para a
comunicação audiovisual.
Deixando de lado o preconceito financeiro, duas grandes ordens de dificuldade se apresentam ao
investigador: 1) a predominância da visão como único sentido capaz de objectividade na apreensão
do mundo que nos rodeia; 2) a natureza efémera e imaterial do fenómeno que é o som, que o torna
quase impossível de constituir como objecto de estudo científico.
19
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2.2.1. Visualismo
No seu livro Listening and Voice, Ihde (2007) reflecte sobre aquilo que designa como “visualismo”.
“Este visualismo pode ser tomado como uma sintomatologia da história do pensamento” (Ihde,
2007:6). O conceito quer significar a tendência, que se verifica na nossa civilização e que domina a
quase totalidade do pensamento ocidental, para privilegiar o sentido da visão como modo de
percepcionar o universo. A própria ciência, cujo desenvolvimento muito se deve à invenção de
instrumentos que ampliam a visão (do telescópio ao microscópio), ainda não se libertou
completamente deste paradigma visual, “paradigma das substâncias, das coisas e dos estados de
coisa” (Martins, 2011:23).
Ihde localiza as origens desta “redução ao visual” na filosofia grega clássica: “A sua origem reside
não tanto numa propositada redução da experiência ao visual como na glória da visão que já estava
no centro da experiência da realidade grega” (Ihde, 2007:6). Já Heródoto fazia notar que as pessoas
do seu tempo (quatro séculos antes de Cristo) tinham menos confiança nos ouvidos do que nos
olhos (Histórias, Livro 1, capítulo VIII). Por seu lado, McLuhan (1962) identifica como momento
chave do início deste predomínio do visual o aparecimento da escrita e a passagem de uma
civilização apoiada na oralidade e na auralidade a uma outra fundada na visibilidade. Opiniões no
mesmo sentido são expressas por Ong (2012) e Eisenstein (2005).
Ainda segundo Ihde, da “redução ao visual” chegou-se a uma “redução visual”, estádio em que a
sensação se separa da coisa sentida e que marca a “criação de uma 'atitude teórica', um estádio
em que uma construída ou hipotética entidade, autónoma de qualquer experiência perceptual,
começa a assumir o valor de verdadeiramente 'real'” (Ihde, 2007:9). Ou seja, o momento em que os
efémeros fenómenos experimentados pelos sentidos são materializados, tornados objectos, fixados
pela visão científica.
"O senso comum identifica a materialidade dos corpos físicos pela visão e pelo tato. Estamos
acostumados a basear a realidade nesses sentidos" (Wisnik, 1999:28). Se considerarmos os objectos
quotidianos da nossa visão, verificamos que são seres a que reconhecemos uma materialidade
quase táctil, uma forma, um contorno: árvore, cadeira, gato,... Pelo contrário, os sons “não
aparentam à audição ter formas ou tamanhos definidos; não aparentam ter massa, serem sólidos
ou fluir. Não podemos agarrá-lo ou sentar-nos num som” (O'Callaghan, 2007:5). Individuar objectos
20
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
de audição em entidades autónomas apresenta enormes dificuldades. Ao não integrarem o mundo
material, os sons são percebidos como atributos audíveis dos objectos que vemos (ou vimos antes).
Mas os sons não aderem aos objectos a que os atribuímos do "mesmo modo que a cor, a forma ou
a textura ou o gosto" (O'Callaghan, 2007:5) parecem fazer.
O som é sempre um evento efémero. Para além de parecer desmaterializar-se entre o momento em
que é produzido e aquele em que surge nos nossos ouvidos, o som tem uma duração que lhe é
intrínseca. Normalmente esta é curta. Mas nem sempre cada um destes eventos é destrinçável do
todo sonoro que nos envolve e que, por sua vez, é percebido como um som longo cujas qualidades
variam no tempo. Só um som sintetizado pode manter-se igual por um tempo indefinido (embora o
nosso ouvido não o perceba obrigatoriamente como constante).
Esta imaterialidade do som é uma dificuldade sobretudo quando, como alega O'Callaghan (2007:2),
“o 'visuocentrismo' moldou a nossa percepção e o papel desta”, e se pretende estudar a percepção
auditiva com as mesmas ferramentas usadas para a percepção visual, tratando estas duas
modalidades de percepção como idênticas. Como de facto não o são, tudo o que não se enquadra
nos parâmetros usados para a visão potencialmente escapa à análise, não permitindo apreender
completamente a totalidade da riqueza de sensações aportada pelos outros sentidos.
Ainda segundo O'Callaghan, não está em causa apenas a natureza fugidia e efémera dos sons. “O
imediatismo da nossa consciência auditiva dos objectos vulgares não coincide com a da visão e
temos a sensação de que pela audição nos afastamos dos objectos quotidianos e dos
acontecimentos de que eles participam” (O'Callaghan, 2007:5). E é assim porque os sons são
simultaneamente percebidos como produzidos pelos objectos e independentes deles. Se num
primeiro instante os identificamos como gerados pelo objecto imediatamente se libertam desta
âncora material e se tornam autónomos. O som não tem o carácter táctil associado aos objectos da
visão. Tal como o ar que o sustenta não se deixa agarrar.
Assim, a dificuldade em objectivar os sons permanece. O nosso ouvido é capaz de destrinçar os
vários sons dentro do contínuo sonoro que nos envolve, mas não lhes pode atribuir massa, nem
volume, nem contorno (senão abstracta e metaforicamente). O som tampouco obedece ao princípio
físico de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. O som chega aos
nossos ouvidos como uma única onda complexa, que resulta da mistura de todas as vibrações
21
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
produzidas pelas diferentes fontes sonoras, e que não é fisicamente possível de desemaranhar. São
o nosso ouvido e a nossa percepção que operam a distinção dos diversos sons. Ao contrário do que
acontece com os objectos da visão, os sons não só coexistem no espaço e no tempo como essa é a
própria regra da sua existência.
A ideia de que a visão é um sentido mais fiável do que a audição (ou qualquer outro) não está
provada. Pelo contrário, estudos sobre a percepção auditiva (nomeadamente os de Tomatis já
citados) demonstram a superioridade da audição no que diz respeito à acuidade e detalhe da
informação registada. No entanto a visão continua a ser tida como o sentido capaz de contribuir
com os dados mais objectivos e a mais autorizada fonte de factos. As ferramentas de análise a que
estamos habituados são visuais: duvidamos da precisão da audição. Considerado secundário para a
percepção adequada do mundo, o sonoro tem sofrido de uma "desatenção ao soar das coisas que
levou à gradual perda de compreensão de toda uma gama de fenómenos que estão aí para ser
assinalados" (Ihde, 2007:13).
O visualismo de que falam Ihde (2007) e O'Callaghan (2007) pode igualmente explicar porque nos
estudos sobre cinema e audiovisual é privilegiado o estudo da imagem visual. A dominância da
visão repercute-se no nosso quotidiano e na nossa linguagem: dizemos ver um filme quando de
facto se trata igualmente de o escutar; dizemos ponto de vista para significar a nossa opinião;
falamos de campo e de fora de campo; de som in e de som off referindo-nos à relação do que
escutamos com o que vemos no ecrã.
É difícil escapar a este visualismo impregnado na linguagem ao fazer um discurso chamando a
atenção para o som. Mesmo os investigadores mais experimentados caem na armadilha de
pretender fazer o elogio do som redigindo afirmações como esta: “a nossa principal informação
sobre a organização do meio que nos rodeia vem da visão” (Bordwell & Thompson, 2008:264). Ora,
para além da falta de prova científica que a sustente, esta afirmação está imbuída do preconceito de
uma pretensa hierarquia dos sentidos, que um discurso que se pretende científico não deveria
consentir.
O preconceito, bastante comum mesmo entre cientistas, é quotidianamente posto à prova pela
crescente presença de meios electrónicos e digitais sonificados. “A sonificação define-se como o uso
do som (não linguagem) para veicular informação. Mais especificamente, sonificação é a
22
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
transformação de relações entre dados em relações perceptíveis num sinal acústico com o propósito
de facilitar a comunicação ou a interpretação” (Kramer et al., 1997:4). A crescente necessidade de
associar sons a equipamentos cujo funcionamento é silencioso ou usar sinais sonoros em
substituição de outros visuais vem em abono da importância do som e da audição na nossa
interacção com o meio envolvente.
O'Callaghan argumenta contra a sobrevalorização da visão contrapondo que a audição é um sentido
capaz de uma percepção igualmente rica do ambiente que nos rodeia: “Sem mais do que a audição
somos capazes de discernir o género de coisas que nos rodeia, o que está a acontecer a essas
coisas, a duração dessas actividades e o local onde isso ocorre” (O'Callaghan, 2007:3). A maior
parte do tempo, é precisamente por essa capacidade de ouvimos tudo o que se passa nos 360º
(em todas as direcções) à nossa volta que sabemos para onde devemos orientar a nossa visão. Por
outro lado, a capacidade de perceber as pequenas gradações sonoras (de um discurso ou de uma
peça musical, por exemplo) dificilmente tem equivalente na visão. "A audição supera a visão na
capacidade de detectar mudança e de monitorizar múltiplas fontes de informação" (O'Callaghan,
2007:9).
Wisnik vai mais longe, sublinhando o valor transcendental do som que nos permite ir além do que a
experiência material do mundo nos permite perceber: "O som tem um poder mediador, hermético: é
o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível. O seu valor de uso mágico
reside exatamente nisto: os sons organizados nos informam sobre a estrutura oculta da matéria no
que ela tem de animado" (Wisnik, 1999:28).
Noutro sentido, Martins, considerando que a era actual, em que a nossa visão é cada vez menos
directa e cada vez mais mediada pelos ecrãs electrónicos, é igualmente a de uma pós-moderna
crise cultural, preconiza a “figura de fluxo” como a melhor “chave de compreensão deste
movimento de translação da cultura ocidental” (Martins, 2011:23). Ora, “a figura do fluxo convive
bem com a figura do som. (...) Viver sob o signo do fluxo, seja este luz, som ou sensibilidade,
significa viver segundo o paradigma do tempo e da audição, e não do espaço, nem da visão”
(Martins, 2011:23). Parece isto querer dizer que o entendimento do sonoro pode ser parte da chave
para a compreensão desta crise da nossa cultura.
23
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2.2.2. Invisibilidade
“Há mais essa peculiaridade que interessa ao entendimento dos sentidos culturais do som: ele é um
objecto diferenciado entre os objectos concretos que povoam o nosso imaginário porque, por mais
nítido que possa ser, é invisível e impalpável.” (Wisnik. 1999:28)
É tentador, e quase inevitável, encontrar uma correspondência entre a invisibilidade a que o som tem
sido votado (sociologicamente falando) e a natureza invisível do som (consideradas as suas
propriedades físicas). A metáfora assenta no facto de o som não ser perceptível por meio da visão,
de modo nenhum numa qualquer relação de causa e efeito entre uma coisa e outra. Não parece
haver uma relação directa entre a audição enquanto fenómeno sensitivo e o valor social atribuído ao
som. O acto de ver é tido como uma actividade consciente, mas a escuta parece escapar à
necessidade de qualquer vontade. A audição parece fugir ao nosso controle e por isso inadequada a
participar no entendimento racional do mundo. Condicionados a dar prioridade ao que é visível, o
que ouvimos merece-nos pouca confiança. Não acreditamos que nos permita percepcionar o mundo
com rigor e objectividade.
Podemos distinguir várias dimensões da invisibilidade do som. A primeira é que nem ele nem os
seus efeitos directos são perceptíveis visualmente. Podemos observar a vibração de uma corda de
guitarra ou do diafragma de um altifalante, podemos visualizar a representação gráfica do espectro
sonoro no ecrã do nosso computador, podemos ler uma partitura musical. Mas esta sensação visual
que permite, por algum tipo de transposição, analisar e identificar certas características físicas do
som, é de natureza completamente diversa da sensação auditiva.
O som tem uma existência incorpórea. Precisa de matéria para existir, mas a sua natureza é apenas
vibração dessa matéria que não faz parte de si. Não há objectos materiais de audição. Em
contraste, a visão precisa sempre de um objecto, de um referente corpóreo que pode ser detectado
por outros sentidos (sobretudo o tacto). Sem os objectos materiais a luz não se deixaria ver; mas, ao
contrário do que acontece com o som, que emana e se liberta do objecto, a luz parece fazer parte
dele.
Outro modo de invisibilidade acontece com a chamada mediação do som. Jensen (2006:17)
observa que "a familiar dicotomia entre comunicação 'mediada' e 'não mediada' parte do princípio
de que o corpo humano, emitindo sons e outras expressões, não se qualifica como um meio de
24
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
contacto e troca, mas de alguma forma comunica directamente". A distinção é portanto arbitrária e
podemos sempre considerar existir mediação mesmo se a comunicação é efectuada sem a
intervenção tecnológica (em meio natural, digamos). Em termos físicos e fisiológicos não existe
qualquer diferença entre o som que chega aos nossos ouvidos directamente da fonte sonora e o que
nos chega mediado por um sistema áudio. São ambos vibrações provocadas no ar (um pela fonte
original, outro pelo altifalante) que atingem o nosso ouvido. Entre o som original e o som
representado, a distinção não é evidente. Podemos rapidamente identificar diferenças entre um e
outro quando são notáveis as limitações do meio técnico usado ou quando simultaneamente
podemos comparar o som mediado com a escuta directa da fonte sonora, mas não mais. Hoje em
dia, a alta fidelidade atingida pelos media áudio já não introduz no som as distorções que há poucas
décadas permitiam identificar inequivocamente a mediação.
Os efeitos da mediação são distintos para visão e audição. Enquanto a imagem visual é percebida
como representação de qualquer coisa outra, diferente de si, o som parece reproduzir-se a si
próprio. Temos a ilusão de que a sua mediação não passa de uma mera apresentação diferida (no
tempo e no espaço) do original.
A audição é mais tolerante do que a visão. Não tende a perceber o mundo como um amontoado de
coisas concretas e invariáveis no tempo. Apreende o movimento e a variação. Está habituada a
desvalorizar constantes pequenas gradações no timbre e na intensidade dos sons provocadas pelas
mudanças do ponto de escuta ou do clima. É preciso ter presente que a sonoridade que atribuímos
a uma fonte não é uma característica fixa: uma série de variáveis acústicas (como a distância entre
o ouvinte e a fonte sonora, ou o espaço em que um e outro se encontram) podem modificar a nossa
percepção do timbre, da intensidade ou do ritmo de um qualquer som. Além disso, na procura de
sentido para o que escutamos descartamos muitos dos sons captados pelo nosso ouvido.
O nosso ouvido está habituado às distorções que o som pode sofrer. É mesmo capaz de compensar
essas distorções desde que elas não sejam tão extremas que impeçam a percepção do sentido
daquilo que escutamos. Não me refiro aqui a alucinações provocadas por uma qualquer
perturbação fisiológica, mas simplesmente ao facto de sermos capazes de reconstruir um discurso
ou uma frase musical incompletamente recebidos pelo nosso aparelho auditivo. Este sofisticado
processo perceptivo permite-nos fazer sentido a partir de informação auditiva incompleta.
25
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
A relativa tolerância da audição a ruídos que povoam o nosso ambiente permite que muitas das
distorções introduzidas pelo equipamento técnico usado na mediação sejam praticamente
inaudíveis. Por exemplo, a representação do som por sistemas de áudio monofónico não elimina
completamente do sonoro a tridimensionalidade do espaço, que a objectiva duma câmara reduz a
duas dimensões. Seja porque o registo mantém a relação de profundidade (da proximidade e do
afastamento das fontes sonoras), seja pelo contributo acústico da sala de escuta, seja por uma
(re)construção perceptiva operada no processo da audição, a imagem sonora de um espaço tende a
parecer mais real do que a sua representação visual. Esta terceira dimensão que o som acrescenta
à bidimensionalidade da imagem visual expande o audiovisual para além da superfície do ecrã.
A falta de concretude torna a ligação que estabelecemos entre a fonte e o som escutado puramente
circunstancial. A adesão do som à fonte a que o associamos resulta de uma certa dose de
convicção perceptiva, que carece do testemunho de algum dos outros sentidos e que vamos
acumulando na nossa experiência de vida. Acreditamos ser capazes de identificar o objecto a que
atribuímos a causa do som, mas somos facilmente enganados pelo ouvido. A probabilidade de
ilusão aumenta quando o som é mediado, a fonte se torna (ainda mais) virtual e a sua identificação
mais especulativa. O mais óbvio aproveitamento desta ilusão auditiva acontece com o chamado
playback: é-nos mostrado alguém que parece falar ou cantar mas está apenas a mimar a
vocalização, enquanto os altifalantes difundem uma gravação efectuada previamente do mesmo
discurso ou canção. Não podemos ter a certeza se a voz que ouvimos a um actor num filme é
mesmo a dele, se não tivermos anterior conhecimento de como soa esse actor. Boa parte dos
ruídos que escutamos nos filmes, e que nos parecem tão reais e adequados, não têm qualquer
ligação com o objecto ou a acção que aparentemente os produz. Tendo como única referência a
acção visível no ecrã é a ela que atribuímos a produção do som, não tendo, ou suspendendo por
momentos, a consciência de que na verdade o som provém dos altifalantes.
2.2.3. Afinal o que é essa coisa a que chamamos som?
Invisibilidade e efemeridade são duas características que tornam o fenómeno sonoro esquivo a uma
definição. O som mais parece coisa do domínio do espiritual do que do real: qualquer coisa de
imaterial, que transita de um corpo que lhe dá origem para outro corpo que a recebe e reconhece,
26
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
mas não tem um corpo próprio que se possa tratar como um objecto e como tal se possa estudar.
Há algo de fantasmático no som, que o faz escapar ao pensamento racional, para o qual facilmente
se pode confundir com uma alucinação.
“Se os sons tal como os percebemos não exibem as marcas comuns dos itens do mundo visível e se
não são características evidentes desses mesmos itens, isso pode encorajar-nos a acreditar que os
sons não têm uma residência natural no mundo. Por sua vez isto pode levar-nos a entender os sons
como não existindo senão na nossa mente.” (O'Callaghan, 2007:6)
Segundo Maclachlan (1989), parafraseado por O'Callaghan (2007:7), os sons “são sensações
causadas pelas coisas e acontecimentos do mundo mas não habitam esse mundo". Só há dois
momentos em que o som se materializa: primeiro, em qualquer coisa que identificamos como
causa ou fonte sonora e, seguidamente, no nosso ouvido. No intervalo de espaço e de tempo entre
a produção e a recepção o som parece não ter existência. Emanação do ser que o provoca ou
estímulo que despoleta a audição, o som ilude a necessidade de lhe encontrarmos uma identidade
própria.
A Física explica o som como vibração propagada pelo movimento sucessivo das moléculas do ar (ou
outro meio de transmissão natural) que liga a fonte que origina a vibração ao ouvido que a recebe.
“O som pode ser definido como um movimento ondulatório do ar, ou de outro meio elástico
(estímulo)", ou como "a excitação do mecanismo da audição, que resulta na percepção sonora
(sensação)” (Everest, 2009:1). Mas o som não é esse mesmo ar que vibra. E nem todas as
vibrações do ar são capazes de estimular o ouvido de modo a serem entendidas como som: é
necessário que tenham as características certas de frequência e intensidade.
Por outro lado entre as propriedades físicas do som (passíveis de uma medição científica) e a
resposta auditiva não há uma correspondência directa. É por isso que para falar do som se usam
geralmente duas terminologias diversas: a da física e a da música. A terminologia musical é a que
mais nos aproxima da realidade perceptível pela audição.
O ouvido opera a transdução das vibrações do ar que atingem o tímpano primeiro em oscilações
mecânicas e depois em eléctricas que finalmente o cérebro interpreta como som. Se em termos
fisiológicos os mecanismos do aparelho auditivo parecem já ter poucos segredos, em termos
perceptivos a audição continua a ser um processo misterioso apesar de todos os esforços
27
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
investigativos da psicoacústica (Howard & Angus, 2006; Toole, 2008; Gelfand, 2010). Uma coisa é
certa, a escuta não depende apenas da existência de um ouvido saudável. Há enormes diferenças
na selecção que cada um faz dos sons que escuta e na acuidade com que distingue as suas
características. A escuta tanto significa uma redução/selecção do que é captado pelo aparelho
auditivo como uma invenção/recomposição do que ele não capta mas pela nossa experiência
sabemos que deveria existir. Isto quer dizer que uma onda sonora não é percebida como o mesmo
som igualmente por todos.
O'Callaghan propõe que consideremos o som como um evento. Segundo ele, o som não está na
acção que origina a vibração nem no meio (ar) que ao vibrar faz chegar ao nosso ouvido a sensação
sonora, mas no acontecimento em si. “São eventos em que um objecto em movimento perturba o
meio envolvente e o põe em movimento. As pancadas e os choques não são os sons mas as causas
dos sons. As ondas no meio não são os próprios sons mas os efeitos dos sons” (O'Callaghan,
2009:28). O mesmo defende Altman, chamando a atenção para as limitações que a terminologia
musical tradicionalmente usada apresenta quando queremos explicar um fenómeno tão complexo e
multidimensional como é o som. "A notação musical presume que cada som é único, discreto,
uniforme e unidimensional" (Altman, 1992:16) e é portanto incapaz de dar conta de um fenómeno
que não só é transitório e irrepetível como carrega em si uma narrativa das circunstâncias únicas
em que foi produzido: a origem, a localização, a distância. "Cada som inicia um evento. Cada
audição concretiza a história desse evento" (Altman, 1992:23). Ainda segundo Altman, esta dupla
existência, como evento e como narrativa, enriquece mas simultaneamente dificulta a nossa
compreensão do que é o som.
Para além da cor, forma ou textura, os objectos caracterizam-se por alguma imutabilidade no tempo.
Os sons, pelo contrário, só existem por variarem ao longo da sua duração. O som é indissociável do
tempo. Som é movimento, e o movimento só existe no tempo. Um som caracteriza-se por um
envelope que descreve o modo como a sua intensidade varia no tempo: como se inicia – ataque –,
mais ou menos rapidamente, a duração em que se mantêm estável – sustentação – e a velocidade
com que termina – queda.
Aquilo a que chamamos simplesmente som é uma mistura complexa de vibrações cada uma delas
com uma frequência e uma intensidade diferentes a cada instante que passa. Essa mistura única
resulta num timbre, que é característico de cada som e que denota a fonte que lhe dá origem. O
28
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
timbre também varia no tempo e com a intensidade do som, embora essa variação seja
normalmente negligenciável. Altura é o correspondente musical ao conceito físico de frequência: à
medida que a frequência aumenta, sobe a altura do som, do mais grave ao mais agudo.
O timbre, que é resultado dos modos de vibração próprios da fonte, é ainda alterado pelas
condições acústicas do lugar onde é escutado. Ao difundir-se em todas as direcções, o som
encontra obstáculos que lhe impedem a passagem e o reenviam. O resultado deste fenómeno é que
ao som original se somam estes sons devolvidos – efeito que designamos por reverberação – e dão
ao som que chega aos nossos ouvidos um novo carácter. A reverberação é o efeito que nos permite,
apenas pelo ouvido, distinguir um espaço aberto doutro fechado, um de grande dimensão de outro
mais pequeno. A reverberação altera igualmente o envelope do som, normalmente aumentando a
sua duração, em casos limite dando a ilusão de que é repetido – num efeito de eco.
Em suma, na sua efémera existência não só o som é, em si mesmo, variação, como chega a cada
ouvinte acusticamente diferente, além de que é diversamente escutado conforme as competências
auditivas de cada um. Mas a audição não se limita a constatar a realidade sonora. Ela responde a
uma necessidade de comunicar, pelo que procura sempre encontrar um sentido para o som que
chega aos nossos ouvidos. Daí que tenha desenvolvido uma grande capacidade de (re)compor tudo
o que não consegue de facto ouvir.
Tudo isto nos diz alguma coisa sobre o som, mas "muito pouco sobre que tipo de coisa é um som –
a que categoria ontológica pertence" (O'Callaghan, 2007:14). Talvez mais adequadamente o som
possa definir-se pelo seu potencial significante enquanto recurso semiótico: o que podemos
comunicar pelo som, e o que ele nos comunica (Leeuwen, 1999). O sonoro vale sobretudo pela
carga de significado que ao longo da vida aprendemos a atribuir-lhe como receptores e criadores de
mensagens sonoras.
2.2.4. Algumas breves palavras acerca do silêncio
Toda a dificuldade na definição do som, é exponenciada quando tentamos definir o silêncio.
Correctamente, não se deve definir um conceito pelo seu contrário, mas não há maneira mais clara
de definir silêncio do que dizer que é a ausência de som.
29
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
No mundo em que vivemos não existe silêncio. O que por vezes chamamos silêncio é apenas um
ruído longínquo e de baixa intensidade que permite aos nossos ouvidos relaxar por momentos da
sua constante actividade. No cinema e no audiovisual, esta relatividade do silêncio mantêm-se. Há a
necessidade de um som que passe despercebido mas que não esteja ausente, porque isso o
tornaria no silêncio que corresponde à definição utópica deste conceito: absoluta ausência de som.
Porque na maioria dos casos a ficção cinematográfica implica uma aparência de realidade, o que
passa por silêncio no cinema é uma mistura de sons que cria um ambiente calmo. Se ao construir o
som do filme pura e simplesmente deixamos espaços vazios de áudio isso não resultará na
percepção de silêncio mas na percepção de uma ausência que nos é estranha. A absoluta falta de
som é qualquer coisa que não faz parte do nosso mundo.
Em Ciências da Comunicação, silêncio geralmente significa o que não é dito; mais precisamente, o
que é não-dito, o que se esconde. O silêncio funciona assim como uma anti-comunicação da qual,
paradoxalmente, podemos tirar algum sentido. O mesmo acontece na música, da qual o silêncio (a
pausa musical) faz parte importante.
2.3. TEORIA DO SOM
É impossível ignorar a proliferação do audiovisual e a dimensão que atingiu nos dias de hoje. A
necessidade de comunicar audiovisualmente impôs-se em tal medida que mesmo os media não
incluídos naquela categoria – como os jornais e a rádio – não passam hoje sem a sua página na
internet onde disponibilizam versões audiovisuais dos seus programas e notícias. As Ciências da
Comunicação não ficaram indiferentes perante a crescente presença destes media no nosso
quotidiano. Atentas ao fenómeno, têm no entanto olhado para os audiovisuais como meios que se
dirigem à visão, dedicando-se a procurar entender o que se passa no ecrã. A escassez de produção
científica relativa ao sonoro causa alguma perplexidade se pensarmos que o áudio – versão eléctrica
e digital do som – faz parte integrante de quase todos os media que quotidianamente utilizamos e
que ao ecrã está, quase invariavelmente, associado (pelo menos) um altifalante.
Para a maioria dos estudiosos da comunicação o som não passa dum veículo para a palavra. As
suas atenções centram-se no discurso verbal, no que é dito ou não é dito. Poucas vezes no como é
dito, isto é, no mais especificamente sonoro. A música, quase omnipresente na comunicação30
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
audiovisual – sempre na TV, cada vez mais na internet –, pouca curiosidade tem despertado;
mesmo tendo a música um papel tão determinante no dirigir afectivamente a posição do espectador
perante o que lhe é comunicado (pela palavra e não só). Os outros sons – aqueles a que
genericamente chamamos ruídos – têm passado totalmente despercebidos. E se aparentemente
estes últimos não são alvo de um uso sistemático nos programas de informação jornalística (que
são talvez os mais analisados), assumem um papel essencial na publicidade e no cinema.
Numa pesquisa exploratória da literatura produzida na área das Ciências da Comunicação, apenas
encontrei referências breves e laterais ao som. Evidentemente, a esfera de acção destas ciências é
muito lata e portanto a minha pesquisa centrou-se no âmbito mais restrito do estudo dos media,
mais directamente relacionado com o meu objecto. Não aprofundei a pesquisa de estudos sobre o
som enquanto linguagem ou enquanto música, campos em que a investigação tem já grande
tradição e relativa variedade. Igualmente não inclui nesta fase os estudos fílmicos (de que falarei
mais adiante), que em certa medida parecem um caso à parte no estudo dos media, normalmente
mais dirigidos para o que se passa nos grandes meios de informação (jornalística). Fora destas três
áreas, o som parece merecer pouco interesse.
Aparentemente a dificuldade em encontrar enquadramento teórico e instrumentos de análise
adequados não afecta apenas o estudo do som. Investigadores que se dedicam à análise visual no
âmbito da semiótica social referem dificuldades idênticas. Segundo Iedema (2008:202) “se
dirigirmos a nossa atenção para imagens ou sons, muitas vezes não temos outros recursos para
lidar com eles que não sejam a intuição e o senso comum”. Evidentemente, intuição e senso
comum não são ferramentas propriamente científicas. Mas isso não pode ser pretexto para
desistirmos, porque “se não formos capazes de desconstruir as estratégias da montagem ou da
câmara, do visual e do sonoro, todo um universo de significados escapa a uma atenção crítica”.
Este trabalho tenta enquadrar-se, tanto pela prática da pesquisa como pelas proposições que nele
defendo, no âmbito da semiótica social. As noções de que a “análise semiótica social é um exercício
interpretativo e não uma busca pela 'prova científica'” (Leeuwen & Jewitt, 2008:198) e de que “não
se foca nos 'signos' mas em processos completos e socialmente significativos” (Leeuwen & Jewitt,
2008:187) parecem-me adequadas ao meu propósito, que é mais o de despertar consciências para
a importância e o papel do som do que encontrar o sentido que possamos atribuir ao que
escutamos. Afasto-me pois da semiótica entendida como um exercício de decifração de signos, que
31
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
reduz a comunicação à transmissão de informação, preferindo entendê-la como uma "disciplina que
se constitui como uma epistemologia do saber, ao indagar as condições de possibilidade de
significação" (Martins, 2002:25), que se questiona "sobre a possibilidade de um saber e sobre a
possibilidade da sua construção" (Martins, 2002:29) e que não esquece que a comunicação implica
sempre o outro.
A pesquisa de que aqui dou conta não pretende ser mais do que um exercício em busca de desvelar
como o som pode contribuir para a produção de sentido. Escrevo pode contribuir porque a
“produção do significado resulta de uma interacção contextualizada, de uma negociação dinâmica
entre os recursos cognitivos que o analista/leitor traz para a interpretação, o que está (e também
não está, mas poderia estar) de forma mais ou menos explícita” (Coelho, 2009:2), e portanto não
depende exclusivamente da produção da mensagem mas igualmente da sua recepção.
Aparentemente, a única obra que aborda o som, de modo sistemático, no campo da semiótica
social é o livro de Theo van Leeuwen (1999) intitulado Speech, Music, Sound. Neste livro o autor,
mais conhecido pelas suas obras sobre análise visual, como a que cito acima, propõe-se inaugurar
uma “semiótica do som” com o objectivo de conhecer “o que podemos dizer com o som, e como
interpretar o que os outros dizem com o som” (1999:4). Segundo Leeuwen, “uma semiótica do som
deverá descrever o som como um recurso semiótico que oferece aos seus utilizadores um rico leque
de opções semióticas, não como um livro de regras estabelecendo o que fazer ou como usar o som
'correctamente'” (Leeuwen, 1999:6). Em vez desse “livro de código” caberá à semiótica do som a
elaboração de um “catálogo anotado dos tesouros sonoros que a cultura ocidental coleccionou ao
longo dos anos, em conjunto com os possíveis usos que lhes têm sido dados, tal como se verifica
da experiência passada e presente” (Leeuwen, 1999:6).
Como ferramentas de análise, Leeuwen propõe a utilização de uma série de conceitos,
maioritariamente emprestados da área musical, para descrever os “recursos semióticos” do som,
segundo “seis principais domínios: perspectiva sonora, tempo e ritmo, interacção de 'vozes',
melodia, qualidade da voz e timbre, e modalidade” (Leeuwen, 1999:9). Perspectiva sonora, por
analogia com perspectiva visual, como uma localização dos sons representados em sucessivos
níveis de distanciação aparente (do primeiro plano ao fundo sonoro). Tempo, ritmo e timbre, são os
mesmos conceitos utilizados na música mas aplicados também a sons ditos não musicais. De
modo semelhante, a noção de interacção de vozes usada na música (no coro e na orquestra) é
32
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
transposta para a mistura de sons realizada no processo de construção áudio – reconhecendo uma
analogia entre a composição da música e a da sonoplastia. O conceito talvez menos claro – decerto
o mais complexo de compreender – é o de “modalidade”, que Leeuwen vai buscar à linguística e
que se refere à variedade de modos como um mesmo enunciado pode ser expresso, segundo o
juízo de valor que dele faz o enunciador (dramático, trágico, indiferente, irónico,...). Porém, o
conceito de modalidade tem sido usado com sentidos diversos nos estudos sobre comunicação, o
que pode tornar a sua utilização bastante equívoca.
Ao longo desta sua obra, Leeuwen repetidamente aponta a necessidade de tratar os sons como
eventos ou actos sonoros – tal como sugerido por O'Callaghan (2009) e Altman (1992) – e a ideia
de que apenas se podem sugerir significados potenciais e nunca definitivos para o som. Esta
abordagem deixa margem à suspeita de um excesso de subjectividade na interpretação do som,
contrário aos propósitos de catalogação e sistematização dos seus recursos semióticos. Ao mesmo
tempo, embora Leeuwen tente contrariar a tradição psicoacústica, que tem dominado o estudo da
recepção sonora (especialmente a musical), acaba por ir pegar nos mesmos conceitos para tentar
torná-los operacionais para uma semiótica do som, eventualmente chocando com a inadequação
desses conceitos, para a qual Altman (1992:16) já tinha chamado a atenção.
A psicoacústica (apoiada contemporaneamente na neurociência) procura explicar o modo como o
som afecta o ouvinte estudando a sua resposta fisiológica e psicológica. Tenta dar conta da relação
entre as características do som tal como a Física as define e a audição, procurando medir
objectivamente a recepção sensorial, sempre subjectiva, que o ouvinte faz dessas características.
Quem se dedica à psicoacústica “sonha ser capaz de inserir os números das suas medições numa
equação que represente um modelo da função perceptiva e predizer com precisão uma resposta
subjectiva” (Toole, 2008:457). A psicoacústica explora o aspecto sensorial da percepção auditiva
sem dar conta da totalidade das dimensões desta. Trabalhando sobre um conceito de percepção
como fenómeno preponderantemente inato, não dá conta da contribuição da aprendizagem
(sobretudo informal) para o sentido que atribuímos aos sons. Labora na certeza duma relação
causa/efeito que determina que um certo som produza uma recepção expectável.
Os resultados das investigações da psicoacústica estão na base do desenvolvimento de algoritmos
de compressão de dados digitais áudio e vídeo. Estão igualmente no centro de grande parte da
produção teórica produzida sobre o sound design, servindo de fundamentação aos manuais sobre o
33
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
assunto, que geralmente pouco mais são do que uma espécie de receituário indicando como este
ou aquele timbre, um ou outro acorde provocam no espectador tristeza, alegria ou ansiedade. A
psicoacústica constata como funciona o som sobre o indivíduo, mas não pode explicar porque
funciona.
Leeuwen convoca toda a sua experiência e os seus conhecimentos musicais e de acústica para
relacionar os parâmetros por ele definidos com o sentido que atribuímos ao som. É o modo como
aplica as suas referências culturais pessoais para sugerir explicações para o valor significante do
som que me parecem interessantes no seu livro. São os exemplos que vai dando sobre a valorização
cultural dos parâmetros escolhidos que afinal lhes concede significado. O valor semiótico do som
não vem das suas características intrínsecas, mas da valorização que socialmente aprendemos a
atribuir-lhes – aprendizagem que começa mesmo antes do nascimento, como mostra Tomatis
(1999).
Parece-me que Leeuwen fica aquém do que se propõe, não se conseguindo libertar do peso da
tradição psicoacústica, investindo talvez demasiado esforço na sistematização dos parâmetros que
elege. O próprio autor não parece muito convencido do seu sucesso, quando no fim do livro reflecte
sobre a dificuldade que é estudar cientificamente algo “cuja interpretação não é objectiva nem
subjectiva, mas inter-subjectiva”, concluindo que não há "nenhum interesse em dizer o que este ou
aquele som significa" (Leeuwen, 1999:194-195).
Mais do que catalogar e descrever os recursos semióticos sonoros, como Leeuwen defende, parece-
me que o objectivo duma semiótica social do som deverá ser perceber o como e o porquê de lhe
atribuirmos este ou aquele significado. É a consciência do condicionamento cultural (e logo social)
da escuta que deverá estar no centro duma semiótica social do som. O sentido que damos ao som
não é uma coisa inata. Depende duma aprendizagem, muita dela informal, que nos ensina como
devemos reagir a este ou aquele som: que devemos dar atenção a este e que aquele é irrelevante.
Esse estudo está por fazer. Não tenho pretensões de o tentar aqui, mas julgo que os filmes de
Manoel de Oliveira mostram como essas relações causa/efeito que nos parecem inevitáveis entre
som e sentido podem ser diversas daquelas a que fomos habituados, e como o significado que
atribuímos aos sons não é tão natural ou intrínseco como geralmente somos levados a crer.
34
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Apesar de interessante, a teorização de Leeuwen não me pareceu suficiente para fundamentar a
minha pesquisa sobre o papel do som no cinema. Os parâmetros adoptados em Speech, Music,
Sound (Leeuwen, 1999) podem ser úteis numa análise do som em si – na sua recepção isolada –
mas pareceram-me muito insuficientes para uma análise do som na sua relação com o visual, como
acontece no cinema e no audiovisual. Virei-me então para o campo dos estudos fílmicos (Film
Studies) que me é mais familiar e que conta já com alguma bibliografia relevante sobre o som no
cinema.
2.3.1. Film (sound) studies
O estudo do som no âmbito do cinema tem vindo a desenvolver-se nas últimas três décadas e a
lentamente dar origem a uma série de obras publicadas. A primeira e principal figura desta área de
investigação é sem dúvida Michel Chion. Chion é compositor de música electroacústica, cineasta,
crítico dos Cahiers du Cinéma e professor. Tem publicado obras sobre música, cinema e cineastas,
para além de vários ensaios sobre som no cinema, dentre os quais se tem destacado L'Audio-vision
(1994), publicado originalmente em 1990, editado em português em 2011. Espécie de resumo e
consolidação do trabalho desenvolvido anteriormente em La voix au cinéma (1982), Le son au
cinéma (1985) e La toile trouée: La parole au cinéma (1988), L'Audio-vision tem vindo a instituir-se
como obra de referência no estudo do som cinematográfico, sobretudo desde que a sua versão em
língua inglesa (edição americana de 1994) a tornou acessível a um público muito mais alargado.
Na sua introdução a esta edição, Walter Murch, sound designer de filmes como O Padrinho II (1974)
e Apocalipse Now (1979), escreveu: “os quatro livros de Chion erguem-se relativamente isolados na
paisagem da crítica de cinema, representando uma parte significativa de tudo o que alguma vez foi
publicado sobre o som no cinema do ponto de vista teórico” (Murch, 1994:ix). Murch referia-se a
L'Audio-vision e às três anteriores obras de Chion, já listadas acima. Chion continua a produzir
regularmente obras sobre o cinema, dentro das quais são de destacar La musique au cinéma
(1995) e Un art sonore, le cinéma (2003).
O trabalho de Chion retomou a reflexão sobre as questões do som no cinema que estavam
praticamente ausentes das preocupações de críticos e teóricos desde o advento do sonoro. Nessa
época, durante um curto período de tempo – final da década de 1920, início da de 1930 –, a35
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
grande polémica levantada à volta dos supostos malefícios da introdução do som no cinema serviu
provavelmente para reforçar o preconceito, ainda hoje vivo, de que o cinema é uma arte
(exclusivamente) visual.
Nos Estados Unidos, também na década de 1980, Rick Altman, Claudia Gorbman, Elisabeth Weis,
John Belton e vários outros investigadores dão início ao estudo do som no âmbito dos chamados
Film Studies. Altman é, em 1980, o editor do número 60 da revista Yale French Studies, totalmente
dedicado ao som no cinema, reunindo uma dúzia e meia de artigos. Na introdução, Altman enuncia
as duas “falácias” que segundo ele impediram o correcto estudo do som no cinema: a “falácia
histórica” e a “falácia ontológica” (Altman, 1980:14). A primeira reside na convicção de que o som é
uma coisa adicionada à imagem visual e que portanto “na análise do cinema sonoro podemos tratar
o som como coisa secundária, um suplemento que a imagem é livre de tomar ou deixar conforme
lhe aprouver”. A falácia ontológica estabelece que o cinema é uma arte visual e portanto “as
imagens devem ser/são os principais portadores de significado e estrutura do filme”. Altman
anuncia como objectivo daquela colecção de artigos um “novo início” para o estudo do som que
aborde o “fenómeno do filme sonoro em si, analisando as suas práticas e possibilidades, em vez de
prescrever as suas supostas funções e desvantagens” (Altman, 1980:15).
Elisabeth Weis e John Belton, por sua vez, editam Film Sound - Theory and Practice (1985), uma
outra colecção de artigos versando, como o título indica, aspectos práticos e teóricos do som no
cinema, do advento do sonoro até à data da publicação. O conjunto tenta (re)construir uma história
do cinema sonoro focada nos aspectos tecnológico e estético. O último capítulo do livro (1985:427-
445) é uma extensa bibliografia sobre som no cinema organizada e anotada por Claudia Gorbman.
Trata-se de uma actualização da bibliografia editada pela mesma autora na revista Yale French
Studies (Altman, 1980:278-286) mas da qual foi excluída a secção referente à música. Gorbman
tem sido também responsável pela tradução em língua inglesa (edições americanas) da obra de
Chion: Audio-vision: Sound on screen (1994), The Voice in Cinema (1999) e Film, a sound art
(2009).
Estas colecções de artigos deram início a uma série de estudos que têm focado diversos aspectos
do som no cinema – histórico, económico, tecnológico, estético, ... – e têm vindo a desmentir com
provas documentais muitas das ideias feitas, vulgarizadas mesmo em literatura considerada
fidedigna, que ainda hoje se reproduzem. A substituição duma mitologia do som por uma história
36
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
assente em factos comprovados tem sido talvez o seu contributo mais importante.
Aos estudos fílmicos têm faltado trabalhos que versem o som enquanto recurso semiótico. A
aceitação da psicoacústica como ciência capaz de satisfatoriamente dar conta da relação
causa/efeito entre som e sentido tem dominado. Verifica-se ainda a sujeição a uma tendência
linguística, habituada a tratar de signos cujo significado é sujeito a convenções estáveis e não
habilitada a explicar recursos que oferecem aos seus utilizadores esse vasto leque de opções
semióticas constantemente variáveis que Leeuwen (1999) refere. Além de que estas abordagens
estruturalistas lidam mal com um fenómeno que dificilmente se pode objectivar, e é necessário
analisar como evento ou acto (sonoro) que pela sua natureza varia no tempo.
Um trabalho que escapa a esta regra é The Silent Scream: Alfred Hitchcock's Sound Track de
Elisabeth Weis (1982). Nele, a autora analisa o cinema de Hitchcock, reflectindo sobre a relação
entre prática e teoria do som deste realizador, expondo o modo como a construção de sentido dos
seus filmes é promovida pela interacção entre sonoro e visual. Segundo Weis (1982:15), a sua
análise revela em Hitchcock “um estilo aural consistente que é inseparável do seu estilo visual e em
última instância inseparável do seu significado”.
O despertar do interesse pelo som no cinema nestes autores norte americanos tem
indubitavelmente motivações múltiplas. Sem querer especular sobre as razões desta atenção
renovada, julgo poder apontar duas circunstâncias que terão sido fundamentais para tal. Uma foi
com certeza a da evolução tecnológica no campo do áudio, com a redução do ruído próprio do
suporte de registo – primeiro com a implementação dos sistemas Dolby e depois com a conversão
para o áudio digital – e a introdução dos sistemas multi-canal – a estereofonia e, mais tarde, o
surround. Estas inovações foram alargando a capacidade de resposta (em termos do espectro de
frequências e das variações de intensidade) dos sistemas sonoros instalados nas salas de cinema, o
que veio trazer ao som do filme uma qualidade quase real. O aumento do detalhe perceptível na
escuta do som mediado pelo filme veio permitir (e mesmo obrigar a) um trabalho de construção
sonora muito mais sofisticado, eventualmente aumentando o seu potencial significante.
Outra motivação terá sido o despontar de uma nova geração de cineastas nos Estados Unidos.
Formados em escolas de cinema, conhecedores das teorias europeias de cinema e, em certa
medida, influenciados pela nova vaga francesa que tanto questionara o cinema fabricado em
37
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Hollywood, esta nova geração, de que se destacam em primeiro lugar Francis Ford Coppola e
George Lucas, pensava o cinema de um modo diverso do praticado nos grandes estúdios, e
valorizava o som para além dos diálogos. Tirando partido dos novos meios técnicos ao seu dispor, os
cineastas americanos puseram as experiências europeias – consideradas em Hollywood
pejorativamente como cinema de arte – ao serviço do cinema narrativo e espectacular praticado
nos grandes estúdios.
A importância que atribuíram ao som materializou-se em filmes, como THX 1138 (1971), The
Conversation (1974) e Apocalipse Now (1979), em que o sonoro assume um protagonismo pouco
comum que obriga a escutar o filme com nova atenção. Em Apocalipse Now, Walter Murch é
creditado no genérico como sound designer. Pode-se dizer que neste filme é inaugurada a criação
de um novo cargo associado a essa designação: pela primeira vez no cinema altamente
profissionalizado que é o norte-americano uma só pessoa é responsável pela coordenação de todas
as etapas do fabrico do som de um filme. Os grandes estúdios funcionam como linhas de
montagem industrial em que o som é trabalhado por uma multiplicidade de técnicos, cada qual com
a sua função, organizados em vários departamentos relativamente isolados uns dos outros, cada
qual com a sua tarefa. E ainda mais, o destaque no genérico do nome do sound designer vem
reconhecer o valor artístico do seu trabalho. Até então os trabalhadores do som só constavam da
ficha técnica, considerados sem influência na dimensão artística do filme. De todos os profissionais
ligados ao som de um filme só os compositores da música eram até então creditados com relevo
nos genéricos dos filmes.
Foi necessário esperar meio século para que a reflexão sobre o cinema se preocupasse de novo
com a capacidade significante do som. Isto, não considerando que na polémica inicial sobre o
sonoro – no final dos anos 1920 – não estava em questão propriamente a capacidade que o som
tem de produzir sentido. A discussão centrava-se mais sobre o valor que o sonoro poderia
acrescentar (para uns) ou retirar (para outros) ao que (aparentemente quase todos) consideravam
uma arte visual. O som era encarado como um acrescento, uma coisa exterior ao cinema, uma
perturbação que vinha acima de tudo pôr em causa a montagem, que ganhara o estatuto de
principal ferramenta na construção de sentido do filme.
Na opinião dos mais puristas, que acreditavam estar o cinema a atingir o seu auge como arte
visual, o sonoro ameaçava a pureza artística com uma supostamente inevitável tendência para o
38
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
naturalismo que reduziria o cinema à simples imitação da realidade. O som ameaçava corromper
uma arte promissora ainda na sua juventude. Não se reconhecia ao sonoro capacidade criativa,
apenas reprodutiva. Em questão estava a imposição de uma radical mudança de paradigma pela
introdução de uma nova dimensão num medium que na opinião dominante começava a estabelecer
as convenções que lhe permitiam comunicar com mais universalidade.
Comercialmente o sonoro foi-se impondo – ou foi imposto – rapidamente. As limitações que a
captação e o registo de som inicialmente colocavam à movimentação das personagens e ao próprio
dispositivo fílmico em poucos anos foram superadas pela evolução tecnológica. Em cerca de uma
década o equipamento áudio passou a fazer parte regular do dispositivo de produção e exibição do
filme, e o sonoro tornou-se a norma da indústria. Para o espectador vulgar, habituado desde sempre
a ver os filmes com acompanhamento musical na sala de espectáculos, a inovação do sonoro
estava nos diálogos e ruídos perfeitamente síncronos com os movimentos dos actores.
Passada a polémica sobre a bondade ou maldade do som para a arte do cinema, pouco se reflectiu
sobre o papel do som no cinema desde esses anos do advento do sonoro – ou falado – até ao
presente. Em contraste, a ideia de cinema como uma arte visual, tão cara a Rudolf Arnheim (1957),
perdura até aos nossos dias. O som continua a ser percepcionado como pertencendo à imagem
projectada no ecrã, sem que lhe seja reconhecido o papel fundamental que desempenha na
produção de sentido do filme; nem sequer o do contributo de uma terceira dimensão para uma
imagem visualmente plana.
É portanto na década de oitenta do século passado que se inicia uma produção teórica com estudos
e ensaios especificamente dedicados à temática do som no cinema. A possível excepção será na
área da música para filme, na qual foi existindo sempre alguma, ainda que não abundante
produção. Entretanto a investigação sobre o som no cinema tem dado origem a um crescente
número de publicações e trabalhos académicos de qualidade muito diversa (e por vezes duvidosa).
Para além dos autores citados acima, destaco alguns trabalhos que se revelaram mais interessantes
para a minha investigação: Sara Kozloff, abordando o papel dos diálogos e da voz em Invisible
Storytellers, voice-over narration in american fiction film (1988) e Overhearing Film Dialogue (2000);
Claudia Gorbman, dedicando-se ao estudo das funções narrativas da música em Unheard Melodies:
Narrative Film Music (1987); Rick Altman, Sound Theory, Sound Practice (1992); James Lastra,
Sound Technology and the American Cinema: Perception, Representation, Modernity (2000); Richard
39
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Abel & Rick Altman, The Sounds of Early Cinema (2001); Douglas Gomery, The Coming of Sound: a
history (2005).
Na introdução a Sound Theory, Sound Practice, Altman (1992) preconiza o uso do conceito de
“cinema como evento” por oposição a cinema como texto. Segundo ele, encarar o cinema como
evento é emprestar à análise do filme a mesma multidimensionalidade que é própria deste: tempo,
espaço, linguagens. Em síntese, uma análise que ultrapasse as limitações duma semiótica obrigada
a traduzir o audiovisual em verbal para ser capaz de o analisar.
Em The Sounds of Early Cinema (Abel & Altman, 2001) reúnem-se as comunicações apresentadas
numa conferência realizada em 1998 pela Motion Picture Division of the Library of Congress, em
Washington. Para além da pré-história do sonoro no cinema, os textos dão conta de quão raramente
o cinema a que chamamos mudo o foi efectivamente.
2.3.2. Chion e a audiovisão
Acima de todos estes autores parece-me justo colocar o trabalho de Chion. Além de pioneiro tem-se
mostrado fundamental ao ser constantemente citado e os seus conceitos tomados como base para
as investigações que lhe têm sucedido. Embora nem todos o queiram reconhecer, a influência de
Chion está presente directa ou indirectamente em todos os trabalhos sobre som no cinema e no
audiovisual, sobretudo os realizados depois de 1994, data em que surge a edição americana: Audio-
Vision: Sound on Screen. A obra de Chion tem sido referenciada igualmente em inúmeras obras
sobre desenho de som para cinema, teatro e jogos de computador, em obras dedicadas à música
electroacústica e em trabalhos académicos sobre todas estas temáticas. É por isso que, mais de
duas décadas depois da primeira edição, L'Audio-vision permanece como obra fundadora e
sistematizadora do estudo do som nos media.
À profundidade e acuidade das observações de Chion é central a sua noção de cinema como
audiovisual só perceptível através duma audiovisão, ou seja, impossível de apreender por uma
escuta e uma visão desligadas. O objectivo de L'Audio-vision é mostrar como, na combinação
audiovisual, a percepção do sonoro e a percepção do visual se influenciam mutuamente, isto é,
“não vemos a mesma coisa quando ouvimos e não ouvimos a mesma coisa quando vemos” (Chion,
40
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
1994:xxvi). Contrariando a tendência dominante nos estudos de cinema, que atribuem quase
exclusivamente ao visual a produção de sentido, Chion (1994:5) descobre um "valor acrescentado
ao som", o qual define como “o valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma
imagem dada, fazendo mesmo crer, na impressão imediata que temos ou na memória que
guardamos, que esta informação ou esta expressão se desprende naturalmente do que vemos e
está já contida na própria imagem. E até mesmo provocar a impressão, eminentemente injusta, de
que o som é inútil, que duplica um sentido que na realidade ele introduz e cria”.
Esse valor acrescentado que o som aporta, é amplificado pelo fenómeno da relação sincrética com o
visual. “Síncrese (palavra que forjamos combinando sincronismo e síntese) é a soldadura irresistível
e espontânea que se produz entre um fenómeno sonoro e um fenómeno visual quando ocorrem ao
mesmo tempo, independentemente de qualquer lógica racional” (Chion, 1994:63) e que resulta
num "contrato audiovisual" – processo em que a percepção auditiva e a percepção visual “se
influenciam mutuamente e emprestam uma à outra, por contaminação e projecção, as suas
respectivas propriedades” (Chion, 1994:9).
Chion define e sistematiza três tipos de atitude do ouvinte (que já anteriormente referi e apenas
relembro aqui): escuta causal, escuta semântica e escuta reduzida. Escuta causal ocupa-se com o
simples reconhecer da origem ou fonte do som; escuta semântica é a que permite identificar e
interpretar um código ou uma linguagem; escuta reduzida é a que se interessa pelas características
próprias do som.
A escuta reduzida implica uma atitude que não se espera, e nem sempre se deseja, do espectador
de cinema. Tal como a vida real, o cinema convoca as escutas causal e semântica. O som é
utilizado e assume significado a esses dois níveis. Muito dificilmente os sons no audiovisual se
destinam apenas a uma escuta causal: se isso acontece, é supérfluo, não acrescenta significado,
não faz falta. Se a presença do som é desta natureza, o mais provável é que o espectador questione
a sua presença e que isso perturbe a sua atenção. O espectador sabe, mais ou menos
conscientemente, que o filme é uma construção e que tudo o que é dado ver e ouvir tem uma
intenção. Por isso procura esse significado oculto, essa segunda intenção que todos os eventos do
filme prometem. Se vemos um homem que caminha, para que precisamos escutar os seus passos?
Se ouvimos os passos do caminhante não é para saber que caminha, mas para saber a
intensidade, o ritmo, o timbre, a dramaticidade desse caminhar.
41
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Outro conceito, retomado de Schaeffer por Chion, é o de acusmática, que significa a situação em
que ouvimos um som sem vermos a fonte que o produz. Segundo a tradição, Pitágoras dirigia-se aos
seus discípulos através duma cortina que não permitia que estes o vissem. Do mesmo modo, um
som acusmático é aquele que se escuta sem que seja possível ver-lhe o emissor. Embora Chion
reserve este termo para designar os sons cujo referente visual não é mostrado no ecrã, em última
instância todos os sons mediados são acusmáticos, uma vez que estão tecnicamente desligados da
sua fonte original. Este facto é dissimulado no audiovisual pelo sincronismo do som com a visão da
fonte que supostamente o produz, provocando o efeito de "síncrese" definido por Chion (1994:63).
A cortina de Pitágoras serve assim de metáfora para a mediação do som por via eléctrica e
electrónica. Mas a mediação tecnológica vai mais longe, dispensando a presença da fonte sonora
original no acto da escuta. Isto é possível pelo intermédio da gravação (registo) áudio que permite
dissociar no tempo emissão e recepção do som. Separado da sua causa original, a partir da
invenção do registo em fita magnética, o som liberta-se também do tempo, a que continuava preso
nos discos e restantes suportes até então existentes. A gravação em fita permite toda uma série de
manipulações – cortar, colar, alterar a ordem, inverter o sentido e a velocidade de leitura, … – que
Schaeffer (2003) teoriza e sintetiza no conceito de objecto sonoro.
A massa sonora que nos envolve pode então ser registada magneticamente numa fita e esta dividida
em pequenos pedaços, cada um contendo isoladamente cada um dos sons que até então só tinham
existência por um processo de raciocínio analítico. Evidentemente, este isolamento tem muitas
condicionantes técnicas: é difícil de conseguir no ambiente em que naturalmente se produzem os
sons. Ainda assim, a tecnologia é suficientemente eficaz para permitir a criação de paisagens
sonoras totalmente artificiais como as que escutamos quotidianamente no cinema ou na televisão e
que resultam da remistura/recontextualização desses objectos sonoros isolados.
O conceito de objecto sonoro não é portanto apenas uma construção teórica; tem também uma
aplicação prática na realização do sonoro nos media. A descontinuidade própria da realização
cinematográfica é um bom exemplo de como o conceito se aplica à realidade. Um filme é feito de
pequenos pedaços que no fim se juntam e organizam num produto final: pedaços de película e
pedaços de fita magnética – hoje em dia, mais frequentemente substituídos por ficheiros digitais
informáticos.
42
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Na terminologia de Chion (1994:68), a "cena audiovisual" é o quadro, o ecrã onde a imagem visual
é projectada. Esta imagem é determinada pelo ponto de vista da câmara. O ponto de vista é função
da posição da câmara em relação ao objecto da tomada de vistas, da objectiva usada –
enquadramento e perspectiva –, e da abertura – foco e profundidade de campo. Câmara e objectiva
podem ser fixas ou móveis durante a tomada de vistas. Na relação do visual com o ecrã tudo se
resume ao campo (o que vemos no ecrã) e ao fora de campo (o que supomos fazer parte da cena
mas não é mostrado no ecrã).
A relação do sonoro com o ecrã é bastante mais complexa, e é determinada por um "ponto de
escuta" (Chion, 1994:89-92). Este conceito é o mais relevante para esta tese (como o seu título já
revela). Se o ponto de vista da câmara pretende ser o olhar do espectador, o ponto de escuta, pode
definir-se como o lugar em que o realizador coloca os ouvidos do espectador com referência ao que
lhe dá a ver no ecrã. Tecnicamente relaciona-se com a posição virtual (nem sempre real) do
microfone – coincidente ou não com a da câmara – e o aparente sincronismo com a acção visível
no ecrã. A relação variável e complexa entre ponto de escuta e ponto de vista tem um papel
importante na produção de sentido no cinema. Da concordância ou discordância entre os dois
parece resultar um efeito respectivamente ora de distanciamento, ora de envolvimento emocional do
espectador face ao filme. Curiosamente, no cinema clássico, considerado realista, não só o ponto
de escuta varia constantemente a sua relação com o ponto de vista da câmara como é comum a
mistura de sons provenientes de distintos pontos de escuta (por vezes até identificados não só com
lugares mas também com tempos diferentes). Ou seja, várias escutas para uma única visão. Ao
contrário do que acontece naturalmente: por exemplo, quando rodarmos a cabeça e se altera
radicalmente a perspectiva visual sem grande mudança no que escutamos. O modo como o som
adere ou não ao ecrã é uma dimensão importante do seu valor significante.
L'Audio-vision coloca também a questão da fidelidade ao som original. Existe no campo do sonoro
uma grande discrepância entre o real e o “efeito de real" (Barthes, 2004; Pomerance, 2012). A
maior parte dos sons tidos como reais pelo espectador não são produzidos pelas fontes aparentes,
visíveis no ecrã; por outro lado, muitos dos sons reais, captados directamente das fontes, parecem-
nos irreais. É frequente no cinema o uso de sons que não correspondem de modo nenhum às
fontes originárias. Um bater de porta pode passar por um ruído de tiro ou de queda. Tipicamente o
som de água corrente é um ruído indistinto se não for ligado à visualização dum ribeiro ou duma
fonte, por exemplo. “Dito de outro modo, no cinema o som é reconhecido pelo espectador como43
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
verdadeiro, eficaz e adequado, não se reproduz o som feito na realidade pelo mesmo tipo de
situação ou de causa, mas se restitui (isto é, traduz, exprime) as sensações associadas a esta
causa” (Chion, 1994:109). O que a escuta julga é se o som faz sentido e não se é aquele o seu
lugar certo.
No que diz respeito ao uso da linguagem, Chion (1994:171) identifica três modos de uso da palavra
no cinema: a "palavra-teatro", a "palavra-texto" e a "palavra-emanação". Palavra-teatro refere-se ao
“diálogo entendido na função dramática, psicológica, informativa e afectiva. Percebido como
procedente de seres humanos apanhados na própria acção, sem poder sobre o curso das imagens
que os mostram, compreensível palavra por palavra, oferecido a uma total inteligibilidade”. A
palavra-texto, herdeira dos quadros com legendas do cinema mudo, tem o “poder de agir sobre o
curso das imagens. A palavra proferida tem o poder de evocar a imagem da coisa, do momento, do
lugar, das pessoas, etc.” (Chion, 1994:172). "A palavra-emanação, é o caso em que a palavra não é
necessariamente escutada e compreendida integralmente, e sobretudo o caso em que não está
amarrada ao coração e centro da acção no sentido lato" (Chion, 1994:177). Porque emana da
personagem sem se lhe impor, mas apenas fazendo parte dela, a palavra surge como uma
característica da personagem de que emana, "significante mas não essencial para a encenação ou
a acção" (Chion, 1994:177). (Sendo muito rara, apesar de "a mais cinematográfica" (Chion,
1994:177), a palavra-emanação é regra nos filmes de Jacques Tati).
No capítulo final do seu livro, Chion (1994) apresenta um método de análise do audiovisual como
um todo construído de sonoro e visual. Análise que só é possível, segundo ele, através de uma
atitude de humildade face aos nossos próprios preconceitos perceptivos, e de atenção simultânea ao
que se observa e se escuta, sem sobrevalorizar um ou outro sentido. A sistematização feita por
Chion em L'Audio-vision não esgota o assunto, nem é tão pragmática que apresente um modelo
testado de análise dos produtos audiovisuais pronto a ser usado numa investigação com pretensões
de rigor científico. No entanto a conceptualização apresentada mostra grande perspicácia do autor,
e apresenta potencial de operacionalização.
44
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
3. O SOM NO CINEMA
Os estudos sobre som no cinema têm abordado sobretudo o modelo dominante, que foi definido
pela indústria de Hollywood nos seus filmes de carácter narrativo e estrutura clássica, o qual impõe
uma determinada hierarquia na organização e na relação entre sonoro e visual. Por outro lado, ao
longo da análise dos filmes de Manoel de Oliveira fui-me apercebendo de que fazia falta um quadro
de referências conceptuais que ajudasse a compreender e expor as observações que ia anotando.
Tendo a noção de que o cinema de Manoel de Oliveira dificilmente se insere num modelo (estilo ou
escola), julguei que seria útil usar um padrão com que pudesse confrontar os seus filmes e daí
adviesse uma maior facilidade na exposição dos meus argumentos. Rapidamente se tornou óbvio
que esse modelo teria de ser aquele com que estamos habituados quotidianamente a conviver, no
cinema ou na televisão, e cujas práticas nos são familiares. Adoptei a designação de cinema
clássico para este modelo (cujo nome completo poderia ser cinema clássico narrativo
hollywoodesco).
3.1. CINEMA CLÁSSICO
Irei aqui discutir brevemente esse modelo que tem sido tomado como padrão no cinema e que
domina, de um modo geral, toda a narrativa audiovisual. De modo informal, todos aprendemos a ler
este tipo de cinema e a facilmente decifrar as suas mensagens. Esta competência não corresponde
no entanto a uma verdadeira literacia, pois é obtida sem que possuamos uma completa consciência
dos mecanismos que o meio usa para comunicar. Por não haver consciência do processo de
aprendizagem implicado, a recepção dos filmes é geralmente tida por intuitiva e natural. Em
contrapartida, quando confrontados com um filme que não obedece a este modelo, temos maior
dificuldade em interpretá-lo: sentimos estranheza e parece-nos até que o filme não está bem feito.
Não quero aqui estabelecer qualquer paralelo entre o cinema de Manoel de Oliveira e o padrão
imposto por esse modelo dominante. Embora crítico desse modelo dominante, Manoel de Oliveira
45
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
não faz o seu cinema contra ele (como podemos dizer que aconteceu com alguns realizadores da
nouvelle vague, como é exemplo Godard, que subverteram o modelo contrariando ostensivamente
as regras que lhe são próprias). De resto, o cinema de Manoel de Oliveira dificilmente se inscreveria
num qualquer modelo preexistente. Ao longo da sua história de mais de oitenta anos, a obra de
Manoel de Oliveira parece desenvolver-se à parte da história convencional do cinema, num percurso
que considero único, original e pioneiro. Ao destacar algumas distinções, por vezes muito subtis,
entre o modelo dominante e a prática seguida por Manoel de Oliveira, espero apenas tornar mais
evidentes a originalidade do seu cinema e do seu modo específico de construir significados por via
audiovisual.
Contudo, é difícil fazer qualquer reflexão sobre o cinema ignorando o paradigma imposto por essa
super potência industrial que designamos genericamente por Hollywood. A indústria produz o que
ela própria considera ser um cinema de entretenimento. É este que segue o modelo clássico. Todo o
cinema que foge a este modelo e não se inscreve nos processos industriais é considerado cinema
de arte. Evidentemente esta dicotomia é redutora e não dá conta de toda a diversidade de cinema(s)
possível. Apenas significa que há um cinema que interessa à indústria e há o outro. Estoutro é tido
como de pouco interesse para o grande público, por supostamente ser mais exigente e estar apenas
ao alcance da compreensão (fruição) de uma elite. Ou então o termo arte deve ser entendido no
sentido pejorativo de qualquer obra que usa o mesmo meio mas não respeita o modo correcto de
fazer cinema. Esta concepção do que é o cinema desvaloriza, ou ignora mesmo, todo o contributo
de originalidade e inovação que os filmes mais experimentais e artesanais têm dado ao dito cinema
de entretenimento. Os que conhecem apenas o cinema de entretenimento tomam por original aquilo
que é porventura apenas o reflexo – ou mesmo a cópia descarada – do que verdadeiramente é
original e originário de outro cinema.
Esta necessidade de situar a reflexão sobre o som no cinema não é original. De um modo geral,
toda a literatura sobre som no cinema aborda a prática do cinema clássico. Julgo que isto é
inevitável pelo facto de se tratar do modelo dominante mas, por vezes, denota uma certa ignorância
de outros modos de fazer cinema. Alguma preguiça não será também de descartar: é sempre mais
fácil falar sobre um cinema muito previsível, com convenções mais estabilizadas. Como é
compreensível, sendo a maioria dos autores que tomo como referência norte-americanos, o foco das
suas investigações está precisamente neste cinema. Chion, nas suas obras, também não pode
evitar a referência ao modelo, mesmo quando fala de cineastas que em nada lhe parecem dever. 46
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
3.1.1. O que é afinal o cinema clássico?
Em 1985, David Bordwell, Janet Staiger e Kristin Thompson publicaram um estudo intitulado The
Classical Hollywood Cinema (2005). Analisando uma centena de filmes realizados entre 1917 e
1960, chegaram à caracterização de um estilo cinematográfico desenvolvido e instituído em
Hollywood, e tornado paradigmático graças ao domínio mundial desta indústria na produção,
distribuição e exibição de filmes.
Segundo estes autores, a designação clássico adequa-se “uma vez que os princípios de que
Hollywood se reclama assentam em noções de decoro, proporção, harmonia formal, respeito pela
tradição, mimese, ocultação do artífice, controle da resposta do receptor – cânones que os críticos
de qualquer medium normalmente designam por 'clássico'” (Bordwell, Staiger & Thompson,
2005:3).
Logo no início do capítulo intitulado Um cinema excessivamente óbvio, os mesmos autores
resumem assim o modo como o cinema de Hollywood se vê a si próprio: “sujeito a regras que
limitam estritamente a inovação individual; que contar uma história é a principal preocupação
formal, que faz o estúdio assemelhar-se a um scriptorium monástico, lugar de transcrição e
transmissão de incontáveis narrativas; que a unidade é um atributo básico da forma fílmica; que
Hollywood pretende ser 'realista' tanto no sentido aristotélico (fiel ao provável) como no naturalístico
(fiel ao facto histórico); que o filme de Hollywood se esforça por dissimular o seu artifício através de
técnicas de continuidade e de narrativa 'invisível'; que o filme deve ser compreensível e inequívoco; e
que possui um apelo emocional fundamental que transcende classe e nação.” (Bordwell, Staiger &
Thompson, 2005:2)
Para Bazin (1967:29) o cinema clássico define-se pelo conteúdo – “grandes géneros com regras
bem definidas, capazes de agradar a um público internacional, assim como a uma elite culta” – e
pela sua forma – “estilos de fotografia e de montagem bem definidos e perfeitamente adaptados ao
assunto; uma completa harmonia de imagem e som.” Vai mesmo mais longe e chega a afirmar que
ao assistir aos filmes dessa época “tem-se a sensação de que neles uma arte encontrou o seu
equilíbrio perfeito, a sua forma ideal de expressão e em troca admirámos-los pelos temas
dramáticos e morais a que o cinema, embora possa não os ter criado, deu uma grandiosidade e
uma eficácia artística que de outro modo não teriam” (Bazin, 1967:29).
47
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Nas palavras de Fawell (2008:41), Hollywood “aspira a uma arte de equilíbrio, proporção e simetria.
Respeita a unidade, uma técnica sem costura e uma mestria que se esconde. Tal como a arte
clássica, valoriza uma estrutura simples, tocada por uma elegância discreta. E almeja um efeito
mimético, uma imitação realista da realidade mas que simultaneamente simplifica e eleva essa
realidade”. Mas, como esclarece logo a seguir, Hollywood não chegou a este modelo por via do
“estudo cuidadoso da cultura clássica, mas pelo seu desejo de criar um produto polido que era
altamente comerciável e bom para o consumo de massas” (Fawell, 2008:41). O que se aproxima
mais da ideia enunciada por Gomery e Pafort-Overduin (2011) de que o modelo de cinema narrativo
instituído por Hollywood se tornou clássico ao impor-se mundialmente como modelo único de bem
fazer cinema.
Como lembra Nogueira, durante o período que Bordwell, Staiger e Thompson (2005) identificam
como o da instituição do clássico, “vigorou, no cinema americano, aquele que se poderá considerar
um dos mais determinantes da sua história, o chamado Código Hays ou Production Code”
(Nogueira, 2007:1). Este código estabelecia estritas regras éticas – e mesmo estéticas – que a
produção cinematográfica devia seguir em nome de um alegado serviço público universal que a
indústria reclamava para si.
Hollywood é uma organização industrial cujo objectivo sempre foi o lucro financeiro, que se sustenta
dum cinema narrativo que valoriza a história e se destina ao entretenimento do espectador
promovendo neste uma recepção emocional. A necessidade de garantir audiências fez Hollywood
escolher como alvo um público indiferenciado, o mais alargado possível, em grande parte de baixa
escolarização ou mesmo iliterato. Para atingir este público alargado, teve de desenvolver o processo
de contar as suas histórias de um modo simples, que não exigisse mais do que capacidades de
leitura básicas. Isto foi sendo conseguido pelo estabelecimento de uma série de regras, tanto
formais como de conteúdo, que resultaram em estereótipos facilmente reconhecíveis e
interpretáveis. A diversidade e a inovação são preteridas em favor de um modelo com provas dadas
e de resultados garantidos.
Não cabe aqui discutir o papel do modelo económico da produção de filmes e do respectivo
consumo na instituição do cinema clássico. Sabendo que o cinema de Manoel de Oliveira não está
sujeito a uma lógica de estúdio de produção, ainda que remotamente semelhante à praticada em
Hollywood, qualquer analogia que pudesse estabelecer entre o processo de fabrico dos seus filmes
48
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
e o praticado por essa indústria não passaria de um elencar de hipóteses gratuitas, de difícil
fundamento.
O cinema clássico define como seu objectivo primordial contar histórias, histórias estas que
obedecem a uma estrutura narrativa clássica. Como escrevem Bordwell, Staiger e Thompson
(2005:11), “um filme narrativo consiste em três sistemas: lógica narrativa (definição de eventos,
relações causais e paralelismos entre eventos), representação do tempo (ordem, duração,
repetição), e representação do espaço (composição, orientação, etc.)”. A narrativa segue uma
estrutura clássica – exposição, clímax, resolução –, é objectiva e omnisciente, e é impulsionada
pelas personagens.
Segundo Gomery e Pafort-Overduin (2011:66), o cinema clássico “assume que as personagens
servem como agentes da acção da história. Mudanças físicas como furacões ou tempestade de neve
motivam linhas narrativas. Do mesmo modo, enquanto mudanças sociais, guerras ou
transformações económicas podem servir da catalisadores da acção, o centro da história assenta
nas decisões e acções de um número finito de personagens.” A narrativa acompanha um
protagonista cujas motivações são de carácter psicológico e individualista, só vagamente dando
atenção ao contexto social, e segue uma cronologia linear em que cada acontecimento é motivado
pelo anterior numa lógica de causa-efeito (Bordwell, 2006; Gomery & Pafort-Overduin, 2011). Sendo
uma narrativa fechada, no final todas as questões levantadas são respondidas e conhecido o
destino das personagens.
Uma das características fundamentais do cinema clássico é a dissimulação do dispositivo
cinematográfico. Os meios técnicos envolvidos no fabrico do filme não devem ser perceptíveis ao
espectador. O filme deve dar a impressão de representar a realidade transparentemente sem a
transformar. Baudry (1983:398) entende a dissimulação do dispositivo (ou apparatus) como
estratégia para “obter um efeito ideológico preciso e necessário à ideologia dominante: gerando uma
fantasmatização do sujeito, o cinema colabora com segura eficácia para a manutenção do
idealismo”. A análise é interessante, mas diz mais respeito à indústria de Hollywood como
(re)produtora de uma ideologia (que eventualmente a precede e envolve) do que ao dispositivo
cinematográfico no sentido restrito.
49
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
O dispositivo cinematográfico tem duas dimensões: a tecnológica e a humana. A dissimulação
abarca ambas as dimensões. Ao ocultar o equipamento técnico, o cinema clássico procura a
naturalização do que é artificial; ao ocultar a mão humana apresenta a obra como não criada. Diria
que, mais do que a tecnologia, o cinema clássico pretende ocultar as pessoas que operam essa
tecnologia. A indústria em geral valoriza o produto e desvaloriza a autoria: chama-lhe mão de obra.
A ilusão de não ter autor(es) concede ao filme uma aparência de produto natural e, logo, isento de
qualquer intencionalidade ideológica, financeira, etc. Oculta-se-lhe a origem humana, que é
necessariamente imperfeita e personalizada, apresentando o filme como fruto de um olhar neutro e
objectivo sobre a realidade.
Tendo presente o postulado de McLuhan (1994) quanto à interdependência entre o medium e a
mensagem, podemos presumir que se oculta o medium para que passe despercebido o efeito deste
sobre a mensagem. Se não damos conta da presença do medium aceitamos a mensagem como
pura, não filtrada, fidedigna, em vez do que verdadeiramente é: fruto duma construção, duma
manipulação.
Aspecto importante é o modo como a dissimulação afecta ou determina a relação com o público. Os
operários do cinema clássico vivem na e da convicção de que o espectador perde o interesse se
souber como o filme é feito, tal como o ilusionismo perde o fascínio quando conhecemos os truques
do mágico. A consciência da presença do dispositivo criaria distanciação do espectador face a o
que é narrado, ao desvendar o como é narrado.
A questão da dissimulação do dispositivo é relevante mas, mais do que discutir possíveis
motivações ideológicas para a ocultação do trabalho no cinema (sejam elas de natureza política ou
outra qualquer), interessa revelar os modos como essa dissimulação se realiza.
A operação técnica que congrega todo o processo de dissimulação do dispositivo cinematográfico é a
montagem. Na montagem estabelece-se a continuidade narrativa, efectuando as ligações entre os
elementos diversos que constituem o filme, dando-lhes um sentido. As centenas de elementos –
visuais e sonoros – que constituem um filme devem articular-se de tal modo que a real
descontinuidade dos tempos e espaços em que foram registados seja completamente dissimulada.
A montagem obedece a uma série de convenções e regras que foram estabelecidas ao longo do
tempo e que se destinam a facilitar a leitura do filme por qualquer espectador, independentemente50
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
da dimensão do respectivo reportório cultural. Essas convenções são suficientemente simples para
serem aprendidas pelos espectadores dum modo maioritariamente inconsciente. A simplicidade
resulta do recurso a práticas culturais ancestrais – leitura da esquerda para a direita e de cima para
baixo, por exemplo – e da constante contextualização das personagens no cenário da acção.
Há que respeitar certas regras que limitam a variação das tomadas de vistas, dos movimentos de
câmara e da escala dos planos de forma a que a ligação destes passe despercebida ao olhar do
espectador. A continuidade do espaço, mostrado às parcelas, é obtida pela presença de elementos
reconhecíveis no cenário dum plano para o outro. O som contribui decisivamente para esta
continuidade espacial – ao manter as características acústicas – além de contribuir com a
continuidade temporal – sons que se mantêm de um plano para o outro.
A regra dos 180º determina que nas várias tomadas de vista a câmara se deve manter sempre do
mesmo lado de uma linha imaginária estabelecida pela interacção das personagens – como é
evidente no chamado campo/contracampo, normalmente utilizado na filmagem dos diálogos, que
mostra alternadamente cada um dos interlocutores mantendo no enquadramento uma silhueta do
outro. Ao mudar de ponto de vista, a câmara deve respeitar a regra dos 30º que impõe uma
variação de ângulo mínima para tomadas de vistas sucessivas de um mesmo objecto. Outras regras
determinam os limites aceitáveis para a mudança nas escalas dos planos – do grande plano ao
plano geral – e das ligações entre movimentos de câmara contíguos – travelling ou panorâmica.
Estas regras são necessárias para que a montagem das tomadas de vistas obtidas a partir das
diversas posições em que a câmara é colocada, no intuito de oferecer ao espectador sempre o
melhor ponto de vista sobre a acção, não resulte num amontoado de imagens incoerente e
caleidoscópico.
O som tem também um papel importante. Desde logo, todos os avanços na tecnologia áudio (o
Dolby, o surround, o digital) “têm como alvo a diminuição do ruído do sistema, ocultando o
funcionamento do dispositivo e assim reduzindo a distância percebida entre o objecto a a sua
representação” (Doane, 1985:164). O som não só contribui para a narrativa cinematográfica como
ajuda a mascarar os ruídos ambiente que possam existir na sala em que se assiste ao filme -- e o
próprio funcionamento dos equipamentos (projector, colunas de som) --, colocando o espectador
num espaço virtual adequado à sua fruição. O simples sincronismo do visual com o auditivo
contribui para esta ilusão de realidade. Como lembra Altman (1980:69), “retratar no ecrã lábios que
51
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
se movem convence-nos de que o indivíduo aí retratado – e não o altifalante – falou as palavras que
ouvimos”.
A dissimulação do dispositivo cinematográfico é reforçada pelo naturalismo da interpretação que,
por seu lado, esconde o facto de estarmos perante actores representando personagens fictícias.
Outra característica importante do cinema clássico é o apelo à participação do espectador. A
dissimulação do dispositivo cinematográfico tem como fim iludir a distância, que de facto existe
entre a realidade e a ficção, conduzindo o espectador à imersão no universo da narrativa. O
espectador é levado a aceitar as regras próprias deste mundo virtual, diferente daquele em que ele
vive, para o que temporariamente deve suspender a incredulidade (Coleridge, 1817) perante acções
e personagens que nunca poderão ter lugar no seu quotidiano.
Este apelo dirige-se especialmente à participação emocional do espectador, à empatia que possa
estabelecer com personagens ou acontecimentos narrados. Uma participação intelectual e algum
espírito crítico são secundários, nem sempre requisitados, ou apenas o suficiente para completar
com a imaginação os hiatos – designados elipses – que a narrativa cinematográfica vai deixando
aqui e ali. Habituado a que, por mais inusitadas e inquietantes que sejam as situações
apresentadas, no final tudo lhe seja explicado, o espectador deixa-se levar numa atitude acrítica
perante o espectáculo que lhe é proporcionado. Este tipo de participação do espectador na
construção da narrativa fílmica é indissociável do conceito de cinema clássico que se define a si
próprio como entretenimento.
Elsaesser e Hagener (2010:4) detectam mesmo um envolvimento físico do espectador no filme. “O
que é chamado cinema narrativo clássico, por exemplo, pode ser definido pela maneira como
determinado filme cativa, aborda e envolve o corpo espectatorial”. Os autores referem-se à recepção
do filme na sala de cinema, mas o mesmo é aplicável ao chamado home cinema, com os seus
sistemas de som surround e ecrãs 3D.
O esforço para envolver cada vez mais o espectador no filme de uma forma física corpórea faz parte
da história do cinema clássico desde sempre. As inovações tecnológicas que ciclicamente são
introduzidas, respondendo geralmente a momentos de crise – o aparecimento da televisão, a
vulgarização do computador pessoal, a internet, ... –, vão sempre no sentido duma mais fiel
reprodução da realidade e uma maior envolvência do espectador.52
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
O cinema clássico desenvolveu-se e instituiu-se na época do chamado studio system em Hollywood,
isto é, quando estava já estabelecida uma organização de trabalho de tipo industrial, que distribuía
as tarefas de produção de um filme por profissionais especializados em cada área. Clássico porque
segue princípios do classicismo – ou por força do seu domínio financeiro, como preferem Gomery e
Pafort-Overduin (2011) –, este modelo e modo de fabricar filmes foi-se instituindo como a única
maneira correcta de fazer cinema.
Embora o sistema de estúdios se tenha alterado profundamente depois dos anos 1960, e as regras
do cinema clássico tenham ganho uma maior flexibilidade em termos formais e de conteúdo, a
maioria dos seus princípios fundamentais mantêm-se perfeitamente actuais. O cinema produzido
pela grande indústria norte-americana continua a dominar cultural e ideologicamente o mundo
ocidental, não só pelo seu grande poder financeiro mas talvez mais determinantemente enquanto
modelo único de bem fazer cinema. A hegemonia da indústria americana foi mesmo crescendo à
medida que a produção cinematográfica europeia se foi tornando cada vez mais residual e a
diversidade cinematográfica se foi reduzindo. E não se restringe actualmente às salas de cinema –
em grande declínio em Portugal, e não só –, mas estendeu-se aos meios de difusão e consumo
doméstico: à televisão, ao VHS, ao DVD, ao MPEG4 e ao Bluray -- como demonstram, por exemplo,
Bens e Smaele (2001).
A capacidade de produção e difusão da indústria de Hollywood impõe o seu como modelo único de
construção de significado em cinema. Os filmes que não seguem este modelo são imediatamente
conotados como menores, ora porque não conseguem atingir a sofisticação técnica que só os meios
financeiros de Hollywood permitem, ora porque alegadamente só interessam a elites (ou nichos de
mercado, como sói dizer-se).
Como afirmam Bordwell, Staiger e Thompson (2005:612) num dos capítulos finais do seu estudo “o
paradigma clássico continua a florescer, por um lado, ao absorver os tópicos de interesse
contemporâneo, por outro, perpetuando convicções com setenta anos sobre o que é e o que faz um
filme”. Setenta anos de convicções contadas até 1985, data da primeira edição do livro, mas que
entretanto perfazem já um século!
À medida que as convenções do cinema clássico se foram tornando comuns, foram-se incorporando
na nossa cultura e tornando-se invisíveis. Hoje em dia convivemos com elas quotidianamente em
53
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
todos os media electrónicos que fazem parte do nosso habitat, inconscientes da sua presença. É
neste sentido contemporâneo e actualizado, mas que mantém o espírito do modelo original descrito
em The Classical Hollywood Cinema (Bordwell, Staiger & Thompson, 2005), que neste trabalho uso
a designação cinema clássico.
3.1.2. O som no cinema clássico
De acordo com Bordwell, Staiger e Thompson (2005) o cinema clássico teve a sua origem em 1917
ainda no tempo do cinema mudo. Nessa época o cinema não era designado por mudo: o sonoro
ainda não nascera para tornar a distinção necessária. E no entanto, desde cedo a projecção dos
filmes foi acompanhada por todo o tipo de sons que mais tarde vieram a integrar o filme. Música,
ruídos e até diálogos eram produzidos nas salas de exibição durante as projecções. Começaram por
ser acompanhamentos simples – como um comentário ou um instrumento solo – mas chegaram a
atingir grande sofisticação – orquestras sinfónicas e complexas máquinas de sonorização equipadas
para produzir todo o tipo de ruídos. A obra The Sounds of Early Cinema (Abel & Altman, 2001)
mostra fundamentadamente como a ideia de um cinema mudo é falaciosa, e a variedade de
sonorizações de que eram objecto as projecções. Por seu lado, Marks (1997:3) refere a notícia de
que já na "primeira mostra pública do cinematógrafo Lumière" haveria um pianista "improvisando
um acompanhamento".
Portanto, o cinema nunca chegou ao espectador como totalmente mudo. Apenas não tinha um som
próprio e permanente. Faltava a tecnologia que permitiria a sincronização da gravação áudio de
ruídos e vozes com os movimentos dos actores e dos objectos no ecrã. O acompanhamento sonoro
dos filmes era criado na projecção e, por isso, o mesmo filme podia ser acompanhado pelas mais
diversas versões sonoras. Em certas salas de exibição, havia mesmo actores colocados atrás do
ecrã dizendo os diálogos e simulando os ruídos em simultâneo com o que se podia observar no
ecrã; ao que consta, com grande perícia.
Não é, assim, possível considerar o papel do som no cinema apenas no período chamado sonoro,
ignorando o que se foi construindo durante o período mudo. Os estudos que têm sido produzidos
nas últimas décadas – sobretudo ao nível da música, que tem sido o recurso mais estudado –
tornam cada vez mais claro que a inclusão do som no filme não constituiu nenhuma revolução no54
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
modo de fazer cinema que se vinha praticando na indústria de Hollywood.
O que os cineastas ganharam com o sonoro foi a possibilidade da sincronização permanente e
definitiva dos sons com as imagens no ecrã e, sem dúvida mais importante, o total controle sobre a
escolha desses sons. É preciso lembrar que a sonorização feita nas salas de cinema não dependia
da vontade de quem realizava ou produzia os filmes, mas dos exibidores (Lastra, 2000). Os meios
de sonorização de que cada sala dispunha variavam bastante: de um simples instrumento como um
piano ou um órgão a grandes orquestras. Algumas salas dispunham mesmo de actores que
reproduziam os diálogos em sincronismo com a acção no ecrã, à semelhança do que hoje em
estúdio se faz nas dobragens (Altman, 1995). Noutras, um narrador explicava a acção à medida que
as cenas iam passando no ecrã (prática muito usada no Japão). Com esta variedade de
acompanhamento sonoro, o sentido do filme podia distanciar-se bastante daquele intencionado pelo
realizador. Por esta razão, já antes do advento do sonoro diversos realizadores tinham concebido
acompanhamentos musicais para os seus filmes: D.W. Griffith é o mais conhecido exemplo, embora
não o primeiro (Marks, 1997). Mas o sucesso na sua imposição aos exibidores era muito limitado. O
cinema sonoro não nasceu, portanto, apenas de uma possibilidade técnica mas também -- e
provavelmente de forma mais decisiva --, se explica pela necessidade do controle sobre o sentido do
filme. O que revela que o cinema era já considerado audiovisual, ainda que tecnicamente fosse
ainda mudo.
A introdução do sonoro no dispositivo cinematográfico não foi a morte do cinema, como anunciaram
os mais radicais defensores do cinema como arte exclusivamente visual; nem sequer uma grande
revolução do conceito de cinema já estabelecido por Hollywood. Pelo contrário, em Hollywood o
“cinema sonoro não foi uma alternativa radical ao filme mudo; o som enquanto som, como material
e como um conjunto de procedimentos técnicos, foi inserido no sistema já instituído do estilo
clássico” (Bordwell, Staiger & Thompson, 2005:539). Polémica para os que encaravam o cinema
como arte, pacífica para os que o consideravam entretenimento, a integração do som no filme não
veio alterar a dominância do visual. Como afirmam Elsaesser e Hagener (2010:132), no cinema
clássico predomina “uma hierarquia na relação entre imagem e som, na qual este está subordinado
(e responde) àquela”. O som é tido por um complemento que serve para realçar a imagem visual e
o desempenho dos actores.
55
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Efectivamente, o cinema deveria ter sido desde o início um meio audiovisual. Pelo menos era essa a
intenção de Edison, declarada numa carta de introdução a um artigo publicado na Century
Magazine: “No ano de 1887, ocorreu-me a ideia de que era possível criar um instrumento que
fizesse para o olho o que o fonógrafo faz para o ouvido e que por uma combinação dos dois todo o
movimento e som poderiam ser gravados e reproduzidos simultaneamente” (Dickson & Dickson,
1894).
A dificuldade de criar um dispositivo que garantisse essa tal simultaneidade (sincronismo) dos
registos fotográfico e fonográfico resultou no nascimento do cinema como mudo. Faltava inventar os
meios técnicos que permitiriam a amplificação do som numa sala grande e o sistema que operasse
a reprodução sincronizada que Edison imaginou – e chegou mesmo a conseguir, ainda que de
forma apenas experimental, pelas mãos do seu assistente William Kennedy Dickson, em 1894 ou
1895 (cópia online em https://archive.org/details/dicksonfilmtwo). Sabemos da vontade de Edison
pelas suas palavras. Podemos presumir que não seria muito diferente da de outros pioneiros do
cinema, como os irmãos Lumière
Por outro lado, o cinema não se tornou sonoro apenas como resultado directo de uma evolução
tecnológica ou da vontade de quem a realizou. Afirma Buscombe (1978) que enquanto o sistema
económico não a considere relevante, nenhuma nova tecnologia se consegue impor. No caso, foi a
necessidade das produtoras de Hollywood de manterem o seu monopólio na indústria do cinema
que proporcionou o desenvolvimento dos equipamentos que permitiram a sincronização e a
amplificação do som nas salas. Segundo Turner (2003:15), “um dos efeitos, se não a motivação
para a introdução do som foi o reestabelecimento da hegemonia de Hollywood sobre os mercados”.
3.1.3. Cinema sonoro ou cinema falado?
O cinema é o primeiro meio a integrar, no mesmo suporte material, sonoro e visual em sincronia. A
ideia de sincronização é porém muito mais antiga. Dança, ópera e teatro fazem apelo a uma
percepção audiovisual. No campo da música (e não só), a ideia de sinestesia, de que é possível
identificar regras, de carácter universalista, de associação da percepção do som (música) à da luz
(cor) numa relação semiótica, existiu talvez desde sempre.
56
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Em Portugal adoptou-se a terminologia cinema sonoro para designar o que na maior parte das
línguas se chama cinema falado. Se a designação sonoro não faz distinção entre os sons presentes
no filme, a palavra falado impõe imediatamente uma hierarquia que coloca a voz humana enquanto
veículo da linguagem acima de todos os sons. Mas o som do filme é muito mais do que a fala, e as
potencialidade do sonoro vão muito para além da reprodução dos diálogos.
Podemos também argumentar que o cinema sempre foi falado e que não é isso que distingue o
sonoro. No tempo do mudo os diálogos eram denunciados pelo excesso expressivo dos actores e
explicitados pelas legendas que os transcreviam. De modo análogo, os planos muito aproximados de
diversas fontes sonoras – uma boca, um sino, um apito – tentavam substituir o som pela
visualização do corpo vibrante capaz de o provocar. A própria ideia da sensação auditiva podia ser
representada por um plano de pormenor da orelha ou do virar de cabeça do actor.
A possibilidade técnica de registar e reproduzir o som em sincronia com as imagens projectadas no
ecrã tornou inúteis e obsoletas estas tentativas de tornar o sonoro visível. A história do cinema é de
facto a de um meio audiovisual. Simplesmente aconteceu que o desenvolvimento dos equipamentos
de registo e reprodução do som foi mais demorado do que a invenção da câmara de filmar. Para
além dos meios que vieram permitir um registo e reprodução do som fiável, foi igualmente
necessário inventar o processo de o sincronizar com as imagens projectadas no ecrã. Pelo seu lado,
a máquina cinematográfica pouco mais é do que uma evolução da máquina fotográfica: a câmara
escura, as lentes e a película já existiam; só foi necessário acrescentar o mecanismo que permitiu a
rápida sucessão de exposições da película à luz.
Se a história nos diz que o cinema foi concebido audiovisual na imaginação e na intenção dos seus
inventores, também nos diz que enquanto medium ele nasceu mudo. A introdução do som levantou
grande controvérsia no meio dos teóricos e práticos do cinema Para muitos, o sonoro vinha pôr em
causa a própria concepção de cinema tido por eles como uma arte visual. A discussão do papel do
som no cinema iniciou-se cedo, logo no advento do sonoro. Nessa época – anos 30 do século XX –
a questão colocou-se em termos de saber se o som era uma coisa benéfica ou se, pelo contrário,
vinha acabar com uma arte que alguns julgavam ter atingido o seu auge. Como acontece quando as
posições se extremam, os contendores escolhem os argumentos que servem para provar as suas
convicções em vez de tirar conclusões de factos verificados. Assim, enquanto para uns a introdução
do som seria a morte do cinema, para outros vinha finalmente cumprir o verdadeiro cinema.
57
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
No que diz respeito ao cinema enquanto meio de comunicação, aqueles que negavam o interesse
do som acreditavam que a imagem visual por si só era suficiente para construir o sentido do filme.
Rudolf Arnheim foi o mais renitente defensor desta opinião. Para ele o cinema era uma arte visual e
como tal não precisava da ajuda dos outros sentidos. Fazia por ignorar que os filmes tinham
habitualmente intertítulos que explicavam a acção e reproduziam os diálogos, e que eram
acompanhados normalmente por música e uma selecção de ruídos durante as projecções. Arnheim
culpa o som pela crise artística no cinema e ignora que é a indústria que deseja o sonoro em busca
de um cinema mais popular, na expectativa de maior lucro. Não percebe tampouco que a inclusão
do som no próprio filme permite, a realizadores e empresas produtoras, um maior controle sobre o
produto final servido aos espectadores: os exibidores deixam de poder musicar ou de outro modo
sonorizar os filmes conforme o seu gosto ou as suas capacidades financeiras.
Polémica não era tanto a questão do cinema se ter tornado sonoro, como a questão de passar a ser
falado: “só por sorte o som não é apenas destrutivo mas também oferece potencialidades artísticas
próprias” (Arnheim, 1957:154). Seria absurdo negar a evidência de o cinema desde sempre ter tido
acompanhamento sonoro – quanto mais não fosse pelo facto de as primeiras exibições serem feitas
em ambientes dos quais a música fazia parte, como "cafés, feiras e music halls" (Manvell,
1959:54). Os detractores do falado futuravam um cinema palavroso, de verborreia, um teatro
filmado, em que o papel do visual se reduziria à ilustração da cena. Segundo eles, o som forçava o
cinema a um naturalismo primário. O verdadeiro cinema era o cinema mudo, e a palavra apenas
vinha pôr em causa o seu valor artístico.
Nos primeiros tempos do sonoro, as sérias limitações técnicas e os equipamentos pesados, de facto
produziram filmes estáticos, em que o som se limitava aos diálogos e alguma música que preenchia
os momentos vazios de palavra. Mas, em menos de uma década, a maior parte das limitações
técnicas foi ultrapassada e as objecções à introdução do som deixaram de ter sentido. Embora não
para Arnheim que “se transformou de monomaníaco que se afundava nos estudos de cinema (…)
em mero cliente que desfruta – algumas vezes por ano – do desempenho no ecrã de alguns artistas
inteligentes” (Arnheim, 1957:2).
Nem todas as opiniões eram tão radicais e negativas como as de Arnheim. Preocupados com a
possibilidade de um excesso de naturalismo potenciado pela reprodução das vozes dos actores e
dos ruídos, demasiado ilustrativos da acção, três cineastas russos da época – Sergei Eisenstein,
58
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Vsevolod Pudovkin e Grigori Alexandrov (1928) – publicaram um manifesto em que preconizavam o
modo como o som poderia ser utilizado de modo criativo. Para estes autores, cinema era sinónimo
de montagem visual: cada plano de um filme não vale por si mas pelo modo como se articula com
os outros. O som síncrono, temiam eles, vinha conceder a cada elemento da montagem um sentido
autónomo que acrescentava um lastro impeditivo da dinâmica própria da montagem. Efectivamente,
o som pode impor uma duração temporal às imagens visuais que não corresponde necessariamente
às necessidades da leitura destas.
Para Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov – e também para Dziga Vertov (2011) – a única solução
seria o uso contrapontístico do som. Este método evita o som síncrono – cujo uso consideravam
redundante por nada acrescentar às imagens visuais – e procura sons sem relação directa com
estas, supostamente mais potenciadores de significação. Deste modo o som “tratado como um
novo elemento da montagem (como uma variável independente combinada com a imagem visual)
não deixará de contribuir com novos e poderosos meios de expressão e resolução dos problemas
mais complexos que agora nos oprimem pela impossibilidade de os ultrapassar recorrendo ao
método imperfeito de um cinema que trabalha apenas com imagens visuais” (Eisenstein, Pudovkin
& Alexandrov, 1928:226).
René Clair, já em 1929, perante a inevitabilidade de um “cinema falado” que era já prática instalada
em Hollywood e com grande adesão do público, defendia um alternativo “cinema sonoro” que
segundo ele carregaria "as últimas esperanças dos partidários do cinema sem palavras" (Clair,
1972:133). Este distinguir-se-ia daquele pela utilização diferente dada à música e aos ruídos, e em
que a palavra não fosse a única protagonista.
Alberto Cavalcanti surge como uma das vozes mais esclarecidas da época, resolvendo a polémica
instalada ao afirmar convictamente (em 1937) que "em nenhum período da sua evolução, foi
costume mostrar filmes ao público sem um acompanhamento sonoro qualquer e assim podemos
dizer que o filme realmente silencioso nunca existiu" (Cavalcanti, 1951:151). Não deixando de ser
crítico da pobre utilização que na época era dada ao som, Cavalcanti sabia que a oposição ao
sonoro residia no desconhecimento de que, ao contrário do visual (e também da palavra), ele não se
dirige ao intelecto mas "a alguma coisa de mais profunda e instintiva" (Cavalcanti, 1951:178).
59
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
No final da década de 1930, a polémica estava esgotada. Como é costume dizer-se, contra factos
não há argumentos, e o facto era que o sonoro viera para ficar e, como afirmou Clair (1972:133),
"os cépticos que afirmam que o seu reinado será breve não viverão o suficiente para ver o seu fim".
3.2. A CONSTRUÇÃO SONORA NO CINEMA
3.2.1. Não (h)à banda sonora
No seu ensaio La voix au cinéma, Chion (1982) declara que não existe uma banda sonora. Utilizo o
conceito aqui apenas para explicar porque concordo com Chion e o considero equívoco e
inadequado. A designação vulgarizou-se na linguagem corrente como sinónimo da música de um
filme registada e difundida comercialmente – a banda sonora original (BSO) ou original soundtrack
(OST) – só muito raramente acompanhada dos diálogos ou ruídos do mesmo. Na linguagem da
teoria e da prática do cinema o termo designa todo o som do filme, que na película é fisicamente
registado como uma segunda imagem visual – a da onda sonora – ao lado da imagem captada pela
objectiva.
Nenhum destes sentidos serve o objectivo deste trabalho. No primeiro caso, porque se trata duma
corrupção do sentido original e designa apenas um dos elementos sonoros de um filme. No
segundo, porque numa época em que o cinema (e todo o audiovisual) é cada vez mais digital, cada
vez menos faz sentido pensar em duas bandas de imagens paralelas. E acima de tudo, porque
perpetua o equívoco de que no cinema o visual e o auditivo seguem lado a lado como linhas de
comboio que nunca se encontram, isoladas uma da outra.
A ideia de duas bandas reflecte igualmente o preconceito de que o som apenas “acompanha” e não
faz parte do filme. Este preconceito tem uma origem histórica que abordo no capítulo anterior e que
se prende com a introdução do som no cinema, numa época em que este se afirmava como uma
arte visual. Este trabalho defende, pelo contrário, que o cinema é uma arte tão sonora quanto visual
e que “nenhuma das bandas acompanha a outra, nenhuma é redundante, as duas estão presas a
uma dialéctica em que cada uma é alternadamente mestre e escrava da outra” (Altman, 1980:79).
60
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Finalmente, como afirma Chion (1994:39), "não se pode negar que no sentido estritamente técnico
da palavra existe de facto uma pista sonora ao longo do filme. Mas isto não quer dizer
necessariamente que os sons do filme constituam uma entidade coerente". Segundo Chion
(1994:40) a relação "vertical" de um som com a imagem visual com que é emparelhado é muito
mais forte do que a que estabelece com com os outros sons da dita banda sonora. O que equivale a
afirmar que o potencial significante dos sons no cinema está na sua ligação com o visual e não nas
relações que estabelecem entre si.
Evitarei portanto usar esta terminologia das bandas ao longo do trabalho. Tentarei contrariar a
noção de que o filme resulta do emparelhamento de duas bandas isoladas e independentes, e
defender a necessidade de uma audiovisão do cinema (e do audiovisual em geral). Este conceito de
audiovisão não tem apenas o sentido simbólico do combate a uma visão do cinema como arte
visual em que o som é considerado apenas um adjuvante. Quer igualmente reflectir o modo como
na nossa percepção os sentidos da audição e da visão interagem numa multimodalidade que não é
redutíval à soma das duas sensações – auditiva e visual – isoladas.
O conceito audiovisão tanto pode significar a atitude científica necessária a uma correcta análise do
audiovisual como a forma de a nossa percepção responder aos estímulos simultaneamente
auditivos e visuais produzidos pelos media audiovisuais. Devemos a Chion (1994) a paternidade do
termo audiovisão com o primeiro sentido indicado. E eu assumo a responsabilidade de o aplicar
para designar igualmente a multimodalidade da percepção audiovisual.
3.2.2. O som no cinema e no audiovisual
Como a designação indica, o som é parte integrante do audiovisual. Independentemente da
importância que se lhe atribua, o audível é indissociável do visível no processo de comunicação
destes meios que se dirigem simultaneamente à audição e à visão. O som do audiovisual tem de
ser escutado à luz das imagens que se projectam no ecrã. A relação entre ambos não é uma adição
perceptiva em que sensação visual e sensação auditiva se conjugam. Há uma interacção entre os
sentidos que resulta num tipo de percepção que devemos considerar audiovisual. Esta espécie de
simbiose da escuta com a observação é uma experiência quotidiana que preexiste a uma mediação
tecnológica. A diferença será que, no quotidiano a ligação entre o que vemos e ouvimos é61
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
vulgarmente considerada aleatória e natural, enquanto que no audiovisual é sempre resultado de
uma vontade de usar essa conjugação sensual para a produção de significado.
Discutir o papel do som no audiovisual significa pois conhecer a tecnologia envolvida na produção
mediática. Do advento do cinema sonoro até aos nossos dias, a tecnologia áudio progrediu de uma
forma assinalável, contribuindo para o aumento do potencial expressivo do audiovisual, que não tem
paralelo nas inovações introduzidas pela tecnologia visual. Visualmente, em mais de um século, o
audiovisual ganhou a cor e os efeitos especiais cada vez mais reais, mais recentemente, a terceira
dimensão (que promete durar mais tempo do que nas experiências anteriores) e as imagens
totalmente virtuais geradas por software. Em menos tempo (cerca de trinta anos menos) do que
isso a tecnologia áudio evoluiu da gravação monofónica -- limitada a um curto espectro de
frequências, pouco tolerante às variações na intensidade do som, e registada num suporte com um
elevado nível de ruído intrínseco --, à gravação multipista -- capaz de registar um espectro de
frequências e uma variação de intensidades superiores àquelas de que é capaz o ouvido humano e,
sendo digital, sem ruído inerente ao suporte. A emissão na sala de cinema, feita por sistemas com
baixo poder de amplificação e usando apenas uma coluna de som colocada atrás do ecrã, está
agora a cargo de sistemas com potencial para destruir fisicamente os nossos ouvidos e capazes de
distribuir os sons por dezenas de colunas com características e disposições variadas (o padrão
actual implica no mínimo seis colunas de três tipos diferentes em colocações específicas).
A baixa fidelidade era originalmente um elemento de distinção audível entre som e áudio.
Possivelmente, essa distinção entre um e outro ajudava o receptor a mais facilmente perceber as
imagens sonoras como ficcionais ainda que realistas. Claro que o conceito de realismo evolui com a
inovação técnica: hoje rimo-nos dos efeitos especiais que há trinta anos eram proezas técnicas. As
possibilidades de manipulação do áudio digital são hoje quase infinitas. As ferramentas disponíveis
para a construção de simulações cada vez mais verosímeis são inumeráveis. Embora não se possa,
nem deva, estabelecer uma relação directa entre a tecnologia e a expressividade de um meio,
podemos dizer que o potencial semiótico do sonoro se ampliou numa medida que não tem paralelo
no campo do visual. A evolução dos meios técnicos áudio não ficou dependente dos progressos no
campo da cinematografia (e agora da videografia). Em muitos aspectos a tecnologia áudio já
ultrapassou as limitações sensitivas do nosso aparelho auditivo. A sua utilização já não é justificável
por uma simples hipotética necessidade de registo naturalista da realidade. "A tecnologia foi atraída
para o reino da semiótica" e, consequentemente, hoje em dia "o som já não é gravado mas62
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
desenhado" (Leeuwen, 1999:167). O mesmo será dizer que não podemos continuar a tomar a
presença do áudio no audiovisual como decorrente de uma inevitável necessidade de sincronismo
com a imagem visual, para a mera sonorização naturalista desta. Cada vez mais, o som é utilizado
pelo seu potencial próprio como recurso semiótico, pelo “valor acrescentado” (Chion, 1994) que traz
ao audiovisual.
A participação do som no audiovisual cresceu com o desenvolvimento da tecnologia áudio. Limitada
nos primórdios do cinema sonoro à alternância entre a música e os diálogos, a mistura de sons
pode agora abarcar dezenas de objectos sonoros em simultâneo sem que cada um perca a sua
inteligibilidade. O que se acrescentou foi sobretudo o número de ruídos, geralmente com o intuito de
aumentar o efeito de real procurado pelos produtos audiovisuais padronizados pelos mass media.
Evidentemente este uso naturalista não é o único possível, mas é sem dúvida o dominante. A
evolução tecnológica não se reflecte assim necessariamente numa alteração das funções
tradicionalmente atribuídas ao som no cinema. Da inovação dos meios técnicos não decorre um
inevitável progresso no uso dos recursos semióticos.
A presença do som no audiovisual continua a ser percebida geralmente como natural e
directamente proveniente da cena que vemos no ecrã. A mediação efectuada por meio do áudio é
aceite ingénua e acriticamente como uma simples reprodução – uma cópia fiel do original, apenas
diferida no tempo ou no espaço. Perpetua-se a ilusão de que o que escutamos é uma repetição e
não o que de facto é: uma representação da realidade.
O carácter artificial e construído do som mediado é totalmente desconhecido da maioria dos
receptores. Para o espectador leigo dos dias de hoje, habituado a fazer filmes com o telemóvel, o
som no audiovisual parecerá resultar directamente daquilo que é captado pela objectiva da câmara
(sem consciência de que há também um microfone, necessário para captar o som). Alguns, mais
curiosos, experimentarão os efeitos visuais que os programas de edição de imagem incluem. Destes
poucos, só os mais musicais saberão que também é possível alterar os sons registados ou misturá-
los com outros diferentes. Mesmo nos meios profissionais mais familiarizados com toda a
sofisticação que os meios audiovisuais envolvem, só uma minoria de produtores e realizadores
mostram ter verdadeira consciência do seu carácter fabricado.
63
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Todos os esforços no desenvolvimento da tecnologia áudio têm evoluído no sentido de se conseguir
que o som mediado produza as mesmas sensações que o som ouvido directamente da sua fonte
original. É o santo graal da fidelidade. Efectivamente é hoje possível fazer com que de um sistema
áudio emane um som cujas propriedade físicas em tudo são idênticas às do original. Os sistemas
digitais, que já se tornaram de uso corrente, permitem a recolha e registo das vibrações do ar em
toda a sua variedade de intensidade e frequência, até para além do que convencionamos chamar
ondas sonoras. Para o sentido da audição, a distinção entre um som mediado e outro que chega
directamente da fonte original torna-se quase impossível. O dispositivo que permite a mediação
electrónica e digital do som tornou-se virtualmente indetectável.
Condicionados a dar primordial atenção às imagens visuais, consideramos o som como parte delas.
A menos que a presença sonora seja tornada muito óbvia – para criar uma situação cómica ou de
surpresa, por exemplo – nem tomamos consciência de que ouvimos. Notamos mais depressa a
falta de som, quando por uma quebra do continuo sonoro sentimos que se faz silêncio. Quando um
objecto ou um gesto é desprovido do som que lhe é característico, a nossa atenção é subitamente
despertada. Em contrapartida, aceitamos facilmente que ao mesmo objecto ou gesto sejam
associados ruídos que na realidade eles não produzem. Para isto basta que entre o que vemos e o
que escutamos nos pareça existir uma relação causal lógica. Segundo Chion (1994), não é sequer
uma questão de lógica mas apenas de síntese das acções percebidas auditiva e visualmente como
síncronas.
O audiovisual está bem equipado para enganar os nossos sentidos e fazer-nos percepcionar o que é
falso como verdadeiro. A natureza construída do som, no cinema e nos outros media, passa
facilmente despercebida. Sem um mínimo conhecimento dos procedimentos de manufactura dos
elementos que a compõem e de como se estrutura, não é possível tomar consciência da
complexidade da componente sonora do audiovisual. Tal conhecimento é necessário para se poder
entender o papel e avaliar a importância que o som assume na construção de sentido no
audiovisual.
64
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
3.2.3. Como escutamos um filme
Quando assistimos a um filme “temos a impressão de que as pessoas e as coisas no ecrã
produzem o ruído adequado” (Bordwell & Thompson, 2008:264) ou, como diz Chion (1994:5),
temos a sensação de que o som se “desprende naturalmente do que vemos e está já contido na
própria imagem”.
Todos mais ou menos sabemos que no cinema ou no vídeo a percepção do movimento resulta de
uma ilusão provocada por uma rápida sucessão de quadros (designação usada para o vídeo; no
cinema chamados fotogramas) que não passam de imagens fixas registadas a cada fracção de
segundo (1/24 ou 1/25). Sabemos igualmente que um filme é composto de várias tomadas de
vista (takes) feitas pela câmara -- a que chamamos planos --, que não são mais do que umas
centenas ou milhares dessas unidades a que chamei quadros registando o objecto filmado. É
preciso depois montar esses planos, ou seja, ligá-los segundo uma sucessão (crono)lógica definida
para obter o produto final. Esta sucessão dá uma ilusão de continuidade visual, que na realidade
não existe. Temos portanto a consciência de que o que vemos no ecrã é uma construção.
Ora, o áudio é tão construído como o visual. Pode-se mesmo dizer que é mais construído no sentido
em que resulta quase sempre de um processo técnico mais longo, mais complexo e com mais
elementos. A cada plano visual é quase sempre associada uma mistura de vários sons – vários
planos sonoros, se quisermos usar uma terminologia análoga à usada para o visual. Dito de outro
modo, raramente uma tomada de imagem pela câmara de filmar é sonorizada com apenas uma
tomada de som por um microfone. O som tem um papel primordial na ilusão de continuidade. No
entanto, o que na verdade escutamos não passa de “fragmentos sonoros (…) unidos uns aos outros
para produzir a impressão de um persistente e sempre presente ambiente sonoro” (Elsaesser &
Buckland, 2002:14).
É importante esclarecer mais profundamente a definição de plano. No cinema não podemos falar
propriamente de imagem (visual) mas devemos sim falar de séries de imagens que são registadas e
depois projectadas (à cadência de 24 ou 25 por segundo) no ecrã. Mais útil é a noção de plano que
define uma série sucessiva dessas imagens. Em cinema falamos de plano em dois contextos: (1) o
que corresponde a uma tomada de vistas pela câmara (entre o ligar e o desligar do interruptor); (2)
o que corresponde a um excerto dessa mesma tomada usado na montagem. O plano não apenas
65
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
se define por uma duração, mas também por um recorte do espaço visual no que chamamos
enquadramento – correspondente aproximadamente ao rectângulo projectado no ecrã. Ao que está
dentro do enquadramento, os teóricos do cinema convencionaram designar por campo. O que está
fora de campo só pode ser comunicado pelo som. As noções de campo e de fora de campo só se
aplicam com propriedade em relação ao visual, mas é usual aplicá-las aos sons cuja fonte
respectivamente podemos, ou não, atribuir ao visível.
Um plano de câmara pode dar origem a vários planos de montagem. Como é evidente, na análise
de filmes só podemos usar o termo nesta última acepção. Por vezes, um plano de câmara é dividido
em dois planos na montagem pela inserção de outro diferente (insert) sem que no entanto a sua
continuidade seja interrompida: neste caso podemos considerá-lo um único plano. Durante um
plano o enquadramento pode alterar-se pelo movimento da câmara. Este pode ser de translação – o
travelling – ou de rotação – a panorâmica. Ou pode resultar duma alteração óptica numa objectiva
de distância focal variável: a zoom.
A proximidade relativa da figura humana representada no enquadramento dá origem a uma
classificação dos planos segundo uma escala de grandeza que vai do plano de pormenor ao plano
geral. As designações e definições variam de autor para autor e não merecem aqui muita atenção
porque um conhecimento genérico deste sistema será suficiente para a leitura deste trabalho.
No que concerne ao som o conceito de plano não se aplica, pelo menos não com estes mesmos
sentidos. A palavra plano aplica-se ao som geralmente apenas para significar as distâncias relativas
das diferentes fontes sonoras ao ouvinte (por analogia com o conceito visual de perspectiva):
primeiro plano, segundo plano, … fundo. A principal razão de não se poder aplicar ao som a mesma
definição de plano é ser impossível recortar o espaço sonoro com o microfone do mesmo modo que
a objectiva recorta o espaço visual. O microfone (tal como o nosso ouvido) não é capaz de impor
uma moldura ao som. Em vez disso capta sempre inevitavelmente o que para a objectiva fica fora
de campo.
Tecnicamente é possível reduzir a captação de som a um ângulo relativamente reduzido do campo
sonoro – com microfones chamados unidireccionais –, mas nunca com a mesma precisão duma
objectiva. A única maneira de definir exactamente que sons se irão escutar no filme é (re)construir o
espaço sonoro misturando esses sons captados isoladamente, um a um. Isto só é possível
66
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
produzindo os sons no ambiente silencioso de um estúdio, ou então aproximando o microfone da
fonte que mais nos interessa de tal modo que as restantes se tornem praticamente inaudíveis.
3.2.4. A realização sonora do filme
"Nenhum analista brilhante apareceu para definir os três elementos que regem o emprego do som:
a palavra, a música e o ruído: Esses elementos sempre fizeram parte do cinema. Havia chegado o
momento de serem organizados definitivamente na própria concepção do filme, pois o som, como a
imagem, é parte integrante deste" (Cavalcanti, 1951:157)
A realização técnica do som de um filme integra basicamente três etapas: 1) captação (tomada) dos
sons, 2) montagem e 3) mistura. Exceptuando a mistura final, que é a tarefa definitiva, estas etapas
podem multiplicar-se por várias fases.
Tecnicamente, é costume distinguir os elementos sonoros que constituem o filme em três tipos: voz,
música e ruídos. A distinção tem em conta não só as diferentes dimensões semióticas como os
diversos processos técnicos de captação, edição e processamento. Como dizem Elsaesser e
Buckland (2002:14), “para converter som ou imagem em material com significação fílmica é antes
do mais necessário separar e retalhar os vários elementos para que depois possam ser
combinados”. Em termos do áudio, esses retalhos são o que podemos designar por objectos
sonoros.
Embora alguns sons síncronos possam ser captados em directo – isto é, em simultâneo com as
tomadas de vistas, como acontece amiúde com os diálogos – só muito raramente esse é todo o
som presente no filme. A maior parte dos ruído, e quase invariavelmente a música são captados em
momentos e locais diferentes. Muitos ruídos podem ser recolhidos em audiotecas constituídas por
registos previamente existentes. Quando não queremos utilizar os diálogos gravados no momento da
filmagem – por opção artística ou por razões técnicas – voltam a gravar-se, normalmente num
estúdio. Os actores repetem os diálogos enquanto visualizam as cenas do filme já montadas, num
processo designado de pós-sincronização. Podem ser gravados assim a totalidade dos diálogos ou
apenas aqueles que necessitamos substituir. Os diálogos gravados em estúdio são posteriormente
processados, para adquirirem as características acústicas adequadas aos espaços físicos das cenas
a que pertencem. Muitas vezes é necessária uma prévia mistura das vozes – quando os actores não67
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
gravam em simultâneo ou no caso de serem utilizados vários microfones.
Salvo raras excepções a música é igualmente gravada em estúdio. Normalmente um estúdio maior
do que o usado para as vozes, especialmente quando se trata de uma orquestra. É sempre
necessária uma mistura prévia após a gravação da música uma vez que são usados vários
microfones e nem sempre todos os instrumentos são captados em simultâneo. As peças musicais
mais longas normalmente são gravadas por partes e precisam de sofrer um processo de montagem
para recuperarem a sua integralidade a partir das várias tomadas bem sucedidas.
Os ruídos podem ser captados directamente da sua fonte original ou recriados em estúdio num
processo de pós sincronização semelhante ao das vozes. Este último processo é chamado bruitage
(de bruit, ruído em francês) ou foley (de Jack Donovan Foley, americano alegado inventor do
processo) em inglês. O termo francês foi adoptado muitos anos no nosso país mas parece agora ter
caído em desuso. O foley é uma designação mais específica que designa apenas a recriação de
ruídos em estúdio, distintos dos restantes sound effects (designação anglo-saxónica para ruídos)
que podem ser captados nos seus ambientes reais. A tradução para português desta última
designação pode tornar-se dúbia pelo que não a utilizarei aqui: o termo efeito sonoro utiliza-se em
português mais usualmente para significar as alterações às características originais do som
introduzidas artificialmente com a ajuda de equipamentos ou programas informáticos
processadores de efeitos.
Os artistas especializados na criação de ruídos em estúdio utilizam uma infinidade de objectos e
materiais (muitas vezes insólitos) para simular os ruídos de vestuário, choques, passos, portas,
etc... A criação de sons incomuns, como os que escutamos em filmes de ficção científica ou de
terror, geralmente envolve o processamento e mistura de vários ruídos com características diversas.
Na etapa de montagem, as gravações de som são divididas nos vários objectos sonoros e estes
colocados no lugar achado pertinente em relação às imagens visuais. Até quase ao final do século
vinte, esses objectos sonoros materializavam-se realmente em pedaços de fita magnética onde
estavam registados os sons de cada tomada, que se iriam colar uns aos outros. Conforme a
complexidade do trabalho, um filme podia necessitar de um número maior ou menor destes
retalhos de fita organizados em sincronismo uns com os outros. A invenção de gravadores multipista
– que permitem registar sons lado a lado numa mesma fita – veio eliminar a necessidade de usar
68
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
várias fitas magnéticas separadas. Hoje em dia, com o áudio digital, cada um desses objectos
sonoros corresponde a um ficheiro informático e a sua organização é realizada em programas que
nos facultam, no ecrã do computador, imagens virtuais desses objectos que dispomos em
simulacros de fita multipista.
A montagem trata da sincronização dos elementos sonoros com os visuais, mas também da
continuidade. A continuidade é assegurada pelo modo como o som se prolonga de um plano visual
para o seguinte criando a ilusão de um ambiente sonoro ininterrupto. Voz, ruído ou música, cada
um pode assumir este papel, mas a continuidade é mais geralmente dada pela constância das
características acústicas do espaço cénico (reverberação). A indicação de que nos mantemos num
espaço ou mudamos para um outro encontra-se no fundo sonoro indefinido de que se destacam os
sons que mais directamente se dirigem à nossa escuta – que classicamente são os diálogos.
Quando necessário, é também nesta etapa que são seleccionados os efeitos que referi acima, que
modificam as características originais dos sons – por isso, a montagem é actualmente designada
pelo termo edição, no sentido de que deixou de ser um simples processo de corta e cola. As
modificações tanto podem ser operadas com o intuito de esconder as proveniências diversas dos
sons como, pelo contrário, de tornar esses sons estranhos a anómalos. Esta percepção de coerência
ou incoerência entre visão e audição é medida por uma virtual adesão que possa ou não existir dos
sons ao cenário e aos eventos projectados no ecrã.
Na mistura definem-se a intensidade, a duração, a tonalidade e também a hierarquia dos objectos
sonoros segundo a relevância que cada um deve assumir em cada momento do filme. O objectivo
da mistura é conduzir a atenção do espectador não só para o que desejamos que ele escute mas
também para aquilo que queremos que ele observe no ecrã.
A mistura deve ter em conta o local e os meios em que o filme vai ser exibido. Por norma é feita
num espaço com características idênticas às de uma sala de cinema. Há que garantir que o
comportamento acústico da sala de cinema não vai alterar o equilíbrio dos sons e perturbar a
escuta que se deseja para o espectador. Uma diferente mistura deve ser feita para a edição em DVD
destinada à exibição numa sala de estar, por exemplo. Outro aspecto importante a ter em conta é o
formato final do áudio: mono, estéreo ou surround.
69
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
A realização do som de um filme pode envolver uma grande quantidade de pessoas especializadas
em cada uma das diversas tarefas, e muitas horas de trabalho. É o que acontece por norma na
indústria do cinema: vozes, música e ruídos envolvem cada um a sua equipa, com vários membros
especializados na criação (escrita), interpretação, gravação, edição (montagem) e mistura. Até ao
surgimento da figura do sound designer, no final da década de 1970, raramente havia contacto
entre as diversas equipas antes da mistura final. Tudo isto é invisível para o espectador comum: em
parte porque o trabalho é feito para passar despercebido, mas sobretudo porque quem assume a
responsabilidade de chamar a atenção do espectador comum para o que é menos óbvio tem
desvalorizado esse trabalho enquanto actividade criativa e contributo decisivo para a arte e a
comunicação cinematográficas. A verdade é que, quase noventa anos depois do advento do sonoro,
ainda perdura o preconceito de que o cinema é uma arte visual. "A crença de que as técnicas aurais
são um meio de expressão inferior às visuais é partilhada pela maioria dos académicos de hoje e,
efectivamente, por muitos cineastas" (Weis, 1982:13).
3.2.5. Relação dos objectos sonoros com o ecrã
Em relação à imagem projectada no ecrã os elementos sonoros definem-se pelo sincronismo
aparente com as acções visualizáveis – ditas em campo. Os sons assíncronos são entendidos como
provenientes ora de fontes pertencentes ao cenário da acção ainda que não visíveis – fora de
campo –, ora de origem externa a este e portanto desconhecida – off.
A colocação do microfone em relação à fonte sonora a captar determina um ponto de escuta, que
pode ou não coincidir com o ponto de vista da câmara que resulta no quadro visível no ecrã. A
situação que vivenciamos quotidianamente é a da coincidência entre o ponto de vista e o ponto de
escuta. Os ouvidos não se destacam da nossa cabeça para deambular pelo mundo escutando o que
os olhos não podem alcançar, o que, pelo contrário, é coisa muito comum no cinema. Não estão
porém limitados a um campo frontal, como acontece com a visão. Por isso estamos habituados a
escutar sons cuja proveniência apenas podemos conjecturar. No cinema, o que escutamos pode
coincidir com o olhar exterior – que é o do realizador, ou mais exactamente da objectiva – mas pode
noutro momento identificar-se com a audição de uma personagem, ou mesmo ser uma mistura de
várias audições com diferentes origens – uma escuta ubíqua.
70
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
A coincidência de ponto de vista e ponto de escuta pode resultar de som directo – que é captado
durante as tomadas de câmara –, ou ser artificialmente construída na montagem, adicionando som
gravado em estúdio. Não é apenas o sincronismo que conta: é necessária uma coerência das
perspectivas visual e acústica. A adesão a um ponto de escuta único parece caracterizar um cinema
de distanciação – em que o espectador é mantido de fora dos acontecimentos no ecrã –, ao passo
que a utilização de múltiplos pontos de escuta almeja a imersão do espectador no universo ficcional
criado pelo filme.
Paralelamente à sua colocação em relação às imagens visuais, os sons organizam-se uns em
relação aos outros. Esta organização é feita em dois eixos: 1) diacrónico: que determina a sua
ordem no tempo; 2) sincrónico: que define uma hierarquia entre os sons escutados em simultâneo.
A operação que finalmente realiza essa organização é a mistura.
No eixo diacrónico, define-se como se sucedem os sons: por corte – um acaba e outro começa –,
por fundido – em fade in ou fade out, conforme começa ou termina em silêncio por uma variação
de intensidade realizada artificialmente –, ou encadeado – se o surgimento de um coincide com o
desaparecimento do anterior. Como disse, o corte é uma situação rara para o sonoro embora seja
norma para o visual, em que a mistura de planos é rara, e o fundido ou o encadeado pouco
frequentes. A menos que haja a intenção de provocar um choque auditivo, a mudança do som de
um plano para o do outro é normalmente disfarçada com um imperceptível encadeado ou fazendo
os sons prolongarem-se de um plano para o outro -- como se verifica quase sempre com a música e
os sons ambiente.
No eixo sincrónico, a mistura opera a colocação de uns sons em primeiro plano e de outros em
fundo, controlando a intensidade relativa de cada um. Outras características como o timbre, a
reverberação ou a espacialização (em estereofonia ou surround) podem também ser alteradas para
melhor estabelecer a hierarquia de sons audíveis. Esta hierarquização não é apenas uma operação
técnica para que a escuta de todos os sons simultâneos seja possível: é um passo decisivo para a
definição do que se quer que o espectador escute e como escuta, e conequentemente para o
sentido que se quer produzir.
71
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
3.2.6. Funções clássicas do som no cinema
A distinção entre a construção sonora no cinema clássico e noutros cinemas – e não apenas o de
Manoel de Oliveira que aqui está em discussão – não deve ser procurada na disparidade dos meios
de produção técnica de que cada um dispõe e que é geralmente patente com alguma evidência. A
diferença não está nos meios mas no modo como cada um os utiliza. Nos parágrafos que se
seguem, faço uma breve síntese dos usos mais padronizados do som, a que o cinema clássico nos
habituou. Apesar de um grande número de convenções ter perdurado ao longo de décadas, isso não
significa que elas sejam definitivas ou que não estejam constantemente em mutação, adaptando-se
a novas tendências.
Organizei a síntese segundo a tipologia em que geralmente são sistematizados os objectos sonoros
no cinema, mas sem obedecer à hierarquia que concede privilégio à voz/palavra.
Música
De todo o tipo de sons que estamos habituados a escutar num filme, a música é o que desde mais
cedo aparece ligado ao cinema. Assim que a exibição de filmes se começa a tornar uma actividade
regular – ou mesmo desde a "primeira mostra pública do cinematógrafo Lumière" (Marks, 1997:3)
– a música é chamada a associar-se-lhe. Diz a tradição que a presença da música se destinava
originalmente a ocultar o ruído do projector, mas estudos fundamentados sobre o som no cinema
(Kracauer, 1960; Gorbman, 1987; Marks, 1997; Wierzbicki, 2008; Kalinak, 2010) refutam esta
convicção e apontam na direcção duma utilização da música pelo seu poder comunicativo, isto é,
com o intuito de ajudar a dar um sentido às imagens projectadas no ecrã. Como assinalam
Kracauer (1960:133), Gorbman (1987:37) e Kalinak (2010:23) o ruído dos projectores rapidamente
foi eliminado com a criação das cabinas de projecção, mas esse facto não fez desaparecer o
acompanhamento musical dos filmes.
A música sempre forneceu ao filme a continuidade que falta às imagens visuais, captadas pela
câmara de filmar de diversos ângulos, e que obrigam o olhar do espectador a subitamente saltar de
um ponto de vista para o outro. Simultaneamente a esta função de “unificação” (Chion, 1994:47) o
acompanhamento musical actua como uma “pontuação” (Chion, 1994:48) que indica ao
72
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
espectador como deve ler o filme e determina o ritmo deste. No tempo do mudo um piano, um
órgão ou uma orquestra acompanhavam a projecção do filme pontuando e sublinhando as acções
no ecrã, sugerindo ao espectador a resposta emocional adequada.
No advento do sonoro a presença da música reduziu-se em duração porque tinha de alternar a sua
presença com os diálogos, por força das limitações técnicas dos primeiros sistemas áudio. Mas logo
que a mistura de vários sons foi tecnicamente possível, a música recuperou a sua função de alicerce
da sonorização do filme. A sua presença tornou-se tão constante que Stravinsky comparou a música
de filme ao papel de parede “não só por ser tão fortemente decorativa como porque preenche
fendas e alisa superfícies rugosas” (citado em Bordwell, Staiger & Thompson, 2005:32). Ainda hoje
é difícil detectar na maioria dos filmes de Hollywood um momento sem música, a menos que essa
pausa tenha a função expressa de criar um silêncio, uma tensão dramática, de destacar um diálogo
especialmente importante.
A esta música que forra a quase totalidade do filme, música executada para passar quase
despercebida, que vai sublinhando ou reforçando a linha de tensão dramática do filme e nos indica
o que devemos sentir, dá-se o nome de underscoring. Chion (1994) chama-lhe "música de fosso",
por analogia com a que procede do fosso usado pela orquestra nos espectáculos de ópera. Outra
técnica de composição utilizada desde cedo foi o mickeymousing – sincronização da música com
cada movimento dum objecto ou personagem, vulgarizada pelas animações de Walt Disney. Muito
comum e característico é igualmente o uso do leitmotiv – tema musical que se vai repetindo e se
identifica com uma personagem, uma situação, um sentimento, etc... Esta técnica de composição é
geralmente atribuída a Richard Wagner (1813–1883), mas já antes fora muito utilizada,
nomeadamente por Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791) na ópera Cosi fan tutte e por Carl
Maria von Weber (1786–1826) na ópera Der Freischütz (Zettl, 2011:310).
Todas estas técnicas contribuem para uma narração fluida e sem sobressaltos. A música do filme
clássico herda as suas funções do melodrama do século dezoito, e as suas técnicas de composição
da música de ópera e sinfónica dos finais do século dezanove (Bordwell, Staiger & Thompson,
2005:33).
73
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
São os seguintes os “Princípios de Composição, Mistura e Edição” musical do cinema clássico,
segundo Gorbman (1987:73):
“I. Invisibilidade: o dispositivo da música não diegética não deve ser visível.II. Inaudibilidade: a música não é para ser escutada conscientemente. Como tal deve subordinar-seao diálogo e ao visual – isto é aos veículos principais da narrativa.III. Significante de emoção: a música pode estabelecer ambientes específicos e enfatizar emoçõesparticulares sugeridas pela narrativa, mas antes e acima de tudo significa a própria emoção.IV. Indicador narrativo: – referencial: a música fornece deixas referenciais e narrativas, por exemplo, indicando ponto devista, fornecendo demarcações formais, e estabelecendo situações e personagens;– conotativa: a música 'interpreta' e 'ilustra' os eventos narrativos.V. Continuidade: a música fornece continuidade formal e rítmica – entre planos, em transições entrecenas, preenchendo 'hiatos'.VI. Unidade: pela repetição e variação do material e da instrumentação, a música ajuda naconstrução da unidade formal e narrativa.VII. Uma composição musical para filme pode violar qualquer um destes princípios desde que o façaao serviço dos outros princípios”.
Em qualquer das suas funções a música é fundamental na produção de sentido no cinema clássico.
Para além de dizer ao espectador como este se deve sentir a cada momento do filme, a música
embala-o num efeito quase hipnótico que inibe o sentido crítico e o faz mergulhar no espaço
ficcional do filme.
Apesar da sua constante presença, a música no cinema clássico não é para ser escutada. Na lógica
do real, a presença da música em qualquer situação em que não tenha uma fonte identificável não
tem razão de ser ou é, no mínimo, perturbadora. A sua presença só é compreensível e aceitável no
âmbito desta convenção ficcional que lhe atribui um papel específico na construção de sentido.
Voz (palavra)
A constante presença da música não retira à voz o papel central que lhe é reservado no cinema
clássico. Voz feita verbo, a palavra é o principal veículo para o avanço da narrativa. A possibilidade
da sincronização do diálogo com a acção do filme é talvez o momento chave da consolidação do
estilo clássico. Não é por acaso que na maior parte das línguas se chama cinema falado ao que em
Portugal se convencionou designar por cinema sonoro. O principal obstáculo a um fluir sem
sobressaltos do filme mudo era a necessidade dos intertítulos – legendas que interrompiam a acção
para revelar diálogos ou qualquer informação que de outro modo não podia ser comunicada pelo
74
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
filme.
No cinema clássico a voz humana assume quase invariavelmente o primeiro plano sonoro, e fá-lo
maioritariamente sob a forma de diálogos. Dar a escutar os diálogos de forma clara e precisa é a
função primordial do técnico de som. “O propósito do controlo acústico na gravação é tornar o som
tão correlacionado com a imagem que todo o desempenho [dos actores] se torne agradável ao
ouvido e fácil de entender”. (Maxfield, 1930:409). Como nota Doane (1985:163), “na prática, o nível
do diálogo geralmente determina os níveis dos ruídos e da música”. Por mais ruidoso que seja o
ambiente, por mais distante que esteja a personagem que fala, o som da voz deve ser sempre nítido
e destacado do ambiente. Esta qualidade dos diálogos é um dos maiores mistérios e paradoxos no
naturalismo do cinema clássico: a facilidade com que nós espectadores aceitamos como real uma
percepção auditiva que tanto se afasta das possibilidades do mundo real.
É um cinema “vococentrado” diz Chion (1994), que privilegia a voz e a faz destacar-se dos restantes
sons. E é sobretudo “verbocentrado” (Chion, 1994) na medida em que encara a voz
prioritariamente como meio de expressão verbal, preocupando-se mais com a inteligibilidade do
discurso do que com outros aspectos da sonoridade vocal. Segundo Kozloff (2000:44), esta
tendência verbocêntrica levou o cinema clássico a instituir como principais as seguintes funções dos
diálogos:
“1. ancoragem da diegese e das personagens;2. comunicação da causalidade narrativa;3. verbalização de eventos narrativos; 4. revelação das personagens;5. adesão ao código de realismo;6. controle da avaliação e emoções do espectador”.
Apesar de o cinema clássico ser geralmente tido como um cinema de acção, não deixa de ser
simultaneamente muito tagarela. A palavra não só enquadra a acção, explicando a sua necessidade,
como é ela própria acção quando faz rapidamente avançar a história, enunciando sinteticamente o
que não nos é dado ver no ecrã (e não me refiro aqui à chamada voz off, que narra ou comenta o
que se pode ou não ver no ecrã). Os diálogos obedecem geralmente ao princípio realista do cinema
clássico, mas fazem-no segundo convenções que o afastam do modo como na realidade as pessoas
conversam. São sintéticos e depurados embora aparentemente coloquiais. Todas as “hesitações,
repetições, digressões, grunhidos, interrupções e murmúrios da conversa quotidiana” (Kozloff,
75
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2000:18) desaparecem, a menos que lhes seja reconhecida alguma utilidade específica.
As funções detectadas por Kozloff são bem reveladoras da importância da voz – ou mais
precisamente dos diálogos – na construção de sentido no cinema clássico. Mas a autora também
revela que uma boa parte dos diálogos produzidos num filme não passa de “representação da
actividade de conversação vulgar, ou 'papel de parede verbal'” (Kozloff, 2000:47).
Ruídos
Todos o sons que não cabem nas categorias de música ou de diálogos são chamados ruídos. O
termo ruído tem neste contexto o sentido que usualmente lhe é dado na música, o de um som
desarmónico, de vibração irregular, e não o de perturbação da comunicação sonora. A terminologia
anglo-saxónica sound effects (efeitos sonoros) dá talvez melhor conta da distinção entre um conceito
de ruído entendido como efeito, em contraste com o do ruído que resulta de um defeito no sinal
áudio. A designação efeito sonoro tem o senão de sugerir que existe sempre uma alteração
intencional das qualidades originais dos ruídos usados no audiovisual, o que nem sempre acontece
e que torna a utilização do termo igualmente dúbia.
O principal objectivo dos ruídos no cinema clássico é contribuir para a impressão de realidade do
mundo representado no filme. Para isso são seleccionados e usados apenas os que podem ajudar a
construir o sentido que se pretende. Só estes são aceites como fazendo parte da narrativa fílmica:
qualquer outro funcionará como uma anomalia técnica indesejada. Também no mundo real nós só
escutamos uma parte do que ouvimos, seleccionando os sons que nos parecem significativos e
ignorando os restantes.
A impressão de realidade resulta dum efeito de “síncrese” (Chion, 1994) pelo qual somos levados a
associar os ruídos às acções que vemos no ecrã, ainda que na realidade os ruídos não tenham
qualquer relação com as personagens ou objectos representados. A prática da sonorização do
cinema clássico tende a ser: “vemos um cão, ouvimos um cão” (Giannetti, 2007:233). Excepto em
cenas de suspense, em que é deliberadamente procurado um efeito de ambiguidade, raramente os
ruídos surgem sem ligação inequívoca a um referente visual. Os ruídos fazem soar real tudo o que
no filme é falso: a pancada de um murro, o quebrar de vidro ou de madeira, as portas que rangem
76
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
e os tecidos que restolham...
Os ruídos no cinema clássico podem ter ocasionalmente um valor simbólico, mas apelam
principalmente à proximidade física do espectador com o espaço representado no filme: ruídos de
ambiente, que caracterizam o espaço acústico da acção. Os sistemas surround servem
praticamente apenas para a (re)produção de ruídos à roda do espectador, ficando diálogos e música
geralmente confinados aos altifalantes situados à sua frente (atrás do ecrã).
Raramente os ruídos assumem o protagonismo impondo a sua presença sobre a voz ou a música.
Na maior parte do tempo os ruídos residem num fundo sonoro que se destina a dar alguma textura
às imagens visuais e que aparentam mesmo ser parte indissociável destas. Quando assumem o
protagonismo é porque representam qualquer coisa mais forte do que a vontade humana, com um
carácter trágico – um trovão, um tiro, um grito...
À medida que os meios técnicos foram permitindo um maior detalhe na representação do som,
aumentado a fidelidade ao timbre e às variações de intensidade do som original, a utilização dos
ruídos foi-se tornando cada vez mais rica e complexa. Por vezes mesmo, demasiado complexa,
preenchendo o espaço acústico do filme com um excesso de sons que se tornam redundantes para
o sentido do filme.
O espaço acústico do filme criado pelos ruídos não só produz uma impressão de realidade como
contribui para estabelecer o clima emocional da cena. Os ruídos servem portanto para criar o
ambiente da cena no duplo sentido deste conceito: por um lado, estabelecendo o espaço físico
quase táctil em que se passa a acção, por outro lado, criando o clima que fornece ao espectador
indícios sobre o estado emocional das personagens.
O naturalismo sonoro
No cinema clássico, voz, música e ruídos obedecem a um mesmo princípio de naturalismo,
aparentando fazer parte integrante do que vemos no ecrã, encadeando-se uns nos outros durante a
mistura, de modo a mascarar a descontinuidade dos planos visuais. O princípio geral é o de uma
aproximação da perspectiva sonora à perspectiva visual, como se a câmara fosse o olho e o
77
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
microfone os ouvidos de um espectador imaginário (Maxfield, 1930). Simultaneamente o espectador
do cinema clássico é um espectador omnisciente, a quem é dado ver e escutar a partir de situações
e em perspectivas impossíveis no mundo real. Por outro lado, nem sempre olhos e ouvidos são
colocados perante perspectivas coincidentes, o que dá ao espectador um sentimento de ubiquidade.
De toda a falsidade de que é construído o realismo do cinema clássico, a música é o elemento
sonoro que mais se afasta de uma ligação ao real e a uma necessidade de sincronismo com as
acções visualizadas. Em contrapartida não foge à função geral do som como suavizador das
bruscas mudanças visuais que acontecem a cada mudança de plano.
A invisibilidade do som liberta-o de algumas limitações que a mediação audiovisual impõe ao visível.
Visualmente o filme confina-se a um ecrã. Este rectângulo representa (a duas dimensões) um
campo visual limitado relativamente ao que naturalmente a nossa visão poderia abarcar. A nossa
visão das cenas é dirigida pela escolha das posições da câmara e da objectiva para cada plano. O
ecrã determina assim o espaço visual do filme. Em contraste com a imagem visual, a imagem
sonora não é contida pelo ecrã. O microfone não pode limitar o campo audível tal como a câmara
limita o visível. Nem tampouco o podem fazer as colunas de som que emitem o som na sala de
cinema. Enquanto o enquadramento limita a nossa visão, o som transborda do espaço da
representação, que é o ecrã, para o espaço da recepção.
As salas de cinema são construídas de modo a anular toda a acústica própria: é o som que sai dos
altifalantes que (re)cria o espaço que o ecrã reduz a um rectângulo na parede. Na sala às escuras
alheamos-nos completamente do espaço onde estamos e, sem outra referência visual que não seja
o ecrã, deixamos que o som que dele parece emanar nos envolva. Nas últimas décadas o cinema
clássico tem explorado esta particularidade do som, desenvolvendo sistemas surround, procurando
uma cada vez maior imersão do espectador no universo ficcional do filme. O som envolve-nos
fisicamente e puxa-nos para o mundo que está para lá do ecrã (como Alice para o outro lado do
espelho).
Como já referi anteriormente, a imagem visual é sempre uma representação, mais ou menos fiel de
objectos físicos existentes. Procede assim a uma transposição duma realidade que são os objectos
para outra realidade que é a das imagens projectadas no ecrã. A imagem visual mantém uma certa
dose de materialidade ainda que diferente da do objecto da representação. O que vemos no ecrã
78
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
parece-nos ainda fazer parte duma experiência táctil para além de visual. O som não tem esse
carácter concreto. É uma entidade imaterial sem a qualidade táctil que permite distinguir os objectos
da sua imagem. A imagem sonora não tem um referente auditivo que não seja o próprio som. O
som real não é fisicamente distinto do som ficcional. Como afirmam Elsaesser & Hagener
(2010:134-135), “a reprodução mecânica do som resulta, tal como o som original, na difusão de
ondas acústicas através do espaço, trazendo de facto uma cópia mecânica em certo sentido mais
próxima da repetição do original do que duma reprodução ou representação” .
O som liberta-se do ecrã tão imediatamente como das suas fontes originais. Contudo, isto não quer
dizer que o espectador o entenda como desligado do que vê no ecrã. O sentido do som no
audiovisual é indissociável da sua relação com as imagens visuais a que aparece ligado. Elas como
que oferecem uma forma ao som, que surge então como seu conteúdo. A liberdade do som é
relativa ao rectângulo físico do ecrã mas não ao que nele é representado. Na opinião de Altman
(1980), a liberdade de que goza o sonoro relativamente ao visual tem várias ramificações no
cinema. E exemplifica com as duas provavelmente mais influentes no sentido do filme: "1) a
capacidade do som ser ouvido do outro lado duma esquina torna-o o método ideal para introduzir o
invisível, o misterioso, o sobrenatural (já que imagem=visível=real); 2) este mesmo poder transporta
consigo um concomitante perigo – o som carregará sempre consigo a tensão do desconhecido até
que seja ancorado pela visão" (Altman, 1980:74).
79
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
4. MÉTODO
No que diz respeito ao desenho do método, o percurso foi sinuoso. Por isso será oportuno
contextualizá-lo com a explicação das opções que fui fazendo ao longo do caminho. As escolhas
foram condicionadas principalmente por três aspectos da investigação: a literatura de
fundamentação teórica, o corpus analisado, e as ferramentas de análise.
Em primeiro lugar, há que deixar claro que a análise é focada no lado da recepção embora as
ferramentas apontem para o exame do processo de produção. Manoel de Oliveira afirma
repetidamente nas suas entrevistas que os seus filmes só estão terminados quando os espectadores
a eles assistem (Oliveira, 2007:3). Não há verdadeiramente sentido para o filme senão no momento
da recepção, embora inevitavelmente o acto de o realizar pressuponha uma vontade de que esse
sentido seja atingido. Todo o esforço de comunicação carrega em si a vontade de um significado.
Este poderá não ser totalmente premeditado ou previsível à partida mas é certamente desejado à
chegada. Gomes (2004:95) diz que "o papel do criador, do compositor de representações (o poeta,
para Aristóteles) é projectar, prever e organizar estrategicamente os efeitos que se realizarão na
apreciação, que são adequados ao seu género de obra".
No seu artigo sobre poética do cinema, Gomes expõe muito claramente as questões que se colocam
à análise de um filme e a dificuldade em estabelecer um método para a realizar: "face à ausência
de qualquer disciplina hermenêutica capaz de oferecer garantias demonstrativas suficientes para
produzir convicção para além do limite do subjectivo e do íntimo, e ainda de qualquer disciplina
capaz de oferecer um terreno público e leal para a disputa interpretativa, a análise acaba por apoiar-
se inteiramente nas qualidades particulares do analista, ou seja, no seu talento, sua cultura, suas
habilitações literárias, sua sorte – ou na falta de todas elas" (Gomes, 2004:87).
Isto é, por muito rigoroso que sejam o método e a colheita de dados, em última instância a
interpretação destes dados é inevitavelmente individual e subjectiva. Não podemos fugir às
diferenças de bagagem cultural e experiência de vida que existem entre nós espectadores; portanto
só é possível ao analista sugerir interpretações prováveis e nunca fazer afirmações definitivas.
80
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Mesmo no cinema clássico, os códigos e convenções com pretensão universalista que facilmente
identificamos vão sendo reconfigurados e recontextualizados de filme para filme. "Compreender
bem um filme dificilmente pode coincidir com a identificação de uma lei geral da natureza do filme,
à luz da qual a peça particular seria nada mais do que o acontecimento específico de um caso
universal" (Gomes, 2004:91). Em vez disso "o entendimento de um filme resulta da compreensão
daquilo que tem de singular, único e específico" (Gomes, 2004:92).
Como alternativa, Gomes (2004:95-96) defende uma "poética aplicada ao cinema [que] terá de
constituir-se como um programa teórico e metodológico" assente em dois pressupostos: (1) "o filme
pode ser entendido correctamente se é visto como um conjunto de dispositivos e estratégias
destinadas à produção de efeitos sobre o seu espectador", e (2) "um filme não existe como obra em
nenhum lugar ou momento a não ser no acto da sua apreciação por qualquer espectador". Propõe
a poética como alternativa à hermenêutica, mais usual na análise fílmica. Na tradição dos estudos
literários a distinção entre as duas está em que "a poética começa pelos significados ou efeitos
constatados e pergunta como eles são atingidos" e "a hermenêutica, por outro lado, começa pelos
textos e pergunta o que eles significam, procurando descobrir novas e melhores interpretações"
(Culler, 2000:61). Na abordagem poética há que manter uma atitude crítica em relação ao filme que
se analisa, focando-nos no que efectivamente ele nos dá a observar e a escutar, mantendo em
segundo plano quaisquer conjecturas sobre as intenções prováveis do cineasta.
Segundo Gomes (2004:100-101), são três os tipos de efeito do filme sobre o espectador, cada qual
implicando um diferente modo de organização do material que compõe o filme: (1) "composição
estética (de aisthesis, sensação), no sentido de que aqui os meios e os materiais são estruturados
para produzir efeitos sensoriais"; (2) "composição comunicacional, pois meios e materiais são
organizados para produzir sentidos"; (3) "composição poética", em que os "recursos, meios e
materiais são agenciados para produzir efeitos emocionais ou anímicos no espectador". Nesta
última modalidade, "os materiais não se estruturam para produzir uma sensação mas um
sentimento; não se organizam para fazer emergir uma ideia ou uma noção, mas para gerar um
estado de espírito, um estado de ânimo" (Gomes, 2004:101).
A minha investigação e análise focam-se sobretudo na segunda modalidade, ou seja, no modo como
os elementos que compõem o filme – e com mais evidência os sonoros – são seleccionados e
organizados com a finalidade de produzir sentido.
81
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
4.1. A QUESTÃO DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Já anteriormente referi a dificuldade em encontrar o enquadramento teórico para a minha
investigação sobre o som no audiovisual. A análise das imagens visuais – que, por exemplo, tem
merecido da semiótica social estudos muito citados (Kress & Leeuwen, 2006; Leeuwen & Jewitt,
2008) – não tem sido devidamente acompanhada do estudo das imagens sonoras.
À partida para a investigação, fui assim confrontado com a escassez de literatura sobre a temática
do som na comunicação, e particularmente sobre o seu papel no audiovisual, de onde pudesse
retirar um método mais ou menos definido e adequado ao que queria investigar.
Se esta falta de referências implicava alguma insegurança, por outro lado libertava-me de
preconceitos, permitia-me abordar os filmes da forma mais ingénua possível, sem ideias feitas
quanto a resultados expectáveis. Em vez de procurar respostas, seria essencial estar aberto às
questões que a análise viesse colocar. Como afirma Tarín (2006), não se pode verdadeiramente
seguir um método ou "aplicar cegamente uma teoria" quando se analisa o audiovisual. Segundo
este autor há subjacente à análise cinematográfica um "princípio de indeterminação", que deriva da
"necessidade de interpretar e da contradição inerente à impossibilidade de atribuir uma verdade
certa às suas conclusões" (Tarín, 2006:3). A teoria torna-se deste modo um pau de dois bicos, que
pode levar a uma análise enviesada quando a tentação de encontrar essa "verdade certa" leva ao
menosprezo de algum aspecto menos óbvio ou menos adequado à interpretação que mais agrada
ao analista. Em certa medida, quanto menos ferramentas, menos escolhos, menos viés, menos pré-
conceitos. Correndo o risco de nos perdermos, há que estar aberto ao que o objecto de estudo nos
solicita, a embarcar numa travessia cujo destino se desconhece.
Parti então para a análise dos filmes de Manoel de Oliveira com as ferramentas teóricas e práticas
que faziam parte da minha bagagem cultural, alimentada pela experiência de fazer cinema e pelas
leituras sobre a problemática do som realizadas ao longo da vida. Procedi a uma releitura da
literatura sobre som no cinema que já razoavelmente conhecia, para relembrar os conceitos e
encontrar as ferramentas para a análise, deixando que a própria análise levantasse as questões que
convocariam novas leituras exigidas para lhes responder. Estas novas leituras foram sendo
realizadas à medida das necessidades que surgiam durante a investigação, sobretudo para clarificar
ou aprofundar conceitos úteis para a verbalização dos resultados da análise dos filmes.
82
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
4.2. A QUESTÃO DO CORPUS
No centro desta investigação está a análise dos filmes realizados por Manoel de Oliveira. Propus-me
analisar toda a sua cinematografia, procurando identificar os aspectos mais interessantes, mais
relevantes e distintivos que caracterizam a componente sonora dos seus filmes. O objectivo não foi
fazer uma contribuição definitiva para o estudo do cinema de Manoel de Oliveira mas apenas
chamar a atenção para o papel do sonoro na produção de sentido na sua obra.
A opção de incluir todos os filmes realizados por Manoel de Oliveira até à data e não seleccionar um
corpus mais reduzido, preferindo uma análise transversal em vez de outra mais em profundidade,
prendeu-se com a vontade de querer detectar tudo o que no som pudesse ser recorrente e
eventualmente configurar um "estilo aural" (Weis, 1982), materializado num modelo pessoal de
"composição" (Gomes, 2004) dos elementos sonoros. Em certa medida – num âmbito limitado ao
foco sobre a dimensão sonora dos filmes – a questão colocada aproxima-se daquela enunciada por
Bordwell (1989:371) como a primeira da sua “poética histórica”: “ Quais são os princípios segundo
os quais os filmes são construídos e por que meios atingem certos efeitos?”. O objectivo não era
tentar uma interpretação do sentido dos filmes mas sim descobrir os princípios que orientam a
respectiva construção sonora.
Seleccionar um corpus constituído por obras distanciadas no tempo ou, em alternativa, localizadas
uma época muito delimitada, acarretaria, por seu lado, o risco de conduzir a uma compreensão
distorcida do que é o seu cinema. Seria o mais provável face à evidente matriz experimentalista de
Manoel de Oliveira, que não se agarra a receitas comprovadas e antes procura novos modos de
expressão de filme para filme.
Corpus extraordinário, a obra de Manoel de Oliveira pode intimidar pela sua extensão no tempo e
pela quantidade de filmes realizados. Mas é sem dúvida motivadora, pela sua cronologia quase
sincrónica com a própria história do cinema – a filmografia de Manoel de Oliveira inicia-se na década
do advento do cinema sonoro (Douro, Faina Fluvial, 1931) e mantém-se até à actualidade. A ter
optado por uma análise em profundidade bastariam dois ou três filmes – como Amor de Perdição,
O Meu Caso ou Os Canibais, que sempre ficaram retidos na minha memória como obras cuja
originalidade se alicerça fortemente no papel outorgado ao som – para estar certo de ter escolhido
um corpus de análise interessante e mais do que suficiente para fornecer material bastante para
83
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
várias teses.
Em vez da profundidade optei pela transversalidade, com o objectivo de identificar os processos de
construção e as funções atribuídas aos elementos sonoros que, pela sua recorrência, pudessem
eventualmente revelar algum modelo de composição (Gomes, 2004) característico a Manoel de
Oliveira. É lugar comum afirmar-se a sua competência no campo da fotografia de cinema, mas
praticamente desconhecidas as suas competências em matéria de áudio. Convém aqui esclarecer
que também não foi intenção da minha investigação esclarecer esta dúvida. Embora inevitavelmente
a questão tenha surgido, a sua resposta obrigava a sair do âmbito da análise dos filmes em si e
abordar tanto o próprio processo como os agentes envolvidos na produção, assuntos que não faziam
parte dos objectivos desta tese.
Sem qualquer previsão quanto a resultados, não parti para o trabalho com o intuito de demonstrar
quaisquer convicções que tivesse sobre a importância atribuída ao som por Manoel de Oliveira. A
minha única ambição foi (e é) dar alguma visibilidade (leia-se audibilidade) ao que se passa a nível
sonoro nos seus filmes, tomando-os como exemplo demonstrativo do poder e da relevância do som
para a produção de sentido no audiovisual, questão esta que é a motivação primeira deste trabalho.
4.3. A QUESTÃO DAS FERRAMENTAS
À falta de ferramentas específicas, recorri às que me são familiares, e que resultam da minha
experiência docente e da prática continuada na construção sonora do audiovisual. São conceitos que
provêm do vocabulário dos profissionais do som cinematográfico, e que começaram a ter um uso
académico e científico quando foram adoptados por Chion e pelos investigadores de estudos
fílmicos. As novas leituras sugeridas pelas questões levantadas pela análise dos filmes levaram-me a
mais alguns conceitos que serviram para completar essa mesma análise e sobretudo para
estruturar a reflexão que levou às conclusões. O uso de um mínimo de conceitos foi também
suscitado pela vontade de utilizar uma linguagem não excessivamente específica da técnica áudio
que, por não ser do conhecimento geral, iria dificultar a leitura deste trabalho. Tentei assim um
equilíbrio entre o que é exigível de um trabalho académico, com a necessidade de fundamentação
do que nele se afirma, e a sua legibilidade por quem não possuir conhecimentos da chamada
engenharia de som.84
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Definido o sonoro dos filmes de Manoel de Oliveira como objecto de estudo, ainda assim o assunto
poderia tornar-se demasiado vasto. Optei por analisar o som tal como o podemos ouvir nos filmes –
montado, filtrado, misturado – na sua relação com as imagens no ecrã. Parti do princípio de que o
filme é uma construção feita de imagens sonoras e visuais e de que são essas imagens em si que
devem ser objecto da análise, e não os objectos e os eventos que elas supostamente representam.
Esforcei-me por não me deixar envolver nas narrativas que vão construindo, como é comum quando
assistimos a um filme sem a preocupação de o analisar. De passagem, vale a pena referir que nos
filmes de Manoel de Oliveira isto não é muito difícil, pois ele não procura no espectador esse
envolvimento emocional (ou emocionado).
Analiticamente desmontei os filmes nos seus elementos constituintes, tentando dar conta do modo
como se articula sonoro com visual, e cada elemento sonoro com os que com ele são síncronos ou
o precedem, ou lhe sucedem. Para cada som anotei também as eventuais alterações (efeitos) em
relação ao presumível original.
As anotações técnicas revelam apenas a estrutura, se não forem relacionadas com o sentido que
entendemos no filme. É neste pormenor que reside a dificuldade do método: saber como uma
acção tão pessoal e portanto tão subjectiva, como é atribuirmos um sentido ao que observamos e
escutamos, se enquadra numa análise que se quer científica.
Em resumo: depois de uma primeira fase de leituras (e sobretudo releituras) escolhi as ferramentas
usadas. Após uma primeira análise, seguiu-se uma fase complementar de leituras, em resposta às
questões nela suscitadas. Com os esclarecimentos proporcionados pelas novas leituras, procedi à
revisão da análise e à elaboração das conclusões. Efectivamente, o processo não foi tão linear como
aqui enunciado, tendo havido sempre leituras em paralelo com a fase de análise e mesmo durante
a redacção final do trabalho. Julgo que esta não linearidade é inevitável, e que é sempre necessário
tomar o método como um guia e nunca como dogma. Sobretudo quando se trata de processos
artísticos, sempre diferentes e nos quais vários agentes estão implicados, como acontece no
cinema.
85
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
4.4. PRÓS E CONTRAS DE OUVER OS FILMES EM CÓPIAS DIGITAIS
Ao partir para esta investigação não coloquei a hipótese de assistir a todos os filmes numa sala de
cinema, nas condições em que normalmente o fazemos. Sabia das dificuldades logísticas de tal
empreendimento: a grande extensão da obra, a dificuldade em conseguir as projecções e as
obrigatórias deslocações à capital. Sobretudo sabia que não poderia, como fiz, analisar os filmes
plano a plano, voltar atrás ou ir à frente, escutar uma e outra vez todos os sons, tirar todas as
dúvidas sobre o que realmente acontece a cada momento de cada filme.
Sabia igualmente que ao assistir aos filmes num sistema caseiro perdia a dimensão do ecrã e a
acústica da sala de cinema. A dimensão do ecrã seria o menos relevante para o caso, uma vez que
a informação visual estaria lá toda, apenas numa escala menor, e não seria objecto de análise em
si. No que diz respeito ao som, as distinções são mais significativas: as dimensões da sala de
cinema obrigam a uma maior amplificação do som e o efeito da reverberação é maior. Daqui resulta
uma diferente percepção das variações dinâmicas, e um som mais seco (menor reverberação) e
detalhado relativamente ao que escutamos na sala de cinema. Esta distinção teria sido compensada
por uma diferente mistura, feita especificamente para a edição em DVD e destinada à apreciação
numa sala de estar, coisa que não me parece que aconteça para as edições dos filmes portugueses
em geral.
A perda do efeito da sala de cinema parece-me aceitável por duas razões: a primeira, é que a minha
análise se centrou na construção sonora dos filmes de Manoel de Oliveira e na articulação do
sonoro com o visual na produção de sentido daí resultante; a segunda, é que o efeito de sala só é
verdadeiramente explorado pelos filmes espectáculo, de grande acção e que tiram partido do
surround, o que não é de todo o caso dos filmes de Manoel de Oliveira, em que nem sequer a
estereofonia é explorada.
Por outro lado, a análise não teve o propósito de avaliar a qualidade da realização áudio dos filmes.
De facto, confrontei-me com a inferior qualidade técnica de algumas das cópias com que trabalhei,
mas isso foi ultrapassado pela repetição da escuta das passagens que me suscitaram alguma
dúvida todas as vezes necessárias. Afinal o que me interessou na análise foi a intenção
comunicacional dos elementos sonoros presentes, e só nessa medida tive em conta as suas
características individuais – mais especificamente: se soam naturais ou se, pelo contrário,
86
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
evidenciam ter sido tecnicamente alterados. Para estes últimos coloca-se a questão de descobrir
que possível intenção motivou essa alteração.
Estes argumentos não me impedem de assinalar a minha decepção perante a fraca qualidade áudio
de algumas versões em DVD. Destaco aqui pela negativa a versão de O Passado e o Presente, cujo
som é praticamente inaudível. Não se espera dos filmes de Manoel de Oliveira o primor técnico
áudio dos filmes de Hollywood: sabemos que é um cinema artesanal, manufacturado, não dispõe
dos mesmos meios técnicos sofisticados e, acima de tudo, não tem os mesmos objectivos ou
pretensões artísticas nem comunicacionais. Mas tudo isto não justifica o pouco cuidado de algumas
edições, sobretudo no que diz respeito à qualidade do áudio que apresentam.
Mesmo fazendo opção pelo uso de versões digitais, angariar cópias de todos os filmes de Manoel de
Oliveira não foi tarefa fácil e levou alguns meses. Uma boa parte deles está disponível em DVD –
genericamente os realizados a partir dos anos 80 do século XX. Não existem edições de filmes
anteriores, com a excepção de Douro, Faina Fluvial e de Aniki Bóbó; O Acto da Primavera foi editado
já durante a escrita deste texto; Amor de Perdição não teve ainda edição, apesar de há muito
anunciada pela RTP. O acesso a cópias dos filmes sem edição DVD foi tarefa árdua e demorada. A
qualidade das que consegui é muito variada mas na maioria bastante fraca. Algumas são
transcrições digitais de gravações caseiras feitas em VHS de emissões televisivas.
Fundamentalmente preocupada com as questões pragmáticas e operacionais, a minha
argumentação contraria a opinião expressa por Manoel de Oliveira (2001:159) de que o cinema "é a
projecção num ecrã ao fundo duma sala e diante de uma plateia, tendo por trás desta uma cabine
com máquinas de projecção, o que faz do cinema um acto social". Embora os filmes de Manoel de
Oliveira sejam realizados com esse objectivo, o certo é que considerar a sala de cinema como único
local onde o filme pode ser usufruído já não está de acordo com a prática generalizada no
quotidiano. Nas últimas décadas o modo de assistir a um filme alterou-se radicalmente. Com o
home cinema e o streaming -- da cassete vídeo ao Bluray e todos os mais formatos digitais --, a
audiovisão do filme já não está sujeita a uma (crono)lógica linear que fazia do acto de assistir a um
filme um acontecimento efémero. Hoje podemos simular uma sala de cinema em nossa própria
casa, com qualidade visual e sonora equiparável – se não superior – à que temos numa sala
pública. Perdemos a envolvente formada pelo público na sala às escuras? Com certeza. Mas, não foi
sempre a fruição do filme um acto solitário?
87
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Em contrapartida ganhamos novas potencialidades: podemos ir à frente e voltar atrás num filme
como fazemos num livro, podemos transportar o filme tão facilmente como este e, se não nos
importarmos muito com o meio envolvente, assistir ao filme em qualquer lugar. Para mais, a oferta
é aparentemente infinita: as edições comerciais multiplicaram-se exponencialmente com o sucesso
do DVD, e na internet vários sites disponibilizam a qualquer hora todo o género de filmes: mesmo
àqueles que há vinte anos só eram acessíveis em cinematecas.
4.5. O QUE FOI ANALISADO NOS FILMES
O processo de análise dos filmes de Manoel de Oliveira foi um exercício de audiovisão, em que os
sons foram escutados tendo sempre em conta a sua relação com as imagens visuais, mas
abstraindo-me o mais possível de qualquer preocupação com os acontecimentos narrados. Abordei-
o como o inverso da construção técnica, identificando os recursos próprios do filme, com especial
incidência no que diz respeito à sua dimensão sonora, desmontando-a nos seus elementos
constituintes.
Este processo permitiu enumerar os objectos sonoros de cada filme e perceber as suas
articulações: 1) no eixo vertical (ou sincrónico) da mistura de sons e da respectiva relação com as
imagens visuais; 2) no eixo horizontal (diacrónico) na sucessão de objectos sonoros.
Em relação a cada objecto sonoro foi dada atenção aos seguintes dados: 1) tipologia: voz, música,
ruídos; 2) processo de captação: directo ou pós-sincronizado; 3) efeitos sofridos: amplificação,
igualização, reverberação, distorção, etc...
Na relação vertical foram anotados: 1) a relação hierárquica entre sons estabelecida pela mistura; 2)
o sincronismo (ou falta deste) com as imagens visíveis no ecrã (aparente na ilusão de que o som
provém de dentro de campo, fora de campo, ou é off ); 3) prolongamento do sonoro para além e
aquém do plano visual a que é síncrono; 4) localização do ponto de escuta em relação ao ponto de
vista.
Na relação horizontal foi analisado 1) o modo de sucessão dos objectos sonoros: transição por
corte, fundido ou encadeado; 2) o desfasamento entre as transições dos três tipos de objectos
88
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
sonoros.
Desde cedo, a reflexão que ia fazendo suscitou a necessidade de ter um padrão de referência, não
como termo de comparação para os filmes de Manoel de Oliveira, mas para me localizar em relação
ao vocabulário a usar e para organizar o raciocínio. Tomei como padrão o cinema clássico, que há
muito se estabeleceu como modelo dominante na produção cinematográfica e audiovisual em geral.
A medida em que os filmes de Manoel de Oliveira se aproximam ou afastam deste modelo ajudou-
me na verbalização das anotações realizadas.
89
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
5. ESTUDO DE CASO: MANOEL DE OLIVEIRA
5.1. OS FILMES
“A obra de Manoel de Oliveira é um objecto de estudo desconcertante. Terrível objecto é esta obra.
Não tem direito nem avesso: por qualquer lado que a tomemos, reenvia-nos sempre à mesma
improbabilidade quanto à sua origem e às vias que ela seguiu. Leiamo-la do princípio para o fim, ou
do fim para o princípio, ela mantém-se sempre irredutivelmente paradoxal, voluntariamente
contraditória” (Preto, 2011:12).
É irresistível citar este excerto da tese de António Preto, em que tão bem resume toda a dificuldade
que encontra quem decide estudar o cinema de Manoel de Oliveira. Obra improvável, que "o país
não merecia mas em que assentará no futuro, como em poucas mais, o merecimento de Portugal"
-- se a profecia de João Bénard da Costa (citado em Andrade, 2008b:5) se realizar --, a filmografia
de Manoel de Oliveira promete grandes obstáculos a qualquer tentativa de teorização que a pretenda
explicar. O primeiro será a sua diversidade, que torna difícil a selecção de um corpus reduzido de
filmes que se possam tomar como exemplo representativo da generalidade da obra -- que é
caracterizada pela originalidade e pela busca permanente de novas formas de fazer cinema.
No avesso da dificuldade está o fascínio da sua singularidade. A longevidade de Manoel de Oliveira e
a extensão da sua obra cinematográfica fazem desta uma espécie de concentrado da história do
cinema, de Edison e dos irmão Lumière aos nossos dias. Se por um lado o cinema de Manoel de
Oliveira parece não se enquadrar na história convencional do cinema, simultaneamente manifesta
conter em si todas as etapas que definem essa história desde o chamado cinema primitivo até à
actualidade.
“Esta extraordinária longevidade faz da sua obra um observatório privilegiado das mutações que o
cinema conheceu ao longo do século XX, mas também um espaço onde as diferentes orientações
que foram definindo esta arte, se opõem, se completam, se sintetizam. (…) O mesmo é dizer que se
o cinema oliveiriano nos dá a ver, na sua linearidade irregular, os carris que conduziram a sétima
arte à sua configuração actual, ela transporta na bagagem a experiência acumulada ao longo dessa
viagem” (Preto, 2011:12).
90
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Cada novo filme é um acontecimento inesperado, que parece nada ter em comum com o anterior,
trocando as voltas a quem procura uma lógica de continuidade na sua obra. Os filmes vão surgindo
diversos, na forma como no conteúdo. Quando se espera o prosseguimento do caminho para que
um deles aponta, Manoel de Oliveira muda de agulha e vai noutro sentido, experimentando outro
tema e um diferente modo de o filmar. Previamente a uma análise mais profunda, o que se
evidencia como regular na obra de Manoel de Oliveira é ela apresentar simultaneamente
características da vanguarda e do primitivo, conciliadas naquilo que só posso designar como um
cinema radical, no sentido de nunca ter perdido a ligação à raiz. Isto parece um paradoxo, mas
quem pode ser mais vanguardista do que alguém que utiliza um meio novo ou, quando este já não
o é, continua a procurar formas desconhecidas de o explorar?
A radicalidade é uma necessidade defendida pelo próprio Manoel de Oliveira. Em várias entrevistas
compara o cinema a uma árvore de que os realizadores são as folhas. "Mas o que sustenta a árvore
não são os ramos, são as raízes. E se tirarem as raízes, caem as folhas" (Oliveira in Andrade,
2008:44). É talvez este radicalismo, tão incaracterístico neste país de brandos costumes e de
horizontes tacanhos, que levou João César Monteiro (1981:74) a afirmar ser Manoel de Oliveira "um
cineasta demasiado grande para o tamanho" do país. Muito antes disso Paulo Rocha (1981:7)
classificava Manoel de Oliveira de "primitivo genial", dando conta de como os seus filmes parecem
pertencer à infância do cinema, quando neste ainda não estava entranhada a ideia de espectáculo,
e antes de se tornar quase exclusivamente um cinema de trucagens e ilusões. Para Sales
(2010:103), "ao negar o carácter narrativo tradicional do cinema clássico – modelo Grif thiano, porfiexemplo – Oliveira se apropria de elementos estéticos alheios à 'especificidade' da linguagem
cinematográ ca e que são antecessores ao cinema, como a palavra retórica da literatura e o artifíciofido teatro". De facto, os filmes de Manoel de Oliveira nunca deixaram de pertencer ao outro lado do
cinema: o de testemunho da realidade; mesmo se essa realidade é a da ficção, a das convenções
que fazem da vida em sociedade um permanente teatro. Em certa medida o cinema de Manoel de
Oliveira representa uma história do cinema alternativa, a de um cinema que tivesse tomado um
outro caminho.
“Dito isto, se Manoel de Oliveira é hoje o único realizador que apanhou o comboio dos irmãos
Lumière para atravessar todas as transformações que fizeram o cinema, se é também aquele cujo
olhar foi directamente formado por esse trajecto, os seus filmes condensam e reinventam este
itinerário sempre em formação, sempre a refazer de outra maneira” (Preto, 2011:13).
91
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Primitivismo que tampouco significa qualquer apego ao tempo do mudo, muito menos a uma
concepção do cinema como arte visual. Para Manoel de Oliveira não se pode
"confinar o cinema a imagens em movimento quando a evolução do cinema durante mais de um
século, e mais de meio século depois de ter ganho o som e a cor, depois de ter adoptado estes
fundamentais elementos, de os ter adquirido com plena legitimidade, depois de terem ganho uma
autonomia própria e de serem eles o que mais aproxima o cinema duma realidade concreta, em que
o som é, justamente, o elemento que verdadeiramente reclama movimento, pois, sem este, o som
não existe, enquanto a presença da imagem não depende do movimento, uma vez que é dela
apenas um complemento extra, e não depende do movimento para que possa existir, como o prova
à exaustão, por exemplo, a pintura" (Oliveira, 2001:158).
Primitivo porque pioneiro, que nunca deixou de o ser, que pela sua longevidade pôde presenciar a
história do cinema quase desde o nascimento até ao momento em que se anuncia o seu fim (com o
digital ameaçando a eliminação da película), sem nunca perder a noção da génese, da raiz.
Primitivo também na medida em que os seus filmes apresentam características que Gunning
(1989:5) detecta no cinema das origens: a "relativa autonomia do plano" e a "manutenção de um
ponto de vista único", constituindo "um modo particular de se dirigir ao espectador".
Se Manoel de Oliveira está ligado à infância do cinema é apenas por dela ser contemporâneo. E se
alguma coisa nos parece infantil isso vem da sensação que temos de que cada um dos seus filmes
é o primeiro, sempre revelando universos novos que ele vai descobrindo. É evidente nos seus filmes
e no discurso patente nas entrevistas, que ao longo dos anos foi dando, que o realizador além de
cineasta é cinéfilo e sempre se interessou por conhecer o cinema que se foi e vai fazendo. E com
certeza o conhece como ninguém, por ter assistido em primeira mão a quase todas as fases e
inovações por que tem passado nesta sua existência de mais de um século.
“Tenho um conhecimento da evolução do cinema tão grande que não posso regressar com a
mesma inocência. Cada vez que se regressa, regressa-se completamente diferente, e à medida que
se avança, avança-se de modo diferente. Se retomo o velho, retomo-o com os olhos de hoje. está aí a
diferença” (Oliveira in Baecque & Parsi, 1999:128).
Embora os filmes de Manoel de Oliveira sejam usualmente arrumados sem grande hesitação nas
duas categorias tradicionais de ficção e documentário, é difícil definir exactamente onde uma
começa e a outra acaba. Não é tanto a questão de saber até que ponto os documentários são
92
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
encenados, porque não há documentário que não o seja (quanto mais não seja, na medida em que
o cineasta escolhe um ponto de vista e um ponto de escuta, e organiza a montagem que oferece ao
espectador). É mais a sensação de que, quando assistimos a um filme de ficção de Manoel de
Oliveira, estamos afinal perante o documentário de uma encenação. Isto obriga o espectador a uma
atitude diferente da que geralmente assume perante um filme de ficção, que é a de receptividade e
de empatia com as personagens. Manoel de Oliveira não deixa que o actor se torne na personagem,
e inibe o espectador de qualquer intimidade com esta.
Outro princípio, por várias vezes e de diferentes formas afirmado por Manoel de Oliveira, que marca
os seus filmes, é a noção de que o cinema é uma coisa sem importância e que o importante é a
humanidade. Segundo Manoel de Oliveira, o cinema deve referir-se à humanidade e não a ele
próprio. Para Manoel de Oliveira, o cinema é uma vaidade, e só tem valor se reflectir sobre a vida e
as acções humanas. O realizador deve servir-se da tecnologia cada vez mais sofisticada que tem ao
seu dispor apenas na medida em que é posta a este serviço. Isto pode explicar a aparente falta de
sofisticação técnica dos filmes de Manoel de Oliveira, que não se deixa conduzir por seduções e
virtuosismos técnicos que tão vulgarmente definem pretensas vanguardas. O papel do cinema não
é, para Manoel de Oliveira, o de produzir uma simulação que nos arrasta para uma realidade virtual,
mas uma forma de fazer-nos ver e escutar a verdadeira realidade. Nem os filmes servem para dar
respostas. Devem servir para colocar-nos perante as questões: sobretudo aquelas que nem
sabíamos existir.
“Na vida não há explicação para nada. As coisas são assim... Nas obras de arte deve ser igual...
Elas não devem explicar nada. Elas são assim. De facto, elas são assim. É a nós que cabe tirar
conclusões. As interpretações são múltiplas e a sua riqueza aumenta com as interpretações, com as
inúmeras interpretações e visões. Quando a coisa se esclarece, empobrece. Revela-se o segredo. O
segredo perde todo o seu valor” (Oliveira, 2008:99; citado em Preto, 2011:134).
Característica marcante e muito sublinhada dos filmes de Manoel de Oliveira é presença da
literatura, que é aliás o tema da extensa tese de Preto (2011), Manoel de Oliveira, Cinéma et
Littérature. Neste campo também a obra de Manoel de Oliveira é de uma extrema originalidade. Não
se limitando a adaptar ou adoptar as narrativas literárias, faz da literatura matéria dos seus filmes,
pondo os actores a dizer o texto literário tal como está escrito ou mostrando as próprias páginas do
texto manuscrito ou impresso. Para Manoel de Oliveira (2001:159), "a palavra consubstancia já, em
si, imagem, movimento e acção" e por isso legitimamente pertence ao cinema. O modo como os
93
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
actores dizem o texto literário, sobretudo o dos diálogos, tem sido talvez um dos temas mais
polémicos, sujeito a críticas e pesando na interpretação dos filmes de Manoel de Oliveira.
Geralmente o cineasta é acusado de não saber dirigir actores, por estes dizerem os diálogos de um
modo não naturalista e não coloquial, muito distante do modelo a que o cinema clássico nos
habituou. O modo de enunciação é um dos aspectos analisados neste trabalho.
A receptividade ao cinema de Manoel de Oliveira passou da pateada da primeira exibição de Douro,
Faina Fluvial à mais recente aprovação unanimada, que faz lembrar a história O rei vai nu. Desde
que Manoel de Oliveira, pela sua longevidade improvável e fama no estrangeiro, se tornou um
incontornável ícone da cultura nacional, muito dificilmente alguém se habilita a uma apreciação
crítica dos seus filmes, muito especialmente se essa crítica tem alguma probabilidade de ser
negativa. Não faço ideia se aqueles que nos últimos anos lhe têm promovido homenagens e
concedido condecorações e doutoramentos honoris causa alguma vez assistiram aos seus filmes,
ou pelo menos a um ou outro. O cinema de Manoel de Oliveira é, para a maioria, sobretudo
invisível, não porque não se possa ver, mas porque não há pachorra para um cinema que nos põe a
pensar em vez de nos incentivar a comer pipocas e beber qualquer cola. É nisto que encontro o
paralelismo com a história tradicional. Não que Manoel de Oliveira de algum modo se possa
identificar com a personagem do rei, mas indubitavelmente pela atitude dos aduladores que louvam
o que não vêem. Como afirma Lemière (2012:32), “Oliveira não deixou de pagar, em termos de
julgamento estético, e sobretudo em Portugal, o preço da sua via exigente e solitária”.
Concedo isto: assistir a um filme de Manoel de Oliveira não é uma tarefa fácil. Não o é porque o seu
cinema exige uma atitude crítica e activa, muito diferente daquela outra passiva e acrítica que o
cinema clássico nos pede. Manoel de Oliveira é um cineasta vanguardista, que nunca se preocupou
em obedecer nem às formas nem aos conteúdos de qualquer modelo de cinema. Cada novo filme
pede um novo olhar e uma nova escuta. Nada nos garante que o mesmo enquadramento ou o
mesmo som procurem o mesmo sentido de um filme para outro. Esta é uma das razões porque não
é possível abordar os filmes de Manoel de Oliveira usando como modelo o tipo de análise que tem
sido praticada para o cinema clássico. Manoel de Oliveira não só não segue modelos alheios como
foge constantemente aos que tenta impor a si mesmo, estabelecendo uma regra num filme para
logo no seguinte a subverter. "Quando começo um filme, tenho de inventar uma teoria particular,
para meu uso pessoal. Preciso de uma teoria e, curiosamente, para cada filme eu encontro uma
teoria diferente que se ajusta ao meu objectivo" (Oliveira, 2001:165).
94
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
No que diz respeito à componente sonora dos filmes de Manoel de Oliveira, pouco se tem dito ou
escrito e também pouco se tem inquirido o cineasta. Para além das questões, que já mencionei, da
dicção dos actores e do carácter literário dos diálogos, ou de raras abordagens à utilização da
música – nomeadamente as de João Paes (2001) e de Philipe Roger (2008) --, são muito poucas e
vagas as referências ao som. A utilização dos ruídos parece ter sido totalmente ignorada até ao
momento. A distinção evidente entre o modo como Manoel de Oliveira emprega o som nos seus
filmes e o uso padronizado que podemos escutar quotidianamente em todos os media audiovisuais,
parece passar totalmente despercebida. Nem o facto de Manoel de Oliveira ser o autor de um filme-
ópera original – Os Canibais – mereceu especial destaque, a não ser pelo facto de constituir um
acontecimento raro. E os diálogos às avessas ou o plano da coluna de som em O Meu Caso terão
sido tomadas por excentricidades sem significado especial. Como creio que os críticos e os analistas
não são surdos, só posso concluir que não consideram a construção sonora determinante para o
sentido de um filme. Desejo poder contrariar esta tendência e indicar pelo menos algumas das
contribuições do som para o sentido dos filmes de Manoel de Oliveira. Mesmo que o uso de uma
música ou ruído específico tenha sido decidido apenas na fase de montagem, os filmes soam tão
rigorosos e depurados como rigorosos e depurados reconhecidamente são os enquadramentos e a
colocação dos actores dentro deles.
5.2. ANÁLISE
Neste capítulo faço um resumo da análise de cada um dos filmes de Manoel de Oliveira. É uma
selecção de apontamentos do que considero mais relevante no que diz respeito ao uso do som, que
de modo nenhum esgotam tudo o que anotei durante a análise, e ainda menos correspondem ao
resultado de uma escuta exaustiva que uma investigação mais em profundidade exigiria. Fosse esse
o caso, cada um dos filmes forneceria pelo menos assunto para um capítulo próprio.
Em complemento dos resultados da minha análise, incluí o contributo de outros autores. A sua
inclusão ajuda a esclarecer o processo da criação dos filmes, e corresponde à intenção de tornar a
exposição dos resultados (inevitavelmente com alguma dimensão interpretativa) menos subjectiva.
95
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Douro, Faina Fluvial (1931, 1934, 1994)
Por ter sido realizado como um filme mudo (numa época em que o sonoro praticamente está já
estabelecido como norma) aparentemente não mereceria menção numa investigação sobre o papel
do som. Mas a versão muda só foi exibida uma vez, e são hoje conhecidas apenas as versões
musicadas. Não há notícia da sobrevivência de alguma cópia da versão original muda, estreada em
1931 e que foi a primeira das três versões de que há conhecimento. Segundo o próprio, Manoel de
Oliveira tentou aproximar-se desta primeira versão ao fazer uma nova montagem do filme, na
terceira e última (definitiva?) versão – sonorizada com a composição musical de Emmanuel Nunes
Litanies du feu et de la mer, interpretada pela pianista Alice Ader. Em 1934, o filme foi exibido no
circuito comercial, como complemento ao filme Gado Bravo de António Lopes Ribeiro. “O filme tinha
sido sonorizado, o que lhe alterou ligeiramente o ritmo” (Costa, 1978:60). Entre 1934 e 1996 (data
da estreia desta última versão) apenas foi exibida a versão sonorizada com música “adaptada”
(segundo indica o respectivo genérico) pelo compositor Luís de Freitas Branco.
O que logo se destaca em Douro, Faina Fluvial é o facto de em ambas as versões sonoras apenas
música ser usada na sonorização, e em ambos os casos ela não ter sido composta especificamente
para o filme. Embora tenha data posterior à realização do filme, a música de Emmanuel Nunes não
foi composta especificamente para este, e como tal preexiste à versão de Douro, Faina Fluvial em
que foi utilizada. A música de Freitas Branco é uma adaptação mais ou menos elaborada de temas
da música popular portuguesa, e portanto também não se pode considerar verdadeiramente original
do filme. A música de Freitas Branco adaptou-se ao filme já montado num processo que é comum
no cinema mas que aparentemente fugiu ao controle de Manoel de Oliveira (o convite ao compositor
deve-se a António Lopes Ribeiro que promoveu a primeira exibição do filme) e que o obrigou mesmo
a fazer pequenas alterações à montagem original.
Nesta versão de 1934 sente-se alguma dissonância entre o que se vê e o que se ouve. A impressão
que tenho é a de que o compositor ou não entendeu o espírito do filme, ou então quis conceder-lhe
uma tonalidade consentânea com a época e o público a que esta versão se destinava originalmente.
Convém lembrar que a primeira apresentação de Douro, Faina Fluvial (mudo, em 1931) foi objecto
de pateada do público e teve uma recepção positiva apenas por parte da crítica estrangeira
presente. O contraste provocado pela música sente-se especificamente a três níveis, embora não de
modo constante: 1) não respeita o ritmo da montagem visual, apresentando um ritmo mais lento
96
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
que ameniza a rapidez de algumas sequências; 2) é uma música que soa antiquada ou pelo menos
conservadora num filme que deve considerar-se vanguardista para a época, sobretudo no nosso
país, uma música em que predominam a harmonia e a melodia, contrariando uma montagem em
que predominam o ritmo e a dinâmica; 3) é uma música ao gosto burguês que usa a composição
de origem popular para dar um tom folclórico e ligeiro à vida do povo que é objecto do filme quando
o que Manoel de Oliveira mostra é sobretudo a dureza dessa vida (embora com sentido de humor).
No conjunto, a música de Freitas Branco adocica toda a crueza (e mesmo violência) de muitos
momentos do filme, incutindo uma narrativa diferente da que é aparente na montagem visual e que
retira a esta alguma da sua poesia.
A mais recente versão de Douro, Faina Fluvial resulta de uma nova montagem realizada por Manoel
de Oliveira sobre música de Emmanuel Nunes. Quer isto dizer, em primeiro lugar, que Manoel de
Oliveira usou uma composição musical já sua conhecida, numa interpretação previamente registada
em disco e, em segundo, que a considerou adequada ao seu filme e, mais especificamente,
concordante com a sua concepção original (ou pelo menos com a sua recordação desta). Montar
um filme sobre uma música (ou outra composição sonora) implica aceitar o modo como as
características desta (ritmo, melodia, timbre, …) vão determinar a forma final do próprio filme. Ao
contrário do que parece ter acontecido com a anterior versão sonora, tanto a música como a
alteração da montagem resultam duma decisão amadurecida de Manoel de Oliveira.
Esta última versão de Douro, Faina Fluvial parece mais coerente e clara quanto ao que afirma. A
música de Emmanuel Nunes dá tom ao filme sem lhe impor uma narrativa, funcionando sobretudo
como um comentário, por vezes como contraponto. Ao assistir a esta versão vem à lembrança o
conceito de assincronismo teorizado por Pudovkin (1954:162), que preconizava o princípio de que a
música “nunca deve ser acompanhamento” mas deve “manter a sua linha própria”. Esta
aproximação da prática a teorias da época da realização original do filme está conforme à inspiração
declarada de Manoel de Oliveira (Baecque & Parsi, 1999:96), mas está sobretudo de acordo com
um princípio que se vai manter constante ao longo da sua obra. Refiro-me a uma distanciação do
espectador face ao filme, que a música de Emmanuel Nunes ajuda a manter e a de Freitas Branco
tende a diluir. Enquanto esta apela ao emocional e a alguma empatia nacionalista, através do uso do
folclore, aquela, pela sua natureza incidental e pronunciada variação dinâmica, como que serve de
despertador que alerta para a necessidade de uma postura crítica. A música de Emmanuel Nunes
também contraria uma eventual tendência do espectador para construir uma continuidade narrativa97
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
que se sobreponha ao interesse pelas personagens retratadas e as enquadre numa lógica de
moralidade final.
Famalicão (1941)
Esta curta metragem é sonorizada com música de Jaime Silva Filho e o comentário do actor Vasco
Santana. Para além de dizer o texto do comentário, Vasco Santana sonoriza algumas cenas com
outro tipo de sons vocais (como risos e sons de beber). A maior parte do tempo o comentário é isso
mesmo, ou seja, comenta e acrescenta em vez de descrever o que podemos ver (facto demasiado
comum em filmes do tipo documentário), e sempre num tom humorístico e crítico.
E o mesmo acontece com a música. Embora se reconheça nesta um timbre e um estilo conotados
com a época, a composição funciona como contracena às imagens visuais. Jaime Silva Filho recorre
como Freitas Branco à música do folclore nacional, mas não cede à tentação de uma sonorização
contínua e de cariz narrativo: são frases curtas que vão comentando sem ilustrar ou impor um
sentido ao que nos é mostrado.
Aniki Bóbó (1942)
Aniki Bóbó começa pelo o som. Antes mesmo de no ecrã negro começar a perceber-se a imagem
do arco do túnel, com a locomotiva mal se distinguindo na penumbra, escutamos o estridente
assobio a vapor. O ruído do rodado nos carris que se pode ouvir no fim deste primeiro plano,
continua no seguinte. Os gritos entusiasmados das crianças antecipam a visão destas no cimo de
um morro (plano de baixo para cima – contrapicado). Segue-se a visão do comboio em plano
picado (visão de cima para baixo). Numa rápida mudança, vemos Eduardo caindo para a linha do
comboio. Grande plano de Teresinha que grita. Em seguida, vemos uma imagem do comboio, com
sobreposição do título do filme e início da música.
Faço aqui esta transcrição do prólogo (se assim se pode chamar) do filme para sublinhar dois
aspectos. O primeiro, é o facto de o filme começar pelo som e ser este a suscitar a chegada da
imagem visual. Segundo, a opção de antecipar o que será o momento de maior intensidade98
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
dramática do filme, mostrando-o ainda antes do genérico. Esta curta cena, que poderia constituir
um teaser ou fazer parte de um trailer do filme, parece aqui destinada a desdramatizar o momento
em que surgirá, na altura própria (cronológica), dentro da narrativa a que vamos assistir. Como
mostrarei ao longo do trabalho este não é caso único, e parece fazer parte da estratégia de Manoel
de Oliveira.
Se exceptuarmos a originalidade deste início, Aniki Bóbó é talvez o filme de Manoel de Oliveira que
mais se aproxima do modelo de cinema clássico. A condizer com isso está a música que vai
sublinhando a evolução dramática da história do Carlitos de um modo adequado, sem perturbar,
cosendo intervalos, dando continuidade. No entanto nem sempre é assim. Há um momento curioso
em que o professor na sala de aula grita “Silêncio!”, todas as crianças se calam e a música faz o
mesmo por uns momentos. Evidentemente é uma pausa musical com efeito cómico, mas não deixa
de ser inusitado o facto de a música como que reagir à voz do professor. Mais adiante na mesma
cena, a música contrapõe-se à voz monocórdica de uma criança que lê, ao assumir um tom onírico
que sublinha a distracção sonhadora do Carlitos (protagonista do filme). No fim da cena, o professor
já sem paciência grita: “Silêncio! Silêncio! Silêncio!” Num rápido encadeado passamos para uma
vista da rua onde um pequeno grupo musical canta uma canção. Os miúdos da escola juntam-se-
lhes em coro.
Os diálogos têm igualmente um sabor clássico: são coloquiais e sem sofisticação literária aparente.
Mas a voz não serve apenas para os diálogos, ou nem sempre os diálogos são só entre as
personagens. Na mesma cena da aula há um jogo com música ruídos e vozes que participam no
sentido da cena dialogando uns com os outros. Numa cena nocturna e de carácter expressionista,
em que os rapazes jogam aos “polícias e ladrões”, Carlitos, que acaba de roubar uma boneca, é
perseguido por uma espécie de voz da consciência (som off) que diz “tu és ladrão”, e assusta-se
com a própria sombra.
Quanto aos ruídos, o seu uso não é do mesmo cariz. Não se reduz à criação de um ambiente
acústico de carácter naturalista. Em várias situações eles assumem algum protagonismo (como
acontece logo no início do filme) e interferem no curso dos acontecimentos. Uma cena
particularmente rica é a que termina na queda do Eduardo. A música acompanha o percurso das
crianças, primeiro, fornecendo o acompanhamento instrumental para a cantilena “Aniki Bóbó”, e
logo, a luta com o som dos socos; é interrompida pelo apito do comboio, gritos das crianças, apito,
99
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
vivas, grito da Teresinha (quando Eduardo cai à linha do comboio), rodados nos carris, exclamação
do lojista, o afastar do comboio, grito da Teresinha (que olha para o Carlitos). Este grito prolonga-se
por um assobio longínquo (apito do comboio?) que se dilui na música que recomeça. Além do apito
do comboio que participa neste momento dramático, escutaremos mais tarde o apito do navio
Alcatraz (!) em que Carlitos pretende fugir para longe dos amigos que o julgam culpado do acidente
do Eduardo. Outro ruído usado como pontuação é o badalar do relógio da torre – por exemplo na
cena do telhado, em que Carlitos vai oferecer a boneca roubada a Teresinha. Outro exemplo é o
brusco fechar da janela sobre o coro que canta na rua, no fim da cena que refiro acima.
A relação da escuta com a visão é usada na seguinte cena como recurso cómico. O rapaz mais
pequeno do grupo vai à Loja das Tentações, com o seu mealheiro, para comprar a boneca que
Carlitos quer oferecer a Teresinha. Como o rapaz é mais baixo do que o balcão, o lojista, que está
sentado do outro lado a ler o jornal, ouve a voz do pequenote mas não o consegue ver, o que resulta
numa situação de equívoco. Aqui é a relação audição/visão da personagem que está em causa e
não a do espectador (que pode ver o rapaz), mas não é menos reveladora do contributo do som.
Aliás, a Loja das Tentações é fértil em acontecimentos sonoros que não são visualizados: um gato,
um tombo de escadote... Só quando o rapazito finalmente grita é que o lojista o consegue localizar.
No seguimento, outro ruído intenso pontua a cena: o quebrar do mealheiro. A própria personagem
deste rapaz se caracteriza pelo ruído que produzem contra o empedrado das ruas os tamancos que
usa, que parecem demasiado grandes para os seus pés e cujo toctoctoc sempre antecipa a sua
presença.
O Pintor e a Cidade (1956)
Em O Pintor e a Cidade não há diálogos. Há apenas música e ruídos. Não se trata de música
especificamente composta para o filme, mas de música variada, que na maior parte dos casos
comenta o que nos vai sendo mostrado. O genérico inicial é acompanhado de um coral. Mais
adiante, música jazz acompanha as imagens dos edifícios mais modernos da cidade. Uma música
ligeira acompanha o movimento dos patos no lago do jardim, e continua sobre a banda que toca no
coreto, encadeando seguidamente com as cornetas cujo soar acompanha um grupo de cavaleiros
da GNR.
100
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Mas é o jogo que Manoel de Oliveira faz entre o que nos mostra e os ruídos que selecciona que
encontro de mais interessante e original neste filme. Essa relação está quase sempre longe do
sincronismo naturalista. Em vez disso, estabelece um diálogo entre o visível e o audível que constrói
um contraste entre a cidade moderna (de 1956), impessoal e frenética, e outra, mais humana e
fruída. Cito apenas alguns exemplos. O primeiro, é uma sequência em que vemos alternadamente
peões atravessando a rua, um sinaleiro que apita e diversas estátuas. Os passos do peões são
pontuados pelas apitadelas do sinaleiro que, no entanto, soam não quando vemos este, mas
quando vemos as estátuas. Estas, nos seus gestos, parecem apontar o caminho aos peões que por
sua vez parecem obedecer-lhes, seguindo num ritmo veloz que a montagem impõe. Ao som dos
passos parece acrescentar-se (muito subtilmente) um som de percussão, como de toque de caixa.
Este toque de caixa vai ser mais explícito num plano mais adiante, em que vemos um pequeno
grupo de rapazes marchando, fingindo um batalhão militar, mas no qual porém o instrumento não é
visível. Este plano segue o dos cavaleiros da GNR que citei acima, o que ajuda a contextualizar
rapidamente a brincadeira dos rapazes. Noutro momento, há sons de batalha que animam o painel
de azulejo que representa o episódio histórico da ponte das barcas. Mais adiante, uma sirene de
navio parece assustar um bando de gaivotas. Do voo destas passamos para o de um bando de
pombos e deste para um casal de pombinhos que namora no banco do jardim. Para que não
restem dúvidas quanto à metáfora, sobre o plano do casal Manoel de Oliveira faz-nos ouvir o
arrulhar dos pombos.
O Acto da Primavera (1963)
Neste filme destaca-se o som das vozes que recitam o texto quinhentista do Auto da Paixão de
Francisco Vaz de Guimarães, numa toada algo monocórdica, em ritmo litúrgico. Para além do texto
da Paixão, há alguns diálogos mais coloquiais na introdução e na conclusão do filme (pelos actores,
mas também da equipa e do público).
Há também que assinalar a presença de uma voz que não corresponde a nenhuma das pessoas
visualizadas no filme. Apesar desta invisibilidade não a posso considerar propriamente uma voz off,
já que não funciona do modo convencionado para esta categoria de objecto sonoro. Em vez de ser o
que escutamos a acrescentar-se como um comentário ao que nos é mostrado, no caso de O Acto
101
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
da Primavera é o que Manoel de Oliveira nos mostra nas imagens que funciona como um
comentário – crítico e por vezes irónico – às palavras ditas.
A presença da música reduz-se ao som de tambor que se faz ouvir durante o genérico. É também o
único som (para além da voz que acabo de referir) nitidamente assíncrono em relação às imagens
que vemos. Todo o restante som do filme (diálogos e ruídos) tem um sabor a som directo – como
aliás era intenção original de Manoel de Oliveira que, por se terem verificado deficiências técnicas na
gravação original, foi obrigado a pós-sincronizar todo o som do filme (Baecque & Parsi, 1999:124).
O defeito técnico acabou por resultar num efeito: o som dos diálogos gravados em estúdio, e
desprovidos de qualquer ambiente acústico, cria contraste e estranheza face ao aparente carácter
documental das imagens visuais.
Manoel de Oliveira procura instalar esta distanciação logo desde o início do filme. Para tal, mostra-
nos a equipa e todo o dispositivo de filmagem, mas também algumas personagens estranhas à
Paixão -- turistas jovens que comentam os preparativos da encenação. Mostra também a
transformação dos habitantes da Curalha nas personagens da Paixão. No início do filme, um
homem lê no jornal notícias sobre o projecto de viagem à Lua e é interrompido por um som de
martelar, seguido pela imagem do cartaz que anuncia a representação do Acto.
O Acto da Primavera é um filme em que a fronteira entre o documental e a ficção é
intencionalmente dúbia. Quando a mulher acaba de vestir o trajo da personagem que vai interpretar
e sai para a rua com o cântaro à cabeça em direcção à fonte (ao som do chiar de um carro de bois
que nunca vemos) ainda julgamos estar perante o documental. Mas logo ela chega à fonte onde se
encontra com a personagem do Cristo, e entre ambos o diálogo pertence já à Paixão. De repente,
estamos na ficção, sem pré aviso. Percebemos a mudança não tanto pelo texto como pelo modo de
o dizer. Não cabe discutir aqui se o filme é uma ficção ou documentário: o facto é que toda a
representação da Paixão foi reposta em cena especificamente para o filme de Manoel de Oliveira.
Há um plano muito interessante no início do filme, em que vemos apenas a pá de uma enxada que
cruza o azul do céu várias vezes e finalmente o rosto esforçado do lavrador, que se ergue e entra no
enquadramento; o que escutamos é o rasgar da terra que não vemos. Mais para o final do filme, na
cena da lavagem dos pés, Manoel de Oliveira faz-nos ouvir a água correndo acompanhando o gesto
da lavagem, mas sem nunca mostrar os pés a serem lavados. No início da extraordinária sequência
102
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
final, vemos o rosto amortalhado de Cristo enquanto ouvimos o assobio de uma bomba que cai.
Nos planos seguintes vemos o cogumelo atómico, imagens de guerra e destruição.
A Caça (1964)
O filme começa com o som de um tiro que se ouve logo sobre o título inicial. Seguem-se uma
espécie de gotejar e uma escala de metalofone, sobre uma legenda que explica que o filme se
baseia numa história verdadeira.
Num capoeiro uma raposa persegue galinhas em grande alarido. Dois rapazes (personagens
centrais do filme) batem com as mãos e os pés num portão provocando o ladrar do cão no outro
lado. E o filme continua, com planos em que os ruídos intensos vão sugerindo violência, que
culmina na visão do interior de um matadouro, onde dois homens desmancham corpos de vacas à
machadada. A violência da sequência sonora e da visão dos cadáveres de animais no matadouro
parecem prenunciar a tragédia. Um dos rapazes olha em volta com alguma repulsa.
A violência concretiza-se pouco depois, quando no seu percurso o outro rapaz pontapeia o cão do
sapateiro. Os rapazes chegam ao campo onde estão os caçadores. O som dos disparos evoca um
campo de batalha, tal é a sua intensidade. O primeiro rapaz diz “Os homens não deviam matar os
animais”. Subitamente, um caçador aponta a espingarda directamente na direcção dos rapazes.
Aqui a violência está na visão dos canos da caçadeira virados para a câmara e no relativo silêncio.
Os dois rapazes entram numa breve discussão sobre matar ou não matar e acabam por se afastar
um do outro. O primeiro entra numa zona pantanosa e começa a afundar-se. O outro, em
desespero, corre e grita por alguém que lhes acuda. Mas o campo é agora silencioso. Só se ouvem
os gritos de desespero dos dois rapazes. Manoel de Oliveira filma planos gerais que acentuam o
isolamento das personagens.
Numa curta cena em que vemos o rapaz afundando-se, ouvimos de novo a música inicial.
O segundo rapaz consegue finalmente ajuda dos homens da aldeia. Quando estes chegam,
voltamos a momentos de grande intensidade (e agora confusão) sonora, com as vozes dos homens
que se desentendem e discutem, o cão que ladra e o maneta que estende o pulso decepado e grita:103
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
“A mão! A mão! A mão! A mão!....” E com este grito termina a versão original. Final em aberto a
que Manoel de Oliveira, foi obrigado a acrescentar uma sequência em que se mostra a salvação do
rapaz, para poder exibir o filme no circuito comercial.
A sonoridade de A Caça assenta principalmente no uso dos ruídos e do silêncio. Na sua maior
parte, são ruídos de grande intensidade que evocam violência. Violência do ser humano. Violência
sobre os animais, mas sobretudo contra o seu semelhante. Os diálogos reduzem-se ao mínimo
indispensável para estabelecer a situação. Ficamos a saber pouco sobre os dois rapazes. Apenas
que um é filho dum talhante e o outro filho de um carpinteiro. O primeiro quer ir à caça e o outro
considera tornar-se vegetariano. A música é incidental. Vem despertar o espectador, impedi-lo de se
deixar envolver emocionalmente no drama particular daquelas personagens, desafiá-lo para a
reflexão sobre a própria humanidade.
As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965)
As Pinturas do Meu Irmão Júlio é uma curta metragem de grande originalidade. Em termos sonoros
é no entanto duma grande simplicidade. Após alguns planos em que vemos e ouvimos José Régio, a
câmara volta-se para as pinturas de Júlio dos Reis Pereira (irmão de Régio) e não as volta a deixar
até ao fim do filme. Depois da voz de Régio que ouvimos na introdução dizendo um seu texto, a
visão das pinturas é acompanhada pela música composta e interpretada por Carlos Paredes.
Segundo França, Costa e Pina (1981:31), a música foi composta por Carlos Paredes "de improviso,
diante do correr das imagens" já montadas do filme. Mas isto não significa que se perceba a música
como um acrescento às imagens das pinturas. Pelo contrário, parecem ser estas a seguir a música
nas suas deambulações por vários ritmos e melodias, umas mais alegres, outras mais sombrias.
Por vezes, a câmara parece mesmo dançar ao som da guitarra. Balançando e rodando, em
travelling ou em panorâmica, aproximando-se ou afastando-se, a objectiva percorre as pinturas em
todas as direcções.
Manoel de Oliveira nunca mostra uma pintura na sua totalidade, excepto a final. Os
enquadramentos e movimentos que escolhe impõem-nos uma leitura das personagens criadas por
Júlio nos seus quadros. Longe da tentação descritiva em que geralmente cai o documentário sobre
104
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
arte, o filme de Manoel de Oliveira oferece-nos “uma visão da pintura pelo cinema revertida num
sincretismo absoluto, em que formas, cores, texturas, tramas, sonoridades, movimentos e
deslocações convergem na pintura viva que é o filme” (Miranda, 2011:184).
O Pão (1966) [versão curta]
Destaco neste filme o contraste entre duas paisagens sonoras: uma artesanal e outra industrial.
Naquela predomina o silêncio e o humano, nesta o ruído e as máquinas. Manoel de Oliveira vai-nos
apresentando alternadamente os dois mundos em contraste (mas não em conflito). Ao cante
alentejano com que inicia o filme, segue-se o soar do comboio com o seu inevitável apito. Mais
adiante, o ruído de braços mecânicos converte-se num ritmo de percussão que se funde na música
de um baile popular.
Manoel de Oliveira não estabelece qualquer hierarquia entre os sons que utiliza. Voz, música e
ruídos são tratados com igual respeito. O som mostra o que a câmara não é capaz – como o ruído
das moedas a tilintar na bolsa que vai batendo na coxa do padeiro enquanto este desce as escadas
a correr. Plano este que se liga ao seguinte, de uma moeda a rodar em cima de um balcão.
O Passado e o Presente (1971)
Este filme é o primeiro de uma colaboração de vinte anos do compositor João Paes com Manoel de
Oliveira. Segundo relata o compositor “a música deveria (…) contribuir para que a ironia e a magia
ocultas no fundo da comédia viessem ao de cima” (Paes, 2001:91). A música utilizada é Sonho de
Uma Noite de Verão, composta por Felix Mendelssohn para a peça homónima de Shakespeare, obra
universalmente conhecida através da Marcha Nupcial que a integra. É precisamente com versões da
Marcha Nupcial que Manoel de Oliveira abre e fecha o filme. "Do embrião da Marcha Nupcial de
Mendelssohn, toscamente executado por um organista grotesco, nasceu, como que reflectido num
espelho temporal, todo o organismo musical do filme."(Paes, 2001:91)
Praticamente toda a peça de Mendelssohn é ouvida durante o filme. No entanto não é utilizada do
modo clássico da música de filme. Exceptuando a cena final, do confronto entre Vanda e Ricardo, é105
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
muito rara a coexistência da música com outros sons. As cenas dialogadas intercalam-se com
sequências musicais. Estas últimas fazem-me lembrar cinema mudo (analogia evidente na cena em
que Vanda foge, descendo da varanda por um lençol demasiado curto, e cai sobre o jardineiro que a
tenta ajudar). Eduardo Prado Coelho (1983:28) fala de "uma música extremamente envolvente, por
vezes tão dominante (é o caso do pré-genérico, mas não só) que produz uma nostalgia do cinema
mudo, e que arrasta consigo os movimentos da câmara, provocando uma espécie de dança do
olhar". A música completa o que as imagens mostram, num todo eloquente em que as palavras
seriam supérfluas, sempre num tom de comentário crítico e irónico. Este tom irónico leva o
espectador a distanciar-se das personagens e a assumir uma atitude crítica face ao seu
comportamento mesmo nos momentos mais dramáticos.
Leio do depoimento de João Paes (2001) a confirmação da minha suspeita de que Manoel de
Oliveira montou estas sequências sobre a música. O discurso musical é respeitado, evitando
interromper a meio frases musicais, quase sempre aproveitando as pausas da composição.
Algumas frases curtas são usadas como pontuação.
A ironia também se transmite nos ruídos. Logo no início do filme, as personagens vão chegando nos
seus automóveis que estacionam à entrada da casa. Ruído de motor e de rodas, buzinadela, abrir
do portão, fechar do portão, nova buzinadela, outro motor, abrir do portão, fechar do portão... (Este
jogo repete-se mais tarde). Mesmo os ruídos mais inocentes, a que poderíamos atribuir uma função
mais naturalista (os passarinhos no jardim, por exemplo), soam irónicos.
Tendo por base a peça teatral de Vicente Sanches, em O Passado e o Presente a voz dos actores e o
texto são uma componente fundamental. Embora sem o pendor literário que Manoel de Oliveira
concederá a filmes posteriores, é clara a importância que dá ao texto dito, sobretudo quando opta
por não o misturar com a peça musical de Mendelssohn, que lhe iria alterar a entoação e
musicalidade próprias. Além dos diálogos propriamente ditos, ouvimos o que serão as vozes
interiores das personagens: no cemitério, Firmino lê dedicatórias nos jazigos e Vanda fala com o
falecido Ricardo; no quarto de Firmino, escutamos da sua voz o texto que escreve na carta de
suicídio.
Bénard da Costa considera que é com este filme que Manoel de Oliveira inaugura o estilo que vai
marcar o seu cinema daí em diante. Um dos argumentos que apresenta tem uma relação directa
106
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
com o uso do som: “a alternância de grandes sequências sem diálogos com sequências muito
faladas, ou em que o diálogo determina a mise-en-scène” (Costa, 2001:9). Quanto aos diálogos,
Bénard da Costa (que foi actor no filme) considera que “o texto dito é, não só também ultra-teatral,
como é um texto sem qualquer correspondência com o português usual, acentuando, até à
caricatura, a inverosimilhança dos diálogos e das situações” (Costa, 2001:10).
Benilde ou a Virgem Mãe (1974)
O filme começa com um longo e sinuoso travelling que percorre os bastidores do cenário
(assumidamente teatral) em que a acção se vai desenrolar. Em sobreposição vai correndo o
genérico, em silêncio até que, ao passarem os últimos nomes de actores, se inicia uma música
intensa de percussões metálicas e sopros graves acompanhados de uivos estranhos.
A primeira impressão é a de um filme de terror. Finalmente a câmara entra no cenário e a objectiva
fixa-se sobre a fotografia de uma seara. Uma legenda situa a acção, e a música é substituída pelo
som do vento. Nova legenda anuncia o “primeiro acto”, e começamos a ouvir o diálogo das
personagens ainda antes da mudança de plano e de elas nos serem mostradas.
Tal como em Aniki-Bóbó e O Passado e o Presente, Manoel de Oliveira revela durante o genérico os
sons associados ao momento mais dramático do filme, que neste caso são os uivos do louco Quim
Meadas (que nunca veremos). Esta utilização do som fora do contexto como que o desdramatiza e
nos obriga a escutá-lo de uma forma crítica quando o voltamos a ouvir no lugar a que pertence. Há
um efeito Alice do Outro Lado do Espelho em que a consequência chega antes da causa e por isso
não há lugar ao suspense, mas à estranheza e à ironia.
O som em Benilde ou a Virgem Mãe é simultaneamente complexo e minimalista. Minimalista, no
sentido em que não está presente uma grande variedade de sons diferentes. Complexo, porque cada
um dos sons que Manoel de Oliveira nos faz escutar parece pertencer simultaneamente a várias
dimensões simbólicas. Diz o compositor João Paes (2001:93): "foi a primeira vez que recorri ao
que, à falta de melhor designação, chamarei «música búzia» -- vizinha dos sons do mar e do vento
que as grandes conchas guardam no interior -- e que sugere maravilhosamente a existência de
mundos metafísicos, irreais, onde se movem as heroínas-mártires dos filmes da maturidade de
107
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Manoel de Oliveira".
Para além dos diálogos e da música electroacústica – “búzia”, como lhe chama João Paes – dois
tipos de ruído dominam: o vento e os gemidos/uivos de uma personagem que nunca vemos. O
vento é o elemento central de uma tempestade completada com momentos de chuva forte, bater de
ramos de árvore e das portadas da sala. Alguns sons síncronos (aparentemente resultantes da
captação do som directo) acompanham as acções dos actores.
O filme é dominado pela presença quase constante de um fundo sonoro intenso de vento e música
que por vezes se misturam e confundem. Este ambiente exterior cerca a casa e as personagens de
forma claustrofóbica, como se fora provocado por um ser sobrenatural que espreita as personagens
e tenta invadir o interior. Apenas audível e nunca visível, o ser revela-se pelos ruídos dos ramos nas
janelas e na chaminé. A música de ritmo imprevisível (quase caótica) acrescenta à inquietação das
personagens. Esta massa sonora densa é interrompida apenas pontualmente, em momentos de
grande intensidade dramática e durante as mudanças de acto.
Entre a música e o ruído do vento há um jogo de ambiguidade e ambivalência. A mistura de timbres
potencia a ambiguidade: nem sempre temos a certeza de qual escutamos. Embora o vento remeta
para uma realidade visível (através do movimento dos ramos das árvores ou da cortina da sala) as
variações na intensidade percebida auditivamente assumem simultaneamente uma dimensão
dramática e não naturalista. Se de alguma maneira a música parece associar-se a Benilde e
sublinhar as dúvidas sobre a sua gravidez, não deixa de participar dos ruídos que constroem o
ambiente que oprime as personagens. A ambiguidade estende-se aos uivos que, apesar de terem
uma fonte invisível mas identificada pelas personagens nos seus diálogos (o Quim Meadas), nem
sempre claramente podemos distinguir do silvar do vento ou de um não identificado instrumento de
sopro.
De acto para acto a música e o vento vão alterando a sua relação. No primeiro, a música surge
associada aos episódios de sonambulismo de Benilde e distingue-se mais claramente do ambiente
de chuva e vento. No segundo, a música tem maior presença e dos ruídos só resta o vento, nem
sempre completamente distinto. No terceiro, a música substitui todos os ruídos (excepto raros sons
síncronos). Como se de acto em acto a música fosse significando a viagem de Benilde de um
universo ainda material para outro já totalmente espiritual.
108
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
No segundo acto há uma cena assinalável. É a cena em que a tia de Benilde explica a esta qual é a
única maneira como se pode fazer um filho: “um homem toma uma rapariga nos braços...” Um
uivo tremendo faz-se ouvir, e uma rajada de vento simultânea provoca o violento abrir das portadas
da varanda, como se a tempestade forçasse a entrada para levar Benilde. A tia luta com esforço
contra o vento e consegue fechar as portadas. Este uivo amplificado pelo silvar do vento parece ter
um efeito hipnótico sobre Benilde, que tem de ser despertada do seu transe pela tia.
É particularmente significativa a existência duma personagem que só se revela pelo som. Apenas
sabemos do louco Quim Meadas pelos diálogos que lhe fazem referência e pelos uivos que lhe são
atribuídos. Esta personagem invisível para o espectador parece assumir uma dimensão não
humana, quando os seus uivos se misturam com os ruídos da tempestade e tomam as proporções
de uma ameaça aterradora que envolve toda a casa. A presença acusmática é infinitamente mais
rica do que poderia ser qualquer visualização da personagem, pelo espaço que deixa à imaginação.
Qualquer decisão sobre a probabilidade duma relação de Quim Meadas com Benilde é deixada ao
espectador. Este personagem que apenas conhecemos pelo som não é exemplo único nos filmes de
Manoel de Oliveira. Mas é com certeza o mais misterioso e incorpóreo, já que nem uma palavra se
distingue dos seus uivos, que lhe pudesse conferir alguma humanidade. Só na cena da varanda, em
que surge associado ao vento, de certa maneira ganha corpo na força deste: é o uivo do Meadas
que parece detonar a rajada de vento que abre as portadas.
Enquanto Benilde associa esta mistura da voz do louco e do vento à voz de Deus, o que a induz
num transe, a tia associa-a ao mal – o demónio que numa provocação erótica lhe levanta a saia
enquanto ela se esforça por fechar as portadas. (É esta pelo menos uma interpretação possível).
Esta luta contra o vento tem uma dimensão irónica: se por um lado a força do vento parece
excessiva mas ainda assim verosímil, o levantar da saia introduz um cariz cómico que interrompe o
momento dramático do êxtase hipnótico de Benilde.
No que diz respeito aos diálogos, é de assinalar a quantidade de planos em que não vemos a
personagem que fala. Todos os três actos começam com todas as personagens falando fora de
campo: no primeiro vemos a imagem da seara, no segundo vemos um ramo de rosas; no terceiro
vemos a foto da mãe de Benilde. No segundo acto, vemos sobretudo as personagens que escutam
enquanto as que falam ficam fora do enquadramento. Notável o plano em que vemos o pai de
Benilde de costas (em sinal de recusa a escutar o que lhe dizem).
109
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Este filme é um bom exemplo da igualdade com que Manoel de Oliveira trata dos “quatro pilares”
(Machado, 2005) do cinema. É talvez mesmo aquele em que os sons que convencionamos incluir
na categoria de ruídos assume maior protagonismo.
Amor de Perdição (1978) [versão TV em 6 episódios]
Falar de Amor de Perdição é necessariamente falar do som. Contudo, raramente se tem plena
consciência disso. Fala-se do texto de Camilo, fala-se de literatura, sem se dar conta de que este
texto e esta literatura são transpostos para o filme literalmente pelo som da voz dos actores. Neste
filme de Manoel de Oliveira os actores, mais do que interpretar, encarnam o texto através dos
diálogos e da leitura das cartas que as personagens escrevem e trocam entre si. Além das
personagens do romance de Camilo, que podemos ver no ecrã, Manoel de Oliveira criou duas
outras que apenas existem pelas vozes que nos dá a escutar, e a que chamou Delator e Providência.
Ao transpor o romance para o filme, Manoel de Oliveira abdicou da acção e da continuidade
narrativa a que o cinema clássico nos habituou. A maior parte das cenas resumem-se a um quadro
quase estático, num cenário de aspecto teatral. Os diálogos literários afastam a possibilidade de
qualquer naturalismo da interpretação, de qualquer coloquialidade que se possa associar a um falar
quotidiano.
Manoel de Oliveira explora com muita imaginação as variações possíveis de nos fazer escutar os
diálogos e as leituras das cartas. Cito apenas alguns exemplos. Uma cena de Simão no cárcere: no
mesmo plano fixo ele escreve, faz uma pausa, e volta a escrever; enquanto escreve, ouvimos a sua
voz sem que ele fale (como uma voz interior), e só o vemos dizer a carta durante a pausa da escrita.
No final da carta Simão faz referência às estrelas, e no plano seguinte Teresa olha as estrelas e lê a
carta de Simão à criada. Noutro plano mais adiante, a presença de Mariana (fora de campo) é
denunciada pelo diálogo entre Simão e o irmão, e só então ela nos é mostrada. Quase no final do
filme, é o fantasma de Teresa que aparece a Simão para lhe dizer uma última carta.
Ao contrário do que acontece geralmente com as vozes que ouvimos num filme sem nunca as
podermos ver no ecrã, as vozes do Delator e da Providência não se encaixam no conceito de voz
off. O mais habitual é que uma voz cujo emissor não surge no ecrã seja entendida como não
110
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
participando nos acontecimentos do filme, como é vulgar nos documentários. Situação igualmente
vulgar mas diversa é a da voz de uma personagem que é simultaneamente narradora da história e
que também escutamos noutros momentos em que está ausente da cena que vemos. Comum a
ambos os casos clássicos é a impossibilidade de essa voz interferir no que se passa no ecrã –
apenas o pode narrar ou comentar.
Não é esta a função que Manoel de Oliveira concede ao Delator e à Providência. Para começar dá-
lhes nomes. Nomes que ademais são reveladores da sua função e, logo, lhes atribuem
personalidade. Em seguida, faz com que um e outra, da sua posição privilegiada e distanciada em
relação às personagens e situações visualizadas, interfiram no curso do filme. Quando necessário, a
acção pára e as personagens esperam que a voz termine o que tem a dizer para recomeçarem do
ponto em que estavam. Logo no início do filme, ouvimos o Delator narrar uma cena de duelo. Os
actores estão estáticos e só se movem quando ele termina, como que para demonstrar visualmente
o que o Delator acaba de dizer. As próprias palavras pronunciadas têm o poder de agir em lugar das
coisas que significam: no convento Teresa escreve uma carta a Simão (prestes a ir ao cadafalso) e
desmaia só de escrever a palavra "forca".
A continuidade narrativa é assegurada pelo Delator, que vai relatando, descrevendo e explicando o
que vemos e o que não vemos, numa presença quase constante ao longo de todo o filme. Se umas
vezes interrompe a acção, noutras faz pausa, se é mais importante que escutemos as personagens,
ou quando a acção visual é suficientemente explícita. Os modos como a voz do Delator se articula
com as acções e as personagens no ecrã são muito variados: tanto descreve o conteúdo do caixote
que Simão recebe no cárcere (e que nós não vemos), como substitui a voz do pai de Teresa (cujos
lábios vemos mover em sincronia); tanto refere o repicar de sinos que acabamos de ouvir
(“replicavam os sinos”), como narra antecipadamente a cena a que vamos poder assistir de seguida
(a luta junto à fonte, o confronto de Simão e Baltasar). No plano em que substitui a voz do pai de
Teresa, o Delator explica que Teresa do pai “mal ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas”.
Da voz do pai de Teresa, Manoel de Oliveira só faz ouvir uma frase, embora a boca daquele se mova
em sincronismo com a voz do Delator que escutamos durante todo o diálogo.
O Delator faz uma leitura branca do texto, sem dramatismo ou empatia, numa entoação que não
denota o mínimo envolvimento afectivo, mero relato de factos, isento de qualquer juízo de valor. Por
vezes, este relato não é coincidente com o que vemos, como na cena em que Teresa desmaia
111
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
subitamente e o Delator diz: “convulsão (…) por largo espaço”.
A voz da Providência surge muito pontualmente (meia dúzia de vezes). Tem um tom que direi
poético, à falta de termo melhor, com um pendor mais empático – como quando (logo no início do
filme) repete as palavras do texto do despacho judicial que condena Simão: “dezoito anos!”; ou
quando pára a acção da cena do assassinato de João da Cruz para se fazer ouvir. Neste último
exemplo, a voz da Providência tem o mesmo poder da do Delator: não apenas pára a acção como
silencia todos os outros sons; só quando a Providência termina é que ouvimos o grito da cunhada
de João da Cruz, que acaba de encontrar o seu cadáver.
A última destas vozes incorpóreas é a do próprio Manoel de Oliveira (plano final, em que uma mão
recolhe do mar o rolo das cartas), o que parece confirmar a suspeita de que tanto o Delator como a
Providência são também como que outras vozes do realizador. "No último plano do filme, a mão
que pega no rolo das cartas é a minha. Sou eu que conto a história do filme. (…) Não é Camilo que
fala, não foi ele que fez o filme. A minha posição é a de dizer: 'Eis o que Camilo escreveu'" (Oliveira
in Baecque & Parsi, 1999:90).
Na versão televisiva (analisada aqui) Manoel de Oliveira aproveitou uma das personagens do
romance para fazer a ligação entre os episódios. Ritinha, irmã mais nova de Simão Botelho – que
na novela é autora de uma carta que narra parte da história, e no filme é leitora dessa mesma carta
– introduz cada novo episódio, situando-nos relativamente aos acontecimentos. Senta-se numa
cadeira voltada directamente para o espectador, faz um resumo do que se passou anteriormente e
anuncia o que se irá passar em seguida. Sentimos alguma estranheza nesta situação, pois não é
normal que alguém nos interpele assim directamente vindo dum tempo passado. Por isso, embora
vestida com os trajes da personagem, esta função de narradora como que retira a intérprete
momentaneamente dos acontecimentos de que a personagem Ritinha faz parte, saindo da sua
época para encontrar o espectador no tempo presente.
O papel da música nos filmes é geralmente demasiado complexo e subjectivo para se deixar revelar
numa análise tão genérica como a praticada nesta investigação. Refiro aqui apenas aquilo que
sobressai como mais evidente do contributo do uso das músicas de Händel e de Paes na
construção do(s) sentido(s) deste filme. Uma e outra assumem funções geralmente atribuídas à
música “de fosso” (Chion, 1994). A música composta por Paes é a que está mais próxima desta
112
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
convenção. Mas, em vez de sublinhar a evolução dramática da narrativa, constitui uma espécie de
cenário acústico opressivo (por vezes evoca uma tempestade), qual nuvem negra que paira sobre as
personagens inexoravelmente conduzidas à desgraça. É feita de ruídos (por vezes nasce do ruído),
com grandes variações dinâmicas e timbres inarmónicos: "O frémito de bronze que envolve o
espaço da prisão; a pontuação da clausura conventual por uma partitura de repiques de campainha;
as sonoridades ameaçadoras que acompanham as esperas e as emboscadas; e, no mar-sepúlcro, o
«vendaval búzio» que nasce do mergulho de Mariana (…)" (Paes 2001:93-94). Contrapõe à
construção minimalista e rigorosa do restante som, e das imagens no ecrã, uma massa sonora
caótica e inquietante.
A música da Händel parece-me servir em primeiro lugar para situar a cena (e as personagens que
lhe são associadas) num determinado meio social. A primeira vez que ouvimos a música é na corte,
onde Domingos Botelho toca flauta perante uma assistência aristocrática. A importância desta cena
é sublinhada pelo facto de o Delator se calar por alguns momentos, como para deixar escutar a
música. O tom leve e algo melancólico da música parece denunciar nesse meio social um certo
alheamento da realidade a que se contrapõe um mundo natural e de simplicidade representado por
Mariana. Este contraponto torna-se evidente quando Manoel de Oliveira usa apontamentos da
música de Händel para dar um tom de comédia ao plano em que o pai de Simão tenta
atabalhoadamente vestir as calças (do avesso e deixando-as cair) numa sequência de conteúdo
dramático – Simão acaba de ser detido por ter atingido Baltasar com um tiro de pistola.
Os ruídos em Amor de Perdição, caracterizam-se pela discrição e subtileza. Não poderia talvez ser
de outro modo num filme com tanto discurso literário. De um modo geral os ruídos ajudam a
localizar a cena no espaço. Manoel de Oliveira faz isto de forma muito sintética – por exemplo, um
leve marulhar e gritos de gaivotas para a cena do desembarque na Ribeira ou o embarque de Simão
para o degredo, o chilrear de pássaros para o jardim, o martelar metálico para a casa do ferrador
João da Cruz, ou o som grave e muito reverberado do ferrolho da porta do cárcere. Estes ruídos
juntam-se aos que resultam da captação de som directo (passos e outros movimentos dos actores).
De todos os ruídos, talvez o mais rico de significado seja o som da sineta que dá o alarme quando
Mariana se lança ao mar atrás do cadáver de Simão. De facto, não há sineta no romance de Camilo
que apenas escreve a ordem do comandante para a descida do bote.
113
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Francisca (1981)
Manoel de Oliveira prossegue a experimentação com a transposição do texto literário para o filme.
No salão de baile, durante a conversa entre Camilo e Fanny, subitamente interrompe-se a valsa e
todos param de dançar como que paralisados pelas das palavras de Camilo: “amor funesto”. Muda
o enquadramento, e repete-se perante a objectiva o diálogo que antes escutáramos fora de campo.
Manoel de Oliveira usa esta repetição da mesma cena de pontos de vista e escuta diferentes outras
quatro vezes, de formas diversas. Outro recurso, é o jogo com as personagens que se fazem ouvir
fora e dentro de campo, ou reflectidas em espelhos.
Em Francisca, Manoel de Oliveira não se preocupa com a continuidade da narrativa. Talvez por isso
opta por não recorrer novamente ao papel de um delator. Usa legendas que são autênticas
didascálias (sobrepostas a planos fixos) e que situam as cenas que vemos (antes e depois)
relativamente umas às outras e no espaço e tempo da história.
Para além da música de João Paes, que vai surgindo aqui e ali (no seu papel de música “de fosso”)
como contraponto ao que vemos no ecrã, e das músicas que fazem parte do cenário acústico dos
planos do baile e da ópera, Manoel de Oliveira usa excertos musicais por vários instrumentos a solo
que, nas palavras de Paes (2001:95), povoam os “espaços domésticos” de “música romântica,
com travos amargos...”.
Quanto ao uso dos ruídos, repete-se o verificado em Amor de Perdição. Em quantidade, predomina
o chilrear de pássaros, o que condiz com o número de cenas passadas em ambiente campestre e
exteriores calmos.
Nice – À propos de Jean Vigo (1983)
No início do filme, escutamos um comentário e um ligeiro ambiente urbano donde sobressai um
sino. Pouco depois, a partir de um plano em que vemos o coreto onde toca uma banda, inicia-se
uma série quase contínua de peças de música francesa popular urbana que remetem para a época
em que Jean Vigo filmou À propos de Nice (1930).
114
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Poucos ruídos síncronos: um homem toca saxofone na rua, uma ambulância passa, um croupier dá
à roleta.
Quatro depoimentos fecham o filme: Manuel Casimiro, Eduardo Lourenço, Pedro Prista e a filha de
Jean Vigo. Esta última, após um curto excerto de À propos de Nice.
Lisboa Cultural (1983)
Neste filme destaca-se a evidente encenação dos depoimentos dos vários intervenientes. A
encenação está relacionada com cada pessoa e assunto. Resumo as sequências que me pareceram
mais originais.
A câmara acompanha Diogo Dória, que caminha enquanto lê um texto medieval. No fim da
panorâmica, entra em campo e fica em primeiro plano António José Saraiva, que fala de Fernão
Lopes. Diogo Dória, em segundo plano visual e sonoro, continua a leitura: a sua voz escuta-se
claramente nas pausas do depoimento.
A sequência do depoimento de David Mourão Ferreira é bastante complexa. De uma encenação de
Gil Vicente frente à porta dos Jerónimos, a objectiva abre (zoom out) para enquadrar David Mourão
Ferreira em grande plano. No fim do depoimento este afasta-se em direcção aos actores. A câmara
segue-o e entra no mosteiro dos Jerónimos onde um actor recita Os Lusíadas.
A música de Frei Manuel Cardoso (que termina o depoimento anterior, sobre o Padre António Vieira)
é apresentada por Luís de Freitas Branco no seu depoimento sobre a música portuguesa. As suas
últimas palavras fornecem a deixa para a audição de uma tocata para órgão de Carlos Seixas.
O jogo visual e auditivo em profundidade (primeiro plano e fundo) oferece uma dinâmica invulgar
para um filme feito de depoimentos. O filme estrutura-se em blocos pontuados (por vezes
encadeados) pelo som de guitarradas e vistas das ruas de Lisboa (com gente dentro).
115
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Simpósio da Pedra (1985)
Este filme foi apenas co-realizado por Manoel de Oliveira, o que talvez explique a sua construção
sonora me parecer pouco consistente e sem imaginação.
É um filme simples no conjunto e no que diz respeito ao som: um comentário muito sintético e
técnico pela voz de Diogo Dória; os ruídos síncronos do esculpir da pedra; os depoimentos em
directo dos artistas; a música tocada ao piano. Não encontrei qualquer referência ao autor ou
intérprete da música. Esta parece-me pouco congruente com o conteúdo ou a forma do filme; o seu
tom romântico contrasta mas não dialoga com as imagens que vamos vendo.
O Sapato de Cetim (1985)
Sendo um filme com quase sete horas de duração, a total compreensão da sua complexa estrutura
sonora ultrapassa o âmbito deste estudo. Não cabem aqui mais do que alguns apontamentos de
momentos especialmente interessantes, mas que possivelmente não serão os mais representativos
do modo como Manoel de Oliveira usa o som neste filme.
O Sapato de Cetim é provavelmente o filme em que Manoel de Oliveira leva mais longe a ideia de
cinema como teatro filmado, com cenas tomadas num só plano e unidas por legendas em fundo
negro. Para além de uma introdução que nos localiza como espectadores de teatro, tanto a
cenografia como o uso de “planos geralmente longuíssimos, no limite material da duração do
'magasin'; câmara normalmente imóvel, impondo um único ponto de vista sobre personagens que,
também normalmente, estão estáticas e se falam sem se olhar e sem olhar para a câmara, fixando
um algures indefinido e inusitado; uma extensíssima sucessão de 'recitativos' ou 'árias' em que um
só personagem (tantas vezes) se espraia em falas de intensa e tensa duração” (Costa, 1986), tudo
nos remete para a representação teatral.
A teatralidade é estabelecida logo no início. No átrio de uma sala de espectáculos um mestre de
cerimónia fala para a câmara e apresenta o espectáculo que vamos ver. Um som de trompete
pontua a sua apresentação. Quando termina o discurso, o actor faz um gesto na direcção da
orquestra (invisível) e ouvimos a música de João Paes – som intenso de metais e percussão. Abrem-
116
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
se as portas exteriores e o público entra. A câmara acompanha a entrada do público, recuando até
ao interior da sala.
Para além do som dos diálogos, que Bénard da Costa (1986) tão bem caracteriza – e a que faltará
somente acrescentar a total ausência de contracena –, Manoel de Oliveira usa uma grande
abundância e variedade de ruídos e música, que na maioria respeitam as convenções teatrais.
Genericamente, os ruídos criam os cenários acústicos e a música contribui para um certo ambiente
de época, ou vem sublinhar algum tipo de evocação das personagens. Segundo Paes (2001:95), a
música obedece "às recomendações de ordem musical que Paul Claudel escreveu à margem do
texto", sendo que, "aqui e além, Claudel levanta o véu do embuste cénico, deixando que aflore, por
meio da música, a suspeição de que o tempo histórico do drama é tão somente um maneirismo de
representação”.
Além da presença no início e no fim do filme, a música “búzia” e “caótica” de Paes (2001) surge
em escassas intervenções. Em contrapartida o filme é povoado por uma grande abundância de
trechos musicais que parafraseiam temas conhecidos. "O uso da paráfrase de trechos musicais
reconhecíveis, como forma subtil (se não irónica) de aliviar a carga trágica da acção, foi a maneira
que encontrei de seguir o espírito das indicações de Claudel" (Paes, 2001:95). Estes trechos
funcionam no sentido de localizar a acção na época histórica em que os acontecimentos
supostamente aconteceram ou foram situados por Manoel de Oliveira, mas de um modo que se
reconheça como fictício. Este realismo ambíguo veiculado pela música contrapõe alguma ironia ao
drama implícito na história da paixão de Doña Prouèze e Don Rodrigue.
Igualmente teatral é o uso dos ruídos que compõem os ambientes diversos ou dão textura a
adereços assumidamente teatrais, como o barco bidimensional que passa quase no fim da primeira
parte. Sem preocupações naturalistas, basta um chilrear de pássaros ou o assobio do vento para
caracterizar um lugar, e um ranger de madeiras para simular a oscilação do navio.
O Meu Caso (1986)
Este é o filme em que o experimentalismo de Manoel de Oliveira é mais evidente, no que diz
respeito à relação do visual com o sonoro. Manoel de Oliveira realiza três ensaios (répétitions, no
117
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
original) da peça de José Régio, completamente distintas visual e sonoramente, e acrescenta-lhes o
episódio bíblico narrado no Livro de Job. Experimentalismo que não se deve confundir com
improvisação, pois este parece-me ser um dos filmes mais rigorosamente estruturados de Manoel
de Oliveira. Cada enquadramento, cada movimento de câmara, cada som parece ter um sentido
que não se confunde, e antes se opõe ostensivamente, a uma impressão de realidade tão cara ao
cinema clássico. A cada momento Manoel de Oliveira nos recorda a diferença entre teatro e vida,
ficção e realidade.
A música electrónica intensa ouvida durante o genérico interrompe-se para dar lugar a um ecrã
negro e a uma voz de mulher (em que se detecta a reverberação de um espaço grande e vazio) que
diz: “Il m'aime! Il ne m'aime pas!” A imagem vai clareando e começamos a distinguir uma equipa
de cinema (Manoel de Oliveira incluído) que se aproxima do equipamento cinematográfico já
montado na plateia. A voz de Manoel de Oliveira – “luz”, “motor”, “claquette” e “acção” – dá início
à filmagem.
O primeiro dos ensaios de O Meu Caso tem a aparência do registo de uma apresentação teatral com
som síncrono. Todos os planos são filmados do mesmo ponto de vista (localização física da câmara)
ainda que com algumas variações de enquadramento e movimentos panorâmicos. Para além dos
diálogos e passos (que soam algo exagerados em intensidade), há uma pianola que começa a tocar
quando uma das personagens tropeça nela, e que só pára quando uma outra lhe assenta um
murro.
A segunda versão simula um filme mudo. A preto e branco, em movimento acelerado e quase
sempre em grandes planos, sem som síncrono. Som de fundo: um ruído de projector de cinema. Na
voz de Luís Miguel Cintra escutamos excertos de Pour finir encore et autres foirades de Samuel
Beckett (1976) pontuados pela música de João Paes (que continua a ouvir-se durante o gag, agora
só visual, da pianola).
A terceira versão começa como a primeira, mas filmada em plano geral, vendo-se o palco todo. Os
diálogos são incompreensíveis. Logo percebemos que o som das vozes foi invertido e cada frase é
escutada do fim para o início. Os ruídos síncronos, que inicialmente soam normalmente, logo
acabam por ser igualmente invertidos. A pianola é accionada deliberadamente pela personagem da
Actriz, e toca a uma velocidade inconstante mas sempre acelerada. A acção, que já observamos por
118
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
duas vezes, é interrompida por uma personagem desconhecida que sobe ao palco e, sem dar
atenção à sua volta, monta um projector de cinema e abre as portas ao fundo do cenário. Um ecrã
desce e nele projectam-se imagens de violência, fome, poluição... Todos os actores acabam por se
virar para o ecrã e ficar de costas para nós espectadores. A música da pianola mantém-se na sua
velocidade incerta até que o ecrã fica negro e uma cortina com a reprodução da Guernica de
Picasso desce à sua frente. Então a música da pianola pára.
Num cenário apocaliptico do século XXI temos as personagens do Livro de Job em trajes bíblicos.
Tudo é muito teatral: cenário, figurino, caracterização (Job está leproso). Todos os dispositivos
usados revelam a sua teatralidade: reflectores de luz movidos ao som de trovoada; coluna de som
donde sai (supostamente) a voz reverberada de Deus; o projector que faz incidir sobre Job e a
mulher uma luz intensa e branca. São os mesmo actores em novas personagens, a que se
acrescenta a voz de um narrador que vai introduzindo as falas. A música faz contraponto às longas
falas de Job: em vez de se lamentar com ele, parece acusá-lo.
No epílogo curto há uma dança ao som de música de piano: "o patriarca bíblico recebe, como
presente, o retrato da Gioconda, sobre cuja imagem, reproduzida num monitor de vídeo, caiem,
quais gotas de oiro musical, as últimas notas do piano..." (Paes, 2001:95).
Sendo que Manoel de Oliveira é reincidente em mostrar o dispositivo técnico do filme, pela primeira
vez mostra tão explicitamente um equipamento áudio, e logo uma coluna que sabemos que não
emite o som a que é associada – a voz de Deus – pois de facto estamos a assistir a um filme e não
a uma peça de teatro num palco.
Os Canibais (1988)
Com a colaboração de João Paes, Manoel de Oliveira transforma o conto homónimo de Álvaro
Carvalhal numa ópera filmada. Às personagens do conto original foram acrescentadas as
personagens de Iago e Nicoló. Iago assume as funções de uma espécie de Delator, mas fá-lo aqui
cantando e aparecendo em cena junto com Nicoló. Este acompanha Iago tocando o seu “violino
diabólico de Paganini” (Paes, 2001:97), em contraste com o romantismo simulado da restante
música. "Foi, por isso, minha preocupação que a ópera fosse romântica na sua macro-forma
119
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
aparente, isto é, fosse constituída por uma sucessão de formas fechadas, conotadas com o
Romantismo musical. entremeadas de recitativos, a cargo dos apresentadores. (...) O idioma
musical é, no entanto, original – não tem nada que ver com o diatonismo clássico-romântico" (Paes,
2001:97). Na cena final a música do violino serve uma dança simultaneamente cómica e macabra.
Tanto as intervenções de Iago como os diálogos das personagens da história são cantados, e a
presença da música é quase constante. Para além da introdução, em que vemos a chegada dos
convidados para o baile, só nas pausas do canto podemos escutar (sugestões de) ruídos síncronos:
o inevitável chilrear no jardim, o crepitar da lareira onde o visconde será assado, o repuxo do lago,...
Diz Philippe Roger (2008: s.p.): "O tempo das personagens é ele próprio afectado pelo tempo
musical: a música influi no ritmo dos actores, desacelerando os comportamentos, chegando quase
a congelá-los".
Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990)
O filme tem uma estrutura narrativa complexa, com vários episódios e cenários diferentes a que um
narrador dá continuidade. O papel de narrador é atribuído desta vez a uma personagem: o alferes
Cabrita, estudante de História na vida civil, que vai respondendo às questões dos seus soldados e
expondo a sua tese em jeito de diálogo socrático.
A grande variedade de cenários e situações determina uma quantidade e diversidade de ruídos
síncronos pouco habitual nos filmes de Manoel de Oliveira. No entanto, são usados com a
parcimónia habitual, reduzidos ao essencial, o que baste para estabelecer o sentido da sua escuta.
Tendo terminado a relação com o compositor João Paes, que durante duas décadas contribuiu para
a selecção da música dos filmes de Manoel de Oliveira, a música de Non é da responsabilidade de
Alejandro Massó. Parece-me menos criativa do que a de João Paes e mostra tendência para uma
empatia ilustrativa do visual, em vez de fazer uso do diálogo habitual em Manoel de Oliveira. É
interessante a composição electrónica no início do filme, um longo travelling sob a copa de "uma
árvore imensa no meio de uma selva qualquer – a que a música confere uma estranheza
inquietante. Esta árvore é um pilar vivo, coluna solitária de um templo sem idade; envolvido numa
120
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
música surdamente ameaçadora, ela evoca ruína próxima" (Roger, 2008: s.p.). Em contrapartida,
aborrece a música falsamente árabe que dura toda a sequência da batalha de Alcácer Quibir.
Primeira e única colaboração de Massó, por coincidência (ou não), este é o último filme de Manoel
de Oliveira em que é usada música “de fosso”.
A Divina Comédia (1991)
Outro filme em que Manoel de Oliveira constrói uma relativa continuidade narrativa pela colagem de
textos literários de várias origens: a Bíblia, Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov de Fiodor
Dostoievski, o Anti-Cristo de Friederich Nietzsche e A Salvação do Mundo de José Régio.
Uma personagem, interpretada por Maria João Pires, está quase constantemente a tocar o piano
que vemos na sala. No entanto, a música frequentemente se liberta dessa ligação imediata com a
acção e passa a uma espécie de musica “de fosso”, embora mantendo as características acústicas
coerentes com a sua localização no espaço da cena. O som do piano mantém-se como fundo
durante muito do diálogo, e por vezes é mesmo objecto desse mesmo diálogo. A música do piano
não só é discutida enquanto Música mas enquanto Arte, que ela simboliza. “Como a essa
personagem/intérprete está confiada a música do filme (sempre música in mesmo quando se ouve
em off temos que neste filme a música se personaliza, a música é personagem, a música é música
a fazer de música” (Costa, 2001:14).
Para além dos ruídos síncronos com a acção dos actores, podemos escutar um chilrear que
aparenta ter origem no exterior (o que é consentâneo com a captação dos diálogos em directo).
Outros ruídos da natureza já não têm essa aparência natural. Por exemplo, o grasnar de um corvo
que pontua o final da primeira discussão entre o Filósofo e o Profeta num exterior ventoso. Ou, o
som de cães a ladrar ao longe, no plano anterior àquele que mostra o Director enforcado. Ou ainda,
o carrilhão do relógio que toca no início e no fim da cena em que o Cristo sobe ao piano e prega
para os outros.
A cena, de aparente pesadelo, que evoca o momento em que Raskolnikov mata a velha usurária
para a roubar, é aquela em que se nota mais o processamento do som. As pancadas do machado
na cabeça da mulher soam a marteladas em madeira. Estas e o grito da mulher são muito
121
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
reverberados. O ruído de Eva a trincar a maçã, logo no início do filme, soa intencionalmente
exagerado em intensidade.
O Dia do Desespero (1992)
O que destaco neste filme é a complexidade introduzida nos diálogos (e, claro, na encenação) pelos
dois actores, que tanto encarnam personagens, como fazem de si próprios e falam directamente
para a câmara. Teresa Madruga, que faz de Ana Plácido, e Mário Barroso, que faz de Camilo
Castelo Branco. Ora, como isto é um filme e portanto os actores estão sempre a representar, as
constantes mudanças de personagem tornam o jogo de discursos bastante complexo. As mudanças
são súbitas e sem aviso, como no plano em que Ana Plácido está a vestir-se ajudada pela criada e
de repente tira a peruca e fica Teresa Madruga. Noutro momento, Teresa Madruga deixa a
personagem – isto é, o figurino e os adereços – mas continua a olhar Camilo com a mesma
expressão crítica própria a Ana Plácido. Outras vezes, introduz-se nos planos que mostram Camilo
comentando-os e contextualizando-os.
Manoel de Oliveira joga com esta ambiguidade fazendo escutar a voz antes de mostrar a
personagem que a produz. Por vezes esta identificação é denunciada pelo conteúdo do texto. A
música está geralmente associada às personagens de Ana Plácido e Camilo Castelo Branco –
"Tristan para a mulher apaixonada, Parsifal para o homem suicidário (Roger, 2008:s.p.) – o que
também serve de indício. O genérico indica apenas que a música é de Wagner: mais nenhuma
informação nos é dada.
Num dos primeiros planos, vemos apenas uma roda de carruagem (filmada do possível ponto de
vista de alguém que nesta viaja) rodando numa estrada de terra batida. Ouvimos a voz de Mário
Barroso lendo uma carta de Camilo a sua filha Amélia, e também o som da roda rolando na terra,
os cascos e o resfolegar dos cavalos. É um plano longo e fixo, a que se segue o de um caminho à
chuva por onde passa a carruagem, e durante o qual escutamos a voz Mário Barroso dizendo outra
carta de Camilo.
O ruído mais presente é o do vento, que surge em vários momentos ao longo do filme. Num desses
momentos, vemos os ramos de uma árvore bater numa janela e chamar a atenção de Camilo, que
122
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
interrompe a escrita. Uma silhueta recorta-se contra uma janela. Lá fora os ramos agitam-se. Tudo
em câmara lenta – o som dos ramos batendo nos vidros e os passos no soalho. O vulto vira-se para
nós e grita, visualmente fazendo lembrar a pintura de Edvard Munch. O grito soa muito reverberado
– em crescendo e logo silenciado – e o bater nos vidros ainda mais intenso. Como em Benilde, é
um som ameaçador o do vento.
Na sequência que termina no suicídio de Camilo, temos a presença constante do tictac do relógio
da sala, cujo carrilhão toca antes de se ouvir o disparo da pistola de Camilo e volta a tocar (cinco
horas) no final. O vento regressa na cena do funeral de Camilo.
Vale Abraão (1993)
Este filme mantém a complexidade a que Manoel de Oliveira nos habituou. Diálogos e narração
entretecem-se. Raramente os diálogos fazem avançar a narrativa. O narrador é mais próximo do
clássico do que é costume nos filmes de Manoel de Oliveira, mais difícil de identificar com uma
personagem (ainda que nunca visualizada). Por vezes narra, outras descreve ou comenta. Duas
vezes assume a voz duma personagem morta, da qual existe apenas o retrato.
Manoel de Oliveira não constrói uma continuidade clássica. Os planos de longos diálogos, quase
sem som ambiente, intercalam-se com planos paisagísticos (muitos deles fixos) musicados, ou
sonorizados pela voz do narrador, ou com cenas mudas em que a acção das personagens fala por
si.
Ao contrário do que é prática frequente de Manoel de Oliveira, em Vale Abraão a voz do narrador
nunca se mistura ou duplica a das personagens. Situação rara é escutarmos personagens que
falam fora de campo sem logo a seguir nos serem mostradas: é o que acontece na cena da igreja
em que apenas vemos as trocas de olhares das personagens com a voz do padre em fundo sonoro.
Três sonoridades musicais se destacam: piano, combo de jazz, violino. A música de jazz serve de
ambiente a uma festa e ajuda a caracterizar o meio de alta burguesia em que decorre. O violino está
associado à personagem do jovem Semblano, cuja interpretação de Bach parece ser o catalisador
da sua breve aventura sexual com Ema, a protagonista. O som de piano – mais precisamente as
123
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
cinco versões de Clair de Lune (Beethoven, Debussy, Strauss, Schumann e Fauré) – cumpre uma
função semelhante à música “de fosso”. Como habitualmente, Manoel de Oliveira usa esta música
de modo diverso do clássico. A música dá uma certa tonalidade às cenas, mas sem denotar uma
concordância com elas. O romantismo e melodia do piano contrapõe-se ao cinismo das
personagens denunciado pelas suas acções e diálogos. Não será por acaso que a única personagem
conotada com algo de genuíno e verdadeiro desta história é a muda Ritinha: a música parece
substituir a voz que ela não tem.
Os sons ambiente síncronos são geralmente suaves. Exceptuam-se os ruídos dos automóveis e do
comboio, sobretudo o apito deste. O uso dos ruídos obedece a um esforço de síntese e indiciam em
vez de descrever: um leve chilrear, uma sugestão de rio, o crepitar do fogo. Uma ou outra vez,
ganham uma dimensão dramática: o lobo que uiva ao ser invocado pela voz do narrador ou o
carrilhão do relógio que pontua a acção.
De assinalar é também como Manoel de Oliveira usa o sonoro para substituir a visão de situações
que poderiam merecer do espectador alguma empatia emocional. Há duas cenas significativas,
ambas envolvendo Ema. Na primeira, escutamos o que identificamos como um acidente automóvel
violento (provocado por um condutor distraído pela visão de Ema). A segunda, é a do acidente
mortal desta: vemos e ouvimos o seu pé calcar uma tábua partida do cais, mas só pela escuta do
splash sabemos que Ema cai na água e se afoga.
A Caixa (1994)
A presença da música manifesta-se de modos muito variados, que fazem deste filme quase um
musical. Logo a abrir o filme, um guarda nocturno com sinais de embriaguez vai subindo as
escadas de um bairro lisboeta (onde toda a acção se passa) ao som de uma canção russa, que vai
crescendo de intensidade à medida que ele sobe. Ao cimo das escadas há um baixo relevo de S.
Cristóvão e uma seta que indica: Teatro.
Amanhece. Muita gente sobe ou desce as escadas ao som de uma música de ritmo muito rápido.
Na tasca da esquina está um guitarrista que toca várias vezes, algumas delas em acompanhamento
da mulher que vende tremoços no patamar em frente e que parece ter cantigas para todas as
124
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
ocasiões. Em continuação de uma conversa com o tasqueiro, sobre fado e guitarra, o guitarrista
interpreta a Avé Maria de Schubert (que é repetida no final).
“O que me agradava era a ideia de fazer roubar a caixa enquanto o guitarrista tocava a Ave Maria de
Schubert, que o roubo se fizesse sob uma música religiosa” (Oliveira, 1996).
Depois, é um cego que desce as escadas acompanhado por um rapazinho, e vem cantando e
tocando (mal) um cavaquinho. Numa espécie de interlúdio que antecede o epílogo, as escadas
iluminam-se com uma luz teatral e várias bailarinas em tutus amarelos (são estrelas da bandeira da
UE) saem pelas portas das casas, e dançam ao som da Dança das Horas de Ponchielli. Mais uma
vez o genérico não refere as obras musicais usadas.
A escadaria é um espaço fechado onde parecem não chegar ruídos do exterior excepto o do sino,
que toca pouco antes do cego se suicidar – os canários cantam furiosamente quando ele entra em
casa para o fazer – e no fim do filme.
Os diálogos parecem, na generalidade, mais coloquiais do que é habitual.
O Convento (1995)
“O Convento é um filme que, a bem dizer, não conta uma história. Os actores representam quase no
vazio. Há mais suposições do que outra coisa” (Oliveira in Baecque & Parsi, 1999:121).
A presença de música constante em longas sequências é talvez o aspecto mais notável, porque
invulgar, do filme. Mas a música não sublinha a narrativa, antes desenvolve a sua própria, criando
um clima de tensão. Timbres irreconhecíveis soam com grande intensidade. Por vezes, confundem-
se ou misturam-se com ruídos estranhos. Os diálogos são relativamente esparsos: o sentido do
filme assenta mais no que não é dito, no mistério de situações que não se explicam, de relações
ambíguas, de desencontros. E a música acrescenta caos a essa incerteza.
“Em O Convento, há um outro tipo de aplicação musical em que a música concede, por vezes, uma
outra força, e mesmo uma expressão bastante próxima da de um texto literário ouvido em voz off”
(Oliveira in Baecque & Parsi, 1999:142).
125
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
O que não é dito por palavras é por vezes significado pelos ruídos, como na cena em que os
membros de um casal, recolhido em quartos separados, saem e voltam a neles entrar sem se
encontrarem. Cada um escuta os ruídos do fechar e abrir da porta do quarto do outro para sair para
o corredor e se desencontrar dele. Paralelamente ao jogo com os bateres da porta há também o
ligar e desligar dos interruptores da luz dos quartos.
Party (1996)
O cenário acústico da primeira sequência (que é a da garden party) é o das forças indomáveis da
natureza. Primeiro, é o mar cujo ruído em crescendo obriga as personagens Michel e Leonor a gritar
para se fazerem ouvir (reforçando a sua dificuldade de comunicação). Logo a seguir, é o vendaval
que, parecendo responder ao conflito entre Rogério e Michel, acaba com a festa fazendo voar a
mobília e fugir os convivas. Na segunda sequência do filme (interior da casa) escutamos o fogo na
lareira e a chuva, a que no final se junta a trovoada.
Neste filme há uma continuidade da acção, que decorre quase em tempo real – duas sequências
ligadas por uma legenda –, e toda a história é construída nos diálogos. Não há lugar para a música
com excepção de duas canções gregas interpretadas a capella por Irene Papas: a primeira, logo no
início, acompanhada apenas por um ecrã negro com uma legenda que lhe traduz a letra, a
segunda, quando canta para Rogério.
Viagem ao Princípio do Mundo (1997)
Filme de uma viagem, que alterna planos das personagens em diálogo com outros que vão
mostrando as paisagens e as estradas por onde vão passando. A música (de Emmanuel Nunes)
surge nos momentos em que não há diálogo. Ruídos síncronos sem protagonismo, excepto o ladrar
dos cães que a certa altura perseguem o carro.
Um episódio destaca-se: o grupo faz um desvio na viagem para observar uma curiosa estátua dum
homem curvado sob o peso de um enorme barrote de madeira. Uma aldeã diz um poema alusivo à
figura: “Eu sou o Pedro Macau / cá às costas seguro um pau / por aqui passam vários palegros /126
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
uns de focinho branco, outros de focinho negro / mas ninguém me tira desse degredo”. Repete-o
uma vez. O poema é depois traduzido em francês e de novo repetido pela personagem interpretada
por Leonor Silveira.
Inquietude (1998)
O filme começa com uma música instrumental fortíssima e de ritmo rápido, que se interrompe a
tempo de deixar ouvir uma voz exclamar: “Mata-te!” O episódio termina com um personagem sendo
empurrado e precipitando-se janela fora, o que provoca um acidente automóvel que não é mostrado
mas apenas audível: grito, buzina, travagem, outra buzina... um baque, partir de vidro, bater de
chapa.
Vários ruídos e diálogos começam fora de campo e a sua origem só é mostrada depois,
funcionando como ligação de cenas desligadas. Há um momento em que uma personagem sai do
enquadramento e deixa o ecrã vazio continuando nós a ouvir a sua voz fora.
Noutra cena, dois homens conversam enquanto caminham num jardim. Por várias vezes são
interrompidos por carros que buzinam e se atravessam no seu caminho, num jogo claramente
coreografado entre diálogo e ruídos dos carros. E há o sino que toca três badaladas duma vez, e
depois toca três vezes três.
Na história final, é Irene Papas que canta uma canção grega a capella. A sua personagem fala
sempre em grego e a interlocutora em português. Vários ruídos vão acrescentando o mistério: ladrar,
grasnar e chilrear, um pequeno rebanho de cabras que agitam sinetas muito ruidosas, vento que se
intensifica, e trovoada ao longe. No final, toca o sino a rebate para a caça à bruxa.
A Carta (1999)
Escutamos a música de Pedro Abrunhosa, feito personagem e que abre o filme, e de Schubert,
cujas peças de piano são interpretadas por Maria João Pires, que numa das primeira cenas do filme
vemos a tocar em concerto. Enquanto a música de Abrunhosa está ligada à personagem, a de
127
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Schubert, depois da cena citada, é usada para sonorizar alguns planos sem diálogos.
O momento em que uma personagem é atropelada mortalmente é-nos dado apenas pelos ruídos
chegados de fora de campo. Um ambiente de convento é caracterizado por uma sineta que chama
as freiras à oração. À visão de uma estátua de Pã com uma flauta, escutamos música de flauta (que
me parece falhar a ironia desejada) a que se junta uma orquestra.
Palavra e Utopia (2000)
A utilização de três actores para distinguir a personagem do Padre António Vieira enquanto jovem –
Ricardo Trêpa –, adulto – Luís Miguel Cintra – e velho – Lima Duarte –, com personalidades e
interpretações igualmente distintas, é determinante para o sentido do filme. A dinâmica, o ritmo, a
entoação que cada actor imprime à leitura de sermões e cartas, são fundamentais na criação de
uma imagem da evolução da personagem Vieira. A interpretação de Lima Duarte parece
excessivamente dramatizada para o que é habitual nos filmes de Manoel de Oliveira. Mas, por outro
lado, a grande vitalidade que atribui a Vieira na sua velhice evoca a vitalidade e inconformismo do
próprio cineasta – evocação provavelmente intencional, já que Manoel de Oliveira está presente na
cena da morte de Vieira, como a personagem que traz o parecer em que o Padre Geral de Roma
devolve a Vieira o direito à "voz passiva e activa".
O uso da música resume-se basicamente a estabelecer o local da acção: a guitarra de Carlos
Paredes para Portugal, danças tribais para Brasil e África, e a música de Massimo Scapin para a
côrte italiana. A música de Carlos Paredes aparece novamente associada à ideia de portugalidade.
Palavra e Utopia tem o plano mais radicalmente oposto às normas do cinema clássico: em plano
fixo vemos Vieira sair da sacristia da igreja de S. Roque, ficando no enquadramento apenas uma
pintura na parede; são dois minutos durante os quais ouvimos, ao longe e fora de campo, a voz de
Vieira na igreja, dizendo o seu sermão. Noutro plano, vemos Vieira de costas começando outro
sermão. Ainda noutro plano, ouvimos Vieira relatar uma queda que dera, enquanto o vemos descer
umas escadas e cair. E há aquele, em que um soldado conversa com Vieira mantendo-se sempre
fora de campo, excepto no momento em que entra para beijar a mão ao padre. Manoel de Oliveira
parece explorar todas as variações para que a escuta da constante voz de Vieira não se torne
128
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
monótona.
Dominado pela voz de Vieira, o filme não tem necessidade de outro som, senão pontualmente. Os
ruídos de ambiente reduzem-se, como é habitual, ao mínimo suficiente. Só na cena final, da morte
de Vieira, o repicar de um sino vindo do exterior se faz ouvir com mais insistência.
Vou Para Casa (2001)
Neste filme, Manoel de Oliveira joga constantemente com o que se passa dentro e fora de campo.
Isto, não apenas na relação entre o que vemos e o que ouvimos, como na própria relação entre os
espaços cenográficos. Logo no início do filme, há um jogo entre o palco onde assistimos a uma
encenação de Le Roi se meurt de Ionesco, e os bastidores onde algumas personagens esperam
pelo fim da récita com uma trágica notícia para o protagonista da peça (e do filme). Nos bastidores
escutamos o som vindo do palco (fora de campo).
Nas cenas do café, temos o total contraponto entre visível e audível. Manoel de Oliveira filma através
do vidro da janela do café e mantém o ponto de escuta coincidente com o ponto de vista da câmara.
Daqui resulta escutarmos o som da rua quando vemos o interior do café e escutamos os ruídos do
café quando vemos o exterior. Noutro plano. apenas vemos os pés do protagonista (em primeiro
plano) e do seu amigo, sob uma mesa de café, enquanto escutamos o diálogo das personagens.
Em casa, o protagonista está fechado no quarto. Escutamos o toque de um telefone ao longe. Daí a
pouco a criada bate à porta. O protagonista sai, desce as escadas e fala ao telefone. Não
entendemos a conversa porque câmara e microfone se mantiveram fixos no interior do quarto.
Quando termina o telefonema, câmara e microfone mudam para junto do telefone, filmando o
protagonista que sobe as escadas de volta para o quarto. Neste caso não é com o fora de campo
mas como a profundidade de campo que Manoel de Oliveira joga: ao manter os pontos de vista e de
escuta iniciais, permite ao espectador ver a conversa telefónica mas não escutá-la. Como que para
não deixar dúvidas sobre a intencionalidade da sua opção, coloca câmara e microfone junto do
telefone depois de o telefonema ter terminado.
129
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Alternam-se no filme sequências em que o texto e os diálogos são extensos, com outras quase
mudas, acompanhadas apenas por música. O momento mais curioso é aquele em que Manoel de
Oliveira nos faz escutar uma valsa de Chopin durante o plano de um quadro com uma reprodução
da pintura The Singing Butler de Jack Vettriano, que representa um casal dançando.
Grande parte da música do filme é produzida por um realejo, que vemos na esquina de rua onde se
situa o café. Há mesmo uma curta cena em que o protagonista pára uns momentos a escutar o
realejo (pretexto para um episódio cómico). O realejo toca temas conhecidos, o que logo nos localiza
em Paris mas de modo algo anacrónico, pois tanto o realejo como as canções remetem para uma
época mais antiga do que aquela em que decorre a acção.
Porto da Minha Infância (2001)
O que de mais original tem o som deste filme é o comentário pela voz de Manoel de Oliveira, não só
por ser a voz do cineasta mas sobretudo por ser em discurso directo. Manoel de Oliveira participa
igualmente como actor e personagem, com um protagonismo maior do que acontece em A Divina
Comédia ou Viagem ao Princípio do Mundo, em que apenas aparece episodicamente – e no
primeiro caso para substituir o actor Ruy Furtado falecido durante as filmagens. Ver e ouvir Manoel
de Oliveira faz todo o sentido num filme construído sobre as suas memórias, mas não fica só por
aqui: multiplica-se pela presença dos seus netos Jorge e Ricardo, representando-o como
adolescente e como jovem adulto. Manoel de Oliveira joga com esta presença múltipla e cria
interacção entre as várias vozes, uma ajudando a outra na evocação das cenas que o filme nos vai
mostrando, ou até repetindo (confirmando) o que a primeira diz. Para além do comentário,
escutamos a voz de Manoel de Oliveira em canções e poemas.
De resto é um filme em que estão presentes uma grande variedade de músicas e ruídos, que
geralmente têm uma conotação directa com o que vemos.
"O filme abre-se sobre o pórtico mais radical do cinema de Oliveira, verdadeira abertura de ópera;
bloco duma rara homogeneidade, tendo em plano fixo um chefe de orquestra de costas, dirigindo
uma orquestra invisível, na noite – a peça musical intitula-se aliás Nachtmusik". (Roger, 2008:s.p.)
O filme acaba tal como começa, com o plano do maestro, de costas para nós, dirigindo a sua
130
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
orquestra invisível: apenas escutamos a música de Emmanuel Nunes.
O Princípio da Incerteza (2002)
A música inquietante de violino de Paganini e os sons do comboio que sobe e desce o Douro entre o
Porto e a Régua pontuam todo o filme. Nos diálogos, há o habitual jogo entre o fora e o dentro de
campo que força a atenção ao conteúdo do discurso e a desvia da acção.
Um Filme Falado (2003)
É um filme falado em várias línguas: português, francês, italiano, grego e inglês. As personagens
dialogam cada uma na sua língua sem necessitar tradução (excepto a portuguesa). Diálogos no
sentido retórico e não coloquial, em que cada intervenção completa o sentido da anterior. Num
grande número de cenas, começamos por ouvir a voz de fora de campo e só depois a personagem
entra no enquadramento.
É também um filme falado no sentido em que não há música – apenas uma canção na voz de Irene
Papas, e um vago cantar religioso na sequência situada em Aden.
Todo o filme é pontuado com planos aproximados da proa do navio rasgando as águas – o ruído das
ondas contra a proa soa sempre muito intenso. Termina com explosões e o afundamento do navio,
que ouvimos mas não vemos. Vemos apenas o efeito luminoso das labaredas na face do
comandante.
O Quinto Império – Ontem Como Hoje (2004)
Um filme com poucas mudanças de cenário e pouco movimento. O diálogo é apenas acompanhado
– ou mais precisamente, pontuado – por alguns ruídos e três ou quatro intervenções musicais.
131
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
A música é de Carlos Paredes e mais uma vez parece associar-se a à noção de portugalidade. Abre
e fecha o filme. Há um momento inusitado em que a música é cortada, quando a espada de D.
Sebastião – que cai em câmara lenta – toca no chão. Isto contraria o que é norma em Manoel de
Oliveira: não interromper o fluxo musical.
Do exterior vão chegando ruídos distantes: chilrear, sino, grilos nocturnos, toque de alvorada, vozes
indistintas e o tropel dos cavalos (no final).
A sequência mais interessante em termos sonoros é aquela em que intervêm personagens que
ficamos sem saber – do mesmo modo que a personagem do rei D. Sebastião também não sabe –
se são fantasmas ou parte de um sonho. Manoel de Oliveira não usa qualquer tipo de efeito sonoro
ou visual para distinguir entre o sonho, a alucinação e a realidade, com excepção de uma curta
cena em que os bobos brincam com a espada do rei que apanham do chão e se faz escutar uma
sugestão de batalha. É o primeiro de dois pequenos apontamentos sonoros que evocam o
ambiente militar que enquadra a acção da peça (ambos protagonizados pelos bobos).
Começamos por ouvir (fora de campo) uma voz que identificamos como a de Luís Miguel Cintra.
Este, na personagem do sapateiro Bandarra é então descoberto pelo rei atrás de uma cortina
porque, tal como os espectadores, D. Sebastião ouviu a sua voz. Mas o sapateiro nega ser sua a voz
que o rei escutara. Dialogam, e no fim da cena o rei adormece, o que contribui para manter a
dúvida – do rei e nossa – se o que acabamos de ver e ouvir foi um sonho, uma alucinação, ou a
realidade.
Escutam-se vozes e música de caixas e trompete, como numa cena de batalha: os bobos mimam a
guerra. O rei está adormecido e no sono completa o que diz uma destas vozes, interrompendo esses
sons de batalha. O rei continua a dormir. A música acaba e o rei acorda. Chama o sapateiro e tem
uma conversa com este sem parecer recordar o encontro da cena anterior. Vão à janela. É noite e
ouvimos grilos.
Às tantas, rei e sapateiro riem quase histericamente. Vindo de fora escutamos uma espécie de eco
que logo percebemos (vemos) serem os risos dos bobos que espreitam à porta. O rei bate nos
bobos que caem no chão. Rei e sapateiro continuam o diálogo -- num plano que enquadra rei e
sapateiro do peito até ao chão onde estão os bobos, uma espécie de plano americano descaído.
132
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Logo a seguir, voltamos a ouvir uma voz de fora de campo que identificamos como do actor António
Reis. O rei ouve também, mas o sapateiro diz não ouvir. O rei abre a cortina onde anteriormente
encontrara o sapateiro, mas não encontra ninguém.
O rei volta a adormecer sentado no trono. Acaba por escorregar para o chão. O sapateiro sai.
Estátuas dos anteriores reis que decoram a sala ganham vida, dialogam entre si e rodeiam D.
Sebastião adormecido.
Aurora. Toque de alvorada. Vozes. O rei acorda sobressaltado, rodeado de cortesãos. Pergunta pelo
sapateiro, mas todos negam tê-lo visto.
Nisto tudo não há recurso a qualquer sinal mais ou menos estereotipado que nos localize
indubitavelmente dentro de um sonho. Ao mostrar o rei adormecido mas simultaneamente não
distinguindo essa sequência com alguma marca visual ou auditiva que leve o espectador a
identificá-la como onírica ou alucinação, Manoel de Oliveira deixa ao espectador a tarefa de
estabelecer a distinção entre o que poderá ser sonho, alucinação e realidade, para o que tem de
dedicar toda a atenção ao que se passa.
Espelho Mágico (2005)
A uma relativa variedade de cenários corresponde uma diversidade de ruídos, sem fugir à economia
habitual em Manoel de Oliveira. Ligada em parte ao ruído ambiente que caracteriza a casa da
protagonista, há música tocada em vários instrumentos. Compreendemos a certa altura que os
instrumentos são tocados pelos diferentes alunos do marido da protagonista. No final, interpretam
em conjunto (uma pequena orquestra) a peça de que ouvíramos os ensaios – o Carnaval dos
Animais de Camille Saint-Saëns.
Manoel de Oliveira faz extenso uso de planos filmados sobre espelhos, o que torna complexa a
relação entre a posição da câmara e a do microfone, ou seja entre o ponto de vista e o ponto de
escuta. Numa sequência interessante Manoel de Oliveira recria ou reinventa o clássico flash back
inserindo as imagens dos acontecimentos do passado sobre o espelho. O espelho torna-se ecrã,
uma espécie de pintura movente a que nem sequer falta a moldura. Manoel de Oliveira deixa claro
133
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
que o que vamos vendo é narrado pelo marido da protagonista, mas contrastando com isto os
enquadramentos simulam a visão dela e não a do narrador. Manoel de Oliveira contrapõe assim
duas imagens: uma visual que é a da memória dela e outra sonora que corresponde à recordação
verbalizada por ele.
Belle Toujours (2006)
Num filme que tem como centro um segredo, há diálogos que vemos sem ouvir e outros que
ouvimos sem ver. No momento em que o protagonista encontra a mulher que procura ansiosamente
a câmara está longe, do outro lado da rua, e só conseguimos ouvir os ruídos do trânsito e uma ou
duas palavras gritadas. Nas cenas passadas no bar, várias vezes escutamos a voz do barman
quando ele está fora de campo.
Durante o jantar, ouvimos a voz de uma das personagens enquanto vemos a outra. Ela abre a
prenda que ele lhe oferece. É uma caixa de onde sai apenas o som de uma mosca. Ela levanta-se
subitamente e sai. Não a vemos, apenas ouvimos o som de um copo que cai e se parte. Quando
pouco depois vemos a sala num plano mais largo, verificamos que a cadeira dela está no chão,
aparentemente derrubada na saída brusca, mas não a ouvimos cair.
A música de Dvorjak abre o filme com um som de trompete, ainda com o ecrã negro, e logo a cena
inicial nos mostra a orquestra terminando o concerto sinfónico. Outros excertos da mesma sinfonia
(n.º 8) acompanham as sequências sem diálogos, que se intercalam com as cenas dialogadas.
Algumas daquelas são vistas gerais de Paris. Outras mostram o protagonista deambulando pelas
ruas. Observa Roger (2008:s.p.) que a montagem "segue escrupulosamente a lógica musical" sem
interromper o seu fluir. E avança a hipótese de que "Oliveira usa a Oitava, em sol maior (tonalidade
pouco banal), sem dúvida pelo seu carácter contrastado, justamente adaptada ao propósito do seu
filme" (Roger, 2008:s.p.).
134
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Rencontre Unique (2007)
Pequeno episódio (3 minutos) integrado no colectivo Chacun son Cinéma – Ce petit coup de cœur
quand la lumière s’éteint et le film commence. Mudo, com intertítulos.
Cristóvão Colombo – O Enigma (2007)
É de assinalar a música composta para o filme por José Luís Borges Coelho (interpretada ao piano
por Miguel Borges Coelho) já que desde Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990) Manoel de Oliveira
não usava música original nos seus filmes. No entanto a composição adapta (ou arranja) temas
populares tradicionais portugueses, o que a aproxima da função da música de Carlos Paredes que
Manoel de Oliveira usa noutros filmes. O compositor musicou também o poema de Afonso Lopes
Vieira cantado por Isabel Oliveira (esposa de Manoel de Oliveira).
A acção é passada em muitos cenários (locais) diferentes. O filme compõe-se de sequências
autónomas e, embora siga uma ordem cronológica, não obedece a continuidade de tempo ou
espaço. A variedade dos locais filmados justifica uma equivalente variedade de ruídos utilizados na
respectiva caracterização, sem fugir à parcimónia usual em Manoel de Oliveira.
Muitas vezes, o som ouvido fora de campo antecede a visão da acção síncrona ou então continua-a.
Isto é o que se passa na cena do casamento, que Manoel de Oliveira explica assim na entrevista
incluída no dossier de imprensa do filme: “a cena do casamento, no filme, prolonga-se, na banda de
som, da Sé do Porto até ao Alentejo, o epicentro dos Descobrimentos que, por sua vez, constituem
um casamento com outras nações, a caminho de um conhecimento global, não só pela difusão da
fé, mas também pela continuidade da espécie humana.” Sentido(s) de elevada complexidade para
uma operação técnica tão simples como aparenta ser a sonorização das imagens de uma viagem de
núpcias com o som do ritual católico do casamento.
Aos diálogos (como habitualmente pouco coloquiais) junta-se a recitação de Os Lusíadas e de
Mensagem.
135
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Romance de Vila do Conde (1957-2008)
O Poeta Doido, o Vitral e a Santa Morta (1958-2008)
Duas curtas metragens que recuperam filmagens julgadas perdidas. Ambas são sonorizadas apenas
com a voz de Luís Miguel Cintra na leitura de poemas de José Régio.
Singularidades de uma Rapariga Loura (2009)
O filme é estruturado como um longo flash back, que se inicia e intercala com uma conversa entre
um homem (o protagonista) e uma mulher viajando num comboio, e em que ele conta a história da
rapariga loura. Diversamente do que acontece no clássico flash back, aquilo que Manoel de Oliveira
nos faz ver e ouvir parece não corresponder ao que o homem narra. Na última conversa do
comboio, acontece mesmo que o homem anuncia a continuação da narrativa e logo se cala. Temos
de esperar longos segundos em contemplação do par de viajantes silenciosos antes que Manoel de
Oliveira volte à história da rapariga loura.
São poucos os diálogos. Muitas sequências têm apenas os sons ambiente de interiores e de rua.
Sons de fora de campo, que umas vezes precedem a visão do plano seguinte e outras vezes
substituem essa visão.
O filme não tem música excepto a que se pode escutar durante uma espécie de serão cultural em
que uma harpista toca o 1º Arabesco de Débussy e Luís Miguel Cintra declama um poema do
Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. E no final há o som de sinos que tocam ao longe uma
melodia.
O Estranho Caso de Angélica (2010)
O que sobressai neste filme são os efeitos especiais (visuais e auditivos) quase totalmente inéditos
em Manoel de Oliveira. Se exceptuarmos o plano do filho louco de Camilo gritando em Dia do
Desespero, a cena de Raskolnikov assassino em A Divina Comédia ou a manipulação do som no
Meu Caso, as distorções visuais ou auditivas não são comuns nos filmes de Manoel de Oliveira. A
136
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
coexistência de vários níveis de realidade – por exemplo a aparição de Teresa depois de morta a
Simão em Amor de Perdição – ou a transição de um nível para outro faz-se sem qualquer efeito ou
pista para o espectador.
Refiro-me à aparição do fantasma de Angélica (e também o de Isaac), por uma simples
sobreposição de imagem a preto e branco que faz lembrar as criações de Méliès. O fantasma de
Angélica é acompanhado pelo som agudo de sininhos e algum vento. Outro efeito, é um som
electrónico que amplia a vibração do arame em que Isaac põe as fotos a secar, quando de lá retira
uma delas. Este som repete-se logo a seguir, quando Isaac vê o fantasma que surgira entretanto nas
suas costas. Há também o efeito de delay (atraso no som) no grito de Isaac chamando Angélica,
quando ele cai, no sonho em que ambos voam sobre as nuvens.
A personagem principal – Isaac, o fotógrafo – não é dado a muito diálogo, pelo que as cenas em
que entra vivem sobretudo dos ruídos que o rodeiam. Logo no início, o zumbido do altifalante de um
aparelho de rádio que ele tenta consertar no seu quarto. Adereço estranho porque não volta a
aparecer, nem se lhe adivinha facilmente o sentido. Muitos ruídos soam como originados do exterior,
que se adivinha mais do que se visualiza através da janela. Sobretudo o ruído de trânsito, que em
alguns momentos se torna muito intenso (com camiões que passam), e noutros se extingue
deixando ouvir o chilrear dos pássaros. No fim do filme (Isaac já morto), ouve-se um canto de
cavadores até que a senhoria vai fechar a janela do quarto e silenciar os sons do exterior.
A sonata número 3, opus 58 de Chopin vai pontuando e fazendo ligação de sequências
relativamente autónomas – neste caso usualmente sobre vistas da Régua.
O Gebo e a Sombra (2012)
Assisti a este filme numa sala de cinema, e portanto não tive possibilidade de o analisar tão
detalhadamente como aos outros. É um filme com longos planos estáticos quase só preenchidos
com diálogos. Quase toda a acção se passa num cenário assumidamente teatral, praticamente
vazio de adereços e de ruídos ambiente. Para além da chuva (e trovoada), os sons que poderiam
identificar o exterior pareceram-me quase sempre demasiado tímidos para assumirem algum
protagonismo.
137
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Como é habitual em Manoel de Oliveira, a música surge apenas em cenas em que não há diálogo.
5.3. INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
“O cinema faz-se assim. Escolhem-se elementos, eliminam-se outros sem se saber porquê. Sente-se
que assim não vai bem. Depois, com a projecção do filme e com o tempo, determinados elementos
tornam-se significativos” (Oliveira in Baecque & Parsi, 1999:46).
Quando decidi que este trabalho se iria debruçar sobre toda a obra de Manoel de Oliveira, estava
plenamente consciente de que o estudo que iria empreender não podia ser o de decifrar cada um
dos filmes, propor um sentido a cada cena, a cada evento sonoro. Como afirma Tarkovski (1998:
212), essa seria a opção errada pois não podemos “encarar o quadro como um signo de alguma
outra coisa, cujo sentido é resumido na tomada”. Só no filme como um todo podemos encontrar
um sentido, “uma versão ideológica da realidade” nas palavras de Tarkovski (1998:213). Além
disso, o sentido não é uma espécie de segredo que o filme esconda e se descubra. Não existe fora e
antes do filme. Constrói-se de cada vez que se assiste a ele.
Mais do que explicar ou interpretar o sentido do som neste ou naquele momento, queria
compreender a forma como cada som interage com os restantes elementos do filme para o
construir. Não pretendia fazer uma exegese, um comentário sobre o que eu pessoalmente
percebesse como o sentido de cada filme, mas apenas desvelar os mecanismos que poderão
condicionar a percepção que o espectador dele constrói.
Uma pesquisa como esta serve mais para levantar questões do que para encontrar respostas.
Proporciona, no entanto, muitas pistas quanto à importância e função do som na produção de
sentido nos filmes de Manoel de Oliveira. Essas pistas permitiram ir construindo uma ideia de quais
poderão ser os fundamentos que levaram à escolha do seu modo de construir os filmes, e do valor
que neles atribui ao som. Ainda que de modo esboçado, apontam para o que poderão ser as linhas
mestras duma poética do cinema de Manoel de Oliveira, no que diz respeito ao sonoro.
Começo o capítulo por uma síntese das funções atribuídas por Manoel de Oliveira aos objectos
sonoros utilizados nos seus filmes. Não se trata duma completa sistematização de todos os usos
que Manoel de Oliveira faz do som. Apenas o sublinhar do que me parece mais relevante e distintivo
138
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
do seu cinema. Organizo esta síntese de acordo com as três categorias convencionadas pela prática
e pela teoria do cinema para os objectos sonoros: voz, música e ruídos.
"Som, palavra, imagem e música são, na minha opinião, os quatro pilares que sustentam, como as
colunas de um templo grego, o edifício do cinema. Dão-lhe unidade e significado" (Oliveira, 2013:9).
Manoel de Oliveira repete em várias entrevistas esta metáfora – embora a formulação possa ser
ligeiramente diferente, como em Machado (2005) ou Junqueira (2010). A noção de que cada uma
das "colunas" contribui igualmente para o edifício do filme, define e resume exemplarmente o papel
que o autor atribui a cada um dos elementos na construção do respectivo significado. A análise dos
filmes confirma a existência duma prática concordante com estas afirmações: de uma igualdade no
cuidado com que Manoel de Oliveira trata cada uma das "colunas". Todos os elementos que usa
para construir os seus filmes revelam um propósito e um sentido, cada qual fundamental na
construção do filme. A citação transporta igualmente a ideia de que há uma arquitectura do filme,
no sentido em que os elementos que o compõem não se organizam naturalmente – ainda que
possam ter uma origem natural. Não há qualquer procura de naturalismo no modo de Manoel de
Oliveira fazer os seus filmes.
Não significa isto que a escolha e colocação de cada um desses elementos seja totalmente ou
estritamente premeditada. Como o próprio Manoel de Oliveira confessa, muito do processo dos seus
filmes é intuitivo (certamente um tipo de intuição que não estará ao alcance de um cineasta com
menos de um século...). E devemos ter em conta que o cinema é uma actividade de equipa e que,
portanto, muitas decisões definitivas são tomadas em função das circunstâncias de cada momento,
ao longo de toda a produção do filme. Acresce a isto que Manoel de Oliveira usa os seus filmes
mais como meio para procurar sentido para as questões que o preocupam do que para veicular
uma interpretação própria e determinada. Isto leva a outra dimensão que não podemos ignorar: o
lado experimentalista do seu cinema.
No conjunto, os filmes de Manoel de Oliveira revelam-se à análise obras muito rigorosas. Esse rigor
é já patente nas planificações em que Manoel de Oliveira prepara os seus filmes. Mas estas usa-as
Manoel de Oliveira como os guiões que são e não como planos completamente preconcebidos do
que virá a ser o filme terminado – como mostra Cruchinho (2003) na sua análise de Os Canibais. O
que transparece como motor e fundamento deste rigor evidenciado nos filmes é a existência de
princípios e conceitos, cinematográficos e éticos, que Manoel de Oliveira foi consolidando ao longo139
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
dos anos -- e que estão igualmente patentes no seu discurso, em vários depoimentos e entrevistas.
O facto de algum dos elementos sonoros nos aparecer como protagonista privilegiado deste edifício
não pode iludir-nos e levar-nos a crer numa menor importância dos outros. Os estudos sobre o
cinema de Manoel de Oliveira têm-se debruçado preferencialmente sobre a dimensão visual e sobre
a palavra (especialmente o texto literário), alguns sobre a música, raros mencionam os ruídos ("o
som"). Mas o que é mais óbvio não é necessariamente mais significativo. Por vezes, o facto de ser
óbvio funciona mesmo como uma máscara, um obstáculo que não permite atingir o que está além
da evidência.
5.3.1. Ruídos
O papel atribuído aos ruídos por Manoel de Oliveira é com certeza o mais difícil de sistematizar.
Numa análise genérica como a que efectuei, não foi possível detectar com toda a clareza um
método rigoroso no uso dos ruídos – possivelmente porque não existe um método definido ou
definitivo. O potencial significante dos ruídos não facilita a tarefa. Aos ouvidos de um espectador
normal os ruídos aparentam pertencer naturalmente ao que vemos no ecrã. Mesmo quando a sua
origem não é visível nem reconhecível, facilmente os ruídos são integrados no cenário acústico da
cena. Para além dela, e simultaneamente com esta dimensão de significado, os ruídos actuam de
uma forma subliminal sobre a nossa percepção, tanto do ambiente físico como do clima emocional
da cena (Holman, 2010) .
Talvez por esta dificuldade, Bello (2012:7) queira eliminar essa terceira coluna que é a do “som” no
artigo que dedicou ao filme Belle Toujours. Contudo, logo duas páginas abaixo no mesmo artigo
(aparentemente de modo inconsciente), revela a importância dos ruídos quando refere uma cena
marcada pela "movimentação quase dançada dos criados de mesa e o ruído rítmico dos talheres"
(Bello, 2012:9), cuja tensão ela atribui a um silêncio que de facto não existe: é apenas ausência da
palavra, mas não dos ruídos que ela própria descreve.
Foi-se tornando claro ao longo da minha análise que Manoel de Oliveira evita o uso naturalista dos
ruídos. Os sentidos que estes assumem são variados e amiúde implicam alguma forma de
comentário irónico sobre as acções das personagens que vemos. Manoel de Oliveira não parece ter
140
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
problemas em usar o cliché quando esse uso estereotipado do ruído lhe parece o mais eficaz. O que
há de mais cliché do que fazer ouvir o grasnar de gaivotas quando nos mostram o plano de um
porto? No entanto, o uso que faz deste recurso distancia-se daquele codificado pela indústria do
cinema clássico: soa mais indicativo (como uma deixa de sonoplastia teatral) do que descritivo (do
natural do lugar). Em Manoel de Oliveira podemos falar de cliché apenas no sentido de que se
percebe uma vontade de atribuir ao ruído um valor simbólico, de sinal. Mas falta a vontade
naturalista que classicamente vem associada ao seu uso. E isso leva-nos a atribuir a estes ruídos
um sentido diferente do comum. Por exemplo, as cenas passadas em jardins são geralmente
sonorizadas com chilrear de aves, mas esse chilrear não parece naturalmente aleatório, mas
criteriosamente colocado como para apenas indicar que há um ambiente sonoro de jardim
associado à visão do jardim.
A tendência para alguma codificação dos ruídos (e por vezes da música) a fim de associar-lhes
algum significado mais específico – a marcha nupcial em O Passado e o Presente ou o arrulhar dos
pombos em O Pintor e a Cidade – não lhes esgota o potencial para exprimir outros sentidos. Parece
até que Manoel de Oliveira joga com essa polissemia para manter uma certa dose de ambiguidade
que impeça o espectador de se contentar com a recepção de um sentido superficial que possa
construir e aí encontrar um conforto fácil. Usa-a para fazer expandir o potencial significado dos sons
para além do seu valor naturalista ou realista e não para reduzi-los a esses estereótipos usados pelo
cinema clássico.
Para os poder usar nesse sentido ambíguo, precisa de os extrair/abstrair desse universo naturalista,
estilizando a sonorização dos ambientes, que quase se reduz a um objecto sonoro que os
caracteriza simbolicamente – o chilrear para um jardim, a gaivota para o mar, o martelar na bigorna
para a oficina de João da Cruz... Ao desnaturalizar os ruídos, Manoel de Oliveira pode utilizá-los
noutros sentidos.
É também uma grande vontade de síntese que leva Manoel de Oliveira a usar um mínimo de ruídos
para definir um cenário acústico. Ao contrário do que é vulgar no cinema actual, em que a
preocupação (que diria barroca) do sound designer é encher a cena de todo o tipo de sons, o
cinema de Manoel de Oliveira vive de um curto reportório de objectos sonoros, que muitas vezes
parecem reutilizados de filme para filme: o chilrear de pássaros, a água – rio, chuva, fonte –
automóveis, buzinas... Em vez de sobrecarregar o espectador com uma colecção de ruídos
141
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
redundantes e que não acrescentam informação relevante, Manoel de Oliveira faz-nos escutar
apenas o que é essencial e indispensável.
Se fizéssemos uma contabilidade da diversidade dos objectos sonoros usados em cada filme –
coisa que não fiz de forma exaustiva – o valor seria certamente bastante reduzido. Apesar da grande
duração de alguns dos filmes – mais de sete horas de Le Soulier de Satin –, a diversidade não
parece ser proporcional a essa extensão. Um dos filmes mais ricos em variedade é um dos mais
curtos em duração: o Porto da Minha Infância, no qual Manoel de Oliveira reconstrói as paisagens
sonoras da cidade de acordo com as suas memórias auditivas.
A evidência da presença dos ruídos parece ser inversamente proporcional à presença da palavra.
Isto não significa que os ruídos surjam em maior quantidade ou sejam mais ricos em significado,
mas apenas que assumem maior protagonismo na ausência da palavra, uma vez que o sentido do
plano ou da cena deixa de ter o apoio (sempre mais confortável) de um discurso veiculado pela
linguagem verbal. Nos filmes em que a presença da palavra é mais constante, os ruídos são
normalmente raros e subtis, pelo que facilmente passam despercebidos. No entanto, não estão ali
por acaso ou apenas como fundo sonoro das imagens visuais. São lá rigorosamente colocados, com
uma intenção precisa.
Os ruídos são associados ao ambiente que rodeia as personagens. O seu papel é o de sinalizar a
presença de elementos desse ambiente para que personagens e espectadores tomem deles
consciência. Mas não se limitam à caracterização dos ambientes. Noutros momentos, assumem o
valor de pontuação sonora (quase sempre irónica) que desperta o espectador para uma dimensão
diferente da que as imagens visuais parecem mostrar. A chamada de atenção é umas vezes subtil –
o toque do carrilhão do relógio de mesa – e outras violenta – a buzinadela dum automóvel que
passa ou que chega. Mas esta é apenas a dimensão mais evidente do seu sentido.
Por exemplo, os vários toques de carrilhão de relógio parecem ter uma dupla função nas cenas em
que surgem. Por um lado, é um som que facilmente associamos ao ambiente de alta burguesia, o
que desde logo ajuda a localizar a cena. Por outro, é um som caracterizado por um impulso rápido e
intenso que marca ou interrompe a continuidade da cena, provocando ou anunciando uma
mudança.
142
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Noutros momentos, os ruídos são usados com um propósito marcadamente irónico, como por
exemplo na sequência dos peões atravessando as ruas ao som das apitadelas do sinaleiro (e dos
sentidos indicados pelos braços das estátuas) em O Pintor e a Cidade.
Os ruídos servem igualmente para mostrar as acções que Manoel de Oliveira prefere não revelar em
imagens no ecrã, como as mortes e os acidentes – o suicídio de Camilo em Dia do Desespero ,ou o
acidente de automóvel provocado pela presença da jovem Ema em Vale Abraão. Nestes casos, os
ruídos são tão eloquentes que a visão apenas poderia torná-los redundantes. A redundância é
redutora. Inibe o papel activo do espectador e coloca-o na posição de simples constatador, como se
posto perante um facto e não uma construção ficcional.
Frequentemente, de um modo ou outro, os ruídos questionam o ser humano, as suas acções, a sua
civilização. Os ruídos revelam os constrangimentos à sua liberdade de acção. Uns são originários da
natureza – o assobio do vendaval que interrompe a festa em Party –, outros foram criados pela
civilização – os motores e as buzinas dos automóveis. Manoel de Oliveira (2011) diz que o que a
civilização aporta ao ser humano é o conforto. Quando nos seus filmes os ruídos tomam algum
protagonismo é para serem os portadores do desconforto: ora se amplificam na ausência das
palavras – como os ruídos fora de campo em Belle Toujours – ora dificultam ou mesmo impedem a
sua audição – como a rebentação das ondas do mar em Party.
5.3.2. Música
“Há uma certa afinidade entre a música e o cinema, ao mesmo tempo que uma certa
complementaridade. Porque a música guarda sempre o seu segredo, algo de abstracto que a
imagem concretiza. A música é susceptível de atribuir à imagem qualquer coisa para além do que se
vê” (Oliveira in Baecque & Parsi, 1999:142).
A utilização da música não tem um carácter obrigatório. Manoel de Oliveira faz bastante uso da
música em vários dos seus filmes, mas em outros a música quase não tem lugar. Em Party, a
música surge apenas nos dois breves momentos em que a personagem interpretada por Irene
Papas canta. Em Nice, a propos de Jean Vigo, a música é praticamente ininterrupta ao longo de
uma boa parte do filme.
143
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Ao analisar a presença da música nos filmes de Manoel de Oliveira logo se tornam claras algumas
características que o afastam do cinema clássico. A mais evidente é a raridade da “música de
fosso” (Chion, 1994) que no cinema clássico acompanha o filme quase ininterruptamente. Em
particular o chamado underscoring, indispensável ao cinema clássico, não tem lugar nos filmes de
Manoel de Oliveira. A música dos seus filmes é para ser escutada. Isto é tanto assim que só em
casos muito raros música e diálogos se misturam. Por norma, cada um tem o seu espaço e tempo
próprios, alternando a sua presença e assumindo o primeiro plano sonoro quando surge. Não são
invulgares as longas sequências musicais. A mais notável será talvez a que abre (e fecha) o filme
Porto da Minha Infância, em que o ecrã nos mostra apenas as costas do maestro que dirige a
orquestra enquanto escutamos a Nachtmusik de Emmanuel Nunes.
Outra distinção é a preferência de Manoel de Oliveira pela utilização de música preexistente. Em
poucos filmes a música é original, composta expressamente para o filme. O único compositor com
quem teve uma relação regular foi João Paes, que colaborou com Manoel de Oliveira durante quase
vinte anos – de O Passado e o Presente (1972) a Os Canibais (1988). A parceria deu resultados
interessantes e originais, mas o entendimento esgotou-se e a colaboração não continuou para além
de Os Canibais. Depois disso, só em Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990) e mais tarde em
Cristóvão Colombo, o Enigma (2007) há compositores creditados como autores de música original –
Alejandro Massó e José Luís Borges Coelho, respectivamente.
A preferência de Manoel de Oliveira vai para o uso de música erudita. Uma grande parte das vezes,
a própria interpretação e gravação das peças é preexistente ao filme, retirada de edições
discográficas. O uso da música erudita – contemporânea, clássica ou romântica – associa-se
facilmente a um mundo de alta burguesia em que se movem a maior parte das personagens dos
filmes. Sobretudo pela presença do som do piano e do próprio instrumento, conotado com um certo
conceito de educação – tocar piano e falar francês – sugerido ou mesmo representado em Espelho
Mágico.
A propósito do uso de música erudita como denotadora de uma classe social, em alguns momentos
a intenção parece ser mostrar uma certa alienação da alta burguesia face a um mundo mais
próximo da natureza e de menos convenções – mundo do qual o povo está mais próximo, como
evidenciam personagens como a Mariana de Amor de Perdição ou a Ritinha de Vale Abraão. Esta
intenção que identifico no uso da música é temperada por alguma ambivalência, a que não será
144
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
alheio o facto de se tratar de um olhar crítico sobre um mundo próximo àquele em que o próprio
Manoel de Oliveira cresceu e foi educado.
Esta música preexistente é tratada por Manoel de Oliveira sempre com grande respeito. As
sequências musicadas seguem a lógica musical tanto na sua montagem visual, como na própria
duração. Manoel de Oliveira nunca interrompe o fluxo musical – espera uma pausa, uma mudança
no discurso musical –, nem altera as características da música com a montagem ou a mistura. É a
música que determina o ritmo e a duração da cena ou sequência de que faz parte.
O papel da música no cinema é geralmente complexo de analisar porque se desenvolve em várias
dimensões de sentido, simultânea ou sucessivamente, e é capaz de deslizar de uma para outra sem
o denunciar, de modo instantâneo e subtil. A música tão depressa tem uma fonte visível no ecrã
como parece vir do nada, tão depressa é audível em grande proximidade como se perde num fundo
sonoro quase imperceptível.
Nos filmes de Manoel de Oliveira não é assim. A música tem sempre uma presença evidente e está
lá para ser escutada. Raramente a música aparece em segundo plano acompanhando os diálogos.
Quase sempre, os filmes alternam sequências dialogadas com sequências musicadas. Estas fazem
lembrar sequências do cinema mudo, apenas sonorizado com música e raros ruídos síncronos. Em
tais momentos, o movimento dos actores parece aproximar-se da interpretação mímica
característica desse cinema.
Nestas sequências Manoel de Oliveira claramente faz a montagem visual de acordo com as
potencialidades narrativas da música. Esta não perde contudo o seu valor de comentário e
contraponto ao que o ecrã nos deixa ver. Mesmo nos momentos mais dramáticos (da acção ou da
música) esta não perde o seu sentido crítico. O que nos induz, como espectadores, a examinar as
acções das personagens com algum estranhamento desapaixonado.
A utilização da música nos filmes de Manoel de Oliveira parece respeitar o “princípio de
assincronismo” enunciado por Pudovkin (1954:162) no seu manifesto escrito nos anos de 1930: “A
música no cinema sonoro, mantenho eu, não deve ser nunca o acompanhamento. Deve manter a
sua linha própria”. Ainda nas palavras de Pudovkin (1954:156), música e imagem “não devem estar
ligados uma à outra por uma imitação naturalista mas associadas como resultado de uma relação
interactiva”.145
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Esta interacção não resulta sempre do contraste entre o que escutamos com o que vemos. Por
vezes funciona pela redundância, uma dramatização do drama que o transforma em farsa, como na
cena final de O Passado e o Presente em que a retomada da Marcha Nupcial, já antes escutada,
mas agora com outra sonoridade – a de um órgão “toscamente executado por um organista
grotesco” (Paes, 2001:91) – algo dissonante, dá um tom de ironia à cena do casamento e a
transforma numa caricatura.
Ao contrário do que acontece no cinema clássico – em que a maior parte do tempo a música se
disfarça de simples acompanhamento para melhor nos embalar –, a música nos filmes de Manoel
de Oliveira interpela-nos e obriga-nos a estar vigilantes face ao que nos é dado observar.
É muito curioso e revelador o exercício de comparar as versões musicadas de Douro, Faina Fluvial.
Enquanto na primeira versão a música, de inspiração folclórica de Luís de Freitas Branco, quer
adoçar a rudeza, a ironia e o erotismo das sequências, a música de Emmanuel Nunes, usada na
segunda versão, tem esse sentido de contraponto que concede valor acrescentado ao que a câmara
e a montagem constroem. Mesmo quem não conhecer a obra de Manoel de Oliveira provavelmente
achará que na primeira versão a música não encaixa na montagem. Falta saber se isso se deve a
Luís de Freitas Branco não ter entendido as intenções de Manoel de Oliveira ou se o seu objectivo foi
tornar o filme mais politicamente correcto face às contingências da época.
A preferência por música preexistente também pode explicar-se por um desejo de maior controle
sobre a construção do filme. O uso de música que se conhece antes de iniciar a filmagem retira
uma variável às muitas de que depende o sentido do filme. Normalmente a música é composta
depois de o filme já estar montado e portanto a sua influência no resultado final não é totalmente
previsível. Demais, a música que é já conhecida pode servir de inspiração à criação das imagens
visuais e da própria interpretação. Se tivermos em conta que Manoel de Oliveira constrói a maior
parte dos seus filmes a partir das obras de outros autores, entendemos facilmente que se sinta tão
à vontade na utilização das composições musicais como na dos textos literários.
A utilização da música – a sua necessidade mesmo – parece também prender-se com o não
naturalismo procurado por Manoel de Oliveira. Sempre que não há diálogos, um imperativo técnico e
perceptivo obriga a que exista um som de fundo (este poderá ser uma sugestão de silêncio, mas
não a absoluta ausência de som). Aí, Manoel de Oliveira recorre à música, preferencialmente a um
146
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
ambiente naturalista descritivo: a música pode ser mais subjectiva e os sons que usa não se ligam
necessariamente a coisas concretas, desobrigando a imagem visual de qualquer identificação com o
mundo real.
Em contraste com o que acontece no cinema clássico, que usa a música para dirigir o espectador
ao longo da narrativa, a música dos filmes de Manoel de Oliveira não toma esse sentido director
nem conduz o espectador nesse caminho único. O mais provável é que o espectador fique a
interrogar-se quanto à presença da música e à sua significação, em vez de se deixar levar por ela.
Este efeito parece mais evidente para a música dita contemporânea que se caracteriza por uma
certa imprevisibilidade rítmica e harmónica. Mas, mesmo quando se trata de música com ritmo e
melodia bem definidos, mantêm-se uma grande subjectividade na interpretação do sentido desta,
muito mais quando se apõe a imagens com as quais a sua relação nos parece remota ou mesmo
inexistente.
5.3.3. Voz
A voz é o som mais presente e mais evidente nos filmes de Manoel de Oliveira. Voz que nos traz a
palavra, o texto dos diálogos e da narração. A maioria dos estudos sobre o cinema de Manoel de
Oliveira dá muita importância à palavra, mas poucos verdadeiramente se referem à voz: diálogos e a
narração são quase sempre analisados apenas pelo seu conteúdo literário, raras vezes abordando o
aspecto da sonoridade da voz humana que o pronuncia; o próprio Manoel de Oliveira (2013:9) usa o
termo “palavra” em vez de voz para designar uma das três “colunas” sonoras. Esta tendência é
compreensível tendo em conta a origem literária da maior parte dos diálogos e o papel central que a
linguagem tem na nossa vida quotidiana: “a palavra é um elemento precioso do cinema porque é
um elemento privilegiado do homem” (Oliveira in Baecque & Parsi, 1999:70). E é precisamente
porque valoriza os textos e o sentido que comunicam que Manoel de Oliveira os encena.
Mas não é porque veicula um texto que a voz do actor deixa de pertencer ao sonoro do filme. O
timbre, a intensidade, a entoação com que o texto é pronunciado são características que
determinam o modo como escutamos os diálogos e como lhes atribuímos sentido.
147
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Manoel de Oliveira tem sido muitas vezes criticado por não (saber) dirigir actores. Julgo que isto
acontece porque o naturalismo a que estamos habituados no cinema a que vulgarmente assistimos
não está presente nos seus filmes. A sua resposta é que não dirige a interpretação dos actores:
escolhe-os pelas suas capacidades e confia neles para a interpretação do texto (Baecque & Parsi,
1999, Oliveira, 2003).
A impressão que se têm é que Manoel de Oliveira mostra ao espectador actores interpretando em
vez das personagens interpretadas. Como diz Lévy (1992:14), Manoel de Oliveira “pede emprestado
ao teatro o respeito literal pelo texto, para construir o documentário duma interpretação”. A distinção
entre o documental e o ficcional é propositadamente vaga, o que está bem patente em O Acto da
Primavera e O Dia do Desespero, em que se passa de um registo a outro (de actor a personagem ou
vice-versa) praticamente sem aviso. Seria interessante, mas não cabe aqui, discutir como Manoel de
Oliveira ficciona o documental e documenta o ficcional. Reveladora dessa vontade documental é a
preferência de Manoel de Oliveira pela captação do som das vozes dos actores em directo. O som
registado pelo microfone em simultâneo e sincronia com a câmara documentam de uma forma
mais genuína (porque menos manipulada) o desempenho dos actores (corpo e voz).
Os diálogos não fogem à regra de um cinema não naturalista, que evita qualquer imitação do real.
São ditos geralmente em tom quase neutro e, como diz Visceglia (2006:571), “mais do que
conversas, são trocas de sentenças, de máximas, aforismos e dissertações filosóficas”. Verifica-se
portanto uma coerência entre forma e conteúdo, já que a natureza literária dos diálogos dificilmente
se adequaria a uma interpretação naturalista.
O trabalho dos actores centra-se no dizer do texto e não numa composição psicológica da
personagem. Esta verbaliza as suas ideias e os seus sentimentos mais do que os demonstra
fisicamente. “A força expressiva vem das palavras, não da maneira de dizer” (Oliveira in Baecque &
Parsi, 1999:174). Podemos dizer que, paradoxalmente, a acção nos filmes de Manoel de Oliveira
está mais no som, que é em si movimento, do que nas imagens visuais, maioritariamente estáticas
e mostrando actores quase imóveis. A interpretação dirige-se ao intelecto do espectador pela
palavra.
Temos de reconhecer aos diálogos um papel central no cinema de Manoel de Oliveira. Central em
toda a construção do filme e não apenas em termos da sua componente auditiva. Mas será que isto
148
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
autoriza a inscrever a maioria dos filmes de Manoel de Oliveira num cinema “verbocêntrico”, como
lhe chama Chion (1994)? No meu entendimento, não. Apesar da centralidade concedida aos
diálogos o cinema de Manoel de Oliveira afasta-se definitivamente do “vococentrismo”, que no
cinema clássico acompanha sempre este “verbocentrismo”. O facto de a palavra (verbo) ter um
papel fundamental nos filmes de Manoel de Oliveira não o faz remeter música e ruídos para um
papel de satélite da voz, para um fundo sonoro de acompanhamento dos diálogos. Música e ruídos
não surgem nos filmes como recurso para preencher os silêncios criados pela ausência da palavra.
Tanto a música como os ruídos têm os seus momentos próprios e surgem quando a sua intervenção
é mais adequada do que a palavra para o sentido que Manoel de Oliveira quer construir.
O tom neutro com que os diálogos são pronunciados serve precisamente para afastar esse
“vococentrismo”, que por vocação procura uma reacção empática por parte do espectador, e que
portanto assenta o seu poder mais na entoação – no modo como se diz – do que no dito. Por outro
lado, a natureza da palavra nos filmes de Manoel de Oliveira é substancialmente diferente do que é
comum no cinema clássico, a que Chion se refere. É quase sempre um texto literário, afastado
duma intenção naturalista que nos aproxime das personagens e das situações. É igualmente um
texto não utilitário, não sujeito a uma narrativa que lhe determine o conteúdo e a duração.
Nos filmes de Manoel de Oliveira, a interpretação é considerada teatral segundo um conceito
antiquado que a define como declamação de um texto por personagens quase estáticas e de gestos
rígidos. O que é entendido como teatral serão assim o modo não naturalista como o texto é dito e o
uso do plano fixo na tomada de imagens e sons -- efectuada por câmara e microfones colocados na
posição duma quarta parede (materializada no ecrã de cinema, feito boca de cena) que se interpõe
entre o espectador e as personagens. O que se percepciona como estático nos filmes não é tanto a
imobilidade dos actores, mas a pouca mudança de planos em cada cena, ao contrário do que é
prática habitual no cinema.
Como pronunciado por um médium espírita, ou boneco de ventríloquo que canaliza uma voz que
não é sua, o texto como que emana da personagem mas sem lhe pertencer. É o texto que origina a
personagem e não o contrário. O texto precisa da personagem que o pronuncie mas esta não tem
vida própria para além do texto.
149
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Outro recurso que Manoel de Oliveira usa de modo particular é o que vulgarmente se designa por
voz off (também denominada voice over ou locução). Uso esta designação convicto que não é
adequada ao modo como Manoel de Oliveira faz uso dessas vozes que não têm referente visual.
Tentarei aqui dar conta das diferenças que encontro entre o uso clássico e a prática de Manoel de
Oliveira.
Em Amor de Perdição encontra-se um exemplo diferenciador nas vozes denominadas Voz do Delator
e Voz da Providência. Desde logo, ao dar-lhes um nome Manoel de Oliveira muda-lhes o estatuto e
investe-os como verdadeiros actores. Actores cujo corpo nunca se vê mas que mesmo assim têm o
poder de intervir na acção. Isto acontece por exemplo na cena do duelo em que as personagens
Simão e Baltasar Coutinho por momentos ficam estáticas, como que esperando que o Delator
termine sua intervenção. Segundo Bello (2008:399), esta “suspensão do movimento no preciso
momento em que só a palavra faz avançar a acção tem o efeito multiplicador de retardar, ainda
mais, a progressão narrativa, criando uma impressão de tensão muito maior”. Esta circunstância de
a acção estar na dependência desta voz que narra, rompe radicalmente com a função clássica da
voz off (e é caso raro no cinema).
A voz não explica ou interpreta o que vemos nas imagens, nem as imagens ilustram o que é dito.
Cada uma expressa os eventos pelos seus próprios meios. Por vezes mesmo, Manoel de Oliveira
oferece-nos essas duas expressões dum mesmo evento em simultâneo ou sucessivamente – como
naqueles momentos em que a voz do Delator diz os diálogos que pertencem aos actores visíveis no
ecrã, que logo de seguida os repetem. Noutros momentos, é a voz que se interrompe para deixar
ouvir os sons do que vemos, como quando suspende o comentário para podermos escutar a música
de Händel tocada na flauta por Domingos Botelho. Este papel activo da voz do Delator contrasta
com a passividade da voz off clássica, que apenas constata factos contra os quais é impotente. Esta
voz acusmática notoriamente interfere com a acção e as personagens, o que a coloca presente na
cena, ou seja, faz dela uma personagem. Este estatuto de personagem, concedido ao Delator por
Manoel de Oliveira, parece estar de acordo com uma equivalente presença do narrador da novela de
Camilo, que se dirige ao leitor como se falasse cara a cara com ele. Por seu lado, da voz da
Providência escutamos observações de carácter psicológico e moral, em tom poético, que numa
perspectiva clássica podem ser tidas como completamente supérfluas, pois não contribuem para o
avanço da narrativa nem trazem informação nova.
150
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Em O Meu Caso, no fim da sequência do episódio bíblico do Livro de Job, Manoel de Oliveira mostra
a coluna de som de onde supostamente emana a voz de Deus. Ao fazê-lo, simultaneamente dá um
corpo à voz que antes só escutáramos e denuncia o dispositivo teatral que permite criar essa voz
acusmática. Voz que devemos atribuir a Deus mas que sabemos pertencer de facto a um actor.
(Claro que a coisa é mais complicada, porque afinal se trata de um filme e o som da voz do actor
não sai verdadeiramente daquela coluna).
Estes exemplos chegam para explicar a minha dúvida na adequação do epíteto voz off a estas vozes
acusmáticas nos filmes de Manoel de Oliveira. Em vez de vozes desencarnadas, mais próprias de
fantasmas ou deuses, soam-nos apenas como vozes de personagens que apenas não chegamos a
ver no ecrã.
Em várias ocasiões, Manoel de Oliveira encena a voz que é simultaneamente palavra e música: o
canto. O exemplo mais completo é sem dúvida o de Os Canibais, filme e ópera simultaneamente,
em que todos os diálogos são cantados. Mas há canto e canções em muitos outros filmes. Umas
vezes são canções preexistentes, como em Party – em que o total da música do filme são duas
canções gregas interpretadas por Irene Papas – e Porto da Minha Infância – no qual o próprio
Manoel de Oliveira interpreta o Fado das Mãos. Outras vezes são canções criadas para os filmes,
como Regresso ao Lar (a partir dum poema de Guerra Junqueiro) em Porto da Minha Infância, ou
Esta Palavra Saudade (de Afonso Lopes Vieira) em Colombo, o Enigma, ambas cantadas por Maria
Isabel Oliveira (esposa do cineasta).
A palavra cantada dá uma dupla dimensão à voz, inscrevendo-a em dois tipos simultaneamente. A
música como que sublinha as palavras cantadas, concedendo-lhes unidade e um tempo próprios
dentro do filme. António Preto (2011) sugere que as canções servem sobretudo como veículo para o
texto. A música certamente facilita a integração de textos que não caberiam de outra forma no
discurso das personagens.
5.3.4. Ponto de escuta
Nos filmes de Manoel de Oliveira o ponto de escuta representado coincide sempre com o ponto de
vista da câmara. À perspectiva visual oferecida pela câmara faz corresponder uma análoga
151
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
perspectiva auditiva. A relação audiovisual é construída de modo a que a origem dos sons que
escutamos esteja de acordo com a posição em que a objectiva coloca o nosso olhar.
Se pensarmos na teatralidade de que os filmes de Manoel de Oliveira são geralmente acusados
facilmente relacionamos a colocação do ponto de escuta com a noção de quarta parede. Quarta
parede cara ao teatro clássico e que Manoel de Oliveira se esforça por denunciar insistentemente,
de todas as maneiras possíveis: mostrando o dispositivo audiovisual e a equipa técnica (O Acto da
Primavera, O Meu Caso), fazendo os actores olhar e falar na direcção da câmara (O Meu Caso, A
Caixa) e até mesmo colocando o projector em cena (Le Soulier de Satin, O Meu Caso). Para além
de recordar constantemente ao espectador de que está a assistir a um filme – e portanto perante
uma coisa construída e, em última análise, falsa –, a consciência da quarta parede vem colocar o
espectador fora do lugar do filme. O mesmo lugar exterior ao narrado a partir do qual o dispositivo
cinematográfico capta o que vemos e ouvimos.
Dito de outra forma, os filmes de Manoel de Oliveira são construídos a partir de um olhar/escuta
único, que identificamos como o do realizador e que ele oferece/impõe ao espectador. Como
qualquer criador, Manoel de Oliveira oferece-nos a sua interpretação (audiovisão) do mundo tal
como ele o percebe. A diferença é que ele não o esconde: nos seus filmes nunca pode haver
qualquer dúvida quanto a quem nos empresta os olhos e os ouvidos.
5.3.5. Plano subjectivo
Não há assim lugar para o chamado plano subjectivo (seja ele visual ou auditivo) nos filmes de
Manoel de Oliveira. Na literatura sobre o cinema, chama-se plano subjectivo àquele que corresponde
ao ponto de vista de uma personagem. O conceito de plano subjectivo em termos sonoros pode
aplicar-se à criação de um ponto de escuta que simula corresponder à audição de uma
personagem. Em ambos os casos há uma identificação do dispositivo técnico cinematográfico –
objectiva da câmara e microfone – com os olhos e os ouvidos da personagem.
No cinema clássico, constantemente nos são oferecidos esses enquadramentos que se identificam
com os olhares das personagens (identificáveis ou misteriosas, como acontece em filmes de
suspense ou de terror). Quanto ao posicionamento do ponto de escuta, a variedade é ainda maior:
152
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
em muitas situações, sons atribuíveis a vários pontos de escuta misturam-se duma forma que é
impossível na realidade (mas que ainda assim fazem sentido para o espectador). Não raras vezes
esses pontos de vista ou de escuta vão para além do que é considerado objectivo ou subjectivo e só
podem ser atribuídos a qualquer personagem oculta – omnipresente e omnisciente – que não tem
nenhuma razão de existir que não seja o imperativo narrativo (ouça-se por exemplo a sequência
inicial de The Conversation (1974) de F. F. Coppolla).
A designação subjectivo implica que existe objectividade nos outros planos, e portanto na respectiva
tomada de vista e captação de som. Não cabe aqui discutir a adequação da terminologia empregue,
que comporta alguma ambiguidade conceptual e me parece bastante redutora. Fazendo uso desta
terminologia, podemos dizer que nos filmes de Manoel de Oliveira não há subjectivo.
O princípio que orienta o cinema de Manoel de Oliveira é outro. É o da objectividade. Uma
objectividade que antes de ser filosófica, plástica, estética ou de outra dimensão, é uma
objectividade cinematográfica: a da objectiva e do microfone que se mantêm unidos, como em nós
olhos e ouvidos participam num mesmo sistema sensorial e perceptivo.
Não há sequer muitos casos de planos que possamos tomar como subjectivos, isto é, que
possamos entender como correspondendo à visão ou à escuta de uma personagem. Esses planos –
e penso nomeadamente no travelling sob as laranjeiras, quase no final de Vale Abraão – parecem
corresponder a uma espécie de exercício analítico em que Manoel de Oliveira se coloca – coloca
câmara e microfone – na posição de captar o que a personagem poderia percepcionar – a
personagem Ema, no caso citado. Mas Manoel de Oliveira não quer simular essa percepção, não
procura colocar o espectador na pele da personagem. A colocação do dispositivo cinematográfico
não corresponde a uma vontade de que nos identifiquemos com a personagem, como está implícito
no conceito de plano subjectivo.
A coincidência de ponto de vista e ponto de escuta significa que todo o som é construído de modo a
criar uma percepção de coerência auditiva com a imagem visualizada no ecrã. A noção de
objectividade resulta da percepção de que os sons se dirigem sempre directamente ao espectador.
Essa objectividade mantém-se mesmo quando imagens ou sons correspondem a uma alucinação ou
um sonho, como acontece em Dia do Desespero no plano que mostra o filho de Camilo gritando na
sua loucura. Aliás, Manoel de Oliveira raramente usa efeitos especiais para significar níveis de
153
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
realidade diferentes. Ao contrário do que acontece no cinema clássico, em que ao espectador é
concedido o dom da omnisciência e da omnipresença, o espectador dos filmes de Manoel de
Oliveira não é privilegiado por visões ou audições interditas às personagens. Pelo contrário, ao
espectador nunca é dado saber mais do que cada uma delas pode saber. Já referi acima uma longa
sequência de O Quinto Império em que D. Sebastião conversa com o sapateiro Bandarra e que
termina com o rei adormecendo na sua cadeira. Ao acordar ao toque da alvorada o rei pergunta
pelo sapateiro, que mais ninguém admite ter visto. E Manoel de Oliveira mantém o espectador na
mesma dúvida que a personagem de D. Sebastião: será que foi apenas um sonho, um delírio? Para
complicar, vemos o rei adormecer enquanto conversa com o sapateiro e, dormindo ser rodeado
pelos fantasmas (supomos) dos reis que o antecederam, antes de ser acordado pelo toque da
alvorada. Manoel de Oliveira constrói toda a sequência sem recurso a qualquer sinal, mais ou
menos estereotipado, que nos localize indubitavelmente dentro ou fora de um sonho.
Esta objectividade construída pelo ponto de escuta e o ponto de vista parece (cor)responder a uma
procura constante de distanciação do espectador face à narrativa e às personagens. Distanciação
reforçada pela denúncia reiterada do dispositivo cinematográfico.
5.3.6. Relação áudio-visual
Recusando uma concepção naturalista do cinema, Manoel de Oliveira não se vê obrigado a
esconder a artificialidade da relação audiovisual. Recusa sustentar a ilusão de que o som emana
naturalmente das imagens que vemos no ecrã. Pelo contrário, Manoel de Oliveira esforça-se por
revelar como essa relação resulta de uma construção artificial, por mais natural que nos possa
parecer. Libertando o sonoro da subserviência ao visual, Manoel de Oliveira potencia uma relação
igualitária. Sonoro e visual não se subjugam um ao outro. Apontam sentidos que tanto podem ser
complementares como contrastantes.
O som que escutamos pode ter ligação à realidade filmada pela objectiva, mas não é essa relação
natural que interessa a Manoel de Oliveira. Interessa sim o valor de signo que ambos adquirem ao
serem mediados pelo dispositivo cinematográfico. Devemos ter presente que no cinema, tudo são
imagens – visuais e sonoras – e que as imagens não apresentam as coisas reais mas apenas as
representam. Isto é, transformam o real em signo para o qual é necessário encontrar um154
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
significado. Quando Manoel de Oliveira nos faz ouvir o som de pombos e, logo a seguir, nos mostra
um casal de namorados sentado no banco de um jardim (O Pintor e a Cidade), parece claro que
está a atribuir a estes o epíteto de pombinhos, e portanto, a acrescentar ao que vemos um sentido
determinado: percebemos pelo arrulhar dos pombos que são namorados; o que vemos são apenas
um homem e uma mulher sentados num banco de jardim.
A desobediência a um imperativo naturalista liberta igualmente duma quase inevitável redundância
informativa entre visual e sonoro. Manoel de Oliveira evita-a. Por vezes usa uma redundância de
outro tipo e duma forma explícita, como acontece muitas vezes em Amor de Perdição, quando o
Delator narra acontecimentos que já vimos ou que vamos ver de seguida, e em Palavra e Utopia,
quando ouvimos o relato da queda numa escadaria do Padre António Vieira e nos é mostrada essa
mesma queda. Nestes casos, há sempre um desfasamento entre o que escutamos e o que
observamos, que nunca coincidem totalmente e, por vezes, até se contrariam: já antes referi a cena
de Amor de Perdição em que que vemos Teresa desmaiar subitamente enquanto o Delator diz
“convulsão (…) por largo espaço”.
Outras vezes, Manoel de Oliveira usa o som para mostrar o que não quer pôr no ecrã: o suicídio de
Camilo em Dia do Desespero, o acidente automóvel em Vale Abraão. Nestes momentos, o que
escutamos não pertence ao que vemos, embora o ponto de escuta coincida com o ponto de vista:
não é propriamente um som que vem de fora. Até porque como diz Lévy (1992:218) “nos filmes de
Oliveira o universo representado é contido nos limites de um estúdio de cinema (Benilde) ou dum
palco de teatro (Le Soulier de Satin, O Meu Caso) em que o 'fora de campo' é completamente
improvável e de resto indiferente, isto é vazio”. Ou seja, este som que não tem referente visível no
ecrã não deixa contudo de fazer parte da mesma imagem audiovisual.
A cada momento, Manoel de Oliveira escolhe o meio mais adequado para o que deseja comunicar.
E também o mais simples. Por isso usa muito os longos planos fixos. Permitem que nos
concentremos na escuta. Movimentos de câmara injustificados podem distrair o espectador. Quando
a palavra não está presente, dá lugar à música e alguns apontamentos de som síncrono, em
sequências que parecem construídas ao estilo do cinema mudo.
Bello (2012) alega que a duração longa dos planos nos filmes de Manoel de Oliveira responde a
uma necessidade de contemplação. No mesmo sentido podemos interpretar a relativa ausência de
155
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
ruídos e a circunscrição (com raras excepções) da música a sequências não faladas. Para haver
lugar à contemplação, o espectador não pode ser guiado por um ritmo musical ou distraído por
ruídos de intenção puramente naturalista.
Há portanto uma relação dialéctica entre o audível e o visível. “Nenhum acompanha o outro,
nenhum é redundante” (Altman, 1980:79). O sentido do filme constrói-se do diálogo permanente
entre “som, palavra, imagem e música”, as quatro colunas que sustentam equilibradamente esse
“templo grego” (Oliveira, 2013:9) que é o filme. Temos sempre a impressão de que cada som tem o
seu lugar e deve ser ouvido isoladamente, sem perturbação; que a mistura de sons (raramente mais
de duas pistas) deve ser subtil, a menos que a ideia a transmitir seja a de caos. Os sons respeitam-
se uns aos outros. Nenhum é protagonista mas cada um tem os seus momentos de protagonismo:
não em detrimento dos outros, mas quando Manoel de Oliveira entende que é nesse que encontra o
suporte mais eficaz.
A ideia expressa por Manoel de Oliveira (2013:9) de que um filme é construído como templo que
assenta em quatro colunas é fundamental para a compreensão de todo o cinema e audiovisual. E
esta imagem que Manoel de Oliveira nos oferece é ousada, porque não divide o cinema em som e
imagem, mas destaca a importância de cada um dos componentes sonoros (voz, música, ruídos)
implicados na construção do filme. Até nisto Manoel de Oliveira é mais vanguardista do que muitos
que nasceram já neste século XXI mas que continuam convictos de que o cinema é uma arte visual.
5.3.7. Alguns princípios orientadores
A partir da análise dos filmes, defini quatro princípios que me parecem poder enquadrar as decisões
de Manoel de Oliveira quanto à construção do som (e não só) dos seus filmes. Proponho-os como
convenção que espelha a minha experiência de recepção dos filmes e que encontra algum suporte
em declarações avulsas de Manoel de Oliveira, nas suas entrevistas ao longo dos anos. Chamei-lhes
princípios – num sentido semelhante ao dado por Lévy (1992) – sem pretender atribuir-lhes uma
qualquer conotação programática, pois julgo que são mais o resultado de uma prática que o de uma
ideologia. Constituem apenas uma proposta de taxinomia provisória, desde logo porque as
categorias não se excluem mutuamente. São apenas uma forma de, sintetizando, destacar as
práticas que me parecem mais recorrentes e com influência fundamental na produção de sentido156
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
dos filmes. Não pretendem esgotar todas as possíveis interpretações do trabalho sonoro de Manoel
de Oliveira, o que de resto ultrapassaria largamente o âmbito deste trabalho. Esses princípios são:
distanciação, simplificação, desdramatização e apropriação.
Distanciação
Manoel de Oliveira não quer fazer o espectador participar da narrativa fílmica, não pretende a sua
imersão, o seu envolvimento emocional no filme. Em vez disso, quer um espectador atento e crítico
em relação ao que lhe é dado ver e ouvir. Para tal, constrói os filmes de modo a contrariar uma
interpretação naturalista do que nos oferece a ver e escutar, e a denunciar o dispositivo técnico do
cinema. E o som contribui para esse fim tal como os outros elementos do filme. Isto torna-se
evidente quando Manoel de Oliveira mostra os equipamentos de captação e registo de som em O
Acto da Primavera ou em O Meu Caso. Neste último filme, Manoel de Oliveira mostra até a coluna
de som que reproduz/representa a voz (e o projector, que é a representação visual) de Deus na
cena do livro de Job . Mas tal função está presente em todo o uso do som. Desde logo no tom
neutro como são ditos os diálogos, mais apresentados do que representados, dificultando uma
empatia com as personagens e chegando mesmo a indicar que não estamos perante personagens
mas tão só actores fazendo de conta. A imposição da presença do actor é manifesta em O Dia do
Desespero. no qual as intervenções de Teresa Madruga, como ela própria e como Ana Plácido,
variam de forma tão fluida e ambígua que obrigam o espectador a grande atenção para não perder
a noção do que se passa. A música contribui para essa distanciação ao ser usada como
contraponto (muitas vezes irónico) e pontuação, ou assumindo toda a sonorização de sequências
inteiras, como acontece no início de O Passado e o Presente. O uso de música preexistente e
mesmo pré-gravada contribui na medida em que pode ser reconhecida e logo remeter para um
contexto fora do filme, e por outro lado impõe às imagens visuais um ritmo e um tempo, numa
lógica coreográfica pouco comum fora do género musical. Muito mais subtil é o uso dos ruídos, que
se destacam amiúde pela ausência. Manoel de Oliveira usa um mínimo de ruídos para construir o
que podemos chamar o cenário acústico dos seus filmes. Para citar um muito comum: o simples
chilrear de uma ave para sonorizar um cenário de jardim. Este uso do ruído remete para o
estereótipo, e por vezes parece ser mesmo essa a intenção: por exemplo, no plano do porto no
início de O Gebo e a Sombra, o marulhar e o grasnar da gaivota rapidamente estabelecem a
157
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
localização da cena ambientada num cenário visivelmente teatral e sem grande detalhe. Este
ambiente acústico tão depurado remete o espectador para o palco teatral mesmo quando o cenário
é natural, afastando-o do naturalismo a que o habituou o cinema e a televisão.
Simplificação
“Simplifico. O guião é uma coisa e, no momento da rodagem, simplifico mais e mais. É o método.
No princípio as coisas são complicadas, sempre. Simplifico para alcançar o necessário” (Oliveira,
2007).
Manoel de Oliveira utiliza o som necessário e suficiente para indicar o sentido que pretende
transmitir. Esta simplificação traduz-se na economia de objectos sonoros usados a cada momento
(em cada cena, cada sequência) e no modo como se articulam, se misturam. Numa era dominada
pelo som multicanal difundido por sistemas surround, nos filmes de Manoel de Oliveira raramente
escutamos uma mistura de mais do que dois sons em simultâneo. Dificilmente encontramos um
plano em que diálogo, música e ruídos coexistam. Mesmo a mistura de música e diálogo –
incontornável no cinema clássico – é relativamente rara. Manoel de Oliveira quer evitar que um som
possa perturbar a escuta do outro. Voz e música facilmente podem ter um efeito de máscara um
sobre o outro. A mistura de música ou diálogo com ruídos é menos problemática graças ao carácter
pontual destes últimos. Nos filmes de Manoel de Oliveira cada um dos sons é para ser escutado.
Para evitar o naturalismo, os objectos sonoros têm de se manter destacados uns dos outros,
mantendo o seu valor simbólico individual e forçando o espectador a tomar consciência de cada
um. Este princípio da simplificação só em raros momentos é posto de lado. Exemplo de excepção é
Benilde, onde uma composição electroacústica que mistura sons musicais e ruídos de tempestade é
usada para criar um ambiente psicologicamente opressivo e inquietante.
A simplificação afirma-se também na redução do papel da montagem enquanto instrumento de
continuidade. Cada cena é construída com um mínimo de planos – se possível apenas um. Quando
acontece, a mudança de plano não interrompe o diálogo (ou monólogo): é este que determina a
métrica da cena. Não há continuidade narrativa entre cenas: cada uma é como um episódio na vida
das personagens. As sequências são separadas por intertítulos, que fazem a transição da anterior
para a seguinte, localizando esta ou narrando resumidamente os acontecimentos não mostrados.
158
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Os intertítulos são quadros com legendas, normalmente sobrepostas a um fundo negro (vermelho
em Le Soulier de Satin) ou ao plano fixo de uma paisagem. Outras vezes, em vez do texto escrito
ouvimos uma voz aposta à imagem da paisagem. Durante o intertítulo pode operar-se a transição
dos ruídos ambiente duma cena para outra.
Desdramatização
Manoel de Oliveira não faz apelo à emotividade do espectador “porque a emoção engana a
inteligência” (Oliveira in Baecque e Parsi, 1999:68). Em vez disso, prefere chamar a atenção para
os mecanismos do drama, convocando o intelecto em vez da emoção, tratando a ficção como
documentário, mantendo o espectador como observador imparcial, não o deixando participar no
drama, obrigando-o a um exercício de crítica constante face aos acontecimentos que lhe são dados
a assistir. Tal como Brecht (1978) para o seu “teatro épico” Manoel de Oliveira quer um espectador
que reaja com a inteligência e seja capaz de ler o filme para além da superfície. Mais do que isso,
para Manoel de Oliveira (2004) “o espectador precisa completar a acção que vê no filme”. Logo,
não pode ser um espectador passivo, apenas receptivo ao que lhe é dado, pronto a deixar-se levar
pela ilusão que lhe é proporcionada.
Assim, Manoel de Oliveira pede aos seus actores: “Não representem, reajam” (Oliveira in Baecque e
Parsi, 1999:116). Os actores dizem os diálogos num tom neutro e frio, longe do naturalismo a que o
cinema nos habituou, impedindo qualquer empatia afectiva com a personagem. Torna-se mesmo
difícil abstrairmo-nos da presença dos actores e divisar apenas as personagens. Manoel de Oliveira
leva esta ambiguidade e ambivalência ao extremo em O Dia do Desespero com os actores
representando eles próprios e as personagens Camilo e Ana Plácido.
Para além do tom neutro e pouco coloquial dos diálogos, também a música não assume o habitual
papel de guia emocional do espectador informando-o de como deve reagir às imagens e sons com
que é confrontado. A maior parte das vezes, a música funciona como comentário à imagem visual
realçando o que esta tem de construído, retirando-lhe a aura de evidência do real que geralmente a
envolve.
159
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Outro recurso empregue por Manoel de Oliveira consiste em antecipar os momentos dramáticos,
mostrando-os fora do lugar e retirando-lhes o factor surpresa que contribui para a tensão dramática.
Refiro de novo o exemplo mais conhecido, Aniki Bobó, em que Manoel de Oliveira, logo no início do
filme, mostra antecipadamente e fora de contexto a sequência clímax do filme, em que Eduardo cai
à linha do comboio. Quando a sequência volta a surgir no lugar cronologicamente certo, a
circunstância de já conhecermos o que vai acontecer permite-nos uma recepção desprovida de
envolvimento emocional e mais atenta ao que se passa.
Apropriação
Manoel de Oliveira mostra um aparente desprezo pela originalidade. Apropria-se do que em outros
autores ele encontra de interessante para a sua pulsão de fazer cinema. A forma mais reconhecida
desta apropriação é a utilização do texto literário, que Manoel de Oliveira, mais do que adaptar,
adopta nos seus filmes. Esta relação com o texto literário e os seus autores é porventura o aspecto
mais discutido e teorizado do cinema de Manoel de Oliveira -- o mais completo e profundo trabalho
a debruçar-se sobre esta temática é provavelmente a tese de doutoramento de António Preto (2011).
Em contraste, não encontrei na minha pesquisa qualquer menção específica ao facto de Manoel de
Oliveira mostrar uma evidente preferência pelo uso de música preexistente (não só em termos de
composição como também do registo áudio) para além de uma fugaz referência no texto de uma
comunicação de Phllippe Roger (2008).
Segundo Lévy (1992:221), o recurso a outros autores acontece porque o cineasta “não se assume
já como detentor da verdade, mas enuncia o que, descoberto pelo espectador, poderá tornar-se
verdade”. Manoel de Oliveira coloca-se ao lado do espectador, tão espectador como o próximo,
diferente apenas pelo privilégio de serem dele as questões que partilham.
Essa apropriação de textos e música é realizada por Manoel de Oliveira com um grande respeito
pelos originais. Não se trata do que normalmente é designado como adaptação, que não passa de
um recontar em cinema da história contida no livro. Por isso prefiro o termo adopção: Manoel de
Oliveira faz seus o texto ou a música que vai buscar a outros autores, incorporando-os nos seus
filmes. Assim, Manoel de Oliveira constrói boa parte dos seus filmes criando novas relações entre
esses elementos que vai buscar à literatura e à composição musical (e a outras artes). No campo do160
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
sonoro isto é evidenciado não só pela música como pelo uso de sons conhecidos e reconhecíveis. O
respeito rigoroso pelo original não impede que o significado dos sons utilizados seja alterado pela
sua recontextualização. Pelo contrário, Manoel de Oliveira conta com o contraste criado face ao
sentido convencional desses ruídos e músicas para provocar no espectador essa atitude crítica que
procura.
5.3.8. Um cinema “épico”?
Como já escrevi acima, estes quatro princípios não se excluem uns aos outros. Em certa medida, os
três últimos contribuem mesmo para o estabelecimento do primeiro, se considerado num âmbito
mais alargado.
Efeito de distanciação é a tradução portuguesa mais comum do termo Verfremdungseffekt,
teorizado por Bertolt Brecht (Martin & Bial, 2000; Rosenfeld, 2004). O efeito provocado no
espectador é o de estranhamento face a tudo o que se passa no espectáculo a que assiste,
sobretudo às coisas mais familiares. O espectador é levado a perceber o mundo de um modo
diverso daquele a que está habituado no seu quotidiano. O objectivo é suscitar uma atitude crítica,
livre de preconceitos, diversa da empatia emocional procurada pela obra dramática – que para o
caso presente se materializa no cinema clássico. O reconhecimento das convenções sociais
familiares ao espectador é substituído pelo questionamento dessas mesmas convenções. Este
questionamento é geralmente imbuído de um objectivo ético – que em Brecht será de carácter
político (marxista) e em Manoel de Oliveira de carácter religioso (cristão) –, que não pretendendo
doutrinar assume ainda assim uma intenção pedagógica.
Alguns estudos da obra de Manoel de Oliveira já antes chamaram a atenção para a proximidade do
seu cinema com o "teatro épico" de Brecht (Grilo, 2006; Preto, 2011; Silva, 2013). Ao longo da
minha análise, fui percebendo melhor a grande proximidade encontrada entre a teoria de Brecht e a
prática de Manoel de Oliveira. Aquilo que verifiquei realizado nos filmes de Manoel de Oliveira,
constatei que estava em parte verbalizado por Brecht nos seus escritos, e com especial clareza nas
suas Notas sobre a ópera Grandeza e Decadência da Cidade de Mahagonny. Neste texto Brecht
(1978:16) compara as formas “dramática” e “épica” do teatro listando e comparando as suas
características respectivas na seguinte tabela:161
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Forma dramática de teatro Forma épica de teatro
a cena 'personifica' um acontecimento narra-o
envolve o espectador na acção e consome-lhe a actividade faz dele testemunha, mas desperta-lhe a actividade
proporciona-lhe sentimentos força-o a tomar decisões
leva-o a viver uma experiência proporciona-lhe visão do mundo
o espectador é transferido para dentro da acção é colocado diante da acção
é trabalhado com sugestões é trabalhado com argumentos
os sentimentos permanecem os mesmos são impelidos para uma consciencialização
parte-se do princípio que o homem é conhecido o homem é objecto de análise
o homem é imutável o homem é susceptível de ser modificado e de modificar
tensão no desenlace da acção tensão no decurso da acção
uma cena em função da outra cada cena em função de si mesma
os acontecimentos decorrem linearmente decorrem em curva
natura non facit saltus(tudo na natureza é gradativo)
facit saltus(nem tudo é gradativo)
o mundo, como é o mundo. como será
o homem é obrigado o homem deve
suas inclinações seus motivos
o pensamento determina o ser o ser social determina o pensamento
À medida que se lê esta tabela, vão-se reconhecendo, na coluna da esquerda, descritores que
podem facilmente atribuir-se ao cinema clássico – herdeiro do “drama” aristotélico, a que Brecht
contrapõe a forma “épica” – e, na da direita, aqueles que na análise dos filmes de Manoel de
Oliveira me foram sendo sucessivamente sugeridos emocional e racionalmente. Aos poucos, foi-se
formando na minha mente uma ideia do que poderia ser o conceito de cinema de Manoel de
Oliveira, o que poderia constituir a sua poética.
Com isto não quero afirmar que o que Brecht coloca na coluna da direita da sua tabela comparativa
serve como uma luva na prática de Manoel de Oliveira. Limito-me a assinalar a analogia no que diz
respeito às ideias gerais de um e outro sobre o papel do espectador – a distanciação emocional, a
participação intelectual, a reflexão crítica –, e da encenação – a recusa do naturalismo da
interpretação, a motivação social em vez de psicológica das personagens, a não obediência a uma
lógica causal e linear.
Como é que a “forma épica” se verifica na construção sonora dos filmes? Pelo uso mínimo da
mistura, permitindo a escuta distinta de todos os sons, dispostos num mínimo de camadas,
evitando a necessidade de estabelecer hierarquias entre os vários sons; pelos ruídos escutados
pontual e não continuamente, indicando mas não descrevendo os locais ou as acções; pela música
em diálogo crítico com as imagens visuais, quase sempre em sequências mudas que alternam com
162
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
outras dialogadas; pelos diálogos não coloquiais que revelam a sua origem literária e impedem que
se confunda o actor com a personagem; e de um modo geral, pela sensação de artificialidade que
transmitem, que nos leva a considerá-los teatrais.
Aceitando o raciocínio e os termos da conceptualização de Brecht, e transportando-os para o campo
do cinema, parece-me que se pode dizer que Manoel de Oliveira faz um cinema épico. No entanto,
esta designação não é boa pois já nomeia um género consagrado do cinema clássico. Este chama-
se épico por causa do seu conteúdo narrativo, enquanto que o conceito brechtiano diz respeito à
forma. Por outro lado, Brecht evidencia uma crença no potencial do teatro épico para mudar o ser
humano, que Manoel de Oliveira não aparenta colocar nos seus filmes – embora talvez
secretamente o deseje.
5.3.9. Um cinema “ético”?
“O cinema é, de todas as artes, a mais sujeita ao capitalismo, pelo custo fabuloso do seu material e
meios técnicos, e ainda pela dependência esmagadora dum público orientado por uma forte
propaganda que cuida demasiado de estrelas e astros, e nada de ideias e processos artísticos. (...)
Não está certo que o desenvolvimento duma arte permaneça assim, na dependência duma
burguesia que sob a capa da finalidade artística apenas explora um negócio rendoso? (E venham-nos
depois dizer ‘o público quer, o público pede', quando este se limita a receber passivamente aquilo
que lhe apresentam). Sendo o cinema de todas as artes, a que maior e mais directa influência
exerce sobre a mentalidade popular, sucede que se parte da falsa e criminosa opinião de que o
espectador nada mais necessita e deseja do que saborear por um preço mínimo e confortavelmente
instalado na sua cadeira, um espectáculo alegre e divertido que o faça esquecer as canseiras e
dissabores duma vida extenuante (…)” (Oliveira, 1933).
O cinema de Manoel de Oliveira obedece a uma ética, que o leva a construir os seus filmes com um
método que se pode dizer quase científico pelo rigor a que se obriga: a distância a que mantém o
espectador, a recusa de uma empatia emocional, o revelar do dispositivo cinematográfico... Tudo vai
no sentido de tornar evidente que para Manoel de Oliveira ficção não é sinónimo de ilusão, não é
engano, é talvez um modo de tentar desvelar a alma humana. Não é o corpo, a matéria que se pode
mostrar, o que interessa a Manoel de Oliveira. É o que está para além disso: o oculto, o insondável,
o mistério, a alma.
163
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
É marcado igualmente por uma constante busca. Esta busca, que podemos encarar como o
desbravar de um caminho em direcção a uma expressividade própria, é marcada pelo
experimentalismo. Manoel de Oliveira não adopta um modelo nem tampouco procura um. A cada
filme procura novos modos de utilizar os meios que o cinema lhe oferece. Não o faz em obediência
a imperativos estéticos mas guiado por uma ética que valoriza o respeito pela inteligência do
espectador.
O cinema de Manoel de Oliveira não mostra qualquer sujeição à evolução técnica que os
equipamentos de cinematografia, áudio e outros sofreram desde os anos 30 do século XX. Como
afirma numa entrevista incluída no DVD de Espelho Mágico (2005), Manoel de Oliveira é um
“tradicionalista” e como tal, sem recusar tudo o que a tecnologia pode facilitar na feitura dos seus
filmes, mantém-se fiel aos princípios do que ele entende ser o cinema e à sua ideia do que pode ser
a linguagem cinematográfica -- que sempre o levaram a recusar as trucagens cada vez mais
permitidas pela tecnologia. Manoel de Oliveira não nega que o cinema, ao contrário do que afirma
uma personagem do filme de Godard, Le Petit Soldat (1963), é a “mentira 24 vezes por segundo”;
mas como Manoel de Oliveira quer que essa mentira seja explícita para o espectador, não lhe
interessa, nessas inovações tecnológicas, o que permite tornar o falso em natural.
É um cinema que podemos dizer artesanal. Nem por isso menos profissional, mas não industrial. E
o artesanal inclui o experimental. Contudo, Manoel de Oliveira não ignora a evolução técnica dos
meios cinematográficos. Usa estes meios na medida em que servem os seus filmes. O seu
experimentalismo não se caracteriza pelo fascínio da técnica, nem por valores estéticos a que
submeta os textos literários que usa nos seus filmes. Não tem uma agenda, um programa a que
deva obediência, uma receita a seguir (em que baste misturar os ingredientes certos e cozinhá-los
adequadamente). Quem segue uma receita quer ter certezas quanto ao produto final. Não é este o
móbil de Manoel de Oliveira. Os seus filmes procuram respostas em vez de tentar dá-las. O cinema
de Manoel de Oliveira é um cinema de questionamento. E a questão parece ser sempre a mesma:
que ser é esse a que chamamos ser humano?
Para Manoel de Oliveira é o texto – romance ou peça de teatro na maioria dos casos –, a partir do
qual constrói o seu filme, que determina a forma deste. O respeito pela letra do texto impõe o
caminho, as escolhas técnicas e as estéticas. Mas mesmo esta regra tem excepções: em Os
Canibais a ideia de realizar um filme-ópera determinou a forma como o texto foi passado a filme.
164
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
É talvez impossível identificar todas as influências que contribuíram para o cinema de Manoel de
Oliveira. Embora algumas sejam assumidas pelo próprio – como Eisenstein e Walter Rutmann para
Douro, Faina Fluvial ou Jean-Marie Straub e Danielle Huillet para Amor de Perdição (Baecque e
Parsi, 1999) –, a certa medida dessas e doutras influências é impossível de avaliar. De qualquer
modo, essa eventual influência não se traduz na adopção de modelos, mas apenas em motivação
para a experimentação.
Para mim, nascido meio século depois de Manoel de Oliveira, ter uma noção aproximada da
vivência cinéfila deste realizador (e espectador) centenário parece uma tarefa demasiado ambiciosa
e especulativa. Manoel de Oliveira nasceu pouco depois do cinema e realmente tem vivido de perto
toda a evolução deste. Teve oportunidade de ver os filmes e conhecer as teorias na sua origem, e
não com o desfasamento retrospectivo com que agora o podemos fazer. Com que ferramentas
podemos nós medir se Manoel de Oliveira é mais influenciado pelos primitivos, pelos modernos ou
pelos contemporâneos? E em que medida isso nos ajudará a entender melhor a sua obra?
Por outro lado, embora o cinema de Manoel de Oliveira seja marcado pela racionalidade e a
consciência, o processo da construção dos filmes tem muito de intuitivo, como ele próprio afirma.
Neste sentido compreende-se que Paulo Rocha (1981:7) o apelide de “primitivo genial”. Manoel de
Oliveira parece manter essa ingenuidade mesclada de engenho que caracterizava os primeiros
cineastas – e nestes incluo o próprio Manoel de Oliveira de Douro, Faina Fluvial –, que descobriam e
exploravam as potencialidades de um novo meio.
Este primitivismo não se pode entender apenas como referência à idade de Manoel de Oliveira,
quase contemporâneo do nascimento do cinema, ou à circunstância de ter realizado o seu primeiro
filme Douro, Faina Fluvial quando o sonoro dava ainda os primeiros passos. Manoel de Oliveira foi
fazendo o seu caminho independente de modas e estéticas (maioritárias ou minoritárias), e o seu
percurso parece desenvolver-se ao lado da história geral do cinema. Esta expressão ao lado não tem
sentido em termos científicos – evidentemente, Manoel de Oliveira faz parte de história do cinema –
mas parece a mais adequada para significar a independência de Manoel de Oliveira em relação a
escolas estéticas e ideológicas, e aos valores da indústria. Manoel de Oliveira parece não dever nada
a ninguém. Talvez por isto lhe chamam mestre.
165
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Primitivismo que inclui também o carácter de vanguarda do cinema de Manoel de Oliveira: não se
conformando a modelos estabelecidos – nem externos nem criados por ele próprio – e mantendo
sempre uma grande vontade de explorar as potencialidades expressivas do cinema. Este
vanguardismo não se torna evidente porque Manoel de Oliveira não usa o cinema numa vertente
espectacular. Não se trata do falso vanguardismo que se manifesta pela exploração das inovações
tecnológicas pela simples razão de que são novidade.
“Tenho um conhecimento da evolução do cinema tão grande, que não posso regressar com a mesma
inocência. Cada vez que se regressa, regressa-se completamente diferente, e à medida que se avança,
avança-se de modo diferente. Se retomo o velho, retomo-o com os olhos de hoje” (Oliveira in Baecque e Parsi,
1999:128).
A originalidade é com certeza indissociável da singularidade do seu percurso como cineasta. Manoel
de Oliveira realizou o seu primeiro filme – Douro, Faina Fluvial – com vinte e três anos, mas só
passou a fazer filmes a um ritmo regular com a idade em que outros realizadores se reformam. O
seu percurso autodidacta distingue-o dos realizadores contemporâneos, mas de gerações
posteriores, geralmente possuidores de uma formação académica em cinema e provenientes de
meios familiares porventura mais literatos do que o de Manoel de Oliveira.
5.3.10. As três fases do cinema de Manoel de Oliveira
Na juventude de Manoel de Oliveira, ainda estava quase tudo por inventar no cinema. Então ele foi
inventando o (seu) cinema à medida que o foi fazendo. Isto pode ajudar a explicar o percurso
aparentemente sinuoso da sua obra.
Parece-me possível distinguir três fases neste percurso. Correspondem a diferentes períodos de
evolução no domínio das ferramentas do cinema, e portanto não podem ser encaradas como
compartimentos estanques marcados por qualquer especificidade estilística ou temática. Devemos
ter em conta que Manoel de Oliveira é um autodidacta e que, independentemente duma formação
académica, o cinema aprende-se fazendo. Por outro lado, como lembra Lavin, a obra de Manoel de
Oliveira não se explica segundo uma linearidade cronológica e cumulativa e parece ter como traço
dominante um “recomeço perpétuo” (Lavin, 2008:14). E ainda, como escreve Lemière (2005),
porque Manoel de Oliveira é em si próprio toda uma geração do cinema português, sem escola nem166
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
discípulos.
A primeira fase, é aquela, de mais de 40 anos, durante os quais Manoel de Oliveira realiza poucos
filmes, muito espaçados nos tempo e segundo processos de produção totalmente artesanais, nos
quais ele próprio desempenha quase todas as funções técnicas. A segunda fase, pode dizer-se de
consolidação, começa com O Passado e o Presente e continua na ligação a Paulo Branco que é o
produtor com quem Manoel de Oliveira faz a transição para a terceira fase (que me parece iniciar-se
na década de 1990). É um período em que começa a ter apoio financeiro e acesso a equipas de
produção profissionais. Manoel de Oliveira é reconhecido como autor, criador duma obra original,
mesmo por quem não vê ou não aprecia os seus filmes. Em Portugal há uma espécie de
acreditação de Manoel de Oliveira como um valor cultural nacional.
A terceira fase, estende-se até ao presente. Terminada uma longa colaboração com João Paes
(compositor) e Joaquim Pinto (engenheiro de som), Manoel de Oliveira irá contar (a partir da década
de 1990) com equipas de som quase exclusivamente francesas. Caracteriza-se esta fase por uma
maior regularidade e integração em meios profissionais do cinema (sem que o seu cinema apesar
disso se torne industrial). Graças ao reconhecimento como valor cultural (sobretudo em França),
Manoel de Oliveira tem maior liberdade e mais apoio para realizar as obras que deseja, e tem
oportunidade de o fazer regularmente. Tem até a oportunidade de recuperar obras maltratadas –
nova montagem de Douro, Faina Fluvial com música de Emmanuel Nunes, em 1993 – ou de que
tivera de abdicar – Angélica, projecto originalmente de 1954 e realizado em 2010.
À medida que os meios de produção foram mudando, os meios técnicos de som acompanharam a
evolução. Depois de um primeiro filme mudo, logo musicado para uma apresentação pública mais
alargada, Manoel de Oliveira envolveu-se pessoalmente na realização do som, com ajudas muitas
vezes não creditadas nos filmes. Na segunda fase, predominam responsáveis técnicos portugueses
que variam quase de filme para filme – Joaquim Pinto é o mais presente, integrando a equipa em
meia dúzia de filmes sucessivos. Na terceira, predominam engenheiros de som franceses, e verifica-
se menor variação – Henri Maikoff faz captação de som em onze filmes e Jean-François Auger faz
as misturas em doze.
No que diz respeito ao sonoro, a primeira fase caracteriza-se pela falta de recursos técnicos, que
resulta tanto das limitações da tecnologia áudio à época como do carácter amador das produções. A
167
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
segunda fase, é a mais rica e variada. Há uma grande dose de experimentação – verificável
sobretudo nos filmes em que conta com as colaborações de João Paes e de Joaquim Pinto. A
terceira fase, evidencia estabilização do processo de construção sonora, assente na depuração e na
simplificação.
Esta teoria das três fases não passa aqui do esboço de uma hipótese. Ao mesmo tempo que Manoel
de Oliveira parece apurar alguns princípios norteadores da sua prática cinematográfica,
notoriamente recusa que estes se constituam numa receita. A cada filme Manoel de Oliveira
continua a experimentar e inovar.
168
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Propus-me neste trabalho defender a tese de que o contributo do som é essencial para a produção
de sentido no audiovisual e consequentemente deve ser estudado mais atenta e profundamente no
âmbito da Ciências da Comunicação.
Julgo que o cinema de Manoel de Oliveira demonstra bem a pertinência e o mérito desta tese. O
som, nas três modalidades em que o cinema o concebe – voz, música e ruídos – é sustentáculo,
tão fundamental como as imagens que se projectam no ecrã, desse “templo grego” que Manoel de
Oliveira (2013:9) diz ser o cinema. Não apenas o sonoro se articula com o visual de modo
indissociável, como pode ser o motor da própria construção audiovisual. O exemplo talvez mais
radical disto é o filme Os Canibais em que a música operática determinou toda a planificação visual
do filme. Mas o mais revelador encontra-se com certeza em As Pinturas do Meu Irmão Júlio, para o
qual a música foi composta por Carlos Paredes perante o filme já montado, mas que mais parece
ter sido rodado e montado ao ritmo dessa música que então ainda não existia. E não serão os
filmes mais literários de Manoel de Oliveira encenações dos textos – que não das narrativas que
neles lemos – e portanto concebidos visualmente a pensar nos actores e nas suas vozes dizendo os
textos? Sem esquecer as situações em que o som que escutamos nos conta uma acção diferente da
que vemos no ecrã, como acontece, por exemplo, na cena da festa de aniversário de Teresa em
Amor de Perdição: enquanto vemos os preparativos para a festa, escutamos da voz do Delator
narrar como Teresa mandara uma carta a Simão, que está em Viseu, contando que seu pai a quer
casar com seu primo Baltasar. Duas narrativas independentes – visual e auditiva – que apenas se
encontram quando o Delator anuncia que Simão chegou à casa de Teresa e vemos a sua chegada.
Por outro lado, há a assinalar uma nítida distinção de processos entre o cinema que defini como
clássico e o de Manoel de Oliveira. Essa distinção não resulta simplesmente duma diferente prática
na construção sonora (que algumas limitações técnicas poderiam explicar) mas – sobretudo e mais
significativamente –, resulta da divergência nos princípios orientadores dessa prática. Manoel de
Oliveira esforça-se por não estabelecer uma hierarquia entre os tipos sonoros, valorizando uns em
detrimento dos outros: em vez disso concede a cada um o protagonismo que o momento e a
situação exigem.
169
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
A adopção de um ponto de escuta único e coincidente com o ponto de vista da câmara também
afasta os seus filmes do modelo clássico, que usa e abusa do ponto de escuta subjectivo – o que
produz a ilusão de que o som corresponde à escuta de uma personagem. Há fortes indícios de que
esta opção de um ponto de escuta único é fundamental para o estabelecimento do efeito de
distanciação do espectador procurado por Manoel de Oliveira. Distanciação que obriga a uma
atitude, e concomitantemente a uma percepção do(s) sentido(s) do filme, muito diferente da que é
pedida pela maioria dos produtos audiovisuais a que somos expostos diariamente. Em vez de um
espectador passivo, imerso num universo virtual, o cinema de Manoel de Oliveira precisa de
espectadores atentos e sempre críticos, que não se deixem iludir pela aparente transparência de um
medium que apresenta como real o que não é mais do que uma construção (cada vez mais)
artificial, realizada com o intuito de nos impor “uma versão ideológica da realidade” (Tarkovski,
1998:213) sob a capa de simples entretenimento.
Como diz Manoel de Oliveira, a vida são convenções, e são essas convenções que passam para o
cinema. É por transportar essas convenções da vida para o cinema que a significação se instala no
filme, e não pela aparente naturalidade duma reprodução mais ou menos fiel da realidade. E é
também sobre elas – tanto as convenções da vida como as do cinema – que Manoel de Oliveira se
e nos questiona. E fá-lo, simultânea ou sucessivamente, por intermédio da composição pictórica dos
enquadramentos rigorosos, da escolha dos cenários e do guarda roupa, dos gestos precisos e
contidos dos actores, do tom com que estes dizem os seus textos, da música que conota
personagens e lugares com determinada cultura e estatuto, dos ruídos que pontuam e definem a
calma do campo ou o frenesi da cidade...
O modelo audiovisual dominante habitou-nos a aceitar como natural um certo modo de construir
significado, escondendo do espectador que tudo nele é artifício e convenção. Manoel de Oliveira
constantemente coloca em questão este modelo e as convenções que foi instituindo, e faz de cada
um dos seus filmes uma experiência inesperada para o espectador. É certo que isso obriga a um
esforço maior, de audiovisão, por parte do espectador confrontado com o questionamento das ideias
feitas que tenha adquirido sobre o que deve ser um filme. Em contrapartida, o cinema de Manoel de
Oliveira enriquece uma arte que actualmente parece ter-se esgotado em formas e conteúdos
demasiado padronizados e previsíveis, demonstrando que no cinema e no audiovisual não é preciso
obedecer a padrões ou modelos preexistentes para construir sentido.
170
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Em relação ao cinema de Manoel de Oliveira, este estudo não pretendeu mais do que atingir uma
compreensão generalista do contributo da componente sonora para o sentido dos filmes que
compõem a sua obra. A opção pela transversalidade do estudo não permite dar conta das
particularidades do contributo do som para cada uma das obras. Filmes como O Meu Caso ou
Amor de Perdição facilmente dariam matéria suficiente para outras teses, tal é a variedade e a
novidade na utilização do som por Manoel de Oliveira. Ao longo deste estudo, muitas questões se
levantaram que não foram respondidas, porque as respostas levariam para fora do âmbito
estipulado; outras terão ficado por enunciar por a pesquisa não atingir a profundidade que seria
necessária para as encontrar.
Uma delas, é a questão de saber se podemos encontrar no cinema de Manoel de Oliveira um "estilo
aural", à semelhança do que Weis (1982) encontra em Hitchcock, ou lhe descortinar uma “poética”
(do som), no sentido que lhe dá Zagalo (2009) na senda de Bordwell (1989). Será necessário maior
aprofundamento para o compreender. Para mim, tornou-se evidente que o cinema de Manoel de
Oliveira é guiado por princípios éticos que se antecipam aos estéticos. Nesse sentido, o seu cinema
revela uma vontade de comunicação que segundo Martins (1998; 2011) não dispensa o encontro
com o “outro”; outro a quem Manoel de Oliveira chama espectador e de quem espera colaboração,
para que essa comunicação se torne efectiva. Ética e estética não são incompatíveis, mas parece
evidente que, no caso de Manoel de Oliveira, a primeira guia a segunda e esta será sempre muito
diferente daquela que domina a actualidade: uma estética tornada ideologia que conduz ao
“abandono do registo crítico, epistemológico e político” (Martins, 2011:110).
Ao servir-me dos filmes de Manoel de Oliveira espero, em contrapartida, poder contribuir para o
estudo de um aspecto da sua obra que tem sido quase completamente ignorado. Ao papel do som
nos filmes de Manoel de Oliveira não tem sido dado o relevo que ele merece. Centrando-se quase
exclusivamente sobre as questões da adaptação literária ou da composição pictórica dos
enquadramentos, investigadores e críticos têm quase completamente ignorado o papel do som
como contributo fundamental para o sentido dos filmes. A análise de cada um dos filmes com
especial atenção aos eventos sonoros será com certeza enriquecedora para o maior conhecimento
tanto da obra de Manoel de Oliveira como do papel do som no audiovisual.
A discussão ou o desenvolvimento da hipótese, que esboço no capítulo anterior, de que no cinema
de Manoel de Oliveira se podem distinguir três fases é outra linha de investigação possível, que
171
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
poderá ajudar a compreender o seu cinema. A contribuição dos membros da equipa responsáveis
pelo som poderá ser avaliada nessa futura investigação. Essa avaliação terá em conta as diferenças
entre os filmes em que cada um colaborou e incluirá os depoimentos, recolhidos da boca desses
colaboradores, sobre os respectivos processos de trabalho (táctico e criativo) e o relacionamento
com o realizador. Penso, por exemplo, na colaboração de Joaquim Pinto e do compositor João Paes
numa série de filmes em que há uma grande dose de experimentação, verificável em filmes como
Benilde, Amor de Perdição, O Meu Caso ou Os Canibais. Alguns indícios sugerem que estes
colaboradores terão tido uma influência decisiva no resultado final.
Em que medida os meios técnicos postos à disposição de Manoel de Oliveira determinam as suas
opções sónicas? É evidente a grande variação dos meios de que dispôs ao longo dos anos. Para
além da qualidade dos meios técnicos de áudio, até que ponto Manoel de Oliveira os conhece e
domina como é reconhecido que domina a fotografia de cinema?
No que diz respeito mais genericamente ao estudo do som e do áudio, não está tudo por fazer, mas
falta o mais importante, que é dar a conhecer a importância que o sonoro tem, nesta era tão
dominada pelo foco no visual. Não apenas, mas sobretudo nos media audiovisuais, que se tornaram
omnipresentes no nosso quotidiano, e onde quase sempre tem passado despercebido, tomado
como parte imanente das imagens visuais. Tal como o nome indica, o audiovisual constrói-se de
imagens audiovisuais: não se destina apenas aos olhos do espectador, almeja igualmente os seus
ouvidos. Ao camuflar o sonoro com o visual, os media audiovisuais servem-se do sonoro como
forma de comunicação subliminar que nos afecta sem que nos demos conta. Como estudiosos das
Ciências da Comunicação devemos estar cientes disto, dar ao som a atenção que precisa e fazer da
sua compreensão parte da literacia mediática.
172
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abel, R. & Altman, R. (2001). The Sounds of Early Cinema. Bloomington: Indiana University Press.
Altman, R. (1980). Introduction. Yale French Studies, No. 60, Cinema/Sound. 3-15.
Altman, R. (1980). Moving Lips: Cinema as Ventriloquism. Yale French Studies, No. 60,
Cinema/Sound. 67-79.
Altman, R. (1992). General Introduction: Cinema as Event. In R. Altman (Ed.), Sound Theory/Sound
Practice. New York: Routledge. 1-14.
Altman, R. (1992). The Material Heterogeneity of Recorded Sound. In R. Altman (Ed.), Sound
Theory/Sound Practice. New York: Routledge. 15-31.
Altman, R. (1995). The sound of sound: A Brief History of the Reproduction of Sound in Movie
Theaters. Cineaste, Vol. 21, 01-01-1995. 68-72. Disponível em
http://ifsstech.files.wordpress.com/2008/06/sound_of_sound_-_rick_altman.pdf. [Último acesso
em 09/09/2014].
Altman, R. (Ed.). (1980). Yale French Studies, No. 60, Cinema/Sound. Yale: Yale University Press.
Altman, R. (Ed.). (1992). Sound Theory/Sound Practice. New York: Routledge.
Andrade, S. C. (2008). Ao Correr do Tempo: Duas décadas com Manoel de Oliveira. Lisboa:
Portugália.
Andrew, D. (1984). Concepts in Film Theory. Oxford: Oxford University Press.
Andrew, D. (2010). What Cinema Is! Bazin’s Quest and its Charge. Oxford: Wiley-Blackwell.
Aristóteles. (2010). Sobre a Alma. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Arnheim, R. (1957). Film as Art. Berkeley: University of California Press. [Reimpressão de 2006].
173
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Attali, J. (2009). Noise: The Political Economy of Music. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Baecque, A. de & Parsi, J. (1999). Conversas com Manoel de Oliveira. Porto: Campo das Letras.
Bakhtin, M. M. (2006). Marxismo e Filosofia da Linguagem (12ª. Ed.). São Paulo: HUCITEC.
Barthes, R. (2004). O Rumor da Língua. S. Paulo: Martins Fontes.
Baudry, J.-L. (1970). Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base. In I. Xavier
(Org.), A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal. 383-399.
Bazin A. (1967). What Is Cinema, Volume 1. Berkeley: University of California Press (original francês
de 1958-1965).
Bazin A. (1972). What Is Cinema, Volume 2. Berkeley: University of California Press (original francês
de 1958-1965).
Bello, M. R. L. L. (2008). Narrativa Literária e Narrativa Fílmica: o caso de Amor de Perdição (2ª.
Ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Disponível
em https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/1296/1/RLBELLO.pdf. [Último acesso em
09/09/2014].
Bello, M. R. L. L. (2009). A instável estabilidade: aproximações e afastamentos entre Dreyer e
Oliveira. In R. S. Junqueira (Org.), Manoel de Oliveira: uma presença. São Paulo: Editora
Perspectiva/Fapesp. 29-47. Disponível em http://hdl.handle.net/10400.2/1309 [Último acesso em
10/09/2014].
Bello, M. R. L. L. (2012). De Kessel a Buñuel e Oliveira. Cadernos de Semiótica Aplicada, Vol.10,
n.2, Dezembro de 2012. Disponível em http://seer.fclar.unesp.br/casa/article/view/5573/4377
[Último acesso em 18/12/2012]
Bens, E. & Smaele, H. (2001). The Inflow of American Television Fiction on European Broadcasting
Channels Revisited. European Journal of Communication, Vol 16(1). London: SAGE Publications.
51–76.
Bordwell, D. (1985). Narration in the Fiction Film. London: University of Wisconsin Press. 174
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Bordwell, D. (1989). Historical Poetics of Cinema. In R. B. Palmer (Ed.). The Cinematic Text:
Methods and Approaches. New York: AMS Press. 369-398.
Bordwell, D. (1991). Making Meaning: Inference and Rhetoric in the Interpretation of Cinema.
Cambridge: Harvard University Press.
Bordwell, D. (2006). The Way Hollywood Tells It: Story and Stlye in Modern Movies. Berkeley:
University of California Press.
Bordwell, D. & Thompson, K. (2008). Film Art: An Introduction (8th Ed.). Boston: McGraw-Hill.
Bordwell, D., Staiger, J. & Thompson, K. (2005). The Classical Hollywood Cinema: Film Style &
Mode of Production to 1960. London: Routledge. [Original de 1985].
Braudy, L. & Cohen, M. (2009). Film Theory and Criticism (7th Ed.). New York: Oxford University
Press.
Brecht, B. (1978). Estudos Sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Bresson, R. (1977). Notes on Cinematography. New York: Urizen Books.
Buckland, W. (2004). The Cognitive Semiotics of Film. Cambridge: Cambridge University Press.
Buckland, W. (Ed.). (2009). Film Theory and Contemporary Hollywood Movies. New York: Routledge.
Burch, N. (1973). Praxis do Cinema. Lisboa: Estampa.
Buscombe, E. (1978). Sound and color. Jump Cut: A Review of Contemporary Media, no. 17, April
1978. 23-25. Disponível em http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC17folder/SoundAndColor.html
[Último acesso em 18/03/2014].
Cage, J. (1961). Silence: Lectures and writings. Middletown: Wesleyan University Press.
Casetti, F. & Di Chio, F. (1991). Cómo analizar un film. Barcelona: Paidós.
Cavalcanti, A. (1957). Filme e Realidade. Rio de Janeiro: Livraria Editora Casa do Estudante do
Brasil.
175
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Chion, M. (1982). La voix au cinéma. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma.
Chion, M. (1985). Le son au cinéma. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma.
Chion, M. (1988). La toile trouée: La parole au cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma.
Chion, M. (1990). L'Audio-Vision. Paris: Éditions Nathan.
Chion, M. (1991). Quiet Revolution... And Rigid Stagnation. October, Vol. 58, Rendering the Real
(Autumn, 1991). 69-80. Disponível em http://www.jstor.org/stable/778798 [Último acesso em
13/06/2014].
Chion, M. (1992). Wasted Words. In R. Altman (Ed.), Sound Theory, Sound Practice. New York:
Routledge. 104-110.
Chion, M. (1994). Audio-Vision: Sound on screen. New York: Columbia University Press. [NOTA: a
tradução das citações de Chion foi feita a partir do original francês de 1990].
Chion, M. (1995). La musique au cinéma. Paris: Fayard.
Chion, M. (1998). Le Son. Paris: Nathan-Université.
Chion, M. (1999). Textes sur la question de la description du son dans l'analyse audio-visuelle.
Edição online. Disponível em http://www.michelchion.com/cours/la_description_du_son.pdf
[Último acesso em 21/02/2010].
Chion, M. (1999). The Voice in Cinema. New York: Columbia University Press.
Chion, M. (2003). Silence of the Loudspeakers, or Why With Dolby Sound it is the Film That Listens
To Us. In L. Sider, J. Sider & D. Freeman (Eds.), Soundscape: The School of Sound Lectures, 1998-
2001. London: Wallflower Press. 150-153. [Lição proferida a 16 de Abril de 1998, no Institut
Français de Londres].
Chion, M. (2003). Un art sonore, le cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma.
176
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Chion, M. (2009). Le promeneur écoutant. Edição online, disponível em https://s3-eu-west-
1.amazonaws.com/michelchion.com/ebooks/free/le_promeneur_ecoutant.pdf [Último acesso em
01/05/2014].
Chion, M. (2011). A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema. Lisboa: Texto & Grafia.
Clair, R. (1972). Cinema, Yesterday and Today. New York: Dover Publications.
Coelho, E. P. (1983). Vinte anos de Cinema Português (1962–1982). Lisboa: Instituto de Cultura
Portuguesa.
Coelho, Z. P. (2009). 'Porquê a semiótica?'. Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade
(CECS). Braga: Universidade do Minho. Texto apresentado no 1º encontro do Grupo de Trabalho
(GT) ligado à semiótica da SOPCOM.
Coleridge, S. T. (1817). Biographia Literaria. London: R. Fenner.
Costa, C. A. (2012). Camponeses do Cinema: a Representação da Cultura Popular no Cinema
Português entre 1960 e 1970 (tese de doutoramento em Antropologia Cultural e Social). Lisboa:
Universidade Nova. Disponível em http://run.unl.pt/bitstream/10362/8177/1/tese%20catarina
%20alves%20costa.pdf [Último acesso em 11/09/2014].
Costa, H. A. (1978). Breve História do Cinema Português (1896-1962). Lisboa: Instituto de Cultura
Portuguesa.
Costa, J. B. (1986). Le Soulier de Satin. Folhas da Cinemateca, Lisboa: Cinemateca Portuguesa-
Museu do Cinema [20 de Dezembro de 1986].
Costa, J. B. (1991). Histoires du Cinéma Portugais. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Costa, J. B. (2001). Pedra de Toque. O dito Eterno Feminino na Obra de Manoel de Oliveira. Revista
Camões, número 12-13, Janeiro-Junho de 2001. 6-37.
Costa, J. B. (2008). Manoel de Oliveira: Cem Anos. Lisboa: Cinemateca Portuguesa.
177
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Costa, J. B. (2008b). Prefácio. In S. C. Andrade, Ao Correr do Tempo: Duas décadas com Manoel
de Oliveira. Lisboa: Portugália. 4-5.
Cruchinho, F. (2003). O Desejo Amoroso em Os Canibais de Manoel de Oliveira. Porto: Mimésis.
Culler, J. (2000). Literary Theory: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press.
Danesi, M. (2004). Messages and Meanings. An introduction to semiotics (3rd Ed.). Toronto:
Canadian Scholars’ Press.
Dickson, A., & Dickson, W. K. L. (1894). Edison's Invention of the Kineto-Phonograph: Account of the
Invention. Century Magazine, Volume 48, Issue 2, June, 1894. 207-214.
Doane, M. A. (1985). The Voice in the Cinema: The Articulation of Body and Space. In E. Weis & J.
Belton (Ed.), Film Sound: Theory and Practice. New York: Columbia University Press. 162-176.
Eisenstein, E. L. (2005). The Printing Revolution in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge
Press. [Original de 1983].
Eisenstein, S. (2002). O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [Original de 1947].
Eisenstein, S. (2002b). A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [Original de 1949].
Eisenstein, S., Pudovkin, V. & Alexandrov, G. (1928). Declaração. Sobre o futuro do cinema sonoro.
In S. Eisenstein, A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 225-227.
Elsaesser, T. & Buckland, W. (2002). Studying Contemporary American Film. London: Arnold.
Elsaesser, T. & Hagener, M. (2010). Film Theory: An Introduction Through the Senses. New York:
Routledge.
Epstein, J. (2012). Critical Essays and New Translations. Amsterdam : Amsterdam University Press.
Everest, F. A. & Pohlmann, K. C. (2009). Master Handbook of Acoustics (5th Ed.). New York:
McGraw-Hill.
178
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Fawell, J. (2008). The Hidden Art of Hollywood. In Defense of the Studio Era Film. Westport:
Praeger.
França, J.-A., Costa, H. A. & Pina, L. (1981). Introdução à Obra de Manoel de Oliveira. Lisboa:
Instituto de Novas Profissões.
Fulton, H. E., et al. (2005). Narrative and Media. New York: Cambridge University Press.
Geada, E. (2008). Palavra e Utopia: Padre António Vieira no Filme de Manoel de Oliveira. Revista do
Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Filosóficas da Universidade Estadual de Feira de
Santana, v.1, n.19, jan./jun. 2008. 95–111.
Gelfand, S. (2010). Hearing. An Introduction to Psychological and Physiological Acoustics (5th Ed.).
London: Informa Healthcare.
Giannetti, L. (2007). Understanding Movies (11th Ed.). New Jersey: Pearson Prentice Hall.
Giusy P. (2002). Sur la présence de la musique dans le cinéma dit muet. 1895. Mille huit cent
quatre-vingt-quinze, 38/2002. Disponível em http://1895.revues.org/218 [Último acesso em
17/04/2014].
Gomery, D. & Pafort-Overduin, C. (2011). Movie History: A Survey (2nd Ed.). New York: Routledge.
Gomery, D. (2005). The Coming of Sound: a history. New York: Routledge.
Gomes, W. (2004). La poética del cine y la cuestión del método en el análisis fílmico. Significação -
Revista de Cultura Audiovisual, v.31, n. 21, Jan. 2004. 85-105. Disponível em
http://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/65584/68196 [Último acesso em
14/08/2014].
Gorbman, C. (1987). Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana University
Press.
Grilo, J. M. (2006). O Cinema da Não-Ilusão: histórias para o cinema português. Lisboa:
Livros Horizonte.
179
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Gunning, T. (1989). "Primitive" Cinema: A Frame-up? Or the Trick's on Us. Cinema Journal, Vol. 28,
No. 2 (Winter, 1989). 3-12.
Handel, S. (2006). Perceptual Coherence: Hearing and Seeing. Oxford: Oxford University Press.
Heródoto. (2007). Histórias, Livro 1. Lisboa: Edições 70.
Holman, T. (2010). Sound for Film and Television (3rd Ed.). Burlington: Focal Press.
Howard, D. M. & Angus, J. (2006). Acoustics and Psychoacoustics (3rd Ed.). Burlington: Focal
Press.
Hutcheon, L. (2006). A Theory of Adaptation. New York: Routledge.
Iedema, R. (2008). Analysing film and television: a social semiotic account of Hospital: an Unhealthy
Business. In T. van Leeuwen & C. Jewitt (Ed.), Handbook of Visual Analysis. London: SAGE
Publications. 183-204.
Ihde, D. (2007). Listening and Voice. Phenomenologies of Sound (2nd Ed.). Albany: State University
of New York Press.
Ihde, D. (s/d). Ears and Eyes/Sights and Sounds. Edição online. Disponível em
http://wp.cairn.com/pocketpan/lib/exe/fetch.php?media=syllabus:eyesears_sightssounds_dihde.pdf
[Último acesso em 19/02/2014].
Jensen, K. B. (2006). Sounding the Media: An Interdisciplinary Review and Research Agenda for
Digital Sound Studies. Nordicom Review 27 (2006) 2. 7-33.
Junqueira, R. S. (Org.). (2010). Manoel de Oliveira: uma presença. São Paulo: Editora
Perspectiva/Fapesp.
Kalinak, K. M. (2010). Film Music. A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press.
Kassabian, A. (2001). Hearing Film: Tracking Identifications in Contemporary Hollywood Film Music.
New York: Routledge.
180
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Kivy, P. (2004). The Blackwell Guide to Aesthetics. Malden: Blackwell.
Kivy, P. (2007). Music, Language, and Cognition, and Other Essays in the Aesthetics of Music.
Oxford: Oxford University Press.
Kozloff, S. (1988). Invisible Storytellers: Voice-over Narration in American Fiction Film. Berkeley:
University of California Press.
Kozloff, S. (2000). Overhearing Film Dialogue. Berkeley: University of California Press.
Kracauer, S. (1960). Theory of Film: The Redemption of Physical Reality. Oxford: Oxford University
Press
Kramer, G., et al. (1997 ). Sonification Report: Status of the Field and Research Agenda. Disponível
em http://www.icad.org/websiteV2.0/References/nsf.html [Último acesso em 06/09/2014].
Kress, G. (2003). Literacy in the New Media Age. New York: Routledge.
Kress, G. & Leeuwen, T. van (2006). Reading Images: The Grammar of Visual Design (2nd Ed.).
Oxon: Routledge.
Lastra, J. (2000). Sound Technology and the American Cinema: Perception, Representation,
Modernity. New York: Columbia University Press.
Lavin, M. (2008). La parole et le lieu: Le cinéma selon Manoel de Oliveira. Rennes: Presses
Universitaires de Rennes.
Leeuwen, T. van (1999). Speech, Music, Sound. London: McMillan Press.
Leeuwen, T. van (2005). Introducing Social Semiotics. New York: Routledge.
Leeuwen, T. van & Jewitt, C. (Ed.). (2008). Handbook of Visual Analysis. London: SAGE Publications.
Lemière, J. (2005). Le cinéma et la question du Portugal après le 25 avril 1974. Matériaux pour
l'histoire de notre temps. 2005, N. 80. 48-60. Disponível em
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/mat_0769-3206_2005_num_80_1_1065
181
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
[Último acesso em 10/09/2014].
Lemière, J. (2008). Entre «bien entendre» [un texte romanesque au cinéma] et malentendu [dans la
réception portugaise du film]. In A. Oliveira, et. al. (Org.), Diálogos Lusófonos: Literatura e cinema.
Vila Real: Centro de Estudos em Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. 45-68.
Lemière, J. (2012) Manoel de Oliveira, cinéaste, docteur es humanités. Les Nouvelles d'Archimède,
la revue culturelle de l’Université Lille 1, #60. 31-33. Disponível em http://culture.univ-
lille1.fr/publications/la-revue/lna60 [Último acesso em 11/09/2014]
Lévy, D. (1992). Situation Esthétique du Cinéma (tese de doutoramento em Philosophie/Esthétique)
Paris: Université Paris-VIII. Disponível em http://1.static.e-
corpus.org/download/notice_file/1806426/DenisLevy.pdf. [Último acesso em 11/09/2014].
Lévy, D. (1995). Modernité et cinéma hollywoodien. Art du cinema, n.9. Disponível em
http://www.artcinema.org/spip.php?article43 [Último acesso em 11/09/2014].
Machado, A. (Org.). (2005). Manoel de Oliveira. São Paulo: Cosac Naify.
Maclachlan, D. L. C. (1989). Philosophy of Perception. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall.
Manvell, R. (1959). O Filme e o Público. Lisboa: Editorial Aster.
Marks, M. M. (1997). Music and the Silent Film. Oxford: Oxford University Press.
Martin, C. & Bial, H. (Ed.) (2000). Brecht Sourcebook. London: Routledge.
Martins, M. L. (1998). A biblioteca de Babel e a árvore do conhecimento. 0 Escritor, Revista da
Associação Portuguesa de Escritores, n. 11112. 235-240. Disponível em
http://hdl.handle.net/1822/30068 [Último acesso em 01/12/2014].
Martins, M. L. (2002) A Linguagem, a Verdade e o Poder. Ensaio de Semiótica Social. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Martins, M.L. (2007). Nota introdutória. A época e as suas ideias. Comunicação e Sociedade,
vol.12: Tecnologia e Figurações do Humano. 5-7. Disponível em
182
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
http://revistacomsoc.pt/index.php/comsoc/issue/view/89.
Martins, M. L. (dir.). (2007). Comunicação e Sociedade, vol.12: Tecnologia e Figurações do
Humano. Disponível em http://revistacomsoc.pt/index.php/comsoc/issue/view/89 [Último acesso
em 01/12/2014].
Martins, M. L. (2011). Crise no Castelo da Cultura: das estrelas para os ecrãs. Coimbra: Grácio
Editor. Disponível em http://hdl.handle.net/1822/29167 [Último acesso em 01/12/2014].
Martins, M. L. (2011b). O que podem as imagens. Trajecto do uno ao múltiplo. In M. de L. Martins,
et al. (Ed.), Imagem e Pensamento. Coimbra: Grácio Editor. 129-135. Disponível em
http://hdl.handle.net/1822/29165 [Último acesso em 01/12/2014].
Matos-Cruz, J. (2001). Manoel de Oliveira, Realizador. Revista Camões, número 12-13, Janeiro-
Junho de 2001. 132-160.
Maxfield, J.P. (1930). Technic of recording control for sound pictures. Cinematographic Annual, 1.
409-424.
McGill, A. C. (2008). The Contemporary Hollywood Film Soundtrack. Professional Practices and
Sonic Styles Since the 1970s (tese de doutoramento em Philosophy in English). Exeter: University of
Exeter.
McLuhan, M. (1962). The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man. Toronto: University of
Toronto Press.
McLuhan, M. (1994). Understanding Media: The Extensions of Man. Cambridge: The MIT Press.
[Original de 1964].
Merleau-Ponty, M. (2004). The World of Perception (Causeries). New York: Routledge. [Original
francês de 1948].
Metz, C. (1964). Le cinema: Langue ou Language. Communications, 4 (4). 52-90. Disponível em
www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/comm_0588-8018_1964_num_4_1_1028
[Último acesso em 08-06-2013].
183
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Milicevic, M. (2005) Film Sound Beyond Reality. 3rd Annual Hawaii International Conference on Arts
and Humanities, Waikiki, Hawaii. Disponível em
http://myweb.lmu.edu/mmilicevic/NEWpers/_PAPERS/papers.html [Último acesso em
11/09/2014]
Miranda, A. (2011). Pintura Movente: As Pinturas do Meu Irmão Júlio. Doc On-line, N.10, Agosto de
2011. 177-186. Disponível em http://www.doc.ubi.pt/10/analise_ana_miranda.pdf [Último acesso
em 09/09/2014].
Mitchell, W.J.T. (2007). There Are No Visual Media. In O. Grau (Ed.), Media Art Histories (pp.395-
408). Cambridge: The MIT Press.
Monteiro, J. C. (1981). O Passado e o Presente: Um necrofilme português de Manuel de Oliveira.
Diário de Lisboa, 10 de Março de 1972. [Reproduzido em J.-A. França, H. A. Costa & L. de Pina,
Introdução à Obra de Manoel de Oliveira. 69-74].
Morin, E. (1980). O Cinema ou o Homem Imaginário (2ª.Ed.). Lisboa: Moraes [Original de 1956].
Murch, W. (1994). Foreword. In M. Chion, Audio-Vision: Sound on screen. New York: Columbia
University Press. vii-xxiv.
Naumer, M. J. & Kaiser, J. (2010). Multisensory Object Perception in the Primate Brain. New York:
Springer.
Nogueira, L. (2007). Olhar para o Lado: Imagens Extremas no Cinema. XI Encontro Internacional
SOCINE, PUC - Rio de Janeiro. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-nogueira-cinema-
manoeloliveira.pdf [Último acesso em 09/09/2014].
Nowell-Smith, G. (1997). The Oxford History of World Cinema. Oxford: Oxford University Press.
Nudds, M. & O’Callaghan, C. (Ed.). (2009). Sounds and Perception: New Philosophical Essays.
Oxford: Oxford University Press.
O'Callaghan, C. (2007). Sounds: A Philosophical Theory. Oxford: Oxford University Press.
184
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
O'Callaghan, C. (2008). Perception and Multimodality. in Margolis, Samuels & Stich (Eds.), Oxford
Handbook of Philosophy and Cognitive Science. Oxford: Oxford University Press.
O'Callaghan, C. (2008b). Seeing What You Hear: Cross-Modal Illusions and Perception.
Philosophical Issues, 18(1). 316–338. Disponível em
http://ocallaghan.rice.edu/research/papers/ocallaghan-2008-Crossmodal.pdf [Último acesso em
22/07/2014].
O'Callaghan, C. (2009). Audition. In Symons & Calvo (Eds.), Routledge Companion to the Philosophy
of Psychology. New York: Routledge. Disponível em http://caseyocallaghan.com/research/papers/ocallaghan-
2009-Audition.pdf [Último acesso em 18/06/2014].
O’Brien, C. (2005). Cinema’s Conversion to Sound:Technology and Film Style in France and the
U.S. Bloomington: Indiana University Press.
Oliveira, M. de (1933). O cinema e o capital. Movimento, n°7, 1° de Outubro de 1933. [Citado em
M. Sales, Em Busca de um Novo Cinema Português. Covilhã: Livros LabCOM. 91].
Oliveira, M. de (1996). La planète du sage: Manoel de Oliveira (entrevista por Dominique Marchais).
Les Inrocks, le 02 octobre 1996. Disponível em
http://www.lesinrocks.com/1996/10/02/cinema/actualite-cinema/la-planete-du-sage-manoel-de-
oliveira-11233265. [Último acesso em 09/09/2014].
Oliveira, M. de (2001). Palavra e Cinema. In A. Preto (Ed.), Manoel de Oliveira: O Cinema Inventado
à Letra. Porto: Fundação de Serralves e Jornal Público. 158-161.
Oliveira, M. de (2003). Il regista filosofo (entrevista por Paolo Menzione). Cineuropa, 14/10/2003.
Disponível em http://cineuropa.org/it.aspx?t=interview&l=en&did=40120 [Último acesso em
09/09/2014].
Oliveira, M. de (2004). Vinte minutos com Manoel de Oliveira (entrevista por Ruy Gardnier).
Contracampo, 66. Disponível em http://www.contracampo.com.br/66/entrevistamanoeldeoliveira.htm
[Último acesso em 09/09/2014].
185
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Oliveira, M. de (2007). Nous sommes insignifiants (entrevista por Philippe Azoury). Libération, 11
Avril 2007. Disponível em http://next.liberation.fr/cinema/2007/04/11/nous-sommes-
insignifiants_90007 [Último acesso em 09/09/2014].
Oliveira, M. de (2007). Tenho furor de sobra (entrevista por Maria Bochicchio). Folha de S. Paulo,
15 de dezembro de 2007. Disponível em http://www.bresserpereira.org.br/Terceiros/07.12.Oliveira,Manoel-
Tenhofurordesobra.pdf [Último acesso em 09/09/2014].
Oliveira, M. de (2008). Uma entrevista com Manoel de Oliveira. In J. B. da Costa, Manoel de
Oliveira: Cem Anos. Lisboa: Cinemateca Portuguesa.
Oliveira, M. de (2011). Não olho para o que fiz. Olho para o que vou fazer (entrevista por João
Marcelino). Diário de Notícias online, 23 de Janeiro de 2011. Disponível em
http://www.dn.pt/inicio/artes/interior.aspx?content_id=1764177 [Último acesso em
11/09/2014].
Oliveira, M. de (2013). La palabra es imagen. Cinema Comparat/ive Cinema · Vol. I · Núm 3. ·
2013. 9. [Extracto da 'Entrevista a Manoel de Oliveira' (realizada por: Arroba, Álvaro; Diego, Israel;
Villamediana, Daniel Vázquez; Rodríguez, Hilario J.). Letras de Cine nº7, 2003]. Disponível em
http://www.ocec.eu/cinemacomparativecinema/pdf/ccc03/ccc03_documentos_oliveira_eng.pdf
[Último acesso em 11/09/2014].
Ong, W. J. (2012). Orality and Literacy: The Technologizing of the Word (30th anniversary edition
with additional chapters by John Hartley). New York: Routledge.
Paech, J. (2011). The Intermediality of Film. Acta Universitas Sapientiae, Film and Media Studyes, 4
(2011). 7–21.
Paes, J. (2001). Entre a Sinfonia e a Ópera. A música dos filmes da maturidade de Manoel de
Oliveira. Revista Camões, número 12-13, Janeiro-Junho de 2001. 90-97.
Pasnau, R. (1999). What is Sound?. The Philosophical Quarterly, Vol. 49, No. 196. 309-324.
Pasnau, R. (2000). Sensible Qualities: The Case of Sound. Journal of the History of Philosophy,
38:1, January 2000. 27-40.
186
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Phillips, W. H. (2009). Film, An Introduction (4th Ed.). Boston: Bedford/St. Martin’s.
Pisters, P. (2003). The Matrix of Visual Culture: Working with Deleuze in film theory. Stanford:
Stanford University Press.
Platão. (1972). Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural.
Platão. (2010). Teeteto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Platão. (s/d). Diálogos: Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias. Lisboa: Europa-América.
Plomp, R. (2002). The Intelligent Ear: On the Nature of Sound Perception. New Jersey: Lawrence
Erlbaum Associates, Inc.
Pomerance, P. (2012). The Eyes Have It: Cinema and the Reality E ectff . New Brunswick: Rutgers
University Press.
Pramaggiore, M. & Wallis, T. (2008). Film: A Critical Introduction (2nd Ed.). London: Laurence King
Publishing.
Preto, A. (2011). Manoel de Oliveira - Cinéma et Litterature (tese de doutoramento em Études
cinématographiques). Paris: Université Paris-Diderot.
Preto, A. (Ed.). (2008). Manoel de Oliveira - O Cinema Inventado à Letra. Porto: Fundação de
Serralves e Jornal Público.
Pudovkin, V. I. (1954). Film Technique and Film Acting. London: Vision Press.
Pudovkin, V. I. (1954). Film Technique and Film Acting. New York: Grove Press.
Rocha, P. (1981). Homenagem a Manoel de Oliveira. Programa n.º 427 do Cine-Clube do Porto, 10
de Outubro de 1963. [Citado em J.-A. França, H. A. Costa & L. de Pina, Introdução à Obra de
Manoel de Oliveira. 7].
Rodowick, D. N. (2007). The Virtual Life of Film. Cambridge: Harvard University Press.
187
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Roger, P. (2008). Oliveira, le tailleur de musiques. Colloque International Manoel de Oliveira –
L’invention cinématographique à l’épreuve de la littérature, 13 e 14 de Novembro de 2008,
organizado por Claude Murcia e António Preto. Comunicação inédita apresentada a 14 de
Novembro.
Rosenfeld, A. (2004). O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva.
Russolo, L. (2004). The Art of Noise (futurist manifesto, 1913). UbuClasics [Disponível em
www.ubu.com [Último acesso em 07/05/2013].
Sales, M. (2010). Em Busca de um Novo Cinema Português. Covilhã: Livros LabCOM. Disponível
em http://www.livroslabcom.ubi.pt/book/20 [Último acesso em 10/09/2014].
Schaeffer, P. (2003). Tratado de los Objetos Musicales. Madrid: Alianza Editorial. [Original: Traité
des objets musicaux, 1966].
Schafer, R. M. (1977). The Tuning of the World. Toronto: McClelland and Stewart.
Schafer, R. M. (2005). I Have Never Seen a Sound. XII International Congress of Sound and
Vibration, Lisboa, Julho de 2005. Disponível em http://www.arch.ksu.edu/seamon/Schafer06.htm
[Último acesso em 24/06/2014].
Silva, E. N. (2013). Cinema e provocação: um estudo do filme O meu caso, de Manoel de Oliveira.
Vocábulo: Revista de Letras e Linguagens Midiáticas, Quarto volume – primeiro semestre de 2013.
Disponível em http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/pdf/eduardo.pdf
[Último acesso em 24/06/2014].
Sontag, S. (1966). Film and Theatre. The Tulane Drama Review, Vol. 11, No. 1 (Autumn, 1966). 24-
37.
Sontag, S. (1990). Against Interpretation and Other Essays. New York: Picador.
Stam, R., et al. (2005). New Vocabularies in Film Semiotics: Structuralism, post-structuralism and
beyond. New York: Routledge.
Sterne, J. (2012). The Sound Studies Reader. New York: Routledge.188
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Tarín, F. J. G. (2006). 'El análisis del texto fílmico'. Documento de apoio a um conjunto de sessões
que o autor efectuou na Universidade da Beira Interior no mês de Março de 2006. Disponível em
http://www.bocc.ubi.pt/pag/tarin-francisco-el-analisis-del-texto-filmico.pdf [Último acesso em
06/09/2014].
Tarín, F. J. G. (2010). El análisis de textos audiovisuales: Significación y sentido. Santander:
Shangrila Textos Aparte. Disponível em http://www.shangrilaediciones.com/Materiales3-El-Analisis-
Textos-Audiovisuales.pdf [Último acesso em 11/09/2014].
Tarkovski, A. (1998). Esculpir o Tempo (2ª Ed.). São Paulo: Martins Fontes.
Taylor, R. & Christie, I. (Ed.). (1991). Inside the Film Factory: New approaches to Russian and
Soviet cinema. London: Routledge.
Thom, R. (2007). Acoustics of the Soul. Offscreen, Vol. 11, Nos. 8-9, Aug/Sept 2007. Disponível
em http://offscreen.com/pdf/thom_diegesis.pdf [Último acesso em 11/09/2014].
Thompson, K. & Bordwell, D. (2003). Film History An Introduction (2nd Ed.). Boston: McGraw-Hill.
Tomatis, A. A. (1995). Entretien avec Alfred Tomatis (entrevista por V. Ostria). Cahiers du cinéma,
Hors Série - 18 - Musiques au cinéma. 84-85.
Tomatis, A. A. (1999). A Noite Uterina. Lisboa: Instituto Piaget.
Toole, F. (2008). Sound Reproduction: The Acoustics and Psychoacoustics of Loudspeakers and
Rooms. Burlington: Focal Press.
Turner, G. (2003). Film as Social Practice: Studies in Culture and Communication (3rd Ed.). New
York: Routledge.
Ventola, E., Charles, C. & Kaltenbacher, M. (Ed.). (2004). Perspectives on Multimodality.
Amsterdam: John Benjamins Publishing Company.
Vertov, D. (2011). Memórias de un cineasta bolchevique. Madrid: Capitán Swing.
189
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
Visceglia, T. (2006). Francisca e Fanny Owen: Um caso singular de tradução intersemiótica. In G.
Benelli & G. Tonini (a cura di), Studi in ricordo di Carmen Sánchez Montero, vol. 2. Trieste: EUT
Edizioni Università Trieste. 569-577. Disponível em http://hdl.handle.net/10077/7986 [Último
acesso em 10/09/2014].
Weis, E. (1982). The Silent Scream: Alfred Hitchcock's Sound Track. Madison: Fairleigh Dickinson
University Press.
Weis, E. & Belton, J. (Ed.). (1985). Film Sound: Theory and Practice. New York: Columbia University
Press.
Wierzbicki, J. E. (2008). Film Music: A History. New York: Routledge.
Wisnik, J. M. (1999). O Som e o Sentido: Uma outra história das músicas (2ª. Ed.). São Paulo:
Companhia das Letras.
Wollen, P. (1979). Signos e Significação no Cinema. Lisboa: Livros Horizonte.
Wulf, C. (2007). O Ouvido. Ghrebh, n.09, Março - Maio de 2007. Disponível em
http://revista.cisc.org.br/ghrebh/index.php [Último acesso em 11/09/2014].
Xavier, I. (Org.). (1983). A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal.
Zagalo N., Barker A., Branco V. (2005). Princípios de uma Poética da Tristeza do Cinema. In Actas
do 4º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação – SOPCOM, Aveiro. 1123-
1133. Disponível em https://sites.google.com/site/nelsonzagalo/publications [Último acesso em
01/12/2014].
Zagalo, N. (2009). Emoções Interactivas. Do cinema para os videojogos. Coimbra: Grácio Editor.
Disponível em http://hdl.handle.net/1822/27674 [Último acesso em 01/12/2014].
Zavala, L. (2005). Del cine clásico al moderno. Razón y Palabra, Número 46, año 10, agosto-
septiembre 2005. Disponível em www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n46/lzavala.html [Último
acesso em 01/05/2014].
Zettl, H. (2011). Sight, Sound, Motion: Applied Media Aesthetics (6th Ed.). Boston: Wadsworth.190
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
FILMOGRAFIA DE MANOEL DE OLIVEIRA
1931 - Douro, Faina Fluvial, 30'
música: Luís de Freitas Branco (1934)
som: Luís V. Frazão (1934)
música: Emmanuel Nunes (1994)
1932 - Estátuas de Lisboa, 8' [documentário incompleto]
1932 - Hulha Branca: Empresa Hidro-Eléctrica do Rio Ave, 7'
1937 - Os Últimos Temporais, Cheias do Tejo [o realizador rejeita a autoria]
1938 - Miramar, Praia Das Rosas, 9'
locução: Fernando Pessa
música: Carlos Calderón
1938 - Em Portugal Já Se Fazem Automóveis/Já Se Fabricam Automóveis Em Portugal, 9'
locução: Fernando Pessa
música: Carlos Calderón
som: Francisco A. Quintela
1941 - Famalicão, 23'
locução: Vasco Santana
música: Jaime Silva Filho
som: Francisco A. Quintela
1942 - Aniki-Bobó, 102'
música: Jaime Silva Filho
letra canções: Alberto de Serpa
canções por: Manuel de Azevedo
191
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
som: Luís Sousa Santos
assistente som: Francisco Mesquita, Mário Malveira
estúdios som: Tobis Portuguesa
1956 - O Pintor e a Cidade, 32'
música: Luís Rodrigues
motivos tradicionais: Rebelo Bonito
improvisações ao orgão: Ino Sanvini
canções por: Orfeão do Porto, Vírgílio Pereira (dir.), Madrigalistas
som: Alfredo Pimentel, Joaquim Amaral
mistura: Heliodoro Pires
1958 - O Coração [documentário incompleto]
1959 - O Pão, 58', (2ª versão em 1964: 25')
som: Fernando Jorge
assistente som: António Ribeiro
transcrição do magnético para óptico: Enrique Dominguez
estúdios som: Nacional Filmes
1963 - O Acto da Primavera, 94'
voz do Narrador: Manoel de Oliveira
som: Manoel de Oliveira
op. som (referência): Maria Isabel de Oliveira, Fernando Jorge
assistente som: João Barbosa
1963 - A Caça, 26'
música: Joly Braga Santos
som: Manoel de Oliveira
op. som: Fernando Jorge, Manuel Fortes
192
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
1964 - Villa Verdinho, Uma Aldeia Transmontana
locução: Manoel de Oliveira (genérico dito por Manoel de Oliveira, em off )
canções: José Afonso (Grândola, Vila Morena )
observações: inclui música rock de grupos estrangeiros, da época
1965 - As Pinturas do Meu Irmão Júlio, 15'
música: Carlos Paredes
som: Abreu e Oliveira
1971 - O Passado e o Presente, 115'
música: Felix Mendelssohn (Sonho de uma Noite de Verão )
consultor musical: João Paes
estúdios som: Valentim de Carvalho, Nacional Filmes
1974 - Benilde ou a Virgem-Mãe, 110'
música: João Paes, Olivier Messiaen (Sept Haikai-Gagaku )
dir. de som: João Diogo
estúdios som: Valentim de Carvalho
1978 - Amor de Perdição, 252' (versão televisiva em seis episódios: 287')
música: João Paes, Georg Friedrich Haendel (Sonata Opus 5 )
exec. musical: Ricardo Ramalho, João Nogueira, Adolf Thorn
som: Carlos Alberto Lopes, João Diogo
op. som: José de Carvalho
assistente som: Carlos Aljustrel, Mário Rosa
mistura: Luís Barão
estúdios som: Valentim de Carvalho, Nacional Filmes
1981 - Francisca, 116'
música: João Paes; Szymanowski, Verdi, Donizetti
som: Jean-Paul Mugel
assistente som: J. Pedro Jacobetty, Pedro Caldas
193
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
mistura: Jean-Paul Loublier
estúdios som: Nacional Filmes, Studios Billancourt (Paris)
1982 - Visita: Memórias e Confissões, 70' [autobiográfico, a ser exibido após a morte do autor]
música: Ludwig Van Beethoven
som: Joaquim Pinto
op. som: Vasco Pimentel
1983 - Lisboa Cultural, 58'
música (guitarra): Duarte Costa
canções: Amália Rodrigues (fado)
som: Joaquim Pinto, Vasco Pimentel
op. som: Pedro Caldas
1983 - Nice... À Propos de Jean Vigo, 58'
som: Jean-Paul Mugel
mistura: Gilles Missir
1985 - Simpósio Internacional de Escultura em Pedra. Porto 1985, 60'
locução: Diogo Dória
som: Anselmo Costa
1985 - O Sapato de Cetim/Le Soulier de Satin, 415'
música: João Paes, Lutoslawski (Livre Pour Orchestre ), Árabo-Andaluza
dir. musical: Pedro Caldeira Cabral
som: Joaquim Pinto
mistura: Jeal-Paul Loublier
1986 - O Meu Caso/Mon Cas, 87'
música: João Paes
dir. musical: Armando Vidal
som: Joaquim Pinto
194
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
assistente som: Gita Cerveira
mistura: Jeal-Paul Loublier
1987 - A Propósito Da Bandeira Nacional, 8'
locução: Manuela de Freitas, Luís Miguel Cintra
som: Joaquim Pinto
1988 - Os Canibais, 90'
música: João Paes, N. Paganini
supervisão musical: João Paes
exec. musical: Orquestra Gulbenkian
dir. musical: Max Rabbinovitj [ou Rabinovich]
dir. musical artística: Ana Neves Ferreira (actores), Armando Vidigal (cantores)
som: Joaquim Pinto
efeitos: Gilles Blast
mistura: Jeal-Paul Loublier, William Flageolet
1990 - Non ou a Vã Glória de Mandar, 112'
música: Alejandro Masso
participação: Coro de Câmara de Lisboa, Teresita Gutiérrez Marques (dir.)
canções por: Teresa Salgueiro (Deusa Dione )
som: Gita Cerveira
perche: Paulo Cerveira, Yves Grasso
ruídos: J.-P. Lelong, Mário Belchior, Eric Ferret
mistura: Jean-Paul Loublier
estúdios som: Aura Films
auditório: Philippe Sarde
1991 - A Divina Comédia, 140'
som: Gita Cerveira
ruídos: Jacques Dufour
mistura: Jean-Paul Loublier
195
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
1992 - O Dia Do Desespero, 76'
música: Richard Wagner
som: Gita Cerveira, Dominique Dalmasse
assistente som: Pierre Yves Le Mee
ruídos: Alain Levi
assistente ruídos: Eric Eratostene
montagem som: Christophe Winding
mistura: François Musy, Hans Kunzi
estúdios som: Archipel Productions (repicagem), Schwarz Filmtechnik (mistura)
1993 - Vale Abraão, 187'
música: Beethoven, Debussy, Fauré, Schumann, Chopin, Byas, Hawkins
exec. musical (ao piano): Nuno Vieira de Almeida
som: Henri Maikoff
assistente de som: Olivier Varene
ruídos: Marie-Jeanne Wickmans
montagem som: Christophe Winding
pré-mistura: Thierry Delor
mistura: Hans Kunzi
dobragens: Kikoine
estúdios som: Schwartz Filmtechnik
1994 - A Caixa, 93'
música: Katchaturian (Dança do Sabre ), Schubert (Ave-Maria )
temas musicais: Isabel Ruth (A Gaivota, Ai da Vida, Uma Mulher Quando Cai )
dir. de som: Jean-Paul Mugel
ruídos: Marie-Jeanne Wickmans
assistentes som: Pascal Metge, Dora Nogueira
mistura: Jean-François Auger
estúdios som: Les Auditoriums de Joinville
196
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
1995 - O Convento, 91'
música: Igor Stravinski, Sofia Gubaidulina, Toshiro Mayuzumi
dir. de som: Jean-Paul Mugel
op. som: Jean-François Auger
assistente som: Olivier Varenne
mistura: Jean-François Auger
ruídos: Nicolas Becker, Assia Dnednia
estúdios som: DCA, Les Auditoriums de Joinville (repicagem)
1996 - En une Poignée de Mains Amies, 25'
leitura de poema: Manoel de Oliveira, Jean Rouch
som: François Didio
1996 - Party, 91'
canções por: Irene Papas
som: Henri Maikoff
assistente som: Olivier Varenne
ruídos: Alain Levy
pós-sincronização: Michel Filippi
mistura: Jean-François Auger
estúdios som: DCA, Les Auditoriums de Joinville (repicagem)
1997 - Viagem Ao Princípio Do Mundo, 95'
música: Emmanuel Nunes
som: Jean-Paul Mugel
perche: Pedro Melo
assistentes som: Pedro Melo, Assia Dnednia (ruídos)
mistura: Jean-François Auger
estúdios som: DCA, Les Auditoriums de Joinville (repicagem)
1998 - Inquietude, 115'
música: Serge Rachmaninov, Aristide Bruant, popular grega
197
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
arranjos para piano: José Luís Borges Coelho, Luís Lopes, Jean-François Auger
som: Philippe Morei
assistente som: Yvan Dacquay
ruídos: François Lepeuple, Olivier Marlangeon (assist.)
misturas: Jean-François Auger
1999 - A Carta/La Lettre, 100'
música: Pedro Abrunhosa (excertos de concertos), Maria João Pires (piano)
canções por: Pedro Abrunhosa
som: Jean-Paul Mugel
assistente som: Yves-Marie Omnes
bruitage: Pascal Maziere
misturas: Jean-François Auger
estúdios som: Audis de Joinville
consultor Dolby Sound: Francis Perreard
2000 - Palavra e Utopia, 132'
som: Henri Maikoff
mistura: Jean-François Auger
2001 - Vou Para Casa/Je Rentre a la Maison, 90'
música: Richard Wagner, Frédéric Chopin, Léo Ferré, Hubert Giraud, Jean Dréjac, A. Pilmer
som: Henri Maikoff
perche: Yves Marie Omnes
mistura: Jean-François Auger
2001 - Porto da Minha Infância, 62'
narração: Manoel de Oliveira;
som: Henri Maikoff
mistura: Jean-François Auger
198
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2002 - O Princípio da Incerteza, 90'
som: Philippe Morel
mistura: Jean-François Auger
2002 - Momento, uma canção de Pedro Abrunhosa, 5'
música: Pedro Abrunhosa & Bandemónio
2003 - Um Filme Falado, 96'
som: Philippe Morel
mistura: Jean-François Auger
2005 - O Quinto Império, Ontem Como Hoje, 127'
som: Philippe Morel
mistura: Jean-François Auger
2005 - Espelho Mágico, 137'
som: Henri Maikoff
mistura: Jean-Pierre Laforce
2005 - Do Visível ao Invisível, 6'
2006 - Belle Toujours, 70'
som: Henri Maikoff
montagem som: Mikaël Barre
mistura: Jean-Pierre Laforce
2006 - O Improvável Não é Impossível, 19'
som: Henri Maikoff
2007 - Rencontre Unique, 3'
(mudo)
199
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2007 - Cristóvão Colombo: O Enigma, 75
música: José Luís Borges Coelho
som: Henri Maikoff
mistura: Jean-Pierre Laforce
2008 (1957-2008) - Romance de Vila do Conde, 8'
poema de José Régio dito por Luís Miguel Cintra
som: Philippe Morel
2008 (1958-2008) - O Poeta Doido, o Vitral e a Santa Morta, 7'
poema de José Régio dito por Luís Miguel Cintra
som: Philippe Morel
2009 - Singularidades de Uma Rapariga Loura, 63'
música: Claude Debussy («Arabesque») por Ana Paula Miranda;
som: Henri Maikoff
mistura: Richard Casals
2009 - Painéis de São Vicente de Fora: Visão Poética, 14'
som: Henri Maikoff
mistura: Branko Neskov
2010 - O Estranho Caso de Angélica, 95'
som: Henri Maikoff
montagem som: Elsa Ferreira
mistura: Joan Olivé
2012 - O Gebo e a Sombra, 91'
som: Henri Maïkoff
montagem som: Tiago Matos
mistura: Tiago Matos
200
O Meu Ponto de Vista é um Ponto de Escuta. O Poder do Som nos Filmes de Manoel de Oliveira
2014 - O Velho do Restelo, 19'
som: Henri Maïkoff
montagem som: Jean-Christophe Winding
mistura: Tiago Matos
201