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TERESINA E SEUS DRAMAS: TRANSPORTE COLETIVO, TRÁFEGO E TRANCO
(DÉCADA DE 1970)1
ALLAN RICELLI RODRIGUES DE PINHO2
CLÁUDIA CRISTINA DA SILVA FONTINELES3
RESUMO: O presente estudo busca compreender como ocorreram as transformações no
transporte coletivo da cidade de Teresina no início da década de 1970 e, sua relação com o
projeto de modernização da malha viária da capital, no período recortado. O estudo procura
ainda, analisar os conflitos e tensões existentes em torno das demandas de transporte coletivo
apresentadas nos periódicos locais, procurando identificar o papel do transporte coletivo nas
transformações dos espaços da cidade, em um período marcado por discursos de progresso e
modernização. A partir da metodologia da história oral, da pesquisa documental e
hemerográfica nos periódicos da época, buscou-se ainda entender a participação dos vários
grupos sociais ligados aos transportes coletivos e os traços que marcaram e constituíram a
memória dos transportes na capital no início dos 1970.
Palavras chaves: Cidade; Memória; Teresina; Transporte Coletivo.
1. Transporte e modernização
Teresina na década de 1970 estava em pleno processo de expansão, enfrentando
muitos desafios de estruturação urbana, e um deles era justamente, estabelecer um sistema de
transporte4coletivo eficiente, e uma malha viária que pudesse atender as demandas da
1 Trabalho apresentado no ST 02 – A Memória e a Escrita da História da Cidade: Narrativas orais e literatura
memorialística do XI Encontro Regional Nordeste de História Oral – Ficção e poder: oralidade, imagem e
escrita, ocorrido de 9 a 13 de maio de 2017.
2 Mestrando(a) do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí, sob
orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Cláudia Cristina da Silva Fontineles. Teresina-PI. E-mail:
allanricelli2010@hotmail.com. 3 Dra. em História (UFPE). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Piauí e Coordenadora
de História PIBID/CAPES da Universidade Federal do Piauí. Atuando na Pós-Graduação em História do Brasil. 4 Sistema de transporte público ou de transporte coletivo são meios de transportes fornecidos por empresas
públicas ou privadas onde numa cidade é providenciado o deslocamento de pessoas de um ponto a outro dentro
da área dessa cidade. As áreas urbanas de médio e grande porte geralmente são dotadas de algum tipo de
transporte coletivo seja administrado pela prefeitura local ou através de concessão de licenças muitas vezes
subsidiadas. O transporte coletivo urbano é fornecido principalmente para servir àqueles que não possuem meios
de adquirir um veículo para sua locomoção e precisam percorrer longas distâncias até o seu local de trabalho e
também para diminuir a poluição que esses carros provocariam. O transporte coletivo iniciou-se em 1662 na
França, criado por Pascal e funcionou por 15 anos até o Parlamento restringir o uso apenas àqueles que tivessem
“condições” já que a tarifa foi aumentada de cinco para seis centavos. Disponível em:<
http://www.naganuma.com.br/artigos-publicados/51-jornal-a-gazeta-do-acre/91-transporbte-publico-ou
coletivo.html> Acesso em: 07 de mar. 2016
2
população. Nesse sentido, é importante analisar se a modernização desejada no período
atingiu o sistema de transporte coletivo da capital, ou seja, se este sofreu transformações.
O transporte urbano, fator fundamental para garantir que uma cidade desenvolva-se,
era temática recorrente nos debates jornalísticos e da população, que questionavam o
funcionamento do sistema de coletivos urbanos da capital. Para José Carlos Melo (1981, p.
232) ”as cidades só poderão ser aproveitadas em sua plenitude pelas oportunidades de
trabalho, de cultura e de lazer que nelas se desenvolvem, se forem bem servidas de transportes
urbanos”.
Em 1970, na edição do Jornal O Dia, de 10 de abril, um artigo intitulado ‘Coletivos e
Absurdos’ tem como objetivo contar sobre o desenvolvimento da capital e criticar alguns
setores que não estariam acompanhando as transformações e ‘aspectos de metrópole’ da
cidade, como o setor de transportes coletivos, “somos, talvez a cidade mais desassistida do
País em matéria de transportes coletivos. Além de poucos veículos, as empresas que se
dedicam à exploração desse ramo de atividades não prestam um serviço à altura, à
comunidade. As tarifas são extorsivas”. (O Dia. Teresina. n. 2.967. 10 de abr. 1970. p.8.). De
acordo Francisco Alcides do Nascimento (2009, p.6) “na década de 1970, Teresina
encontrava-se entre as capitais brasileiras com elevadas taxas de crescimento populacional,
em um cenário urbano recheado de problemas, contradições e desigualdades de ordem
econômica e social”, uma dessas dificuldades passava pela organização do sistema de
coletivos na capital.
Embora Teresina tenha apenas cerca de 110 ônibus servindo como transporte
coletivo na zona urbana, eles dão muitas dores de cabeça. Nesta boa terra nenhum
motorista de ônibus obedece ao que manda o trânsito em referência a paradas.
Apanha e solta passageiros no meio da rua e em qualquer lugar, congestiona todo o
trânsito; confia-se que está conduzindo um carro que suporta toda pancada e assim
vai vivendo, constantemente colocando em perigo a vida dos outros. As paradas
indicativas são ao que parece, simplesmente para efeito de ornamentação, e que
mau gosto terrível, pois não são obedecidas. O motorista parece que para levar
maior número de passageiros possível, para em qualquer lugar, basta ver alguém
dando sinal, seja para subir ou para descer. O povo realmente é deseducado e quer
que o coletivo pare onde o passageiro estar, pois é indolente e não se dar ao
trabalho de caminhar 20 ou 30 metros para esperar numa parada. Entretanto, são
próprios motoristas, visando o bem comum, os encarregados de educar este povo.
(O Dia. Teresina. n. 3.053. 26/27 de jul. 1970. s/p)
A capital piauiense na primeira metade do século XX era considerada uma pequena
cidade, ainda com ares interioranos, com péssimas condições de iluminação, sem asfalto,
esgoto sanitário ou sistema de comunicação, e precário serviço de abastecimento de água nos
bairros, o que não difere segundo Nascimento (2015, p. 127), Teresina ainda das primeiras
décadas do século XX, onde “as ruas estreitas, sujeira e presença de animais eram comuns”.
3
Porém, por causa do modelo econômico escolhido pelos governos militares da época, a cidade
estava recebendo muitos investimentos, o chamado “milagre econômico”, que apresentou
mudanças na área urbana da cidade. Em razão do grande fluxo de migrantes que Teresina
recebia e da enorme expansão demográfica, houve o aumento dos problemas sociais, como
por exemplo, dificuldades habitacionais. Para a historiadora Cláudia Cristina da Silva
Fontineles, sobre este período de euforia nacional, que reverberou em Teresina na década de
1970, é preciso entender que:
É indissociável entender o investimento em urbanização ocorrido na capital
piauiense e os caminhos assumidos pelo Regime Autoritário implantado no Brasil
após o Golpe Civil-Militar ocorrido em 1964, que passou a semear e a difundir o
discurso de euforia na construção de um Brasil Gigante, que teria no crescimento
urbano e no investimento maciço em obras arquitetônicas de grande envergadura e
impacto social como símbolo maior de sua marca na história do país.
(FONTINELES, 2016, p. 170)
O período estudado marca um momento de explosão demográfica e crescimento
espacial de Teresina, fazendo com que não só o sistema de transporte coletivo, mas também a
malha viária do município tenha que assumir uma nova organização e estruturação para
atender a demanda da época. Para Fontineles (2016, p.172) “a cidade de Teresina foi
entrecortada e seduzida por construções e tornou-se o palco central da apropriação de um
projeto proposto, através da (re)significação do espaço físico, dotando-o de signos que o
transformaram em ambientes repletos de valores simbólicos”. Sobre a política de
modernização posta em prática nos anos de 1970, Nascimento e Regianne Lima Monte (2009)
revelam que:
As intervenções eram tanto no sentido de dotar a cidade, de abastecimento de água
e luz regular, desobstruir o tráfego de veículos- com abertura ou duplicação de ruas
e avenidas, que estavam recebendo cobertura asfáltica – e criar símbolos
modernizadores da presença do poder público, como no sentido de reformar
logradouros públicos e construir edifícios de grande porte, passando para seus
habitantes a sensação de que a cidade mudará sua configuração, adquirindo novos
ares, em consonância com novos tempos. (NASCIMENTO; MONTE, 2009, p. 123)
Neste momento de crescimento da cidade, as gestões municipais e estaduais aliaram-se
em um projeto de modernização que pretendia colocar Teresina, ao lado das capitais mais
desenvolvidas do país na época, como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Este modelo de
desenvolvimento na capital estava de acordo com uma política modernizadora que seguia um
modelo nacional. Sobre a busca pelo moderno Marshall Berman (1986, p. 15) afirma que a
“experiência ambiental da modernidade, anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de
4
classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a
modernidade une a espécie humana”. Os indivíduos buscam constantemente a modernidade,
pois estes acreditam que o moderno diminui distâncias e espaços dentro da sociedade.
A presença de novos ônibus nas frotas locais e compra de veículos nos principais
polos metropolitanos do país, alimentava os sonhos do progresso na capital tanto para
gestores como cronistas da época, “pois a existência de ônibus modernos nas ruas tem o valor
de um apresentável cartão de visita” (O Dia. Teresina. n. 2.967. 10 de abr. 1970. p.8). Vale
destacar, que os cronistas da época cobravam por melhorias nos ônibus não apenas para
atender a população e mobilidade urbana de Teresina, tratava-se com a mesma relevância a
questão estética, as impressões que a cidade passava, pois ônibus velhos não trariam ares
modernos para a capital do Estado, eles estavam tornando-a feia e não atrativa, sendo urgente
a mudança. No entanto, a modernidade desejada pelos cronistas e gestores da cidade, segundo
Antonio Paulo Rezende (2015), não poderia se concretizar sem um processo de modernização
mais abrangente.
A cidade apresenta agora um aspecto bonito, com a presença diuturna em suas ruas
principais, de ônibus luxuosos, devendo a empresa que isso possibilite a todos,
especialmente pelas autoridades para que ela possa continuar melhorando cada dia
mais, o padrão de atendimento que vem mantendo, aos usuários, bem como
concorrendo para o desaparecimento total, do panorama citadino, daqueles carros
velhos, obsoletos que, além de enfeiarem, sobretudo a cidade, não oferecem
condições de conforto e segurança aos passageiros. (O Dia. Teresina. n. 2. 969.
12/13 de abr. 1970. p. 3).
Assim, é preciso entender a relação do transporte coletivo com os vários espaços da
cidade, pois estas relações vão muito além de construções materiais, existem sentimentos,
abstrações da realidade que resinificam espaços a partir da análise de contextos e memórias
dos que fizeram parte daquela construção, além de que estudar este campo é também falar das
experiências de si mesmo e de suas relações sociais com o espaço urbano.
2. Múltiplos olhares da cidade
Olhar a cidade com sensibilidade e suas múltiplas representações, é importante, pois
ela deve ser sentida a partir de percepções que transcorrem o real, ou seja, passam também
por um prisma de emoções e sentimentos representados pelo viver urbano, como afirma
Nascimento (2007, p. 1) “escrever a história da cidade é, sobretudo, resultado do fascínio que
5
ela exerce nos indivíduos e da necessidade de compreender a complexidade da malha
urbana”.
Debruçar-se sobre os estudos que envolvem a relação História e Cidade, servem- nos
para que a estreita relação entre os indivíduos e a cidade, não fique esquecida, ou mesmo
apagada. Ao se fazer a história das cidades, o pesquisador se aproxima da afirmação de
Sandra Jatahy Pesavento (2007, p.14), ao dizer que a cidade pulsa de vida e que isto a faz
tornar ligada ao homem, “cidade, lugar do homem, cidade, obra coletiva que é impensável no
individual, cidade, moradia de muitos, a compor um tecido sempre renovado de relações
sociais”.
De acordo com Milton Santos (2009, p.26) “a cidade é o lugar privilegiado do impacto
das modernizações, já que estas não se instalam cegamente, mas nos pontos do espaço que
oferecem uma rentabilidade máxima”. A modernidade, no âmbito do espaço urbano, portanto
traz consigo consequências e até mesmo segregações no acesso aos benefícios dessa
modernização. Sobre as intervenções dos gestores, no processo de modernizar Teresina, é
necessário compreender que:
No início da década 1970, o governador Alberto Silva (1971-1974) e o prefeito Joel
Ribeiro; o governador Dirceu Arcoverde (1975-1979) e o prefeito Wall Ferraz
orientaram suas ações no sentido de estruturar a cidade para que se tornasse
moderna e desenvolvida. Joel Ribeiro para implantar o sistema viário, adotou uma
postura segregacionista, promovendo o deslocamento de várias famílias para a
zona norte, em áreas que não apresentavam condições básicas para serem
habitadas: faltava água tratada, energia elétrica, calçamento, hospitais, transporte
coletivo. O deslocamento para o centro da cidade era realizado a pé ou de bicicleta,
e os gêneros alimentícios adquiridos no mercado central eram transportados no
lombo de animais, no ombro ou na cabeça dos moradores da periferia cidade. A
roupa era lavada nas águas dos rio Poti e Parnaíba. Desse modo, os habitantes
moravam em Teresina, mas desenvolviam práticas próprias do campo.
(NASCIMENTO, 2009. p. 7)
Com isso entende-se que os espaços urbanos são fragmentados, articulados, cheios de
símbolos e refletem os condicionantes sociais, produzidos e proferidos pelos agentes, que
produzem e consomem o espaço. Os caminhos para o estudo das cidades perpassam, de
acordo com Roberto Lobato Corrêa (1989, p. 5) pelo interesse em “conhecer e atuar sobre a
cidade derivando do fato de ser ela o lugar onde vive parcela crescente da população [...] onde
os locais de investimentos são maiores [...] e mais, de ser o principal lugar dos conflitos
sociais”.
O campo história e cidade permite contemplar os mais diversos olhares sobre a
sociedade e a construção desta como ambiente de autotransformação e transformação, de
continuidades e rupturas, de significações e ressignificações, isto se deve a suas múltiplas
6
facetas que só podem ser analisada a partir de olhares sensíveis, que vejam além do material,
do objeto concreto, que trate a cidade como história, e uma história repleta de significados,
que marcaram o passado e este por sua vez ecoam no presente.
Dentro do contexto urbano de uma cidade, existem múltiplas realidades contidas
naquele espaço, como é o caso de Teresina na década de 1970, onde múltiplos olhares
recaíram sobre aquela capital em crescimento, sendo preciso atentar segundo Nascimento
(2007) que “essa multiplicidade que insiste em ser reduzida ao uso no âmbito dos discursos
que dizem a cidade. Neles, é privilegiada a cidade projetada, desejada e desejável expressa
pelos administradores pelos cronistas que atuavam nos principais jornais da cidade, no
período”. Desse modo o ser humano como revela Pesavento (2007) faz acontecer o urbano,
ele reconstrói, recria, remodela os traços da cidade, através de sua ação cria outras cidades
seja por meio, de seu pensamento ou de suas ações.
Uma das facetas que compõe a história das cidades é sem dúvida o transporte coletivo
urbano, onde este, segundo Antônio Clóvis Pinto Ferraz (1999), é um serviço essencial nas
cidades, desenvolvendo papel social e econômico de grande importância, pois democratiza a
mobilidade na medida em que facilita a locomoção de pessoas.
3. O ônibus e o povo: a memória dos transportes nos início dos anos 1970 através da
História Oral
Em meados da década de 70, Teresina contava com seis empresas de ônibus operando
em vinte e duas linhas, eram elas, Auto Viação5 Rio Poty, Empresa Manuel Morais, Auto
Viação Teresinense Ltda., Auto Viação Coimbra Ltda, Empresa Manuel Ribeiro, Auto Viação
Primavera Ltda. consideradas ainda insuficientes para abranger todo o espaço urbano da
capital, segundo relatos de moradores e reclamações presentes nos periódicos da época.
Bairros como Buenos Aires, Água Mineral, Parque Piauí, Primavera, São João e muitos
outros, sofriam pela escassez de veículos que atendessem as necessidades dos moradores, com
grande demora entre uma condução e outra, precariedade da frota e veículos em muitos casos
5 A especificação Auto-Viação Ltda., presente nas designações jurídicas das empresas, significa, nos registros
das atividades comerciais, uma forma de propriedade que não pretende ser extensiva. Assim, o “para todos”
volta a restringir-se no que diz respeito à propriedade: a viação urbana é limitada, pois pertence a um grupo de
pessoas geralmente unidas por laços familiares embora possa ser constituída também como sociedade anônima.
Limitado é também seu alcance: ela transporta sujeitos em determinada localidade. Mas isso não impede os
empresários do ramo de exercer seu ofício em várias viações ou cidades, ou em outras atividades de transporte,
nem lhes proíbe investir em setores diferentes. O limitado da viação torna-se, assim, relativo. (BRASILEIRO;
TURMA, 1999, p.22)
7
cheios. “Os transportes coletivos, bem distribuídos para todos os bairros da cidade e com
horários certos de partida e chegada em pontos determinados, são de grande serventia para a
população, principalmente quem trabalha no centro e reside em outros bairros”. (Estado do
Piauí. n° 1230. 25 de jan. 1970. s/p)
Devido à precariedade do sistema de transporte oferecido, e em muitos momentos pelas
elevadas tarifas cobradas por esse serviço, muitos moradores utilizavam de alternativas, como
bicicletas, dados relatados em relatório realizado pela Prefeitura na década de 1970. “A
população de baixa renda serve-se principalmente das bicicletas, que, de forma definitiva,
incorporou-se a paisagem de Teresina, onde estimava-se existir, em 1977, um total de 25.000
veículos desse tipo.”
Figura 1: Estudantes do bairro São Cristóvão descolocando-se a pé por falta de ônibus
Fonte: Jornal O Dia, Teresina, 11 set. 1971, p.1.
Em 1970, no Jornal O Dia, um artigo intitulado ‘Coletivos e Absurdos’ tem como
objetivo contar sobre o desenvolvimento da capital e criticar alguns setores que não estariam
acompanhando as transformações e ‘aspectos de metrópole’ da cidade, como o setor de
transportes coletivos, “Somos, talvez a cidade mais desassistida do País em matéria de
transportes coletivos. Além de poucos veículos, as empresas que se dedicam à exploração
desse ramo de atividades não prestam um serviço à altura, à comunidade. As tarifas são
extorsivas”.
Vale-se destacar que os cronistas da época cobravam por melhorias nos ônibus não
apenas para atender a população e mobilidade urbana de Teresina. Tratava-se com a mesma
relevância a questão estética, as impressões que a cidade passava. Ônibus velhos não trariam
ares modernos para a capital do Estado, eles estavam tornando-a feia e não atrativa, sendo
urgente a mudança.
8
O transporte urbano faz parte da memória social e coletiva da cidade, pois segundo Le
Goff (2003, p. 470) são as sociedades, cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão
vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender
esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.
Os bairros de Teresina enfrentavam muitos problemas de mobilidade urbana em
meados da década de 1970, nesse sentido é interessante ressaltar a desigualdade que existia
entre a distribuição dos coletivos nas zonas da cidade. O trabalho com as fontes orais permitiu
fazer registros de parte das demandas sociais da época alargando a interpretação da situação
do sistema de transporte coletivo no período analisado. Sobre o uso da metodologia da
História Oral, Verena Alberti (2009) destaca que: A História Oral permite o registro de
testemunhos e o acesso a “história dentro da história”, e dessa forma, amplia as possibilidades
de intepretação do passado.
A população fazia o uso dos periódicos da época, para reivindicar por consessões de
linhas de coletivos que passassem por dentro de seus bairros, para evitar as longas
caminhadas que precisavam fazer para pegar condução. “É penosa a viagem do centro da
cidade até o bairro tabuleta e são gasto no minímo 50 minutos, além do longo percuso a pé”
(O Dia. Teresina. n.3432. 26/27 de set. 1971. p.4).
Figura 2: Matéria publicada referente a falta de transporte no bairro Tabuleta, zona sul da capital. Fonte:
Jornal O Dia. Teresina. 26/27 de set. 1971. p.4
O motorista Borges em seu depoimento pontua essa desigualdade nos bairros ao afirmar
que: “Naquele tempo só era a piçarra, naquelas ladeiras. Ninguém ia botar carro novo naquela
9
situação, pra estragar o carro”6. Este tipo de fonte permite ao historiador um maior
entendimento sobre os olhares da cidade, pois de acordo com Paul Thompson (2002, p.14) “a
História Oral é uma história constituída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da
própria história e isso alarga seu campo de ação.”
É importante destacar que ao utilizar os depoimentos de usuários de transportes da época
não pretende-se apenas dar voz à minorias “ reforçando as diferenças sociais”, como diz
Verena Alberti (2009), mas com uso da História Oral “transmitir uma experiência coletiva,
uma visão de mundo tornada possível em determinada configuração histórica e social”. Nesse
sentido o trabalho com a História Oral configura-se como:
Um caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que
se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos
sociais, em todas as camadas da sociedade. Nesse sentido, ela está afinada com as
novas tendências de pesquisa nas ciências humanas, que reconhecem as múltiplas
influências a que estão submetidos os diferentes grupos no mundo globalizado.
(ALBERTI, 2009)
Referente à situação do sistema de coletivos nas zonas periféricas da cidade, a zona
norte não apresentava um cenário diferente da região sul da capital. Dona Maria Luz
moradora do bairro Poty Velho revela “Eu trabalhava vendendo verdura no Mafuá ia a pé,
com a bacia de cheiro-verde na cabeça, eram muitas mulheres com o cheiro-verde na cabeça e
os homens com os peixes enfiados em um pau nas costas”.7 Nesse sentido a ineficiência do
transporte prejudicava moradores que precisavam sair dos seus bairros para outras áreas
trabalhar, era preciso fazer os trajetos a pé ou depender de raras caronas.
Nota-se que cada morador dos respectivos bairros produziu memórias e experiências
diferentes em relação ao uso do transporte coletivo da capital, daí a relevância das fontes orais
para mostrar que a constituição da memória é objeto de ininterrupta negociação. Nesse
sentido:
A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua
identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de
seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de
coerência - isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de
uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio
de entrevistas de História oral. As disputas em torno das memórias que
prevalecerão em um grupo, em uma comunidade, ou até em uma nação, são
importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a sociedade como um
todo.(ALBERTI. 2009, p.167)
6 SOUSA, José Wilson Borges. Depoimento concedido a Allan Ricelli Rodrigues de Pinho. Teresina, fev. 2016 7 LIMA, Maria Luz Rosa. Depoimento concedido a Allan Ricelli Rodrigues de Pinho. Teresina. Fev. 2016.
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Assim, de acordo com a maneira com que cada um utilizava-se dos transportes
coletivos é possível identificar que o sistema dificultava a vida tanto daqueles que precisavam
estudar ou trabalhar e até mesmo impedindo o acesso ao lazer.
O lazer na capital também era afetado pela insuficiência dos coletivos, fato que
manifesta-se na experiência do comerciante Adão “A noite ele era assim mais cheio, porque
naquela época o pessoal vinha muito ver filme aqui na Praça Pedro II, no cine rex, cine royal,
essas coisas, naquele tempo o pessoal usava muito as praças, era lotado, ai os ônibus ficavam
cheio, pra ir e pra voltar”8. Vale lembrar que Teresina em meados do século XX mesmo com
o discurso modernizador, ainda possuía ares provincianos, sendo as praças locais de encontro
entre os moradores da capital.
Nesse sentido percebe-se um cenário multifacetado em relação aos usos e desusos dos
coletivos na capital a partir da memória dos usuários, ou seja, esta multiplicidade de
experiências vividas e compartilhadas é que estabelecem segundo Pollack (1989) a existência,
numa sociedade, de memórias coletivas tão numerosas quanto às unidades que compõem a
sociedade. Vale ressaltar que o trabalho com fontes orais por parte do historiador, deve ser
alvo de análise minuciosa para a construção de uma narrativa que resgate os fragmentos da
história e memória dos transportes da capital.
Desse modo o cruzamento de fontes permitiu à investigação perceber as mais variadas
demandas pelo transporte coletivo por parte dos moradores dos bairros e usuários do período
estudado, possibilitando entender à pluralidade de vivências e experiências da população
teresinense para com o sistema de coletivos urbanos. Além de propiciar a representação das
memórias produzidas na década de 1970 sobre o transporte coletivo na capital.
4 Considerações finais
Teresina no início da década de 1970 passava por um momento de transformações
urbanísticas, políticas, sociais e econômicas. Foi um período marcado pelo seu crescimento
espacial e populacional, com o surgimento de novos bairros. Estes fatores ocasionaram
grandes desafios nos setores da saúde, educação, emprego e consequentemente no setor de
transportes urbanos na cidade, que neste período tinha nos coletivos urbanos o principal meio
de locomoção dos teresinenses pela cidade.
A partir dos relatos orais de usuários do transporte da época, de motoristas que fizeram
parte do sistema de transporte coletivo e de matérias publicadas nos periódicos Estado do
8 SOARES, Adão Barbosa. Depoimento concedido a Allan Ricelli Rodrigues de Pinho. Teresina, fev. 2016.
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Piauí e O Dia, que eram jornais de grande circulação na época percebeu-se as falhas que
continham o sistema no início da década de 1970, com coletivos que não possuíam uma
organização em seus horários de viagens.
Notou-se na investigação que o sistema funcionava em grande parte em condições
precárias, não atendendo a demanda social da população e do crescente número de bairros que
surgiam. A população sentia necessidade de deslocar-se pela capital já que grande parte de
seus bairros não possuíam farmácias, escolas e mesmo locais de emprego. Os mesmos
apelavam muitas vezes para os jornais com pedidos, cartas e apelos para que os empresários e
a Prefeitura tomassem providências para regularização de horários dos coletivos.
Este estudo permitiu entender que no início da década de 1970, o progresso presentes
nos discursos dos governantes e publicados, muitas vezes nos periódicos da época, não
conseguiu atender a demanda dos transportes para a população existente na capital. Foram
tomadas medidas que apenas amenizaram alguns dos problemas existentes e não de fato
modificando permanentemente a vida daqueles usuários que sofriam pela precariedade do
sistema. Deve-se ressaltar que os objetivos estudados são apenas uma pequena parte de uma
área rica de conhecimento e fragmentos que possibilitam conhecer a história da cidade e
consequentemente, a história dos transportes urbanos na capital.
Referências
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