Post on 10-Apr-2016
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Um “passo” preto canta numa viagem de ônibus No ônibus vazio, seguia tranqüila observando os resultados de três dias consecutivos de chuva de verão: muita lama, bueiros transbordando, barrancos caindo e sujeira geral.
Cidinha da Silva
Em uma parada próxima ao final de linha, entra uma voz forte e melodiosa no coletivo, cantando
uma composição de Jorge Versilo numa interpretação a la Emílio Santiago. Os versos tratavam
do aprendizado proporcionado pela dor, concluindo que o amor era, simplesmente, o encontro
das águas. Bonitas, a música e a voz. Estiquei o pescoço para ver quem era o cantor e não vi
ninguém. Ouvi um barulho de tamancos e olhei para o chão. Então vi um rapaz negro com o
tronco muito desenvolvido contrastando com as pernas finíssimas, dobradas, próximas às mãos,
que faziam o papel dos pés. O moço cantava como o “passo” preto da minha infância, só que
alegre e livre – o que é que eu vou fazer com esse fim de tarde, pra onde quer que eu olhe, lembro
de você, não sei se fico aqui ou mudo de cidade(...) Bom repertório, pensei, dobrando os lábios
daquele jeito que a gente dobra quando pensa. Enquanto cantava ele tirava a mão calçada com
luvas de goleiro do tamanco esquerdo e a estendia a cada pessoa sentada. Tratei logo de pegar
minha contribuição para o artista e mereci outro trecho de música. Parecia que ele adivinhava o
sentimento da gente: confesso que chorei, não suportei a dor, é doloroso se perder um grande
amor. Puxa véio, um pico de Jorge Aragão na artéria femoral. Overdose para qualquer coração.
Lágrimas à parte, o moço seguia com seu sorriso largo e eu pensava: que diferença daqueles
meninos que entram no ônibus em São Paulo com aquela ladainha insuportável – senhores
passageiros, desculpe incomodar a viagem de vocês _ e toca a contar a saga da família
de dez irmãos, pai desempregado e mãe com câncer, todos passando fome, só ele em condições
de pedir, e pedir, como todo mundo sabia, era melhor do que roubar. Não satisfeito, o adolescente
capricha mais um pouco na cara de dor de barriga e entoa uma música sertaneja qualquer,
imitando o sertanejo do momento. E você ali, ouvindo, querendo colar a matraca do moleque
com cimento e sentindo uma saudade desesperada das modas de viola de Pena Branca e
Xavantinho. Mas aí volto para o ônibus em Salvador e reparo que, enquanto girava o corpo sobre
as mãos, dirigindose à porta da frente para ir embora, o rapaz cantor reconhece uma amiga e
começam a conversar. A voz dela é muito baixa e eu não entendo, entretanto, ele fala alto, para
alegria da minha curiosidade. Ele conta que na semana anterior tinha faltado à faculdade porque
havia tido dois coágulos nas pernas e a dor, arretada, não o deixara sair de casa. Naquela semana,
entretanto, voltaria às aulas e à capoeira (balança o tronco cheio de ginga). Só pode ser angoleiro,
concluí segura. Pulando sobre as mãos, ele se despede cantando uma canção do Luís Américo,
sucesso nos anos 70: sou filho da véia, oh, eu não pego nada, a velha tem força, oh, na
encruzilhada!