Post on 07-Nov-2020
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA
SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO
PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS
NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA
FORTALEZA – CEARÁ
2017
1
SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO
PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS
NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Sociais Aplicadas e Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia. Orientador: Prof. Dr. João Tadeu de
Andrade.
FORTALEZA – CEARÁ
2017
2
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SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO
PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS
NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Sociais Aplicadas e Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia.
Aprovado em: 08 de maio de 2017
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. João Tadeu de Andrade pela sua amizade, dedicação e parceria de
sempre.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que me
possibilitou através da bolsa de estudos suporte para a realização desta pesquisa.
A todas as instituições ayahuasqueiras que tive oportunidade de conhecer: Santo
Daime, Barquinha, Caminho do Coração e ao Xamanismo onde tive lições e
aprendizados valiosos para a minha vida.
Aos professores do Mestrado em Sociologia que contribuíram para a minha
formação acadêmica.
A minha mãe Célia Maia que sempre me incentivou valorizando o estudo, a
sabedoria e o conhecimento.
5
RESUMO
Esta dissertação visa investigar e analisar quais são os fundamentos que legitimam
o processo aberto junto ao IPHAN, solicitado por três principais religiões
ayahuasqueiras tradicionais, solicitando a patrimonialização da Ayahuasca como
bem cultural imaterial brasileiro. Além disso, este estudo pretende interpretar os
discursos dos órgãos oficiais envolvidos no processo, bem como de representantes
de comunidades ayahuasqueiras, a partir de entidades localizadas na região
metropolitana de Fortaleza. Esse trabalho visa antecipar-se à discussão desse tema
complexo e delicado, sobretudo por discutir a situação em que uma substância
psicoativa pode legitimar-se enquanto patrimônio cultural e quais os possíveis
impactos para a sociedade brasileira, em meio aos intensos debates sobre o uso de
substâncias psicoativas na atualidade.
Palavras-chave: Substância psicoativa. Patrimônio imaterial. Ayahuasca. Cultura.
Política pública.
6
ABSTRACT
This dissertation aims at investigating and analyzing the foundations that legitimize
the open process with the IPHAN, requested by three main traditional Ayahuasca
religions, requesting the patrimonialization of Ayahuasca as a Brazilian intangible
cultural good. In addition, this study intends to interpret the speeches of the official
organs involved in the process, as well as representatives of Ayahuasca
communities, from entities located in the metropolitan region of Fortaleza. This work
aims to anticipate the discussion of this complex and delicate topic, especially for
discussing the situation in which a psychoactive substance can legitimize itself as a
cultural patrimony and what the possible impacts for the Brazilian society, amid the
intense debates about the use of Psychoactive substances today.
Keywords: Psychoactive substance. Intangible assets. Ayahuasca. Culture. Public
policy.
7
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 -
Figura 2 -
Figura 3 -
Figura 4 -
Figura 5 -
Figura 6 –
Figura 7 -
Figura 8 -
Figura 9 -
Figura 10 -
Figura 11 -
Figura 12 -
Chá Ayahuasca...........................................................
Moléculas beta-carbolínicas presentes no cipó
Jagube.........................................................................
Folha Banisteropis caapi.............................................
Cipó Jagube................................................................
Cipó e folha em camadas alternadas prontos para
serem fervido..............................................................
Folha Psycotria Viridis...............................................
Molécula N, N – Dimetiltriptamina (DMT)...................
Mestre Irineu, fundador do Santo Daime..................
Padrinho Sebastião, fundador do CEFLURIS...........
Daniel Pereira de Matos, fundador da Barquinha.....
Mestre Gabriel, fundador da UDV.............................
Sri Prem Baba, fundador do Caminho do Coração...
32
33
33
34
34
35
36
41
43
45
47
50
8
SUMÁRIO
1
1.1
2
2.1
2.2
3
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
4
4.1
4.2
4.3
4.4
4.5
5
5.1
5.2
5.3
6
INTRODUÇÃO.....................................................................................
PROCEDIMENTO METODOLÓGICO.................................................
OBJETIVOS........................................................................................
GERAL.................................................................................................
ESPECÍFICOS....................................................................................
O QUE É AYAHUASCA....................................................................
ASPECTOS QUÍMICOS E FARMACOLÓGICOS DA AYAHUASCA.
ASPECTOS DE SAÚDE DO USO DO CHÁ AYAHUASCA...............
ASPECTOS ETNOBOTÂNICOS DO USO DO CHÁ AYAHUASCA...
ASPECTOS COSMOLÓGICOS DA BEBIDA AYAHUASCA..............
ASPECTOS LEGAIS DA BEBIDA AYAHUASCA...............................
PATRIMÔNIO CULTURAL................................................................
OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DE CULTURA......................................
O CONCEITO DE PATRIMÔNIO: ALGUNS APONTAMENTOS.......
PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL.........................
PATRIMÔNIO CULTURAL: CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DE
IDENTIDADES....................................................................................
PATRIMÔNIO IMATERIAL, CULTURA E GLOBALIZAÇÃO..............
O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO
BRASIL...............................................................................................
AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE AYAHUASCA............................
AYAHUASCA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CULTURA
BRASILEIRA........................................................................................
O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA..........
CONCLUSÃO......................................................................................
REFERENCIAS...................................................................................
ANEXOS..............................................................................................
ANEXO A - CARTA DE SOLICITAÇÃO PARA O PROCESSO DE
RECONHECIMENTO DO USO DA AYAHUASCA EM RITUAIS
RELIGIOSOS COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CULTURA
BRASILEIRA.......................................................................................
10
21
24
24
24
25
25
25
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65
65
70
80
91
94
101
101
109
116
120
122
130
132
9
ANEXO B - QUADRO CRONOLÓGICO DOS PRINCIPAIS
ACONTECIMENTOS SOBRE A AYAHUASCA NO BRASIL............
134
10
1 INTRODUÇÃO
Em 2006, o Conselho Nacional de Política6+s sobre Drogas (CONAD)
aprovou o parecer sobre a regulamentação do uso do chá Ayahuasca em rituais
religiosos no Brasil. Foi instaurado então, pelo CONAD, um Grupo Multidisciplinar de
Trabalho sobre a Ayahuasca (GMT) com profissionais de diversas áreas
(farmacologia, bioquímica, psicologia, antropologia) que realizaram pesquisas sobre
esta bebida, tendo como resultado a resolução de nº5 para levantamento e
acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca e de pesquisas sobre sua
aplicação terapêutica. No documento do GMT são instituídos parâmetros
deontológicos1 da Ayahuasca, regulamentando o seu uso em contexto religioso.
A Ayahuasca é um chá psicoativo, resultado da união do cipó
Banisteriopsis caapi, conhecido como Mariri ou Jagube, com as folhas do arbusto
Psychotria viridis, conhecido por Chacrona ou Rainha. O chá é identificado por
diversos termos: Daime, Hoasca, Caapi, Yagé, Rei Inca, Vegetal, mas o nome que
representa a bebida juridicamente é Ayahuasca. Esta palavra é de origem quéchua
e umas das possíveis traduções é ―Cipó das almas‖. O chá possui a substância N,N-
dimetiltriptamina (DMT) como princípio ativo que, quimicamente, é responsável pelas
experiências de expansão de consciência com diversos efeitos físicos.
Em maio de 2008, na Prefeitura de Rio Branco, Acre foi iniciado a
abertura do processo de reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos
como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira. Essa solicitação foi feita pelos
representantes dos três troncos fundadores2 das comunidades Ayahuasqueiras,
tradicionais e contemporâneas. Essa solicitação foi feita ao então Ministro da Cultura
do Governo Lula, Gilberto Gil, para a instauração do processo junto ao órgão federal
1 O objetivo do GMT da Ayahuasca é a instauração de parâmetros normativos para a utilização da
bebida de acordo com os princípios da Ética normativa, baseado na filosofia moral contemporânea.
2 As entidades envolvidas são: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo (CICLU Santo
Daime); Casa de Jesus Fonte de Luz (Barquinha) e Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
(CDUDV).
11
responsável para esse tipo de atuação, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico
Nacional (IPHAN).
O Patrimônio Cultural Imaterial, segundo o IPHAN (2007), é formado por
um conjunto de saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que
remetem à história, à memória e à identidade desse povo. É tudo aquilo que é
considerado valioso por um grupo social e que remete à afirmação de sua identidade
cultural, ou seja, suas referências e valores culturais. Existem os bens culturais
materiais, isto é, tangíveis, que são as paisagens naturais, objetos, edifícios, entre
outros e os bens culturais de natureza imaterial que estão relacionados às crenças,
práticas e habilidades inseridos no modus vivendi das pessoas. O patrimônio cultural
de uma sociedade é fruto de políticas públicas norteadas pelo Estado por meio de
leis, instituições públicas responsáveis, com a participação dos representantes que
solicitam o pedido de patrimonialização juntamente com a sociedade civil. Os valores
e significados atribuídos a determinado bem cultural devem ser pensados em
coletividade.
Com o objetivo de criar instrumentos adequados ao reconhecimento e à
preservação de bens culturais imateriais, que são de natureza processual e
dinâmica, tais como as ―formas de expressão‖, e ―os modos de criar, fazer,
viver‖, citados no Art. 216 da Constituição Federal de 1988, o IPHAN
coordenou os estudos que resultaram na edição do Decreto 3.551, de 04 de
agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial e cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial. Nesse mesmo
ano, o IPHAN também consolidou o Inventário Nacional de Referências
Culturais. (IPHAN, 2007, p.17).
O IPHAN abriu o respectivo processo de patrimonialização e em seguida
o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) que é um procedimento
desenvolvido a partir de métodos etnográficos que visa levantar dados, informações
e dar consistência aos pedidos de registro e salvaguarda de um bem imaterial. O
INRC é um instrumento que cataloga e registra determinado bem de natureza
imaterial. Este levantamento visa ―Inventariar‖ os bens culturais que remetem à
identidade cultural de um grupo social. Quando determinado bem cultural é
conhecido através do INRC ele será, em seguida, reconhecido através de outro
instrumento do IPHAN chamado Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.
Antes do Registro do Bem imaterial, o conselho consultivo do IPHAN, ligado a
12
diferentes esferas de atuação, decidirá se a proposta é consistente e se deve ser
feito o registro.
O bem cultural imaterial, já devidamente registrado será inscrito em um
dos Livros de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que, atualmente está
divido em quatro categorias: Livro de Registros de Saberes – para a inscrição de
conhecimentos e modos de fazer das comunidades; Livro de Registros de
Celebrações – para rituais e festas, da religiosidade e de outras práticas da vida
social; Livros de Registro das Formas de Expressão – para manifestações literárias,
musicais, plásticas, cênicas, lúdicas; Livro de Registro dos Lugares – espaços como
mercados, feiras, praças e santuários, onde se reproduzem práticas culturais
(IPHAN, 2007).
Porém, o pedido do IPHAN para a realização do INRC da
Ayahuasca não conta apenas com o levantamento sobre as religiões
ayahuasqueiras que solicitaram o pedido, mas também é necessário levantar
levantar informações sobre a cosmologia dos povos indígenas que fazem uso do
mesmo chá e das comunidades urbanas mais recentes, categorizadas como neo-
ayahuasqueiras. Isto nos sugere que a realização do INRC da Ayahuasca é um
empreendimento amplo acerca dos rituais em que se faz o uso do chá. Essa
amplitude ocorre devido à diversidade cultural em torno da bebida levantando
questões do que se pretende inventariar afinal (SANTOS, 2010).
A proposta apresentada pelos técnicos do IPHAN dividiu o projeto em três
campos de pesquisa: campo dos originários, campo tradicional ou tradicionalista e
campo eclético ou neo-ayahuasqueiro. Nesse vasto leque em que a Ayahuasca está
presente, surgem as delimitações e dificuldades para a execução do INRC. É
necessária uma grande equipe de pesquisadores e de financiamento, além da
execução desse amplo projeto. No INRC, são feitas pesquisas etnográficas,
produção em audiovisual, registros fotográficos, pesquisas bibliográficas e
documentais (IPHAN, 2007).
O pedido de patrimonialização da Ayahuasca levanta questões polêmicas
e controversas. Caso venha a ocorrer, representará uma grande conquista para as
comunidades ayahuasqueiras que ao longo do tempo foram bastante discriminadas
e marginalizadas por suas práticas religiosas. Mas, ao mesmo tempo, preservar este
13
bem imaterial pode significar cristalizá-lo, como se houvesse apenas uma prática
religiosa legítima a ser reconhecida. No caso da Ayahuasca, as práticas religiosas e
terapêuticas são dinâmicas, sincréticas e às vezes contraditórias (LABATE, 2011).
Um grande passo para as entidades ayahuasqueiras, sem dúvida, foi a
regulamentação do uso do chá em contexto religioso feita pelo CONAD em 2006
(GMT – Ayahuasca), retirando as substâncias presentes na composição do chá da
lista de drogas ilícitas. Então, pela primeira vez as comunidades ayahuasqueiras que
sempre sofreram com o preconceito e perseguição pelos que não toleravam suas
práticas rituais, puderam legitimar-se enquanto manifestação religiosa brasileira a
ser protegida de acordo com o art. 2º, da Lei Federal 11.343/06 (2006) e do art.215,
§1º, da Constituição Federal. Já o pedido de patrimonialização é um passo maior
que exige estudos e planejamento e que leva em consideração todas as nuances
que envolvem esse tema tão complexo e delicado.
Os estudos em torno da Ayahuasca demonstram os impactos
estruturantes na vida daqueles que a utilizam em contexto religioso (MACRAE,
1992). Esse paradoxo nos mostra que a demonização das substâncias psicoativas
constitui uma visão estreita que necessita ser revisada, instituindo novos parâmetros
reflexivos, norteados por pesquisas farmacológicas, jurídicas e socioculturais
(MACRAE, 1992).
Além disso, o uso da Ayahuasca envolve complexas redes sociais onde
diversos grupos possuem relacionamentos diferentes com esta substância
enteógena3. Além da variedade sociocultural presente nessas comunidades, desde
os índios que bebem o chá em rituais no interior da floresta amazônica, até jovens
de classe média em contexto urbano, a relação com a Ayahuasca é variável em
cada grupo, que a trata e percebe diferentemente de acordo com sua doutrina ou
visão de mundo.
Tratar, contudo, da patrimonialização do uso da Ayahuasca em contexto
religioso é algo que nos remete a questões de natureza múltipla. A Ayahuasca é um
agente não humano associado a diferentes contextos culturais. Este líquido, de
acordo com a cultura na qual esteja inserido, ganha símbolos e significados
3 Enteógeno: palavra grega que significa ―Deus dentro‖. Utilizo essa palavra para me referir às
substâncias psicoativas que agem ampliando o estado de consciência do indivíduo.
14
diferentes, que norteiam a visão de mundo e a identidade cultural de seus usuários.
Cada contexto cria sua “Ayahuasca” (SANTOS, 2010). Os componentes da bebida
são de origem natural e se fundem através da manipulação humana dando origem à
bebida. Os elementos naturais ao sofrerem interferência humana se mesclam dando
origem a um terceiro ―produto‖ que agora é natural e cultural ao mesmo tempo,
porém passível de mudança de acordo com a cosmologia na qual está incluído. Em
matéria de cultura podemos dizer que nada é simples, tudo tem sua complexidade
(BATISTA, 2010).
O pedido de patrimonialização da Ayahuasca reforça, sem dúvida, a
necessidade das comunidades ayahuasqueiras afirmarem suas identidades
culturais, para garantir os direitos religiosos e, por fim, a preservação do
conhecimento e da tradição que envolve a Ayahuasca em contexto religioso. O
pedido de patrimonialização da Ayahuasca em contexto religioso é, a nível
simbólico, a legitimação da religiosidade ayahuasqueira como um saber tradicional
inerente à cultura brasileira que agora busca ser visto e reconhecido para ser
consolidado como bem cultural imaterial brasileiro.
Constitui-se manifestação cultural indissociável da identidade das
populações tradicionais da Amazônia e de parte da população urbana do
País, cabend ao Estado não só garantir o pleno exercício desse direito à
manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de
acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o, ―caput‖, Lei 11.343/06 e
art. 215, caput e § 1º c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º da Constituição
Federal. (CONAD, 2006, p.12-13).
O IPHAN tem o apoio de outras instituições, públicas e privadas no
processo de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção do patrimônio
imaterial brasileiro, como o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI),
grupos locais, prefeituras, Organizações Não-Governamentais, Secretarias
estaduais e municipais, Ministério da Cultura, dentre outros. Surge daí
questionamentos sobre a natureza da Ayahuasca e em que Livro de Saber esse
possível patrimônio seria registrado. Qual o enquadramento da patrimonialização
dentro desse processo? Quais seriam os limites e impasses do próprio IPHAN que
15
se depara com uma situação relativamente nova, e que levanta mais dúvidas sobre
o que pode ser considerado patrimônio, cultura e bem imaterial?
As discussões sobre a identidade nacional e as referências culturais que
formam o imaginário de nação nos fazem refletir sobre as relações de poder que
existem e as disputas que ocorrem no campo de patrimônio, para que determinadas
manifestações culturais ou religiosas sejam legitimadas.
(...) entendendo por tal relações de forças entre as posições sociais que
garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou
de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas
pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as
que têm por finalidade a definição da forma legitimada de poder.
(BOURDIEU, 2011, p. 28-29).
A política pública de Patrimônio cultural é moldada por relações de forças
que atuam através da dimensão simbólica do capital. Patrimônio seja material ou
imaterial é um território marcado por disputas sociais, econômicas, políticas e
culturais. Está em constante construção e reforma. O pedido de patrimonialização da
Ayahuasca é algo novo que não se enquadra em nenhuma categoria do IPHAN, até
agora, e que trás discussões sobre a maleabilidade e construção dessa política.
Em 2008 o governo do Peru declarou como patrimônio cultural da nação
os conhecimentos tradicionais e o uso da Ayahuasca por comunidades indígenas na
floresta amazônica peruana. Esse processo, além da visibilidade internacional que
trouxe ao uso religioso do chá Ayahuasca, influenciou aqui no Brasil as religiões
tradicionais ayahuasqueiras de modo que as mesmas, solicitaram no mesmo ano, o
pedido de patrimonialização do chá em contexto religioso. De acordo com o Instituto
Nacional de Cultura do Peru, o ritual da Ayahuasca está se estabelecendo como
centro da medicina tradicional, reconhecendo como um dos pilares da identidade
dos povos amazônicos.
De acordo com a ―Declaración Patrimonio Cultural de la nación a los
conocimientos y usos tradicionales del Ayahuasca practicados por
comunidades nativas amazónicas se resolve declarar patrimonio cultural de
la nación a los conocimientos y usos
tradicionales de Ayahuasca practicados por las comunidades nativas
16
amazónicas, como garantía de continuidad cultural‖ (INSTITUTO
NACIONAL DE CULTURA, PERU, 2008).
Para NAKAZAWA (2015) é necessário proteger a prática [uso ritual da
Ayahuasca] para evitar o uso indevido e distorções, como o comércio irresponsável,
o consumo lúdico, o manejo por pessoas não habilitadas, o charlatanismo, a
exploração dos recursos naturais e o possível esgotamento e a apropriação do
conhecimento sagrado dos povos originários. A autora ressalta que:
Algunos curanderos se dan cuenta pronto de que pueden sacar beneficio
económico, sexual o de poder, y comercializan plantas sagradas y rituales a
un público ávido de ―comprar‖ salud, conocimiento y una espiritualidad
alejada de sus propias raíces culturales. Surgen en el ámbito urbano y para
atender la demanda de clientes foráneos, neo chamanes - ayahuasqueros,
auto referidos como ―convidadores‖ pues no conocen ni ejercen el rol de
curandero, pero que aprendieron externamente a realizar el ritual y lo
aplican, sin estar preparados para afrontar una eventual complicación. En
algunas comunidades, con intención de fomentar el desarrollo local
impulsando el turismo algunas autoridades organizan festividades o tours
con tomas de ayahuasca. En este contexto se presentan inevitablemente,
para esos ingenuos extranjeros, casos de abuso, de explotación, de
descompensación física o mental y hasta de decesos, algunos de ellos muy
mediatizados y reportados de manera escandalosa por la prensa
sensacionalista. (NAKAZAWA, 2015, p.4).
A autora também afirma que o uso ritual da Ayahuasca é o fundamento
da Medicina Tradicional Amazônica e em consequência base da identidade cultural
dos povos amazônicos. Em 1999 uma declaração da União Indígena de Curandeiros
de Ayahuasca, na Amazônia Colombiana, já apontava que "mesmo alguns dos
nossos irmãos indígenas não respeitam os valores do nosso remédio, e saem por aí
enganando pessoas, vendendo símbolos das nossas cidades"(UMIYAC,1999).
Na Colômbia em junho de 1999 ocorreu o UMIYAC Union de Medicos
Indigenas Yageceros de la Amazonia Colombiana no I Encontro dos Taitas, ocorrido
na cidade de Yurayaco que reuniu povos do território Ingano, curandeiros,
indígenas, xamãs. Durante o evento os grupos indígenas se manifestaram a respeito
da comercialização do Yagé (Ayahuasca) e outras plantas. A organização dos Taitas
manifestou preocupação com um ―novo tipo de turismo que estava sendo
17
promovido‖ através de charlatanismo e do uso indevido de medicinas sagradas. A
Organização também exigiu a suspensão de uma patente concedida a Loren Miller.
Em carta emitida pela Organização dos Taitas em 1999:
Exigimos respeito aos nossos territórios, nossa medicina indígena e
curandeiros tradicionais ou a nossa Taitas. Pedimos ao mundo a reconhecer
o nosso medicamento que também é uma ciência, não da mesma maneira,
embora os ocidentais possam entendê-lo. Nós, o Taitas, somos curadores
reais e por muitos séculos temos contribuído para a saúde das nossas
aldeias. Além disso, a nossa medicina olha além do físico e busca o bem-
estar da mente, do coração e do espírito. Exigimos a suspensão imediata da
patente concedida a Loren Miller nos Estados Unidos. Para nós, a patente
representa um abuso e uma profanação da nossa planta sagrada.
Declaramos que o Yagé e outras plantas medicinais que usamos são
patrimônio e propriedade coletiva dos povos indígenas. É um uso em nome
da humanidade que deve ser realizado com a nossa participação e
queremos quaisquer outros benefícios derivado dos nossos direitos. Nós
pedimos o reconhecimento legal da nossa autonomia no cuidado com a
saúde dos nossos povos de acordo com nossas tradições e valores. Temos
que recuperar a posse dos nossos territórios e locais sagrados. A floresta é
para nós a fonte de nossos recursos.
Em 1980, Loren Miller, um dono de um laboratório farmacêutico
estadunidense, conseguiu as plantas que constituem a Ayahuasca com povos
indígenas de Cofan no Equador e ao chegar aos Estados Unidos patenteou as
plantas. Em 1996 a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica
(COICA), que representa mais de quatrocentros grupos indígenas, apresentou uma
solicitação de anulação da patente das plantas sagradas. O Escritório de Patentes e
Marcas dos Estados Unidos (PTO) em Washington anulou a patente alegando que a
Banisteropis caapi era nativa da floresta amazônica, já era conhecida e não
representava nenhuma ―descoberta‖. A patente foi reativada em 2001 e ficou em
vigor até o final em 2003. Os povos indígenas, na época, continuaram protestando
contra a patente. O representante do povo Ashaninka levantou essa discussão no
workshop internacional ―Cultivando a Diversidade‖ em maio de 2002 em Rio Branco,
Acre (Biodiversidade celebrada na amazônia – o compromisso de Rio Branco.
Disponível em:< http://www.amazonlink.org/gd/diversidade/19.html> Acesso em 09
de janeiro de 2017).
18
Em 5 de setembro de 2006 o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
do Alto Santo foi tombado por decretos do governador Jorge Viana e do prefeito
Raimundo Angelim como patrimônio histórico e cultural de Rio Branco e do Acre. A
solenidade foi realizada no Palácio de Rio Branco com a participação de Peregrina
Gomes Serra, viúva do Mestre Irineu e dignatária do CICLU Alto Santo.
A solicitação do tombamento foi feita por Madrinha Peregrina por carta
enviada ao governador do Acre e ao prefeito de Rio Branco. No documento ela
destaca:
[...] Desde então, a irmandade fundada pelo Mestre Irineu Serra manteve-
se no local respeitando e honrando os ensinamentos que ele nos legou.
Neste local estão construções importantes para o prosseguimento desta
tradição. Destaco dois conjuntos. O primeiro inclui a casa do Mestre,
transformada em Memorial da comunidade, a Sede de nossos trabalhos
espirituais, a casa do feitio e o poço aberto pelo próprio Mestre. Excluo
desse conjunto a minha residência e de dona Maria Laurinda, próximas ao
Memorial, mas destinadas ao uso particular e erguidas em tempos mais
recentes. No segundo conjunto, do outro lado da estrada, estão alinhadas
lado a lado: a escola municipal Irineu Serra, que é uma construção recente,
mas que originou-se da Escola Cruzeiro, funda pelo Mestre no início dos
anos 60, a capela com o túmulo do Mestre e de dois importantes discípulos,
o Conselheiro José das Neves e o Presidente Leôncio Gomes da Silva e,
finalmente, a casa de Leôncio Gomes, construída em modelo igual à casa
do Mestre e que ainda guarda as características da época em que foi
erguida. Todos esses bens localizam-se na Área de Proteção Ambiental
Raimundo Irineu Serra, criada no ano passado pela Prefeitura de Rio
Branco e têm, portanto, a atenção do poder público municipal. Acredito,
entretanto, que o tombamento pelo patrimônio municipal, estadual e federal,
dará maior segurança de que a obra do Mestre Irineu possa estar para
sempre protegida. Portanto, solicito à Prefeitura Municipal de Rio Branco, ao
Governo do Estado do Acre e ao governo da República do Brasil o
tombamento da área do Alto Santo como Patrimônio Histórico e Cultural de
nossa Cidade, nosso Estado e nosso País. (CARTA DE PEREGRINA
GOMES SERRA – PEDIDO DE TOMBAMENTO CICLU ALTO SANTO
2006).
A primeira área de proteção ambiental (APA) do Acre foi criada pelo
prefeito do Rio Branco Raimundo Angelim com o apoio da Câmara municipal, na vila
Irineu Serra em Rio Branco, como resultado da reinvindicação da comunidade do
19
Santo Daime e dos dirigentes de quatro centros da Doutrina do Santo Daime. A APA
é uma unidade de conservação assim como os parques nacionais e reservas
biológicas. Nessa área está presente a Vila Irineu Serra existente há mais de 50
anos. A imensa área original foi doada na década de trinta pelo ex-governador e ex-
senador José Giomar dos Santos ao Mestre Irineu Serra que lá fundou o Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal.
A Área de Preservação Ambiental Raimundo Irineu Serra (APARIS), com
pelo menos 1,2 mil hectares, formaria a maior área verde da bacia do igarapé São
Francisco, segundo Arthur Leite, secretário municipal de Meio Ambiente. O interesse
dos moradores da região é proteger e garantir as manifestações culturais originais
das populações tradicionais, integradas ao ecossistema nativo, notadamente o
plantio e o cultivo das espécies Banisteropis Caapi (cipó jagube) e Psychotria Viridis
(folha rainha), bem como proteger o uso religioso da bebida Ayahuasca.
Nenhum projeto de urbanização pode ser implantado numa APA sem
prévia autorização de sua unidade administradora. As áreas de florestas existentes
podem vir a ser consideradas Zonas de Conservação da Vida Silvestre, nelas não se
podendo realizar desmatamentos e nenhum tipo de exploração ou atividade que
implique alteração na fauna ou na flora. Essas iniciativas de preservação e
tombamento reforçam a necessidade das doutrinas ayahuasqueiras utilizarem
instrumentos do Estado para garantir os direitos religiosos e assegurar legitimidade e
proteção.
Em acréscimo foi aprovado em 2017 na Câmara Legislativa do Estado do
Pará um projeto de lei que reconhece o uso ritual do chá Ayahuasca como
Patrimônio cultural do Estado do Pará, sem dúvida uma decisão importante para o
governo do Estado e para as comunidades Ayahuasqueiras do norte do país. A
decisão recente foi divulgada em vídeo por um representante da União do Vegetal
em março de 2017 e não obtive mais detalhes a respeito da decisão até o
fechamento da pesquisa dessa dissertação. Finalmente, considero relevante citar a
expansão do uso religioso da Ayahuasca em diversos países da Europa e das
Américas, através da presença crescente de igrejas do Daime e de núcleos do
CEBUDV, o que traz desafios de regulamentação jurídica para os governos
estrangeiros.
20
O objetivo desse estudo é analisar as relações sociais e culturais na qual
a Ayahuasca se insere no Brasil a fim de se compreender os múltiplos aspectos do
processo de patrimonialização da Ayahuasca. Examinando os discursos oficiais das
instituições governamentais, considerando os aspectos políticos sobre o processo.
Essa pesquisa visa contribuir para a área de políticas públicas culturais, já
que o processo de patrimonialização da Ayahuasca é um caso atípico por ser um
pedido complexo que envolve uma bebida psicoativa ameríndia usada em rituais
religiosos e que possui como característica a necessidade de reflexão sobre os
conceitos de cultura e patrimônio cultural. Além disso, o debate sobre a Ayahuasca é
necessário na contemporaneidade devido à problemática em torno da política de
drogas e como as substâncias psicoativas tem sido tratadas pela jurisdição brasileira
atualmente.
Essa dissertação contribui também para a linha de pesquisa na qual está
inserida (Cultura, Diferença e Desigualdade) do Mestrado Acadêmico em sociologia
(PPGS), sobretudo por fazer parte desse debate sobre tensões sociais e os
processos de diferenciação social na atualidade, que tem como objetivo examinar de
forma crítica as novas configurações de classe na sociedade contemporânea. Na
graduação em Ciências sociais, eu já vinha pesquisando o uso da Ayahuasca em
contexto religioso. Fiz pesquisas sobre a Barquinha e sua cosmologia, que envolve o
espiritismo kardecista e a umbanda; o Santo Daime e sua influência cristã; e outras
instituições neo-ayahuasqueiras, como a Arca da Montanha Azul. Esses estudos me
levaram à realização da monografia sobre o Caminho do Coração, uma instituição
neo-ayahuasqueira no Ceará, que tem como base o uso ritualístico e sacramental da
Ayahuasca. Este projeto faz parte também das minhas pesquisas realizadas no
Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnicidade (GEPE), acompanhada por meu
orientador Prof. Dr. João Tadeu de Andrade que realiza pesquisas sobre o uso de
substâncias psicoativas, terapias, medicina popular e indígena. A continuação da
minha pesquisa sobre a Ayahuasca se deve também ao incentivo da bolsa de
pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), parceria essa que foi de relevante importância para o desenvolvimento
deste projeto.
21
Ao longo das minhas pesquisas, pude constatar que os debates em torno da
Ayahuasca ainda são muito recentes no ambiente acadêmico, sobretudo em torno
das questões da patrimonialização do seu uso. Há poucos estudos disponíveis a
respeito dessa questão e do INRC da Ayahuasca. Sem dúvida é uma discussão
recente, carente de estudos na área (LABATE, 2011) e essa pesquisa pretende
contribuir para o entendimento dos aspectos em torno do processo da
patrimonialização da Ayahuasca. A Ayahuasca tem sido procurada por pessoas com
os mais variados tipos de interesse, tornando-se mais conhecida nos últimos vinte
anos (LABATE, 2011). Outras substâncias psicoativas vêm sendo usadas ao longo
da história da humanidade para diversos fins, desde a busca pelo prazer até ao
êxtase religioso (MACRAE, 2010).
Nesta pesquisa, levanto questionamentos a respeito de como as instituições
de governo podem aperfeiçoar as políticas públicas em torno das substâncias
psicoativas. A política criminalista de combate às drogas têm se mostrado
ineficiente, e os estudos em torno da Ayahuasca demonstram os impactos
estruturantes na vida daqueles que a utilizam em contexto religioso (MACRAE,
1992). Esse paradoxo nos mostra que a demonização das substâncias psicoativas
constitui uma visão estreita que necessita ser revisada, instituindo novos parâmetros
reflexivos, norteados por pesquisas farmacológicas, jurídicas e socioculturais
(MACRAE, 1992). Esse estudo envolve antropologia da religião, xamanismo, cultura
e conceitos da sociologia, como ainda a análise das leis sobre política pública de
patrimônio imaterial e Ayahuasca também.
1.1 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
1Pesquisa documental: Identificação, coleta e análise de material documental e
bibliográfico sobre políticas públicas: Desde a Portaria n.02/1985 – Divisão de
Medicamentos (Dimed);Resolução n. 04/1985 – Conselho Federal de Entorpecentes
(CONFEN); Resolução n.06/1986 – Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN);
Relatório Final do Grupo de Trabalho 1987 – Conselho Federal de Entorpecentes
(CONFEN); Parecer do Dr. Domingos Bernardo de Sá – 02/06/1992 – Conselho
22
Federal de Entorpecentes (CONFEN); Resolução n.26 – 31/12/2002 – Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD);
Parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico – 17/08/2004 – Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD); Resolução n.05 – 04/11/2004 –
Conselho Nacional de Política sobre Drogas (CONAD); Relatório Final – Grupo
Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca – 23/11/2006 – Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas (CONAD); Resolução n.01 – 25-01-2010 – Conselho
Nacional de Política sobre Drogas (CONAD);
Pedido de Tombamento da Ayahuasca, 2008 por parte das doutrinas tradicionais
ayahuasqueiras ao ministro da cultura Gilberto Gil em 2008; Acesso ao portal do
IPHAN para a pesquisa sobre a legislação de patrimônio cultural. O Decreto n°3.551,
de 4 de agosto de 2000 do IPHAN. Entrevista por correio eletrônico com Deyvesson
Gusmão, Coordenador-Geral de Identificação e Registro – CGIR Do Departamento
de Patrimônio Imaterial (DPI) do IPHAN; Acesso a Carta da Madrinha Peregrina
solicitando o Tombamento do CICLU de Alto Santo (Santo Daime) no site da
Doutrina do Santo Daime (<http://www.santodaime.org/site-
antigo/doutrina/oquee.htm>); Cartas de Alex Polari (representante do CEFLURIS) se
posicionando a respeito do pedido de patrimonialização da Ayahuasca via site <
http://www.bialabate.net/>.
Principais pesquisadores da Ayahuasca das áreas químicas, biológicas e médicas:
Volodymyr Samoylenko, Rick Strassman, Paul Mckenna, Wiki Chubby Checkey,
Luiz Aranha Correa de Lago, Robert Gable, Steffen Warren.
Pesquisa envolvendo principais autores na área de cultura, identidade, globalização
e patrimônio cultural: Roque de Barros Laraia, Aline Sapiezinskas Krás Borges
Canani, Silvia Helena Zanirato, Néstor Garcia Canclini, Stuart Hall, Anthony Giddens,
Zygmunt Bauman, Cláude Lévi- Strauss, José Luís dos Santos, Armand Matterlart;
2. Entidades de estudo: Sites do IPHAN; UNESCO; Documentos do DIMED e
CONAD, Pesquisa feita acessando os sites das respectivas religiões
ayahuasqueiras: Doutrinas do Santo Daime, Barquinha, União do Vegetal, Caminho
do Coração e a tribo indígena Kaxinawá (tive acesso sobre a cosmologia da tribo
Kaxinawá no site da autora Beatriz Labate [<www.bialabate.net>]), além dos estudos
23
dos pesquisadores ayahuasqueiros, bem como livros de Edward Macrae, Guiado
pela lua (sobre a doutrina do Santo Daime); Beatriz Labate, A Reinvenção do Uso da
Ayahuasca nos centros urbanos (pesquisei sobre o Santo Daime, Barquinha, UDV e
o Caminho do Coração); Wladimir Sena de Araújo, Navegando Sobre as Ondas do
Daime (Sobre a Barquinha);
3. Fases da pesquisa: 1. Estudo das fontes documentais e bibliográficas de janeiro a
julho de 2016; 2.Acesso ao site do IPHAN, das doutrinas ayahuasqueiras e dos
órgãos públicos CONAD, DIMED e documentos da UNESCO presentes no site do
IPHAN de março a novembro de 2016; 3. Analise documental das leis e do processo
de patrimonialização da Ayahuasca de julho a dezembro de 2016; 4. Apresentação
de resumo do projeto dessa pesquisa no II AyaConference realizado no Rio Branco,
Acre em outubro de 2016 pelo orientador Prof. Dr. João Tadeu de Andrade onde foi
feito o primeiro contato com o coordenador do IPHAN, Sr. Deyvesson Gusmão.
5.Qualificação do projeto de pesquisa em novembro de 2016. 6. Entrevista com o Sr.
Deyvesson Gusmão em dezembro de 2016.
24
2 OBJETIVOS
2.1 GERAL
Analisar o contexto social, cultural e político no qual a Ayahuasca se insere no Brasil
a fim de se compreender os múltiplos aspectos que envolvem seu processo de
patrimonialização.
2.2 ESPECÍFICOS
Investigar os aspectos biológicos, cosmológicos, sociais e legais da
Ayahuasca no Brasil;
Desenvolver uma análise da política pública de patrimônio cultural no Brasil;
Analisar o processo de patrimonialização da Ayahuasca;
25
3 O QUE É AYAHUASCA?
Neste capítulo destacaremos alguns aspectos necessários para a
compreensão do que é Ayahuasca. Abordaremos os aspectos químicos e
farmacológicos, compreendendo como essa bebida psicoativa age no organismo
humano, avaliando os aspectos de saúde, os benefícios e os impactos que esta
bebida causa ao corpo e mente humana. Além dos aspectos etnobotânicos das
plantas presentes na fórmula Ayahuasca, iremos conhecer um pouco mais das
doutrinas ayahuasqueiras tradicionais e neo-ayahuasqueira e indígena, tratando do
consumo da Ayahuasca na atualidade. Por fim, faremos um esboço sobre os
aspectos legais da bebida Ayahuasca, servindo de base para a nossa avaliação do
processo de patrimonialização do chá e das políticas públicas de patrimônio cultural
no Brasil.
3.1 ASPECTOS QUÍMICOS E FARMACOLÓGICOS DA AYAHUASCA
A bebida enteógena4 conhecida como Ayahuasca, Hoasca, Caapi, Yagé,
Daime, Vegetal entre uma variedade de nomenclaturas é de origem quéchua5,
possui um passado milenar onde sacerdotes e realezas do império Inca utilizavam a
bebida em seus rituais xamânicos, estando até hoje, presente nas cosmologias de
diversas tribos indígenas da floresta amazônica (Kaxinawá, Yawanawá, Jaminawá,
Marubo, Katukina entre outras) e em religiões no Brasil e no mundo (Barquinha,
Santo Daime, União do Vegetal, Arca da Montanha Azul, Umbandaime, Caminho do
Guerreiro, Caminho do Coração entre outros). A origem da bebida é um enigma, não
se sabe como ela foi criada em meio à vastidão selvagem da flora amazonense. Um
verdadeiro mistério da floresta, onde alguém obteve a revelação de misturar as
4 Enteógeno: palavra grega que significa ―Deus dentro‖. Utilizo essa palavra para me referir às
substâncias psicoativas que agem ampliando o estado de consciência do individuo com vínculo com o
sagrado.
5 A língua quéchua é uma importante família de línguas indígenas da América do Sul falada por
diversos grupos étnicos da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Andes.
26
plantas primordiais da fórmula alquímica que garante a magia visionária da poção
indígena Ayahuasca.
O chá latino-americano possui aspecto viscoso de coloração marrom-
escuro, de cheiro forte e sabor amargo. É composto pelo cipó Banisteropis Caapi da
família Malphigeáceas, conhecido como Mariri ou Jagube e a folha do arbusto
Psycotria Viridis da família das Rubiáceas, conhecida como Chacrona ou Rainha. O
cipó e a folha são fervidos em camadas alternadas com água até o ponto certo para
o apuro do elixir. O nome que representa a bebida juridicamente é Ayahuasca que
em quéchua significa ―vinho dos mortos‖ ou ―cipó das almas‖.
A bebida psicotrópica possui a substância N,N- dimetiltriptamina (DMT),
como principal princípio ativo responsável pelas experiências de expansão da
consciência. Os efeitos da DMT, por via oral aparecem de 30 á 45 minutos,
aproximadamente, e podem durar até quatro horas. Os efeitos visionários aparecem
de forma mais intensa cerca de 60 á 120 minutos após a ingestão do chá. A
concentração desse alcaloide no chá ayahuasca varia de 0,1% a 0,66% de peso
seco (MCKENNA et al., 1984; MCKENNA, 2004). O cipó Banisteropis caapi contém
alcaloides pertencentes ao grupo das beta-carbolinas: tetrahidrohamina (THH),
harmalina e harmina que são potentes inibidores temporários da isoenzima
monoaminoxidase (MAO) intestinal e hepática. As concentrações de beta-carbolinas
encontradas no B. caapi variam de 0,05% a 1,95% de peso seco (MCKENNA et al,
1984 e MCKENNA, 2004). Algumas beta-carbolinas, por serem inibidoras da MAO,
podem causar a denominada síndrome serotoninérgica, que é uma das patologias
mais graves associadas ao excesso de serotonina na fenda sináptica6 (GABLE,
2007). Porém, para obter uma dose letal de beta-carbolinas seria necessário uma
concentração vinte vezes maior do que é encontrado normalmente em doses
servidas em sessões de religiões tradicionais ayahuasqueiras. (MCKENNA et al,
1998).
As folhas da espécie Psycotria viridis produzem o alcaloide indólico N,N –
dimetiltriptamina (DMT), substância de estrutura molecular semelhante ao
neurotransmissor serotonina. Além dessa molécula, a folha da chacrona possui
6 Fenda sináptica: espaços ativos de contato entre uma terminação nervosa e
outros neurônios, células musculares ou células glandulares.
27
traços da substância N-metiltriptamina e metil-tetrahidroharmina, todas atuantes no
Sistema Nervoso Central (SNC) (MCKENNA et al, 1998). A molécula DMT também
é produzida naturalmente pelo organismo humano e já foi encontrada em mamíferos
e muitas espécies de vegetais. O aminoácido L-triptofano é responsável pela fonte
de produção direta de serotonina e DMT no nosso organismo (SALIM, 1987). A DMT
e alguns alcaloides beta-carbolínicos são produzidos pela glândula pineal e estão
presentes no sangue, urina e fluido cérebro-espinhal. Há hipóteses científicas de
que as moléculas beta-carbolínicas e a DMT estejam relacionadas aos ciclos
regulatórios do sono e estados de ondas mentais mais profundos do cérebro
humano, podendo ser responsáveis pela formação de imagens nos sonhos
(FISHBACH, 1992).
A mistura sinérgica tem o poder de atuar na mente humana como potente
ampliador da consciência. Os estados visionários produzidos através das
propriedades farmacológicas e químicas da bebida só são possíveis através da
associação das duas plantas. Isso acontece devido aos alcaloides harmina, THH e
harmalina presentes no cipó B. caapi inibirem temporariamente os efeitos da
isoenzima monoaminoxidase (MAO-A e MAO-B) contidos no trato gastrointestinal,
evitando a oxidação da molécula DMT, permitindo sua assimilação e absorção pelo
organismo (OLLIVER et al, 1997). A ação associada dessas substâncias eleva os
níveis de noradrenalina, serotonina e dopamina na fenda sináptica. (CALLAWAY et
al,1999; MCKENNA et al, 1998). A DMT e as beta-carbolinas presentes no chá
permitem que as propriedades psicoativas se manifestem proporcionando um
aumento das concentrações de serotonina e inibindo a desaminação intestinal da
DMT, possibilitando a chegada desta ao cérebro. Os neurônios serotoninérgicos
cerebrais estão envolvidos em diversas funções como sono, humor, regulação da
temperatura, percepção da dor e regulação da pressão arterial, em quadros
patológicos podem estar envolvidos com depressão, ansiedade e enxaqueca.
(KATZUNG, 1998).
28
3.2 ASPECTOS DE SAÚDE DO USO DO CHÁ AYAHUASCA
A fórmula do chá fornece potentes estados visionários, capazes de alterar
as funções cerebrais, atuando no complexo imaginário-mental do individuo. No
entanto, considerar o chá apenas como alucinógeno traz uma compreensão limitada
do assunto. O termo alucinógeno foi durante muito tempo usado para demonizar os
efeitos das substâncias enteógenas, associando-as à loucura:
Alucinar significa errar, enganar-se, privar da razão, do entendimento,
desvairar, aloucar. Tal palavra não permite comentar com imparcialidade os
beatíficos e transcendentes estados de comunhão com as divindades que,
segundo a crença de muitos povos, determinados indivíduos podem
alcançar mediante a ingestão de certos psicoativos. (MACRAE, 1992, p.13)
Ao abordar os efeitos das substâncias psicoativas, sobretudo da
Ayahuasca, é necessário levarmos em conta, além dos efeitos químicos a relação
entre o usuário e o meio social ao qual ele está inserido. A experiência que o
individuo terá com determinada substância psicoativa dependerá do seu nível de
estruturação social e familiar, o contexto da experiência e a vulnerabilidade física e
emocional, ou seja:
O set, estado psicológico do individuo no momento do uso da substância,
incluindo-se ai a estrutura de sua personalidade e expectativas a respeito
dos efeitos da substancia. O setting, meio físico, social e cultural onde
ocorre o uso da substancia. (MACRAE, 1992, p.17)
Muitos estudos em torno da Ayahuasca têm mostrado os impactos
estruturantes e edificadores na vida daqueles que fazem seu uso associado às
doutrinas ayahuasqueiras (LABATE, 2010). As variáveis incluídas no setting, como
as crenças, atitudes, expectativas e valores serão fundamentais para a estruturação
da experiência com o enteógeno. O controle das variáveis incluídas no set e setting
podem ser elementos determinantes tanto para o controle de crises que possam se
manifestar, como também para o resgate de valores humanos e sociais como a
amizade, a união, o amor e a justiça.
29
Além dos efeitos visuais que a bebida proporciona, o chá possui atuação
no sistema nervoso límbico do SNC, o principal centro cerebral de nossas emoções,
possuindo entre outras funções, ação terapêutica e antidepressiva (CALLAWAY, et
al, 1999). Estudos recentes realizados pela USP apontam para um possível
tratamento contra o mal de Parkinson pelo uso do chá Ayahuasca. Antioxidantes
inibidores da MAO, presentes na bebida, podem atuar fornecendo proteção contra a
neurodegeneração, tendo importante papel no tratamento da doença (SCHWARZ et
al., 2003; SAMOYLENKO et al., 2010). Há um crescente interesse na aplicação
médica do chá Ayahuasca, devido as suas propriedades antioxidantes,
antimutagênicas e antigenotóxicas (MOURA et al, 2007).
Os efeitos psíquicos mais comuns, associados ao efeito da bebida são
alteração na percepção da passagem do tempo, alterações visuais, luzes cintilantes,
visões com seres divinos e míticos, demônios e anjos, sinestesia, insights, visões
sobre situações passadas, expressões emocionais variadas, entre outros
(CHECKLEY et al., 1980). Os principais efeitos físicos relacionados ao uso do chá
podem ser sumarizados em náuseas, vômitos, diarreia, leve aumento da pressão
arterial, midríase (dilatação da pupila), incoordenação motora, sudorese e tremores
(MCKENNA et al., 1998; CALLAWAY et al.,1999). Evidências farmacológicas
sugerem que o ato de vomitar e a diarreia intensa ocorrem como resultado da
inibição da MAO-A pelos alcaloides beta-carbolinas. Entretanto, a tolerância física
aos indesejáveis efeitos pode ser desenvolvida com o uso regular do chá.
(CALLAWAY, 2005). Os alcaloides do chá ainda possuem ação profilática,
combatendo infecções gastrointestinais causadas por parasitários helmínticos,
protozoários causadores da malária, leishmaniose, doença de Chagas,
toxoplasmose e tripanossomíases (CALLAWAY, 2005).
Quanto ao mecanismo de atuação farmacológica das substâncias
psicoativas, no geral, ainda são desconhecidas. Segundo Warren (2004) nenhuma
droga seja medicamentosa ou recreativa é completamente eficiente quanto à
especificidade da ação farmacológica. São necessários mais estudos que
aprofundem a compreensão daquilo que assimilamos como estado alterado de
consciência (CARLINI, 2003). O maior risco quanto ao uso de substâncias
psicoativas está no fato delas serem metabolizadas e excretadas lentamente pelo
30
organismo humano (SALIM, 1987). Entretanto, as predisposições genéticas à
psicose ou doenças mentais que podem estar em estágio inicial ainda sem
apresentar sintomas prévios podem vir à tona, desencadeando surtos psicóticos
para quem fizer uso desse chá (LIPINSK, et al., 1974). Por tal fator, não é
recomendado a ingestão da bebida para aqueles que fazem uso de ansiolíticos e
antidepressivos, necessitando de acompanhamento e recomendação médica, bem
como a suspensão da medicação para fazer uso da Ayahuasca.
Embora sejam necessárias altas doses do chá para se criar um ambiente
de risco para quem consome a bebida, autores como Checkey (1980) e Gable
(2006) defendem que o aumento na dose poderia levar, em muitos casos, a efeitos
colaterais diversos como graves arritmias cardíacas levando cardiopatas ao risco de
enfarto. O acompanhamento médico, bem como a anamnese são indispensáveis
para determinar se a pessoa está apta para o consumo da bebida.
Segundo Mckenna (1984) e Warren (2010), os alcaloides harmina e
harmalina presentes no cipó Jagube em doses elevadas apresentam grande risco de
intoxicação, porém em baixas doses, são excelentes tranquilizantes, sedativos e
antioxidantes. Para Callaway (2005) há estudos que sugerem a não dependência
física nem psicológica da bebida Ayahuasca. O autor também sugere que as beta-
carbolinas presentes numa dose comum do chá nas cerimônias religiosas estariam
muito abaixo do limiar de uma dose com efeitos psicotrópicos e tóxicos.
Há evidências que o chá Ayahuasca forneça benefícios associados às
atividades terapêuticas (STUCKEY et al, 2005). Em longo prazo, a bebida demonstra
efeitos benéficos para usuários dedicados como perda de interesse pelo álcool,
tabaco, cocaína e outras substâncias (GABLE, 2007). A Ayahuasca tem sido usada
no tratamento da dependência ao álcool e a outras drogas (MCKENNA, 2004).
Segundo Callaway (1999) em estudos onde foram observados usuários que fazem
uso do chá por muito tempo verificou-se que não há evidencias de prejuízos nas
atividades mentais. Funções cognitivas, fluência verbal, habilidade matemática,
motivação e bem-estar emocional mantiveram-se preservados. Usuários com idade
aproximadamente de 80 anos, que fazem uso do chá desde a adolescência
permaneceram com acuidade mental e vigor físico preservados. Além disso, o uso
em longo prazo do chá Ayahuasca resulta na modulação da serotonina, os
31
transportadores 5-HT, que são receptores para o neurotransmissor serotonina, são
significativamente elevados no usuário do chá. Existe especulação no meio científico
que a infusão poderia reverter déficits de serotonina e assim controlar doenças
neurológicas, promovendo mudanças positivas no comportamento (MCKENNA,
2004).
À medida que os estudos científicos em torno do chá Ayahuasca avançam
é perceptível observar no campo da medicina as suas diversas atuações benéficas
para o organismo humano. O campo da ciência moderna tem revelado que os
benefícios desse chá vão para além do campo da espiritualidade, tornando-o um
agente com potencial de tratamento de doenças físicas, mentais e emocionais.
Agora no próximo item iremos investigar os aspectos etnobotânicos do chá
Ayahuasca.
3.3 ASPECTOS ETNOBOTÂNICOS DO CHÁ AYAHUASCA
Desde civilizações muito antigas relata-se o uso de plantas psicoativas
em rituais com o objetivo de promover contato com o mundo espiritual para
orientação e cura de enfermidades. As plantas também são usadas pelos seres
humanos para técnicas de êxtase há pelo menos 50 mil anos (LABATE, 2003). Com
a conquista da América, vários costumes indígenas associados ao uso de plantas de
forma ritualística foram demonizados, sofrendo forte perseguição da Igreja Católica,
com tentativa de extermínio dessas práticas e costumes (CARNEIRO, 2002).
Dentre as ―plantas mestras‖, a Ayahuasca se destaca como uma bebida
psicoativa largamente usada por tribos indígenas da bacia amazônica. Luna (1986)
cita 72 tribos que fazem o uso ritual da bebida além de 42 denominações diferentes.
Evidências arqueológicas relatam o uso da bebida a pelo menos 2000 a.C
(MCKENNA, 1998).
32
Figura 1 - Chá Ayahuasca
Fonte: Google Imagens, 2016
A espécie vegetal presente na fórmula Ayahuasca, a liana da família
Malphigueaceae Banisteropis Caapi também conhecida como Jagube, Mariri, Cabi,
Caupurí e Uni possui ocorrência em toda floresta amazônica (Brasil, Peru, Equador,
Colômbia e Bolívia). No Brasil a família Malphigueaceae é composta por 38 gêneros
com 300 espécies aproximadamente, encontradas nas bordas das matas por todo o
país (SOUZA & LORENZI, 2005). Os princípios ativos encontrados na casca do cipó
são beta-carbolínicos: harmina, harmalina e tetrahidroharmina. Callaway (2005)
realizou estudos em que se verificou as cascas secas das duas variedades de B.
caapi, constatando que a variedade Tucunacá, conhecido como ourinho e arara
usada pelo CEFLURIS, possui menos beta-carbolinas do que a variedade Caupuri
usada pela UDV.
33
Figura 2 - Moléculas beta-carbolínicas presentes no cipó Jagube
Fonte: Google Imagens, 2016
Figura 3 - Folha Banisteropis caapi
Fonte: Google Imagens, 2016
34
Figura 4 - Cipó Jagube
Fonte: Google Imagens, 2016
Figura 5 - Cipó e folha em camadas alternadas prontos para serem fervido
Fonte: Google Imagens, 2016
35
A folha do arbusto da família Rubiaceae Psycotria Viridis, componente do
chá conhecida como Rainha, Chacrona e Kawá, possui ocorrência em toda a floresta
amazônica (Brasil, Peru, Equador, Colômbia e Bolívia). No Brasil, a família
Rubiaceae possui 130 gêneros e 1500 espécies distribuídas por todo o bioma do
país, sendo que o gênero Psycotria é comumente encontrado em florestas úmidas
(SOUZA & LORENZI, 2005).
Figura 6 - Folha Psycotria Viridis
Fonte: Google Imagens, 2016
O princípio ativo DMT responsável pelas ―mirações‖ que a bebida
propicia, encontra-se nas folhas da Rainha e a concentração varia de acordo com a
colheita. Picos mais altos da substância foram encontrados em folha colhidas no
anoitecer e madrugada. Já o mais baixo nível da substância foi encontrado em
folhas colhidas ao meio-dia (CALLAWAY, 1999). Segundo Strassman & Qualls
36
(1994) a Ayahuasca, assim como DMT em ingestão intravenosa, causam o aumento
de alguns hormônios como corticotropina, prolactina, cortisol e hormônio do
crescimento, sendo que os níveis normais desses hormônios voltam ao normal cerca
de 6 horas após a ingestão do chá, portanto o uso do chá não acarretaria em riscos
de toxicidade para o organismo humano.
Figura 7 - Molécula N, N – Dimetiltriptamina (DMT)
Fonte: Google Imagens, 2016
Na tribo dos Kaxinawá na floresta amazônica, por exemplo, o cipó Jagube
pode ser substituído em menor escala, por outras espécies como B. longialata, B.
lútea, B. martiniana e B. muricata (ARANHA, et al 1991). Já a folha do arbusto
Psycotria Viridis pode ser substituída por: P. naikawa, P pishikawá, P psicotrefolia,
P. retifolia .No caso das plantas adicionadas ao preparo do chá, existem 97 espécies
de 39 famílias diferentes e que são divididas em três categorias, segundo Ott (1994):
Plantas com propriedades anti-reumáticas: Achornea castaneifolia, Brunfelsia
grandiflora, Mansoa allicea, etc; Estimulantes: Illex guayusa e Paulinia yoca contém
cafeína; Erythoxylum coca var. ipadú que contém cocaína, etc; Enteógenas:
Nicotiana; Brugmansia; Brunfelsia; Psycotria Viridis. Apesar da grande variedade de
plantas que podem ser adicionadas ao chá, as que prevalecem e são
37
regulamentadas pelo Conselho Nacional de Drogas (CONAD) são a Psycotria Viridis
e a Banisteropis caapi.
3.4 ASPECTOS COSMOLÓGICOS DA BEBIDA AYAHUASCA
As culturas ameríndias já conhecem e fazer uso do chá Ayahuasca há
milênios. As tradicionais religiões ayahuasqueiras originárias do Acre são o resultado
da miscigenação entre as culturas indígenas da floresta amazônica e as religiões
católica, espírita e umbandista. Cerca de 70 tribos indígenas que já foram
catalogadas fazem uso do chá Ayahuasca na floresta amazônica (LABATE, 2006).
Falarei sobre a cosmologia da tribo Kaxinawá que apresenta um mito originário com
a bebida para exemplificar a infinidade de cosmologias das diversas tribos que
fazem uso da bebida sagrada. Devido à imensa quantidade e complexidade de
representações e cosmologias em torno da Ayahuasca tratarei apenas da tribo
Kaxinawá embora haja uma infinita rede de significados, mitos e analogias diferentes
em cada tribo indígena que compõe um universo peculiar, uma cosmogonia própria
em sua visão de mundo.
Os Kaxinawá e a Lenda da Jibóia Branca do nixi pae (Ayahuasca)
Também conhecidos como caxinauás, são uma etnia sul-americana, que
habitam as fronteiras do Peru, aos pés dos Andes até a fronteira do Brasil, no estado
do Acre na região do Alto Juruá e Purus. É a mais numerosa população indígena do
Acre com cerca de 7.535 indivíduos (Censo 2010). O mito fundador dos Kaxinawá
explica a origem do cipó Jagube usado no preparo da bebida Ayahuasca.
De acordo com Leopardo Sales Yawa Bane Huni Kuin, índio da tribo
Kaxinawá, em sua apresentação na mesa redonda ―Os usos da ayahuasca:
aspectos religiosos, antropológicos e científicos, no Evento Sexto Movimento pela
Vida, em Palmas, 2005, ele descrevera o mito de sua aldeia Kaxinawá:
Conta-se que o guerreiro foi procurar caça. Ele estava caçando e acabou
encontrando um encantado, a Mãe da Jibóia Branca, que morava no lago
38
grande. (Explico: a jibóia morava nesse lago e se transformava em mulher,
ia para a terra e depois voltava para o lago). E a partir desse encontro,
nesse momento, o guerreiro se apaixonou. Pediu ela em casamento e ela
aceitou. O guerreiro e a Jibóia tiveram uma vida muito boa, conhecimento e
aprendizado no mundo espiritual da Jibóia Branca. Nesse lago grande, na
comunidade da Jibóia Branca, viviam muitos encantados. Todos eles
conheciam o segredo da planta do poder que é a ayahuasca, o cipó. O cipó
para nós é nixi pae; a folha se chama kawa. O guerreiro aprendeu com a
Jibóia Branca todos os ensinamentos do canto, do mantra – nós chamamos
―miração da Jibóia Encantada‖ –; aprendeu como se preparar para chamar
os encantados, todas as criações de Deus, que nós chamamos Kushipa.
São uns cantos na nossa língua, a nossa língua se chama Ratxa Kuin.
Cantamos o Huni Meka, que é o nosso canto, nosso mantra, da Jibóia.
Nosso pajé, nosso professor, nosso mestre, e o nosso Kushipa, que é o
nosso Deus, nos ensinou. Foi assim que o povo Huni Kuin recebeu estes
conhecimentos.
Recebemos o presente de curar nossas comunidades, parentes, de orientar
os ensinamentos, recebemos através da ayahuasca a sabedoria, todos os
conhecimentos que vêm da ayahuasca, a cultura ayahuasqueira do cipó.
Passou um tempo, e o guerreiro voltou no mesmo lugar que ele havia
encontrado com a Jibóia Branca na primeira vez no encantamento. Ele
voltou lá porque ele já tinha visto, naquela miração que ele gritou, que ela
tinha uma missão a cumprir. Então aí guerreiro encontrou o filho da Jibóia
Branca, o filho dele, que estava lá procurando o pai. O último filho dele, o
filho pequeno, a Jibóia pequena, veio e mordeu a ponta do dedo do
guerreiro, mas não tinha força suficiente para comer o pai, engolir. Então o a
Jibóia pequena chamou um irmão para ajudar. Veio um irmão e tentou
morder a ponta do dedo do pé e também não conseguiu engolir. Chamaram
então o outro irmão, e o outro irmão veio e também não conseguiu engolir.
Chamaram a mãe, que era a Jibóia grande, guerreira. A Jibóia veio,
conseguiu engolir os dois pés do guerreiro, foi engolindo o pé para cima na
cintura, na barriga, aí ele começou a agir, começou a gritar, pediu socorro
para a comunidade. Começou a gritar bem alto na floresta, ―rei rei rei!‖.
O pessoal da comunidade Huni Kuin onde o guerreiro morava, escutou e
veio ver o que estava acontecendo. O guerreiro estava na metade, a mulher
dele estava engolindo ele, mas ainda estava vivo, gritando. Aí, os guerreiros
da comunidade mataram a Jibóia, conseguiram bater na cabeça e
conseguiram matar a Jibóia. Tiraram o guerreiro vivo da boca da Jibóia. Só
que o guerreiro estava todo quebrado, mordido de cobra, com as juntas
39
todas quebradas. O guerreiro pediu para os parentes dele levarem a Jibóia
também. Aí os discípulos do guerreiro levaram ele para a comunidade, e
enterraram ele e a Jibóia um do lado do outro, como o guerreiro pediu. Não
enterraram tudo junto porque ele explicou que ele ia se transformar em cipó
– ia nascer um cipó da sepultura aonde ele foi sepultado – e a Jibóia ia se
transformar em folha, kawa, a Rainha da Floresta.
Esperados três meses nasceram o cipó e a folha do jeito que ele falou. O
guerreiro também tinha falado que era para eles tirarem o cipó com muito
respeito. Antes de tirar o cipó e folha, pedir licença à natureza, pedir licença
ao cipó e à folha. O guerreiro também ensinou mais uma coisa sagrada, os
ensinamentos do mantra através da miração, o canto que foi dado. Aí como
era encantado, o cipó cresceu rapidinho, deu dessa grossura [mostra com
as mãos]. A comunidade mais antiga, dos índios mais velhos, foram lá,
pediram licença, fizeram uma oração, fizeram uma cerimônia em volta
desse cipó e da folha, tiraram e fizeram o cozimento do jeito que o guerreiro
falou, na panela de barro, colocaram folha, cipó e água. O fogo tinha que
ser feito com uma árvore especial que tem na floresta, que é yapa karu, a
madeira que a gente queima para fazer o preparamento do cipó.Toda a
comunidade foi convidada para participar dessa cerimônia de ayahuasca. A
partir desse momento, tomaram o cipó, e começaram a ter mirações na
primeira dose, na segunda dose, na terceira dose… e começaram a receber
todos os mantras que o guerreiro tinha falado. Através dessa miração eles
conseguiram captar todos os cantos Huni Meká, os mantras do cipó, e todas
as sabedorias da natureza, a ciência, o mistério, os conhecimentos da
guardiã da Jibóia, receberam essa missão. (LABATE, 2006)
Para as doutrinas ayahuasqueiras o chá é um ser divino que se encantou
na forma de bebida e ao ser ingerido poderia dar muito ensinamentos, para quem
tiver o merecimento, através da miração. É um professor que, para quem seguir
seus ensinos, encontrará seu próprio mestre interior. O ―ser divino da floresta‖
presente no chá teria o poder de promover uma ―limpeza‖ no corpo, mente e espírito
de forma gradual, purificando a alma, trazendo a tona emoções mal resolvidas e
doenças para serem expurgadas (LABATE, 2002).
Os ayahuasqueiros também compreendem que a bebida é o resultado da
união do princípio masculino encontrado no cipó Jagube e do princípio feminino
40
encontrado na folha Chacrona. A união dos dois princípios traz equilíbrio e
harmonia, dando suporte ao progresso espiritual pela nova consciência adquirida
através do contato que a bebida proporciona ao próprio self do individuo (LABATE,
2002).
O fenômeno do ciclo da borracha proporcionou intensa migração de
nordestinos à região Norte do país, que sonhavam com uma vida melhor através da
extração do látex, chamado na época de ―o ouro branco da floresta amazônica‖. O
contato entre nordestinos, negros e os índios e caboclos amazonenses permitiu que
um forte sincretismo religioso florescesse na floresta amazônica. O sincretismo entre
o cristianismo popular, o folclore caboclo amazonense, as religiões de matriz
africana e as práticas xamânicas surgiram, repaginando o cristianismo popular
trazendo elementos xamânicos e esotéricos, produzindo as chamadas doutrinas
tradicionais ayahuasqueiras conhecidas como Barquinha, Santo Daime e União do
Vegetal. Agora vamos conhecer um pouco mais sobre as três doutrinas tradicionais
ayahuasqueiras e suas visões cosmogônicas.
A Doutrina do Santo Daime
O Santo Daime é uma doutrina religiosa originária do seio da floresta
amazônica, fundada por Raimundo Irineu Serra. Ao sair de sua terra natal,
Maranhão, em 1912 para se tornar seringueiro na região do Acre, ele entra em
contato com povos indígenas nas fronteiras da selva amazônica entre Brasil e Peru,
recebendo sua iniciação sacramental com a bebida Ayahuasca. A partir desse
momento, Irineu passa a ser instruído por seres espirituais que aparecem em suas
mirações que lhe pedem para fazer uma criteriosa dieta à base de macaxeira
insossa durante oito dias, mantendo-se isolado na floresta. No último dia de sua
austeridade ele tem uma visão mariana, de um ser superior que se apresenta como
Clara que lhe entrega a missão espiritual de fundar a doutrina do Santo Daime. Esta
mítica personagem, Mestre Irineu a chama de ―Deusa Universal‖ ou a Rainha da
Floresta, intitulada também por Nossa Senhora da Conceição.
Mestre Irineu batiza a bebida e passa a chamá-la de Santo Daime, que
vem da rogativa dai-me amor, dai-me a luz, dai-me a cura. Já ficando conhecido na
41
região pelas histórias de cura e de graças alcançadas por aqueles que se
aproximavam dele e da misteriosa bebida, Mestre Irineu ganha de um político local
um lote de terra em um bairro rural no Rio Branco, dando início aos trabalhos
públicos em 26 de maio de 1930. É aberto oficialmente o Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal (CICLU) de Alto Santo.
Figura 8 - Mestre Irineu, fundador do Santo Daime
Fonte: Google Imagens, 2016
Após essa experiência, Mestre Irineu une a bebida milenar ao contexto
cultural e simbólico cristão, utilizando sabedorias transcendentais da cultura africana,
indígena e branca. Ele sofre grande perseguição por parte da polícia local devido a
grande presença da população negra em seus cultos Daimistas. A elite da época
ficou temerária devido ao aglomerado de afrodescendentes em um culto religioso
desconhecido pela elite branca. De 1935 a 1940, Mestre Irineu desenvolveu a
Doutrina, conforme instruções recebidas do astral, canalizando hinos que seriam
cantados no ritual, durante suas experiências com o Daime.
42
A comunidade Alto Santo abrigava cerca de quarenta famílias que viviam
em sistema de mutirão, vivendo do que plantavam, sendo autossustentáveis. Mestre
Irineu recebia a todos e prestava assistência a quem estivesse doente, necessitado
de conselhos ou de amparo espiritual. Mestre Irineu faleceu em 1971, deixando
como legado a comunidade Alto Santo e a Doutrina do Santo Daime, além de
dezenas de hinos canalizados por ele como forma de transmissão de mensagens
espirituais que atuavam concomitante a força da bebida Ayahuasca nos trabalhos da
doutrina do Santo Daime.
Após a morte do fundador do Santo Daime, a doutrina se divide em duas
vertentes denominadas ―Alto Santo‖. Um é comandado até hoje pela viúva do Mestre
Irineu, Senhora Peregrina Gomes Serra, que possui uma única igreja no Acre e não
admite a expansão da Doutrina pelo mundo. O outro grupo ficou sob o comando de
Francisco Fernandez Filho, que foi sucedido alguns anos depois por Luiz Mendes,
atualmente possuindo algumas filiais na região Norte do país (LABATE, 2002).
A criação do CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente Luz Universal
Raimundo Irineu Serra) está ligada ao Padrinho Sebastião Mota de Melo.
Seringueiro amazonense, ele mudou-se para o Rio Branco no Acre em 1965 onde
obteve contato com Ayahuasca através do próprio Mestre Irineu quando estava a
procura de curar uma grave enfermidade Em 1974, após o falecimento de Raimundo
Irineu Serra, Mota funda o CEFLURIS em uma região conhecida como Colônia
Cinco Mil, na cidade do Rio Branco, Acre (LABATE, 2004; GOULART, 2004).
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Figura 9 - Padrinho Sebastião, fundador do CEFLURIS
Fonte: Google Imagens, 2016
A partir da década de 80, Padrinho Sebastião organiza o CEFLURIS em
forma de comunidade, resolvendo se mudar em 1983 para o seringal do Rio do Ouro
no Amazonas, à beira do Igarapé do Mapiá também no Amazonas, localizado na
Floresta Nacional do Purus. Conhecida como Céu do Mapiá, sede da Doutrina,
possui como atual dirigente Padrinho Alfredo Gregório de Melo, filho de Padrinho
Sebastião e seu sucessor, desde o falecimento do pai em 1990 (LABATE, 2004;
GOULART, 2004).
Tanto no Alto Santo como no CEFLURIS é adorada a figura do Mestre
Irineu, sendo que na segunda vertente também louva-se o Padrinho Sebastião. Os
rituais desses grupos caracterizam-se pelo canto coletivo de hinos, considerados
canalizados do astral, possuem traços da influência indígena e da Filosofia do
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Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento7, do cristianismo popular com a
sagrada família (Jesus, Maria José), os santos católicos, além das figuras míticas da
cultura afrobrasileira e cabocla amazonense, bem como seres da natureza como o
Sol, a Lua, as estrelas.
A Doutrina do Santo Daime possui duas fardas (a branca que se veste em
festejos e trabalhos de hinário com mais de cem hinos e a farda azul usada nos
demais trabalhos de concentração e cura), seus participantes preservam a ordem e
a disciplina nos rituais (LABATE, 2004). Atualmente a Doutrina do Santo Daime está
espalhada pelo Brasil e pelo mundo tendo filiais não só em várias capitais e demais
cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Alto Paraíso, etc
e em outros países como Itália, Espanha, Alemanha, França, Inglaterra, República
Tcheca, Holanda, Suécia, Dinamarca, Irlanda, Portugal, Suíça, País de Gales,
Bélgica, Estados Unidos, Japão, Chile, Argentina, Uruguai e Bolívia.
A Barquinha
Esta doutrina ayahuasqueira foi fundada por Daniel Pereira de Matos,
maranhense, que em 1940 migrou para a cidade de Rio Branco no Acre a serviço da
Marinha como 2° sargento. Ao pedir baixa do exército, vai trabalhar como barbeiro,
levando uma vida boêmia no bairro do Papôco. Daniel cantava músicas sobre
paixões e a mulher amada, deleitando-se em noites festeiras.
7 O Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento foi a primeira Ordem Esotérica do país fundada
em 1909. possui os seguintes Propósitos: Promover o despertar das energias criativas latentes no
pensamento de cada associado, de acordo com as leis das vibrações invisíveis; Fazer com que essas
energias convirjam no sentido de assegurar o bem estar físico, moral e social dos seus membros,
mantendo-lhes a saúde do corpo e do espírito; Vibrar na medida de suas forças para que a harmonia,
o amor, a verdade e a justiça se efetivem cada vez mais entre os homens. Disponível em:
<http://cecpensamento.com.br/quem-somos/>.
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Figura 10 - Daniel Pereira de Matos, fundador da Barquinha
Fonte: Google Imagens, 2016
Em 1928 casa-se com Maria do Nascimento Viegas e com ela tem quatro
filhos. Em 1936 já não suportando o alcoolismo e a vida boêmia de Daniel, sua
mulher parte com os filhos para o Maranhão.
Com graves problemas no fígado devido ao excesso de álcool, recebe
uma visita de seu conterrâneo e amigo em sua barbearia. Era Raimundo Irineu Serra
que o convidara para fazer um tratamento espiritual através da bebida sagrada, o
Daime. Após iniciado o tratamento e já com alguma melhoria, em pouco tempo
Daniel retorna para sua vida boêmia. Outra vez doente, volta a fazer o tratamento
com Mestre Irineu na doutrina do Alto Santo, onde frequentou por um ano (SENA
ARAÚJO, 1999; COSTA, 2008).
46
Outra vez doente, foi chamado por Irineu para um novo tratamento no Alto
Santo. Depois de tratado e iniciado nos trabalhos do Mestre, Daniel passou
a seguir a Doutrina fundada pelo amigo. Lá ajudou a musicar os primeiros
hinos. Após acompanhar o amigo que havia lhe socorrido anteriormente
ajudando-o a repor sua estabilidade física e espiritual. (SENA ARAUJO,p.35
1999)
Em um dado momento, Daniel resolve beber o daime sozinho e tem uma
visão onde dois anjos desciam do céu, com um livro azul contendo a missão
espiritual, na qual ele deveria fundar uma doutrina cristã com base na caridade. Esta
revelação já havia sido feita anteriormente quando, embriagado, adormecera as
margens de um igarapé onde teve um sonho com os anjos e o livro azul. Daniel
resolve seguir seu destino para fundar uma linha de trabalho própria. Com o apoio
do Mestre Irineu que lhe dera bastante Daime para iniciar seus próprios trabalhos,
segue para a zona rural do Rio Branco, dando início aos trabalhos da Barquinha
(ARAÚJO NETO apud SENA ARAÚJO, 1995).
No seringal de Santa Cecília, no bairro de Vila Ivonete, Daniel instala-se
numa casinha de madeira, coberta por palha, iniciando os seus trabalhos de
atendimento que ele designou como ―Obras de Caridade‖. Seu trabalho durou doze
anos, falecendo em 1958. Atualmente existem filiais da Barquinha no Acre, no
estado do Rio de Janeiro, Brasília e uma filial em Fortaleza (CE). Esta é a vertente
considerada mais eclética, dos três grupos, por ter maior influência da umbanda, da
cultura nordestina e amazônica. Nos rituais há incorporação de seres espirituais do
astral, da terra e do mar, cantando-se salmos e pontos, rezando orações cristãs. A
Barquinha é a missão deixada por Daniel Pereira de Matos e seus adeptos são
considerados ―marinheiros do mar sagrado‖ (SENA ARAÚJO, 1999; LABATE, 2004).
A União do Vegetal (UDV)
A União do Vegetal (UDV), foi fundada por José Gabriel da Costa, baiano,
que migrou para o Norte do país para trabalhar na extração da seringa. Durante a
Segunda Guerra Mundial (1943), o governo brasileiro, visando aumentar a extração
do látex das seringueiras nativas na Floresta Amazônica, recrutou um exército de
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―soldados da borracha‖ e deu opção aos jovens nordestinos de irem para a
Amazônia, trabalhar nos seringais amazonenses. Em 1944, sem ter oportunidade de
despedir-se, José Gabriel escreve uma carta para sua família e embarca em um
navio para Belém (PA), com destino a Porto Velho, então Capital do Território
Federal do Guaporé, hoje Estado de Rondônia.
Em 1959 teve seu primeiro contato com a Ayahuasca através de alguns
de seus amigos seringueiros aonde ela bebe pela primeira a bebida das mãos de
Chico Lourenço. Em 1961, Mestre Gabriel cria o Centro Espírita Beneficiente União
do Vegetal, falecendo em 1971A instituição conta hoje, com cerca de 200 unidades,
em todos os estados do Brasil, Peru, em alguns países da Europa, América do Norte
e Oceania. A sede da UDV localiza-se em Brasília (LABATE, 2004; GOULART,
2004).
Figura 11 - Mestre Gabriel, fundador da UDV
Fonte: Google Imagens, 2016
48
A UDV nasce nos seringais da Amazônia, na fronteira entre Brasil e
Bolívia, segundo a doutrina Mestre Gabriel reconheceu sua missão desde a primeira
vez em que bebeu o chá. Ainda em 1959 ele passa a distribuir Ayahuasca
batizando-a de Vegetal. Em 64, ele viaja com a família para Porto Velho para
consolidar as atividades da sociedade criada. Posteriormente foi feito um registro no
Jornal Alto Madeira da Associação Beneficiente União do Vegetal, intitulando um
artigo ―Convicções do Mestre‖, uma defesa pública dos principios da UDV,
Atualmente a UDV conta com filiais em todas as capitais brasileiras, além de possuir
um departamento médico-científico (DEMEC) que realiza pesquisas sobre a bebida
em parceria com instituições brasileiras e do exterior (LABATE, 2004; GOULART,
2004).
A partir da década de 1980, a União do Vegetal vem buscando o diálogo
com autoridades, de forma a normatizar o uso do chá Ayahuasca pelos seus
associados no contexto religioso. Através de pesquisas médico-científicas,
realizadas por universidades do Brasil e do exterior e o estudo de uma comissão
multidisciplinar de trabalho do Governo Federal (GT da Ayahuasca de 2010)
resultaram na Resolução do CONAD, que assegurou o uso do chá pelas religiões
ayahuasqueiras, estabelecendo as normas para sua utilização.
Nos rituais cantam-se as ―Chamadas‖, cânticos deixados por Mestre
Gabriel, para chamar as forças da natureza. O conhecimento é passado oralmente e
a palavra tem um significado especial para o grupo (LABATE, 2004). Durante os
efeitos do chá, chamado pelos discipulos da UDV de ―borracheira‖, é feito o e estudo
dos ensinamentos espirituais e da doutrina de Mestre Gabriel.
A doutrina da União do Vegetal é fundamentada na existência do espírito,
que evolui ao longo de sucessivas reencarnações. Mestre Gabriel, com
seus ensinos, fez seu reconhecimento a Jesus como o Salvador da
humanidade, ―o verdadeiro Homem, o filho de Deus‖. A UDV transmite de
forma oral e traz, em essência, os mesmos ensinos de Jesus. Orientando
para a evolução espiritual, a União do Vegetal ensina a respeito da
reencarnação. O espírito tem como missão evoluir para chegar até Deus e
as religiões existem para mostrar o caminho da retidão. ―O caminho de
Deus é limpo‖, disse o Mestre. Para orientar a caminhada espiritual, o
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conjunto doutrinário da UDV é formado por ensinos, chamadas (cânticos),
histórias e explicações, ligadas a Jesus e a outros reconhecidos pelo Mestre
Gabriel como destacamentos de Deus, que vieram ao mundo em
cumprimento de missão, como por exemplo os personagens bíblicos Adão,
Jó, Noé, Santa Ana, João Batista, Cosme e Damião. Também menciona as
entidades Iansã e Janaína, entre outras. Durante as sessões da UDV, a
partir das perguntas dos discípulos, os mestres trazem os ensinos, as
palavras e os exemplos de Jesus na forma simples como foram explicados
por Mestre Gabriel. São dadas orientações que conduzem o associado ao
aprimoramento das suas virtudes morais e intelectuais. (UDV, 2017)
A UDV em sua doutrina incentiva a busca da evolução espiritual através
de sua doutrina de orientação e aconselhamento para a prática do bem
,aprimorando os principios éticos e morais usando a sagrada bebida como veículo
para os ensinamentos doutrinários. Os caianinhos como são chamados os discípulos
do Mestre Gabriel compreendem que o caminho da doutrina é o da retidão e boa
conduta. Era comum ao mestre usar situações do cotidiano, sobretudo da irmandade
para trazer ensinos. Muitos dos ensinamentos estimula os preceitos de união e
fraternidade e valorização da família valorizando a presença dos adolescentes no
sentido de contribuir na formação de valores e do carater dos jovens.
As doutrinas neo-ayahuasqueiras
O Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal são as três principais
doutrinas ayahuasqueiras surgidas na região Norte do país. Porém, nas últimas
décadas ouve um crescimento das denominadas doutrinas neo-ayahuasqueiras, que
são religiões que surgem num contexto urbano, com acentuado sincretismo
religiosos, trazendo influências das doutrinas ayahuasqueiras tradicionais, do
Oriente (budismo, cultura védica), bem como recursos terapêuticos são incorporados
em rituais com a Ayahuasca (Pathwork, renascimento, constelações, meditação).
Na minha monografia, pude realizar uma etnografia no Núcleo São José, um centro
neo-ayahuasqueiro filial do Caminho do Coração, localizado no Eusébio, região
metropolitana de Fortaleza, Ceará. Falaremos um pouco sobre a cosmologia dessa
instituição pelo fato dela possuir muitos aspectos das religiões neo-ayahuasqueiras
e representa bem as novas doutrinas que nascem em contexto urbano.
50
O Caminho do Coração
Janderson Fernandes de Oliveira, atualmente conhecido como Sri Prem
Baba, nasceu no bairro da Aclimação em São Paulo, no ano de 1965. Formou-se em
psicologia e teatro, fez cursos sobre Yoga, terapias holísticas, frequentando várias
religiões como budismo, umbanda, espiritismo, candomblé além de escolas
esotéricas como a Gnose e a Rosa Cruz.
Figura 12 - Sri Prem Baba, fundador do Caminho do Coração
Fonte: Google Imagens, 2016
Janderson conhece o chá na década de 90 e passa a frequentar uma
igreja do Santo Daime chamada Flor das Águas, na época, única sede daimista na
cidade de São Paulo. Ele chega a se fardar no Santo Daime e em um trabalho de
finados ele tem uma visão com Mestre Irineu revelando que ele deveria abrir seu
próprio trabalho de cura. Alguns anos se passaram, até que angustiado por sua
busca espiritual vai à Índia aonde vem a conhecer o seu mestre espiritual que
aparecia para ele em seus sonhos, Sri Hans Raj Maharaji Ji.
51
Maharaji o inicia na sabedoria védica através da transmissão espiritual de
Guru para discípulo, chamado pelos iogues de parampara. Segundo Janderson, em
2002, durante um festival hindu chamado Mahashivaratri ele entra em estado de
samadhi, alcançando a Iluminação. A partir desse momento, Prem Baba começa a
desenvolver a centelha do Caminho do Coração que possui como influências
principais a Doutrina do Santo Daime, a psicologia (o método de autoconhecimento
chamado Pathwork) e a cultura védica. No Caminho do Coração, segundo seus
princípios, o caminho para a Iluminação pode ser trilhado através do Daime
associado ao método de autoconhecimento desenvolvido por Prem Baba
(CARDOSO, 2015).
A cosmologia do Caminho do Coração está presente nos hinários
canalizados por Prem Baba e que são tocados nos rituais do Núcleo São José.
Onde estão presentes seres da Umbanda como Oxum, Exú, Oxalá, seres da falange
oriental como Ganesha e Shiva, além de referências a doutrina do Santo Daime
como Mestre Irineu, Rainha da Floresta, Beija-Flor (considerado potência de cura no
Santo Daime) e ao catolicismo com a presença de São Miguel e referências à
Virgem Mãe e à sagrada família. O Caminho do Coração compreende a Escola da
Floresta como a união da umbanda, do folclore caboclo amazonense e do Santo
Daime e a Escola do Oriente como a união dos conhecimentos orientais tais como a
cultura védica e o budismo. Essas escolas possuem conhecimento milenar, e
mesmo que sejam distantes em tempo e espaço, mas possuem ensinamentos que
se complementam e que são usados como um guia na busca do autoconhecimento
e autorrealização.
Além disso, o Caminho do Coração inova em seus rituais. Além de usar
os hinários como parte do ritual, são utilizados áudios com palestras do Prem Baba,
em que ele também utiliza o método Pathwork como ferramenta para transmissão do
seu conhecimento psicológico. Ele compreende que através da expansão de
consciência que o Daime propicia aliado aos ensinos do Pathwork é possível a
pessoa investigar padrões de comportamento que sabotam a felicidade e a
realização pessoal, a cura de traumas psicológicos da infância e a transformação de
hábitos e crenças negativos em positivos, trazendo uma nova forma de viver.
52
Segundo Labate (2004), Janderson construiu a cosmologia do Caminho
do Coração nos moldes New Age, que não é uma religião, mas um tipo de
religiosidade difusa, um movimento que faz parte de uma rede urbana entre centros
holísticos. Prem Baba, atualmente expandiu seu movimento criando Awaken Love
(Despertar do Amor) em que incentiva a prática do silêncio e de valores humanos
para a criação de uma nova realidade social (CARDOSO, 2015).
A diversificação do uso da Ayahuasca na atualidade
Neo-ayahuasqueiros formam assim uma interseção entre as redes que
compõem o universo da Nova Era e as suas matrizes, de um lado, e as
religiões ayahuasqueiras ―tradicionais‖, de outro. Tal posição gera uma
configuração sui generis, rica em simbolismos e práticas (LABATE, 2004,
p.88).
Beatriz Labate (2004) também compreende que essas redes extrapolam a
realidade local e fala em uma rede ayahuasqueira global, que é uma característica
da sociedade moderna, onde há uma desterritorialização da cultura. Ao passo que o
consumo da Ayahuasca, no contexto urbano, contemporâneo e neo-ayahuasqueiro
apresenta, no geral, uma tendência imediatista e de consumo da natureza,
redefinindo concepções contemporâneas de religiosidade.
A doutrina, a fé, o sentido de religião é que estabelece limites e regras, dá
noção de certo e errado e confere sentido. A ruptura dessas regras e a
criação de novos formatos ritualísticos podem ser feitas. Têm sido feitas, mas
dentro da lógica interna que mantém o encanto, o mistério, a fé, para não
destruir justamente aquele elemento imaterial que transforma, agrega valor
simbólico e significado onde muito veem apenas mistura química
(FACUNDES, 2011, p. 262).
Nesse sentido Labate (2004) aponta para uma diversificação do uso do
chá Ayahuasca no contexto urbano na atualidade. Através de pesquisas juntos a
determinados grupos que fazem uso do chá na atualidade, ela cita como exemplos
dessa reinvenção da Ayahuasca, grupos que fazem uso do chá em jam sessions8
(no caso o grupo Céu dos Alpes) e em oficinas de teatro (grupo Porta do Sol em São
8 São tocadas músicas em um repertório improvisado.
53
Paulo). Além de grupos terapêuticos que tratam moradores de rua e dependentes
químicos (Associação Beneficiente Luz de Salomão [ABLUSA]).
A diversificação representa uma reinvenção continua nas formas de
utilização do chá. Porém essa diversificação na experiência com a Ayahuasca, pode
acarretar na desagregação do chá de um contexto simbólico-ritualístico. Há aqueles
que buscam de forma imediatista a experiência, através da extração química dos
alcaloides da bebida (DMT, harmina e harmalina) produzindo um psicoativo idêntico
a ayahuasca quimicamente.
Mas será só um psicoativo, incapaz de gerar uma doutrina, um corpo de
ensinamentos e princípios sólidos, que proporcionem uma visão de mundo
consistente e capaz de agregar, de integrar e estimular o homem a viver com
seus semelhantes de modo melhor (FACUNDES, 2011, p. 262).
É necessário o cuidado ao tratar das matrizes culturais associadas ao chá
que nos tempos atuais foram e estão sendo distorcidas de seu conteúdo imaterial,
transformada em simples fármaco. A necessidade de proteção, de estudos e a
preservação do sagrado são os desafios desse século. O chá já possui uma
expansão avançada pelo mundo, mas é necessário preservar a lentidão de
aprendizados que envolve o homem e o meio social, aspectos históricos e morais
que são necessários para o desenvolvimento das próprias doutrinas. A formação de
valores é necessária para que se evite a criação de fast religion, Ayahuasca de
massa e ofertas de DMT, que tornem a experiência pobre de significado, vazia de
sentido, desconectando o individuo de sua realidade (FACUNDES, 2011).
54
3.5 ASPECTOS LEGAIS DA BEBIDA AYAHUASCA
Desde tempos pré-colombianos o chá Ayahuasca está presente em rituais
de sociedades autóctones. Além dos grupos indígenas, as três principais tradições
ayahuasqueiras brasileiras Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal fazem uso
da bebida desde os anos 1930, 1945 e 1960 respectivamente. Com o advento de
religiões neo-ayahuasqueiras, em centros urbanos, que possui elementos tanto das
doutrinas tradicionais, como de outras religiões e a participação de culturas
ameríndias que fazem o uso ritualístico do chá, têm-se levantado cada vez mais
questões sobre dificuldades concernentes às políticas públicas sobre drogas e
religião no Brasil. Embora questões relativas ao uso e legislação do chá Ayahuasca
não estejam plenamente claras pela jurisdição brasileira veremos a seguir quais os
impasses e os avanços referentes ao tratamento jurídico brasileiro dado ao uso do
chá.
O principio ativo DMT do chá Ayahuasca é controlado no Brasil pela
Portaria SVS/MS 344/1998 do Conselho Nacional de Drogas9 (CONAD) e,
internacionalmente, pela Convenção das Nações Unidas desde 1971. A legislação
brasileira não especifica quais substâncias são proibidas, deixando a cargo do setor
executivo do Governo Federal. As substâncias são classificadas pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desde 1999, quando ainda era
denominada como Divisão Nacional de Medicamentos (DIMED).
Em 1985 o DIMED classificou o cipó Banisteropis caapi como planta
proibida, através da Portaria n°2 de 1985. O Conselho Nacional de Entorpecentes,
órgão antecessor ao CONAD, propôs um Grupo de Trabalho (GT) da Ayahuasca
para aprofundar o tema e em 1986 ela foi temporariamente retirada da lista de
plantas proibidas. Após reuniões, o GT da Ayahuasca recomendou a suspensão
definitiva da proibição da B.caapi, autorizando seu uso religioso através do Relatório
Final do GT da Ayahuasca de 1987. Porém, o GT nunca cogitou a exclusão da
molécula DMT que permanece proibida no Brasil (LABATE, 2012). Os debates em
9 O CONAD é o órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD)
e suas decisões ―deverão ser cumpridas pelos órgãos e entidades da Administração Pública
integrantes do Sistema‖ (arts. 3o, I, 4o, 4o, II e 7o, do Decreto no 3.696, de 21/12/2000).
55
torno da Ayahuasca prosseguiram e com a Resolução n°26 de 2002 do CONAD
ficou proibida tanto a exportação da bebida, como o consumo para indivíduos
menores de 18 anos. Na Resolução n°26, de 31 de dezembro de 2002 do Conselho
Nacional Antidrogas (CONAD), ficou definido a deliberação de normas de controle
social referente ao chá Ayahuasca com as seguintes atribuições:
- considerando que o uso ritualístico do ―chá ayahuasca‖ constitui-se em
manifestação cultural e religiosa regional de há muito reconhecida pela
sociedade brasileira;
- considerando que os responsáveis pelas diversas confissões religiosas
usuárias do ―chá ayahuasca‖ estão cientes da proibição de sua
comercialização, bem como das ervas que o compõem, em razão de seu
alcance estritamente religioso;
- considerando que as confissões religiosas conhecem sobre a proibição da
exportação do ―chá ayahuasca‖ ou do cipó Jagube/Mariri – Banisteriopsis
caapi, e da folha Rainha/Chacrona – Psychotria viridis, haja vista o seu uso
exclusivamente ritualístico, peculiar a uma manifestação cultural regional
brasileira, e mais as restrições decorrentes da legislação brasileira e de
Acordos Internacionais assinados pelo Brasil;
- considerando que os responsáveis pelos rituais religiosos são, também,
responsáveis pela não administração do ―chá ayahuasca‖ aos menores de
dezoito anos e às pessoas portadoras de deficiência mental;
- considerando a importância de que os usuários praticantes restrinjam o
uso do ―chá ayahuasca‖ exclusivamente aos rituais religiosos, realizados no
interior dos templos das seitas;
- considerando a necessidade de que as entidades religiosas exerçam,
como atividade de controle próprio e de sua particular responsabilidade,
sujeita às restrições da legislação vigente, a atenção sobre o cultivo, a
colheita e o transporte do cipó Jagube ou Mariri – Banisteriopsis caapi e da
folha Rainha ou Chacrona – Psychotria viridis; (CONAD, 2002, p.1)
Em 2004, foi criado o Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT da
Ayahuasca) que tinha por finalidade estabelecer parâmetros deontológicos para o
uso da Ayahuasca em contexto religioso. Tais parâmetros estabeleciam regras
relativas ao transporte da Ayahuasca e os grupos deveriam plantar as espécies
56
garantindo a sustentabilidade ecológica. Além disso, os grupos ayahuasqueiros
deveriam constituir-se como entidades legais registradas junto ao CONAD.
Em 2006 o GMT entregou o Relatório Final e que, posteriormente, foi
incluído na Resolução n°1, de 25 de janeiro de 2010. O Grupo Multidisciplinar de
Trabalho, instituído pela Resolução nº. 5 do CONAD, em 2004, para levantamento e
acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca, bem como para a pesquisa de
sua utilização terapêutica, em caráter experimental, foi oficialmente instalado pelo
Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República
e Presidente do Conselho Nacional Antidrogas, Jorge Armando Félix, em 2006, e
teve como objetivo final a elaboração do documento que traduzisse a deontologia do
uso da Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado.
Nos termos da referida Resolução, o GMT foi composto por
seis estudiosos, indicados pelo CONAD, nas áreas que atenderam, dentre outros, os
seguintes aspectos: antropológico (representado pelo Dr. Edward John Baptista das
Neves MacRae), farmacológico/bioquímico (Dr. Isac Germano Karniol), social [Drª
Roberta Salazar Uchoa], psiquiátrico [Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho] e jurídico
[Drª Ester Kosovski] e seis membros, convidados pelo CONAD, representantes dos
grupos religiosos que fazem uso da Ayahuasca.
Com isso, foi instaurado um conjunto de regras, normas, princípios éticos
a serem seguidos e a proibição da comercialização, do turismo, da publicidade e do
uso do chá associado a outros tipos de substâncias ilícitas. Com a Resolução de
2010, a preparação, o armazenamento e o consumo do chá ficaram permitidos para
o uso restrito em rituais religiosos. A Resolução também incentivou as pesquisas
cientificas sobre os potenciais terapêuticos do uso da Ayahuasca.
Assim como os EUA, o Brasil é signatário da Convenção das Nações
Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas (CPS) de 1971, que relaciona a molécula
DMT como substância de controle nível I:
De acordo com a CPS (Art. 32[4]), os países signatários podem isentar do
controle ―plantas que crescem espontaneamente e contém substâncias
psicotrópicas, incluídas no Nível I e que são tradicionalmente usadas por
57
grupos pequenos e claramente demarcadas, em ritos mágicos ou religiosos.‖
Alguns poucos países recorreram a essa provisão – Bangladesh (não
especificado), Canada (peiote), México (não especificado), Peru (San Pedro e
ayahuasca), e os EUA (peiote) – mas o Brasil não estava entre eles (CPS,
Declarations & Reservations) (LABATE, p.7, 2012).
Quando a Convenção das Nações Unidas entrou em vigor em 1976, os
grupos religiosos ayahuasqueiros no Brasil encontravam-se isolados na floresta
amazônica e não havia preocupação nacional relativa a esses grupos. O interesse
por tais religiões começa a se expandir pelo Brasil a partir da década de 1980 com a
exposição na mídia brasileira das doutrinas ayahuasqueiras. Com o advento da
Constituição Federal de 1988 destacou-se os princípios de liberdade religiosa e de
proteção do Estado às manifestações culturais, populares indígenas e afro-
brasileiras, respaldando as manifestações religiosas tradicionais amazonenses.
[...] quando uma prática pouco conhecida e geograficamente circunscrita à
região norte do Brasil insere-se em novas dinâmicas, adquirindo um novo
status e visibilidade crescente, sobretudo a partir do posicionamento de novos
agentes no debate – foi fundamental para a consolidação da concepção do
uso da ayahuasca enquanto manifestação religiosa ligada a uma tradição
cultural amazônica de longa duração. (ANTUNES, p.9, 2012)
Segundo Labate (2012), a CPS de 1971 traz algumas dúvidas a respeito
da regulamentação da bebida Ayahuasca. A CPS considera a DMT como substância
controlada, porém não proíbe explicitamente a Psycotria Viridis, planta que possui a
molécula e faz parte da fórmula Ayahuasca. A dúvida está na provisão que afirma
que ―uma preparação está sujeita as mesmas medidas de controle que as
substancias psicotrópicas nela contidas‖ CPS (1971, Art. 1[f]). O caso levanta
dúvidas a respeito se a Ayahuasca está coberta pela CPS, já que é uma bebida
composta por duas plantas. A dúvida permaneceu até 1988 quando foi adotada a
UN Convention Against Illicit Traffic in Narcotics Drugs and Psychotropic
Substances:
Segundo o Comentário a essa Convenção, uma ―preparação‖ de substâncias
psicotrópicas deveria ser compreendida como ―a mistura de uma dada
58
quantidade de uma droga com uma ou mais substância diferentes‖. (LABATE,
p.8, 2012)
Embora não haja um consenso referente à CPS internacional sobre a
regulamentação da Ayahuasca, a interpretação individual de cada nação é
importante para que cada signatário possa implementar políticas nacionais mais
restritivas ao controle do consumo da bebida. Cada país pode interpretar a CPS de
modo diferente e formular leis mais estritas, mas questões relativas à importação e
exportação da bebida, por exemplo, continuam a tingir o debate sobre a
regulamentação e expansão do uso da Ayahuasca. Esse aspecto é frágil na
Resolução de 2010 que não fornecem diretrizes a respeito (LABATE, 2012).
Embora a questão da segurança não tenha predominado durante a
preparação da Resolução do CONAD de 2010, vários aspectos indicam que
considerações de saúde e segurança são elementos importantes no debate
no Brasil: a proibição do uso de ayahuasca por menores de 18 anos, que
vigorava numa resolução anterior atualmente extinta, o debate ainda em
aberto sobre o uso de ayahuasca por gestantes (Labate, 2011b), e o estimulo
ao aprofundamento da pesquisa cientifica recomendado pela Resolução atual
são alguns desses aspectos. Embora tenham surgido novas pesquisas
cientificas sobre as consequências da ayahuasca sobre a saúde (Labate &
Cavnar, 2010; Labate et al., 2009), preocupações com a segurança
permanecem indubitavelmente um ponto de controvérsia e preocupação na
esfera internacional. (LABATE, p.23, 2012)
No Brasil, o consumo do chá Ayahuasca é permitido em contexto
religioso. Embora não haja definição do que é religião na Constituição Federal ou em
qualquer outro estatuto legal, a liberdade de crença e de culto está protegida de
modo geral pela Constituição de 1988, Arts 1°, III, 5°, VI. Apesar da ausência de
definição constitucional sobre o que é religião, o governo federal reconheceu o uso
sacramental da Ayahuasca com a Resolução de n°5 do CONAD em 2006 e a
Resolução n°1 de 2010 apoiou-se nesse processo.
Apesar da colaboração do governo brasileiro, questões sobre
autenticidade religiosa e legitimidade tradicional permanecem como fonte de
controvérsia entre os grupos ayahuasqueiros. Devido a cada instituição e doutrina
59
atribuir uma visão de mundo diferente com relação ao chá e sua relação
cosmogônica. Além do que, certas doutrinas levantam em questão da legitimidade
de outros grupos ayahuasqueiros. Como por exemplo, o caso da Doutrina do Santo
Daime em que há uma cisão entre a instituição liderada por Madrinha Peregrina e a
deixada por Padrinho Sebastião, em que a primeira considera a segunda ilegitima.
Nesse sentido, a indefinição sobre o conceito de religião na Constituição Federal
pode excluir modalidades como o xamanismo ayahuasqueiro por não representar o
modelo ocidental de religiosidade (LABATE, 2012).
Em abril de 2008, representantes das três principais doutrinas
ayahuasqueiras tradicionais (Barquinha, Santo Daime e União do Vegetal), com
apoio de autoridades das Fundações Culturais do Acre e do município do Rio
Branco encaminharam o pedido de patrimonialização da bebida Ayahuasca em
rituais religiosos ao ministro da cultura da época, Gilberto Gil, e ao Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), para que a bebida se tornasse um
bem cultural imaterial brasileiro. No mesmo ano, no Peru, o uso tradicional da
Ayahuasca tornou-se patrimônio cultural da nação por comunidades nativas. Em
2006, o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (Santo Daime – CICLU) de Alto
Santo foi tombado por decretos simultâneos do governador e do prefeito como
patrimônio histórico cultural do Acre e de Rio Branco.
O poder político local reconheceu a relevância histórica e cultural dessa
instituição para a formação da Doutrina do Santo Daime e da sociedade acreana.
Um ano antes, em 2005, foi criada a primeira Área de Proteção Ambiental (APA) do
Acre na Vila Irineu Serra, chamada de Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu
Serra (APARIS). Essas realizações comprovam que tanto o Governo do Estado do
Acre, como a Prefeitura do Rio Branco tem realizado esforços para desenvolver
ações de caráter prioritariamente cultural e ambiental para reconhecimento e
valorização das comunidades ayahuasqueiras. A solicitação do pedido de
patrimonialização da Ayahuasca, que é um reflexo dessas políticas de valorização
da cultura ayahuasqueira iniciada há alguns anos pelo estado do Acre, causou
impacto junto à imprensa e a opinião pública brasileira. O processo já nasce sob o
estigma da polêmica e sofre fortes reações e resistências durante o andamento do
processo, além dos entraves burocráticos.
60
Em reunião realizada em 26/11/2008, a Câmara do Patrimônio Imaterial
recusou o registro da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil sob a
alegação de que o pedido não representaria elementos suficientes para a
identificação do objeto do Registro em relação às categorias e critérios
estabelecidos pelo Decreto 3551/2000. Segundo a ata da reunião, ―comidas,
bebidas, assim como crenças, filosofias e teologias, não constituem em si
bens culturais passíveis de Registro, mas sim, referências para a produção e
reprodução de processos, representações e práticas culturais‖. (SANTOS,
p.3, 2010)
Como parte desse movimento de discussão sobre o uso contemporâneo
do chá Ayahuasca ocorreu a II World Ayahuasca Conference 2016 foi realizada na
cidade de Rio Branco (Acre), entre os dias 17 e 22 de outubro de 2016, tendo como
principal promotor a ICEERS Foundation. Esta Conferência reuniu pesquisadores,
estudantes, religiosos, representantes governamentais e lideranças indígenas,
interessados nos usos contemporâneos da Ayahuasca. Esta substância psicoativa
tem sido utilizada em rituais religiosos no Brasil (aqui legalmente aceita) e em outros
países, suscitando um variado número de interesses, sejam científicos, religiosos,
tradicionais e jurídicos. O evento reuniu temas diversos, associados diretamente à
Ayahuasca, tais como: tradições e saberes indígenas, psicologia e saúde pública,
uso terapêutico, religiões, shamanismo, patrimônio, sustentabilidade, aspectos
jurídicos, dentre outros.
Representantes dos povos indígenas da região amazônica estiveram
presentes, tais como os Yawanawá, Jaminawa, Kaxinawa, Kuntanawa, Ashaninka,
dentre outros. Eles confirmaram o uso tradicional das plantas sagradas, a luta pela
terra, a importância da espiritualidade, a resistência dos povos indígenas, a
reverência à floresta, dentre outros temas. Sua presença foi relevante, pois, no
processo de patrimonialização da Ayahuasca, iniciado em 2008, eles não assinaram
a solicitação formal, tendo sido feito apenas pelos representantes das três linhagens
religiosas, isto é, UDV, Santo Daime de Mestre Raimundo Irineu e a Casa de Mestre
Daniel Pereira de Matos.
61
O evento trouxe experiências terapêuticas não religiosas que vem sendo
praticadas mediante o uso da Ayahuasca. Uma das entidades é a Associação
Beneficente Caminho de Luz, cujo trabalho teve início em 1994, sendo entidade
filantrópica no Acre, atuando na recuperação e reinserção social de pessoas
acometidas pelo uso abusivo de álcool e outras drogas10. Outra instituição é o
Centro de Reabilitação Emocional e Espiritual Vida Livre (CDI Luz do Vegetal),
localizado em São Paulo, sendo uma entidade voltada para recuperação de pessoas
com transtornos emocionais e problemas de dependência de substâncias químicas,
em que várias técnicas são utilizadas, entre elas o uso da Ayahuasca11.
No debate sobre a patrimonialização da Ayahuasca foi questionado o
longo período para a conclusão do processo, iniciado em 2008. O Sr. Deyvesson
Israel Alves Gusmão, representante do IPHAN (Departamento de Patrimônio
Imaterial), explicou que a demora se deve ao importante fato de que os povos
indígenas usuários da Ayahuasca não foram consultados e nem subscreveram o
documento de pedido para transformar a Ayahuasca em patrimônio cultural imaterial
no Brasil. O IPHAN estaria então consultando diversas comunidades indígenas que,
por sua diversidade étnica e uso tradicional das plantas sagradas, exige um trabalho
alongado de identificação. O Sr. Deyvesson esclareceu que os técnicos do IPHAN
têm avaliado o que pode ser objeto da política de patrimônio, no caso do uso ritual
da Ayahuasca, considerando a multiplicidade de usos, linguagens, crenças e
aspectos étnicos em jogo. Até o momento, o IPHAN tende a limitar o objeto da
política pública ao processo de elaboração ritual do chá, o que parece ser um
elemento comum a todos os interessados no assunto.
Mesmo com os impasses iniciais, o IPHAN abriu o respectivo processo de
patrimonialização e em seguida o Inventário Nacional de Referências Culturais -
INRC que é um procedimento desenvolvido a partir de métodos etnográficos que
visam levantar dados, informações e dar consistência aos pedidos de registro e
salvaguarda de um bem imaterial. Mas o processo ficou embargado, e desde então
o IPHAN ainda não se posicionou a respeito da situação da Ayahuasca.
10
Site da instituição: <www.cadesac.com.br> 11
Site da instituição: <www.vidalivre.org.br>.
62
O INRC é um instrumento que cataloga e registra determinado bem de
natureza imaterial. Este levantamento visa ―Inventariar‖ os bens culturais que
remetem á identidade cultural de um grupo social. Quando determinado bem cultural
é conhecido através do INRC ele será, em seguida, reconhecido através de outro
instrumento do IPHAN chamado Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.
Antes do Registro do Bem imaterial, o conselho consultivo do IPHAN, ligados á
diferentes esferas de atuação, decidirão se a proposta é consistente e se deve ser
feito o registro.
O bem cultural imaterial, já devidamente registrado será inscrito em um
dos Livros de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que, atualmente está
dividido em quatro categorias: Livro de Registros de Saberes – para a inscrição de
conhecimentos e modos de fazer das comunidades; Livro de Registros de
Celebrações – para rituais e festas, da religiosidade e outras práticas da vida social;
Livros de Registro das Formas de Expressão – registro de manifestações literárias,
musicais, plásticas, cênicas, lúdicas; Livro de Registro dos Lugares – espaços como
mercados, feiras, praças e santuários, onde se reproduzem práticas culturais
(IPHAN, 2007).
Porém, o pedido do IPHAN para a realização do INRC da
Ayahuasca não conta apenas com a pesquisa de religiões ayahuasqueiras que
solicitaram o pedido, mas também dos povos indígenas que fazem uso do mesmo
chá e das comunidades urbanas mais recentes, categorizadas como neo-
ayahuasqueiras. Isto nos sugere que a realização do INRC da Ayahuasca é um
empreendimento amplo acerca dos rituais em que se faz o uso do chá. Essa
amplitude ocorre devido à diversidade cultural em torno da bebida levantando
questões do que se pretende inventariar afinal (SANTOS, 2010).
A proposta apresentada pelos técnicos do IPHAN dividiu o projeto em três
campos de pesquisa: campo dos originários, campo tradicional ou tradicionalista e
campo eclético ou neo-ayahuasqueiro. Nesse vasto leque em que a Ayahuasca está
presente, surgem as delimitações e dificuldades para a execução do INRC. É
necessária uma grande equipe de pesquisadores e de financiamento, além da
execução desse amplo projeto. No INRC, são feitas pesquisas etnográficas,
63
produção em audiovisual, registros fotográficos, pesquisas bibliográficas e
documentais (IPHAN, 2007).
O pedido de patrimonialização da Ayahuasca levanta questões polêmicas
e controversas. Caso venha a ocorrer, representará uma grande conquista para as
comunidades ayahuasqueiras que ao longo do tempo foram bastante discriminadas
e marginalizadas por suas práticas religiosas. Mas, ao mesmo tempo, preservar este
bem imaterial pode significar cristalizá-lo, como se houvesse apenas uma prática
religiosa legítima a ser reconhecida. No caso da Ayahuasca, as práticas religiosas e
terapêuticas são dinâmicas, sincréticas e às vezes contraditórias (LABATE, 2011).
O uso da Ayahuasca envolve complexas redes sociais onde diversos
grupos possuem relacionamentos diferentes com esta substância enteógena12. Além
da variedade sociocultural presente nessas comunidades, a relação com a
Ayahuasca é diferente em cada grupo, que a trata e percebe diferentemente de
acordo com sua doutrina ou visão de mundo.
A realização do INRC da Ayahuasca, segundo Santos (2010), pode ser
um caminho promissor para se mapear o uso ritual da bebida. É importante levar em
consideração que as práticas em torno do chá modificaram-se muito, principalmente
no contexto urbano contemporâneo. É necessário considerar todos os fatores que
envolvem a interação entre ser humano e Ayahuasca a nível simbólico, social e
cultural, definindo parâmetros de mediação entre a cultura, as práticas sociais e o
ritual em torno da Ayahuasca. A interação entre ser humano e substâncias
psicoativas não depende apenas da atuação química da substância, mas, sobretudo
dos fatores psicológicos, biológicos e sociais presentes: como o estado psicológico
no qual a pessoa se encontra ao ingerir a substância, incluindo-se aí sua estrutura
de personalidade e expectativas a respeito da substância e o meio físico, social e
cultural onde ocorre o seu uso (MACRAE, 1999).
Nos próximos capítulos iremos aprofundar a compreensão a respeito dos
impasses e limites para que o processo de patrimonialização da Ayahuasca ocorra,
bem como a análise das políticas públicas de patrimônio cultural imaterial no Brasil.
O pedido de patrimonialização da Ayahuasca reforça a necessidade de avaliação da
12
Enteógeno: palavra grega que significa ―Deus dentro‖. Utilizo essa palavra para me referir às
substâncias psicoativas que agem ampliando o estado de consciência do indivíduo.
64
jurisdição brasileira e de compreender como a mesma trata questões ligadas à
cultura, identidade religiosa, o consumo de substâncias psicoativas e categorias
ligadas ao patrimônio imaterial brasileiro. Essa investigação visa compreender quais
aspectos legais a política pública de patrimônio cultural pode ser repensada e como
o caso da Ayahuasca levanta limitações e põe em cheque discursos destoante dos
órgãos públicos envolvidos no processo.
65
4 PATRIMÔNIO CULTURAL
Neste capítulo irei me aprofundar no conceito de Patrimônio cultural.
Investigarei a origem do termo ao longo da História e a formação dessa política
pública no Brasil. Além disso, tratarei sobre os conceitos de cultura e globalização,
Patrimônio cultural e o processo de construção simbólica de identidades.
4.1 OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DE CULTURA
A palavra cultura é de origem latina e significa cultivo ou instrução. Dentro
da concepção semântica herdada do latim “colere‖, o termo ―cultura‖ designou até o
século XVII um estado de terra cultivada, para aos poucos se referir à ação de
cultivar a terra, designando algo que está em processo. Segundo Laraia (2001) o
conceito antropológico de cultura como é conhecido atualmente foi definido por
Edward Tylor, no vocábulo inglês Culture. Podemos definir cultura como um conjunto
de hábitos, linguagens, crenças, cultivadas em determinada sociedade que
delimitam a atuação do ser humano no mundo de acordo com o contexto
socioambiental na qual estão inseridos.
[...] qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu
significado de ―habitar‖ evoluiu do latim colonus para o contemporâneo
―colonialismo‖ (...). Mas colere também desemboca, via latim cultus, no
termo religioso ―culto‖, assim como a própria ideia de cultura vem na Idade
Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e
transcendência (...). A cultura, então, herda o manto imponente da
autoridade religiosa, mas também tem afinidades desconfortáveis com
ocupação e invasão; e é entre esses dois polos, positivo e negativo, que o
conceito, nos dias de hoje, está localizado. Cultura é uma dessas raras
ideias que tem sido tão essenciais para a esquerda política quanto vitais
para a direita, o que torna sua história social excepcionalmente confusa e
ambivalente (EAGLETON, 2005, p. 10-11).
Cultura é um conceito complexo. Seus próprios significados ao longo da
História demonstram seus significados complexos e ambivalentes. Por outro lado,
cultura é um conceito fundamental para se compreender aspectos da sociedade que
66
vão do político ao religioso, do popular ao erudito. Sua origem do latim cultus, nos
remete ao hábito de cultuar algo, seja uma ideia, os modos de vida ou até mesmo os
ritos da vida humana.
Cultura, para os gregos na Idade Clássica, seria a educação que é
transmitida para se atingir árete (perfeição moral). Cultura adquire assim uma
dimensão subjetiva, pois implicaria ao individuo estar atento a si mesmo, na busca
do auto aperfeiçoamento como condição de se obter árete. No mundo clássico
greco-romano o termo cultura estava associado ao conceito elevado de pessoa,
expressão da mais alta educação aristocrática e de cunho moral elevado, que
incentivava a espiritualização e a nobreza de espírito. Dos mitos gregos se
originavam as qualidades ideais ao qual o ser humano deveria cultivar inspirados
nas lendas dos nobres e heróis da mitologia clássica. De acordo com Alves (2010),
na visão clássica, cultura seria um conjunto de regras, normas, princípios morais e
modelos de ação que indicam o modo pelo qual os indivíduos e coletividades devem
se comportar.
Em síntese, o pensamento grego sobre educação já estabelecia alguns
elementos que caracterizam diversos aspectos das modernas discussões
sobre o significado de cultura, tais como: a) a modelação do homem de
acordo com um padrão ideal preestabelecido; b) a formação do individuo em
relação aos costumes considerados como imperativos [seja do mundo
cortesão, seja do ―homem simples‖]; c) a desigualdade e diferença dos
grupos humanos como consequência das diferenças dos valores espirituais
[como a diferença entre ―bárbaro‖ e o ―civilizado‖] (ALVES, 2010, p. 27).
Na Idade Média o conceito de cultura se manteve ligada a ideia de
espiritualidade, de uma busca de práticas e experiências como condições para o
aperfeiçoamento do espirito. Além disso, o ser humano era visto como pertencente
ao Todo e ao Cosmos cabendo ao individuo contemplar a criação divina. No final da
Idade Média e com a acepção do Racionalismo juntamente com o declínio do
poderio da Igreja e a formação dos Estados-nações começa-se a desenvolver uma
concepção de individualismo ao qual o ser humano percebe as suas limitações
(ignorância) frente ao universo infinito e impenetrável.
67
Com o advento do Iluminismo, cultura passa a representar um fenômeno
inerentemente humano que tem como referencia as ideias de progresso, evolução e
educação e por objetivo um refinamento cultural dos costumes. No século XVIII
cultura associa-se ao conceito de civilização, expressando a ideia de refinamento do
comportamento humano. Portanto civilização é um movimento coletivo resultado do
desenvolvimento da cultura (Alves, 2010). O termo cultura não se restringiu apenas
ao conceito de civilização, associou-se também a noção de diferenças nacionais,
associando-se aos conceitos de ―nação‖, ―nacionalismo‖ e ―nacionalidade‖. Além
disso, os pensadores iluministas concebiam o ser humano como um ser
cosmopolita, tomando consciência das formas simbólicas da constituição da vida
humana, lançando as bases para a formação do conceito de ―relativismo cultural‖.
O conceito antropológico de ―relativismo cultural‖ é de maneira simplista a
ideia de que não podemos julgar outra cultura com base em nossos próprios valores
e costumes. Isso permitiu o alargamento da concepção de cultura permitindo a
criação de outros conceitos como: Cultura popular, cultura erudita, cultura indígena,
cultura europeia entre outros.
O conceito de cultura foi se modificando e se ampliando ao longo do
tempo adquirindo uma gama múltipla de significados e sentidos. Hoje é possível
encontrar uma série de definições sobre o que é cultura o que torna complexo a sua
definição e estudo. Além das categorias acima citadas que foram incorporadas ao
conceito de cultura tais como o de cultivo, instrução, educação, espiritualidade,
valores éticos e morais, civilidade e nacionalismo outras categorias foram
associadas a partir do século XIX ao conceito de cultura. Acepções como os de
hábitos e costumes, identidade de um povo ou grupo social e linguagem surgiram
além de outras categorizações como exemplo os de cultura social, coletiva, cultura
sexual, racial, gênero, cultura cientifica, cultura nacional, religiosa, cultura
acadêmica, cultura popular e etc.
Diante de tantas acepções e suas múltiplas variedades se torna uma
tarefa temerosa propor uma definição de cultura. Para se permitir estudar tornando-
se um instrumento de reflexão, a Antropologia cultural persegue reflexões em torno
do conceito de cultura na necessidade de compreensão do ser humano em coletivo.
Segundo o antropólogo Mércio Pereira Gomes (2008), cultura é o modo próprio de
68
ser do homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte
inconsciente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir,
fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o Absoluto e, enfim, reproduzir-se.
No sentido acima ―o modo próprio de ser‖ distingue o homem da biologia
e que seu comportamento é um construto de algo cultural que possui uma certa
descontinuidade em relação a natureza. Segundo Lévi-Strauss (2009), o homem é
um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social. Isso significa dizer que a
interação do ser humano com o mundo depende dos fatores naturais – biológicos
instintivos e ambientais – e de fatores culturais nos quais o individuo está submetido.
O "anjo caído" foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas
notáveis propriedades: a possibilidade da comunicação oral e a capacidade
de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu
aparato biológico. Mas, estas duas propriedades permitem uma afirmação
mais ampla: o homem é o único ser possuidor de cultura (LARAIA, 2001,
p.68).
O ser humano diferentemente das outras espécies possui a cultura como
ferramenta para apreender e se pensar o mundo através de símbolos a serem
decodificados de acordo com as crenças de sua comunidade.
O que se quer dizer com pensar? Para a Antropologia pensar é articular
uma compreensão do mundo através da linguagem. É claro que pensar é
um ato de consciência, individual, que se formam através de palavras,
conceitos e sentidos de uma língua. Mas é também um ato coletivo, na
medida em que os termos desse pensar, as categorias de pensamento são
dadas pela cultura da qual o individuo faz parte (GOMES, 2008, p.37).
A linguagem possui um significado importante na reprodução da cultura,
já que é um dos principais meios de transmissão de legados culturais:
A adaptação às circunstâncias de cada contexto é uma característica
constante da transmissão da tradição. A transmissão oral aciona esquemas
mnemônicos que garantem a estabilidade das estruturas musicais, plásticas
e narrativas, dando margem, porém, a múltiplas variações desse esquema,
em virtude dos aspectos contingentes de cada performance (IPHAN, 2017).
Através da transmissão de significados culturais passados de geração
em geração é possível traduzirmos o legado histórico-cultural de um povo através
69
dos seus meios de preservação como a educação, a língua, as maneiras de
sociabilidade, as instituições e os rituais sociais. Dentro desse contexto encontramos
os conceitos de tradição, conservação e preservação bastante associados ao de
cultura e identidade. Existe uma necessidade atual de preservar os meios de
transmissão de uma determinada cultura ou de uma identidade cultural.
A palavra tradição é frequentemente usada como se fora um sinônimo de
cultura. Para a Antropologia, é uma palavra de cunho genérico, de
significado vago e não operacional, que se aproxima do conceito de cultura
como se fora um dos seus aspectos. Tradição seria tudo aquilo cultural que
uma coletividade reconhece como sendo essencial para sua identidade, e
que vincula sua existência atual com seu passado. Portanto, quando se fala
em tradição, fica subentendido o sentimento de lealdade ou deslealdade a
ela. Isto é, tradição é uma noção que implica uma ética, a exigência de uma
atitude perante a cultura (GOMES, 2008, p.48).
De acordo com a Constituição Federal de 1988 do Brasil, Art. 216, cultura
são todas as ações por meio das quais os povos expressam “suas formas de criar,
fazer e viver”. É um processo dinâmico, transmitido de geração em geração em uma
comunidade e que pode sofrer interferências de outras culturas moldando suas
práticas, sentidos e valores através do tempo, dos indivíduos e do espaço. Há
diversos grupos sociais que diferem entre si de acordo com sua imersão cultural,
construindo identidades individuais e coletivas em determinado contexto histórico,
social e espacial. Um grupo social que constrói suas memórias e costumes coletivos
cria elementos para a formação de sua identidade cultural enquanto grupo social.
[...] la cultura es el conjunto de símbolos, valores, actitudes, habilidades,
conocimientos, formas de comunicación y organización sociales, y bienes
materiales que hacen posible la vida de una sociedade determinada y le
permiten transformarse y reproducirse como tal, de uma generación a las
siguientes. Esta es sólo una de las posibles definiciones antropológicas de
cultura, porque en este terreno tampoco hay un acuerdo unánime; pero es
lo suficientemente amplia como para servir de base para la discusión del
tema. (BONFIL, 2000, p.3).
De acordo com a citação acima, os hábitos, costumes e crenças que
modelam a identidade de determinado grupo social, se identificam, criando códigos
70
sociais que refletem a si mesmos e seus próprios valores. A cultura possui vários
elementos construtores de uma identidade coletivos aonde muitos grupos sociais
buscam se legitimar através de processos de reconhecimento e salvaguarda
patrimonial como forma de preservação de elementos materiais e imateriais de sua
cultura e identidade. Através do instrumento de patrimônio cultural, os grupos
buscam reafirmar sua identidade, seu território e sua própria história.
É outra – e é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, de cultura.
Para nós, a cultura está revestida de um papel estratégico, no sentido da
construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação
soberana no mundo (...). Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas
dimensões, da simbólica à econômica (ROCHA, 2009, p.39).
No Brasil, os conceitos de tradição e cultura foram muito usados e
pensados pelos intelectuais do Movimento Modernista tais como Mário de Andrade e
Oswald de Andrade. A partir da noção de ―tradição cultural‖, os pensadores
modernistas tomaram consciência da necessidade crescente de preservação do
legado histórico material e pela primeira vez, os intelectuais da época (na Semana
de Arte Moderna de 1922), se manifestaram acerca da dimensão imaterial do
patrimônio como constituintes da identidade brasileira ou da cultura brasileira. Na
próxima sessão irei abordar como a ideia de patrimônio cultural surgiu no Brasil
incentivando a criação de leis de preservação.
4.2 O CONCEITO DE PATRIMÔNIO: ALGUNS APONTAMENTOS...
Em primeiro lugar, devo investigar a origem do termo patrimônio e os seus
significados ao longo da história. O termo patrimônio origina-se da palavra pater que
significa pai. Patrimônio representava e ainda representa um conjunto de heranças
transmitido de forma parental. Ao longo do tempo, passou a ser qualquer bem
material ou conhecimento que transmitisse e perpetuasse relações de poder e
afirmação de soberania cultural da aristocracia. Patrimônio era um bem que tinha
como característica o fato de ser de natureza privada e elitista pertencente a
determinado grupo social privilegiado na sociedade.
71
O termo patrimônio que no século XVI designava apenas os bens
materiais de natureza privada e geralmente elitista de uma sociedade, adquiriu a
partir do século XVIII horizontes mais amplos. O conceito hierárquico de patrimônio
passou, gradativamente, ao de algo comum à humanidade ou de uma determinada
comunidade. É com a Revolução Francesa que se inaugura a noção de Estado laico
e também o uso do patrimônio cultural como aglutinador de uma identidade nacional.
Aos símbolos nacionais cabe uma função central, uma vez que visualizam
de modo marcante os valores e os conteúdos da auto definição política de
uma comunidade, através dos quais os cidadãos conhecem e reconhecem
sua identidade política (JURT, 2012, p.44).
Deste modo, compreendo que patrimônio é uma construção sociocultural
que mobiliza um conjunto de práticas, agentes e agências no processo de
patrimonialização de um bem, assim como os valores que o legitimam (MOTTA,
2014).
A predominância dos monumentos que reafirmam os poderes políticos,
religiosos e militares reforça essa versão. Os bens culturais não
pertencentes às elites foram durante muito tempo relegados ao
esquecimento (CORÀ, 2014, p.2)
Apesar dos conceitos elitistas terem sido à base de comando e
fomentação de políticas culturais por muitas décadas, hoje em dia, há um avanço na
política adotada pelo IPHAN. De acordo com Camargo (2002) as atividades não se
limitaram apenas à preservação, mas ao restauro e à reabilitação dos bens, à
ampliação e à codificação dos conhecimentos relativos à temática arquitetônica e
artística da "arte tradicional brasileira", principalmente com a incorporação do
patrimônio imaterial, como festas, danças, procissões, gastronomia etc.
Podemos falar em património cultural como a representação simbólica das
identidades dos grupos humanos, isto é, um emblema da comunidade que
reforça identidades, promove solidariedade, cria limites sociais, encobre
diferenças internas e conflitos e constrói imagens da comunidade.
(CRUCES, 1998, p. 85).
Como o autor fala acima, essas representações simbólicas criam um
repertório cultural que guarda a história e a identidade de um determinado povo.
72
Esses bens são chamados de patrimônio histórico de uma coletividade. O patrimônio
histórico seja ele material ou imaterial artístico ou arquitetônico exige um processo
de selecionar, guardar, transmitir uma memória social ao qual se atribui significados
resguardados pela ―força da tradição‖.
A partir dessa reflexão, me atento que os conceitos de Patrimônio e
Patrimônio Cultural são diferentes e que devem ser compreendidos separadamente.
O conceito de Patrimônio Histórico, no entanto, está dentro do conceito de
Patrimônio cultural. A definição de Patrimônio Histórico é o conjunto de bens móveis,
imóveis e naturais que possui valor inestimável a um país ou sociedade. Patrimônio
cultural, além dos bens materiais e imateriais está presente às tradições, as
manifestações populares, religiosas entre outros.
Quando falamos em patrimônio histórico não estamos nos referindo a
coisas, a uma ou algumas classes de objetos, e sim ao resultado de ações
humanas, a um processo contínuo de selecionar, guardar, conservar e
transmitir determinados bens, materiais e imateriais, a que se atribuem
determinados valores. O termo ―patrimônio‖ é usado devido à analogia com
o processo que ocorre na família quanto aos bens que passam de pais para
filhos, portanto, à herança, o que envolve não apenas valores econômicos
como também simbólicos e afetivos. No caso dos patrimônios históricos,
pode-se dizer que esse processo de selecionar, guardar, conservar e
transmitir se caracteriza por uma dimensão mais ampla, necessariamente
coletiva, que integra o modo como os grupos sociais organizam sua
memória (LONDRES, 2005, p.162).
A noção de patrimônio histórico e artístico, tal como é entendido hoje se
tornou possível no período do Renascimento, quando o mundo deixa de ser visto
como sacro e o ser humano se percebe em evolução temporal na cadeia da história.
Com o advento dos Estados-nações no século XVIII, houve o surgimento de políticas
de Estado voltadas para a proteção do patrimônio histórico e artístico. Ao mesmo
tempo, durante a Revolução Francesa, desenvolveu-se um sentido de patrimônio
que é um marco característico desta nação europeia.
O estatuto do que venha a ser um bem que pertença a uma nação como
parte de seu legado artístico, cultural e histórico, perpassa temáticas e
conceitos complexos e diversos como ―memória‖, ―nacionalismo‖ e
―identidade‖, etc. O que deve ser patrimônio e, sobretudo, o que deve ser
73
feito desse patrimônio tombado, está diretamente ligado ao que venha a ser
a identidade nacional de cada nação [...] (BISPO, 2011, p.95).
Segundo Londres (2005) o modelo francês de preservação do patrimônio
histórico tornou-se artigo de exportação e foi introduzido a partir do século XX em
vários países do mundo inclusive no Brasil. A nação brasileira, que diferentemente
da França, já nasceu como colônia era completamente influenciada pela metrópole
portuguesa através do controle político, econômico e cultural que ditava os padrões,
gostos e comportamentos ao povo brasileiro. Qualquer obra que não seguisse o
padrão europeu era considerada ‗tosca‘ pelo poder público. Com o movimento
modernista do século XX veio à necessidade de proteger o estilo artístico
genuinamente brasileiro no intuito de construir uma tradição cultural brasileira junto
com a proteção dos bens histórico e artístico nacionais, que deveriam ser iniciativas
visíveis do ponto de vista das políticas públicas.
As primeiras ações do Estado brasileiro para preservação dos bens
patrimoniais no Brasil ocorreram na década de 1930. Vale destacar
brevemente o contexto sócio-político e econômico que vivia o Brasil nessa
década, com o fim da chamada ―política do café-com-leite‖ e a ascensão de
Getúlio Vargas pela primeira vez ao poder, como chefe do Governo
Provisório, cargo que ocupou até 1934. A partir deste período, o país
passou de um Estado com modelo agrário-exportador para um urbano-
industrial (BISPO,2011, p.99).
Durante o período de 1930 a 1945 houve uma séria de questões
articuladas na área de cultura gerando políticas públicas para a área de patrimônio
cultural. Ao mesmo tempo a esta ação federal foi criada em São Paulo o
Departamento de Cultura sob tutela de Mário de Andrade. Apesar do crescimento da
indústria cultura no Brasil entre os períodos de 1946 a 1960, a presença do Estado
nesse setor ainda era incipiente.
Mário de Andrade ficou a frente do Departamento e também acumulava a
gestão da Divisão de Expansão Cultural. Além disso, ele vai ter papel
importante na elaboração do anteprojeto de criação do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1936, a pedido de
Gustavo Capanema. A partir do documento elaborado pelo modernista,
caberia ao SPHAN ―determinar e organizar o tombamento, sugerir a
74
conservação e defesa, determinar a conservação e restauração, sugerir
aquisição e fazer os serviços de publicidade necessários para a propagação
e o conhecimento do patrimônio artístico nacional‖ (BISPO, 2011, p.100).
O Serviço de Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN) foi criado
em 13 de janeiro de 1937 apesar de algumas controvérsias quanto ao anteprojeto de
Mario de Andrade. Além disso, o Decreto-Lei n°25 de 1937 que é responsável por
organizar o serviço de patrimônio está vigente até hoje com pouquíssimas
alterações. Hoje SPHAN se chama IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional e está vinculado ao Ministério da Cultura.
Apesar da proposta de Mário não ter sido aprovada, tendo em vista que a
prerrogativa da época era de ser preservar os ―monumentos‖, tomados
como ―símbolos nacionais‖, as suas idéias foram retomadas por Aluísio
Magalhães, que incentivou a valorização da diversidade cultural brasileira
no processo de desenvolvimento do país, e desenvolveu experiências
significativas no ―Centro Nacional de Referência Cultural‖- CNRC e na
―Fundação Nacional Pró-Memória‖- FNPM. Nas décadas de 70 e 80 do
século passado, Aluísio recontextualizou a política cultural do IPHAN,
procurando substituir ―a visão anteriormente empregada a respeito da
proteção do ‗patrimônio histórico e artístico brasileiro‘ pela noção de ‗bens
culturais‘ (DO CARMO , 2010,p.3,).
De acordo com Bispo (2011) com o golpe de 1964 e a ascensão dos
militares ao poder houve mudanças nas políticas na área da cultura. Houve uma
forte centralização no Conselho Federal da Cultura e uma reformulação na estrutura
pública e um aumento da institucionalização na área. Até o fim dos governos
militares, nos anos 80 até os anos 90 o Estado reduziu sua participação na
formulação de políticas públicas bem como financiamento na área cultural, reflexo de
uma política neoliberal. Nesse período de 20 anos houve um aumento das leis de
incentivo cultural. A partir do primeiro mandato do Governo Lula em 2003, surge uma
tentativa de institucionalização no campo.
Dentro da categoria Patrimônio encontramos a divisão entre bens de
natureza material e de natureza imaterial. O conceito de patrimônio cultural é relativo
aos domínios social e simbólico de determinados povos ou culturas que visam à
preservação da memória e identidade de determinado grupo social. As comunidades
75
ayahuasqueiras13 que visam à legitimação de suas doutrinas através do processo de
patrimonialização da Ayahuasca utilizam-se do artifício do poder simbólico estatal
(BOURDIEU, 2010) como instrumento de validação e inserção cultural na sociedade
brasileira. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial da UNESCO de 2003, patrimônio cultural imaterial é:
[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas -
junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes
são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração,
é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu
ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um
sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os
fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio
cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de
direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre
comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável
(UNESCO,2003).
A política pública de patrimônio cultural é um instrumento do poder do
Estado que detém a centralidade hierárquica de criar, governar, através de
instrumentos ideológicos. Poder esse que é exercido sobre toda uma sociedade.
Nesse movimento o Estado legitima seu poderio através da construção de uma
identidade nacional, surgindo políticas de constituição do patrimônio histórico,
cultural nacional no Brasil. Os objetos das políticas públicas de constituição do
patrimônio histórico e cultural partilham de uma ideia de carisma para serem
considerados legítimos e aceitos como componentes de uma identidade cultural.
As políticas públicas do Estado, de modo geral, podem ser entendidas no
contexto do que Shils chama de centralidade. Para este autor, "a
centralidade é constituída pelo seu poder formativo ao iniciar, criar,
governar, transformar, manter, ou destruir aquilo que é vital na vida do
homem" [Shils, 1974, p. 395]. Tal poder central de que nos fala Shils [1974]
13
As entidades envolvidas no pedido de patrimonialização são: Centro de Iluminação Cristã Luz
Universal Alto Santo (CICLU – Santo Daime); Casa de Jesus Fonte de Luz (Barquinha) e Centro
Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV).
76
tem sido concebido como um poder transcendente divino ou outro que
controla ou influencia a vida humana e o cosmo dentro do qual ela existe.
Mas para ele essa é apenas uma das possibilidades de ser carismático,
entre outras. O carisma pode se manifestar em personalidades individuais,
conforme salientado em Weber [2002], "mas pode vir a residir, em graus
variados de intensidade, em instituições – nas qualidades, normas e
crenças que seus membros são supostos abraçar ou que se espera que
possuam"[Shills](CANANI,2010,p.396).
O bem patrimonial para ser considerado legitimo por um determinado
grupo também se faz necessário ter forças sociais afetivas, ou seja, as forças sociais
não racionais que criam uma polaridade essencial entre racionalismo e carisma. A
centralidade do poder está hierarquicamente atribuída a instituições de salvaguarda
nacional onde se originam tais políticas e se difundem pela sociedade o caráter de
―sacralidade‖.
O carisma é a grande força revolucionária nas épocas com forte vinculação
à tradição [...] O carisma destrói [...] em suas formas de manifestação mais
sublimes regra e tradição e inverte todos os conceitos sacrais. Ao invés da
piedade em relação àquilo que é, desde sempre, considerado comum, e por
isso sacral, ele força a sujeição interna sob aquilo que nunca antes existiu,
sob o absolutamente singular, e por isso divino. Nesse sentido puramente
empírico e neutro, é, porém, o poder especificamente criativo e
revolucionário da história (Weber, 1991, p. 161).
O conceito de dominação social carismática de Weber, nesse ponto
amplia-se de sentido tornando-se um instrumento tanto do Estado como de grupos
sociais que buscam a legitimação social. Weber reconhece o carisma como uma
força social criativa ou destrutiva que pode dar novos rumos à história, destruir
instituições ou abrir caminhos para novas políticas. Segundo Bach (2011) o carisma
―força‖ a ―sujeição‖ como consequência da lealdade aos valores, no nível da ação.
Assim, o carisma se transforma em um recurso de poder e passa a constituir, ao
mesmo tempo, uma relação de dominação. Ou seja, se o patrimônio cultural é uma
construção, ela é influenciada e moldada também através do que cativa as pessoas.
77
Através dessa construção o bem cultural ganha legitimidade através de laços
afetivos criados em sociedade. Essa afeição gera nas pessoas um sentimento de
identidade e pertencimento, criando um imaginário social e reafirmando-o através do
bem patrimonializado.
A utilização do conceito de Patrimônio para a criação simbólica de
identidades tem operado de forma fundamental para a legitimação e afirmação de
uma identidade nacional14. Isso acarretou na seleção de bens determinados pelo
interesse do Estado (e por suas classes dominantes), excluindo partes da cultura
não elitista e privilegiando um patrimônio cultural dominante. A lógica da construção
de patrimônio cultural tem seguido as regras do jogo mercadológico que seguem os
modelos do capitalismo global ocidental. As discussões da atualidade sobre a
política de patrimônio cultural, segundo Beatriz Labate (2010) advogam para a
ampliação do conceito de patrimônio cultural para que esta política pública alcance
manifestações da diversidade cultural de cada nação.
[...] investigações sociologias e antropológicas mostram que os diversos
setores sociais se apropriam de forma desigual da herança cultural de um
país. E vai além, ao dizer que não basta que existam políticas culturais que
criem museus, bibliotecas e outras instituições afins, e ainda programas de
incentivos à população, para que esta frequente tais locais. À medida que
se desce na escala social e econômica da sociedade em direção àqueles
que têm menos recursos e acesso à educação, percebe-se uma redução da
capacidade de apropriação do capital cultural transmitido pelas instituições.
Para o autor, o motivo dessa desigualdade seria a diferença de participação
dos vários grupos sociais na formação deste patrimônio. Ele ainda ressalta
14
Identidades podem ser partilhadas em sistemas mais vastos, como, por exemplo, a identidade
nacional, que tem uma relação densa com a noção de patrimônio cultural. A consolidação dos
Estados nacionais resultou de processos, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, que envolveram
disputas e estratégias diversas para o estabelecimento de um sentimento de cultura partilhada entre
os membros da nação. A identidade nacional dependeu, sobretudo, do reconhecimento de um
―passado comum‖ sustentado por ―tradições inventadas‖ [HOBSBAWM, 2012] ou reapropriadas, mitos
fundadores da nação, lendas de tradição oral, versões oficiais da história no espaço geograficamente
delimitado do Estado-nação. Os bens que formam o patrimônio histórico e artístico viriam objetivar,
conferir realidade e legitimar a ―comunidade imaginada‖ [ANDERSON, 2008] que é a nação,
materializando a sua ancestralidade [GONÇALVES, 1996] (BRANDÃO, 2017, p.1)
78
que, mesmo em nações que adotam a noção antropológica de cultura,
existe uma determinada hierarquia dos capitais culturais (BISPO, 2011,
p.97).
No processo de reconhecimento de determinado bem histórico de
natureza material ou imaterial há uma relação de poder, hierarquizada que
estabelece competências e define os critérios e tipos de saberes que entram no
―jogo‖. Os grupos ayahuasqueiros que lutam pela patrimonialização desta bebida
estão utilizando como instrumento o patrimônio na esfera racional- legal do Estado
para a legitimação social. Sociologicamente, poderíamos atribuir a essa ação um
sentido de legitimação por meio de um sistema legal, que estabelece regras e
crenças sociais fazendo-se da impessoalidade e da coerção sua autoridade social.
Por meio da burocracia, o Estado moderno define o que é e o que não é cultura,
estabelece novos parâmetros culturais através da legitimação racional.
Porém com relação ao trato em lidar com questões ligadas à cultura o
modelo racionalista e burocrático é perpassado pela lógica carismática aos quais os
bens se fundam. Não é possível nos aprofundar no conceito de cultura ou pensar em
políticas culturais sem levar em consideração as lógicas afetivas ou não racionais de
uma determinada comunidade.
Weber não considera que a modernidade inaugura a cultura como tragédia,
mas, para ele, o homem que experimenta os avanços da racionalidade pode
adquirir uma consciência inédita da sua condição trágica, uma vez que a
efetiva racionalização de diferentes áreas da cultura desautorizou a grande
ilusão com a qual os homens tradicionalmente desviaram-se do problema: a
crença de que a vida tem sentido (NOBRE, 2000, p.20).
A crítica à modernidade citada acima também levanta questões de como
um modelo racional-burocrático pode então definir quais são as margens para o
significado de cultural ou de bem patrimonial? Essa questão sempre esteve presente
na construção da política pública de patrimônio cultural e se inaugura o conceito de
cultura como tragédia, compreende-se que o modelo racional possui suas limitações
frente à multiplicidade da realidade cultural. A cultura na atualidade deve ser visto
como algo dinâmico, marcado por traços complexos, variações de identidades e
79
práticas culturais é um conceito ao qual o esquema racional-burocrático não pode
―abarcar‖.
Vivemos em um mundo em que a intensificação da globalização modifica as
maneiras do poder público lidar com as políticas públicas em diversos
setores: economia, segurança, saúde, dentre outras. E a esfera cultural não
escapa dessas transformações. O patrimônio histórico, e os usos que
devem ser feitos desses bens, têm sofrido também modificações neste
contexto (BISPO, 2011, p.95)
É importante frisar que o conceito de patrimônio se ampliou ao longo dos
anos, expandindo suas designações dependendo de diversos fatores sociais como a
economia, a política, a cultura e a saúde por exemplo. Na esfera da cultura as
questões se tornam mais complexas que requerem estudo para que a conservação
de um determinado bem cultural seja avaliado além das necessidades mercantilistas
de uma sociedade.
Também se constatou nesse tempo um outro entendimento de história que
centra seu interesse antropológico no homem e em sua existência, e assim
busca contemplar todos os atores sociais e todos os campos nos quais se
expressa a atividade humana. Tal compreensão implicou a valorização dos
aspectos nos quais se plasma a cultura de um povo: as línguas, os
instrumentos de comunicação, as relações sociais, os ritos, as cerimônias,
os comportamentos coletivos, os sistemas de valores e crenças que
passaram a ser vistos como referências culturais dos grupos humanos,
signos que definem as culturas e que necessitavam salvaguarda. Esses
novos entendimentos levaram à reformulação do conceito de patrimônio. O
valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução
das culturas, expressas nos modos de uso dos bens, foi incorporado à
definição do patrimônio. A alteração também se deu em face da constatação
de que os signos das identidades de um povo não podem ser definidos
tendo como referência apenas as culturas ocidentais, assim como a cultura
campesina não pode ser vista como menor diante das atividades industriais.
(ZANIRATO, 2006, p. 4)
Conforme SANTOS (2003, p. 147), [...] uma outra globalização supõe uma
mudança radical das condições atuais, de modo que a centralidade de todas as
ações seja localizada no homem.(...) Nas presentes circunstâncias, a centralidade é
ocupada pelo dinheiro. A identidade cultural se torna cada vez mais complexa e a
80
cultura é algo que está em continua mudança. Transformações essas ora positivas
com trocas e relações entre povos e ora negativa tais como ameaças de
homogeneização da cultura através da imposição de culturas hegemônicas.
4.3 PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL
Antes de tratar sobre a política de patrimônio cultural imaterial no Brasil,
devo atentar sobre a história da principal instituição responsável pelos processos de
salvaguarda de patrimônio material e imaterial: o IPHAN. No Brasil, a proclamação
da República em 1889 e a primeira Constituição Republicana de 1891 são marcos
da laicização do Estado brasileiro. E é neste contexto que em janeiro de 1890 é
publicado o Decreto de n°847 que introduziu a liberdade religiosa e retirou os
privilégios gozados pela Igreja Católica, religião oficial por quase quatro séculos.
Em 1937 é criado o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), porém diferentemente do intuito dos franceses de desarticular a Igreja
Católica, no Brasil a instituição detêm um grande número de bens tombados, mas
preservando sua posse e administração. O SPHAN sofreu forte influência do
modernismo brasileiro, resultado da Semana de Arte Moderna de 1922. A partir de
1969, o SPHAN se torna Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), órgão responsável, junto ao Ministério da Cultura15, pelo processo de
Patrimonialização de bens culturais de natureza material e imaterial.
Diferentemente da França e Inglaterra, por exemplo, o Brasil nasce como
colônia, tendo Portugal como a metrópole que exerceria seu poderio imperial através
do domínio politico, econômico e cultural. Com o advento da modernização e da
criação do SPHAN, em 1937 o conceito de cultura modifica-se e o Estado passa a
reconhecer os bens de origem tradicional e popular.
Se esse patrimônio, que é de todos, deve ser preservado, é preciso
estabelecer seus limites físicos e conceituais, as regras e as leis para que
15
Endereço eletrônico Portal Ministério da Cultura: http://www.cultura.gov.br/
81
isto aconteça: ―foi a ideia de nação que veio garantir o estatuto ideológico
(do patrimônio), e foi o Estado nacional que veio assegurar, através de
práticas específicas, a sua preservação (...). A noção de patrimônio se
inseriu no projeto mais amplo de construção de uma identidade nacional, e
passou a servir ao processo de consolidação dos estados-nação modernos
(FONSECA,1997, p. 54).
O IPHAN16 é uma instituição federal vinculada ao Ministério da Cultura,
responsável por preservar, fiscalizar, divulgar os bens culturais brasileiros e garantir
a utilização desses bens pela sociedade. Com a sua criação em 1937, o IPHAN foi
estruturado por intelectuais e artistas brasileiros da época, dentre eles Mário de
Andrade, Manuel Bandeira e o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda. Também em
1937, é criado o Decreto-Lei n°25/1937 regulamentando o instituto de tombamento
do Brasil e o Art. 134 da Constituição Federal, amplia a defesa de Patrimônio
Cultural. Mário de Andrade é nomeado, neste mesmo ano, Assistente Técnico
Regional do SPHAN de São Paulo.
Em 1946, com a nova Constituição do Brasil, em seu capítulo II, Art. 178,
estabelece que as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico,
bem como monumentos naturais, as paisagens e locais dotados de particular beleza
fica sob a proteção do poder público. E em 1970, com o Art. 180 que em parágrafo
único: Ficam sob proteção e especial do Poder Público os documentos, as obras e
os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e paisagens naturais
notáveis, bem como as jazidas arqueológicas (IPHAN, 2017). Em 1988, a nova
constituição brasileira é promulgada. Os artigos 215 e 216 incorporam os conceitos
de referencia cultural e patrimônio cultural, reconhecendo o valor e relevância das
manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras. O IPHAN obedece
ao principio normativo contemplado pelo artigo 216 da Constituição de 1988 da
República Federativa do Brasil com os respectivos incisos:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade nos quais se
incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as
16
Endereço eletrônico do IPHAN: http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.html
82
criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico (Art. 216, Constituição Federal, 1988).
Em 1991 é criada a Lei n°8.313/1991, Lei Rouanet e institui o Programa
de Apoio à Cultura Nacional (Pronac), com o objetivo de promover captação de
recursos para projetos de preservação do patrimônio cultural. Nos últimos 20 anos, o
IPHAN tem intensificado a incorporação dos chamados patrimônios imaterial
representados pelas manifestações da cultura popular reiterando a necessidade de
se pensar patrimônio a partir da diversidade cultural brasileira. A partir dos anos
2000 o IPHAN criou uma série de instrumentos e ferramentas para a salvaguarda de
bens imateriais, ente eles: Instituição do Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial que constituem Patrimônio cultural e a criação do Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial (PNPI/ Decreto 3.551/2000); Elaboração do Inventário Nacional
de Referencias Culturais (INRC), metodologia para identificação e produção do
conhecimento sobre bens culturais como vistas a subsidiar a formulação de políticas
de preservação.
Através do Decreto 3551 de 4 de Agosto de 2003 , instituiu-se o registro de
bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio cultural
brasileiro, e a criação do ―Programa Nacional do Patrimônio Imaterial‖, com
o objetivo de ―implementar política de inventário, registro e salvaguarda
desses bens‖. O decreto presidencial também sugere os diferentes
domínios que compõem essa dimensão do patrimônio, por meio da criação
dos livros de registro, voltados para os saberes, as celebrações, as formas
de expressão e os lugares [IPHAN, 2006] (DO CARMO, 2010, p.5).
No Livro de Registro, os bens culturais ficaram divididos em quatro
categorias. Depois de Registrado o bem se torna ―Patrimônio Cultural do Brasil‖. Os
aspectos de salvaguarda que norteiam o IPHAN foram estabelecidades através da
Convenção Para a Salvaguarda do Patrimonio imaterial Cultural da UNESCO em
2003.
Entende-se por ―salvaguarda‖ as medidas que visam a assegurar a
viabilidade do patrimônio cultural imaterial, que compreendem a
identificação, a documentação, a pesquisa, a preservação, a proteção, a
83
promoção, a valorização, a transmissão, essencialmente pela educação
formal e não formal, assim como a revitalização dos diferentes aspectos
desse patrimônio (CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO
PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL, 2003).
O patrimônio cultural de uma sociedade é fruto de políticas públicas
norteadas pelo Estado por meio de leis e de instituições públicas responsáveis, com
a participação dos representantes que solicitam o pedido de patrimonialização
juntamente com a sociedade civil. Existe uma multiplicidade de atores que
participam do processo de construção da política pública de patrimônio cultural. A
relação entre o Estado e a sociedade, nesse sentido, adquire certa dinâmica com
relação à questão patrimonial devido a sua condição aberta e plausível de constante
discussão, sempre em disputa nas arenas sociais.
As disputas que ocorrem no âmbito do patrimônio são de natureza
política, econômica e simbólica em que a sociedade, o Estado, o setor privado e os
movimentos sociais ora agem de forma antagônica, ora em parcerias. Pensar
patrimônio na era da indústria cultural é compreender que existem fenômenos
sociais que regem os caminhos da formação dessa política pública que atuará de
acordo com o contexto histórico e político de cada nação. Isso significa dizer que
como toda e qualquer política pública, as políticas de patrimônio cultural são um
campo de disputas entre setores da sociedade e o Estado. Há interesses e conflitos
envolvidos nessa arena em que a legitimidade e a busca pelo poder através do
consenso (ou não) sobre o bem cultural são uma constante. Cito como exemplo as
matrizes do Samba do Rio de Janeiro que buscaram na política pública de
patrimônio cultural a proteção e o fortalecimento desta manifestação popular.
Embora seja um estilo musical bastante presente nas mídias, suas raízes sofreram
interferências através da indústria cultural:
―Há tempos percebemos o enfraquecimento das raízes do samba do Rio. A
massificação deu ao samba um formato que está distante dos principais
elementos que compõe suas matrizes. Não é uma proposta de
engessamento ou saudosismo. O samba é vivo, dinâmico. Nossa intenção é
de valorizar e preservar as matrizes do samba carioca: samba de partido-
alto, samba de terreiro e samba-enredo‖, explica Nilcemar Nogueira, neta de
Cartola e vice-presidente do Centro Cultural. Foi ela quem coordenou o
84
projeto de pesquisa e documentação, que contou com o financiamento e o
apoio técnico do Iphan. Vários ―bambas do samba‖ também participaram
ativamente, como os compositores Monarco, Xangô da Mangueira e Nelson
Sargento. (IPHAN, 2017)
Além de ser um construtor de identidades (local e nacional), o conceito
de patrimônio se relaciona com a cultura e os interesses mercadológicos, possuindo
uma função transformadora, carregada de significados que marcam a relação entre
sujeito e o Estado. É claro, também, que as políticas públicas de patrimônio cultural
são responsáveis pela formação de processos identitários, o que pode significar
tanto um resgate de um determinado bem cultural quanto à massificação do mesmo.
Outro exemplo que trago é do Ofício das Baianas de Acarajé que se tornou um bem
registrado no Livro de Saberes. Através da patrimonialização deste ofício preserva-
se os elementos essenciais envolvidos, os modos de fazer, o tabuleiro, a
indumentária religiosa como marca distintiva da condição social e religiosa das
baianas do Acarajé. Esta comida tipicamente baiana trás as marcas da cultura
africana e do candomblé, além disso, o oficio se torna um bem patrimonial que
protege o grupo social envolvido, no caso as baianas do Acarajé que podem ter
preservados seu trabalho e modo de vida através da atuação da política pública de
patrimônio.
Por sua vez, Garcia Canclini (1993) compreende que existe uma
hierarquia de bens simbólicos e o autor adota o conceito de ―capital cultural‖ de
Pierre Bourdieu para analisar processos relacionados com patrimônio. Canclini
compreende que na própria lógica de transmissão do capital cultural17 reside o
principio mais poderoso de eficácia ideológica dessa espécie de capital. O capital
cultural possui um universo autônomo com suas próprias leis e que pode atuar de
forma material ou simbólica na condição de ser apropriado pelos agentes sociais e
utilizado como objeto de luta (seja no campo de preservação patrimonial, artístico ou
cientifico, por exemplo).
17
Capital cultural é um conceito criado por Bourdieu para explicar como a cultura, em uma sociedade
de classes, se transforma em uma espécie de moeda que as classes dominantes utilizam para
acentuar as diferenças. A cultura se transforma em um instrumento de dominação.
85
Situando, assim, o conceito de patrimônio a esfera de ―reprodução social‖,
existe a imposição de um modelo hegemônico que massifica e aniquila
manifestações culturais consideradas de ―periferia‖, segundo Canclini. Posso citar
como exemplo de cultura periférica as próprias culturas ayahuasqueiras, englobando
também as culturas indígenas que fazem uso do chá. A discussão pautada pelos
antropólogos, afirma, em sua maioria, a necessidade da política pública de
patrimônio cultural seguir o contra fluxo do capitalismo. Ou seja, proteger e dar
meios para que culturas periféricas, mais fragilizadas pela indústria cultural ou
processos de massificação cultural, possam se legitimar e garantirem autonomia e
direitos preservados.
Os valores e significados atribuídos a determinado bem cultural devem
ser pensados em coletividade. Com a ampliação da noção de patrimônio, surgindo o
conceito de bem cultural a diversificação dos instrumentos de proteção e a
participação de novos atores e agentes, expandiu o âmbito do alcance dessa
política pública para além das tradicionais ações de proteção monumental que
visavam apenas à preservação de imóveis de origem aristocrática
Assim, a visão incorporada pela Constituição Federal de 1988 extrapola o
entendimento do patrimônio como apenas o bem material representado
pelos monumentos e obras de arte. Desde então, dimensões menos
tangíveis do patrimônio cultural ganham relevo, sendo este cada vez mais
compreendido como algo integrado aos processos, aos rituais e às
manifestações culturais que proporcionam significados e identidades aos
grupos sociais (CORÁ, 2014, p.1)
.As políticas de preservação monumentalistas deram espaço para o
surgimento dos bens imateriais na arena das políticas públicas de patrimônio.
Segundo Dos Santos (2011), política pública de patrimônio cultural necessita da
continua participação com esforços em longo prazo de apoio e cooperação da
população brasileira, pois a construção de um bem patrimonial que leva tempo, e é
uma construção simbólica que legitima sua existência. É necessário tempo e
passado para que haja memória. Não existe identidade sem memória.
Por sua vez, patrimônio é um legado que pode ser preservado, adquirido,
perdido ou transformado de uma geração para outra. Esses bens são legitimados
86
pelo poder simbólico estatal, as leis, a jurisdição que têm como instrumento os
órgãos preservacionistas e as políticas públicas de Salvaguarda de bens materiais e
imateriais. O plano de salvaguarda indica de que forma o Estado e a sociedade
poderão agir, a partir daquele momento, para preservar as condições que permitem
a continuidade da manifestação cultural manifestada (IPHAN, 2007). O Instituto
Histórico Artístico Nacional (IPHAN) é o órgão publico responsável pela competência
legal de proteção patrimonial no Brasil, promulgado pelo Decreto-Lei n°25 e é a mais
antiga entidade oficial de preservação de bens culturais da América Latina. (MEC,
1980, p.25).
Hoje, um dos maiores desafios à gestão do patrimônio cultural é definir
conceitual e legalmente novas formas de acautelamento compatíveis com
sua abrangência, cada vez maior, e com o exercício dos direitos culturais do
cidadão, reconhecidos no texto da Constituição de 1988, particularmente no
artigo 215: ―O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional (...)‖ e no artigo 216: ―O
Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação‖.(DOS SANTOS, 2010,p.1)
Com as questões levantadas acima, reflito como a política pública de
patrimônio cultural no Brasil lida com a abrangência da diversidade de práticas
culturais? É uma política pública que está em construção e que levanta cada vez
mais questões sobre a definição do conceito de cultura. Além disso, existem
desafios na garantia dos direitos culturais situados no artigo 215 e 216 da
constituição Federal, o IPHAN não abrange todas as necessidades sociais
apresentadas. Além disso, historicamente, o cuidado do patrimônio sempre esteve a
cargo da elite.
Devemos concordar com Byrne (1991: 275) quando afirma que é comum que
os grupos dominantes usem seu poder para promover seu próprio patrimônio,
minimizando ou mesmo negando a importância dos grupos subordinados, ao
forjar uma identidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de
separação entre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, em
geral, tão marcado quanto no Brasil. Poderíamos dizer, assim, que a busca
da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais,
poderia bem ser interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores
87
condições de vida, mas contra a própria lembrança do sofrimento secular dos
subalternos. (FUNARI, 2000, p.7)
A política pública de patrimônio cultural é elaborada através da
deliberação de diversos setores da sociedade, com a participação do Estado, da
sociedade civil e empresas. Sem dúvida é um campo de disputas que cabe aos
diversos setores da sociedade lutar como forma de resistência e preservação de sua
cultura. Um exemplo que define bem como o campo do patrimônio cultural pode ser
uma arena de disputas é o caso da roda de capoeira. A capoeira que já foi um
esporte criminalizado constitucionalmente em 1890 teve um longo caminho até
adquirir status de patrimônio cultural brasileiro. Através dessa política pública a
capoeira ganha proteção da lei, garantindo a preservação de sua prática, origens e
liberdade de expressão.
O processo de patrimonialização da capoeira veio através de muita luta
por parte dos capoeiristas, ao longo das décadas afim de superar a marginalização e
o preconceito, um dos atores que ganhou destaque nesse processo foi o Mestre
Bimba que com sua atuação visionária retirou o esporte da marginalidade levando
para as academias. Segundo Braga & Saldanha (2002) o Decreto nº 3.3551/2000, a
Lei nº 12.288/2000, a Lei nº 10.639/2003 e Lei Municipal nº 9.041/05 e a legislação
que se aplica à capoeira como manifestação cultural do Brasil, por entenderem ser
imprescindível a efetivação da proteção a manifestação cultural de tamanha
importância.
Implicaria o interesse em favorecer a emergência de uma consciência
política que absorvesse o presente como um tempo historicamente
constituído, no qual o passado é projetado como reflexão sobre a diferença, o
outro, o conflito e a resistência, elementos constituintes da ininterrupta luta
pelos direitos sociais. (RODRIGUES, 2001, p.11)
O Patrimônio cultural é, também, de natureza imaterial, ou seja, são
vestígios culturais de uma determinada comunidade. É a representação simbólica de
cultura e por isso é o resultado dos processos de seleção e de negociação dos
significados. O conceito de Patrimônio cultural é uma construção antropológica
pautada no processo de construção de imaginário, lutas e pressões sociais que se
utiliza de políticas públicas de patrimonialização para a preservação da memória e
da cultura de grupos sociais. Posso ilustrar como exemplo o Carimbó que é uma
88
manifestação de dança oriunda do Norte do país que possui como raízes ancestrais
os povos indígenas, negros e ibéricos. Com a abertura do processo através do
pedido de patrimonialização oficializado pela irmandade Carimbó São Benedito e
outros grupos, foi iniciado o Inventário Nacional de Referencias Culturais (INRC).
Através desse Inventário realizou-se um levantamento de identificação e
documentação e, com o reconhecimento nacional, o Ministério da Cultura por meio
do IPHAN pôde desenvolver uma série de políticas públicas de salvaguarda deste
bem imaterial.
O patrimônio cultural, considerado em toda a amplitude e complexidade,
começa a se impor como um dos principais componentes no processo de
planejamento e ordenação da dinâmica de crescimento das cidades e como
um dos itens estratégicos na afirmação de identidades de grupos e
comunidades, transcendendo a ideia fundadora da nacionalidade em um
contexto de globalização (FONSECA, 1997, p.72).
Portanto, patrimônio cultural é um construto, uma ―fabricação social‖ de
identidades e valores culturais. Tendo em vista que existe uma relação entre
Patrimônio cultural e cultura, em que a primeira se relaciona com a segunda através
da transformação dos valores e dos elementos culturais, ocorre uma
interdependência nesse processo de construção social. Nessa interação, há um
processo de seleção e negociação de significados, pois nem tudo que é da cultura
pode ser patrimonializado, tudo dependerá da atuação dos agentes e do diálogo e
interesses envolvidos.
O sentido de patrimônio que uma sociedade cria dependerá das
necessidades, valores e do tipo de relação herdado pelos antepassados sobre
determinado patrimônio histórico. Muitas vezes a transmissão de um bem cultural
herdado de uma memoria coletiva se dá de forma intuitiva, ou seja, através de
atributos sentimentais, de carisma. Não é possível estabelecer de antemão um
padrão de legado que deverá se tornar um bem cultural. O processo de selecionar,
guardar, transmitir e intuir é uma necessidade ampla e coletiva que integra os grupos
sociais ao organizarem suas memórias.
Neste ponto queremos introduzir a ideia de como o património cultural pode
ser pensado como uma objectivação da cultura (Handler, 1988), isto é, um
processo de representação da cultura em objectos materiais ou imateriais
89
de teor simbólico, através da descontextualização, transferência de sentidos
ou mudança de lógicas. A cultura passa assim a ser vista como uma coisa,
um objecto ou uma entidade. (PERÉZ, 2009,p.142)
Em um sentido, Patrimônio cultural tende a aparentar a ideia de algo
estático, uma obra finalizada e a cultura como algo em constante mudança. Apesar
das aparências, ambas estão em constante mudança, interligadas e em uma relação
de mútua dependência. Patrimônio cultural é uma expressão da cultura dos grupos
humanos que recupera a memória, seleciona bens culturais, ritualiza sociabilidades,
dar valor e visibilidade a repertórios culturais. O bem cultural torna-se um veículo de
transmissão de memória e de legados para o futuro.
De acordo com Canclini (1994), os paradigmas patrimonialistas que
incidem no processo de interpretação, recuperação e conservação do patrimônio
cultural são: Tradicionalista ou folclorista: bens materiais e imateriais que
representam a cultura popular pré-industrial; Construtivista: bens culturais frutos de
uma construção social. O patrimônio cultural como uma representação ideológica
das identidades; Patrimonialista: a preservação de bens do passado frente ao futuro;
Produtivista ou mercantilista: Patrimônio cultural é uma produção, uma mercadoria
que segue a lógica do mercado; Participacionista: a preservação e seleção deve
seguir o processo de seleção democrática através das necessidades sociais
existentes.
Patrimônio cultural é o debate sobre valores sociais que surge das lutas, é
uma política de caráter participacionista onde ocorre embate de forças da sociedade
que atuam na formação de identidades socioculturais. É um jogo de interesses e de
forças sociais entre os agentes. A política pública de patrimônio cultural não surge
sem o enfrentamento necessário que existe nas arenas sociais que disputam a
hegemonia e o poder. Pode-se afirmar que patrimônio cultural é um instrumento
estatal que fornece capital simbólico e cultural a determinados grupos sociais que
alcançam a legitimação por meio de uma política pública.
A compreensão de que as políticas públicas culturais estão em plena
construção, que se alteram e se moldam a partir das demandas sociais surge
quando observamos a política de patrimônio como um campo de disputa social. Por
90
meio do conceito de Patrimônio cultural, compreende-se que há o processo da
institucionalização da cultura, ou seja, o Estado e seus instrumentos retém de
maneira simbólica aquele bem cultural através do processo patrimonial, como é o
caso do IPHAN e do Ministério da Cultura. Determinado bem que antes pertencia a
um determinado grupo, agora, de certo modo, também pertencerá ao Estado. É uma
estratégia instrumental e pragmática que traz legitimidade identitária a um grupo
social. Através do poderio estatal, os grupos e segmentos sociais lutam, construindo
um campo de ideologias e hegemonias culturais.
Si bien el patrimonio sirve para unificar a una nación, las desigualdades en
su formación y apropiación exigen estudiarlo también como espacio de
lucha material y simbólica entre las clases, las etnias y los grupos. Este
principio metodológico corresponde al carácter complejo de las sociedades
contemporáneas. En las comunidades arcaicas casi todos los miembros
compartían los mismos conocimientos, poseían creencias y gustos
semejantes, y tenían un acceso aproximadamente igual al capital cultural
común. En la actualidad, las diferencias regionales o sectoriales, originadas
por la heterogeneidad de experiencias y la división técnica y social del
trabajo, son utilizadas por las clases hegemónicas para obtener una
apropiación privilegiada del patrimonio común. Se consagran como
superiores ciertos barrios, objetos y saberes porque fueron generados por
los grupos dominantes, o porque éstos cuentan com la inforniación y
formación necesarias para comprenderlos y apreciarlos, es decir, para
controlarlos mejor. El patrimonio cultural sirve, así, como recurso para
reproducir las diferencias entre los grupos sociales y la hegemonía de
quienes logran un acceso preferente a la producción y distribución de los
bienes. Los sectores doniinantes no sólo definen cuáles bienes son
superiores y merecen ser conservados; también disponen de medios
económicos e intelectuales, tiempo de trabajo y de ocio, para imprimir a
esos bienes mayor calidad y refinamiento. (CANCLINI,1994 p. 2)
Canclini, acima faz um panorama dos elementos e agentes envolvidos
definindo a lógica dos jogos que envolvem a política pública de Patrimônio Cultural
nas sociedades modernas contemporâneas. A heterogeneidade que marca as
sociedades de classes através da divisão técnica e social do trabalho é usada pelas
classes hegemônicas para obter apropriação privilegiada de um bem cultural. A
política de patrimônio no Brasil fora marcada em seu início por ações
91
preservacionistas oriundas das elites e para as elites. Essa situação foi se
modificando com a criação do IPHAN, além da participação de diversos agentes e
grupos sociais que participaram ativamente do processo como forma de obter
reconhecimento e proteção de determinado bem que por motivos de preconceito e
marginalização já foram criminalizadas e perseguidos como foi o caso do samba, da
capoeira e do carimbo, hoje patrimônios culturais brasileiros.
Preservar o que e para quem? Essa é uma pergunta que lança desafio e
críticas para a compreensão sócia histórica brasileira do conceito de Patrimônio
cultural. Sem dúvida são pertinentes os desafios no processo de patrimonialização
onde surgem portanto, contradições, conflitos e heterogeneidades. Na luta por
direitos sociais muitas vezes grupos se engajam e atuam junto as políticas públicas
no esforço de legitimação social e de contestação de exclusão (culturas de periferia).
A luta é também pela democratização do erudito e do popular, da inclusão de
minorias e a disponibilidade do acesso à cultura e educação em geral. Desafios
perenes da identidade brasileira.
4.4 PATRIMÔNIO CULTURAL: CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DE IDENTIDADES
O processo de patrimonialização é complexo, o que exige confronto entre
grupos sociais, órgãos responsáveis pelo processo, políticas públicas, etc. A
dialética, a relação e a negociação entre os agentes são cruciais para se definir o
que é ou não patrimônio cultural. Além disso, é uma construção política geradora de
legitimidade e representações de valor simbólico. Longe de ser um processo
harmonioso, Canclini destaca:
Como espacio de disputa económica, política y simbólica, el patrimonio está
atravesado por la acción de tres tipos de agentes: el sector privado, el
Estado y los movimentos sociales. Las contradicciones en el uso del
patrimonio tienen laforma que asume la interacción entre estos sectores en
cada periodo. (CANCLINI,1997, p.2)
Portanto, ao conceito de Patrimônio devemos ultrapassar o sentido
tradicional e reducionista que é dado sobre cultura e compreender os múltiplos
92
fenômenos sociais e políticos que perpassam essa política pública, ou seja
ultrapassar a noção monumentalista e elitista e compreender que patrimônio cultural
também envolve as classes populares. Patrimônio cultural é uma ―idealização
construída‖ (DA SILVA, 2010), simbólica de uma identidade manufaturada pela
comunidade que no presente a idealiza como símbolo de um sentimento coletivo de
legitimação cultural.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o
"interior" e o "exterior"— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato
de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo
tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando- os "parte
de nós", contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade,
então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, "sutura") o sujeito à
estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles
habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e
predizíveis.(HALL, 2006,p.9)
O patrimônio cultural representa simbolicamente uma identidade, que
através dos bens imateriais patrimonializados ocorre uma transmissão cultural que
estreitam os vínculos com a história. Essa identificação com o passado fortalece os
vínculos identitários de uma coletividade, é criado um símbolo cultural como
aglutinador social de um determinado grupo que se assemelha entre si e ao mesmo
tempo busca se diferenciar dos demais. Nesse processo de patrimonialização ocorre
a objetificação cultural, processo que reúne fragmentos de tradições culturais, na
tentativa de representar a ideia de uma totalidade cultural. O bem cultural se torna
uma metáfora da ideia de totalidade cultural que certamente possui uma face
ideológica criada por agentes estatais e sociais. O passado dá um sentido de
identidade e pertencimento. Através do Patrimônio cultural, essa memória coletiva é
modelada pela materialização do legado cultural através do símbolo do Patrimônio, a
ponte que faz a ligação entre passado e presente.
Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e
domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de
fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou
lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam
93
práticas culturais coletivas). A Constituição Federal de 1988, em
seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao
reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e
imaterial. (IPHAN, 2015, p.7).
O desafio maior sobre preservação e transmissão de bens culturais
intangíveis incide sobre como transmitir a memória, o saber e o fazer frente àquilo
que é vivo e dinâmico. Como é possível assegurar a continuidade de uma prática
sociocultural sem aprisioná-la no tempo e espaço? Quais seriam os critérios a serem
aplicados a um bem intangível de natureza cambiante? Tais preocupações são a
tônica principal de regulamentações da UNESCO e de políticas públicas de diversos
países (MOTTA, 2004).
Desde os anos 90 a UNESCO tem sido o órgão internacional de
referência em políticas de salvaguarda das culturas tradicionais e populares e
aglutinador das discussões sobre as relações entre cultura e novas formas de
desenvolvimento. Com a emergência do neoliberalismo tem sido crescente a
preocupação da sociedade pelas politicas preservacionistas para a defesa e
promoção de valores como a diversidade cultural.
A conservação se refere à proteção das tradições vinculadas à cultura
tradicional e popular de seus portadores, segundo o entendimento de que
cada povo tem direitos sobre sua cultura e de que sua adesão a essa
cultura pode perder o vigor sob a influência da cultura industrializada
difundida pelos meios de comunicação de massa. Por isso, é necessário
adotar medidas para garantir do Estado o apoio econômico das tradições
vinculadas à cultura tradicional e popular, tanto no interior das comunidades
que as produzem quanto fora delas. (...) Deve-se sensibilizar a população
para a importância da cultura tradicional e popular como elemento da
identidade cultural. Para que se tome consciência do valor da cultura
tradicional e popular e da necessidade de conservá-la, é essencial proceder
a uma ampla difusão dos elementos que constituem esse patrimônio
cultural. Numa difusão desse tipo, contudo, deve-se evitar toda deformação
a fim de salvaguardar a integridade das tradições (UNESCO, 1989,p.4).
Como foi explicado na citação acima, as políticas de preservação de
patrimônios culturais devem seguir o contra fluxo do capitalismo e da indústria
94
cultural, afim de preservar as culturas populares ou as chamadas culturas de
periferia. Isso só pode ser feito com o apoio do Estado, das empresas e de setores
da sociedade, além dos grupos sociais que desejam se afirmar através da
patrimonialização cultural. A UNESCO têm sido o órgão mundial em ampla
referência acerca de políticas de patrimônio ancoradas numa perspectiva
sociocultural que compreende preservar os direitos de minorias como os índios,
negros, quilombolas e comunidades tradicionais ao todo. Desde sua fundação em
1945, a UNESCO tem conferido à cultura um papel crucial presente no conteúdo
normativo de suas legislações sobre patrimônio mundial através de convenções que
influenciaram o IPHAN no Brasil como exemplo.
Com a convenção de 1972 da UNESCO houve o incentivo de
preservação dos bens culturais e naturais considerados significativos para a
Humanidade. Esta Convenção serviu de parâmetro para o IPHAN criar sua política e
instrumentos de preservação de bens imateriais no Brasil. Nessa ordem discursiva,
patrimônio passa a ser compreendido como o resultado de um complexo processo
de práticas sociais, que envolve diferentes agentes e agências, negociações e
construções culturais e o modo de compreensão e interpretação de processos
culturais.
4.5 PATRIMÔNIO IMATERIAL, CULTURA E GLOBALIZAÇÃO
Com o advento da globalização e os impactos vertiginosos ocorridos nas
últimas décadas, como o fluxo informacional e comunicacional, com o crescimento
dos mercados culturais mundiais e o processo de industrialização do simbólico, a
sensação é que estaríamos passando por um acelerado processo de
homogeneização e padronização cultural (MATTERLART, 2005). A globalização
cultural estaria, assim, potencializando antigas desigualdades entre países e
sobretudo entre culturas. A imposição de um modelo hegemônico de cultura põe em
risco os repertórios culturais de minorias mais frágeis perante a agressividade
mercadológica da indústria cultural.
95
Os apelos à diversidade e à promoção das identidades locais foram
potencializados em territórios como a América Latina, contextualmente
marcados por uma grande heterogeneidade de línguas, crenças, costumes
e tradições. No continente latino-americano o temor generalizado de uma
unificação cultural fez com que as organizações profissionais de cultura, em
parceria com os movimentos sociais, assumissem a tarefa de pressionar os
governos locais e nacionais no sentido de realizar a defesa e promoção das
identidades locais e regionais. Manuel Castells destaca que a luta latino-
americana pelo direito à diversidade cultural deu ao tema da identidade,
nesse continente, um poder extremamente mobilizador e politicamente
muito eficaz (ALVES, 2000, p. 77).
Como Alves explica Patrimônio inscreve-se sobre a história e a memória,
muitas vezes adquirindo conceitos ambíguos. A perspectiva moderna sobre
Patrimônio (principalmente após o Renascimento, no final do século XVIII e início do
século XIX), trouxe a necessidade de preservação do passado, que implica o
exercício de poder que de forma ambígua sendo a tentativa de superação do velho e
de demarcação do tempo, um parâmetro para a noção de progresso e evolução.
A noção moderna sobre Patrimônio cultural vem acompanhada de
discussões a respeito da pós-modernidade e da necessidade de preservação de
culturas tradicionais, frente à rápida expansão da globalização e dos riscos que
advém do neoliberalismo. A deslocação das estruturas e os processos sociais
abalam as referencias dos indivíduos no mundo moderno (HALL, 2010). Por vezes o
processo de formação de identidades culturais tem se tornado provisório e
problemático exemplos. De fato, o que está em jogo em relação às identidades é a
tentativa de se criar estabilidade, frente às rápidas mudanças e à fragmentação
presente nas sociedades modernas.
Os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de
uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social.
Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas
na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças
características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram
para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em
termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais
íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (GIDDENS, 1990, p. 21).
96
O homem moderno perde a referencia que antes as culturas tradicionais
lhe forneciam. O individuo se fragmenta, desloca-se, separa-se. Sua cultura é
híbrida, móvel e temporária. Nesse sentido, a instrumentalização do aparato estatal
é uma via, uma tentativa de aglutinar as referencias culturais em um símbolo: o bem
cultural. A política de Patrimônio certamente é um recurso utilizado pelas culturas
tradicionais e populares para cristalizar a sua identidade em meio ao rápido
processo de liquidez das relações sociais e culturais (BAUMAN, 2010).
No processo de globalização, que é desigual e tem sua própria geometria
de poder, as comunidades lutam e exercem embates para se preservarem em meio
à dominação global ocidental. Pensar nesse bem cultural a ser cultuado e fortalecido
nos remete ás vezes a um ideário romântico da pureza racial ou cultural que
determinado bem deve ter, porem deixemos as fantasias de lado, pois o objeto
patrimonializado certamente será marcado pelas rápidas mudanças do progresso
global. Além disso, os bens imateriais possuem natureza fluida, mutável, submetidos
à dinâmica cultural. Como é o caso da Ayahuasca. A bebida que outrora era apenas
conhecida pelos índios amazônicos, ao longo do tempo saiu do contexto rural da
população ribeirinha amazonense e alcançou os grandes centros e megalópoles no
Brasil e no mundo. Hoje a bebida é utilizada em rituais com influencias culturais das
mais diferentes proveniências.
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas,
mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que
retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e
que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais
que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador
pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a
acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas "raízes" ou
desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse
pode ser um falso dilema. (HALL, 2010, p.24)
Apesar dos rápidos avanços da globalização no processo de hegemonia
cultural, esse quadro é relativo, sobretudo nos países subdesenvolvidos. As antigas
querelas identitárias, como as tradições populares de origem indígena e negra, se
mantem vivas e se multiplicam em identidades locais de inspiração religiosa, como é
o caso das doutrinas ayahuasqueiras do norte do país. As doutrinas ayahuasqueiras
que permaneceram até ás décadas de 70 e 80 praticamente isoladas na floresta
97
amazônica e desconhecidas pelo restante do país hoje se encontram com filiais em
várias capitais brasileiras e em novos formatos. As chamadas doutrinas neo-
ayahuasqueiras surgidas nos centro urbanos são o resultado de uma grande mistura
das doutrinas tradicionais com novos elementos de outras religiões como o budismo,
a umbanda, o hinduísmo, espiritismo e até com a presença de elementos
terapêuticos, como é o caso do Caminho do Coração ao qual tratei no capítulo
anterior.
Nessa perspectiva, deixamos de lado a ideia do chamado ―folclore‖, para a
abordagem da manifestação cultura ―viva‖, atual, incluída no discurso das
mudanças oriundas do processo de globalização. Assim, tendo em vista que
as manifestações da cultura tradicional e popular estão sujeitas a constante
mudança, como a política de salvaguarda entende essa questão? Como
relacionar a ideia de preservação ao conceito de ―autenticidade‖? Como
entendem os protagonistas, ou seja, os indivíduos aos quais se direciona a
política de salvaguarda? Essas perguntas podem ser respondidas a partir
de uma reflexão sobre o papel dos próprios membros dos grupos e o
interesse em perpetuar as suas práticas, e também a partir de uma
discussão acerca do papel do Estado na formulação de uma política capaz
de acompanhar o caráter dinâmico dessas manifestações, tendo em vista
que ―a seleção e a avaliação de bens culturais imateriais devem estar
apoiados mais em noções de referência cultural e de continuidade histórica
do que no conceito de autenticidade que tradicionalmente estrutura o campo
da preservação‖ [SANT´ANNA, 2005, p.6] (DO CARMO, p.10, 2010).
Porém, a ideia de um multiculturalismo num cenário globalizado deve ser
compreendida em seus pormenores, pois a tendência é que culturas minoritárias ou
mais fracas sejam engolidas nesse processo. A ideia contemporânea é a de que
culturas estão em mutação e que a maioria das identidades modernas estão
entrando em colapso. Nesse sentido a difícil tarefa das políticas publicas de
patrimônio cultural é dar de conta de uma realidade complexa e dinâmica:
A natureza dos bens culturais imateriais é dinâmica e mutável, ou seja,
esses bens são permanentemente reiterados e recriados. Com isso, a ideia
de autenticidade, tal como tradicionalmente utilizada no campo do
patrimônio e relacionada à perenidade de uma forma, da matéria ou da
configuração geral do bem, não é aplicável a este universo. Os instrumentos
de identificação, reconhecimento e fomento do sistema de salvaguarda do
98
patrimônio cultural imaterial devem, portanto, ser formulados e aplicados
tendo em conta essa dinâmica (SANT‘ ANNA, 2008, p.5).
A salvaguarda patrimonial é a tentativa da cultura local se sobrepor e
fazer parte dessa cultura global. A identidade passa a ser reconhecida como global e
pertencente ao avanço moderno fora de seu ―localismo‖.
A pós-modernidade é ainda a própria modernidade, porém, sem ilusões. A
modernidade está ligada diretamente aos novos paradigmas da sociedade,
agravada pelo fenômeno da globalização e das implicações desta, razão
pela qual também utilizamos a expressão liquidez, o que significaria falar
das novas tecnologias, da aceleração do tempo, da fragmentação do
espaço e das coletividades, provocando o crescimento do individualismo.
(BAUMAN, 2000, p.121)
A constituição do patrimônio histórico está sempre em processo. Nada
garante sua permanência ou imutabilidade. A continuidade histórica de determinado
bem cultural depende da existência de grupos interessados nesse cerne da questão.
A ação do Estado se torna um dialogo necessário para a intervenção dos atores
sociais.
O entendimento é de que, em se tratando de uma memória viva, a lei é um
recurso limitado, e o poder de polícia é um recurso inadequado. A ação do
poder público deve ser flexível e descentralizada, predominantemente
mediadora, na medida em que cada situação exigirá estratégias distintas de
preservação, que só serão eficazes se elaboradas e implementadas em
parceria com os interessados. (LONDRES, 2005,p. 11).
A estratégia de preservação como política pública deve ser elaborada em
parceria com os grupos sociais interessados. No caso do processo de
patrimonialização da Ayahuasca, por exemplo, essa tarefa se torna mais complexa
porque além das doutrinas ayahuasqueiras fazerem uso do chá, têm os grupos neo-
ayahuasqueiros nos centros urbanos e as diversas tribos indígenas que também
consagram a bebida no Norte do país. A estratégia nesse caso é a realização do
Inventário para se fazer o levantamento do uso ritual da Ayahuasca por esses
grupos, o que torna um desafio, levando em consideração todos os elementos
culturais que envolvem essa bebida amazônica.
Assim, diferentemente dos bens materiais como uma igreja ou um
monumento que deve ser tombado e preservado da maneira mais original
99
possível, a salvaguarda dos bens de natureza imaterial deve propor
medidas que não caiam no estigma da Folclorização, ou seja, de uma
espécie de ―congelamento‖ dessas práticas culturais, mas que garantam
tratar seus valores simbólicos em meio às diversas transformações
decorrentes da contemporaneidade. Nesse sentido, os saberes e fazeres
das manifestações culturais não devem ser vistos como uma coisa
―engessada‖, esperando para ser preservados ou resgatados e sim como
um processo cultural em movimento (DO CARMO, 2010, p.12).
O compromisso da preservação deve ser reiterado geração após geração.
A preservação só faz sentido se a sociedade estiver se relacionando com esse
compromisso. A experiência de patrimônio não deve se limitar apenas a
conservação de bens culturais ou seguir a logica consumista de viés global, mas se
tornar constantemente em experiências ricas e transformadoras. Esse é um desafio
sobretudo no Brasil, devido a grande desigualdade, ao elitismo patrimonial, ao
analfabetismo cultural por parte da população e ainda às falhas no processo de
salvaguarda da diversidade cultural brasileira. As mudanças que ocorrem na
sociedade devem ser acompanhadas por atualizações das políticas públicas nesse
setor.
Un patrimonio reformulado que considere sus usos sociales, no desde una
mera actitud defensiva, de simple rescate, sino con una visión más compleja
de cómo la sociedad se apropia de su historia, puede involucrar a nuevos
sectores. No tiene porqué reducirse a un asunto de los especialistas en el
pasado: interesa a los funcionarios y profesionales ocupados en construir el
presente, a los indígenas, campesinos, migrantes y a todos los sectores
cuya identidad suele ser trastocada por los usos hegemónicos de la cultura.
En la tiledida en que nuestro estudio y promoción del patrimonio asuma los
conflictos que lo acompañan, puede contribuir al afianzamiento de la nación,
pero ya no como algo abstracto, sino como lo que une y cohesiona en un
proyecto histórico solidário a los grupos sociales preocupados por la forma
en que habitan su espacio y conquistan su calidad de vida. (CANCLINI,
1999, p.9).
Patrimônio é uma política pública que está em constante discussão. Nesse
segundo capítulo compreendemos seu conceito e origem e aprofundaremos no próximo
capítulo a análise sobre o pedido de patrimonialização da Ayahuasca. A possível
patrimonialização da bebida Ayahuasca é usada como mecanismo simbólico de
100
legitimação social pelas doutrinas. Um meio que serve de ponte para a integração cultural
do segmento social ayahuasqueiro. Esse construto visa criar representações coletivas e
simbólicas através do Estado, representando uma das muitas lutas cambiantes da
realidade social. A sociedade moderna é moldada pelo poder simbólico que cria relações
de dominação estatal, de classe, de cultura, etc. É esse movimento de lutas e de poderes
que cria e recria os padrões de modelos vigentes ou as rupturas dos paradigmas sociais
da realidade contemporânea no Brasil.
101
5 O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL
No capítulo 1 tratei sobre os aspectos legais da Ayahuasca dando um panorama
desde a década de 80 até os dias atuais. Neste capítulo, apresento um quadro mais
detalhado sobre normas, pareceres, situação jurídica e o processo de
patrimonialização da Ayahuasca.
5.1 AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE AYAHUASCA
Em 1985 o cipó Banisteropis Caapi, um dos componentes da bebida
Ayahuasca, se encontrava na lista de plantas proibidas pela Divisão Nacional de
Medicamentos (DIMED). Em 31 de janeiro de 1986 o CONFEN (Conselho Federal
de Entorpecentes) que através do Grupo de Trabalho (GT) instituído pela Resolução
de número 04/85 aprovou por unanimidade a suspensão da Banisteropis caapi da
supracitada lista do DIMED. O GT também considerou que:
O referido uso ritual do ―Daime‖ há muitas décadas vem sendo feito, sem
que tenha redundado em qualquer prejuízo social conhecido‖ e que
segundo o relatório antes referido, ―padrões morais e éticos de
comportamento em tudo semelhantes aos existentes e recomendados na
nossa sociedade, por vezes até de modo bastante rígido, são observados
nas diversas seitas (CONFEN, GT DA AYAHUASCA, 1986).
Além disso, segundo o documento a Resolução Número 04/85, atenta aos
múltiplos aspectos envolvidos no uso ritual de substâncias derivadas de espécies
vegetais, por comunidades religiosas ou indígenas, tais como os sociológicos,
antropológicos, químicos, médicos e da saúde, em geral, determina o exame de
todos esses aspectos, que devem ser, assim, levados em conta em decisões sobre
questões relativas ao uso daquelas espécies vegetais. Ao final o CONFEN se
compromete em voltar atrás na decisão caso sejam apurados casos em que haja
mau uso do chá.
Este documento é um dos que representam o inicio do processo de
legalização e tratamento mais atualizado sobre o chá Ayahuasca e suas plantas
componentes. O CONFEN com a Resolução de número 6, de 4 de feveireiro de
102
1986 resolve dar continuidade ao Grupo de Trabalho para concluir os estudos dos
aspectos da Resolução 04/85 e decidir em definitivo sobre a listagem das plantas
Banisteropis caapi e Psycotria Viridis. No Relatório final do Grupo de Trabalho em 26
de agosto de 1987, redigido pelo jurista Domingos Bernardo de Sá foram detalhadas
informações a respeito da Colônia Cinco Mil, descrevendo os rituais, o preparo da
bebida, a convivência e a cosmologia da doutrina e da comunidade, a história do
Padrinho Sebastão Mota de Melo e de sua esposa Madrinha Peregrina. De acordo
com esse Relatório, indagações foram feitas a respeito da Ayahuasca enquanto
―alucinógeno‖ e as manifestações ―culturais‖ associadas ao seu uso.
Estes quase dois anos durante os quais a ―Ayahuasca‖ foi objeto das
preocupações do Grupo de Trabalho, em que foram mantidos inúmeros
contatos com usuários dos mais diversos estratos sociais, como no rio de
Janeiro, na capital da República ou no interior da selva amazônica,
numerosas indagações foram formuladas, mas que na realidade,
implicavam já um juízo prévio e condenatório. Essas indagações gravitaram,
mais frequentemente, em torno de duas palavras, ―alucinógeno‖ e ―culturas‖.
A ―Ayahuasca‖ é ―alucinógeno‖? É possível admitir seu uso pelo homem da
cidade, tendo em vista as diferentes ―culturas‖, urbana e rural?
(RELATÓRIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987, p.29).
Ainda consta no Relatório que a busca empreendida pelo usuários da
Ayahuasca não se assemelha à alucinação, desvario ou insanidade mental. De
acordo com Bernardo de Sá, jurista responsável pelo relatório final do CONFEN,
existe um projeto em comum das instituições ayahuasqueiras associado à busca do
sagrado e do autoconhecimento. Para o jurista não cabe ao GT definir se as formas
empregadas pelas instituições na busca do sagrado são devaneios ou fantasias.
Existe ainda, no Relatório, a preocupação com relação à expansão da Ayahuasca
em âmbito nacional, compreendendo que existem possíveis impactos e
consequencias da inserção do chá nas metrópoles brasileiras. A problematização
gira em torno das possíveis consequências que seriam a proliferação desenfreada
de usuários e supostos riscos da utilização da Ayahuasca fora do seu contexto de
origem.
De acordo com o parecer da antropóloga Regina Abreu presente no
Relatório Final do CONFEN de 1987, a inserção das instituições ayahuasqueiras no
103
meio urbano faz parte de um legitimo processo social de expansão e manifestação
de identidades religiosas:
[...] De tudo resulta que essas comunidades, do campo ou da cidade, que
adotam a Doutrina do Santo Daime, podem parecer, aos olhos de muitos,
grupamentos exóticos, mas a convivência com essa diversidade somente
poderá ser enriquecedora para os individuos e para a sociedade como um
todo (RELATORIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987, p.32).
Na conclusão do Relatório do CONFEN é perceptivel a visão que o
documento tem em encarar a diversidade cultural como uma chave política para
transformar a preocupação quanto à expansão da Ayahuasca em um processo
legítimo. O reconhecimento desse fenômeno propõe uma leitura da expansão do
consumo da Ayahuasca como parte de um processo chave da diversificação cultural
brasileira.
Em novembro de 1991 é emitida uma Carta de principios para o uso da
Ayahuasca redigida pelos grupos que fazem uso do chá com apoio do CONFEN
assinalando principios para o preparo e uso do chá, o respeito aos rituais religiosos,
sobre cuidados, restrições, a difusão de informações e a regulamentaçao legal. Na
Carta as entidades ayahuasqueiras comprometem-se a não comercializar
Ayahuasca sendo seus custos de produção, transporte, estocagem e distribuição
responsabilidades de cada Centro ayahuasqueiro. As entidades18 signatárias devem
evitar a prática do curandeirismo e será vedado terminantemente a participação de
pessoas ao ritual e ingestão do chá caso apresentem sintomas de embriagues ou de
consumo de outras substâncias psicoativas.
Através da Ata da 5° reunião extraordinária do CONFEN realizada em
dois de junho de 1992 e publicado no Diário Oficial, Seção 1, N.º: 11467, em 24 de
agosto de 1992, o conselheiro Bernardo de Sá proferiu parecer sobre o chá
Ayahuasca. Segundo Bernardo de Sá, as instituições ayahuasqueiras seguiram a
risca a Carta de princípios emitida um ano antes, em 1991. De acordo com o jurista,
na Ata de 1992 emitida pelo CONFEN:
[...] Submeto à soberana decisão do Plenário, agora as seguintes
recomendações: a – a Ayahuasca, cujos principais nomes brasileiros são
18
As entidades envolvidas na época foram os três troncos fundadores: Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal;
104
"Santo Daime" e "Vegetal", e as espécies vegetais que a integram o
"Banisteriopsis Caapi", vulgarmente chamado de cipó , jagube ou mariri e a
"Psychotria Viridis", conhecida como folha, rainha ou chacrona, devem
permanecer excluídos das listas da DIMED ou do órgão que tenha
responsabilidade de cumprir o que determina o art.36 da Lei n.º 6.368, de
21.10.1976, atendida, assim, a análise multidisciplinar constante do
Relatório Final, de setembro de 1987 e do presente parecer; b – poderá ser
objeto de reexame o uso legitimo da Ayahuasca, aqui reconhecido, bem
como aliás de qualquer outra substância com atuação no Sistema Nervoso
Central, desde que com base em fatos novos, cujos aspectos substantivos
ou essenciais não tenham sido, ainda, apreciados pelo CONFEN, tendo em
vista que o acatamento a decisões relativas a matérias sobre as quais já se
haja pronunciado o Colegiado, é fator de estabilidade das relações no
âmbito da própria Administração Pública e perante os interesse individuais
envolvidos; c – deve ser organizada comissão mista integrada pelo
CONFEN que poderá convidar assessores, e por representantes de
entidades que observam o uso da Ayahuasca em seus ritos com o objetivo
de consolidar os princípios e regras básicas, comuns às diversas entidades
referidas, para fins entre outros, de acompanhamento da Administração
Pública; d – fazem parte integrante e complementar do presente parecer, o
relatório final e os documentos que os instruíram, apreciados pelo CONFEN
em sua reunião plenária e setembro de 1997 e que ora são reapresentados,
por cópia, para os arquivos do CONFEN e atendimento aos eventuais
pedidos de esclarecimento formulados pelos interessados em geral (ATA
n°5 CONFEN 1992).
No relatório acima, que contou com a assessoria de pesquisadores nas
áreas de antropologia, psiquiatria, e psicofarmacologia, Bernardo de Sá argumenta
que o uso do chá é quase que exclusivamente social sempre uma sequencia de atos
ou ritos a observar-se (PARECER CONFEN, 1992, p.16). Ainda no parecer de 1992,
Bernardo de Sá utiliza a análise do assessor Edward MacRae sobre a questão:
A propósito é oportuno verificar o que diz MacRae: ―Quanto ao interesse
cultural da ayahuasca ter um uso ritual urbano no Brasil há quase 70 anos,
lembra-se que esse é aproximadamente o mesmo tempo de existência da
umbanda e que, assim como no caso dela, o uso religioso do chá psicoativo
ensejou a criação de instituições que provem a muitas pessoas os
arcabouços éticos, sociais e culturais, em torno dos quais construíram suas
vidas. Os diversos estudos antropológicos e históricos realizados sobre
esse uso da bebida tem ressaltado a conduta pacifica e ordeira dos adeptos
105
das diversas seitas, cujos valores básicos coincidem com aqueles
considerados emblemáticos das sociedades cristãs ocidentais‖ (PARECER
CONFEN, 1992, p.12-13).
Segundo Antunes (2015) a literatura antropológica encara o fenômeno do
uso da Ayahuasca como manifestação religiosa socialmente integradora. Esse
pensamento se tornou presente nas políticas públicas o que foi de fundamental
importância para a não proibição da bebida no país. Ainda de acordo com o autor a
atuação de pesquisadores e a produção acadêmica sobre a Ayahuasca definiram as
primeiras agendas das políticas públicas voltadas ao uso e controle da Ayahuasca
no Brasil.
Em 31 de dezembro de 2002, o Conselho Nacional de Políticas sobre
Drogas (CONAD) através da Resolução n°26, reexamina a questão da
regulamentação da Ayahuasca para uso religioso. Segundo a Resolução, que parte
do principio que:
O uso ritualístico do ‗chá Ayahuasca‘ constitui-se em manifestação cultural
e religiosa de há muito reconhecida pela sociedade brasileira e que a
mesma trás ―proposta de medidas de controle social e outras sugestões que
se façam oportunas, haja vista a necessidade de trazer para a prática pela
sociedade, dentro do princípio da responsabilidade compartilhada, normas e
procedimentos que preservem manifestação cultural religiosa consagrada,
observados os objetivos e normas estabelecidos pela Política Nacional
Antidrogas e pelos diplomas legais pertinentes (RESOLUÇÃO N.26 DO
CONAD, 2002).
De acordo com Antunes (2015), a Resolução de 2002 acabou não
acontecendo na época devido à mesma ter sido emitida no último dia de
administração do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Em
março de 2004, o CONAD solicitou à Câmara de Assessoramento Técnico-Científico
(CATC) do CONFEN a elaboração de um novo estudo. Segundo MacRae (2008), a
CATC realizou novas discussões a respeito da Ayahuasca contando novamente com
a participação dos antropólogos Edward MacRae, Sandra Lucia Goulart e Beatriz
Caiuby Labate. As discussões deram como resultado final a Resolução de n°5 do
CONAD, de 4 de novembro de 2004.
106
O parecer da CATC reconheceu juridicamente a legitimidade do uso
religioso da Ayahuasca e que ―o processo de legitimação iniciou-se, a mais de
dezoito anos, com a suspensão provisória das espécies vegetais que compõem a
lista da Divisão de Medicamentos (DIMED) [...]”. Segundo o documento, a decisão
veio após uma análise multidisciplinar e que a decisão de garantir o direito
constitucional ao exercício de culto deve ser alicerçada sobre a base de uma gama
de informações prestada por profissionais de diversas áreas do conhecimento. Ao
final, a Resolução indica a formação de um Grupo Multidisciplinar de Trabalho
(GMT) para: empreender um levantamento e acompanhamento do uso religioso da
Ayahuasca, pesquisar sobre a utilização terapêutica em caráter experimental;
promover o cadastro nacional de todas as instituições que adotam o uso do chá
Ayahuasca; e elaborar um documento que traduza a deontologia19 do uso da
Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado. (RESOLUÇÃO N. 5,
CONAD, 2004).
O GMT incluiu pesquisadores das áreas de antropologia, serviço social,
psicologia, farmacologia, bioquímica, psiquatria e direito, alem de repesentantes das
instituições ayahuasqueiras. Em um seminário organizado pelo CONAD, realizado
em março de 2006 em Rio Branco, estado do Acre, foram escolhidos os
representantes das entidades ayahuasqueiras. Os pesquisadores componentes do
GMT foram os que já haviam prestado assessoria ao CONFEN e CONAD
anteriormente, contando com a presença dos estudiosos que participaram da
elaboração de relatórios do CONFEN sobre Ayahuasca (ANTUNES, 2015).
De acordo com o Relatório Final do GMT Ayahuasca de 2006, foram
aprovados enquanto principios deontologicos da Ayahuasca: o uso restrito aos
rituais religiosos, sendo vetado seu uso associado a substâncias psicoativas ilícitas;
proibição da comercialização da Ayahuasca; a busca pela autossustentabilidade por
parte das entidades ayahuasqueiras; evitar o oferecimento de pacotes turisticos
associados à Ayahuasca; não fazer propaganda; a recomendação para os grupos se
constituirem enquanto organizações juridicas; controle sobre o ingresso de novos
adeptos; manter ficha cadastral dos participantes; manter a ética e o respeito mútuo
nas instituições. Ao final do Relatório o documento afirma:
19
Deveres morais e éticos associados ao uso do chá Ayahuasca.
107
Considerando, por fim, que o uso ritualistico religioso da Ayahuasca, há
muito reconhecido como prática legítima, constitui-se manifestação cultural
indissociável de identidade das populações tradicionais da Amazônia e de
parte da população urbana do país, cabendo ao Estado não só garantir o
pleno exercicio desse direito à manifestação cultural, mas também protegê-
la por quaisquer meios de acautelamento e prevenção [...] (RELATÓRIO
FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.13).
Além disso, o mesmo documento destaca para a questão de ―publicidade
da Ayahuasca‖ que tem sido alvo de deturpações e abusos, principalmente na
internet, e estabeleceu que ―o uso ritual responsável é incompatível com a
publicidade e a oferta de promessas de curas milagrosas, de transformações
pessoais arrebatadoras [...]‖ (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.9). O
relatório adverte para que as entidades tratem do tema com discrição quanto aos
efeitos da bebida. O documento reconhece o carater religioso do uso da Ayahuasca
desde a coleta até o preparo e ministração do chá tratando-se de ―ato de fé e não de
comércio‖. De modo que o consumo da Ayahusca para fins lucrativos é incompativel
com seu uso em contexto religioso, decidindo também dar ampla publicidade ao
relatorio. Merece destaque no documento a proibição do turismo da Ayahuasca onde
se orienta que as entidades adotem uma ―prática religiosa responsável‖, evitando
que venha a se transformar em ―mercantilismo de substância psicoativa,
enriquecendo pessoas ou grupos, que encontram argumento da fé apenas o escudo
para práticas inadequadas‖ (RELATORIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.9).
O documento ainda ressalva que a prática de curandeirismo é proibida no
Brasil, recomendando que as propriedades curativas e medicinais da Ayahuasca
devem ser compreendidas do ponto de vista espiritual evitando-se a propaganda
que possa induzir a opinião publica e autoridades a equívocos. Nas proposições o
relatório recomenda ―fomentar pesquisas científicas abrangendo as seguintes áreas:
farmacologia, bioquímica, clínica, psicologia, antropologia e sociologia, incentivando
a multidisciplinaridade‖ (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.9).
Por sua vez, em 25 de janeiro de 2010, o CONAD aprovou a Resolução
N°1. Segundo Antunes (2015), a Resolução de N°1 dispõe acerca da observância,
pelos orgãos da administração pública, das decisões do Conselho sobre normas e
os procedimentos compativeis com o uso religioso da Ayahuasca, bem como sobre
108
os princípios deontológicos. A Resolução determina a publicação na íntegra do
Relatorio Final do Grupo Multidisciplinar de trabalho, dar publicidade ao mesmo e
encaminhá-lo aos conselheiros do CONAD e para as instituições que fazem uso do
chá (RESOLUÇÃO N.1, CONAD, 2010).
A partir desse panorama sobre a elaboração de politicas publicas acerca da
Ayahuasca, depreende-se o papel estratégico da participação de
pesquisadores especialistas no tema, seja prestando assessoria os órgãos
publicos seja inserindo-se progressivamente nas comissoes e nos grupos
de traalho constituidos com o objetivo de investigar questoes concernentes
à bebida e seus usos [...] É possível afirmar, portanto, que a atuação de
intelectuais foi fundamental não apenas para dar visiblidade ao tema, mas
também para modelar a percepção publica dos fenomenos em disputa. Tal
atuação [...] contribuiu para conferir legitimidade legal às instituições
ayahuasqueiras ao reconstruir as praticas de cosumo do chá enquanto
manifestação religiosa e cultural tradicional de origem amazonica. Mas
também contribuiu para definir o que pode ser entendido como uso ritual em
contraposição ao uso mercantil da droga para delinear os parametros
aceitaveis de regulamentação dessas religiões por parte do Estado tais
como a proibição da publicidade e de modos de produção não artesanais da
bebida (ANTUNES, 2015, p. 171-172).
Enquanto os primeiros relatórios do CONFEN, na década de 80, focavam
na defesa da legitimidade do uso da Ayahuasca enquanto manifestação religiosa e
cultural, a partir dos anos 2000 as resoluções do CONAD param de associar o uso
da Ayahuasca à tematica das drogas. Segundo Antunes (2015), a legitimidade do
uso religioso da Ayahuasca se tornou um consenso bem estabelecido. A temática
agora avança para debater quais seriam os mecanismos sociais e legais
necessários para o ―uso responsável da Ayahuasca‖, entendido como uso ritual e
sem fins lucrativos. O autor afirma que essa preocupação culminou para o
estabelecimento dos principios deontológicos da Ayahuasca a fim de impedir o uso
da bebida de de forma descontextualizada que ameaçasse a legitimidade
conquistada por parte das entidades ayahuasqueiras. Conforme a citação de
Antunes (2015), a atuação de intelectuais foi fundamental para dar visibilidade ao
tema, contribuindo no processo de legitimação social das comunidades
ayahuasqueiras. Essa atuação também contribuiu para a mudança de conceito
109
associado ao uso da Ayahuasca que sai da esfera de políticas de drogas e passa
gradativamente para o de políticas públicas de patrimonio cultural.
5.2 AYAHUASCA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CULTURA BRASILEIRA
Em 2010 durante o Seminário ―Culturas Tradicionais da Ayahuasca:
Construindo Políticas Públicas para o Acre‖, a Assembléia Legislativa do Acre
homenageou os três fundadores das organizações religiosas originais e tradicionais
da Ayahuasca no Brasil: Centro de Iluminação Cristã de Alto Santo, Centro Espírita e
Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz e União do Vegetal. Por susgestão do
deputado Móises Diniz foram concedidos títulos de cidadãos acreanos aos mestres
Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos e José Gabriel da Costa.
Em setembro de 2006 as instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz
Universal de Alto Santo foram tombadas como Patrimonio histórico e cultural do
Acre, através do Decreto do governador Jorge Ney Viana Macedos Neves e do
Prefeito do Rio Branco Raimundo Angelim Vasconcelos. Dois anos depois, em 2008,
os tres troncos fundadores entraram com um pedido de reconhecimento da
Ayahuasca como Patrimonio cultural imaterial brasileiro junto ao Instituo do
Patrimonio Histórico e Artistico Nacional (IPHAN). Segundo Labate (2010) esse
processo representa uma importante conquista na história dos grupos
ayahuasqueiros, que tem sido, desde sua origem, frequentemente perseguidos. A
relação desses grupos com o poder público do Acre e a transição da Ayahuasca do
estigma de droga perigosa para status de patrimonio cultural regional e nacional
representam uma importante transformação, e muito pouco foi escrito sobre isso até
o momento.
Esse pedido empreendido em 2008, realizado pelos três troncos
fundadores a partir de um diálogo com as fundações culturais do estado do Acre e
do municipio do Rio Branco por meio do IPHAN, representa segundo Antunes
(2015), um dos principais desdobramentos recentes da controvérsia pública sobre
Ayahuasca no Brasil. De acordo com a solicitação feita ao IPHAN:
110
[...] a atuação destes três mestres fundadores - Irineu, Daniel e Gabriel –
estabeleceu as bases doutrinárias de uma nova tradição religiosa,
sincreticamente brasileira e tipicamente amazônica, que possibilitou a
formação de comunidades organizadas em torno do uso ritual da
Ayahuasca e que passaram a ter importante papel (político, social e cultural)
na própria formação da sociedade brasileira na Amazônia Ocidental.
O conhecimento espiritual destas doutrinas tem sido transmitido de geração
a geração e mantido por diversas tradições culturais através de um
sincretismo religioso caracteristicamente amazônico, o que implica numa
relação essencialmente harmônica com a natureza e estabelece um
sentimento de identidade e continuidade, garantindo assim o respeito à
diversidade étnico-cultural e à criatividade humana. Com isso as Doutrinas
do Daime/Vegetal, como estabelecidas por seus mestres fundadores,
tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo assim
receber o reconhecimento como patrimônio cultural de nosso país.
Com base nas informações acima relacionadas podemos afirmar que a
utilização ritual da Ayahuasca em doutrinas religiosas preenche os quesitos
que a caracterizam como patrimônio imaterial, considerado como ―práticas,
representações, expressões, conhecimentos e técnicas que comunidades
ou grupos reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural‖
(PEDIDO DE TOMBAMENTO DA AYAHUASCA, 2008, p.1).
Como é possível observar na transcrição da solicitação, o documento
afirma que o uso ritual da Ayahuasca em contexto religioso preenche os quesitos
que caracterizam a noção de patrimônio imaterial. Em novembro de 2011, o IPHAN
deu inicio a avaliação do pedido, abrindo uma licitação para que fosse realizado um
levantamento preliminar através do Inventário Nacional de Referências Culturais
(INRC) sobre os bens e as referências culturais associados ao uso do chá no Acre
(ANTUNES, 2015).
Não obstante, o processo de reconhecimento ainda encontrar-se em
andamento, constata-se que, apesar das divergências e disputas entre
entidades ayahuasqueiras com relação ás práticas e instituições que devem
ser contempladas pela categoria de patrimônio cultural, a discussão esta
pautada de antemão em uma categorização previa dos fenômenos em
questão enquanto manifestação religiosa e cultural legitima. Tais
desdobramentos, os quais só foram possíveis apos décadas de discussões
e de desenvolvimento de politicas publicas, possibilitam atestar a
111
consolidação da associação Ayahuasca/religião/cultura na atual
configuração da controvérsia publica no Brasil (ANTUNES, 2015, p. 175).
Por sua vez Goulart (2016) destaca que os três troncos fundadores já
vinham desenvolvendo várias iniciativas em conjunto para a ampliação do diálogo
sobre a Ayahuasca junto ao poder público e em especial com o Governo do Acre,
desde a década de noventa. A designação de cultura ayahuasqueira se tornou
estratégia fundamental para a formalização do pedido de patrimonialização do uso
ritual da Ayahuasca para a obtenção de legitimidade e reconhecimento público.
A designação ―comunidades tradicionais da Ayahuasca‖ que surge, pela
primeira vez, na carta de solicitação da patrimonialização do uso da Ayahuasca,
levanta algumas questões polêmicas em torno desse conceito. Em um primeiro
momento os três troncos fundantes se autodesignaram comunidades tradicionais
ayahuasqueiras propondo a distinção das comunidades que fazem o uso do chá em
três campos: ―os originários‖(correspondendo aos povos indígenas), ―os
tradicionais‖(os três troncos fundadores: Alto Santo, Barquinha e UDV) e ―os
ecléticos‖ (demais comunidades Ayahuasqueiras, como o CEFLURIS e o Caminho
do Coração por exemplo). Goulart (2016) explica que a noção de ―tradicional‖
associada aos três troncos resulta em parte de um antigo processo de contrastes e
disputas vividos com o CEFLURIS. Enquanto o CICLU Alto Santo, Barquinha e UDV
sempre tenderam a aproximação e ao fortalecimento de alianças, por outro lado as
mesmas instituições tenderam a se distanciar do CEFLURIS.
Labate (2012) explica que a origem do acirramento se deu com a cisão
entre CICLU Alto Santo e CEFLURIS e pelo fato da comunidade criada por Padrinho
Sebastião aceitar viajantes e pessoas de fora e expressar maior tolerância ao uso de
outras plantas psicoativas (cannabis sativa) além da Ayahuasca. No Seminário
realizado em Rio Branco no ano de 2010 representantes dos grupos ayahuasqueiros
questionaram as categorizações ―tradicionais‖ e ―ecléticas‖. Alex Polari, liderança do
CEFLURIS, enviou uma carta ao Seminário onde destaca que as religiões
ayahuasqueiras brasileiras são apenas ―parte de um vasto universo‖ e antes de tudo
tributárias aos povos indígenas das Américas. Polari afirma que ―mais do que nós
[comunidades ayahuasqueiras], podem ser considerados [os povos indígenas] os
detentores deste patrimônio sagrado‖ (NEVES E SOUZA, 2010, p. 43-45)
112
Goulart (2016) afirma que o CEFLURIS destaca a diversidade das
tradições do uso da Ayahuasca e critica a postura dos três troncos em marcar a
distinção e peculiaridade da tradição do uso da Ayahuasca como própria e exclusiva
deles. Alex Polari prossegue argumentando em sua carta que os três troncos ao se
colocarem como ―os mais tradicionais‖ se desvinculam do uso indígena e coloca-os
de forma simplista no campo dos ―originários‖. Embora o CEFLURIS se considere
―uma derivação legítima e autêntica do tronco do Mestre Irineu‖, a instituição não é
incluída pelo outros três troncos no campo ―tradicional‖. As categorias ―tradicional‖ e
―eclético‖ foram construídas numa tentativa de se lidar com as ―rivalidades‖
existentes entre os três troncos e demais grupos ayahuasqueiros.
Nas atuais discussões sobre a inserção do tema da Ayahuasca em politicas
públicas culturais, as noções de uso religioso e uso ritual também
aparecem. Entretanto, essas noções são utilizadas, agora, ao lado de
outras, que vêm ganhando mais evidência. Temos como ―tradição‖,
―comunidades tradicionais da Ayahuasca‖, ―culturas ayahuasqueiras‖ se
tornam mais frequentes entre os representantes e porta-vozes destes
grupos, e se apresentam a estes como mais adequados para a construção
de um novo modo de reconhecimento público, relacionado não mais ao
debate sobre drogas e sim às reflexões sobre patrimônio cultural
(GOULART, 2016, p.134-135).
Os conceitos de comunidades tradicionais da Ayahuasca, culturas
ayahuasqueiras insere o uso religioso da Ayahuasca nas discussões de políticas
públicas culturais. De acordo com Santos (2010) o IPHAN recusou o pedido de
registro do uso ritual da Ayahuasca como patrimônio imaterial alegando que
comidas, bebidas crenças não são bens passiveis de registro. O IPHAN optou pela
realização do INRC para levantamento sobre os bens culturais associados ao uso
ritual do chá. Segundo Goulart (2016), antes da realização do INRC da Ayahuasca
vários grupos ayahuasqueiros realizaram o I Encontro da Diversidade Cultural
Ayahuasqueira, No Rio Branco em 2011. O objetivo do evento era debater o registro
do uso da Ayahuasca como patrimônio cultural. Participaram representantes dos três
troncos fundadores, do IPHAN e do Ministério da Cultura. Alex Polari enviou uma
segunda carta ao evento argumentando que o pedido de registro não incluía as
nações indígenas e nem outras religiões ayahuasqueiras igualmente relevantes e
113
tradicionais. Nesta segunda carta Polari enfatiza a necessidade de se criarem
instrumentos de proteção da cultura da Ayahuasca em toda sua diversidade. A carta
que foi lida no evento influenciou os representantes do IPHAN e por isso os
representantes dos grupos indígenas foram convidados a participar das reuniões do
IPHAN para a realização do INRC da Ayahuasca.
A participação de indígenas foi bem mais difícil de ser incorporada na
realização do Inventário do IPHAN. Fatores como o acesso a comunidades
indígenas, a sua localização, a variedade e complexidade cultural destes
grupos conduziram ao entendimento de que o levantamento sobre as
referencias culturais dos usos indígenas da Ayahuasca deveria ser
empreendido num inventário particular, com apoio de uma equipe
especializada na área etnológica. Foi essa sugestão que a equipe que
realizou o Inventário Nacional de Referencias Culturais do uso ritual da
Ayahuasca encaminhou ao IPHAN (GOULART, 2010, p.139).
O INRC da Ayahuasca foi dado início em 2008 fazendo um levantamento
preliminar sobre as referências culturais que envolvem o uso da Ayahuasca,
sobretudo na região da Amazônia Sul-Ocidental. Em 2014 o IPHAN enviou
recomendações para a equipe responsável pelo relatório do inventário. Os técnicos
do IPHAN compreenderam a necessidade de se contemplar os vários sujeitos e
entidades que fazem uso do chá, sobretudo as nações indígenas.
Assim, o IPHAN entende que as políticas públicas de patrimônio imaterial
cultural são frutos do diálogo permanente para o aperfeiçoamento dessas
estratégias e instrumentos de salvaguarda e sua adequação aos contextos
específicos de cada bem cultural (IPHAN, 2010). O IPHAN possui o Departamento
do Patrimônio Imaterial que cuida da preservação dos bens culturais de natureza
imaterial.
São os ofícios e saberes artesanais, as maneiras de pescar, caçar, plantar,
cultivar e colher, de utilizar plantas como alimentos e remédios, de construir
moradias, as danças e as músicas, os modos de vestir e falar, os rituais e
festas religiosas e populares, as relações sociais e familiares que revelam
os múltiplos aspectos da cultura cotidiana de uma comunidade (IPHAN,
2010, p.17).
114
O IPHAN compreende portanto que o uso religioso do chá Ayahuasca se
enquadraria no Livro de Registro dos Saberes em que o objeto de patrimonialização
virá a ser o modo de fazer o chá Ayahuasca com toda a sua ritualística própria. Com
o Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 foi instituído o Registro de Bens Culturais
de Natureza Imaterial, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e também o
Inventário Nacional de Referencias Culturais. Segundo o IPHAN (2010) o INRC é um
instrumento para conhecer e documentar bens culturais como também para
conhecer o valor atribuído pelos grupos sociais a esses bens. Através do Inventário
o IPHAN documenta e identifica problemas e soluções para a salvaguarda das
manifestações culturais. Após o Bem ser ―Inventariado‖ ele será registrado através
do instrumento de salvaguarda do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.
O bem será devidamente registrado em um dos seguintes livros:
Livro de Registro dos Saberes – para a inscrição de conhecimentos e
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro
das Celebrações – para rituais e festas que marcam a vivência coletiva do
trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida
social; Livro de Registro das Formas de Expressão – para o registro das
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e Livro de
Registro dos Lugares – destinado à inscrição de espaços como mercados,
feiras, praças e santuários, onde se concentram e reproduzem práticas
culturais coletivas. (IPHAN, 2010, p.22)
A inscrição no Livro de Registro, segundo o IPHAN (2010), serve para o
reconhecimento e valorização de determinada manifestação cultural na formação da
cultura brasileira. Esse ato estimula a sociedade a preservar o bem para criar
condições no apoio efetivo da salvaguarda por parte de instituições públicas e
privadas em nível federal, estadual e municipal, de organismos internacionais e dos
cidadãos. Através da criação do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI)
foi possível a criação dos livros de Registros para salvaguarda de bens culturais.
Já foram registrados como Patrimônio Cultural do Brasil: o Ofício das
Paneleiras de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santo; a Arte Gráfica
Kusiwa, dos Índios Wajãpi do Amapá; o Círio de Nazaré, em Belém; o
Samba de Roda do Recôncavo Baiano; o Modo de Fazer Viola-de-Cocho,
no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; o Ofício das Baianas de Acarajé; o
115
Jongo no Sudeste; a Cachoeira de Iauaretê – lugar sagrado dos povos
indígenas dos rios Uaupés e Papuri, no estado do Amazonas;a Feira de
Caruaru e o Frevo em Pernambuco; o Tambor de Crioula do Maranhão; as
Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: partido alto,samba de terreiro e
samba-enredo; o Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas Regiões do
Serro, na Serra da Canastra e Serra do Salitre, no estado de Minas Gerais,
o Ofício dos Mestres de Capoeira e também a Roda de Capoeira; além do
Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em
Divina Pastora, Sergipe. (IPHAN, 2010, p.23).
Através do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) criado
através do Decreto. 3.551/2000, foi possível apoiar projetos de identificação,
reconhecimento, salvaguarda e promoção do patrimônio cultural brasileiro, como o
dos bens culturais citados acima. Os objetivos do PNPI são os de implementar uma
política nacional de inventário, registro e salvaguarda de bens culturais de natureza
imaterial; contribuir para a preservação da diversidade cultural do país e para a
divulgação de informações sobre o patrimônio cultural brasileiro para toda a
sociedade. O Programa tem ainda os objetivos de captar recursos; promover a
constituição de uma rede de parceiros; incentivar e apoiar iniciativas e práticas de
preservação desenvolvidas pela sociedade. Através da salvaguarda de bens
culturais eles serão registrados, inventariados, documentados e estudados. Segundo
o IPHAN (2010), o objetivo desses estudos é a produção, circulação e valorização
dos bens culturais imateriais podendo contribuir para melhorar a vida das pessoas
que com eles se identificam.
Em qualquer ação de inventário, documentação e salvaguarda de bens
culturais é fundamental a participação das pessoas que identificam aquela
tradição cultural como sua. Somente com o envolvimento dessas pessoas e
com a parceria de instituições locais é possível pensar numa preservação
que seja realmente eficaz. É importante também ressaltar que não apenas o
Iphan tem desenvolvido trabalhos de apoio e fomento à preservação da
diversidade cultural do nosso país. Outras áreas do Ministério da Cultura
têm atuado de forma a estimular a continuidade e a valorização das
diferentes manifestações culturais de natureza imaterial existentes em
nosso país, e também de forma a divulgá-las em âmbito nacional (IPHAN,
2010, p.28-29).
116
De acordo com o IPHAN (2010), a política de salvaguarda do Patrimônio
Imaterial visa preservar o patrimônio cultural brasileiro, fortalecendo e dando
visibilidade às referencias culturais dos grupos sociais em sua heterogeneidade e
complexidade. Significa, também, promover a apropriação simbólica e o uso
sustentável dos recursos patrimoniais para a sua preservação e para o
desenvolvimento econômico, social e cultural do país.
5.3 O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA
De acordo com o Sr. Deyvesson Gusmão20, Coordenador Geral de
Identificação e Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN, em
entrevista concedida via e-mail em janeiro de 2017, ―um processo de
patrimonialização é um ato administrativo complexo e como tal deve obedecer
determinados ritos para que, ao final, seja considerado legitimo e aceitável pela
sociedade‖. Ele me explicou que o reconhecimento de um Patrimônio Imaterial é
feito através do Registro instituído pelo Decreto de n°3.551/2000 que estabelece o
passo a passo do processo. O processo é melhor detalhado na Resolução 01/2006
do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
De acordo com a Resolução 01/2006, disponibilizada no site do IPHAN,
há a explicação detalhada sobre a solicitação do processo de patrimonialização. A
instrução técnica do processo administrativo de Registro consiste da documentação
mencionada no art. 4:
(I. identificação do proponente (nome, endereço, telefone, e-mail etc.); 2 II.
justificativa do pedido; III. denominação e descrição sumária do bem
proposto para Registro, com indicação da participação e/ou atuação dos
grupos sociais envolvidos, de onde ocorre ou se situa, do período e da
forma em que ocorre; IV. informações históricas básicas sobre o bem; V.
documentação mínima disponível, adequada à natureza do bem, tais como
fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filme; VI. referências
documentais e bibliográficas disponíveis; VII. declaração formal de
20
O contato com o Sr. Deyvesson Gusmão ocorreu no Congresso Internacional da Ayahuasca
(Ayaconference) em 2016, na cidade do Rio Branco, Acre.
117
representante de comunidade produtora do bem ou de seus membros,
expressando o interesse e anuência com a instauração do processo de
Registro. (RESOLUÇÃO 01/2006 IPHAN, 2007, p.2)
Além disso, no Art.9 do documento explica-se que a sistematização de
conhecimento e documentação do bem cultural deve abranger:
I. descrição pormenorizada do bem que possibilite a apreensão de sua
complexidade e contemple a identificação de atores e significados
atribuídos ao bem; processos de produção, circulação e consumo; contexto
cultural específico e outras informações pertinentes; II. referências à
formação e continuidade histórica do bem, assim como às transformações
ocorridas ao longo do tempo; III. referências bibliográficas e documentais
pertinentes; 4 IV. produção de registros audiovisuais de caráter etnográfico
que contemplem os aspectos culturalmente relevantes do bem, a exemplo
dos mencionados nos itens I e II deste artigo; V. reunião de publicações,
registros audiovisuais existentes, materiais informativos em diferentes
mídias e outros produtos que complementem a instrução e ampliem o
conhecimento sobre o bem; VI. avaliação das condições em que o bem se
encontra, com descrição e análise de riscos potenciais e efetivos à sua
continuidade; VII. proposição de ações para a salvaguarda do bem.
Parágrafo único – A instrução técnica deverá ser realizada em até 18
(dezoito) meses a partir da avaliação da pertinência do pedido pela Câmara
do Patrimônio Imaterial, podendo ser prorrogada por prazo determinado,
mediante justificativa (RESOLUÇÃO 01/2006 IPHAN, 2007, p. 3-4).
Ao final da fase de pesquisa e documentação, o material produzido será
entregue na forma de dossiê como parte integrante do processo de Registro que
será examinado pelo IPHAN emitindo-se um Parecer Técnico. Após a conclusão do
Parecer, com a decisão do Conselho Consultivo sendo favorável, o bem receberá o
título de ―Patrimônio Cultural do Brasil‖. A decisão sendo contrária, o IPHAN
arquivará o processo e comunicará o ato formalmente ao proponente (RESOLUÇÃO
01/2006 IPHAN, 2007).
O Sr. Deyvesson Gusmão me explicou que ―no caso relacionado à
ayahuasca, a solicitação de Registro, feita em 2008, já passou pelo crivo da Câmara
do Patrimônio Imaterial do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que apontou
a necessidade de mais informações para que, após obtidas, fosse feita a análise de
pertinência da solicitação‖. A Câmara também indicou a necessidade de
118
identificação de um bem e ainda que o uso indígena da Ayahuasca deveria ser
contemplado nos estudos. Decidiu-se por realizar um Inventário das referências
culturais relacionadas ao uso ritual da Ayahuasca. Para tanto, optou-se por ter como
recorte para pesquisa o estado do Acre e utilizar o Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC). O que se espera é que o Inventário aponte bens
passíveis de Registro, uma vez que o ―uso ritual da Ayahuasca‖ não se enquadraria
nas categorias da política de Patrimônio Imaterial, estabelecidas no Decreto
3.551/2000.
Gusmão afirma que o INRC é dividido em três etapas: Levantamento
Preliminar; Identificação; e Documentação. Até o momento, no que tange ao INRC
relacionado aos usos rituais da Ayahuasca, foi realizado a primeira etapa, o
Levantamento Preliminar. A continuidade do Inventário, por ora, está condicionada à
realização de um processo de esclarecimento acerca da política de patrimônio
imaterial junto aos Povos Indígenas do Acre. Após isso, o Inventário deverá ser
retomado.
Conforme me foi esclarecido em entrevista, Gusmão afirma que o primeiro
desafio, e talvez o mais evidente seja a diversidade de usos e de grupos que fazem
uso ritual do chá. São muitas linhas religiosas (diversificados usos religiosos) e
muitos povos indígenas e, com tudo isso, consequentemente tem-se grupos de
detentores da Ayahuasca bastante diversificados. Isso implica em grande
quantidade de bens culturais, diferentes crenças e estruturas rituais. Outra questão é
a assimetria de entendimentos acerca da política de patrimônio imaterial entre os
povos indígenas e grupos não indígenas. Os grupos não indígenas, alguns deles
solicitantes do Registro tais como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal,
reconhecem o Registro de patrimônio cultural brasileiro como instrumento de
legitimação. Quanto aos Povos Indígenas, há ainda a necessidade de se fazer um
trabalho de esclarecimento junto a esses Povos acerca da referida política e das
implicações do Registro. Disso decorre outro desafio: o de fazer esse trabalho junto
aos Povos Indígenas, considerando-se o elevado valor financeiro para uma ação
dessa magnitude e ainda a necessidade de que o processo de esclarecimento se dê
por metodologia que leve em conta os sistemas de pensamento próprios desses
Povos.
119
Gusmão prossegue afirmando que a definição deve ser consensual para
o Registro entre todos os envolvidos. A referência cultural relacionada ao uso ritual
da Ayahuasca deve contemplar a diversidade de usos e identidades, ligadas a todo
o universo dos grupos ayahuasqueiros. Segundo Gusmão, talvez esse seja o maior
desafio desse processo. É importante dizer que a bebida não se tornará patrimônio
cultural. A política de patrimônio imaterial, da maneira como estabelecida, não
permite o reconhecimento de bebidas, comidas, receitas ou congêneres como
Patrimônio Cultural do Brasil.
Segundo o Sr. Deyvesson Gusmão o que o IPHAN compreende que o
que deve se tornar patrimônio cultural é o ―preparo do chá‖ que entraria na categoria
―modos de fazer‖ do Livro de Registro de patrimônios culturais. Por isso, nunca
haverá o ―Registro da Ayahuasca‖, o que se pode, ao cabo do processo, é o
Registro de alguma forma de expressão, saber, lugar ou celebração (cf. Decreto
3551/2000) relacionados ao uso ritual da Ayahuasca. Não é sem valor dizer também
que o Registro como Patrimônio Cultural do Brasil é consequente, gera obrigações
para o Estado Brasileiro.
Após o processo de reconhecimento, o IPHAN se compromete como
ampla divulgação e promoção do bem, que se dá por meio da construção de um
conjunto de medidas e ações de apoio e fomento ao bem Registrado. A experiência
desses quase dezessete anos de aplicação da política de patrimônio cultural tem
demonstrado que os bens registrados passam a ser amplamente conhecidos no
Brasil e suas comunidades de detentores reconhecidas. Após o Registro, processos
de transmissão de conhecimento tem se amplificado uma vez que o reconhecimento
desperta o interesse dos mais jovens pelos saberes dos mais velhos.
120
6 CONCLUSÃO
Nessa dissertação tratei no capítulo 1 dos aspectos químicos,
farmacológicos, biológicos, cosmológicos e legais da bebida Ayahuasca. Busquei
avaliar como a bebida age no organismo humano, seus princípios químicos, além
dos benefícios e impactos para a mente humana. Tratei dos aspectos etnobotânicos
da bebida, falando a respeito das plantas que constituem o chá e os componentes
presentes nessa fórmula alquímica. Apresentei a cosmologia dos três troncos
fundadores (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal), do Caminho do Coração
(comunidade neo-ayahuasqueira) e da cosmologia da tribo indígena Kaxinawá.
Apresentei nesse capítulo os aspectos legais e jurídicos da bebida Ayahuasca no
Brasil servindo de base para abertura, nos capítulos posteriores, sobre a avaliação
das políticas públicas de patrimônio cultural e o processo de patrimonialização da
Ayahuasca.
No capítulo 2 abordei o conceito de cultura e o seus múltiplos sentidos
trazendo um breve referencial histórico desse conceito e como ele foi cunhado ao
longo do tempo. Trouxe para a reflexão os conceitos de patrimônio, patrimônio
histórico e cultural mostrando suas diferenças e como a política de patrimônio
cultural é empreendido no Brasil. Tratei também como o patrimônio cultural contribui
para a construção de identidades e para a legitimação social. Os impactos da
globalização na cultura e no construto da política pública de patrimônio imaterial.
No capítulo 3 foquei no processo de patrimonialização da Ayahuasca no
Brasil, apresentando um quadro mais detalhado sobre normas, pareceres, situação
jurídica e o processo de patrimonialização da Ayahuasca. Os objetivos dessa
pesquisa foram: investigar os aspectos químicos, farmacológicos, biológicos,
cosmológicos, sociais e legais da Ayahuasca no Brasil; Conduzir uma análise da
política pública de patrimônio cultural no Brasil; Analisar o processo de
patrimonialização da Ayahuasca buscando compreender seus impasses e como
esse processo levanta questionamentos a respeito da politica publica de patrimônio
cultural no Brasil.
Segundo Gusmão após a realização do Levantamento Preliminar do
INRC, impõe-se como condicionante para a continuação do Inventário que se realize
o esclarecimento junto aos Povos Indígenas. Não há, por ora, como ser assertivo
121
acerca de uma ―visão indígena‖ sobre a solicitação de Registro. Isso tanto pela
diversidade de Povos, quanto pela falta de um diálogo mais detido e com mediação
antropológica adequada. Talvez isso seja possível após o citado processo de
esclarecimento.
A Ayahuasca é um objeto de disputas, estendendo-se entre vários
segmentos culturais, religiosos, articulações políticas fomentando debates entre
representantes ayahuasqueiros e intelectuais pesquisadores. É possível que com a
finalização do INRC da Ayahuasca e do esclarecimento sobre a política pública de
patrimônio cultural e do possível Registro junto aos indígenas o modo de fazer a
bebida seja considerado Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro. Creio que esse
acontecimento levará alguns anos para ocorrer, mas que certamente é algo que já
está em processo. Sem dúvida a Ayahuasca já é um assunto que está em pauta nas
políticas públicas culturais e a transição do conceito de ―drogas‖ para o de
―patrimônio cultural‖ já é algo consolidado pela própria jurisdição brasileira e pelos
intelectuais pesquisadores sobre o tema.
122
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130
ANEXOS
131
ANEXO A - Carta de solicitação para o processo de reconhecimento do uso da
ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio imaterial da cultura brasileira.
Excelentíssimo Senhor
Gilberto Passos Gil Moreira
Ministro da Cultura da República Federativa do Brasil
Ayahuasca é um termo de origem Quéchua, que significa ―vinho das almas‖, e é
utilizado para designar o chá feito pela cocção de duas plantas originárias da floresta
amazônica: o cipó Jagube ou mariri (Banisteriopsis Caapi) e as folhas da Rainha ou
Chacrona (Psychotria Viridis). Este chá serviu como base para o estabelecimento de
diferentes tradições espirituais por comunidades indígenas em uma vasta região que
compreende diversos países amazônicos (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador,
etc.), tradições mágico/culturais que se consolidaram na grande floresta amazônica
durante os últimos dois mil anos, pelo menos, e exerceram influências importantes,
inclusive sobre sociedades complexas da região andina, como a civilização Inca, por
exemplo.
Mais recentemente, nos primeiros anos do século XX, na Amazônia Ocidental
(atuais estados do Acre e de Rondônia, na fronteira com o Peru e a Bolívia), a
formação da sociedade extrativista da borracha - que a exemplo dos povos
indígenas amazônicos – tinha como marca fundamental uma enorme multiplicidade
étnica e cultural, estabeleceu as condições necessárias para que a milenar tradição
indígena da Ayahuasca fosse assimilada por brasileiros e desse origem a uma nova
configuração religiosa, cultural e social. Assim, Raimundo Irineu Serra e Daniel
Pereira Mattos (ambos negros maranhenses, descendentes de escravos) fundaram
entre 1910 e 1945 uma doutrina religiosa que rebatizou a Ayahuasca com o nome
de ―Daime‖. Algum tempo depois, na década de 60, o baiano José Gabriel da Costa
formulou uma outra doutrina que passou a chamar a Ayahuasca de ―Vegetal‖.
Porém, mais importante do que apenas designar novos nomes, a atuação destes
três mestres fundadores - Irineu, Daniel e Gabriel – estabeleceu as bases
doutrinárias de uma nova tradição religiosa, sincreticamente brasileira e tipicamente
amazônica, que possibilitou a formação de comunidades organizadas em torno do
132
uso ritual da Ayahuasca e que passaram a ter importante papel (político, social e
cultural) na própria formação da sociedade brasileira na Amazônia Ocidental.
O conhecimento espiritual destas doutrinas tem sido transmitido de geração a
geração e mantido por diversas tradições culturais através de um sincretismo
religioso caracteristicamente amazônico, o que implica numa relação essencialmente
harmônica com a natureza e estabelece um sentimento de identidade e
continuidade, garantindo assim o respeito à diversidade étnico-cultural e à
criatividade humana.
Com isso as Doutrinas do Daime/Vegetal, como estabelecidas por seus mestres
fundadores, tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo
assim receber o reconhecimento como patrimônio cultural de nosso país.
Com base nas informações acima relacionadas podemos afirmar que a utilização
ritual da Ayahuasca em doutrinas religiosas preenche os quesitos que a
caracterizam como patrimônio imaterial, considerado como ―práticas,
representações, expressões, conhecimentos e técnicas que comunidades ou grupos
reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural.‖
Em atenção aos ditames da Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, expedida pelo
Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os
representantes responsáveis pelas Fundações Culturais do Estado do Acre e do
Município de Rio Branco, a partir do diálogo com os centros que integram os três
troncos fundadores das contemporâneas doutrinas Ayahuasqueiras, solicitam ao
Senhor Ministro da Cultura que, através do Iphan, instaure o processo de
reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como Patrimônio
Imaterial da Cultura Brasileira.
Rio Branco, 30 de abril de 2008.
133
Daniel (Zen) Santana de Queiroz
Presidente da Fundação Elias Mansour
Estado do Acre
Marcos Vinicius Neves
Diretor-presidente da Fundação Garibaldi Brasil
Município de Rio Branco
Peregrina Gomes Serra
Centro de Iluminação Cristã Luz Universal-CICLU – Alto Santo
Francisco Hipólito de Araújo Neto
Centro Espírita e Culto de Oração ―Casa de Jesus – Fonte de Luz
José Roberto da Silva Barbosa
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - UDV
Jair Facundes de Oliveira
Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - CICLU
134
ANEXO B - Quadro cronológico dos principais acontecimentos sobre a ayahuasca
no brasil
1985 – O cipó Jagube (Banisteropis caapi) é colocado na lista de plantas proibidas
pela Portaria n.02/1985 – Divisão de Medicamentos (DIMED);
1986 – Suspensão do cipó Jagube da lista de plantas proibidas através da
Resolução n. 04/1985 – Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN);
1986 – Instaurado um Grupo de Estudos (GT) para acompanhamento e
levantamento de informações sobre Ayahuasca através da Resolução n.06/1986 –
Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN)
1987 – É feito um levantamento detalhado sobre o uso do chá Ayahuasca em
contexto religioso através do Relatório Final do Grupo de Trabalho 1987 – Conselho
Federal de Entorpecentes (CONFEN);
1992 – Parecer do Dr. Domingos Bernardo de Sá sobre o uso religioso do chá
Ayahuasca – 02/06/1992 – Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN);
2002 – O CONAD reexamina a questão do uso da Ayahuasca em contexto religioso:
Resolução n.26 – 31/12/2002 – Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
(CONAD);
2004 – Parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico – 17/08/2004 –
Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD);
2004 – Elaboração do documento sobre a deontologia do uso da Ayahuasca
Resolução n.05 – 04/11/2004 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas
(CONAD);
2005 – Foi criada a primeira Área de Proteção Ambiental (APA) do Acre na Vila
Irineu Serra, a (APARIS) Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra;
2006 – Aprovados os princípios deontológicos da Ayahuasca pelo Relatório Final do
Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca – 23/11/2006 – Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas (CONAD);
2006 – Tombamento das instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
de Alto Santo (Santo Daime) foram tombadas como Patrimonio histórico e cultural do
Acre, através do Decreto do governador Jorge Ney Viana Macedos Neves e do
Prefeito do Rio Branco Raimundo Angelim Vasconcelos;
2008 – Pedido de Tombamento da Ayahuasca pelos três troncos fundadores (Santo
Daime, Barquinha e União do Vegetal);
135
2010 – Elaboração de normas e procedimentos compatíveis ao uso religioso da
Ayahuasca através Resolução n.01 – 25-01-2010 – Conselho Nacional de Política
sobre Drogas (CONAD);
2011 – Levantamento preliminar através do Inventário Nacional de Referências
Culturais (INRC) sobre os bens e as referências culturais associados ao uso do chá
Ayahuasca no Acre;
2011 – I Encontro da Diversidade Cultural Ayahuasqueira realizado no Rio Branco.
Acre;
2016 – II AyaConference realizada no Rio Branco, Acre.
2017 – Aprovado na Câmara Legislativa do Estado do Pará um projeto de lei que
reconhece o uso ritual do chá Ayahuasca como Patrimônio cultural do Estado do
Pará;