Post on 06-Jun-2015
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Zélia GattaiZélia Gattai
A Casa do A Casa do
Rio VermelhoRio Vermelho
6ª. Edição6ª. Edição
2000
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Obras da autora
Anarquistas graças a Deus
Chão de meninos
Crônica de uma namorada
Um chapéu para viagem
Jardim de inverno
Pipistrelo das mil cores
O segredo da rua 18
Senhora dona do baile
Città di Roma
http://groups.google.com/group/digitalsource
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
_____________________________________________________________________
Gattai, Zélia, 1916-
G235c A casa do Rio Vermelho /Zélia Gattai. – 6ª. ed.
6ª. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2000.
ISBN 85-01-05539-5
I. Gattai, Zélia, 1916- - Biografia. 2. Amado,
Jorge, 1912- .-Biografia. 3. Escritores brasileiros
- Casas e residências. I. Título.
CDD - 928.699
99-0556 CDU-92(GATTAI,Z.)
_____________________________________________________________________
Copyright © 1999 by Zélia Gattai Amado
Ilustração de capa: Floriano Teixeira
Capa: Pedro Costa
Direitos exclusivos desta edição reservados pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua
Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ-20921-380-Tel.: 585-2000
Impresso no Brasil ISBN 85-01-05539-5
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Abas do LivroAbas do Livro
Após trinta anos de vida em comum, de amigação — gosto
demais da palavra amigação, usada para nomear o que o código de
família denomina concubinato, tenho aversão à palavra concubinato,
má e feia, ; filha do preconceito e da discriminação —, Zélia requer,
no uso da lei, o direito de usar meu sobrenome, assinar-se Amado. Na
Bahia perde a causa, o juiz encagaçou-se, ignomínia; em São Paulo
ela a ganha, junta Amado a seu nome de solteira.
Não tarda, Nelson Carneiro vence a guerra do divórcio, eu e
Zélia nos casamos. Três anos depois, dona Zélia sai de sério, escreve
e publica um livro, Anarquistas, graças a Deus, em cujas páginas
narra sua infância de filha de imigrantes, italianos anarquistas e
católicos, no quadro de uma São Paulo afarista onde nasciam o
capitalismo com os Matarazzos e os Crespi e o movimento operário
na sede das Classes Laboriosas e de outros grêmios culturais e
reivindicativos. O livro fez sucesso, ainda o faz, repetem-se as
edições, é traduzido, virou série de televisão na transposição
(magnífica) de Walter Avancini. Dona Zélia tomou gosto, anda pelo
quinto volume de memórias sem falar nas histórias para crianças.
Não querendo usar muletas na caminhada literária, assinou seus
livros com o nome de solteira, voltou a ser Zélia Gattai, renome
nacional, por pouco tempo lhe servi de arrimo.
Para mim, nem Amado nem Gattai, apenas Zélia, quando não
Zezinha.
JORGE AMADO
em Navegação de Cabotagem, 1992
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Para Jorge, que me
ensinou a amar a Bahia
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O CARA DE SAPO
De repente dou-me conta de que a paixão de Jorge por sapos é
antiga, vem de longe. Somente agora chego a essa conclusão ao
recordar a compra do automóvel que nos levaria do Rio de Janeiro à
Bahia.
O anúncio do jornal dizia: Particular vende carro confortável,
quase novo, preço de ocasião.
Não custava dar uma espiada. Próximo à nossa casa, em
Copacabana mesmo, na garagem de um edifício da rua Tonelero,
fomos encontrar o tal carro confortável, quase novo. Tratava-se de
um Citroen ID19, preto, enorme.
— É um cara de sapo! — entusiasmou-se Jorge. — Repare, os
faróis parecem dois olhos arregalados.
Não havia dúvida, o carro tinha a aparência de um batráquio
negro, enorme, escarrapachado. Reparando bem, vi que ele não era
tão quase novo quanto fora anunciado. Estava — não havia dúvida —
lustroso, preparado para entusiasmar o freguês. O vendedor, jovem
simpático, bem-falante, ao reconhecer o possível comprador,
entusiasmou-se:
— Se acomode, seu Jorge — disse indicando o assento diante
do volante —, veja como ele é macio; ligue o motor, acelere, e... não
se assuste, ele vai subir. É carro de suspensão a óleo! — explicou de
boca cheia, entusiasmo de quem faz uma grande revelação.
Perdia seu tempo, pois de suspensão e motor de automóvel o
comprador não entendia absolutamente nada. Exatamente como eu
previra, Jorge não se impressionou com a novidade nem mesmo fingiu
admirar-se, fez apenas um sinal negativo com a mão:
— Ligar o carro? Eu? Deus me livre! Nunca dirigi automóvel
em minha vida. Quem guia é ela. — Assim dizendo, apontou-me a
porta já aberta: — Vamos, Zélia, suba.
Eu também não sabia o que significava suspensão a óleo, qual
a sua função, a vantagem de um automóvel com tal incrementação.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Passei minha infância e adolescência entre operários na oficina
mecânica de meu pai, ouvindo conversas sobre consertos de motores
de automóveis; decorei até nomes de peças: cárter, pistão, anéis de
pistão, platinado, caixa de marcha, embreagem, vela, vela suja, vela
limpa, carburador, virabrequim... —meu pai dizia "girabrequim", creio
que em italiano. Esses nomes me eram familiares, porém nunca
ouvira falar em suspensão a óleo, certamente coisa moderna.
Perguntei:
— O que significa suspensão a óleo? Solícito, o rapaz tratou de
explicar:
— A senhora não sabe? Pois olhe. Está vendo o cárter?
— O cárter?
O jovem resolveu ficar de cócoras e apontou com o dedo.
— Isso mesmo. Ali está o cárter. Aquela caixa de ferro está
cheia do LHM — o rapaz falava com um certo orgulho do tal LHM —,
comporta uns vinte litros desse óleo finíssimo que alimenta a
suspensão. Isso é coisa nova. Só carros desta marca têm essa
vantagem. Assim mesmo, apenas os do último modelo.
Eu nunca ouvira falar no famoso óleo LHM. Mas ele o
mencionara com tamanho entusiasmo que eu nem me atrevi a dar
parte de ignorante, confessar o meu desconhecimento. Restringi-me
a perguntar:
— Vinte litros? Tudo isso? O senhor sabe, pretendemos ir à
Bahia de carro, mil e tantos quilômetros de estrada. E se o tal LHM
acabar no meio do caminho? Onde é que vamos consegui-lo?
Jorge estava doido pra ver o carro em movimento e eu ali
perguntando sem parar. Paciência esgotada, ele respondeu pelo
rapaz:
— Ora, minha filha, qual é o problema? Tanto posto de
gasolina pela estrada... Em qualquer lugar a gente encontra óleo.
Suba, vamos, não perca mais tempo. Fica aí perguntando bobagens...
— foi dizendo e se acomodando. Resmungara em voz baixa, mas alto
o suficiente para que eu o ouvisse. Não gostei.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— A gente tem que saber tudo, ora! — retruquei enquanto
subia.
Virei a chave, o motor respondeu, acelerei, a carroceria
começou a elevar-se, foi subindo, subindo, ficamos lá no alto.
Jorge e eu estávamos tão ou mais entusiasmados que o jovem
vendedor.
— Estão vendo que beleza? — dizia ele. — Sabem qual é a
vantagem desse sistema? O carro nessa altura deixa espaço para que
o motor não bata em pedras ao passar por estradas esburacadas,
podendo até enfrentar lamaçais sem correr o risco de ficar atolado.
Jorge estava encantado, e eu vi logo que nada neste mundo o
faria desistir do negócio mas, mesmo assim, voltei à carga;
— E o LHM pode ser encontrado em qualquer posto de
gasolina?
— Bem, em qualquer posto, não. — O rapaz até que era
honesto. — Esse óleo, pela sua finura, é comparável ao óleo de rícino,
e o óleo de rícino o substituí perfeitamente. A senhora pode comprá-
lo, em caso de emergência, em qualquer farmácia.
— O senhor está falando sério? Óleo de rícino, o purgante?
— Esse mesmo. É muito fino e bom, pode ser usado sem
susto.
Olhei para Jorge que ria divertido. É, não havia jeito. Ele estava
apaixonado pelo Sapão, não adiantava fazer mais perguntas, saímos
de lá de negócio fechado.
DECISÃO TOMADA
Decidimos nos mudar para a Bahia quando João Jorge
completou treze anos. Nosso filho tornava-se um homenzinho, Paloma
também crescia e o ambiente no Rio de Janeiro, sobretudo em
Copacabana, nos assustava. Queríamos que nossos filhos vivessem
em cidade mais tranqüila, livres das tentações das drogas que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
andavam na berlinda, da maconha ameaçando os escolares,
oferecida à saída das aulas.
Salvador era, na época, uma cidade pacata, não chegava a
quinhentos mil habitantes. Lá os meninos poderiam andar soltos, nós
poderíamos dormir tranqüilos.
Tirar as crianças do Rio de Janeiro era assunto decidido,
assunto prioritário. Existia, no entanto, ainda um motivo para essa
mudança radical de vida: havia muito que Jorge sonhava voltar a
viver em Salvador, comprar uma casa na Bahia.
Atendendo ao desejo do pai, aos dezoito anos ele partira para
o Rio de Janeiro com o propósito de só voltar com o canudo de
bacharel em Direito embaixo do braço. O coronel João Amado
desejava, como era comum entre os fazendeiros da época, ter um
filho advogado, um filho doutor, sobretudo o primogênito. Jorge não
iria desapontar o pai. Atendeu, pois, ao seu pedido e em 1930 viajou
para o Rio: não apenas faria a vontade do velho como iria lutar para
realizar um sonho que alimentava desde menino: escrever um
romance. Sonhava com isso desde os tempos de colégio, quando,
certa vez, na sala de aula, um professor de português, padre Cabral,
ao ler o trabalho de um aluno, na classe, previra a vocação do
discípulo: ... o autor desta redação será um dia um grande escritor,
profetizara. O autor da composição que impressionara de tal forma o
professor, outro não era senão o menino Jorge Amado, o mais vivo e
traquinas da classe.
Aos quatorze anos, Jorge Amado já colaborava em revistas e
jornais e sonhava: quem sabe um dia não chegarei a escrever um
romance? A oportunidade chegara, talvez numa grande capital ele
teria novos conhecimentos, mais chances de realizar seu desejo.
A VOLTA
Muitos anos haviam se passado desde os tempos de estudante
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
do rapazinho Jorge Amado. Ele cumprira sua tarefa, fizera a vontade
do pai: bacharel formado, um retrato de toga e capelo, lá estava,
pendurado na parede da sala do Coronel. Escrevera não apenas um
livro mas muitos livros; fizera viagens de não acabar. Deputado
comunista, fora perseguido, sofrerá prisões e anos de exílio. Chegara,
pois, a hora de voltar definitivamente para a Bahia, sua terra, sua
fonte de inspiração. Nesses anos todos de ausência, no entanto, ele
não deixou de voltar, sempre que pôde, a Salvador e também a
Ilhéus, cidade de sua infância.
DINHEIRO DO IMPERIALISMO AMERICANO
Jorge vendera à Metro Goldwin Mayer os direitos autorais de
seu romance Gabriela, cravo e canela. Não recebera o dinheirão que
se poderia imaginar, mas lhe pagaram o suficiente para adquirir uma
casa na Bahia. Comprarei essa casa com o dinheiro do imperialismo
americano, dizia rindo.
AMIGOS PERNAMBUCANOS
Morávamos, havia anos, num apartamento dúplex, adquirido
pelos pais de Jorge. Costumávamos passar as férias dos meninos em
Recife, hóspedes de amigos muito queridos. Conhecêramos Laís e Rui
Antunes dos tempos em que ambos terminavam o curso de Direito,
Rui, líder do movimento estudantil de esquerda. Grande jurista, ele
tornara-se professor da Faculdade de Direito de Recife; Laís não
advogava, contentava-se em ser a mãe zelosa de vários filhos,
crianças que, nas férias, enturmavam com João e Paloma. A casa dos
Antunes, na cidade, era enorme, rodeada de pomar com mangueiras
de toda espécie. Possuíam também uma granja nas aforas da cidade
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
que, além do coqueiral, era plantada de pitangueiras, jambo do Pará,
goiabeiras, pitomba, graviola, frutas para todos os gostos.
Verdadeira alforria para João Jorge e Paloma, eram as férias e
a viagem de avião para Pernambuco, a cada fim de ano, que os
libertavam da prisão de um apartamento em Copacabana e das
recomendações a azucrinarem-lhes os ouvidos a cada vez que saíam
à rua.
Além de Rui e Laís, tínhamos em Recife um outro casal de
amigos íntimos: Dóris e Paulo Loureiro, donos de um laboratório de
análises. Juntando as duas filhas do casal, Cláudia e Paula, e os de Rui
e Laís: Julita, Henrique, Aninha, Iracema e Ricardo aos nossos
meninos, a festa era uma só: brincavam, brigavam, pintavam o bode.
MARIA FARINHA
A casa dos Loureiro na cidade não era grande: em
compensação, a que possuíam em Maria Farinha era enorme, rústica,
na praia quase deserta, mar de peixes e lagostas garantindo soberbas
pescarias e deliciosas peixadas. Não precisávamos ir longe para
trazer peixe. Da praia, ali mesmo, defronte à casa, era só atirar o
anzol e recolher em seguida o peixe se debatendo. Fiz até a proeza,
certa manhã, de pescar, com anzol de três ganchos, três peixes de
uma só vez, deixando uns estrangeiros que passavam por acaso de
queixo caído.
CONVERSAS DE SOTAQUE
Jorge não aderia às pescarias, nem às grandes caminhadas.
Seu divertimento era outro: preferia descansar, deitado na rede do
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
terraço, ouvindo histórias dos empregados da casa e de pescadores
que apareciam por lá na hora da preguiça. Lembro-me bem de três
pescadores assíduos no bate-papo, os três de nome Amaro: um deles,
o Amaro Amarelo — palidez igual nunca se viu —, aparecia nas
estadas da família Loureiro em Maria Farinha. Era um operado, título
que justificava a preguiça para o resto da vida e, além do mais, um
aposentado do istitute — como se referia ao Instituto de
Aposentadorias. Funcionava de quebra galho da casa, sem nenhuma
função definida, à disposição de quem dele precisasse para qualquer
serviço leve. Os outros dois Amaro não faziam nada, nem serviços
leves, nem pesados, pois também, como Amaro Amarelo, eram
aposentados do istitute e operados. Tranqüilos, os pais da indolência,
cansavam-se só de ver os outros trabalhar. Gostavam de um papo
macio com o baiano, amigo de doutor Paulo, que ria com as histórias
que eles lhe contavam. Conversa sem compromisso que parecia não
levar a nada inspirava o romancista.
Aos sábados e domingos chegavam os amigos da cidade:
Marcos, Benaia, Carlos Pena Filho, Paulo Cavalcanti, Pelópidas Silveira
e outros. Os carros chegavam lotados, cada qual com sua família,
esposa e filhos. Inda bem que a casa era espaçosa, vários dormitórios
e redes nos terraços acomodavam todo mundo. Os homens faziam
ruidosas rodadas de pôquer, as mulheres jogavam canastra, as
crianças se espalhavam. Fins de semanas animadíssimos com jogos e
conversas de varar a noite. Das histórias ouvidas nesses encontros
com os amigos pernambucanos e dos momentos de lazer e preguiça
na hora da modorra, foi que nasceu a inspiração para Quincas Berro
Dágua.
O PEIXE DE MEUS SONHOS
Paulo inventava, de vez em quando, sair num barco a motor,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
em busca de peixes grandes. Levávamos os meninos maiores e
Amaro Amarelo, o Lobo dos Mares, como o nomeara o gozador Paulo
Loureiro. Compenetrado, Amaro, achando que orientava sem orientar
coisa alguma, braço direito à frente, estirado, movimentando-o de um
lado para outro, não apontando direção nenhuma, fazendo de conta
que indicava o rumo que evitaria as pedras embaixo da água. Não
fosse Paulo conhecedor do pedaço, teríamos batido, naufragado com
o sábio conhecimento de Amaro. A presença dele servia apenas para
nos divertir e colaborar na hora de baixar e levantar a âncora. Um dia
ele até foi útil: movido pelo entusiasmo, esqueceu que era um
operado e ajudou-nos a tirar da água e colocar no barco uma arraia
enorme, o maior peixe que pesquei em toda a minha vida. Não vou
mentir, todos colaboraram: ao ver aquele peixe imenso se debatendo,
lutando para livrar-se do anzol, Paulo tomou a frente e mesmo João
Jorge me ajudou até conseguirmos tirar o bicho da água.
Antes disso, Amaro já participara, dando palpites, de outro
episódio emocionante numa de nossas saídas de barco. Estava eu,
muito na minha, tranqüila, esperando pescar o peixe de minha vida
quando senti que mordiam minha isca. É ele, disse em voz baixa para
não assustar o peixe e fui puxando a linha, estirada, pesada... o
danado resistindo. Paulo largou sua vara, tentava me ajudar, e eu,
orgulhosa, não deixando, querendo ter a glória de pescar sozinha o
peixe que ali estava ao alcance de minhas mãos... depois de um bom
tempo nessa peleja, eu insistindo, suando, já quase sem forças,
aconteceu o que eu não queria que acontecesse. Não gosto nem de
lembrar, muito menos de contar, mas a verdade é que, numa das
arrancadas, a linha se partiu e a vara ficou leve em minhas mãos, um
pedaço de fio balançando no espaço. Paulo ficou possesso. Ouvi todos
os desaforos que um pescador enfurecido pode atirar sobre um
parceiro incompetente que deixa o peixe escapar por puro orgulho e
vaidade. Se eu tivesse permitido a ajuda dele, nada disso teria
acontecido. Amaro, com sua sabedoria infinita, chegou a afirmar que
a garoupa fujona — ele vira até a marca do peixe — tinha pra mais de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
um metro.
Ainda desconsolados, demos por terminada a pescaria, nem
tinha graça continuar. Ao puxarmos a corda para recolher a âncora foi
aquela surpresa: minha garoupa pra mais de metro, reluzente, outra
não era senão a âncora que eu tentara levantar, gastando todas as
forças. O anzol estava ali, de testemunha, preso na corda que
sustinha o pesado ferro.
A ARRAIA NOVAMENTE
Não contei, nem posso deixar de contar o final da pesca da
arraia, coisa que nunca pude esquecer, nem eu nem ninguém que se
encontrava na casa de Maria Farinha naquela manhã, principalmente
Jorge que até hoje fala no assunto. Ao saber que eu pescara uma
arraia enorme, Jorge deixou a preguiça na rede, foi até a praia para
esperar a nossa chegada, aplaudir a gloriosa pescadora.
A arraia podia pesar uns dez quilos e Paulo resolveu carregá-la
sozinho. De um só golpe, atirou-a nas costas e, sustendo-a pelo rabo,
foi andando, já que Amaro fizera corpo mole. Quando lembrava que
fora operado de apendicite em criança, Amaro se recolhia. Não havia
força humana que o fizesse levantar pesos acima de cinco quilos e, a
seu ver, aquela arraia devia pesar pra mais de vinte. E com essa, a
duras penas, Paulo chegou até nossa casa trazendo o fardo, exausto,
porém satisfeito.
Avisados do acontecido, todo mundo foi nos esperar no portão.
Reclamando do peso que carregara e da comichão que sentira nas
costas o tempo todo, ainda de um só golpe, Paulo atirou a arraia de
costas sobre a areia: do ventre branco do peixe saía uma espécie de
pênis, enorme, vermelho, ainda com vida, latejando. Comichão, seu
Paulo?, perguntou-lhe Jorge, a perder o fôlego de tanto rir. A história
da arraia macho foi motivo de galhofa para o resto das férias; Jorge
espalhou entre os amigos que Paulo era um fenômeno, o único
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
homem no mundo a ter excitado sexualmente um peixe.
PLANOS
Quando comprássemos a casa na Bahia nossas férias iam ser
diferentes: já não precisaríamos viajar para ter um grande pomar,
jardim com flores e, quem sabe, à nossa disposição, lá estaria o
marzão da Bahia, repleto de peixes, peixes para nossos anzóis, peixes
fresquinhos para nossas panelas. Iríamos ter a alegria de hospedar os
Antunes e os Loureiro em nossa casa, retribuiríamos o carinho.
LALU NÃO ACHA GRAÇA
Ao saberem de nossa intenção de mudança, os velhos não
gostaram, o coronel João Amado calou-se, Lalu se afligiu. Não
querendo discutir com o filho, ela tentava me tomar de aliada:
— Menina, vocês estão ficando malucos? Deixar uma cidade
linda como o Rio de Janeiro, com praias e jardins, para irem se meter
naqueles matos? — Passava da voz de comando para a mansidão: —
Fia, vê se tu dá uns conselhos pra Jorge. Diga pra ele que o lugar de
vocês é na cidade, não é no mato. Se tu não quer ir ele não vai. E só
dizer que tu não quer ir e pronto.
Em realidade, a mudança do Rio para a Bahia representava
para mim uma certa cota de sacrifício, sacrifício esse que valia a pena
em se tratando da segurança de meus filhos, da realização de um
sonho de Jorge. Já estivera várias vezes na Bahia e me sentira uma
espécie de corpo estranho, uma intrusa. Jorge, rodeado de amigos a
recordar fatos passados, namoros e amores antigos, todo mundo se
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
divertindo, rindo e eu ouvindo calada.
Tão calada ficava que aconteceu, certa manhã de domingo,
numa de nossas estadas em Salvador, escutar o que não queria.
Acompanhamos Carybé e Jenner, antes do almoço, à casa de uns
amigos deles, no Campo Grande, pessoas que mal conhecíamos.
Como de hábito, nesses encontros domingueiros, a animação era
grande, exaltação que ia crescendo à medida que as caipirinhas e as
batidas produziam efeito.
— De que fruta é esta? — perguntei ao saborear uma deliciosa
batida de mangaba.
— Você não sabe? — admirou-se alguém. — Você não
conhece mangaba?
— Mangaba é manga? — perguntei inocente.
— Não é manga, não — riu a dona da casa. — Manga não tem
nada a ver com a mangaba, mangaba é uma fruta pequena... —
explicou, gentil, a senhora.
— Como é que ela pode saber? — interveio uma outra. — Zélia
é paulista. Em São Paulo não há frutas como as nossas... Lá é só pêra
e maçã, uva, banana...
Nem respondi. Podia enumerar todas as frutas de São Paulo,
variadas e maravilhosas, mas preferi não dar bola. Calei-me.
A conversa e as gargalhadas corriam soltas quando, de súbito,
um cidadão cujo nome não lembro (possuo a qualidade — ou será
defeito?— de esquecer por completo o nome de quem me ofende, me
agride), de pé em minha frente, apontou-me com o indicador: Essa aí
até parece minha mãe: pamonha e besta. Dessa vez ninguém achou
graça, Luísa, mulher de Jenner, artista vindo de Sergipe, aliás, os dois
são sergipanos, reclamou, os outros também reclamaram. Eu fiquei
ainda mais calada e mais besta.
Felizmente, nessas idas e vindas à Bahia, eu conquistara
algumas amigas: Norma, mulher de Mirabeau Sampaio (colega de
Jorge dos tempos de colégio interno); Nancy, mulher de Carybé, Luísa
de Jenner, Nair, mulher de Genaro de Carvalho, o tapeceiro
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
inigualável da Bahia, Lúcia, mulher de Mário Cravo, escultor do ferro e
da pedra. Todas se tornaram minhas amigas, todas dispostas a me
ajudar nessa mudança. Já não estaria sozinha fazendo papel de
"pamonha e besta" e, ainda por cima, paulista.
Mesmo sabendo que na época a vida da dona de casa na
Bahia não era fácil, tratei de avivar meu otimismo, passei a pensar
somente nas vantagens que iríamos ter com a mudança. Assim
enfrentava com bom humor a pressão de Lalu, que não se
conformava de nos ver partir, depois de dez anos de convivência.
LALU VOLTA À CARGA
— E quem vai cuidar da casa, aqui? — perguntava Lalu.
— A senhora vai cuidar da casa por pouco tempo, dona
Eulália. A senhora e seu João vão morar conosco na Bahia. Não vai
demorar. Não encontramos ainda uma boa casa mas vamos achar.
Antes do fim do ano esperamos estar de mudança.
— Tu quer que eu fique aqui, trabalhando? Já trabalhei muito
na vida, pra mim chegou...
Tive vontade de rir mas me contive:
— E verdade — disse —, a senhora já trabalhou muito, não
deve trabalhar mais. Por isso queremos que venham viver conosco na
Bahia. A senhora devia aconselhar seu João a ir embora com a gente.
— Eta sujeitinha pedante! Aconselhar o quê? Ora veja só!
Então tu não sabe que quem não quer ir sou eu? João não diz nada, só
quer ficar junto do filho seja lá onde for... Tu é que deve aconselhar
Jorge. Tu só vai se tu for besta... É só dizer que não quer ir que ele
não vai. É verdade ou não é?
— Mas eu quero ir, dona Eulália. Salvador é uma cidade
bonita, tranqüila, vai ser bom para os meninos.
— Bom para os meninos? Tá... Que bom, o quê! Bom coisa
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
nenhuma! Teus filhos vão virar dois tabaréus. Tu pensa que lá tem as
facilidades daqui? Tu pensa que lá tem recepções nas embaixadas?
Vai ver que nem embaixadas tem por lá. Tu pensa que lá é como
aqui, todo mundo convidando pra festas?... Vá atrás disso! Vá atrás!
— Lá não tem embaixadores mas tem amigos, dona Eulália.
Na Bahia estão os colegas de Jorge dos tempos do colégio interno:
Mirabeau e Giovanni Guimarães; estão também esperando, Carybé,
Mário Cravo, Carlos Bastos, Jenner, todos ansiosos. — Citei esses
nomes, esperando impressioná-la. Mas qual!
— Ora veja! Não é por falta de amigos que vocês vão embora;
a casa aqui vive sempre cheia. É verdade ou não é? Tu não acha que
seu Portella, seu José Conde, seu João Conde, seu Mauritônio, dona
Eneida, seu José Mauro, a Misette, dona Glorinha, seu Giges (era
assim que ela chamava o poeta Sosígenes Costa), dona Gervance
(referia-se à Giovanna Bonino), seu Waldemar e dona Gerusa então
eles não vão ficar tristes aqui sem vocês? — Ela mesma respondia: —
Ora se vão!
Não adiantava discutir com Lalu, ela ganhava sempre.
Carregava um trauma dos tempos da juventude. Irmã de
desbravadores de mata, mulher de outro desbravador, vivera no
sertão e em fazendas de cacau, rodeada de jagunços, vendo irmãos e
marido serem atingidos por tiros de carabina, o irmão mais velho
perdendo uma vista, o marido com as costas cravejadas de chumbo...
dormia com uma repetição carregada ao lado do travesseiro para se
defender, por via das dúvidas. Muitíssimos anos haviam decorrido
desde esse tempo, mas ela não esquecera, não queria saber de
história: Salvador, Ilhéus, Itabuna, Pirangi ou Ferradas, era tudo a
mesma coisa, o fim do mundo. Sem nenhuma cerimônia, o que ela
dizia mesmo era: o eu do mundo.
Jorge não perdia a esperança de convencer os pais a nos
acompanhar. Havíamos de encontrar uma casa, confortável, com
jardim e pomar, onde eles pudessem viver tranqüilos. Mas isso seria
resolvido depois de comprarmos a casa.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
A PRIMEIRA TENTATIVA
Nesse início de dezembro de 1960, logo que os meninos
entraram em férias, os mandamos para Recife, onde nos aguardariam
na casa de nossos amigos. Tudo fora muito bem planejado: iríamos
de carro até Salvador, compraríamos a casa, o carro ficaria nela nos
esperando, de avião iríamos a Recife, passaríamos as festas de Natal
e Ano-Novo lá, como de hábito. Apanharíamos João e Paloma e da
Bahia voltaríamos todos juntos, de automóvel. Coisa mais simples e
tranqüila, impossível.
Os velhos tomaram o místico, nome dado pelo Coronel e
repetido nas risadas ao referir-se ao avião misto — carga e
passageiros —, mais barato do que o de vôo normal, com direito a
lanche e tudo. Por muito favor, Lalu acompanhava o marido a Pirangi,
onde possuíam uma fazenda de cacau. Todos os anos, em dezembro,
lá se iam os dois de avião até Pontal e de lá, numa lancha velha,
desconfortável, de apelido Gasolina, iam para Ilhéus, de onde
seguiam de automóvel até Pirangi. Época de colheita e de acerto de
contas, o velho não deixava de estar presente para o devido controle.
Apenas chegavam a Pirangi, ele montava a égua já atrelada, à sua
espera, e se tocava para a roça enquanto Lalu permanecia na cidade,
hóspede das sobrinhas, tratada nas palmas das mãos, tiazinha pra cá,
tiazinha pra lá.
A LONGA VIAGEM
No místico, seguiram os velhos para Ilhéus, enquanto Jorge e
eu partimos no Cara de Sapo, como já se sabe. O apartamento da
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Rodolfo Dantas ficou sob os cuidados de Milu, Emília Jacob David,
amiga dos velhos, sergipana de Estância. Moça velha, mulher alta e
sacudida, uma força da natureza, Milu não tinha família, quer dizer,
não vou mentir, sobrara-lhe um irmão de quem ela não tinha notícias
havia uns trinta anos. Milu vivia ora na casa de um, ora na casa de
outro, sem endereço certo. A chegada de Milu em casa com sua
loucura e sua animação era um alvoroço. Amiga leal, podíamos deixar
tudo em suas mãos, sem susto.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Peço licença para contar apenas uma historinha sobre o
caráter, a retidão e a maluquice de Milu.
O coronel João Amado possuía um relógio de estimação, um
cuco, presente dado pelo filho Jorge, que o ganhara de um amigo, o
médico mineiro Belini Burza, relógio recebido de um cliente. O cuco
em sua casinha de madeira, pendurado na parede da sala de jantar,
era a grande distração do velho. Relógio bom, gabava ele. Não
atrasava nem adiantava, as horas sempre conferidas com o cebolão
de ouro, de algibeira, preso a uma corrente também de ouro, um
American Swatch Company que o Coronel chamava de meu Patek
Philippe, Afinado, o cuco cantava em horas certas. Saía por uma
portinhola e soltava a voz. Enquanto isso, os pesados pêndulos de
ferro, em formato de pinha rematando duas correntes, se
movimentavam, ora um, ora outro. Enquanto um descia, o outro
subia. Acontece que, encostada na mesma parede que o cuco, bem
embaixo dele, havia uma pequena mesa, um consolo, cuja altura
impedia a corrente do relógio de seguir seu curso normalmente, ir até
o fim. Era preciso estar sempre atento, afastar a mesa no momento
exato, para que a pinha não tombasse sobre ela, o que faria o relógio
parar. Isso acontecera uma vez e dera um trabalhão danado ao velho
fazê-lo voltar às boas. Sempre de olho, seu João controlava e
manobrava, puxava rapidamente a mesa antes que acontecesse o
estrago.
Obedecendo às recomendações a respeito do cuco, Milu
seguia à risca as instruções: afastava o consolo na hora certa.
Acontece que numa certa manhã de sábado, ao sair às compras, ela
esbarrou de repente com o irmão, o irmão que não via há séculos.
Ficou sabendo que ele morava no subúrbio do Encantado, passara por
acaso em Copacabana. Do encontro resultou um convite: Milu iria
almoçar com a família no dia seguinte, conheceria a cunhada e os
sobrinhos, relembrariam o passado, matariam saudades.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
De Copacabana ao Encantado faziam-se necessárias duas ou
três baldeações, não sei quantas exatamente, uma verdadeira
viagem em ônibus paradores. Precavida, Milu saiu cedo de casa,
comprou na padaria uns doces para os sobrinhos e se tocou.
A viagem parecia não ter fim, contou Milu, tempos depois, ao
narrar sua aventura, o ônibus parando em todos os pontos,
recebendo passageiros, despejando outros... Comecei a me
preocupar, o tempo ia passando e nada de chegar... desse jeito não ia
dar tempo de estar de volta em Copacabana na hora de puxar a
mesa. Do ponto final do ônibus até a casa de meu irmão ainda tinha
uma boa caminhada. Fui ficando nervosa, agoniada, agoniada...
Cheguei no portão da casa do mano, toda esbaforida, suada. Ele veio
me receber, os meninos e a cunhada atrás, eu nem vi a cara de
ninguém, entreguei a bandeja de doces, o papel todo amarrotado, fui
me despedindo, me desculpem, fica para outra vez, tenho que voltar
antes que a pinha da corrente encoste na mesa. Diante do espanto da
família que não entendeu nada, ou que na certa pensou estar a pobre
maluca, ela se foi rapidamente para o ponto do ônibus. Quando abri a
porta do apartamento, ouvi o canto do cuco, o último antes dele
soltar a corrente de vez. Ufa! Foi Deus quem me ajudou!
OTIMISMO
Vivo me gabando de ser otimista. Aliás não me gabo
propriamente, não é esse bem o termo pois não considero ser o
otimismo uma virtude, cada qual é como é, uns nascem otimistas,
outros pessimistas. Acho apenas que tive sorte de ter nascido
otimista, não me apoquento com pouca coisa, não sofro por
antecipação, acho sempre — mesmo que o céu ameace desabar
sobre minha cabeça — que posso dar uma guinada e seguir em
frente, acreditando em dias melhores.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Viajei para a Bahia, como de hábito, com esse espírito, cheia
de otimismo, certa de que encontraria à nossa espera dúzias de
casas, as mais belas, para comprar. Pura ilusão. Quem tinha uma boa
casa não queria vendê-la.
O SAPÃO BRILHA
Não precisei recorrer ao óleo de rícino para alimentar meu
carro na estrada. Nossa viagem à Bahia foi perfeita, até divertida. O
Sapão não reclamou, obedeceu sempre que desejei ultrapassar um
carro — aliás, quem sempre deseja ultrapassar os carros é Jorge,
reclama quando me deixo ficar para trás: Ora, minha filha! Você
parece que gosta de comer poeira, todo mundo passa em tua
frente!... Foram dois dias de cansaço, de tensão, mas não poderia me
queixar; o ID19 nos proporcionou momentos muito engraçados. Em
todas as paradas ele causava sensação. Naquela época, os carros
desse tipo eram raros no Brasil e, creio, o nosso era o primeiro a
enfrentar a BR-316.
Em Teófilo Otoni, por exemplo, o trânsito chegou a parar.
Estacionamos um momento, para tomar um café. Ao voltarmos,
encontramos o carro cercado de curiosos, meninos e adultos,
vendedores de pedras semipreciosas a turistas ali estavam no maior
entusiasmo. Entusiasmo que aumentou quando, ao ligar o motor,
resolvi fazer uma demonstração, botando a suspensão a óleo a
funcionar: Uai! Que trem mais sabido! Bonito demais da conta!, disse,
surpreso, um rapazinho enquanto acariciava o capo empoeirado. Em
Milagres o Sapão chegou a realizar um milagre: fez um ceguinho
recuperar a vista. O pedinte cantador, de óculos pretos e cuia
estendida, ao ver o carro parar em frente a uma barraquinha de
frutas, foi se chegando e, esquecido de sua condição de cego,
exclamou: Eta bichão porreta! Igual que este eu nunca vi.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
SALVADOR À VISTA
Chegamos à Bahia muito antes do tempo previsto. Jorge dizia:
Só quero ver a cara de Carybé... só quero ver a cara dele.
Carybé, mesmo que irmão, de artes com os encantados,
íntimo dos Orixás, afilhado de Exu, ele próprio um capeta, era rival de
Jorge em pregar peças. Eu estava curiosa só de imaginar sua reação
ao ver o automóvel. Diante do compadre embasbacado eu manejaria
a suspensão, faria o carro subir às alturas.
Cansados da viagem, sujos, suados, paramos no portão de
Norma e Mirabeau Sampaio, no Chame-Chame. Ouvimos de Mirabeau
e Norma — sobretudo de Norma, animada por natureza —
exclamações de entusiasmo diante do Sapão. Eles haviam reservado,
a nosso pedido, acomodações no Retiro de São Francisco, em Brotas,
ficaríamos hospedados nessa espécie de pousada, tranqüila e barata,
não iríamos gastar nosso dinheiro em hotéis caros. Norma entrou no
carro, me ensinaria o caminho. Mirabeau parecia satisfeito:
— Eu também vou com vocês mas acho que devíamos antes
dar uma passadinha pela casa de Carybé. Ele vai ficar surpreso,
pensa que vocês chegam amanhã. Quero só ver a cara dele diante
deste automóvel. Vai ficar humilhado. Comprou um fusquinha caindo
aos pedaços, não sabe guiar mas não dá o braço a torcer. Vive
fazendo barbeiragens. Capotou noutro dia em Feira de Santana.
Felizmente ninguém se machucou.
Carybé e Nancy moravam no Rio Vermelho, num sobrado em
cima de uma padaria, no Largo de Santana.
Buzinei debaixo da janela de Carybé, Norma abriu a porta do
carro e da calçada berrou: Carybé! Nancy espiou da janela, acenou
com a mão, chamou o marido. Ele apareceu, olhou e sumiu, para em
seguida surgir junto ao carro, limpando as mãos sujas de tinta, com
uma estopa.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Estava trabalhando... pelejando pra botar um cavalo de pé
e o burro não querendo me obedecer — riu. De repente grudou os
olhos no automóvel que subia às alturas: — Ué! Onde foi que vocês
arranjaram esse Mané Pato?
— Mané Pato, Carybé? Você está querendo dizer Mané Sapo?
— protestou Jorge.
— Sapo? Ora veja! De sapo ele não tem nada. É um pato,
direitinho! Olhe só o bico dele! — Carybé era forte.
Não adiantou discutir se era sapo ou pato, Carybé ganhou a
parada. O apelido pegou, pegou de tal maneira que até nós, Jorge e
eu, passamos a chamá-lo de Mané Pato e Mané Pato ficou sendo até o
último dia de sua vida.
Mané Pato agüentou ainda duas viagens: Bahia—Rio, Rio—
Bahia. Continuava lépido, obediente, até que um belo dia, aliás, uma
bela noite, ao voltarmos de uma visita a Odorico Tavares, no Morro
Ipiranga, ao descer a ladeira, na escuridão, não percebi que faltava
no meio da pista uma tampa redonda de ferro, das que cobrem os
bueiros. Meti a roda dianteira na boca-de-lobo, o tanque do óleo
bateu com violência no chão, partiu-se e, era uma vez... Lá se foi o
pobre se arrastando, o óleo escorrendo até a derradeira gota,
marcando uma trilha no asfalto. No portão de Mirabeau, à rua Ari
Barroso, logo abaixo do morro Ipiranga, nosso Mané secou de vez,
arriou para sempre; deu um último suspiro, emudeceu.
Por mais que buscássemos um tanque para substituir o
quebrado, não encontramos. Em Salvador não havia, nem por
milagre. Não havia outro jeito senão despachar o carro. Numa última
tentativa mandamos ele, em cima de um caminhão, para o Rio de
Janeiro, onde havia uma agência da Citroen, mas nem lá conseguiram
ressuscitá-lo. Nosso Mane Pato terminou seus dias num depósito de
sucata. Quando penso nele ainda sinto saudades, um nó na
garganta...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
CADÊ A CASA?
Batíamos pernas em busca de casa, muita gente empenhada
em nos ajudar e, nada. Meu otimismo rolava por água abaixo.
Genaro de Carvalho nos aconselhara a dar uma olhada num
sobrado antigo, no alto da colina, ao lado da igreja de Santo Antônio.
É a casa que eu gostaria de ter, dissera. Mesmo sabendo que ela
estava ocupada, fomos até lá dar uma espiada.
Genaro nos entusiasmara: Os moradores são suíços, quem
sabe se eles não estão querendo ir embora, voltar para a Europa?
Não custa tentar.
Aquela, sim, era a casa de nossos sonhos. Toda branca,
contrastando com o verde do gramado, na encosta algumas árvores
enormes e o mar inteiro a seus pés com direito a nascente e a poente
refletidos em suas águas. Já imaginou, Jorge, nas noites de lua cheia?,
comentei, romântica, já me sentindo debruçada na janela,
embevecida. Ao ver-nos ali, tão interessados, a proprietária, uma
senhora loira, se aproximou. Antes que ela dissesse qualquer coisa eu
me adiantei: Estamos gostando muito de sua casa. A resposta veio
pronta: Nós também gostamos... Só se fosse louca ela ia vender a
casa, disse Jorge. Daí por diante ia ser difícil encontrar fosse o que
fosse que nos agradasse. Esta era a terceira casa visitada e riscada
da lista.
Partimos para uma, na Pituba. Casa boa, nova, com frente
para duas ruas, um belo terreno com árvores e flores. A proprietária,
uma viúva, queria vendê-la. O preço anunciado estava dentro de
nosso orçamento. Só havia um inconveniente: ficava bem na praça,
ao lado da igreja, lugar movimentado e barulhento, sobretudo em
dias de festas da paróquia. Esse inconveniente foi superado quando
pensamos que talvez os velhos gostassem de morar lá, poderiam
passear na pracinha, sentar num banco, apreciar o movimento. A
casa era bem-conservada, havia acomodações para todos, até para
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
hospedar a turma de Recife, não precisava de reformas, podíamos
nos mudar em seguida. Ao procurarmos a viúva para concretizar a
compra, ela não teve meia conversa: Olhe, seu Jorge Amado, esta
casa está muito barata... não sei onde estava minha cabeça quando
dei esse preço. E, além do mais, gosto muito dela, é a minha pérola,
não faço questão de vendê-la. Tenho outras propriedades, mas esta é
a minha preferida. Não encompridamos conversa, não quer vender,
não vende. Ainda uma riscada da lista.
No local dessa casa na Pituba, por coincidência, ergue-se hoje
o Teatro Jorge Amado.
Partimos para outra recomendada, na cidade baixa, em
Itapagipe. Diziam maravilhas do casarão antigo, localizado em frente
ao mar. Tratava-se, na verdade, de um casarão velho, caindo aos
pedaços, um horror! Vimos logo que não prestava para nós. Os
quartos eram enormes, altos, a pintura descascando, nas paredes
manchas de percevejos esmagados. Eu as reconheci, eram iguais às
que víramos nos campos de concentração na Alemanha,
Tchecoslováquia e Polônia. Nesta casa encontrei uma coisa que me
surpreendeu: um cachorro que ria. Ele esticava o focinho, levantava o
lábio superior, mostrava os dentes num sorriso. Fiquei encantada com
o animal que passou a me acompanhar por toda a parte como se
fosse um velho amigo: Se ficarem com a casa, sorriu o proprietário,
deixo o cachorro de presente para a senhora. E o cachorro sem a
casa, não pode ser? Arrisquei, mas não pegou. Sem comprar a casa,
neca de cachorro.
A VOLTA DE MÃOS VAZIAS
Não foi daquela primeira tentativa que conseguimos comprar
casa na Bahia. Viemos encontrá-la meses mais tarde, ao voltarmos de
avião. A viagem de automóvel fora cansativa, pesada demais para
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
mim. Ao voltarmos para o Rio com as crianças, em fevereiro, no Mane
Pato, contratamos um motorista para me revezar na direção, na longa
estrada. Assim mesmo, com motorista, a viagem foi cansativa. De
avião eram apenas três horas, uma beleza para mim, três horas de
nervosismo para Jorge, que tem horror a viagens aéreas.
PEÇO LICENÇA
Por falar em horror a viagens aéreas, peço licença para contar
uma pequena história que não tem nada a ver com a compra da casa
na Bahia, mas sim com o horror de Jorge por viagens de avião.
Há alguns anos, exatamente dez, foi conferido a Jorge o
Grande Prêmio de Poesia do Mont Saint-Michel, decisão tomada em
reunião de poetas no Encontros Poéticos Internacionais da Bretanha,
medalha atribuída pelo livro O Gato Malhado e Andorinha Sinhá. O
prêmio seria entregue no próprio Mont Saint-Michel — a oitava
maravilha do mundo — durante o festival anual de poesia,
comandado pelo poeta francês Claude Couffon e pela presidente do
Encontros Poéticos, Dodik Jegou. Conhecer o Mont Saint-Michel era
um velho desejo meu e eu me sentia encantada com essa
perspectiva.
Nosso avião, de companhia de vôos domésticos, sairia do
aeroporto de Orly, uma hora apenas de viagem até Saint-Malo, na
Bretanha. De lá ao Mont Saint-Michel teríamos ainda uma boa meia
hora de automóvel.
No momento do embarque, descobrimos que viajaríamos num
turboélice, bimotor, para doze passageiros, e Jorge se alarmou:
— Se eu soubesse que ia viajar num aviãozinho desses, não
teria vindo.
— Às vezes um aviãozinho desses é mais garantido do que um
aviãozão — disse à guisa de conforto, conforto que não pegou, pois
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Jorge continuou reclamando, nervoso.
No avião lotado, couberam-nos os assentos ao lado do motor.
Apenas levantáramos vôo olhei pela janelinha, queria ver Paris do
alto. As únicas coisas que eu via, no entanto, eram o motor e a hélice
do aparelho. Sobre a chapa de metal abaulada do motor, vi escrito:
Rolls-Royce. Me animei:
— Fique tranqüilo, Jorge, estamos garantidos por um possante
motor Rolls-Royce.
— E o que é que você quer dizer com isso? — irritou-se ele.
— Então você não sabe que o Rolls-Royce é o melhor motor
do mundo? Dizem até que não encrenca nunca.
— E onde foi que você descobriu que o motor é Rolls-Royce?
Afastei a cabeça para dar espaço, queria que ele mesmo
lesse.
— Pois olhe — disse Jorge em tom de ironia —, o teu motor
que nunca encrenca acaba de encrencar. A hélice está parando.
Olhei. Vagarosamente, a hélice acabara de dar sua última
volta. Ouviu-se, em seguida, a voz do comissário de bordo: Senhores
passageiros, acabamos de ter uma pequena pane no motor esquerdo,
nada de grave... Nesse momento o tumulto e o pânico se
generalizaram. Por favor, pedia o comissário, conservem-se em seus
lugares, sobretudo evitem o pânico! Vamos aterrissar num campo de
emergência. Com a colaboração de todos chegaremos a terra sem
problemas.
Adernado, o avião descia lentamente. Morta de medo, pela
primeira vez na vida tive a sensação de ver a morte se aproximar. Se
o motor que era Rolls-Royce pifara, o outro, igualzinho, poderia muito
bem também pifar e aí estaríamos fritos. Mil pensamentos passaram
por minha cabeça: não ia mais ver meus filhos, ia morrer sem
conhecer o Mont Saint-Michel. Segurei a mão de Jorge: se é pra
morrer ao menos que morramos de mãos dadas.
— Me dê o jornal que está no bolsão em tua frente — disse
Jorge, a voz quase tranqüila.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— E você vai ler jornal, numa hora destas?
— Ao menos morro sabendo as notícias...
Após meia hora de agonia, aterrissamos no tal campo de
emergência, com ambulâncias e carros de bombeiro à nossa espera.
Mesmo depois dessa experiência, continuo preferindo as
viagens de avião a outro meio qualquer de locomoção. Você é uma
irresponsável, costuma dizer Jorge. Você não tem jeito.
JORGE VESTE FARDÃO
Nosso plano, ao voltarmos ao Rio, no início de 1961, era
acertar o colégio dos meninos, esperar que os velhos voltassem da
fazenda, orientar a empregada, organizar as coisas lá em casa para
então tomar um avião e voltar para a Bahia a fim de continuar a via-
crúcis em busca de casa. Mas nosso plano falhou, aliás, nunca
podemos fazer planos e contar certo com eles. Sempre acontece
alguma coisa, que impede. Dessa vez foi a eleição da Academia
Brasileira de Letras.
Com a morte de Otávio Mangabeira, Jorge candidatou-se à sua
vaga na cadeira 23, cujo patrono é José de Alencar e o fundador,
Machado de Assis. Em eleição tranqüila ele foi eleito a 6 de abril. A
cerimônia da posse fora marcada para daí a três meses, Jorge devia
escrever seu discurso de posse, devia atender a entrevistas de
jornalistas de toda parte, e experimentar o fardão... Ah! O fardão!
Habituado a roupas leves, sandálias nos pés, que penitência
experimentar o fardão! Não podíamos, de forma alguma, pensar em
viajar antes da posse na Academia.
Por falar em fardão, peço licença para contar uma historinha
sobre o fardão: na noite da posse na Academia, enquanto ajudava
Jorge a se vestir, ouvia ele reclamar da escravidão do fardão justo, de
lã quente, os bordados a ouro, segundo ele, esses bordados pesam
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
que é um horror!
Dei um passo atrás, olhei-o dos pés à cabeça, encantada:
Pronto! Já está prontinho, lindo!
— Me dê uma tesoura aí — ordenou ele.
— Uma tesoura? Para quê?
— Não pergunte nada, Zélia, me dê uma tesoura, depressa!
Assim dizendo, foi desabotoando a casaca — é casaca ou fraque? —
que me dera tanto trabalho abotoar. Apanhou a tesoura que lhe
entreguei e, antes que eu dissesse qualquer coisa ou tentasse impedi-
lo, foi cortando o colarinho branco, alto, duro de goma, deixando-o
esfiapado, rente à parte escura de lã. Em seguida me devolveu a
tesoura: Muito obrigado. Agora vou me sentir mais aliviado, melhor.
Ao ver o filho de fardão, de chapéu bicorne com arminhos,
capa e espada, seu João, que nesse dia envergara o melhor terno e
colocara no dedo mindinho o anelão de brilhante, sorriu satisfeito.
Meu filho!, murmurou e não conseguiu dizer mais nada. Nesse dia
Lalu foi ao cabeleireiro, vestiu o traje bordado de miçangas, elegante,
feito pela sobrinha Diná, famosa modista. Não perdeu a oportunidade
de querer me convencer mais uma vez a desistir da Bahia: Tu tá
vendo, fia? Na Bahia tem Academia de Letras, com todo esse luxo?
Jorge completaria 49 anos daí a um mês, a 10 de agosto, e os
amigos, no Rio, preparavam-lhe uma festa. Viajaríamos depois.
VOLTA À BAHIA
Ao voltarmos à Bahia, em setembro, por pouco não
compramos a casa do Morro das Margaridas, na Mariquita, no Rio
Vermelho, bem localizada, no alto de uma colina, paisagem de todos
os ângulos. Ao examinarmos a planta, porém, verificamos que aquele
terreno todo que a circundava, não era, como nos haviam dito, área
verde da Prefeitura, intocável. Era, isso sim, terreno loteado, muitas
casas e edifícios seriam levantados em torno tirando-lhe
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
completamente a vista e a privacidade, o mais importante para nós,
já que a casa não era grande coisa, precisava de muitas reformas.
SONATA
Em outubro de 1961, assinamos, finalmente, a escritura de
nossa casa na Bahia, localizada à rua Alagoinhas, bem no alto de uma
ladeira, no Rio Vermelho. Ela pertencia a um pianista suíço, Jean-
Sebastian Benda, contratado pela Universidade da Bahia para ensinar
no Seminário de Música. Família de músicos, a mãe violinista, a irmã
e a mulher, uma jovem baiana, pianistas. O contrato com a
universidade estava para terminar e a família, acrescida de dois
filhinhos, preparava-se para regressar à Europa. Vendemos a casa
com muita pena, disseram.
Essa não era, de jeito nenhum, a casa de nossos sonhos.
Grande e desconfortável, ela necessitava de reformas, de muitas
reformas para que ficasse a nosso gosto. O que nos encantou, no
entanto, foi o terreno enorme e a deslumbrante vista, descortinando
o Rio Vermelho, Descobrimos também uma coisa bonita — coisa que
nos agradou —, a casa tinha nome, um nome poético: Sonata.
Dois grandes sapotizeiros, seculares, eram as únicas árvores
existentes no terreno, cheio de mato rasteiro. De nosso terraço
podíamos ver o mar em toda a sua grandeza, a Igreja de Santana e o
pequeno porto de pescadores, de onde, a 2 de fevereiro, sai a
procissão de barcos, levando os presentes que o povo oferece a
Yemanjá.
PROCISSÃO DE YEMANJÁ
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Na grande festa popular dedicada à Rainha do Mar, orixá da
devoção dos pescadores, o espetáculo do pôr-do-sol, na hora da
viração, é inigualável: dezenas de embarcações a vela, carregadas de
oferendas as mais diversas, desde os sabonetes e pentes para a
sereia lavar-se e pentear-se, aos espelhos para se mirar, frutas,
flores, muitas flores, levados pelo povo que, paciente, em filas
quilométricas, aguarda sua vez de depositar o presente num balaio e
fazer o seu pedido.
O balaio, quando cheio, é colocado no barco. Vento soprando,
velas enfunadas, eles se distanciam, lentamente, um atrás do outro,
até perderem-se no infinito. Só então os cestos, transbordando de
prendas, são depositados no mar. Os presentes que afundam são os
que a sereia aceita e o pedido será atendido; repudiados, os que
flutuam.
Assistiríamos de nossa casa, de nosso terraço, à festa da Mãe-
d'Água, a procissão marítima seguindo até o fim.
Rio VERMELHO
Bairro popular, distante do centro da cidade, levando-se em
conta as maltratadas vias principais. Até de bonde podia-se ir ao Rio
Vermelho, bonde aberto, pesado, que fazia ponto final, no largo da
Amaralina. Nossa rua, a rua Alagoinhas, era mal calçada, rua de casas
modestas e nenhum edifício.
Ao saber da compra da casa, todo mundo se admirou: por que
no Rio Vermelho e não num bairro nobre, como a Barra, o Corredor da
Vitória, por exemplo? Por que vão morar tão longe? Longe de quê,
meu Deus do céu? Longe da Praça Castro Alves e da rua Chile, o
chamado centro da cidade? Estávamos contentes de morar no Rio
Vermelho, contentes da vizinhança de nossos amigos.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
VAMOS PLANTAR?
As férias dos meninos se aproximavam e queríamos passá-las
juntos na casa nova. Casa nova é maneira de dizer. Na casa que
deveria ir abaixo para ser reconstruída a nosso gosto. Trabalho
demorado e custoso, não queríamos nos apressar, começaríamos as
obras em 1962, os meninos ainda voltariam ao Rio para estudar.
Podíamos, no entanto, tratar do terreno, iniciar uma plantação.
Habitaríamos provisoriamente na casa do jeito que ela estava.
De Cruz das Almas, da escola de agronomia, conseguimos um
presente régio: mudas de laranjeiras, de limas, de tangerinas, frutas
de boa qualidade. Entusiasmado, Jorge providenciou um jardineiro
para começar a faxina no terreno.
Não fui com a cara de seu Quiquinho, achei-o com toda a pinta
de preguiçoso e de sabido. Pediu dinheiro para comprar adubo, sabia
onde vendiam adubo. Dias depois um caminhão despejou em nosso
terreno montanhas de lixo: misturadas com a terra, latas de sardinha
vazias, papéis apodrecidos, uma fedentina a atrair todas as moscas
do Rio Vermelho e adjacências.
Jorge não teve dúvidas, despachou o tal Quiquinho no mesmo
dia. Jardineiro era o que não faltava. Chegou seu Ambrósio, homem
pacato, boa cara. Seu Ambrósio capinou o terreno todo, fez uma
limpeza geral em poucos dias e, mãos à obra: numa só jornada, de
manhã à noite, conseguiu plantar todas as laranjeiras. Ninguém mais
feliz do que Jorge ao mostrar a Carybé a plantação:
— O senhor está convidado com dona Nancy a voltar aqui em
breve para saborear as laranjas — dizia com orgulho.
— Muito obrigado, compadre — retrucou Carybé. — Eu
também convido você e a comadre Zélia a provar as frutas de meu
pomar. Acabo de comprar uma casa em Brotas com um terreninho de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
fazer gosto, todo plantado de bananeiras, jaqueiras, pitangueiras,
mangueiras, goiabeiras, tudo crescido, dando frutas — anunciou
Carybé, também orgulhoso. — Estou me mudando.
Íamos perder a vizinhança de Carybé, uma pena, mas, afinal
de contas, isso não era motivo para ficarmos tristes, Nancy e Carybé
não iam para tão longe. Brotas ficava logo ali, de nossa casa à casa
deles não levava, de automóvel, mais de quinze minutos.
Pela manhã, ao despertarmos, tivemos a maior decepção, a
maior tristeza: nossas laranjeirinhas, plantadas com tanto
entusiasmo, lá estavam, completamente peladas, nem uma única
folha em seus galhos. O terreno era minado de saúvas, vorazes
formigas que só aparecem à noite. Elas haviam encontrado seu prato
predileto: folhas de laranjeiras, feito a festa, e se encontravam
recolhidas debaixo da terra, empanturradas.
ZUCA, o MATADOR DE FORMIGAS
Agora, chegava Zuca. De jardinagem ele não entendia nada,
mas em formigas era doutor- Contratado para liquidar as inimigas, ele
fez um exame no terreno: Aqui tem muita e as que vêm de fora são
ainda mais, diagnosticou. Vamos ter que liquidar todas as daqui e
também as dos vizinhos. Enquanto isso, não vale a pena plantar
nada. É plantar e perder.
INTIMAÇÃO
Carybé chegou pela manhã, trazendo uma jaca: E lá da casa
de Brotas.
Lamentava o estrago das saúvas, quando bateram à porta. Um
rapaz queria entregar em mão própria um papel para Jorge. O senhor
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
assina aqui, disse abrindo um livro de protocolo. Jorge deu uma
olhada por alto, assinou e despachou o rapaz: Está entregue.
Só então foi ver direito do que tratava o documento. Carybé se
aproximou, espichou o olho no papel enquanto Jorge, intrigado, sem
compreender o que aquilo significava, pediu: Veja se você entende
isso, Carybé.
Tratava-se de um papel timbrado com as armas da República,
da Justiça do Trabalho, notificando o Dr. Jorge Amado para uma
audiência de uma reclamação trabalhista proposta por Francisco
Bispo dos Santos. Mais abaixo, dizia que o não comparecimento
implicaria em revelia e confissão. Mais abaixo, ainda: Pede-se trazer a
contestação por escrito. Solicita-se, também, organizar os
documentos oferecidos como prova em ordem cronológica e reunidos
em uma pasta, caso ultrapassem 50 (cinqüenta) folhas.
— Você está entendendo isso, Carybé?
— É uma intimação...
— Até aí eu entendi — disse Jorge. — Mas intimação de quem?
De quê? Quem é esse tal de Francisco Bispo dos Santos?
— Você não conhece? — indagou Carybé.
— Conheço coisa nenhuma. Vai ver que se enganaram...
— Pense bem, Jorge. Como era o nome daquele jardineiro do
estrume podre, o que você despediu? Talvez seja esse sujeito.
Jorge nem lembrava seu nome:
— Como era, Zélia?
— Quiquinho — respondi.
— Pois aí está — entusiasmou-se Carybé, que acabava de
decifrar a charada. — Quiquinho é apelido de Francisco. Veja bem:
Francisco, Francisquinho, Quinho, Quiquinho. É o próprio que está te
intimando, não há dúvida.
— Mas eu paguei a ele o que nem devia ter pago...
— Ele te deu recibo?
— Recibo, Carybé? Qual é o recibo? Um analfabeto que nem
sabe assinar o nome... Nunca pedi recibo a empregados.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Pois faz muito mal. A gente deve sempre pedir recibo para
evitar essas amolações.
Jorge ficara enfurecido. Que miserável! Jogou lixo no meu
terreno, recebeu como se fosse adubo de primeira e vem com essa...
Eu também estava furiosa, não somente com o pobre-diabo, ladrão
descarado, como também, e sobretudo, com o juiz do Trabalho, de
assinatura ilegível a mandar tal convocação:
— Eu acho que você nem deve se apresentar, Jorge. Não vai
te acontecer nada.
— Não vai acontecer? — interveio Carybé — Com essa Justiça
do Trabalho, nunca se sabe. Quem é esse juiz? Certamente algum
reacionário, teu inimigo que quer te ver no xilindró.... Não convém
abusar... Eu acho que você deve fazer a contestação por escrito,
como eles pedem, organizar os documentos oferecidos como prova,
ainda como eles exigem, arrumar as testemunhas e esperar pela
absolvição.
— Absolvição!? — explodiu Jorge. — Devo contestar por
escrito para ser absolvido? E isso? Absolvido de quê? — Jorge
espumava, berrava. — Oferecer documentos como prova? Prova de
quê? Não vou escrever porra nenhuma, não tenho por que fazer
contestação... Não sou nenhum moleque! O que eu vou fazer, isso eu
já sei. Vou procurar o Walter da Silveira. Ora! Absolvição! Vou mostrar
a eles a absolvição! — esbravejava Jorge.
Jorge voou para o telefone. Falou com Walter, que se inflamou
em seguida. Velho amigo, advogado trabalhista, conceituado e
temido, Walter da Silveira brigava e não perdia causas, sempre ao
lado do empregado contra o empregador. Desta vez faria uma
exceção, o caso era muito especial, defenderia o empregador, no
caso seu amigo Jorge Amado, vítima de um juiz cretino. Resolvo esse
caso com um pé nas costas, deixa comigo. Queria saber de qual junta
viera a convocação. Ao tomar conhecimento, deu um berro, conhecia
muito bem o juiz, um cretino, seu desafeto, ele ia ver o que era bom.
Combinaram um encontro para mais tarde, ele não devia se
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
preocupar.
Mais tranqüilo, Jorge nos contou, com todos os detalhes, sua
conversa com Walter.
— E o que é que você acha que ele vai fazer? — quis saber
Carybé.
— Acabar com esse juiz. Walter é inimigo dele. Disse ter sido
muito sacaneado por ele, e que agora chegou a sua vez de tirar a
forra. Vai até ao governador se for preciso.
Carybé se despediu, Nancy o esperava em casa, devia levar
Sossó e Ramiro à escola. Antes de sair, me fez um sinal para que o
acompanhasse até a porta.
— Olha, comadre — recomendou-me, apressado —, diga a
Jorge que desista do Walter.
— Desistir do Walter, por quê? — me admirei.
— Olha, não vá contar nada pra ele, isso é uma brincadeira
minha, de Tibúrcio e de Gisela. — Assim dizendo, saiu apressado, me
deixando sem ação.
REVANCHE
Se Carybé pensava que eu ia guardar segredo, mancomunar-
me com ele contra Jorge, estava redondamente enganado. Jorge
precisava saber, o quanto antes, que tinha caído que nem um patinho
no trote de Carybé. Precisava acabar, o quanto antes, aquela agonia.
E foi o que fiz, contei-lhe tudo em seguida:
O que é que você está me dizendo? Carybé? Coisa de Carybé?
Ora! Só podia ser coisa dele mesmo e eu, idiota, fui cair nessa!,
enfureceu-se Jorge, ao saber de tudo. Carybé me paga, ele vai me
pagar caro! Que miserável! Armou tudo direitinho, até uma jaca me
trouxe para estar aqui no momento, gozar com a minha cara, se
divertir à minha custa... que miserável.', repetia. Falou até em
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
absolvição... E onde é que ele foi buscar o papel timbrado da Justiça
do Trabalho? Só pode ter sido obra do Tibúrcio. Ele não te disse que
armou tudo com Tibúrcio e Giseía? Eu até entendo ver Tibúrcio
envolvido, advogado, procurador do Trabalho com entrada franca no
Tribunal... Mas Gisela? O que é que essa gringa, que mal conheço,
tinha que se meter?
Americana, viúva de José Valadares, conceituado crítico de
arte, Gisela, também pessoa estimada na Bahia, era dona de uma
escola de inglês, a EBEC. Entre tantos amigos era íntima de Nancy e
Carybé. Dagmar Barreiros, mulher de Tibúrcio, era sócia de Gisela,
ambos igualmente amigos do casal. Segundo me contou Nancy, de
um encontro da turma e de conversas sobre a volta de Jorge para a
Bahia foi que surgiu a idéia de lhe pregarem uma peça.
Jorge dava tratos à bola, a vingança devia começar o quanto
antes:
— Fale com Carybé ou Nancy, com Nancy até é melhor. Não
diga que me contou e confirme a minha ida com o Walter ao Tribunal.
— Você não vai falar com o Walter? — perguntei, já sabendo a
resposta.
— Claro que vou falar com Walter, ou você acha que eu não
devia falar?
Jorge continuava muito nervoso, agitado, e eu tratei de sair de
baixo:
— Vou dar um tempinho, o tempo de Carybé chegar em casa,
para então telefonar.
Ao saber que tudo não passara de um trote de Carybé, Walter
ficou desolado, perdia a chance de arrasar o juiz. Prometeu sigilo,
com muito prazer ajudaria Jorge a dar uma lição ao sacripanta.
Não foi preciso eu chamar, Nancy telefonou nos convidando
para jantar em casa deles. Carybé tomou do fone, queria saber das
novidades. Tudo na mesma, compadre, e não adiantei mais nada.
Convidados também para jantar lá estavam os componentes
do complô: Tibúrcio com Dagmar e Gisela, que foi ao encontro de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Jorge, toda fagueira:
— Mas que chateação, hem, Jorge? Carybé me contou tudo.
Agora me diga, cá entre nós, você pagou ao jardineiro?
Gisela nem sonhava com quem estava se metendo. Tive medo
de que Jorge explodisse, mas ele manteve a linha. Essa vai pagar
caro, pensei.
Carybé e Tibúrcio me chamaram em particular, no quarto,
estavam doidos por notícias. Tibúrcio apavorado com o que podia lhe
acontecer caso descobrissem o seu envolvimento na trama, a folha
surrupiada do Tribunal, a falsificação da assinatura do juiz. Antes que
me perguntassem algo, me adiantei:
— Olha, compadre, não consegui convencer Jorge a desistir de
Walter. Já está tudo combinado, eles vão juntos ao Tribunal, amanhã
cedo. Jorge resolveu ir também para dizer as últimas ao juiz, ele está
furioso.
Tibúrcio ria amarelo, Carybé sem saber que rumo dar aos
acontecimentos.
— E se eu mesmo falar com o Walter, disser para ele não ir?
— sugeriu Carybé.
— Você quer contar a ele que tudo não passou de uma farsa?
— É, que tudo não passou de uma brincadeira — corrigiu ele.
— Afinal de contas, o melhor seria acabarmos de vez com esta
história e rirmos todos juntos...
Carybé e Tibúrcio estavam tão agoniados, tão nervosos que
cheguei a ter pena.
Nancy apareceu, Jorge me chamava, queria ir para casa
dormir, precisava levantar-se cedo, marcara encontro com o Walter
às sete horas da manhã. Ao nos acompanhar à porta, Nancy me deu
um particular, desabafou: Carybé inventa essas brincadeiras... agora
está sofrendo que nem um danado, não vai dormir esta noite.
Ao chegarmos em casa, pedi a Jorge que telefonasse,
tranqüilizasse o compadre que de tão aflito podia ter uma coisa... O
castigo dele e de Tibúrcio só vai terminar amanhã, depois da noite
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
maldormida, disse. Quanto à Gisela, ela que aguarde.
Depois da noite maldormida, Carybé apareceu. Fora à casa de
Walter e, como chegara muito cedo, não se atrevera a tocar a
campainha, ficara tocaiando a saída do advogado para o Tribunal.
Também seu amigo, Walter ouviu a explicação do que já estava farto
de saber, deu o assunto por encerrado. Agora, todo lampeiro, vinha o
peste oferecer seus préstimos a Jorge, podia ajudá-lo a castigar
Gisela, a danada que teve a idéia da brincadeira. O santinho dizia ter
apenas entrado de gaiato no imbróglio. Jorge fingiu acreditar e tratou
de aliciar o compadre, que lhe daria boa ajuda na trama da vingança.
VENDETTA
O anúncio, de três colunas, na primeira página do jornal A
Tarde dizia:
BOLSAS DE ESTUDO EM UNIVERSIDADE AMERICANA
A escola de inglês, EBEC, na rua João das Botas, em
prosseguimento à campanha de intercâmbio cultural Brasil-Estados
Unidos, oferece aos vinte primeiros candidatos que se apresentarem
na manhã do dia 12, segunda-feira, à citada escola, uma bolsa de
estudos de três meses nos Estados Unidos. Passagens pagas, estada
e duzentos dólares por mês. Pede-se levar documento de identidade
e diploma de curso primário. Assinado: A diretora Gisela Valadares.
CONFUSÃO NO CANELA
A rua João das Botas, no bairro do Canela, amanheceu
congestionada. Centenas de pessoas aglomeravam-se em frente à
EBEC. Candidatos às bolsas de estudo anunciadas em A Tarde, na
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
véspera, tentavam entrar na escola, falar com os responsáveis. De
jornal na mão, impacientes, esperavam ser atendidos, porém
ninguém os atendia. A paciência se esgotara havia muito. Chegavam
candidatos, cada vez mais, e o tumulto se generalizava.
Os detalhes do que aconteceu depois, soubemos pelo olheiro
Carybé que, metido entre o povo, ouvia as reclamações, divertindo-se
à grande. A muito custo consegui entrar na escola. Ao me ver, Gisela,
furiosa, gritou: isso é coisa daquele moleque... o moleque era você...
dei um conselho: ela devia colocar um cartaz fora da poria avisando
que as vagas já haviam sido preenchidas. Confusão muito grande, as
professoras tendo chilique, ninguém sabendo pra que lado se virar,
quer saber de uma coisa?, acabei fazendo o cartaz, eu mesmo...
amigos são para esses momentos... Os dois compadres riam de se
acabar.
— Quer dizer que ela estava furiosa? Boa!
— Furiosa é apelido. Ela estava desesperada, histérica, com
medo de que o povo invadisse a escola, rebentasse aquilo tudo... E
quase invadiram mesmo. Não chegaram a forçar a porta mas
ameaçaram, gritaram, disseram todos os desaforos que você pos* sa
imaginar.
— Agora só está faltando o último detalhe da vingança —
disse Jorge.
— Qual é o detalhe, compadre? Você não acha que já está
bom?
— Eu só quero ver a cara dela quando chegar a cobrança do
anúncio, ou você esquece que ele foi feito em nome dela?
Sobre esse detalhe também tivemos notícia: ao atender o
funcionário de A Tarde com a nota de cobrança do anúncio, de dez
mil cruzeiros, Gisela endoidou: Vá cobrar daquele vagabundo do Jorge
Amado! Acabou pagando. Ainda um inesperado arremate da
vingança, detalhe que não entrara no esquema do plano: pressionada
com ameaça de processo, por candidatos de maus bofes, Gisela viu-
se obrigada a dar três bolsas de estudo na própria EBEC, em
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Salvador.
O ARQUITETO
A casa do escultor Mário Cravo, no Rio Vermelho, era ponto de
reunião de intelectuais da Bahia e dos que vinham de fora. Rodeada
de um grande terreno repleto de esculturas do artista; casa
iluminada, estava sempre aberta para receber a quem lhes batesse à
porta. Íamos freqüentemente à casa de Lúcia e Mário.
Lá nos reuníamos com Mirabeau Sampaio, Carybé, Jenner
Augusto, para grandes papos e gostosas gargalhadas. Foi na casa do
escultor, em janeiro de 1962, que conhecemos Gilberbet Chaves,
jovem e talentoso arquiteto. Esta é a pessoa indicada para reformar a
casa de vocês, disse Mário, ao nos apresentar ao moço e a Sônia, sua
noiva. Mário admirava o trabalho e a competência do jovem.
Devíamos voltar para o Rio depois das férias dos meninos.
Nesse movimentado ano da Copa do Mundo, no Chile, tínhamos
programado uma viagem a Cuba, devíamos partir em maio. Não
podíamos pensar em obras naquele ano, certamente as faríamos em
1963. Enquanto isso, manteríamos uma na vete entre Rio de Janeiro e
Bahia e os meninos continuariam estudando no Andrews por mais um
ano.
Gilberbet Chaves comprometeu-se a nos apresentar um
projeto para a nossa aprovação, trataria do assunto com cuidado e
carinho, faria o estudo com calma, já que não estávamos apressados.
As BANANAS DE PERNAMBUCO
Mesmo no desconforto da casa, havíamos convidado Dóris,
Paulo Loureiro e as duas meninas para as festas do 2 de fevereiro.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Felizmente Zuca já nos dera sinal verde para recomeçar a
plantação. Ele continuava se ocupando dos formigueiros da
vizinhança, não deixaria que elas voltassem ao nosso terreno.
No Instituto Biológico da Bahia, compramos plantas, muitas
plantas, mudas já crescidas. Contratamos Zuca como jardineiro
esperando que, sob a nossa orientação, ele desse certo. Jardineiro
inexperiente, porém bom matador de formigas, boa pessoa.
Estava Zuca na lida de plantar bananeiras, quando chegou a
família Loureiro. Paulo vinha disposto a descansar, deitar-se numa
rede, curtir a preguiça. Encontrou em Zuca a pessoa ideal para uma
conversa fiada.
— De que qualidade são essas bananeiras que você está
plantando? — perguntou Paulo a Zuca.
— Aqui tem banana de toda a marca, doutor: prata, ouro,
maçã, da-terra, São Tome...
— Só essas? Em Pernambuco nós temos muito mais. Por
exemplo: temos a banana de canudo, você conhece a banana de
canudo? Pois é uma que se espreme com as mãos e depois se toma o
suco de canudo, feito refresco. Você não conhece?
Zuca sorriu:
— Doutor Paulo é tão interessante...
— E a banana de metro, a que cresce até arrastar no chão?
Outro sorriso:
— Essa também não, doutor Paulo.
— E a de saca-rolha? Uma beleza ver as bananas
encaracoladas...
Educado, Zuca apenas esboçou um sorriso: Ai, doutor Paulo!
2 DE FEVEREIRO
A festa do 2 de fevereiro era novidade para Dóris e Paulo. De
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
nossa casa podia-se ouvir a música, assistir a tudo do alto, mas
preferimos participar de perto, sentir o calor do povo, falar com as
pessoas. Entramos na fila para levar flores a Yemanjá, comemos
abará e o delicioso acarajé frito na hora, no azeite-de-dendê, pelas
baianas de roupas bordadas, alvas, impecáveis. Mãos hábeis giravam
a grande colher de pau no caldeirão de alumínio a bater a massa do
acarajé, o odor da cebola dourada no azeite fervendo, espalhando -se
pela praça, subindo por nossas narinas. Nas barraquinhas de bebidas
e peixe frito, o povo abrigava-se do sol, descansava, emborcava sua
cerveja, batia papo, cantava. Nos sentamos numa barraca,
escolhemos uma que dava sobre o mar: de lá podíamos receber a
doce brisa, ver o movimento dos barcos recebendo os presentes,
podíamos ouvir conversas divertidas e acompanhar os passos de
nossos filhos que, enturmados com Mariozinho Cravo, Maria de
Mirabeau e Sossó de Carybé, se espalhavam no meio da folia.
Os Loureiro haviam chegado por uma semana apenas,
desejavam assistir à tão falada festa de Yemanjá, cantada por Dorival
Caymmi, exaltada por Jorge Amado. Regressavam encantados,
aproveitariam ainda uns dias de férias em Maria Farinha, onde Amaro
Amarelo os aguardava com varas de pesca e anzóis.
Da próxima vez viriam também os Antunes, para férias
completas.
VIAGEM A CUBA
O convite partira de Nicolás Guillén, poeta cubano,
maravilhoso, nosso compadre e amigo, companheiro de imensas
viagens por esse mundo afora. Proibido de viver em Cuba durante o
governo de Batista, vivera perambulando pelo mundo, viera algumas
vezes ao Brasil, regressara à sua pátria somente após a vitória de
Fidel Castro. Ocupava um alto posto no Ministério da Cultura e nos
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
convidara para visitar Cuba, a nós, a Carybé e a Nancy.
Saímos do Rio de Janeiro no mês de maio, para Cuba, devendo
mudar de avião no México. Desembarcamos no aeroporto da Cidade
do México, escala para Havana. As autoridades policiais examinaram
nossos passaportes e mandaram que esperássemos um momento e,
sem nenhuma explicação, nos fotografaram de frente e de perfil. A
marca do Zorro, disse Carybé, ironizando. Acabamos de ser fichados
pelo FBI, afirmou Jorge, não escondendo o seu desagrado.
A emoção de ir a Cuba, conhecer de perto esse país tão
atacado por uns e louvado por outros, acrescentávamos o prazer de
rever nossos compadres Nicolás e Rosa, sua mulher. Não permitimos
que a violência sofrida ao chegarmos ao México viesse perturbar
nosso entusiasmo.
Nosso hotel era o Rivera, gigantesco, luxuoso, construído para
receber milionários americanos, hospedava agora delegações de
sindicatos operários de todas as partes do mundo, hospedava
pessoas que jamais haviam entrado num hotel dessa categoria a não
ser para trabalhar. Nele continuavam os mesmos móveis de sua
inauguração, os mesmos quadros, porém sem o mesmo cuidado.
De seu quarto, no andar acima do nosso, Carybé telefonou.
Subam um momento,
O que seria que o compadre havia descoberto? Subimos,
curiosos.
— Espiem só.—Apontava um quadro, o maior entre vários
pequenos.
— Uma natureza-morta. E daí? — disse Jorge.
— E daí? Se aproxime, repare bem.
A essa altura eu já estava junto do quadro. Inúmeras
assinaturas e frases ali rabiscadas sobre o colorido das rosas e das
orquídeas da natureza-morta indicavam a identidade dos hóspedes
que nos haviam antecedido. Espie aqui, Carybé apontava um coração
atravessado por uma flecha, amor de Alméria e Ricardo. Havia frases:
Estive aqui e gostei João P. dos Reis; Amor de Rosália Perez e Daniel;
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Viva el proletariado!, Abajo el sangriento Batista, assinado Juanito, él
justicero. E aqui, neste cantinho, vocês não viram nada? No cantinho
indicado pelo compadre, um lindo anjinho, nas mãos um pergaminho
com assinaturas: Nancy e Héctor Júlio.
— Por que você não assinou Carybé, compadre? Teve medo?
— Porque não sou besta. Carybé todo mundo sabe quem é,
Héctor Júlio ninguém conhece, não sabem que sou eu. No quarto de
vocês também tem quadros escritos?
Não havíamos reparado, mal tivéramos tempo de abrir as
malas. Nicolás nos deixara no hall do hotel, voltaria para nos apanhar
dentro de uma hora.
Os quadros autografados não eram um privilégio de Carybé,
nós também tínhamos vários quadros em nosso quarto, mas o
preferido para as assinaturas era o maior, também uma natureza-
morta.
Antes que pudéssemos impedi-lo, Carybé sacou do lápis,
riscou uma caricatura de Jorge, nu, segurando um coração e dentro
do coração: amor de Zélia e Jorge Amado. Mais respeito, Carybé,
estamos num país..., não encontrava um adjetivo à altura de Cuba,
num país... civilizado, acabei dizendo, e você não vai fazer das suas.
Carybé ria de se acabar, Jorge também ria, Nancy, a mais
comportada, ria menos.
TíQUETES PARA AS REFEIÇÕES
Acompanhado de uma secretária, Nicolás nos trazia o
programa de nossa estada em Havana.
— Vocês vão receber, estão aqui neste envelope, os tíquetes
para as refeições. Vocês sabem que estamos em situação difícil,
sabotados pelos Estados Unidos que nos fecharam as portas e nos
isolam. Estamos num momento de restrições, vocês vão receber os
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
mesmos tíquetes que todo mundo recebe. Nada de privilégios, tudo
muito democrático.
— Quer dizer que cada cidadão cubano recebe tíquetes para
comer? — perguntei.
— Isso mesmo, comadre, aqui ninguém passa fome..
PASSEIO A PÉ PELO CENTRO
Saímos andando pelas ruas do centro, e, confesso, fiquei
chocada com a falta de conservação das casas: descoloridas,
abandonadas, pintura e reboco caindo. Poucos automóveis
circulavam, em geral veículos antigos, americanos, caindo aos
pedaços, muita gente nas ruas. Passou por nós um caminhão cheio de
homens cantando. São voluntários que vão cortar cana, explicou
Nicolás, muita gente desertou, estão faltando braços para trabalhar.
A cada observação nossa, Nicolás dava explicações, aliás, para
todos os problemas, quase a mesma explicação: falta de divisas, falta
de braços, não ter a quem comprar. Não se pode gastar divisas
comprando tinta para pintar as casas e deixar de comprar
monumentos para alimentar o povo... não temos peças de reposição
para os automóveis, nem podemos importar carros novos. Os que aí
estão, se não houver um recuo dos Estados Unidos, vão acabar e não
haverá outros para substituí-los.
Nicolás fez questão de nos levar à Bodeguita del Médio,
célebre taberna, no centro de Havana, onde artistas se reúnem para
tomar um trago, conversar, cantar, tocar violão. Nicolás sempre nos
falava da saudosa Bodeguita, quando juntos viajamos pela China,
Mongólia, União Soviética, Tchecoslováquia, França.
Recebido com ovação pelo pessoal da tasca, don Nicolás pra
cá, don Nicolácito pra lá... Pedimos ao jovem que dedilhava um violão
que cantasse a música sempre cantarolada por Nicolás em viagens,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
música que ficara em meus ouvidos: Me voy al pueblo / I hoy es mi
dia / me voy al centro llenar la calavera... la-ra-la-la, la,la,la,la,la,la...
Gostou, comadre? Estávamos os dois emocionados.
Para o trago não eram necessários tíquetes, para o tira-gosto,
de pão e salame, sim. A maioria dos restaurantes havia fechado suas
portas. Nicolás apontou para um restaurante adiante, no outro lado
de uma praça: Naquele se come divinamente... se come?, corrigiu
rindo, mia, se comia. Sempre rindo, Nicolás explicou: Já não se pode
comer lá, está fechado.
Almoçamos numa tasca popular—popular como todas as que
existiam em Havana —, cada cliente de tíquete em punho. O menu
era simples porém gostoso, pareceu-me estar comendo numa casa
brasileira: arroz, feijão, legumes, um ovo frito, um bife, prato feito
sem direito a pedir bis. Quanto damos de gorjeta?, quis saber Jorge.
Aqui as propinas são malvistas. Guillén se pôs a rir, tenho uma
história que vocês vão gostar de ouvir: Sempre dei a meu peluquero,
o que corta meus cabelos há muitos anos—já cortava antes de meu
exílio —, um dólar de propina. Depois que surgiu a moda de que a
propina humilha o homem, resolvi entrar na onda, cortei a gorjeta do
pobre, repetindo a lição: a propina humilha o homem. Ele não se deu
por achado e, com muito espírito, estendeu a mão: pois humilha-me,
humilha-me muito, Nicolazito, humilha-me com um dólar...
Entre os tíquetes do envelope, Carybé descobriu que havia um
para la merienda. Entusiasmou-se: onde é que podemos comer a
merienda ? Em qualquer lugar, sobretudo no bar do hotel onde vocês
estão, disse Nicolás.
Nicolás e Rosa nos levaram a conhecer a famosa casa de
espetáculos de Havana, o cabaré Tropicana. Nas suas luxuosas
instalações já não funcionava o jogo, já não se exibiam, em seus
palcos, em shows memoráveis, grandes artistas e cantores de
renome universal, não são mais contratados nem grandes nem
pequenos artistas, nos disse Rosa, com pesar. Vocês vão ver.
O majestoso Tropicana, com o cassino que atraíra milionários
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
de Miami, vindos em seus aviões particulares, para o jogo e em busca
de aventuras amorosas, esse já não existia. Isto aqui virou uma bela
esculhambação, definiu Carybé. Não é à toa que os americanos estão
furiosos contra Fidel Castro, concluí.
Os garçons, vestidos cada qual de seu jeito, circulavam,
davam palpites enquanto serviam aos clientes, na maior
esculhambação, como repetia Carybé, divertido. Os cantores que se
exibiam não sabiam para onde ir. Apareceu no palco uma jovem
russa, funcionária de um escritório comercial soviético. Desafinada
como ela só e encabulada também como ela só, a moça cantou uma
canção russa, a voz esganiçada de fazer pena. Pra cantar como ela,
até eu, disse Nancy, horrorizada. Una verguenza, resmungou Rosa,
entre o envergonhado e o revoltado, habituada que era aos grandes
espetáculos na Europa e também aos de Cuba, de antes da
Revolução. O garçom que nos servira o cuba-libre arregalou os olhos,
empertigou-se ao receber das mãos de Carybé uma gorjeta: Thank
you! Esse voltou às grandes noitadas americanas, ironizou Jorge.
Os PROGRAMAS
Já tínhamos visto alguns problemas e restrições do país. Os
programas que íamos cumprir, organizados oficialmente, mostravam
o lado positivo, as coisas boas do regime.
Visitamos uma creche-modelo, para crianças filhas de
trabalhadores. Como esta existem muitas, nos explicou a moça que
nos acompanhava. Enquanto as mães trabalhavam os filhos eram
cuidados por pessoas competentes, em ambiente confortável, alegre.
Carybé sentou-se em meio às crianças e fez vários desenhos
atendendo aos seus pedidos: una cabra, un perro, una casita con el
sol... De repente Carybé bateu no relógio: Esta na hora, são 3:30,
hora de la merienda — a merenda consistia num copo de refresco e
uma fatia de queijo. Jorge levantou-se: Precisamos ir, não era pela
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
merienda que ele se despedia, lembrara que tinha um compromisso
às quatro, ia dar uma entrevista coletiva na Casa de Ias Américas.
Passamos duas semanas visitando o que nos mostraram e o
que quisemos ver.
Gostei de visitar as casas de camponeses que antes viviam em
taperas. Mi casa era tan chica que solo una rueda de la bicicleta
entraba en ella, la de detrás se quedaba fuera, contou-nos um
trabalhador, cuja casa de duas peças, cozinha e jardinzinho,
visitávamos.
Numa das casas que visitamos nos recebeu uma jovem
camponesa, tipo de beleza cigana, de olhar e lábios provocadores,
extraordinária. Acompanhada de violão, ela nos cantou uma canção.
Jorge e Carybé perderam as estribeiras diante do encanto da jovem.
Entreolharam-se: Que coisa! hem, compadre!, gemeu Jorge, sem ligar
para o beliscão que lhe ferrei. Maravilha!, concordou Carybé, sem
pressa de ir embora, pedindo à moça que cantasse mais.
Visitamos também as aldeias de pescadores. Não era hora de
pesca e os encontramos consertando redes nos alpendres de suas
casas novas. Sentimos que alguns deles não se mostravam
entusiasmados com a mudança de vida. Acostumados a viver em
choupanas, em casas miseráveis, não achavam necessário manter a
casa limpa, arrumada e, sobretudo, receber a visita das chicas, as
educadoras voluntárias que os visitavam periodicamente para ver se
tudo estava em ordem, para ensinar-lhes a viver na limpeza, a lidar
com o fogão, a utilizar a privada, a conservar a casa. Não necessito
de tanto luxo, prefiro viver em paz...
Guillén fez questão de ir conosco, numa viagem de cerca de
150 quilômetros, à Baía de los Porcinos, a tão falada Baía dos Porcos
onde, havia um ano, fracassara uma tentativa de Invasão a Cuba.
Desertores cubanos, treinados pela CIA na Guatemala, haviam saído
da Nicarágua em grandes barcos, para desembarcar na Playa Girón.
Nessa tentativa, combate de apenas dois dias, morreram dezenas de
pessoas e foram aprisionadas cerca de 1.200. Isso ocorrera havia um
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ano e agora Nicolás nos levaria até lá.
O que desejava nos mostrar Nicolás de tão surpreendente
nesse malogrado campo de batalha?
De longe avistamos uma longa e larga faixa colorida, cores
vibrantes, que se movimentava. A medida que nos aproximávamos,
pudemos distinguir milhares de caranguejos amarelos, vermelhos,
azuis, cobrindo a abandonada pista de asfalto. Saídos do mangue, ao
lado, pareciam vir ao nosso encontro, andando, ligeiros, nas patas
traseiras, as dianteiras levantadas, verdadeiros fantasminhas,
oferecendo um espetáculo único, inesquecível. Somente um poeta
como Nicolás Guillén poderia ter se empenhado tanto para mostrar
essa maravilha aos amigos.
Ainda faríamos uma visita oficial: visitaríamos, no cemitério de
Havana, o túmulo dos Mártires da Pátria, tombados na Baía dos
Porcos.
Jorge tem horror a cemitérios, evita sempre ir a enterros, mas
não pôde dizer que não ia e lá fomos.
O velho guia, antigo guarda do cemitério, foi muito
recomendado ao ser escalado para acompanhar os tão importantes
hóspedes; a ordem era de nos levar e mostrar o que havia de mais
importante no Campo Santo. Ora! Se era para mostrar o que havia de
mais importante, o velhinho não teve dúvidas, mostraria o melhor:
levou-nos ao túmulo do fundador do rum Bacardi. Lá estava ele, de
pé, el senor Bacardi, corpo inteiro, num pedestal sobre o túmulo, em
escultura de bronze. Reparen en los anteojos, entre orgulhoso e
encantado o guia apontava com o dedo um par de óculos colocados
sobre o nariz de bronze do falecido: Miren, anteojos autênticos, los
mismos que el usaba en vida, disse, a admiração estampada no rosto.
Jorge deu por terminada a visita ao cemitério. Batemos em
retirada. Felizmente, o mausoléu dos Mártires da Pátria ficava em
nosso caminho, pudemos vê-lo de relance, cumprir nossa missão.
Tratava-se, sem tirar nem pôr, de um mausoléu igual a tantos que já
havíamos visto em visitas oficiais em várias partes do mundo. Ao
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
contrário do que imagináramos, a ida ao cemitério não foi aborrecida,
até nos divertiu.
ABAIXO O ANALFABETISMO!
Rosa Guillén queria nos oferecer um almoço antes que nos
fôssemos mas estava tendo dificuldades. Esperava que o genro,
médico que trabalhava num povoado, viesse passar o fim de semana
em casa e trouxesse a encomenda que ela lhe fizera. No povoado ele
conseguiria obter uma galinha, um patinho, talvez alguns ovos para
melhorar o almoço.
Tínhamos visto Rosa apenas uma vez, na ida ao Tropicana. Ela
andava ocupadíssima, empenhada na campanha de alfabetização do
país, campanha que era levada a sério. Qualquer cubano alfabetizado
deveria ensinar ao menos uma pessoa a ler e a escrever. Rosa
visitava casas, descobria analfabetos por toda a parte, providenciava
escolas e professoras, ficava responsável pelas pessoas cadastradas
por ela. Orlando, neto de Guillén, de quatorze anos, integrava uma
brigada de jovens estudantes escalada para ensinar em povoados
pobres, próximos a Havana. Ele ficaria um ano sem estudar,
recuperaria depois. O genro, médico, como já disse, fora mandado
para um povoado que antes nunca vira a cara de um doutor. Mucho
sacrifício, nina, disse Rosa num suspiro, pero no es lo que queríamos?
Agora ela esperava a chegada do genro para poder marcar o almoço.
O apartamento dos Guillén, no 25º. andar de um edifício no
Vedado, bairro de gente rica em outros tempos, era amplo, arrumado
com bom gosto. A vista do alto era deslumbrante. Tudo muito bonito,
porém quando falta energia elétrica quem é que vai subir vinte e
cinco andares? Temos apenas um elevador funcionando e às vezes
nem ele funciona. A vizinhança é barulhenta, queixou-se Rosa, a
maior parte dos moradores é de jovens que vêm de fora para estudar
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
e eles não têm a mínima noção de higiene, jogam lixo nos corre'
dores, riscam os elevadores, estragam tudo e a gente nem pode se
queixar. Pessoas que viviam feito bichos, sem nenhuma noção de
higiene, não podem aprender de um dia para o outro... às vezes não
aprendem nunca, não é verdade? Existem grupos de educadoras
sanitárias para ensiná-los a conviver com a limpeza, mas o número
de alunos ainda é muito grande para as poucas professoras. Só neste
edifício vive mais de uma centena de rapazes e moças. Rapazes e
moças considerados inteligentes, capazes de cursar uma escola
superior. Esses deixaram de cortar cana.
O ALMOÇO DE ROSA
A mesa de Rosa estava um primor. Toalha bordada, copos de
cristal, flores no centro da mesa. Rosa se virara para obter, com os
restritos tíquetes da família, o material para fazer o almoço.
Completado com o frango e o patinho trazidos pelo genro, ela nos
apresentava agora uma bela mesa. Conseguira até espigas de milho
e frutas.
Ao entrar na sala de jantar, diante da mesa posta, Guillén se
entusiasmou: Que maravilla, Rosita! Me parece que hemos volvido a
los sangrientos dias de Batista!
CANDOMBLÉ
Jorge quis assistir a um candomblé e eles disseram que não
havia candomblés em Cuba. Num discurso de despedida, para uma
grande platéia de intelectuais e de leitores seus, Jorge disse o quanto
lamentava não ter encontrado um terreiro de candomblé em Cuba, o
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
quanto repudiava o sectarismo e que não concordava com qualquer
restrição religiosa, fosse ela qual fosse.
Viemos assistir a um candomblé em Havana alguns anos mais
tarde, em 1986, ao voltarmos a Cuba quando Jorge presidiu o Festival
de Filmes Latino-Americanos.
Peço licença para me adiantar nos anos e contar um episódio
sucedido durante o Festival de Filmes Latino-Americanos.
O júri do Festival, presidido por Jorge Amado, era formado de
personalidades literárias da América Latina.
Depois de vistos todos os filmes concorrentes, o júri reuniu-se
para decidir a premiação. A reunião durou um dia inteiro. Já no fim da
tarde chegaram a um acordo sobre os vencedores. A resolução seria
anunciada, em ato público, no dia seguinte. Nesse mesmo fim de
tarde haveria uma grande recepção oferecida ao júri e a
personalidades presentes, vindas a Cuba para a instalação da Escola
de Cinema, nas proximidades de Havana. Entre tantos, recordo-me de
Harry Belafonte, Gregory Peck, Gabriel Garcia Márquez.
Estávamos na festa quando surgiram, afobados, dois cidadãos
querendo falar com Jorge. Vinham diretamente do aeroporto, traziam
um filme, um curta-metragem que deveria concorrer. Por mil motivos,
haviam chegado atrasados e não se conformavam de saber que o
julgamento do prêmio já estava encerrado, insistiram. Tratava-se de
dois brasileiros, gaúchos, que traziam o curta-metragem de Jorge
Furtado e José Pedro Goulart: O dia em que Dorival encarou o guarda.
Felizmente todos os juizes estavam na festa e Jorge falou a
todos, convenceu-os a fazer uma sessão extra, assistir ao filme.
Resolveram assisti-lo naquela mesma noite, e quando
chegamos — eu acompanhara Jorge a todas as sessões — foi feita
uma pergunta: O filme está dublado? Não estava. Não sei qual a
razão, mas nós brasileiros entendemos o espanhol mas eles não
entendem o português. O impasse fora criado: Como julgar um filme
sem saber o que dizem?, argumentou um dos juizes. Foi aí que eu
tive uma idéia: juntei atrevimento e coragem e me ofereci: Eu
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
traduzo. E traduzi, mal e porcamente, mas traduzi e eles entenderam
tudo. O dia em que Dorival encarou o guarda ganhou,
merecidamente, nesse festival, o primeiro prêmio de curta-
metragem.
Outras histórias dessa viagem, quando tivemos um encontro
com Fidel Castro, ficam para serem contadas em outra ocasião, se
houver outra ocasião, não quero me distanciar ainda mais da Casa do
Rio Vermelho.
COPA DO MUNDO DE 1962
Junho se aproximava, e com ele a Copa do Mundo no Chile. Em
Cuba, nem uma notícia, nem se falava em futebol. Apaixonados por
futebol, Jorge e eu estávamos na maior inquietação, loucos por
notícias da seleção: o que faziam Pele, Garrincha, Didi, Zagalo? Na
televisão o que mais transmitiam eram discursos políticos, palavras
de ordem, palestras culturais, música clássica... Tudo muito
educativo, educativo demais para nosso gosto, sobretudo no
momento em que estávamos ansiosos por um futebolzinho, ter
notícias da Copa do Mundo, prestes a começar.
No regresso ao Brasil, faríamos escala em Lima, não iríamos
via México. O plano de Nancy era desembarcar em Lima, passar uma
semana com sua irmã que vivia no Peru. A irmã de Nancy nos
convidara e eu me entusiasmara, não conhecia o Peru e essa era uma
boa oportunidade. E a Copa do mundo? Você não quer assistir?,
revidou Jorge diante de minha insistência. Não houve argumento que
o convencesse, queria sentar-se diante da televisão, na casa dele,
não perder um só jogo. Foi assim que, por causa da Copa do Mundo
no Chile, em 1962, perdi a chance de conhecer Lima.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
DOUTOR MIRABEAU
O ano terminava, novamente chegavam as férias dos meninos.
Da Bahia os amigos nos chamavam, o arquiteto Gilberbet Chaves
queria nos mostrar o projeto da casa.
Presos por compromissos no Rio, resolvemos mandar João
Jorge e Paloma na frente. João se hospedaria na casa de Norma e
Mirabeau Sampaio, Paloma, na de Dorothy e Moisés Alves, fazendeiro
de Itabuna, amigos nossos, a filha mais velha, Balbina, e a sobrinha,
Yeda, enturmando com Paloma. João se enquadrava bem na casa de
Norma, enturmava com Arthur e Maria, os filhos e, sobretudo,
adorava bater papo com Mirabeau, ouvir dele as histórias, contadas
com graça, dos tempos em que Jorge era menino. Amizade de
infância, Mirabeau sabia de todas as peraltices do colega no colégio
interno, as contava e João o ouvia fascinado.
Formado em medicina, para fazer o gosto do pai, fabricante de
calçados, dono de uma sapataria na cidade, Mirabeau nunca clinicou,
teve um consultório bem montado, no centro, quando solteiro, que
servira, sobretudo, como garçonnière, para encontros amorosos. Do
bem montado e bem localizado consultório serviam-se também os
amigos. Para não dizer que Dr. Mirabeau nunca teve clientes, teve
um: passageiro de navio francês que ancorara na Bahia, o cidadão
sofreu um desarranjo intestinal enquanto passeava pelas ruas de
Salvador e, quando sentiu a segunda eólica, bateu os olhos, por
acaso, numa placa: Dr. Mirabeau Sampaio, clínica geral. Ainda bem
que encontrara um conterrâneo, pelo nome devia ser francês:
Mirabeau. Não teve dúvida, entrou, bateu à porta do consultório.
Mirabeau o atendeu e lhe deu uma amostra grátis do medicamento
que convinha a seus males. Não cobrou a consulta. E nunca mais
atendeu ninguém.
Mirabeau não exerceu a medicina. Após a morte do pai,
herdou o negócio de calçados, foi comerciante de sapatos durante
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
muitos anos. Comandou tão bem e com tal tino os negócios que
acabou dono de uma rede de sapatarias na cidade. Essa, porém, não
era a sua profissão. Sensibilidade e gosto artísticos não lhe faltavam,
Mirabeau tornou-se um artista da goiva e do pincel: escultor e pintor
admirado e respeitado, professor da Escola de Belas Artes.
DONA NORMA
Norma, mulher de Mirabeau, era a pessoa mais encantadora
deste mundo, alegre, sempre disposta a ajudar a quem lhe batesse à
porta, a animação em pessoa. Peço licença para contar apenas uma
história dela, contar um pouco de Norma.
Quem um dia ler o romance de Jorge Amado Dona Flor e seus
dois maridos, não deixe de observar o personagem, Dona Norma, que
outra não é senão a própria Norma Sampaio, copiada com maestria,
sem desprezar detalhes, pelo escritor.
Ao lado da rua Ari Barroso, no Chame-Chame, onde moravam
os Sampaio, existia uma favela, pobre, miserável, o Rancho Fundo. Os
habitantes dessa favela adoravam Norma, e sempre que precisavam
de um socorro recorriam a ela. Certa vez, Caminhão, morador do
Rancho Fundo, trabalhador do cais do porto, foi ouvido, referindo-se à
Norma: Dona Norminha é a pessoa mais porreta desta rua, fala com a
gente como se a gente fosse igual que ela, prestativa como ela só,
mulher educada está aí... filha de família rica, avô senador, não tem o
nariz levantado... Esta gente aí, apontara uns sobrados da rua, do alto
de suas rnerdacências não valem os seus cocores.
Nessa mesma favela do Chame-Chame morava seu Antônio,
conhecido como seu Antônio Cozinheiro. Naquela época, os bons
restaurantes eram raros, em geral ninguém convidava ninguém para
comer em restaurantes, convidavam para comer em luas casas, a
mulher se desdobrando na cozinha.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O Conquistador, na Barra Avenida, não chegava a ser um
restaurante, era uma bodega popular, onde o prato de resistência era
uma galinha assada. O cozinheiro, seu Antônio do Chame-Chame, não
dava a receita por nada deste mundo, não explicava como conseguia
fazer uma galinha tão dourada e tenra, tio saborosa.
Formavam-se filas na porta de O Conquistador, candidatos I tal
galinha maravilhosa, aguardavam a vez. Maridos que nunca haviam
levado as mulheres a restaurantes, as levavam na esperança de que,
vendo e saboreando o prato, com prática de Cozinha, conseguissem
reproduzi-lo. Foi o caso de Godô, poeta Godofredo Filho, gourmet pela
própria natureza, que não titubeou em levar ao O Conquistador dona
Carmem, sua mulher. Dona Carmem era conhecida como mãos de
fada no meninico de carneiro, prato difícil à beca de se fazer e que ela
fazia pra ninguém botar defeito. Mulher de olfato fino e paladar
refinado, dona Carmem desvendaria no primeiro pedaço que pusesse
à boca. Inexpugnável segredo da galinha dourada, desfazendo-se de
tão macia. Para decepção de Godofredo e de amigos freqüentadores
de sua mesa, a mestra do forno e do fogão não desvendou o segredo.
A galinha que tentou fazer no dia seguinte, em sua cozinha, ficou a
quilômetros de distância daquela de seu Antônio.
Já passava de meia-noite, chovia torrencialmente, quando
Norma despertou com a campainha tocando, gritos no portão
chamando: Dona Norminha, dona Norminha... Era a mulher de seu
Antônio, na maior agonia, gritando entre soluços: Meu marido está
doido, doido de se amarrar! Quebrou tudo dentro de casa. Me ajude,
dona Norminha, me ajude pelo amor de Deus! Mirabeau dormia a
sono solto e, mesmo que estivesse acordado, não ia resolver nada.
Norma telefonou para seu cunhado, o médico Wenceslau Veiga,
aconselhou-se. Chame uma ambulância, disse ele, receitou uma
injeção de calmante. Mas peça para o enfermeiro aplicar antes de
levá-lo, recomendou. Não vá se meter a aplicar a injeção.
Norma não chamou ambulância coisa nenhuma, conseguiu no
armário de remédios a injeção receitada e tocou-se com a pobre
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
mulher para a favela, tropeçando na escuridão, vou aliviar uma boa
alma, não disse, mas deve ter pensado.
— Boa noite, seu Antônio — foi entrando e foi dizendo, como
se nada demais estivesse acontecendo. — O que é que há, seu
Antônio?
Sentado num banquinho, no canto do quarto em desalinho,
seu Antônio levantou a cabeça:
— Boa noite, dona Norminha.
— Então, seu Antônio, o senhor, tão meu amigo e nem pra me
dar a receita da galinha, hem?
Enquanto falava, embebia o algodão no álcool, a seringa em
posição, ordenou: Arregace um pouco a manga, seu Antônio....
— Pra senhora eu dou a receita, dona Norma — disse
esfregando o braço, depois da picada da injeção. — Logo que fique
bom, andei perturbado, vou até sua casa ensinar.
Dias depois, a crise passada, seu Antônio, que era homem de
palavra, bateu à porta de Norma. Levava consigo uma panela de
ferro, pesadíssima. Um dos filhos, o mais crescido, trazia um fogareiro
a carvão. Só saiu da cozinha de Norma com a galinha pronta,
dourada, cheirando como ela só.
Naquele dia Mirabeau e a família puderam comer a galinha do
O Conquistador em sua mesa. Naquele dia e nunca mais, pois Norma
não conseguiu fazê-la sozinha. Não adiantava ter os ingredientes, a
panela de ferro, o fogão a carvão; o ponto e a maneira de mexer, sei
lá... faziam parte do mistério.
VAMOS LEVANTAR A CASA?
Jorge chamou os amigos para conosco estudarem o projeto
feito pelo jovem Gilberbet. O encontro foi na casa de Mário Cravo.
Estavam todos lá: Carybé, Mirabeau, Jenner Augusto e o próprio
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Mário. Projeto interessante, de casa ampla, largos terraços, muita
treliça, grades, casa para o clima da Bahia. Agora era botar mãos à
obra. O empreiteiro, conhecido da turma, se propôs a iniciar o quanto
antes, o trabalho ia ser demorado, a casa atual iria praticamente
abaixo. Seria preservada uma parte para habitarmos durante aquelas
férias, voltaríamos ao Rio e lá pelo fim do ano estaríamos de casa
pronta. As grades ficam por minha conta, disse Mário; eu me
encarrego de pintar os azulejos, disse Carybé; eu pinto as portas e os
basculantes de vidro, falou Jenner. Por acaso, naquela noite,
encontrava-se na casa de Mário, de quem era muito amiga, Una Bo
Bardi, que viera de São Paulo para a Bahia, contratada pelo
governador do Estado — na ocasião, Juracy Magalhães — como
diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia. Lina também deu seu
palpite: Por que não colocam no piso das escadas e nos caminhos
cacos de azulejos? Vocês podem conseguir à vontade na cerâmica do
Udo. Ele tem montes de azulejos quebrados. Tudo que foi combinado
nessa noite foi feito e muito mais.
GARRINCHA
As obras começaram, mas, como havia sido combinado, não
saímos da casa. Os meninos continuaram hospedados com nossos
amigos e nós, sem cozinheira, passamos a aceitar convites para
comer ora na casa de um, ora na casa de outro.
Como viajamos de avião, deixamos Mane Pato no Rio e sem
automóvel andávamos sempre de táxi, táxi de um só chofer, o
Cigano, um rapaz educado que estava sempre à nossa disposição.
Mas não era suficiente para nós ter apenas o carro do Cigano. Nossa
casa ficava longe de qualquer condução e a ladeira era íngreme.
Resolvemos então comprar um fusquinha de segunda mão e
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
contratamos Garrincha como motorista. Garrincha era negro retinto,
magrinho, sempre alegre e surpreendente. Vez ou outra fazíamos
pequenas viagens. Gostávamos de passear pela feira de gado em
Feira de Santana, visitar as pequenas cidades do Recôncavo, viagens
de pouco mais de uma hora que Garrincha não agüentava. Em meio
do caminho, aconteceu uma vez ele parar de repente, encostar o
carro: Tô cansado, a senhora passa pra aqui, saltou, deixando o
volante à minha disposição. Que fazer? Eu tomei a direção.
Um dia perguntei a Garrincha:
— Você tem namorada, Garrincha?
— Tenho, sim senhora — sorriu —, ela é tipo balde.
— Tipo balde?—me admirei. — Como é isso? Me explique.
— A senhora não sabe? Pois tipo balde é quando a dona é
larga em cima e fina nos quartos.
Na convivência com Garrincha e com a lavadeira Antônia,
aprendi muitas coisas do dia-a-dia do povo da Bahia. Antônia chegava
e da porta ia gritando: Ói eu! Um dia, depois de anunciada a chegada,
ela me disse: Vou sair e volto logo. Tenho que dar uma sastifa para
uma dona. Vendo que eu não entendera, riu: Eu tinha combinado ir
lavar na casa dela hoje e não posso porque vim aqui, aí vou dar uma
sastifa, repetiu, depois explicou: sastifação.
No momento de sair para dar a tal da sastifa, Antônia me
advertiu:
— A senhora precisa mandar consertar o chuíte do quarto de
passar. Ele está quebrado.
— Chuíte? Que diabo é isso?
— A senhora não sabe? — parou um momento. — É verdade.
A senhora fala estrangeiro. Pois olhe, dona Zélia, chuíte é aquele
negocinho que a gente aperta pra acender a luz. Entendeu?
Fiquei sabendo como me referir ao interruptor de luz na língua
baiana. Fiquei sabendo que falava estrangeiro.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
UM PRATO ESPECIAL
Wilson Lins, escritor, romancista, amigo de Jorge dos tempos
de rapaz, nos convidou para almoçar em sua casa. Anita, sua mulher,
mãe de três filhos, era a chamada verdadeira dona de casa, os
almoços em casa de Wilson eram famosos. A paixão de Anita, no
entanto, era o jardim; semente plantada por ela vingava, as flores de
seus potes nas janelas tinham um viço especial.
Anita nos apresentou no almoço desse dia um prato diferente,
não era comida baiana. Que coisa é essa que você fez?, estranhou
Wilson. Pois prove e me diga, respondeu Anita. Tratava-se de um bolo
de arroz, com uma abertura no centro, completamente coberto de
queijo Catupiry que escorria, brilhante, ainda quente; camarões
graúdos, ensopados em molho de tomate, saindo do centro e
espalhados em torno, prato bonito de se ver, apetitoso e gostoso.
Aprovei a novidade com entusiasmo. Jorge ficou reticente, pois
esperava uma comidinha baiana e, além do mais, detesta queijo
Catupiry.
No dia seguinte fomos comer na casa de Giovanni Guimarães,
colega de colégio interno de Jorge. Giovanni e Jacy, nossos
compadres, somos padrinhos de Vânia, a segunda filha do casal.
Jacy nos recebeu em seu apartamento, no centro da cidade.
Foi logo avisando: Hoje não fiz comida baiana, mas preparei, eu
mesma, um prato muito especial para vocês. Trouxe para a mesa o já
conhecido bolo de arroz, coberto de Catupiry e os camarões com
tomate.
O jantar, no dia seguinte, seria na casa de Godofredo Filho.
Hoje vamos, com certeza, comer meninico de carneiro. Dona Carmem
sabe que gosto.
Dona Carmem colocou sobre a mesa o manjado bolo de arroz,
coberto de Catupiry e os camarões com tomate.
Norma nos chamou para jantar, na noite seguinte. Espero que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Norma não me dê pra comer o tal de arroz com Catupiry, já não
agüento mais, disse Jorge.
Sobre a mesa dos Sampaio foi posta a surpresa anunciada
minutos antes por Norma: bolo de arroz coberto de Catupiry e
camarões com tomate.
Com a liberdade que tinha com a dona da casa, Jorge quis
saber daquela novidade que o impedia de matar as saudades dos
pratos baianos.
— Pois é um prato muito caro — foi dizendo Norma —, um
Catupiry inteirinho e o camarão do preço que está... Você não gostou,
compadre?
— Eu só quero saber onde foi que você desencavou essa
receita.
— Desencavei? Desencavei coisa nenhuma! Paguei caro para
aprender. Tomei um curso com uma professora muito da porreta que
veio de São Paulo.
— Anita, Jacy e Carmem também tomaram esse curso?
Somente então Norma entendeu tudo.
— Mas não aprendi a fazer só esse prato, não se assuste,
compadre, aprendi outros, vou te convidar para um vol-au-vent de
galinha. Que tal?
— Que tal? Eu prefiro uma moqueca de siri-mole, um
sarapatel, um xinxim de galinha, um efó... Deviam proibir essas
professoras de fora dar aulas às senhoras baianas. Vão estragar a
nossa culinária.
CAMAFEU DE OXOSSI
Camafeu de Oxóssi nos deu o recado de Mãe Senhora: que
fôssemos ao terreiro vê-la, queria nos dar um presente.
Amigo do peito, capoeirista, tocador de berimbau, compositor,
Camafeu comerciava produtos africanos numa barraca do Mercado
Modelo: vendia colares de contas, com as cores dos santos, anéis,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
pulseiras e mil e uma coisas de candomblé, recebidos diretamente da
África.
Irmão de santo de Jorge, ele também de Oxóssi, também Obá
do terreiro do Axé Opô Afonjá, comandado por uma das mais
respeitadas mães-de-santo da Bahia, Mãe Senhora. Casado com
Toninha, doce e bela mulata, Camafeu era um bom amigo.
Camafeu nos deu o recado em sua barraca no mercado
quando fomos lá comprar colares de santo para levar de presente a
amigos do Rio. Aproveitando a ida ao mercado, almoçamos no Maria
de São Pedro, antigo restaurante popular, onde se comia
divinamente. Iríamos no fim da tarde, desse mesmo dia, visitar Mãe
Senhora.
HORA DE LAZER
Lidinha veio ao nosso encontro: Mãe Senhora está assistindo à
novela... está pra terminar. Neta da mãe-de-santo, a mocinha
conhecia bem os hábitos da avó, que não gostava de ser importunada
na hora da novela, um de seus raros momentos de lazer. Ela gosta
muito de ver a Brandines, e daqui a pouco a gente já pode entrar,
explicou Lidinha, tentando nos deter um momento mais no terreiro. A
Brandines à qual Lidinha se referia era a novela O Cara Suja, de muito
grande sucesso na ocasião. A protagonista chamada por Sérgio
Cardoso, o galã italiano da trama, de Biondina por ser lourinha, era,
no entender da mãe-de-santo, a Brandines. Como eu também
gostava de assistir à novela da tal Biondina, resolvemos entrar, eu
assistiria, com prazer, àquele fim de capítulo.
Ao nos ver, Mãe Senhora sorriu: Entrem... com um gesto de
mão, lhe dissemos que ficasse tranqüila, esperaríamos. Sentada a seu
lado, a filha-de-santo Stela levantou-se e nos ofereceu cadeiras para
sentar.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Mãe Senhora não desgrudava os olhos da tela, não perdia um
só movimento dos atores, dava palpites, ralhava: Não vá atrás da
conversa dele, Brandines, olha que tu vai te dar mal,., advertia. Ora!
Tá! Brandines acabava de dar com os burros n'água. Agora chora...
não quer ouvir conselhos... Fim do capítulo, entravam os comerciais.
Mãe Senhora, ainda sob a emoção da última cena, suspirou: Agora só
amanhã.
Mãe Senhora foi logo nos passando um sabão: Então, vocês
chegam e nem para vir me ver, salvar seus santos... E preciso que eu
mande recado. Se eu não chamasse, nem vinham. Pois olhem, tenho
aqui uma pitangueira para o jardim de vocês. Já soube que estão
plantando muito e precisam ter um pé de planta daqui do terreiro.
Vou dar a vocês uma pitangueira já crescidinha. Chamou o menino
Reginaldo, pediu-lhe que trouxesse a pitangueira separada por ela. E
até quando ficam por aqui? Não esqueçam que antes de voltarem
para o Rio temos que fazer o bori, já está na hora. Carybé mais dona
Nancy podem fazer no mesmo dia. Eu mando avisar.
Antes de nos despedirmos ela quis notícias de seu Paulo e de
dona Simone. Referia-se a Jean-Paul Sartre e a Simone de Beauvoir
que a haviam visitado em 1959. Na ocasião ela jogara os búzios para
ambos e a resposta fora: Seu Paulo é filho de Oxóssi, como Jorge, e
dona Simone é filha de Oxum, como Zélia. Impressionada, Simone de
Beauvoir ouvira de Mãe Senhora que o santo dela era o mesmo que o
de Zélia e que Zélia vai ser sua mãe pequena. Vivaldo Costa Lima,
que estava conosco, traduziu tudo ao pé da letra, deu mil explicações
sobre o que significava ser mãe-pequena. Não havia dúvida, sendo eu
a mãe-pequena de Simone, daí por diante ela deveria me obedecer,
prestar conta de seus atos, não deve fazer nada sem consultar Zélia,
afirmou Vivaldo. Pensamos que o casal fosse rir, como nós rimos, mas
qual! Mostraram-se intrigados com o que viram e ouviram.
Depois da visita ao Brasil, todas as vezes que nos
encontramos, na Europa, Simone e Sartre pediam notícias de Mãe
Senhora, mulher inteligente e sábia, que nunca iriam esquecer. E
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Vivaldo? Que é feito dele?, perguntavam.
STELA DE OXOSSI
A jovem filha-de-santo, Stela, moça esguia, retraída, séria,
atenta a tudo, a eficiência em pessoa, era a eleita de Mãe Senhora
que descobrira na moça as qualidades necessárias para substituí-la
no comando da casa no dia em que faltasse. Mãe Senhora a
preparava passando-lhe os ensinamentos que recebera de Mãe
Aninha.
Senhora não se enganara. Mãe Stela de Oxóssi há muitos anos
reina no terreiro do Axé Opô Afonjá, governa com firmeza e
competência o maior terreiro da Bahia.
O MISTERIOSO VULTO
Devíamos fazer o bori uma vez por ano. O bori lava a cabeça,
limpa-nos dos males de um ano inteiro. Em geral tínhamos, para essa
cerimônia, a companhia de Nancy e Carybé, de Zora e Antônio Olinto,
velhos amigos. Olinto também, como Jorge e Carybé, tinha um posto
no terreiro de Mãe Senhora.
A cerimônia do bori durava uma noite inteira. Chegávamos à
tardinha. Epifânia, filha-de-santo do terreiro, nos dava um banho de
folhas, vestíamos batas e saias rodadas, brancas, e assistíamos, à
noite, ao sacrifício das galinhas e à preparação da comida feita com a
galinha no dendê, farinha, quiabos... Parte daquela comida,
acompanhada de preces em língua nagô, iria lavar nossas cabeças e
parte seria oferecida aos orixás.
Em quartos separados, homens num, mulheres noutro,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
dormíamos sobre uma esteira de palha no chão de cimento. Sobre
nossas cabeças era colocada a comida, sustentada por uma faixa que
se transformava em torço. Uma luz fraca, quase nenhuma, e o
silêncio.
Peço licença para me adiantar e contar o que aconteceu
comigo semanas depois da visita à Mãe Senhora, na noite em que
apenas Jorge e eu fizemos o bori, já que nem os Carybé, nem os
Olinto puderam nos fazer companhia.
Pela primeira vez fazia o bori sozinha. Deitada sobre a esteira,
mesmo mal acomodada, com o peso da comida amarrada na cabeça
e seu cheiro ativo, adormeci em seguida. Não sei quantas horas
dormi. Acordei durante a noite e vi, de pé, encostada na porta de meu
quarto, a uns três metros de minha esteira, um vulto de mulher, alta,
magra, toda de branco, os braços cruzados. Pensei: Certamente Mãe
Senhora mandou que Stela ficasse a noite toda aí de pé, de sentinela.
Não vendo razão para esse sacrifício, resolvi pedir à moça que fosse
dormir. Forcei uma tosse. Ela nem se mexeu. Tossi novamente, nada.
Será que estou vendo direito?, pensei. Será que é uma pessoa mesmo
ou uma sombra? Resolvi sentar na esteira, quem sabe ela se
manifestaria? Sentei na esteira. Lá estava ela, continuava ali parada.
Resolvi então me levantar, falar-lhe. Fiquei de pé, andei em sua
direção. A medida que me aproximava, ela foi desaparecendo. Junto
da porta não havia ninguém. Deitei-me novamente, olhei, o vulto
havia desaparecido.
O dia apenas raiara, os gaios começavam a cantar, quando
Mãe Senhora veio tirar o torço de minha cabeça.
— Dormiu bem, minha filha?
— Quase não dormi, Mãe Senhora. Vi um vulto encostado
naquela porta.
— Um vulto? E como era esse vulto?
Expliquei-lhe tudo que havia acontecido e ela me perguntou:
— Teve medo?
— Nem um pingo. Fiquei bastante calma. Mãe Senhora deu
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
uma gargalhada:
— Pois, minha filha, tu viu a alma de Mãe Aninha. É muito raro
ela aparecer... Quer dizer que Mãe Aninha veio te visitar... Parabéns...
— Falava e ria satisfeita.
Mãe Aninha fora a fundadora do Axé Opô Afonjá, adorada,
respeitada.
— Sim, senhora! Agora vamos falar com ela.
Assim dizendo, me levou pelo braço para o peji de Xangô, num
quartinho de frente. Diante do altar do santo, me fez ajoelhar junto
dela. Em seguida, jogou um punhado de búzios que se espalharam
sobre uma toalhinha branca que cobria uma mesinha: braços
levantados, olhos para o alto, Mãe Senhora começou a falar,
conversava com o santo em iorubá, falava e sorria. De repente virou-
se para mim: Tu não está entendendo nada, não e? Voltou a olhar
para o alto: Ela não está entendendo nada, por isso eu vou falar em
português. Jogou novamente os búzios e foi lendo, de acordo com a
posição em que eles haviam caído: Muitas felicidades para você,
nunca ninguém vai poder te fazer mal, tudo que for atirado contra tu
vai voltar para cima de quem quer te fazer mal. Está satisfeita?
Volvendo novamente os olhos para o alto, disse: Muito bem, a
conversa está muito boa mas eu tenho que cuidar de minhas
obrigações. Vamos parar por aqui.
Eu estava verdadeiramente fascinada com a intimidade de
Mãe Senhora com o egum. Incrédula de formação, sempre em busca
do desconhecido, procurando descobrir os mistérios da vida e os
mistérios da morte, indagando sem nunca encontrar uma resposta
convincente, nessa madrugada, no terreiro de Mãe Senhora, senti-me
profundamente comovida, encantada sem no entanto dar por
terminadas as minhas indagações sobre os mistérios da vida e os
mistérios da morte.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
LIGA PELA RESTAURAÇÃO DOS IDEAES
Norma telefonou me convidando para fazer um curso com ela.
Chegara à Bahia uma japonesa, professora de arranjos florais,
ikebana, São apenas três aulas, argumentou, você tem tempo de
sobra, só vai para o Rio daqui a dez dias... Olha aqui, vocês vêm
almoçar com a gente, vou fazer uma galinha de cabidela para o Jorge,
quero tirar a má impressão dele do último jantar. Venham cedo,
Mirabeau tem uma surpresa para vocês.
Da gaveta de um armário de seu ateliê, Mirabeau tirou um
caderno de capa dura, bastante velho, as folhas amareladas pelo
tempo. Aqui está, foi dizendo e rindo, o que eu queria mostrar a
vocês. Numa arrumação da papelada, encontrei isto. Estendeu-me o
caderno: Leia, Zélia, leia em voz alta, Jorge vai gostar.
Logo na primeira página, com caligrafia caprichada, estava
escrito: Este livro fica destinado à cópia dos trabalhos apresentados
pelos sócios, lidos nas sessões da Liga pela Restauração dos Ideaes.
Assinado, Cândido Colombo Cerqueira — Presidente. Bahia, 2 de Julho
de 1926.
Achei graça, essa tal liga fora fundada a 2 de julho,
exatamente no dia de meu aniversário, quando eu completava dez
anos.
— Você lembra dessa Liga, Jorge?
— Tenho uma vaga idéia — disse.
— Vá mais adiante — ria Mirabeau.
Mirabeau, sempre que contava uma coisa divertida, ria e
falava ao mesmo tempo, muitas vezes difícil de ser entendido. Virei a
página:
Liga pela Restauração dos Ideaes.
Padroeiro: Santo Estanislau Hostha.
Fins: Elevação moral, phisica e intellectual
Meios: Practica do Catholicismo — Amor e Caridade —
Serenidade—Alegria—Optimismo—Domínio de si mesmo e das
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
paixões.
Lemma: Sursum!!!
Parei:
— Sursum? O que significa isso?
— Talvez uma saudação — disse Mirabeau —, continue a
leitura.
Deveres: Castidade — Obediência — União — Cumprimento
dos deveres sociais — Defesa mutua — Estudo.
Prohibições: Tudo o que servir para deprimir e rebaixar em vez
de levantar para os ideaes, como leituras más, conversas
degradantes e indecorosas, brigas e contendas.
Direção: Confiada a um Presidente auxiliado por um Censor e
pelo Conselho dos sócios fundadores, todos subordinados a um
Director espiritual.
Diretor Espiritual: Pe. Camillo Torrend S. ].
Reuniões: Podendo ser cada semana, ou duas vezes por mez
consta de
l) Uma leitura de um capítulo da Imitação de Christo,
comentada depois por algum sócio ou pelo Director Espiritual.
Depois de vários itens como tema das reuniões, antes de
encerrar, havia ainda uma advertência:
Infracção: Toda a infracção do regulamento, especialmente a
de fallar de assumptos deprimentes será punida com uma
reprehensão dada pelo Presidente ou pelo Censor (Antônio Vieira de
Mello) ou pelo Director informado, e o delinqüente longe de se
entristecer com a reprehensão e de fomentar pensamentos contra
aquelle que o reprehende deverá mostrar-se agradecido e offerecer
uma communhão por elle. Em caso de recidiva poderá ser excluído da
liga ou suspenso.
Enquanto eu lia, Jorge e Mirabeau riam, comentavam,
divertiam-se.
— Você fez parte dessa liga moralista, Mirabeau?
— Certamente fiz, mas veja: teu marido foi sócio fundador,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
leia mais adiante o discurso dele. Um discurso porreta.
— E eu fui sócio fundador dessa liga? Fiz discurso? A gente faz
cada coisa...
Eu não aprendo nunca. Levo sempre ao pé da letra as graças,
as ironias de Jorge:
— Você não sabe? Pois está tudo aqui, veja, não estou
inventando nada, assinado e com data. Você ia completar quatorze
anos.
Discurso pronunciado pelo seu auctor Jorge Amado, em sessão
ordinária da Liga para a Restauração dos Ideaes em 1926.
A tarde morre.
No horizonte o sol entrega a terra à lua, a Jacy dos índios, a
deusa dos poetas.
Numa cabana de um camarada agoniza um homem.
Um padre ao seu lado pede-lhe que se confesse:
— Mas padre — diz o moribundo — eu sou um desgraçado,
pequei em demasia, Deus não me perdoa,
— Perdoa, filho — diz o padre e reza uma jaculatória por este
coração desanimado.
Mas o desanimo é grande e a morte o leva enquanto pronuncia
esta blasphemia:
— Pequei muito, se Deus perdoasse seria injusto. È un facto
que todos os dias acontece aos milhares.
E o desanimo um dos inimigos com quem temos de travar
mais aberta guerra.
....................................................................................................
....
As celebres injecções tão bem aplicadas pelo Padre Torvend e
Padre Cabral, os elixirs do Padre Arraino, as communhões freqüentes,
a confissão, a missa diária, congregam-se para impedir o desanimo.
Isto no colégio, mas lá fora, nas ferias é tão fácil desanimar!... Como
vence-lo?
O problema está resolvido; uma nova cohorte de guerreiros
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
entra no campo de batalha. É a Liga para a Restauração dos Ideaes. E
nós, seus membros não só não devemos, mas não havemos de
desanimar. E um dever. Se desanimarmos aonde irá parar o nosso
Sursum!!!?
Paro por aqui, embora o discurso não pare por aqui, ainda vai
longe. Acabo de pedir licença ao escritor Jorge Amado para incluir em
meu livro as palavras do aluno do colégio jesuíta, o menino Jorge
Amado que encerrou seu discurso com as seguintes palavras: Se
abusarem-se com minhas disconessas palavras, vinguem-se
exercitando-se na paciência.
Sempre ouvi dizer que padre Cabral, do Colégio Antônio Vieira,
ao ler a composição de um aluno (Jorge Amado) sobre o mar, teria
profetizado que o autor daquelas páginas seria, um dia, um grande
escritor. Fico conjecturando, agora, ao copiar o discurso do tal menino
onde o padre Cabral é citado: não teriam sido essas páginas, na
realidade, as inspiradoras do padre?
IKEBANA
As aulas que tomei, levada por Norma, não têm conta. Cursos
que me valeram e cursos que apenas me divertiram: por exemplo, o
de Ikebana, aulas de arranjos florais, me valeu. Mesmo com poucas
flores, muitas vezes pude enfeitar minha casa e, numa viagem que
fizemos no navio Brasil Maru, para os Estados Unidos, ganhei um
prêmio num concurso de arranjos de flores.
Nunca vou esquecer do curso multiponto da Elgin, na Calçada,
o fim do mundo. Tínhamos que tomar várias conduções, perdendo um
tempão no vai-e-vem. Até que foi divertido, Norma aprendeu um
bocado de pontos e bordados, mas eu não tive paciência, o pouco
que aprendi esqueci em seguida.
Norma só não conseguia uma coisa comigo: arrastar-me a
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
enterros e a velórios. Tendo grande consideração pelas pessoas que
passam a noite velando seus mortos, Coisa mais triste, não deixava
de comparecer quando podia e às vezes até quando não podia. Era
saber da morte de algum conhecido lá se ia ela para o enterro ou
para o velório, levando variado farnel: sanduíches, café, biscoitos,
para confortar um pouco os que iam passar a noite em claro.
Certa vez, passávamos por um enterro de anjinho, enterro
pobre, quatro meninos segurando as alças do caixãozinho azul, dois
ou três adultos, entre eles Norma com um ramo de flores. Qual não
foi nossa surpresa ao reconhecermos entre os meninos que
carregavam o esquife o nosso João Jorge. Ele havia sido arrebanhado
por Norma para essa piedosa tarefa. O coitadinho, era tão pobrezinho
que não tinha uma única flor, nem mesmo quem lhe segurasse a alça
do caixão, explicou ela.
Nosso JARDIM
Dessa vez, sim, com as formigas afastadas por Zuca, as
plantas cresciam. Os caminhões de adubo, misturados à terra, deram
resultado surpreendente. A pitangueira de Mãe Senhora fora plantada
por Zuca, ao lado de um pé de fruta-pão. Essa pitangueira jamais
daria frutos, não receberia o sol necessário, vivendo à sombra da
frondosa árvore. Não deu frutos, mas vive até hoje.
Ao ver aquele mundo de mudas, plantadas uma ao lado da
outra: mangueiras, cajazeiras, pitangueiras, jambeiros, jaqueiras,
caramboleiras, além de outras árvores não frutíferas, Carybé foi
taxativo: Quando isso tudo crescer, para Jorge ir ao fundo do jardim
vai ter que ir abrindo picada a facão. Isso só não aconteceu porque
nem todas as plantas vingaram na sombra e muitas morreram por
descuido do jardineiro. Assim mesmo, o bosque ficou espesso. Tirou
nossa vista sobre o Rio Vermelho, mas ficou lindo.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
REMINISCÊNCIA
De meu terraço diviso, entre o arvoredo, Zuca que se
aproxima. Cabelos grisalhos, o mesmo sorriso de sempre. A tiracolo,
pulverizador com veneno de matar formigas.
— Matando uma formiguinha, Zuca? — pergunto-lhe. Antes de
responder, educadamente como sempre, ele diz:
— Bom dia, dona Zélia. Como passou a senhora de ontem pra
hoje? E o doutor? Ainda está dormindo? Tudo bem, não é? Graças a
Deus! Choveu muito e as danadinhas das formigas depois da estiada
costumam aparecer... lá embaixo encontrei um bocado delas. Até
amanhã não vai ter mais nenhuma, se Deus quiser.
Fico lembrando dos primeiros tempos, Jorge na peleja com
Zuca:
— O Zuca, trouxe estas mudas para você plantar.
— Muito bem, doutor. Vamos plantar.
— Pensei plantar neste lugar para substituir as que morreram.
— Pode deixar, doutor, amanhã eu planto.
— Amanhã? Por que não hoje?
— Deixa ver, doutor: hoje é quarta-feira, quinta, sexta... tá
bom na sexta-feira?
— Não está não, Zuca, eu quero que plante hoje mesmo.
— Pode ser de tarde, doutor? Foi aí que me intrometi:
— De tarde não, Zuca. Por que de tarde? Tem que ser agora...
já!
Zuca sorriu, balançou a cabeça:
— Dona Zélia é tão interessante... (Queria ele dizer, tão
chata?)
Durante esses anos que Zuca nos serve, todas as vezes que
viajávamos deixando o jardim aos cuidados dele, às vésperas de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
nosso retorno, estivéssemos onde estivéssemos, recebíamos uma
cartinha de nosso jardineiro. Elas começavam sempre da mesma
maneira: Dona Zélia mais doutor Jorge, bom dia. Espero em Deus que
doutor Jorge mais dona Zélia estejam gozando boa saúde. Por aqui
vai tudo mais ou menos. Este ano choveu muito, muita água, afogou
um bocado de planta... Ou então, depois do preâmbulo, até as
novidades da carta: Por aqui vai tudo mais ou menos. Este ano a seca
foi demais. Não choveu nada. Um bocado de planta secou...
Certa vez, às vésperas de uma viagem nossa à Europa,
visitamos uma fazenda no estado do Rio. Qual não foi nossa surpresa
ao sabermos que nessa fazenda havia um bosque de lichizeiros.
Entusiasmada, pedi aos proprietários uma muda. Com muito prazer,
disse José Amádio, dono da fazenda. Mudas de lichi é o que mais há.
A fruta cai, o caroço brota... Chamou um empregado, encarregou-o de
preparar a muda para que eu levasse.
Conheci a fruta na China, não sabia que podia encontrá-la no
Brasil. Plantaria o lichizeirinho, com todo o capricho, em nosso jardim.
Viajei do Rio de Janeiro à Bahia levando no colo a latinha com a
planta.
Mal botei os pés em casa, chamei Zuca:
— Está vendo esta plantinha que eu trouxe do Rio, Zuca? E
uma planta rara, no Brasil não existe. Ela dá a fruta mais deliciosa do
mundo. Vamos plantar e cuidar dela com todo o carinho, entendido,
Zuca?
Zuca olhou a muda, não disse nada. Levei-o para o melhor
lugar que encontrei no terreno, para plantá-la. Comigo Zuca não
regateava dia nem hora de plantar, ele já havia descoberto que dona
Zélia era uma pessoa muito interessante e não teimava. Consultei-o:
— Este lugar está bom?
— Está mais ou menos... podia ter um pouco mais de sol...
— Pois é aí mesmo que vamos plantar minha plantinha rara.
— Voltei a frisar planta rara para que ficasse bem gravado em sua
cabeça que ele não podia facilitar, devia cuidar dela com todo o
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
carinho, durante nossa ausência.
Ordenei-lhe que fizesse a cova bem profunda e
exageradamente larga, cercasse a muda de terra vegetal e adubo, e
Zuca só obedecendo. Pronto, lá estava ela, plantadinha. Com terra
boa e tanto adubo ela cresceria rapidamente, daria frutos, mataria
Carybé de inveja. Ele vivia se vangloriando da maravilha de seu
pomar, atirando em nossas caras frutas e mais frutas que colhia. Lichi
ele não tinha.
Fiz ainda uma recomendação a Zuca antes de partir, mais do
que uma recomendação, uma ameaça:
— Cuide direito de minha planta, Zuca. Quando eu voltar, se
você vier com a conversa de que a planta morreu afogada ou de
sede, eu te mato. Entendeu bem? Eu te mato.
Zuca riu:
— Dona Zélia é tão interessante... deixa comigo, pode deixar,
dona Zélia, eu cuido dela.
Dessa vez nossa viagem foi longa, passamos vários meses
fora. De vez em quando pensava no meu lichizeirinho: Estaria
crescido? Teria morrido?
Ao chegarmos ao Hotel Tivoli, em Lisboa — nosso endereço em
Portugal —, na véspera de nosso retorno ao Brasil encontrei na
portaria uma carta dirigida a mim. Pelo envelope e pela caligrafia,
identifiquei Zuca. Olha aqui, Jorge, disse, desta vez ele endereça a
carta a mim. Será que houve temporais ou seca na Bahia! Abra o
envelope, vamos ver o que ele diz, apressou-me Jorge. A carta, como
sempre, começava assim:
Dona Zélia mais doutor Jorge, bom dia. Espero em Deus que
tudo tenha corrido bem com dona Zélia mais doutor Jorge. Por aqui,
graças a Deus tudo tem corrido muito bem. Tem chovido pouco e o
sol não está muito forte. Tenho uma novidade que vai agradar dona
Zélia: aquela planta dela, rara, está uma beleza. Cresceu muito e já
deu uma pitanga. Sem mais...
Até hoje, trinta e tantos anos se passaram, Zuca não se
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
conforma que dona Zélia, pessoa tão sabida, tenha comprado gato
por lebre. Com tantas pitangueiras no jardim ela não viu o que
qualquer um podia ver: a plantinha que ela trouxera do Rio de
Janeiro, no colo, com tanto cuidado, era uma pitangueira e não a
árvore rara da qual ela fizera tanto alarde.
Há pouco, conversando com Zuca à sombra da mangueira,
junto ao terraço, ele recordou o fato e isso deu-me a idéia de narrá-lo
agora, já, não deixar para mais tarde ou para amanhã ou depois de
amanhã, no velho sistema do Zuca. Não fosse eu a pessoa tão
interessante...
RUFINO
Pelas mãos de Wilson Lins, chegou Rufino. Negro, alto, forte,
jovem, bem-apessoado, sorriso aberto.
— Este é Rufino — apresentou-o Wilson. — Mestre-de-obras,
ele tem trabalhado para mim. A especialidade de Rufino é muro de
arrimo. Como vocês vão precisar de um muro de pedras para
agüentar a terra da frente, achei que com Rufino vocês vão estar bem
servidos.
Realmente, tínhamos um problema sério e caro a resolver. A
casa ficava no alto de um barranco e seria preciso levantar uma
espécie de muralha para sustentar tanta terra: obra que ia nos custar
um dinheirão.
Contratado, Rufino apareceu com um grupo de pedreiros para
fazer o serviço. Os pedreiros trabalhavam muito e Rufino só olhava.
— Você não trabalha, não, Rufino? — perguntou-lhe Jorge um
dia, ao vê-lo de braços cruzados.
— Tenho que fiscalizar, doutor.
Depois do paredão pronto, dinheiro recebido, Rufino continuou
aparecendo, mesmo sem ter nenhuma função na obra. Recebera
bastante e enquanto não gastasse o último tostão, não precisava se
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
preocupar em arranjar outro trabalho. Gostara da atmosfera da casa,
aparecia apenas para se divertir, fazendo camaradagem com nossos
amigos, Carybé, sobretudo, que lhe dava muita corda.
Rufino tornou-se um agregado da casa e, no correr dos anos,
até hoje, volta sempre, o sorriso aberto, a simpatia estampada no
rosto:
— Tudo bem, Rufino?
— Tudo mais ou menos.
— Mais ou menos? Então não está bem?
— Saí há pouco de casa, dona Zélia, deixei as brasas vivas no
fogão, um caldeirão de água fervendo, nem um grão de feijão
dentro... as crianças em volta olhando a água ferver, todos de boca
aberta assim — imitava as crianças de boca aberta. Na vez seguinte:
— Tudo bem, Rufino?
— Tudo mais ou menos.
— Mais ou menos? Então não está bem?
— A minha mais velhinha foi subir numa árvore para colher
uma manga, estava com fome, teve tontura, caiu e quebrou o braço...
Então eu vim pedir socorro a doutor Jorge e à senhora.
Ao ver Rufino chegar, já sei que vem problema. Ele aprendeu a
ser gentil, sabe nos conquistar. Nos últimos anos, ele nunca chega de
mãos vazias: passa antes por um matagal perto de sua casa e colhe
flores, traz-me grandes ramos de flores. Só depois despeja seus
males. Às vezes o aconselho a procurar Wilson Lins, que se livrou das
suas facadas nos passando a bola.
Sabendo que Jorge adorava teiú moqueado, um belo dia Rufino
resolveu tocaiar um que costumava aparecer no seu terreiro. Matou o
teiú, e sua mulher, que é cozinheira, dispôs-se a prepará-lo. Ele então
apareceu.
— Tudo bem, Rufino?
— Tudo bem. Cacei um teiú para doutor Jorge, sei que ele
gosta, agora estou precisando de um dinheirinho emprestado (o
dinheiro que pede é sempre emprestado, nunca dado, embora jamais
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
tenha a intenção de devolvê-lo) para comprar os temperos. A patroa
vai preparar.
Meio-dia em ponto, Rufino iniciou a subida da ladeira da rua
Alagoinhas, um tabuleiro na cabeça, o teiú moqueado com seu
perfume marcando presença.
Sem conhecer as habilidades culinárias da mulher de Rufino,
sem saber como seria esse teiú, por via das dúvidas, preparei uma
galinha ao molho pardo para completar o menu. Tínhamos nesse dia
um convidado para o almoço: Antônio Celestino, português radicado
no Brasil, vivendo desde jovenzinho na Bahia, casado com baiana, pai
de três moças. Celestino era alto funcionário do Banco Econômico,
amigo dos artistas da Bahia, crítico de arte. Eu estava sem saber o
que Celestino ia achar do teiú de Rufino, o que ia dizer, piadista
inveterado, qual a graça que iria inventar para acabar com nosso teiú.
No tabuleiro de Rufino o lagartão dourado cheirava. Ele havia
gasto o dinheiro que levara para o tempero, não fizera economia:
com o teiú vinham batatas douradas, ovos duros, pimentão, tudo
muito bem-arrumado. Quem pensar que português não gosta de teiú,
se engana. Celestino não tugiu nem mugiu, entrou direto no lagarto,
comeu de lamber os beiços, Eu provava teiú pela primeira vez e
confesso a minha desconfiança. Pena ter sido pouco, não lembro ter
comido nada tão delicioso. Se soubesse que você ia gostar tanto de
teiú, Celestino, não teria te convidado ou teria me servido antes,
pilheriou Jorge ao vê-lo repetir o prato, limpar os ossinhos.
Rufino descobriu tarde a sua profissão, a que lhe dava prazer:
figurante de cinema. Durante as filmagens de Dona Flor e seus dois
maridos, aqui na Bahia, Jorge pediu a Bruno Barreto, que dirigia o
filme, um lugar de figurante para Rufino. Ele chegou até a trabalhar,
quer dizer, fazer força carregando coisas, levantando pesos, durante
as filmagens, além de aparecer em várias cenas. O que recebeu em
dinheiro não lhe deu independência, continua, como sempre, a trazer
flores, a dar facadas.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
As OBRAS DA CASA
O interesse de nossos amigos baianos pela obra da casa era
enorme, acompanhavam passo a passo as demolições e as paredes
levantando... Todo mundo dando palpites, todos ajudando.
Lev Smarchewski fazia parte da turma de artistas e foi trazido
um dia por Carybé. Arquiteto, russo de nascimento, tão brasileiro
quanto um brasileiro nato, casado com Quinquinha, baiana de família
tradicional, pai de vários filhos, homem dos sete instrumentos. Lev,
na ocasião, debruçava-se sobre desenhos de automóveis de corrida,
montara um para ele próprio. Também construtor de barcos a vela,
Lev fazia barcos capazes de atravessar o oceano, desenhava móveis,
possuía fábrica de móveis e sobretudo era pintor, bom pintor.
De mangas arregaçadas, Lev chegou com Carybé, disposto a
dar a sua contribuição na reforma da casa. Vira e estudara a planta
nas mãos de Gilberbet, tomara nota das medidas da sala principal,
nos oferecia agora fazer os móveis. Gostamos dos desenhos que
trazia, era um privilégio ter móveis desenhados por Lev.
Carybé trouxera, nessa manhã, o desenho do portão de ferro,
com pássaros e frutas, uma beleza como só Carybé sabia fazer. Ele
próprio falara com Udo Knoff, o alemão dono da cerâmica, e sem
nenhum problema conseguira os cacos de azulejo para colocar nas
escadas e nos passeios. Homem requintado, Udo era amigo dos
artistas da Bahia, sua cerâmica era utilizada em todas as casas de
bom gosto.
A Yemanjá vermelha, de madeira, de Mário Cravo, estava à
espera que fosse feito o laguinho no jardim. A bela sereia ficaria no
centro, refletiria na água. Nesse lago seriam colocadas plantas
aquáticas, nenúfares, conhecidas na Bahia como baronesas, haveria
sapos, muitos sapos.
O entusiasmo de Jorge, inventando sempre novidades para a
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
casa, era tão grande que não tinha vontade de voltar para o Rio,
ficava sempre adiando os compromissos que o esperavam lá, e onde
os meninos já se encontravam desde o início das aulas. Tínhamos
esperança de que antes de terminar o ano a casa estivesse pronta.
Cerca de trinta operários trabalhavam de manhã à noite, a toda hora
chegava material. Jorge e Carybé ali, conferindo tudo. Gilberbet, no
momento, dividia o trabalho na casa com os preparativos para seu
casamento. Ele pensara até em adiar, mas Sônia batera o pé,
casamento não se adia.
O apartamento que possuíamos no Hotel Quitandinha, onde
haviam passado sua lua-de-mel João Gilberto com Astrud e Glauber
Rocha com Helena Ignês, abrigaria ainda um casal de noivos:
convidamos Gilberbet e Sônia para passar a lua-de-mel lá. Enquanto o
arquiteto estivesse ausente, Carybé tomaria da batuta, dirigiria a
obra.
MAUS PRESSÁGIOS
Mais do que eu, Jorge se afligia com a morosidade da obra na
Bahia, não via a hora de sair do Rio de Janeiro.
Andávamos tristes com a morte do Coronel. Seu João morrera
quando menos esperávamos, deixando-nos desolados. Detalhes sobre
o seu falecimento já narrei em livro anterior (Chão de meninos),
poupo-me agora de recordá-los novamente.
Estávamos inquietos com a situação política do Brasil. Víamos
as coisas malparadas. Nosso mau pressentimento se agravara depois
de termos participado de uma reunião, convocada pelo presidente
João Goulart, no apartamento de Di Cavalcanti, no Rio, na qual o
presidente — empossado a duras penas depois da renúncia de Jânio
Quadros — falou a um grupo de intelectuais, dizendo de seu
otimismo, de sua segurança, contando que nomeara novos oficiais,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
de sua confiança, reformara comandantes e generais, inclusive seu
chefe do Estado-Maior, marechal Castelo Branco.
João Goulart ligara-se a movimentos de esquerda, dando
ouvidos a sectários e dogmáticos, enfrentando os militares com
planos de reformas, afastando de seu governo comandantes e
generais, apoiando passeatas gigantescas com faixas provocativas,
comparecendo e falando em comícios... Ele não se dá conta de que
está forçando uma volta atrás?, comentara Jorge, ao ver anunciado
um comício monstro na Central do Brasil. Ele está cutucando vespeiro
com vara curta, respondi.
Segundo os que — inclusive nós — já haviam sofrido na
própria carne dolorosos retrocessos políticos, João Goulart marchava
a passos largos para a sua deposição, para a implantação de mais um
regime totalitário, de repressões, de censura, de violação dos direitos
do homem em nosso país.
Com esse espírito de preocupação, viajamos de muda para a
Bahia, no final do ano de 1963 para 1964.
MANÉ PATO NOVAMENTE NA ESTRADA
Dessa vez viajávamos para ficar. Os meninos já se
encontravam na Bahia havia um mês, seu João morrera havia um
ano. Desde a morte do marido, dona Eulália me autorizara chamá-la
pelo apelido que o Coronel lhe dera: Até aqui tu foi minha filha, disse-
me ela, daqui por diante, tu vai ser minha mãe. Pode me chamar de
Lalu. Só depois da casa pronta, ela iria morar conosco na Bahia.
Carybé nos apressava em ligações telefônicas, voz de longa
distância: Venham logo. O olho do patrão engorda o gado... Enquanto
vocês não vierem a obra não vai terminar. Já dá pra morar... faltam
umas coisas pequenas, arremates... Está uma beleza!...
Conseguimos um motorista profissional para dirigir o Mané
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Pato até a Bahia, homem competente que nos daria segurança, eu
não me esfalfaria como da outra vez. Levaríamos no carro mil e uma
coisas, a começar por livros e presentes que Jorge comprara para
todo mundo.
Passei a noite empacotando, embrulhando, colocando livros
em caixas. Uma consumição! Ao meu lado, Milu procurava me ajudar.
Mais atrapalhava do que ajudava com seus suspiros e reclamações:
Coisa mais triste é ser mulher... Deus me livre! Veja! A pobrezinha aí
trabalhando e o outro lá dormindo... Ave-Maria! Jesus! Não sei como
ela agüenta... A interminável ladainha só acabou quando dei por
encerrada a arrumação e me despedi para dormir.
Logo cedo Jorge me acordou. Queríamos aproveitar a frescura
da manhã, partir antes do sol esquentar. Felizmente Lalu encontrava-
se em São Paulo, em casa de Joelson, seu filho médico, não ia cair na
choradeira ao nos ver de mudança.
Milu estava a postos, na sala, aguardando que o cuco cantasse
seis vezes. Ficou vendo Jorge e o chofer descerem a bagagem, não se
ofereceu para ajudar. Os dois que se arrumem, resmungou ela, pelo
menos que arrumem o carro... ao menos isso... Eu só desceria, com
as últimas miuçalhas, quando Jorge desse por terminadas as
arrumações.
Jorge demorava a subir, devia estar tendo dificuldade de
acomodar tanta coisa. De repente a porta abriu-se e ele entrou, todo
nervoso, falando alto:
— Não coube nem a metade...
— Nem a metade?
— Nem a metade, sim, nem a metade — repetiu. — Eu não sei
que necessidade você tem de levar tanta coisa... que mania..
— Sou eu quem quer levar tanta coisa? Decidimos juntos o
que levar, você não lembra? Agora eu é que sou a culpada... —
Cansada e nervosa, comecei a chorar.
— Também não é motivo para tantas lágrimas — disse Jorge
mais calmo, em tom conciliador. — Desça comigo, vamos, você vai
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
me ajudar.
Jorge tem fama de bom arrumador de mala de automóvel —
ele próprio se gaba disso —, mas dessa vez fracassara. Depois de
nova tentativa, com a ajuda do porteiro do prédio, conseguimos
encaixar tudo: na mala do carro e na parte de trás onde eu viajaria,
espremida.
Subimos para nos despedir de Milu.
— Conseguiram? — perguntou ela.
— Tudinho, Milu, coube tudo — respondi. — Quando a casa
estiver em ordem você vai passar uma temporada conosco.
Milu já tinha seu discurso preparado: Minha filha, foi dizendo,
trate de se cuidar. A mocidade é uma só, a vida também é uma só.
Não ligue pras coisas que ele te fizer, homem é assim mesmo,
escravagista, fuzilava Jorge com o olhar enquanto ele prendia o riso.
Quando ele lhe maltratar não diga nada, não chore, num gesto
patético abriu os botões da blusa, abra a blusa, assim, e diga apenas:
não me mate aos poucos, mata de uma vez, mata!
A CASA COMEÇA A FUNCIONAR
Vários operários ainda trabalhavam dentro das portas, quando
nós e os meninos entramos para habitar a casa da rua Alagoinhas.
Conseguimos a transferência de João Jorge e Paloma do Colégio
Andrews, no Rio, para uma escola pública em Salvador, o Colégio
Estadual Manuel Devoto. Sempre quisemos que nossos filhos
estudassem ao lado de meninos de classe menos favorecida, fossem
colegas de crianças que não tinham tido os mesmos privilégios que
eles. Nossos filhos já haviam feito o curso primário, no Rio de Janeiro,
na escola pública Marechal Trompowski. Só depois foram para um
colégio particular. Queríamos nossos filhos sem empáfia, eles deviam
conhecer de perto as necessidades do povo.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Exu, MEU COMPADRE
Manu, artesão do ferro retorcido e do latão, foi escolhido por
Jorge para fazer um Exu a fim de enfeitar o jardim: O Compadre vai
ser o guardião da casa, disse Jorge.
Lá estava ele, enorme, formoso, de cauda virada, chifrinhos e
estrovenga, Exu pra ninguém botar defeito, nem mesmo Carybé, se
roendo de inveja.
Não tardou muito, um recado de Mãe Senhora pedia que Jorge
fosse vê-la, com a maior urgência.
A mãe-de-santo havia sabido da existência do Exu em nosso
jardim e estava horrorizada. Tu não tem juízo, seu Jorge? Onde já se
viu botar dentro das portas um orixá forte desses, sem o
fundamento? Não quis nem ouvir Jorge, tentando lhe explicar que
colocara a escultura no jardim apenas como decoração. Se tu não
tem cabeça, eu tenho, disse Mãe Senhora, encerrando a bronca.
No dia seguinte, mal o sol levantara, apareceu na porta Loló,
emissário de Senhora. Trazia uma enorme sacola, dentro dela o
necessário para assentar o santo: um galo preto, um litro de azeite-
de-dendê, um litro de cachaça, farofa amarela e alguns charutos.
Cavou a terra, fez uma valeta em torno da escultura, nela atirou os
charutos, despejou o dendê, a cachaça, a farofa e o sangue do galo
de pescoço decepado na hora.
Até hoje sigo as instruções de Mãe Senhora: às segundas-
feiras, infalivelmente, chova ou faça sol, dou de beber ao meu
compadre, despejo meio copo de cachaça sobre ele, assobio uma
música que Verger me ensinou e, com isso, dou por completada a
obrigação. Nas minhas ausências, Aurélio me substitui.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
EXPLOSÃO
Montar a casa não era fácil. Casa grande, de muito
movimento, tivemos que comprar três refrigeradores e um freezer.
Tudo a postos, ligamos os quatro aparelhos de vez. Ouviu-se um
estrondo. O transformador, que servia à rua toda, não agüentara a
carga, explodira, e com ele nossos aparelhos. Quem pensou que por
ser Jorge Amado ele fosse ter todos os privilégios enganou-se: o novo
transformador, de alta voltagem, potência infinitamente superior,
com capacidade para beneficiar a rua toda, foi pago por Jorge,
dinheiro alto, de seu bolso.
O SAPO-CURURU
A casa estava pronta e graças ao excelente arquiteto e aos
nossos amigos, grandes artistas da Bahia, tínhamos conseguido o que
desejávamos: viver numa casa ampla, arejada, agradável, sem
requintes de grandeza, combinando com a nossa maneira de ser, de
vida simples, sem ostentação. Uma casa sincera, como disse certa
vez Gilberbet, em sua linguagem de arquiteto. Estaríamos rodeados
de arte e, ainda de quebra, para a satisfação de Jorge, tínhamos até
sapos coaxando à noite no laguinho redondo, rodeado de flores.
Peço licença para interromper o que dizia e contar a história
do sapo-cururu:
Certa noite, chovia torrencialmente quando ouvimos o coaxar
forte de um sapo junto à porta de nossa sala. Lá se encontrava um
enorme sapo-cururu. De onde teria vindo? Esse detalhe não
interessou a Jorge. Tivesse vindo ele de onde fosse, devíamos, sem
perda de tempo, contar a grande novidade a Carybé. Na casa dos
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Carybé, em Brotas, não havia lagos nem lagoas e, portanto, nada de
sapos, o que deixava nosso amigo na maior frustração.
Não levou meia hora, enfrentando temporal e ventania,
apareceu Carybé. Acocorou-se ao lado do cururu e começou a coçar-
lhe cabeça e costas. O sapo inchou de tal forma que parecia uma bola
de futebol. Não brinque com ele, compadre, preveniu Jorge, daqui a
pouco ele vai começar a soltar veneno por aí e veneno de sapo é
perigoso. Carybé só desistiu da brincadeira quando o sapo perdeu a
paciência, se movimentou, deu um pinote inesperado e, a largos
saltos, sumiu entre a folhagem do jardim.
BRINCADEIRINHA
Resolvi um dia pregar uma peça em meu compadre e, armada
de um gravador, registrei o coaxar dos sapos. Fomos à casa de
Carybé. Seu ateliê ficava nos fundos do jardim, em cima da garagem.
Deixei meu gravador no último degrau da escada, junto à porta e,
quando a prosa estava bem animada, dei uma saidinha e liguei o
gravador. Espera, espera aí, gritou Carybé, interrompendo uma frase
pelo meio, vocês também estão ouvindo? Tenho sapos no jardim,
gritou. Foi em busca de uma lanterna, saiu porta afora, à procura dos
sapos, sem lembrar que seus compadres também eram bons em
pregar peças.
CALASANS NETO
Em nossa casa, feita com tanto carinho, tanta arte, tanta
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
beleza espalhada por todo lado, havia uma falha: a porta de entrada
destoava de tudo o mais, era azul, sem nenhuma graça. A porta que
faltava só veio a ser colocada alguns anos depois da inauguração da
casa.
O talentoso artista, autor da bela porta que veio substituir a
que era azul, sem nenhuma graça, Calasans Neto ou Mestre Cala,
como é chamado, caprichou na provocante Tereza Batista entalhada
na madeira que se abre a nobres e a plebeus.
Mestre Cala conhecera a fundo a heroína do romance de Jorge
Amado, ao ilustrá-lo em 1971. Pícaro, ele soube muito bem recriar a
personagem do escritor, dando forma e sensualidade à jovem Tereza,
aproveitando a deixa e, por que não?, dar a doutor Emiliano Guedes,
que amou Tereza, traços de Jorge Amado. Numa das ilustrações do
livro, ele retrata o casal tomando banho de rio, ambos nus, claro!
— Como é que você se atreve a mostrar meu marido nu,
tomando banho de rio, abraçado com Tereza, Cala? — pilheriei,
fingindo ciúmes.
Calasans não é homem de perder o rebolado, não ia perder
dessa vez:
— Você reclama porque não reparou que a minha Tereza é
você todinha.
— Ora, Cala, não me venha com essa conversa, você fez
Tereza de costas, nem se vê o rosto.
— E quem falou em rosto? — riu o malandro. — Ela é você de
costas, sem tirar nem pôr...
— Do balaio grande — completou Jorge, que se divertia
ouvindo a discussão.
Mestre da gravura e do entalhe, artista também do pincel,
Calasans Neto pertencia a uma geração de jovens, do movimento
Mapa, formado por um grupo de moços talentosos, a geração de
Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Anísio
Melhor, Sante Scaldaferri, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo
Mattos. Esses não eram da fornada dos mais velhos, da geração de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Jorge Amado, Mirabeau, Mário Cravo e Carybé.
Conhecíamos a todos, admirávamos o talento desses artistas,
cada qual na sua especialidade: Glauber Rocha com seu talento
cinematográfico, Sante com sua pintura, Calasans com suas gravuras
e seus entalhes, João Ubaldo Ribeiro no início de sua famosa
literatura, Fernando da Rocha Peres, Carlos Anísio Melhor, com sua
poesia, e Paulo Gil Soares, homem de mil artes nas letras.
CASA CHEIA
Amigos na Bahia era o que não nos faltava. Nosso círculo de
relações com figuras da intelectualidade baiana era cada vez maior:
Vivaldo Costa Lima, por exemplo, tornou-se nosso amigo mesmo
antes de habitarmos a Bahia. Inteligência viva, Vivaldo era quem mais
entendia de candomblé. Com ele aprendi muita coisa. Nas festas do
terreiro do Axé Opô Afonjá, de Mãe Senhora, enquanto Jorge, no seu
posto de Obá, sentava-se ao lado da mãe-de-santo, Vivaldo, a meu
lado, esclarecia minhas dúvidas, explicava-me coisas que, no meu
desconhecimento dessa religião, ignorava.
Quando da visita de Sartre e Simone de Beauvoir à Bahia,
Vivaldo os acompanhou, respondeu com enorme competência a todas
as questões que o ilustre casal, interessadíssimo no assunto, lhe fez,
tornaram-se amigos.
Outra amizade que conquistou nossa intimidade foi a
deValdeloir Rego. Doutor em capoeira, autor de importante livro
sobre a arte de lutar capoeira. Valdeloir passou a freqüentar nossa
casa e muitas vezes nos acompanhou às festas nos terreiros de
candomblé. Com Valdeloir também aprendi muito.
Foi Odorico Tavares quem descobriu e nos apresentou o artista
Emanuel Araújo, muito jovem, quase um menino, porém já um mestre
na arte da gravura.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Fomos pela primeira vez, à casa de Emanuel, levados por
Odorico. Íamos ver os trabalhos, louvados pelo expert em arte, e
tivemos uma surpresa. O menino Emanuel nos esperava com um
delicioso almoço preparado por ele mesmo. Nessa ocasião o jovem se
dedicava a desenhar gatos. A série de gravuras que nos mostrou
nesse dia era de gatos. Só gatos, os mais belos, de olhos de todas as
cores, impressionantes.
Já havíamos visto um trabalho de Emanuel, à venda, na loja de
antiguidades que Luz da Serra mantinha no térreo do Hotel da Bahia.
Gostamos, porém era um só, em sua casa, diante do desfile de gatos
que ele nos apresentou, pudemos nos encantar e ver que o menino
iria longe, não havia dúvida, ele era um artista de mão-cheia. Desde
então Emanuel ficou sendo nosso amigo, freqüentador de nossa casa.
Luz da Serra, mulher poderosa, tornara-se nossa amiga desde
a nossa chegada à Bahia, mesmo antes de comprarmos a casa.
Amizade que perdura até hoje.
As VELHINHAS SE ENCONTRAM
Lalu chegara para ficar definitivamente. Preparamos um
quarto especial para ela, o único a ser assoalhado e forrado, na
enorme casa de telha-vã com piso de lajotas.
Convidei mamãe a passar uma temporada conosco. Ela e Lalu
se davam muito bem — inimigas íntimas —, distraíam-se contando e
ouvindo casos. Lalu gabando os filhos, filho dela não tinha defeito.
Mamãe, mais modesta, bem mais, não elogiava os seus; aventurou-
se, apenas uma vez, em conversa com Lalu, a justificar a sorte da
filha caçula:
— Zélia nasceu com a estrela.
Lalu não perdeu tempo:
— Nasceu mesmo, casou com meu filho! Jorge também
nasceu com uma estrela. Só que a dele é bem melhor que a de Zélia,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
a estrela dele é muito forte, ajuda ele a escrever livros, uma beleza!
Essas conversas muitas vezes se repetiam e enchiam o dia das
duas velhinhas.
Dona Angelina chegou ansiosa para ver as maravilhas da
Bahia, conhecer o Pelourinho do qual ela tanto ouvira falar.
Já naquela época o Centro Histórico de Salvador estava muito
arruinado, casas caindo aos pedaços, muito lixo acumulado pelas
ruas. Levei-a ao Pelourinho e à feira de Água dos Meninos, onde
chafurdamos na lama para fazer algumas compras. Dona Angelina
não gostou e, muito confidencialmente, temendo ofender, me disse:
Nunca vi tanta sujeira... Gostaria de ouvir os comentários de dona
Angelina nos dias de hoje. Ela nos deixou há muitos anos, não viu,
não chegou a ver a restauração do Pelourinho, a urbanização da
cidade. O que diria ela? Parece que estou a vê-la e ouvi-la: Que
beleza! Gente danada! Nunca pensei.
Habituada a comer verduras e legumes, dona Angelina
estranhou. Naquela época, em Salvador, não havia verduras a
escolher. Encontrava-se: taioba, língua-de-vaca, repolho, abóbora,
quiabo, maxixe, jiló, alface e tomate da pior qualidade.
— Com um terreno tão grande, por que não fazem uma horta?
— sugeriu dona Angelina. — Plantem escarola, tomate do bom,
alface, couve-manteiga, couve-flor, brócolis, rúcula, salsão...
Lalu ouvia atenta a lista de verduras que dona Angelina citava:
— Virgem Maria! — disse ela. — Pra que tanta verdura?
Quem é que vai comer tudo isso? Eu mesma não como, meu filho
também não gosta de verduras...
Os planos de dona Angelina iam muito além da mesa dos
Amado:
— Olhe, dona Eulália, vocês podiam até ganhar muito dinheiro
vendendo verduras. Nesta casa tem duas garagens e vocês só têm
um carro. Então! Podiam muito bem usar uma para fazer uma
quitanda... Seria a única da rua, única do bairro.
Lalu ouvia estatelada a proposta da mãe de Zélia:
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Olhe, dona Angelina. Vou lhe pedir um favor: a senhora
nunca mais me repita uma baixeza dessas.
— Baixeza, dona Eulália? Então vender verduras é baixeza?
Numa terra que não tem verduras, vender verduras é até uma obra
de caridade — respondeu mamãe, revoltada.
— A senhora esquece, dona Angelina, que meu filho é um
grande escritor, um homem conhecido no mundo inteiro? A senhora
quer que ele vire verdureiro?
A discussão estava pegando fogo e eu, que até então me
divertia ouvindo-as, resolvi intervir:
— Muito bem. Dona Eulália tem razão em não querer que o
filho vire verdureiro, nem teria cabimento uma coisa dessas. Mas eu
tenho uma solução: Jorge não vai nem entrar na quitanda, Lalu fica na
caixa registradora e mamãe recebe e serve a freguesia, ela é muito
comunicativa, gosta de contar casos, a clientela vai gostar.
Mamãe entendeu que não valia a pena insistir, Lalu se deu por
vencedora.
A CASA DAS FRUTAS
Correu voz que haviam aberto na Barra, no Alameda, uma
casa que vendia frutas e verduras vindas de São Paulo. Era a primeira
e única, freguesia enorme. Quem nos deu a boa nova foi Mirabeau.
Jorge resolveu dar uma espiada, pois, se ele não fora habituado a
comer verduras e não sentia falta delas, adorava frutas e atrás das
frutas é que ele queria ir.
Mirabeau tinha um chofer de nome Edgard, que o servia desde
os tempos de solteiro. Algumas vezes na vida, por circunstâncias
diversas, Mirabeau deixou de ter automóvel mas nunca dispensou o
chofer. Na ocasião da abertura da Casa das Frutas, Edgard exercia
sua verdadeira função: dirigia o carro de Mirabeau.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Mirabeau chamou Edgard.
— Você sabe onde fica a Casa das Frutas?
— Sei, não, doutor.
— Me disseram que fica no Alameda. Chegando lá a gente
pergunta. Deve ser fácil — disse Mirabeau.
Assim dizendo, Mirabeau chamou Jorge e ambos embarcaram
no automóvel, Edgard ao volante. Ao chegarem ao local indicado,
Edgard encostou o carro:
— Vou perguntar ali, no ponto de táxi, na certa eles sabem
onde fica a tal...
Voltou sem a indicação:
— Ninguém sabe, não, doutor.
— Vamos mais adiante — ordenou Mirabeau. Rodaram mais
um pouco:
— Vá perguntar naquela padaria — mandou Mirabeau.
Enquanto Edgard ia em busca do endereço, Jorge divisou, mais
adiante, um cartaz anunciando: Casa das Frutas. Ao voltar, ainda uma
vez sem a indicação, Mirabeau lhe mostrou o anúncio da casa. É ali
mesmo.
Somente dias depois ficamos sabendo do engano de Edgard.
Ele confidenciou a Arthur, filho de Mirabeau, que havia entendido
casa das putas. No ponto de táxi o chofer lhe dissera: Eu mesmo não
sei, não. Mas se você descobrir, me avise. Quanto ao empregado da
padaria: Casa de puta mesmo, por aqui não tem. Se tivesse eu
saberia, mas está vendo aquele prédio, ali adiante? Dizem que lá
moram umas francesas que facilitam.
FLORINDA DOS SANTOS
Uma das coisas que me encantou, durante anos, foi ver,
quando menos esperava, passar em minha frente, nas ruas da Bahia,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
um vulto de mulher coberta da cabeça aos pés por uma mortalha de
cetim roxo, séria, calada, excessivamente maquiada, andando entre a
multidão. Não era esmoler mas não se acanhava em pedir restos de
ruge, batom, qualquer maquiagem. Ninguém conhecia a sua
identidade. Nem o nome dela sabiam. Corriam lendas sobre sua vida,
falavam de amor malparado, de mulher rica que perdera a fortuna, de
caso de loucura, mas nenhuma das histórias que ouvi me convenceu.
A mulher de roxo de repente sumiu, nunca mais foi vista. Somente
agora, no jornal da TV, soube seu nome. Florinda dos Santos, a
mulher de roxo, falecera aos oitenta anos num asilo onde fora
internada havia tempo.
HÓSPEDE INESPERADO
Um belo dia tocaram a campainha da porta. Fui atender, dei
de cara com um senhor idoso, uma valise de viagem depositada ao
seu lado, junto à porta de entrada. Embaixo, na calçada, dois rapazes
que o acompanhavam me deram um alô já se despedindo, o
automóvel à espera, de porta aberta, disseram: Ele é tcheco, é um
diretor de cinema, veio do Rio a convite de Walter da Silveira que vai
prestar uma homenagem a Jores Ivens e a este cavalheiro, amanhã.
Ele vai se hospedar aí com vocês. Não tive tempo de dizer nada, eles
se foram.
O cavalheiro tcheco, professor ilustre da Academia de Artes de
Praga, me cumprimentou em tcheco: Dobriden. Dobriden, respondi a
seu cumprimento e não fui mais adiante. Além do tcheco o cavalheiro
falava inglês, mas preferia falar tcheco já que lhe haviam anunciado
que os hospedeiros na Bahia, ex-moradores da Tchecoslováquia,
falavam a língua correntemente. Exageraram. O pouco do tcheco que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
eu aprendera, àquelas alturas, já estava quase que completamente
esquecido, e Jorge também guardara apenas algumas palavras.
O professor Broussel (não lembro se o nome era exatamente
esse) entendeu logo que não poderia manter longas conversações
conosco, nem longas e nem curtas. Ele participara de um festival de
curtas-metragens, no Rio, chegava à Bahia convidado por cineastas
baianos que iam homenageá-lo, assim como a Jores Ivens, famoso
cineasta, internacionalmente amado e respeitado. Ivens não pudera
vir à Bahia nessa ocasião, viria depois a convite de Jorge, velho amigo
de longos encontros pela Europa.
Acomodei o professor tcheco no apartamento da frente, junto
à sala. Ele me perguntou se havia laranjas em casa e eu lhe dei uma
cestinha com laranjas, um prato e talheres. Ele então me pediu água
fervendo e um recipiente onde coubessem as laranjas. Colocou duas
laranjas dentro do recipiente, despejou a água fervendo em cima, até
cobri-las. Só depois de alguns minutos, descascou-as. Me contou das
recomendações que lhe haviam feito, de só comer frutas no Brasil
depois de matar os micróbios.
A homenagem ao professor tcheco seria realizada no dia
seguinte, às onze, no Cine Guarany, na Praça Castro Alves. Eu ia levá-
lo, pois nosso chofer Garrincha mostrara-se incapaz de dirigir o Mane
Pato e fora despedido. Estávamos à espera de um novo motorista que
devia chegar a qualquer hora.
Pela manhã, depois do café, enquanto aguardávamos que o
professor arrumasse os seus pertences, ouvimos um ruído estranho
que vinha do banheiro: floc, floc, floc... O que estaria acontecendo?
João e Paloma, que iriam conosco, estavam intrigados com o estranho
barulho que não parava: floc, floc, floc... Por fim, o professor abriu a
porta, numa das mãos trazia a valise — depois da homenagem ele iria
diretamente para o aeroporto —, na outra, algo branco, embolado. Ao
tomar o carro recusou-se a sentar na frente ao meu lado, cedeu o
lugar a Paloma, sentou-se atrás com João.
Um vento forte entrava pela janela traseira e eu notei que as
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
pessoas que passavam na rua paravam para olhar. Dei uma espiada
para trás: o velho desfraldara uma camisa branca para fora da janela,
verdadeira bandeira tremulante; a camisa era, sem dúvida alguma, a
que ele lavara pela manhã, lavagem causadora do intrigante ruído, e
ele agora pretendia secá-la.
Guido Araújo, jovem cineasta baiano, um dos promotores do
evento daquela manhã, nos recebeu à porta do teatro, conduziu o
ilustre diretor ao palco onde Walter da Silveira e outras
personalidades o aguardavam para darem início à cerimônia.
GOLPE DE ESTADO
Aurélio, o novo motorista, veio avisar que Dr. Wilson Lins e
dona Anita, estavam chegando. Havíamos passado dias de angústia,
com os boatos políticos que corriam, boatos alarmantes de golpe
militar.
Jorge estivera em São Paulo e no Rio, fora tratar com a editora
a publicação de Os pastores da noite, romance que acabara de
escrever.
Jorge saíra do Rio para a Bahia com o irmão, James Amado,
num Peugeot novo que comprara para substituir o arruinado e
pranteado Mane Pato, que ficara no ferro-velho para sempre.
Os boatos sobre o golpe que se armava eram tantos e tais
que, ao verem os dois irmãos pegando estrada, comentaram: já estão
fugindo.
Os boatos se confirmaram na véspera dessa inesperada visita
de Wilson Lins. Rádio e televisão anunciavam a deposição do
presidente João Goulart, que fugira para o Uruguai, tropas na rua, no
Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado do presidente, comandava
um movimento contra o golpe.
Os generais reformados pelo presidente não estavam tão
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
submissos e conformados como ele supunha. Era anunciado o nome
do general Humberto de Alencar Castelo Branco, para substituir João
Goulart.
Telefonamos para alguns amigos no Rio e sentimos na voz de
todos que voltara a prudência ao falar por telefone. A censura e a
autocensura já andavam à solta comboiando toda a sorte de
restrições.
O sorriso estampado no rosto, olhos brilhando de satisfação,
Wilson era o próprio vencedor do golpe, golpe chamado pelos
golpistas de revolução:
Em nome da revolução... disse ele, mas não o deixei terminar
a frase. Olhe, Wilson, não venha falar em revolução nesta casa!
Estamos cansados de sofrer, cansados de golpes militares. Me admira
você, nosso amigo, vir com essa conversa de revolução, revolução
fajuta, fascista, que vai acabar com a liberdade, vai botar todo mundo
de novo na cadeia... Diante da minha violência Anita quis reagir, mas
Wilson não deixou. Vim aqui para oferecer meus préstimos, apenas
isso, justificou-se ele.
Sem mesmo lhe pedir, acabamos precisando da ajuda de
Wilson Lins. Homem cotado pelos cabeças do golpe, ele mesmo um
dos inocentes úteis, conseguiu libertar João Jorge, que fora espancado
e preso ao participar nas ruas de uma passeata estudantil. Nem foi
preciso recorrer a Wilson. Ao saber da prisão de nosso filho foi ele
quem, espontaneamente, se mexeu, não teve dúvidas em acordar, de
madrugada, uma alta autoridade, tirou João da cadeia, veio trazê-lo
em casa, de manhãzinha.
Nossos amigos andavam preocupados com o que pudesse
acontecer a Jorge. Começavam as invasões de lares, os livros de Jorge
Amado apreendidos, os leitores tachados de comunistas por lerem tal
escritor. Temerosas, as pessoas tratavam de esconder os livros
proibidos.
Ao voltar de uma viagem à União Soviética, havíamos trazido
miniaturas do Sputnik, novidade, coisa tola, mas que agradara os
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
amigos. Depois desse malfadado 1º. de abril até os pequenos
Sputniks, por prudência, foram destruídos por alguns de seus
apavorados possuidores.
A preocupação dos amigos de Jorge era saber se ele pretendia
exilar-se ainda uma vez. Daqui não saio, respondia Jorge. Se quiserem
me prender, que venham, mas não creio que tenham coragem de
tocar em mim, a repercussão no estrangeiro os amedronta.
O golpe iria, certamente, prejudicar o lançamento do livro
novo, Os pastores da noite, apenas saído da impressora. Dmeval
Chaves, dono da livraria e nosso amigo, chegou a sugerir o adiamento
da tarde de autógrafos. Jorge não concordou, e na tarde do
lançamento a Livraria Civilização Brasileira ficou abarrotada de
amigos, de leitores, heróis arriscando a própria segurança, e de
olheiros da polícia política.
Depois dessa tarde, pelo que se soube, algumas residências
foram visitadas pela polícia, várias pessoas intimadas a depor para
responder a perguntas que tais: Qual a sua ligação com Jorge Amado?
DONA ZÉLIA ENTRA NA DANÇA
Já que falei em movimento estudantil e contei da prisão de
João Jorge, peço licença para continuar no assunto e contar um
episódio ocorrido com Paloma e eu, fato que se deu alguns anos
depois quando nossa filha já cursava o Colégio de Aplicação.
Naqueles tempos de descontentamento, todo motivo era
motivo para que os estudantes levantassem a voz, se organizassem.
Dessa vez o que os incomodava era a assinatura do Acordo
MEC/USAID. A medida mexera com os estudantes universitários,
levando-os a promover uma passeata e concentração em frente à
reitoria para protestar junto ao reitor. O Colégio de Aplicação, onde
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Paloma estudava, pertencia à universidade, e seus alunos aderiram
ao movimento. Tomei conhecimento da reivindicação, achei-a justa.
Paloma chegou em casa, toda inflamada:
— Mãe, amanhã vou participar de uma passeata. Não adianta
dizer que não.
Ela acompanhara nossa angústia na ocasião em que João Jorge
fora preso e temia que eu a aconselhasse a não se envolver.
Enganara-se redondamente. Perguntei-lhe o motivo da passeata e,
ciente, quis saber:
— A que horas vai ser essa concentração?
— Ao meio-dia, quando terminar a aula. Para grande espanto
de Paloma, eu disse:
— Muito bem, eu também vou.
— Você vai, mãe? Vai mesmo? Mas a passeata é só para os
estudantes, não é para as mães.
— Você não conhece tua mãe, menina — disse Jorge, que
ouvia o diálogo —, ela está doidinha para ir... deve estar morrendo de
saudades dos tempos dela... Tua mãe não foi brincadeira, Paloma, ela
não perdia uma passeata, uma concentração... Foi numa dessas que
nos conhecemos, e ela me pegou, você sabia?
Eu não estava doidinha, morrendo de saudades de uma
passeata, como pilheriara Jorge. Eu estava, isso sim, preocupada com
minha filha, com aquela juventude inexperiente que poderia fazer
bobagens, botar tudo a perder. Com minha velha experiência política,
testemunha e vítima de vários retrocessos democráticos, retrocessos
desastrosos, devidos exclusivamente à inépcia de falsos dirigentes,
queria estar ao lado dos estudantes tentando ajudá-los, impedindo-os
de praticar atos de vandalismo.
A PASSEATA
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Cheguei antes da hora marcada. Tive dificuldade para
estacionar o carro, o bairro do Canela estava intransitável, centenas
de adolescentes se aglomeravam nas adjacências e em frente ao
Colégio de Aplicação. Procurei por Paloma, ela ainda não havia saído,
fiquei esperando junto ao portão de entrada. De repente ela chegou
acompanhada de uma professora. Ao me ver, gritou, eufórica: Mãe.
Olhou para a professora, que havia, minutos antes, tentado dissuadi-
la de participar da passeata dizendo-lhe: Pense em sua mãe, e disse:
Está vendo? Esta é minha mãe. Se a mãe não tem juízo, deve ter
pensado a professora, lavo minhas mãos. Disse qualquer coisa que
não entendi e entrou no colégio.
No meio de tantos jovens eu me sentia a própria choca,
cuidando dos pintinhos. Saímos andando e, ao ver um menino
colhendo pedras no chão, dei meu primeiro grito de comando: Vamos
fazer uma passeata pacífica, nada de provocações, jogue fora essas
pedras... Surpreso, o menino me obedeceu.
A passeata subia a Avenida Sete de Setembro, paramos em
frente ao Palácio da Aclamação. Enquanto os meninos gritavam,
pedindo escolas para as crianças, tudo bem, eu gritava com eles, mas
quando vi que voltavam a colher pedras do chão, dispostos a quebrar
os vidros das janelas do Palácio, subi num monte de pedras
encostadas a um poste, abracei-me nele e voltei a ordenar, aos
gritos, com toda a veemência, que deixassem as pedras no chão e,
sempre aos berros, fiz-me entender: aquela não era uma passeata de
baderneiros, de provocadores, botei toda a minha experiência em
funcionamento e eles me ouviram.
Passávamos pela casa de Genaro de Carvalho, em frente ao
Hotel da Bahia. Da janela, ele chamou Nair e ambos não acreditaram
em seus olhos ao me verem entre os meninos, gesticulando e
gritando com eles.
Nosso destino era a reitoria, tínhamos combinado cantar o
hino nacional para anunciar nossa chegada, mas não deu tempo:
fomos recepcionados por um camburão de onde saltaram vários
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
soldados com máscaras, em disparada sobre nós, atirando bombas de
gás lacrimogêneo. Havia chovido e as plantas do jardim da reitoria
estavam molhadas; também molhados estavam os carros
estacionados. Com um desembaraço enorme, os jovens molhavam os
rostos com as folhas e as flores, empapavam lenços na água
depositada nos capôs e nos vidros dos automóveis, passando-os
molhados no rosto a fim de neutralizar o efeito do gás. Meninos
sabidos, mais experientes do que eu supunha. Segui-lhes o exemplo,
molhei meu rosto com flores mas, mesmo assim, passei algumas
horas sentindo um incômodo ardor nos olhos.
LALU SE ACIDENTA
Durante o almoço, o guardanapo de Lalu escorregou de seu
colo, ela baixou-se para apanhá-lo, perdeu o equilíbrio, a cadeira
tombou e, bumba, lá se foi ela ao chão. Coisa de segundos para
interromper um almoço, alarmar a todos. Tentávamos levantá-la, mas
ela se recusava num gemido só: Ai, ai, ai, me deixem, quebrei minha
perna. A muito custo, conseguimos colocá-la na cama e, enquanto
esperava o médico que Jorge chamara, ela se lamuriava: Ai, meu
Deus, o que vai ser de minha vida.. Velha e de perna quebrada! Osso
de velho não cola nunca.., Não vou mais poder andar... Não adiantava
querer consolá-la, dizer que certamente não fora o fêmur o osso
fraturado, que talvez nem houvesse fratura. Lalu se ofendia: É porque
não é tu que está sofrendo as dores que estou sofrendo, é por isso
que tu fica aí dizendo essas coisas, pensando que estou fingindo... ai,
ai, ai...
O médico não demorou a chegar, trazendo o necessário para
fazer uma radiografia de cujo resultado só se soube no dia seguinte:
completamente descartado o diagnóstico de Lalu: nada de fratura na
perna, apenas trincara um osso na virilha, pequena rachadura sem
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
importância.
Tu viu!, disse-me ela ao ficarmos a sós, não quebrei a perna,
não, foi só a caixa da periquita. Fez uma pausa. Também ela já não
tem mais serventia, não é, fia?
Não foi preciso engessá-la, apenas o repouso e a imobilidade
por alguns dias seriam suficientes para recuperá-la. Eu estava sempre
a seu lado, mas um dia necessitei sair com Jorge e ao voltarmos
encontramos a cama de Lalu vazia. Chamei por Eunice, nossa
empregada, e, tranqüilamente, ela nos disse que dona Eulália estava
passeando no jardim. Alarmados, fomos ao seu encontro e qual não
foi a surpresa: Lalu passeava refestelada nos braços de Rufino.
Emocionados, vimos a cena: o homem forte, braços estirados para a
frente e sobre eles uma pluma, frágil, delicada, feliz da vida entre o
arvoredo e as flores, a nossa Lalu.
Creio ter sido a emoção daquela tarde o motivo, válido por
toda a vida, de nosso reconhecimento, carinho e paciência com
Rufino. (Pode parecer invenção minha mas não é: interrompi o que
estou escrevendo para atender a Rufino, dar-lhe o dinheiro para que
pague a conta de água atrasada de três meses. Com seu eterno
sorriso, estendeu-me o aviso, dizendo-me apenas: Já estão pra
cortar.)
LADEIRAS DA BAHIA
Esta cidade do Salvador é uma cidade de muitas ladeiras, seus
nomes os mais belos e sugestivos:
Ladeira do Aquidabã, Ladeira dos Perdões, Ladeira da Água
Brusca, Ladeira da Preguiça, Ladeira do Quebra Bunda, Ladeira da
Roça do Lobo, Ladeira do Curriachito, Ladeira do Taboão, Ladeira do
Sangradouro, Ladeira Amparo do Tororó e mil outras, cada nome
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
fazendo refletir sobre sua origem. A do Quebra Bunda, penso eu, deve
ter sido dada após a queda de alguém.
DADÁ REALIZA SEU SONHO
Na Ladeira dos Perdões morava Dadá, viúva de Corisco, lugar-
tenente de Lampião. Dadá perdera uma perna numa luta do cangaço.
Ferida e sem recursos para tratar-se, a perna gangrenara e o jeito
fora cortá-la. Sentada o dia todo em frente a uma máquina de
costura, ela vivia de confeccionar embornais de lona, bordados, iguais
aos que fizera para Lampião e seu bando. Embornais coloridos e
bordados, verdadeiras belezas.
Conhecêramos Dadá ao irmos em busca de comprar
embornais, uma amiga nos dera o seu endereço. Estávamos de
viagem marcada para a Europa e queríamos levar alguns para
presentear amigos. Daí para a nossa amizade com Dadá foi um pulo.
Casada pela segunda vez, vários filhos, ela colara, pelas paredes de
seu modesto quarto, retratos, recortes de jornais e revistas do bando
de Lampião e, sobretudo, de Corisco, de quem falava com grande
ternura. Contou-nos que fora raptada por ele aos quatorze anos, ele
passara a cavalo, a apanhara e a envolvera numa manta. Fora muito
feliz com o cangaceiro, não admitia que falassem mal dele.
Transfigurava-se ao contar os episódios por que passara, chorava ao
recordar a barbaridade que haviam cometido, cortando as cabeças de
Lampião, de Corisco e dos demais do bando, conservadas em formol,
sob uma redoma de vidro, expostas à visitação pública, no Museu
Nina Rodrigues, na Faculdade de Medicina.
Nunca permiti que enterrassem o corpo de Corisco. Um corpo
deve ser enterrado inteiro, com cabeça, disse ela. Espero que um dia
ainda apareça um governador que se dê conta desse horror e libere
as cabeças. Quando isso acontecer, disse-nos, eu vou fazer o enterro.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Indicou-nos um baú de flandres, debaixo de sua cama: Ali dentro
estão os ossos de Corisco esperando pela cabeça, para o enterro.
Dadá e o segundo marido dormiram durante muitos anos
sobre o esqueleto de Corisco, até que o governador Luiz Viana Filho,
homem de letras, culto e civilizado, apenas eleito acabou com aquela
monstruosidade, ordenando que as cabeças fossem enterradas.
Havia muita gente no Campo Santo naquela tarde assistindo
ao enterro de Corisco, realizado por sua amada. Lá estava, firme,
solidária, Maria Amélia, mulher de Roberto Santos, que por vezes a
socorrera. Contribuímos para a compra do caixão. Quero um caixão
decente para ele, dissera-nos Dada. Ao lado dela, vimos Corisco ser
enterrado, esqueleto e cabeça juntos no mesmo caixão, num caixão
decente.
BIOGRAFIA DE CORISCO E DADÁ
Sabedor da amizade e do carinho de Jorge por Dadá, tempos
depois do enterro de Corisco um cidadão telefonou: queria, em nome
de Dadá, falar com Jorge Amado um assunto da maior importância.
Sendo em nome de Dadá, Jorge marcou entrevista com o cavalheiro.
Ele apareceu, a vigarice estampada no rosto:
— Seu Jorge Amado—foi dizendo —, tenho uma proposta a lhe
fazer, empreitada que pode nos dar muito dinheiro.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Jorge não mostrou curiosidade pela proposta, perguntou-lhe:
— Como vai Dadá? Esteve com ela?
— Não é bem isso — confessou o cara. — Andei entrevistando
Dadá...
Não foi preciso ouvir mais nada, Jorge entendeu tudo, foi
levantando. O sujeito estava ansioso para explicar a que vinha.
— Veja bem, seu Jorge — insistiu —, tenho um belo material,
material precioso das entrevistas com Dadá e das pesquisas que fiz
sobre o bando de Lampião, de Corisco, o amor de Dadá. Pode dar um
livro e tanto.
— Já está escrevendo o livro? — perguntou Jorge
— Bem, a minha participação no livro será apenas de
pesquisador, essa é a minha especialidade. Pensei que o senhor
poderia, com a prática que tem, escrevê-lo em três tempos. Nós dois
o assinaríamos. Que tal?
Vendo Jorge calado, cara de poucos amigos, ele ainda ousou:
— A gente pode até dar uma coisinha à Dadá, o que acha?
Jorge já não achava mais nada, perdera a paciência. Levantou-se,
despediu-se:
— A sua proposta não me interessa. Me desculpe, tenho o que
fazer. — Chamou Aurélio, pediu que acompanhasse o cidadão até a
porta.
Dias depois, o "pesquisador" voltou à carga, uma, duas, três
vezes, tentando, por telefone, convencer o escritor a ser seu sócio no
livro. Cansados dos repetidos telefonemas, resolvemos não atender
mais, deixamos que a secretária eletrônica gravasse as mensagens.
Uma delas, creio que a última, porque depois ele desistiu, foi tarde da
noite. Uma voz de além-túmulo dizia: Jooorge Amaaado, hóóó Jooorge
Amaaado! Quem fala aqui é a alma de Corisco... ouviu bem?
Coooriiiscooo... Faça o livro de Dadáaaa, Jorge Amado! Faça o livro de
Dadáaaa... ouviu bem? Hó! Jorge Amado... senão eu vou aí com
Lampião te puxar os pés...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
As CAMPAINHAS TOCAM
Histórias como a da alma de Corisco e outras se repetem nesta
nossa casa do Rio Vermelho. Não fossem elas cansativas seriam até
pitorescas. Tocam as campainhas do telefone e da porta, algumas
vezes eu atendo o telefone e ouço histórias e pedidos como, por
exemplo, o da senhora que, ao terminar de ler Capitães da areia,
descobrira o bom coração do escritor e o carinho dele pelas crianças:
— É dona Zélia? Jorge Amado não pode atender? Então eu falo
com a senhora mesmo: eu tenho uma filha de dez anos, menina
estudiosa, só tira notas altas mas... não tem computador para fazer
os trabalhos... Ela me pede sempre um computador e eu não tenho
dinheiro para comprar. Então pensei... Talvez o Jorge Amado ou dona
Zélia...
— Um computador? A senhora quer um computador? Entendi
direito?
— Isso, dona Zélia, mas não precisa ser grande, pode ser
pequeno mesmo... desses portáteis, ela é uma criança...
Outro telefonema:
— E dona Zélia? Jorge Amado não pode atender? Então eu falo
com a senhora mesmo. Sabe o que é? Minha professora mandou que
a gente lesse o livro de Jorge Amado, Mar morto. Eu não tive tempo
de ler e preciso falar sobre ele hoje. Se não souber, tiro zero. Eu
queria então que Jorge Amado, ou a senhora, me contasse o enredo
do livro, pode ser mais ou menos, não precisa ser tudo...
Outro telefonema:
— Jorge Amado não pode atender? Então eu falo com a
senhora mesmo. Sabe o que é? Eu tenho uma filha muito bonita e
muito inteligente, uma verdadeira artista. Ela tem vontade de
trabalhar no teatro. Eu queria pedir ao Jorge Amado, eu agradeceria
muito se ele pudesse fazer um teste com ela no teatro dele... Ela é
uma gracinha, garanto que ele vai gostar, vai contratá-la...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Em homenagem ao escritor, foi dado, há um ano, seu nome ao
teatro inaugurado na Pituba: Teatro Jorge Amado. Daí a confusão,
dessa e de outras que telefonam pedindo entradas.
Desta vez foi a campainha da porta que soou:
Aurélio veio anunciar: Tem um caboclo aí na porta, quer
mostrar ao doutor Jorge uns versos que ele escreveu. Ocupado, com
visitas em casa, Jorge mandou dizer que não estava.
Passaram-se alguns minutos, novamente a campainha da
porta soou. Outra vez Aurélio apareceu, na mão uma folha de papel
pardo: E o caboclo que voltou. Enfiada no papel uma enorme pena de
peru e, abaixo, escrito: QUIS FALA COM NHO-NHÔ MAS NHO-NHÔ
XISCONDEU!
Ainda um telefonema: não vendo jeito de falar diretamente
com Jorge Amado, conformada em se abrir comigo, a voz feminina foi
falando sobre o motivo do telefonema:
— O único bem que possuo na vida é a minha história. Moro
em casa de aluguel, preciso muito comprar uma casinha para morar e
quero propor ao Jorge Amado vender a ele a história de minha vida.
Não tenho nada escrito, está tudo na minha cabeça e se ele estiver
de acordo, posso ir à sua casa e lhe conto tudo. É uma história muito
boa, muito forte, vai dar um romance e tanto, com toda a certeza.
O IMPERADOR ROMANO
Quando o Concorde fazia a linha Rio de Janeiro—Paris, Com
escala em Dacar, viagem que reduzia à metade o tempo de Vôo,
Jorge não quis outra vida. Tomamos o Concorde algumas vezes. Com
pouco mais de três horas de vôo, desembarcávamos no Senegal e lá
ficávamos até o vôo seguinte a Paris, três dias depois.
Em Dacar tínhamos a companhia de João Cabral de Melo Neto,
velho amigo, na ocasião embaixador do Brasil no Senegal,
visitávamos Leopold Senghor, presidente da República, nosso velho
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
conhecido dos tempos do exílio em Paris. Mais do que a companhia
formidável desses ilustres amigos, gostávamos de perambular pelas
ruas, andar pelo mercado, conversar com as pessoas, uma graça, um
divertimento. Jorge já se tornara popular entre os barraqueiros do
mercado, com os quais, durante horas, barganhava o preço da
mercadoria, no velho estilo africano. A intimidade entre eles era tal
que certa vez, enquanto um deles teve que se ausentar por alguns
minutos, confiou a barraca a Jorge, que não queria outra coisa senão
mercadejar como se fosse o dono daquilo tudo e até conseguiu
vender um bubu. No mercado e numa butique elegante, de uma irmã
do presidente Senghor, compramos os mais belos bubus, os mais
vistosos e coloridos, cômodos para o nosso clima quente. Jorge
adotou o bubu como traje de verão na Bahia, veste-o ao levantar-se
da cama, soltão, em cima da pele, o ar circulando, um conforto.
Naquela manhã, ele escolhera para vestir o mais colorido dos
bubus e tomava o café quando a campainha da porta tocou. Quem
seria, àquela hora? Eram apenas sete horas.
Aurélio entrou anunciando:
— Está aí na porta um padre.
— Um padre? — admirou-se Jorge. — Tem certeza?
— Tenho sim, senhor. Ele está de batina branca, traz alguns
livros para o senhor autografar.
— Mande ele entrar — disse Jorge.
Homem ainda moço, simpático, o padre começou por pedir
desculpas pelo horário, tão cedo. Convidei-o a tomar café conosco,
ele agradeceu, acabara de tomar, aguardaria que Jorge terminasse
para autografar os livros que trouxera, dele e de outras pessoas de
sua paróquia, em Tucano, cidade de águas térmicas da Bahia.
O visitante mostrava-se emocionado e, de mãos trêmulas,
transmitiu um convite do prefeito da cidade, se quiséssemos fazer
uma estação de águas lá, seríamos hóspedes da prefeitura.
Os livros autografados na mão, o padre passou a falar da
emoção que sentia diante de seu autor preferido, citou trechos de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
romances seus... Não sendo afeito a elogios à queima-roupa, muito
pelo contrário, Jorge ficou encabulado, procurou mudar de assunto,
como sempre acontece. Dessa vez não conseguia mudar de conversa,
o padre era seu fervoroso admirador. Finalmente, cortando um elogio
no meio de uma frase, Jorge lhe perguntou:
— O senhor tem condução?
— Não, não tenho. Vim de táxi e o despachei na porta.
Naquele tempo não havia a facilidade de hoje, de pedir táxi por
telefone, e o jeito foi mentir:
— Meu motorista deve sair agora e talvez o senhor possa
aproveitar a condução.
Dizendo isso, Jorge chamou Aurélio e pediu-lhe que deixasse o
reverendo onde ele quisesse: Depois você vai fazer o que mandei.
Escolado, Aurélio entendeu tudo. Jorge levantou-se para as
despedidas e qual não foi nosso espanto ao ver o padre cair de
joelhos diante a seus pés, tentando beijar-lhe a mão, olhos voltados
ao céu e exclamar: Que lindo! Parece um imperador romano!
Ao voltar da empreitada, Aurélio comentou: O padre estava
muito impressionado com doutor Jorge. Ele até me perguntou: O
mestre traja-se sempre assim? Ao que eu respondi: Daí pra mais!...
(Interrompo meu trabalho para ouvir um recado que Rose me
traz: Uma mulher telefonou agora, pedindo para a senhora escrever
uma carta para Roberto Marinho pedindo-lhe um emprego de Mista,
na Rede Globo, gostaria que fosse em novela.)
CASA PRONTA, HÓSPEDES ILUSTRES
Morávamos na rua Alagoinhas fazia algum tempo, ocupáramos
a casa com operários ainda trabalhando nos mil e um retoques de
acabamento e, com ela nesse estado, hospedáramos os amigos de
Pernambuco — as famílias de Paulo Loureiro e de Rui Antunes — e
também Floriano Teixeira.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O último operário que nela trabalhara arrumou as ferramentas,
despediu-se. A casa estava pronta. Tudo em seus lugares. Uma
beleza. Podíamos receber à vontade.
Muitos amigos foram nossos hóspedes, no correr dos anos:
Georges Moustaki, Roseana Sarney e Jorge Murad, Pablo Neruda e
Matilde, Chico Anísio e Sônia Braga, Odylo Costa, filho e Nazareth,
Arnaldo Estrela e Mariuccia Jacovino, Antônia e Gabriel Darboussier,
Moacir Werneck de Castro com Nené, Tereza e Márcio Amaral, Beatriz
Costa, Nicole e Frank Thomas, Antoinette Hallery, Misette Nadreau,
Anny-Claude Basset, Antônio Olinto e Zora Seljan, Sérgio Porto, entre
tantos outros, vindos de todas as partes.
Só depois de instalados foi que nos demos conta — eu,
sobretudo — de que a casa, maravilhosa no lado esquerdo, era um
horror no lado direito. Ela fora construída parede e meia com o
vizinho, a cozinha era mínima, a área de serviço não passava de um
corredor separado, por um muro, do quintal da casa ao lado e não
havia lavanderia.
Bocas santas as de Lalu e de dona Angelina, ao afirmarem que
os filhos haviam nascido com uma estrela: um belo dia, soubemos
que o vizinho da direita pretendia vender a casa. Não perdemos
tempo, não discutimos preço, compramos a casa e, novamente,
entramos em obras.
Demolimos a residência modesta de três pequenos cômodos
acanhados e fizemos uma cozinha grande, lavanderia, área de
serviço, quarto para hóspedes e um grande gabinete com estantes,
muitas estantes para as traduções dos livros de Jorge. O terreno dos
fundos, um belo terreno, foi transformado em jardim de rosas, com
roseiras trazidas de São Paulo e de outras partes. Carybé jurava que o
clima da Bahia não se prestava para roseiras, mas teve que entregar
os pontos ao vê-las, meses depois, floridas das mais belas rosas do
mundo.
As mais belas roseiras viveram uns poucos anos, viveram até
que uma cartinha de Zuca, na véspera de nosso regresso à Bahia, de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
uma de nossas viagens à Europa, endereçada para o Hotel Tivoli, nos
contava: Tudo por aqui vai mais ou menos.... choveu muito estes
tempos e as roseiras sofreram bastante... Haviam sofrido tanto que,
desanimados, resolvemos acabar com o jardim e nele cavar uma
piscina que nos vale, até hoje, nos dias quentes de verão e até nos
dias quentes de inverno.
No gabinete feito para Jorge trabalhar, ele nunca trabalhou:
Quero saber o que se passa em minha volta, não consigo produzir em
ambiente fechado, costuma dizer e é verdade. Jorge escreveu Dona
Flor e seus dois maridos no terraço aberto, o gato Nacib, um siamês
que o acompanhava por toda a parte, era seu peso de papel. Nacib
dormia sobre as folhas dos originais, podia ventar à vontade que elas
não voavam. Gabriela e Vadinho eram sua família, esposa e filho,
porém o grande amor de Nacib era Jorge.
Certa vez, ao vê-lo parado diante da máquina, perguntei-lhe se
estava tendo algum problema. Nenhum problema, disse ele, preciso
consultar uma página e estou com pena de acordar Nacib, que dorme
tão bem...
Quando chovia, aliás, quando chove, pois ele não mudou seus
hábitos, chuva de açoite, molhando tudo, Jorge se recolhe, e é numa
das extremidades da mesa de jantar que ele instala sua máquina, a
papelada, e trabalha sempre ligado ao movimento da casa, querendo
saber quem telefonou, quem tocou a campainha da porta.
GATOS
Jorge teve a quem puxar esse seu amor por gatos. Lalu
sempre teve um gatinho de estimação, falava muito num de nome
Buzégo mas os que conheci foram Professor e Naninha. Professor
morreu ao cair de um segundo andar do Hotel Ópera, onde os velhos
moraram, no Rio de Janeiro. Naninha veio com ela do Rio e recebia de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
sua dona tratamento especial, verdadeira baronesa: Sempre gostei
de ter gato fidalgo, dizia Lalu ao ajeitar a gatinha sobre uma almofada
de cetim, ao colocar-lhe um babador no pescoço antes de dar-lhe na
boca o mingauzinho.
A empregada que atendia Lalu um dia lhe perguntou:
— A Naninha já comeu, dona Eulália? Lalu ficou danada:
— Que é isso, menina, mais respeito com minha gata! Ela é
tua irmã, por acaso, pra você chamar ela de Naninha? Ela é tua
patroa, entendeu?, é Dona Naninha! Dona!!!
Dona Naninha era uma gata bonita, porém sem nenhuma raça.
Lalu mandara castrá-la: Não quero que ela se meta com qualquer
gato por aí. Ainda se fosse com o gato de Jorge, gato de raça, eu até
deixava, mas o burro nem olha pra cara dela, gato muito cheio de
vontades, gato prosa. Um dia, Nacib, o gato cheio de vontades, o gato
prosa, engasgou-se com uma espinha de peixe e morreu, deixando-
nos inconsoláveis. Jorge não disfarçou a tristeza de perder seu
companheiro. Nunca mais vou me apegar a nenhum animal, disse.
Nacib morreu deixando viúva a Gabriela, uma siamesa como ele, e
Vadinho, filho do casal.
Ao voltar de São Paulo, onde fora tratar com o editor da
publicação de um novo livro, Jorge deu uma parada no Rio. Leu num
jornal um anúncio: Vendem-se gatinhos persa azuis, tratar na rua
Santo Amaro... Seu amor por gatos falou mais alto do que a promessa
feita de nunca mais se apegar a animais.
A ninhada anunciada já estava quase toda vendida quando
Jorge chegou, só restara uma gatinha. Pois é uma gatinha mesmo que
eu quero, disse ele, encantado com o bichinho cinzento de longos
pêlos finos de seda, quase a lhe cobrir os olhos e o focinho achatado.
Comprou a bichaninha, com pedigree, detalhe, aliás, que para ele não
tinha a menor importância, estava encantado com o animalzinho e
isso bastava. A gatinha chegou à Bahia já batizada: se chamaria Dona
Flor.
Dona Flor crescia, cada vez mais linda, Jorge encantado com
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ela, até que um belo dia a flagramos cruzando Gabriela. Dona Flor
não era apenas macho, revelava-se um garanhão de primeira.
Achamos a maior graça nesse engano de sexo, mas os empregados
não gostaram da brincadeira, a decepção foi geral, sentiram-se
logrados e trataram de mudar-lhe o nome: Onde é que já se viu um
macho ter nome de mulher?, dizia Eunice, preconceituosa. Passaram
então a chamá-lo de Dom Floro. Para nós ele continuou sendo Dona
Flor, o pai de Chacha, que nasceu da sua primeira cruza com
Gabriela, gatinha linda, de pêlos brilhantes, escuros, olhos de âmbar,
grandes e amarelos. Seu nome—nome de uma heroína argentina —
foi sugerido por Pedro José Entío, jovem argentino, namorado de
Paloma na época.
Poderia, ainda uma vez, pedir licença para contar que Chacha
ficou sendo minha gata com quem eu conversava nos passeios pelo
jardim. Mulher de Vadinho e de todos os gatos da redondeza, Chacha
insistia em dar cria ao meu lado e, certa vez, após uma operação que
me obrigara a ficar em repouso, ela, praticamente, induziu Jorge a
forrar minha cama com jornais e plástico e pariu sobre meu corpo... A
cada intervalo de um gatinho para outro, eu falava com ela,
massageava-lhe a barriga, mas... fico por aqui com os gatos, já falei
demais neles. Deixo até de contar detalhes sobre um casal que
tivemos, vindos da ilha inglesa de Man, no mar da Irlanda, gatos
extraordinários, que tinham a postura e andavam aos saltos, como
coelhos, mortos por Chacha numa crise de ciúmes.
O GOLPE DO BICHO-PREGUIÇA
Falarei, se me permitem, num bicho-preguiça em nosso jardim.
Tudo indicava que o rapaz, parado na esquina da padaria, no
Largo de Santana, vendia o enorme animal peludo que trazia nos
braços.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Pare, Aurélio, quero ver que bicho é aquele — disse Jorge.
Aurélio deu a volta na praça, parou na esquina:
— É um bicho-preguiça. Olha só a cara dele!
Jorge pagou pelo animal o que o rapaz lhe pediu, achou caro
mas pagou, iria enriquecer o arvoredo lá de casa. Pediu segredo a
Aurélio, não devia me dizer nada, soltariam o bicho no terreno sem
que eu visse, queria fazer-me surpresa.
Quando me mostraram a preguiça subindo, lentamente, num
pé de mulungu, nem de longe acreditei que ela tivesse aparecido
sozinha, com suas próprias pernas, mas fiquei contente, chamei as
crianças, todo mundo de cabeça para cima assistindo à lenta
trajetória do animal.
No fim da tarde, já não havia mais uma única folha no
mulungu. Zuca disse logo: É a planta que o bicho-preguiça mais
gosta. Tínhamos três pés de mulungu e, em dois dias, eles ficaram
reduzidos ao toco, não sobrou uma folha sequer. No quarto dia quem
sumiu foi a preguiça. Nem cogitamos em mandar procurá-la, em
pouco tempo o animal daria cabo de nossas árvores com tal
competência que faria inveja às saúvas destruidoras.
Dias depois, quem é que estava firme, na esquina da padaria
no Largo de Santana? O mesmo rapaz que nos vendera o animal. Ali
estava ele tentando passar adiante o bicho-preguiça, certamente o
seu ganha-pão.
CASA MOVIMENTADA
As portas de nossa casa estavam sempre abertas para os
amigos. Trouxemos da Europa, certa vez, uma quantidade boa de
queijos e convidamos alguns amigos para saboreá-los, num domingo
pela manhã. Reunidos em torno dos queijos e do vinho, estavam:
Carybé e Nancy, Mirabeaue Norma, João Ubaldo Ribeiro, Francês
Switt, Alexandre e Judy Watson, Jenner e Luísa, Lev Smarchewski,
Coqueijo e Aydil, Gilberbet e Sônia, muita conversa, muita cantoria e
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
muita risada.
Ainda havia muito queijo e vinho, repetiríamos aquele
encontro delicioso. A notícia se espalhou e, no domingo seguinte, em
vez de quinze pessoas, apareceram vinte. O número de conhecidos e
desconhecidos, parentes e aderentes, que apareciam a cada domingo
foi crescendo: Soubemos que vocês estão recebendo aos domingos...
open house... E, de repente, nos demos conta de que, mesmo sem
queijo francês, estávamos sendo obrigados a receber, aos domingos
pela manhã, dezenas de pessoas em nossa casa. O que fora
satisfação e alegria tornara-se uma obrigação, trabalheira sem
tamanho, um cansaço para nós.
Felizmente, uma viagem ao estrangeiro nos ajudou a terminar
a esbórnia das manhãs dominicais.
UM EBÓ SEM RUMO CERTO
Jorge reservava as tardes de domingo para uma rodada de
pôquer. Por vezes, quando os parceiros eram muitos, faziam duas
mesas: Mirabeau, Mecenas Marcos, Negro Batista, Odorico Tavares,
Yves Palermo, os infalíveis. Enquanto os homens jogavam pôquer, as
mulheres se acabavam no bigorrilho ou no buraco: Norma, Nancy,
Josette, Emina, Stella Robato e eu. O único homem a jogar conosco,
de vez em quando, era Alexandre Robato, cineasta, fotógrafo,
dentista, homem cheio de bom humor. Carybé não gostava de jogo,
mas vinha com Nancy, ficava desenhando.
Um dia ouvi Lalu falando a Jardelino, seu irmão mais novo,
Jarde, como ela o chamava: Tu nem imagina, meu irmão, os amigos
de Jorge aqui na Bahia não trabalham, são todos artistas, todos
vagabundos, só vivem pintando quadros, cantando, gostam de
conversar, de rir e de jogar baralho... O único trabalhador, deles
todos, é Jorge, vive escrevendo o coitadinho, às vezes tenho até
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
pena...
Num domingo à tarde, depois de uma movimentada partida de
bigorrilho, ao despedir-me das parceiras, senti forte dor nas costas.
Certamente apanhei uma corrente de ar, pensei. Jorge me
massageou, mas a dor não foi embora. Passei uma noite incômoda, a
estranha dor persistia.
Pela manhã, apareceu Carybé com Olga de Alaketo, mãe-de-
santo, nossa amiga.
Carybé tivera um sonho muito estranho: sonhara que eu tinha
tido um filho e a criança nascera andando e falando. Ao passar pela
casa de Olga, coisa que costumava fazer ao deixar os filhos no
colégio ali nas imediações, ao tomar o cafezinho com a mãe-de-santo,
contou-lhe o sonho que tivera comigo. Olga, dona dos mistérios e dos
segredos dos encantados, arregalou os olhos, não quis encompridar
conversa: Vamos agora mesmo à casa de Jorge, Zélia está correndo
perigo de vida... Prevenida, com um ramo de folhas variadas no
braço, ela entrou no quarto onde eu me encontrava com dores, sem
poder me levantar:
Isso é trabalho feito aqui dentro das portas, afirmou. Vocês
têm alguma empregada que é de candomblé? Nós não sabíamos mas,
depois de uma sondagem, tivemos conhecimento de que a cozinheira
lidava com ebós. Tudo então ficou claro: a cozinheira queria dobrar
Jorge, que se recusara a aceitar em casa, como empregada, sua filha
com uma criança de colo. Orientada, ninguém soube por quem, a
cozinheira então depositara um pó branco nos quatro cantos da casa,
aferventara umas ervas, jogara tudo pelas escadas da rua. Segundo
Olga, nas ervas atiradas porta afora, estava o perigo, perigo às vezes
até de morte. Como Jorge tem corpo fechado, explicou ela, nada pega
nele, a mandinga virou sobre a pessoa mais próxima: Zélia.
Como que por milagre, depois de umas sacudidas das folhas,
que Olga trouxera, em cima de mim, e de palavras em língua nagô,
as dores sumiram.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O ANEL DE JUREMA
Bm toda a literatura de Jorge Amado sente-se o destaque que
ele dá aos mistérios das ruas da Bahia, no poder dos encantados. Vim
compreender realmente a verdade dessas afirmações ao mudar-me
para Salvador, ao conviver com seu povo, com seus preceitos e
segredos.
Num domingo à tarde, enquanto Jorge e eu dormíamos a
sesta, Beatriz Costa, atriz portuguesa, nossa hóspede na ocasião,
atendeu à porta. Uma senhora, muito aflita, queria falar com Jorge. A
visitante era de São Paulo, estava há dias procurando encontrar-se
com o escritor, devia regressar no dia seguinte. Beatriz despachou-a:
Não pode, o escritor precisa de descanso, é preciso respeitar...
Tivemos pena da pobre que, segundo Beatriz, partira chorando.
À noitinha, apareceu Carybé, vinha nos chamar para ir à festa
de Oxóssi, no candomblé de Mãe Senhora.
A festa começara, já fora oferecido o padê a Exu, as filhas-de-
santo dançavam, quando, de repente, Beatriz apertou meu braço:
Olhe lá, a mulher Que esteve à tarde na vossa casa... De aspecto
simples, a senhora estava acompanhada de um casal.
Assim que as filhas-de-santo foram levadas para mudar o traje,
Jorge levantou-se da cadeira dos obás, ao lado de Mãe Senhora, veio
para fora, Beatriz e eu o acompanhamos. A paulista precipitou-se
sobre Jorge:
— O senhor é Jorge Amado, não é?
— Sim, senhora — confirmou Jorge.
Sem nenhum preâmbulo, ela foi direto ao assunto:
— Jorge Amado, onde é que está meu anel?
Nesse momento, vimos Camafeu de Oxóssi andar em nossa
direção. Sem fazer nenhuma pergunta à mulher, Jorge respondeu-lhe:
— Seu anel está com Camafeu de Oxóssi. — Assim dizendo,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
apresentou-a a Camafeu: — É ele quem tem seu anel.
A mulher, então, tirou da bolsa um papel com um desenho,
mostrou-o a Camafeu:
— O senhor tem este anel?
— Tenho, sim senhora — disse ele.
Resumo aqui a história da forasteira: nunca soube seu nome nem
seu endereço. Tudo que sei é que era costureira de profissão, casada,
e o marido querendo abandoná-la por outra. No Terreiro da Cabocla
Jurema, em São Paulo, fora-lhe aconselhado ir a Salvador, procurar o
escritor mais importante da Bahia, pedir a ele um anel — deram-lhe o
desenho do anel — e, de: posse dele, ela reconquistaria o marido.
Levando o desenho na bolsa, ela partira de ônibus para a
Bahia. Hospedara-se num pequeno hotel junto à rodoviária. O que se
passou quando bateu em nossa porta já se sabe. Por coincidência, ao
voltar para seu hotel depois da frustrada visita, viu passar de
automóvel uma freguesa sua, de São Paulo. A freguesa e o marido
passeavam em Salvador e a convidaram para ir ao candomblé,
naquela noite. Foi assim que a costureira pôde falar com quem
procurava.
Acostumado a lidar com pessoas, as mais estranhas, Jorge não
se surpreendeu com a pergunta à queima-roupa. Não quis perder
tempo questionando com a mulher que o abordava. Solucionou o
caso apresentando-a a Camafeu que se aproximava, pessoa indicada,
já que o amigo possuía — como já se sabe — uma barraca de coisas
africanas, no Mercado Modelo. Por coincidência, Camafeu acabara de
receber, da África, uma partida de anéis, pulseiras e outros enfeites.
Encantara-se com um dos anéis, esse seria de Toninha, levou-o para
casa, não ia vendê-lo.
Qual foi, finalmente, o resultado dessa série de coincidências?
Tudo o que eu soube foi que Toninha ficou sem o anel. E a costureira
reconquistou o marido? Isso só Deus sabe. Nunca mais tivemos
notícias dela.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
PESSOA IMPORTANTE
Nesse dia eu mesma atendi à porta. Em minha frente, Zé
Trindade, nos braços um cachorrinho pequinês.
Popular ator de filmes de chanchada, Zé Trindade
apresentava-se em teatros e na televisão, fazia sucesso com seus
programas humorísticos. Viera à Bahia visitar a família, daria um
show no teatro e aproveitava a ocasião para visitar o amigo Jorge
Amado.
A cadelinha é um mimo para você e já está batizada: o nome
dela é KM, disse-me Zé Trindade ao me entregar o presente.
A chegada de Zé Trindade em nossa casa causou alvoroço
entre os empregados. José, o faxineiro, Neusa e Eunice estavam
excitados. Ouvi um cochicho entre eles: Tu sabia que doutor Jorge era
tão importante assim? Até Zé Trindade? Eu, hem! Nem acredito...
Nossa casa era freqüentada por Dorival Caymmi, Vinícius de
Moraes, João Gilberto, Tom Jobim, Sérgio Porto e outros bambas, sem
contar os estrangeiros e os artistas importantes da terra. Nenhum
deles, no entanto, aparecera em filmes de chanchada e nem eram
populares. Na opinião de José, Neusa e Eunice, esses amigos de
doutor Jorge não passavam de gente boa, gente educada. Adoravam
Carybé mas nunca iriam achar que podia ser importante um cara que
só andava de sandálias japonesas e em mangas de camisa. No
entender dos empregados lá de casa, estou certa, esses amigos
estavam longe de dar ao doutor Jorge o status e as glórias de um Zé
Trindade.
Kiki não morou conosco muito tempo. Ela chegou num
momento em que viajávamos freqüentemente e para que tivesse
companhia durante a nossa ausência a deixávamos sob os cuidados
de nossa amiga Auta Rosa, esposa de Calasans Neto, louca por
cachorros e dona de Yuki, um pequinês que, embora platonicamente,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
adorava Kiki. Auta e Calasans se afeiçoaram a Kiki e a cadelinha
acabou ficando com eles, morando em Itapuã.
Na época de nossa chegada à Bahia, Caetano Veloso, Maria
Betânia, Gilberto Gil, Calasans Neto freqüentavam pouco a casa do
Rio Vermelho. O mundo dessa juventude era outro. Calasans Neto só
veio a ser cidadão de nossa casa depois de seu casamento com Auta
Rosa, moça de Ilhéus, alegre, franca, que nos conquistou, tornando-se
uma de nossas melhores amigas. Quanto a Caetano Veloso, viemos
estreitar nossos laços de amizade na Inglaterra quando, banido pelo
golpe militar, Caetano foi viver em Londres. Nessa época, passamos
seis meses morando num apartamento alugado, na Georges Street,
onde Jorge escreveu o romance Tieta do Agreste.
Gilberto Gil despedia-se da Bahia, as terras do Sul abriam-lhe
as portas. João Jorge e Paloma freqüentavam o grupo dos jovens
artistas e eu os acompanhei algumas vezes às despedidas de Gilberto
Gil, em locais os mais diversos, cada despedida uma festa.
GLAUBER ROCHA
Dos jovens baianos geniais, apenas Glauber Rocha era íntimo
de Jorge, mantinham uma amizade quase de pai para filho. Alma
inquieta, Glauber não parava na Bahia. Casara-se com Helena Ignês,
antes que nos mudássemos para Salvador. Assistimos ao seu
casamento e lhes oferecemos nosso apartamento no hotel
Quitandinha, onde os noivos passaram os primeiros dias de sua lua-
de-mel. Lá, Glauber adoeceu, deve ter se chateado naquele imenso e
deserto hotel, desceu para o Rio e ficou em nosso apartamento na
Rodolfo Dantas. De Salvador, Jorge viajara para Pernambuco e eu
para o Rio. Passei a dormir na sala para ceder nossa cama ao casal.
Chamei um médico amigo, Dr. Alcedo Coutinho, que o botou de pé
em três tempos, e lá se foi Glauber, partiu para novas aventuras, para
novos filmes já bulindo em sua cabeça, mundo afora.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Acompanhamos a carreira de Glauber e sua vida até o fim.
Estávamos em Portugal, onde nosso amigo se refugiara, depois de
uma campanha sórdida e sectária desencadeada contra ele, no Brasil,
por ter manifestado sua opinião favorável sobre o general Golbery do
Couto e Silva, teórico da Revolução, com quem manteve bom diálogo.
Sensível como era, Glauber Rocha não pudera suportar o
patrulhamento do qual estava sendo vítima.
Ao vê-lo gravemente enfermo, Jorge aconselhou-o a retornar
ao Brasil onde teria a assistência de sua mãe, de seus amigos, estaria
na sua terra. Desculpou-se por não aceitar dessa vez o conselho do
amigo, recusou-se a voltar. íamos visitá-lo diariamente no hospital,
em Cascais, e depois em Lisboa, onde fora Internado.
Amigo fraterno de Glauber, desde os tempos da juventude,
João Ubaldo Ribeiro passava um ano em Lisboa, coincidindo com I
estada de Glauber em Portugal. Na casa de Ubaldo e Berenice,
Glauber encontrou refúgio e carinho. Incansável, durante a
enfermidade do amigo, João esteve a seu lado até o fim.
O cantor Raimundo Fagner, que se encontrava de passagem
por lá, na época, também o visitava sempre, fazia-lhe companhia. Foi
nessa ocasião que conhecemos e ficamos amigos do cantor e
compositor cearense. As últimas fotografias de Glauber, no hospital,
foram tiradas por mim e por Fagner.
Já nas últimas, quando não havia mais esperanças, Glauber foi
transportado para o Brasil, onde faleceu apenas chegou.
DORIVAL CAYMMI
Dorival Caymmi passava temporadas na Bahia e era assíduo
freqüentador de nossa casa. Foi nessa época que ele compôs a
canção para Menininha do Gantois: ... a mão da doçura, está no
Gantois... Isso mesmo. A mão da doçura, a doçura ela própria, Mãe
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Menininha, a ternura em pessoa.
Amigos de longa data, Caymmi e Jorge são confundidos muitas
vezes, porém de parecido eles têm apenas as cabeças brancas.
Certa vez, no terreiro do Gantois, numa visita à Mãe
Menininha, encontramos no barracão algumas pessoas à espera de
serem atendidas. A chegada de Jorge provocou um certo movimento,
houve cochichos, olhos em cima dele. Reconheceram-no, pensei. Não
passou muito tempo, uma senhora do grupo, não resistindo à
curiosidade, adiantou-se:
— O senhor não é o Dorival Caymmi?
— Não sou o Dorival Caymmi, mas sou o irmão dele —
respondeu Jorge, tranqüilamente.
Caymmi nos contou que o mesmo se passava com ele:
— Jorge Amado, como vai o livro?
— Vai indo, vai indo — respondera Dorival ao homem que o
abordou na rua.
Se nossos empregados não davam a devida importância aos
amigos da casa, em compensação a chegada de qualquer um deles
movimentava a rua.
Vinicius de Moraes, outro amigo de toda a vida, não deixava
de aparecer, sempre que vinha à Bahia. Numa dessas visitas, que
durou um dia inteiro, ao sair, à noitinha, foi abordado por um grupo
de jovens na calçada em frente à nossa porta. Munidos de cadernos e
canetas, voaram pra cima dele: Dorival Caymmi, pode me dar um
autógrafo? Vinicius não perdeu o rebolado, foi autografando: Dorival
Caymmi, Dorival Caymmi, Dorival Caymmi..., muito obrigado, e se foi
rindo satisfeito.
Comigo aconteceu confusão semelhante: eu fora visitar Mãe
Menininha no Gantois. Perguntei a um preto velho, sentado junto à
janela, pela mãe-de-santo. De onde estava gritou: Ó Licinha! Avise
Mãe Menininha que a mulher de seu Carybé está aí. Corrigi-o em
seguida: Não sou a mulher de seu Carybé, não, sou a mulher de Jorge
Amado. Ele fez um gesto com a mão: É tudo a mesma coisa...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
VINÍCIUS DE MORAES
Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se a
série de canções para crianças, de sua autoria:
A beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado, violão
em punho, Vinicius cantava.
Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de
querer contar logo a história que me veio à memória — como já
devem ter percebido, não tenho anotações, tiro tudo da cachola à
medida que as lembranças chegam — esqueci-me de pedir licença
para, ainda uma vez, avançar no tempo. Peço agora, pois devo
explicar como foi que as músicas infantis de Vinícius de Moraes se
salvaram. Avanço tanto, tanto, que falo até de meus netos, os três
que existiam na época: Mariana, Bruno e Maria João.
Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma
baiana, Gessy Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia,
onde até uma casa ele construiu, disposto a ancorar entre o mar e os
coqueiros de Itapuã.
Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava — como foi
dito — quando chegaram meus três netos.
Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse
Vinicius às crianças, e começou: Era uma casa muito engraçada, não
tinha teto, não tinha nada... Espera aí, interrompi, vou buscar um
gravador. Assim dizendo saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho
ligado e ele recomeçou: Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá...
Cantou todas as canções, intercalando entre elas uma chamada: Esta
é para Marianinha!... Esta é para Bruninho!... Esta é para Maria
João!... Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez,
pois elas ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber
que não restara nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
entreguei meu cassete à Gilda Queiroz Matoso, última e amada
companheira do poeta até seus derradeiros momentos. Gravação
precária, porém a única que restou e é a que se ouve até hoje.
Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa,
adorava o casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria,
queria ficar perto deles.
A rua da Amoreira, onde moravam — e moram até hoje —
Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se
isso não bastasse, havia esgoto a céu aberto.
Freqüentador assíduo da casa, inconformado com a situação
dessa rua, Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos
ao prefeito de Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe
atenção e carinho para a rua.
Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do poema-
petição na primeira página do jornal A Tarde.
Petição ao Prefeito
Prefeito Clériston Andrade
A quem ainda não conheço:
Quero tomar a liberdade
Que eu nem sequer sei se mereço
De vir pedir-lhe, em causa justa
Um obséquio que, sem favor
Muito honraria (e pouco custa!)
Ao Prefeito de Salvador.
Existe ali no Principado
Livre e Autônomo de Itapuã
Uma ruazinha que, sem embargo
Pertence à sua jurisdição
Uma rua não sem poesia
E cujo título é dar teto
A uma das glórias da Bahia:
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O gravador Calasans Neto.
Dizer do estado dessa ruela
(Da Amoreira) eu não arrisco
Porque sem esgotos, correm nela
Rios de......— Valha-me o asterisco!
E isso é uma pena, Senhor Prefeito
Pois Calasans e sua gravura
Têm cada dia mais procura
De fato como de direito:
O que constrange os visitantes
Com boa margem de estrangeiros
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
A, entre gravuras fascinantes
Ver quadros nada lisonjeiros.
Calce essa rua, Senhor Alcaide
E eu lhe garanto que algum dia
Pro domo sua, esta Cidade
O há de lembrar com mais valia.
Na expectativa de que acorde
Um novo "Cumpra-se", sem mais
Aqui se assina, muito ex-corde
O seu, Vinícius de Moraes.
Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco
tempo a rua de Auta e Cala foi consertada e asfaltada e, diga-se de
passagem, ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das
imediações.
Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no
mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.
Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa
ofereceram um almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari
da limpeza pública, levando para Cala e Auta a petição, enquadrada.
CONCEITO DE LIBERDADE
Numa edição pequena da editora Macunaíma, Vinicius de
Moraes publicou um livro sobre seu amigo Pablo Neruda: História
natural de Pablo Neruda ou A elegia que vem de longe.
Um belo dia, estava Vinicius, muito na dele, tomando seu
uisquinho na casa de Cala, divertindo-se com as histórias que o
anfitrião lhe contava, mestre na arte de contar histórias, quando
apareceu uma repórter do Jornal do Brasil para entrevistar o poeta
sobre o livro recém-saído.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Naqueles anos duros de censura e repressão, as palavras
deviam ser medidas. A repórter, inocente ou não, fazia perguntas
comprometedoras. Vinícius, ele próprio, fora vítima da ditadura,
perdera seu posto de diplomata com o seguinte despacho do
presidente da República: Afaste-se esse vagabundo. Assinado: Artur
da Costa e Silva.
Experiente, Vinícius respondia com evasivas às perguntas da
repórter até que a jovem resolveu fazer-lhe a pergunta definitiva:
— Vinícius de Moraes: o que pensa o senhor sobre a
liberdade? Qual é o seu conceito de liberdade?
Vinícius não titubeou, tranqüilamente respondeu:
— Meu conceito de liberdade é poder fazer cocô de porta
aberta.
MOUSTAKI VEM À BAHIA
Assinando a coluna social de A Tarde, notas lidas pela Bahia
inteira, July (Julieta Isenssée) anunciava: A convite de Vinícius de
Moraes, chegará à Bahia, nesses próximos dias, o compositor grego,
de nacionalidade francesa, Georges Moustaki, autor de Le Meteque e
de Joseph, entre tantas composições maravilhosas. Ele virá para a
estréia, no Teatro Castro Alves, do show de Vinícius de Moraes, O
poeta, a moça e o violão, que terá a participação de Toquinho e Maria
Creuza.
Georges Moustaki chegou à Bahia quando Vinícius ainda
morava em casa de aluguel, casa sempre movimentada, ponto de
encontro de artistas, cantores, compositores, mais movimentada,
sem comparação, do que a nossa.
Além de Toquinho e Maria Creuza, integrantes do show,
estavam hospedados com Vinicius a atriz Suzana Gonçalves e a
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
estrela canadense Alexandra Stewart. Com a casa repleta, Vinicius
nos consultou, talvez pudéssemos hospedar Georges Moustaki. Foi
com o maior prazer que concordamos: o compositor seria nosso
hóspede.
Conhecêramos Moustaki na França, éramos seus admiradores.
Paloma possuía uma coleção de cassetes das canções dele e a voz de
Moustaki nos acompanhava em todas as viagens de automóvel.
Georges Moustaki lera os livros de Jorge Amado e, segundo diz
e repete, se apaixonara. Pedira à Verinha, jovem paulista, nossa
conhecida, amiga dele, que o apresentasse ao escritor. Daí começou
o nosso relacionamento.
O BANDIDÃO
O poeta, a moça e o violão estrearia no dia seguinte, havia
grande expectativa em torno do espetáculo. Ocupadíssimos com os
preparativos e os ensaios, Vinicius não poderia ir ao aeroporto
esperar seu convidado que chegaria naquele dia. Pediu então às duas
atrizes, Suzana e Alexandra, que o fossem esperar. Elas tomariam um
táxi, de Itapuã ao aeroporto era um pulo.
Plantadas no meio da rua à espera de que passasse um táxi,
viram que um carrão de luxo, um rabo-de-peixe, que passara por
elas, diminuíra a marcha, parará, dera uma ré. Bem-posto, óculos ray-
ban, o moço perguntou:
— Querem carona? Para onde vão?
Encantadas, elas aceitaram, o cavalheiro era simpático. Ele
abriu a porta da frente e as duas entraram.
— Você não é a Suzana Gonçalves? — Ele a reconhecera das
novelas, era seu admirador.
— Sou eu mesma. Minha amiga também é atriz, ela não fala
português.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Você não está me reconhecendo, Suzana? — perguntou ele,
rindo.
— Não, não estou. Creio que nunca o vi antes.
— Ainda bem — disse ele ao mesmo tempo em que tirava os
óculos. — E agora?
A moça tentava lembrar-se:
— Não, não me lembro.
— Eu sou Mariel Mariscot—disse.—Isso não lhe diz nada? Claro
que dizia: Mariel Mariscot, o temido policial-bandido do Esquadrão da
Morte, procurado como agulha no palheiro pela polícia. Os jornais
haviam se ocupado muito dele. Suzana conseguiu apenas dizer:
— Não acredito. O senhor está brincando, está querendo me
assustar...
— Não estou brincando, não. Abra a caixa que está a seus pés
e veja.
O homem não mentia. Na caixa havia nada mais, nada menos
do que uma metralhadora e munições.
Alexandra Stewart estava sem entender nada até o momento
em que viu a metralhadora e aí se apavorou, empalideceu: Vamos
pedir para ele parar e vamos descer, pediu a moça. Vivo, Mariscot
entendeu o que a canadense dizia: Explique a ela que não precisa se
assustar, eu não sou nenhum bicho-papão, não sou o bandido de
quem tanto falam. Apenas faço justiça com minhas próprias mãos,
nunca matei um inocente, só mato bandidos, assassinos, por isso
pertenço à Scuderie Le Cocq. Não se assustem, por favor, repetiu ele.
Levo vocês ao aeroporto e posso até esperar que vosso amigo chegue
—é um cantor grego, não é?—e levo vocês de volta à casa de
Vinicius. A conversa havia rolado bastante antes da descoberta da
sua identidade.
Mariel Mariscot estava a par de tudo, não conhecia, nem de
nome, Georges Moustaki, mas em compensação era grande
admirador de Vinícius de Moraes, até cantar, cantou um verso do
Poetinha que, segundo ele, o comovia às lagrimas: Mas quero as
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
janelas abrir para que o sol possa vir iluminar nosso amor...
Aos poucos foi conquistando a confiança de Suzana, que
chegou até a oferecer-lhe entradas para o show, no dia seguinte.
Entradas para o show, disse ele, infelizmente não posso
aceitar. Sou procurado pela polícia, como você sabe, não posso me
arriscar a ir a um local fechado, se me pegam me matam na
hora. ..Só não abro mão de esperar por vocês no aeroporto. Vivo tão
solitário que as suas companhias, hoje, foram um presente para mim.
Georges Moustaki encontrou à sua espera as duas belas e um
possante rabo-de-peixe, dirigido por um membro do Esquadrão da
Morte, que o levou a Itapuã.
Ao deixá-lo na casa de Vinícius, Mariscot, gentil, ofereceu-se:
Posso, se quiserem, passeá-lo pela Bahia, não façam cerimônia, estou
disponível, não tenho o que fazer, conheço os mais belos recantos da
cidade. Será um grande prazer para mim. Convite tentador, mas isso
seria demais, não foi aceito.
Ao tomar conhecimento do acontecido, Vinícius quase
desmaiou. Moustaki, ao saber dos detalhes, achou muita graça e
sempre que fala de sua primeira visita à Bahia conta com orgulho: Na
minha primeira visita à Bahia fui recebido pelo maior bandido do
Brasil.
Peço licença para dar uma nota, nota que nada tem a ver com
a Casa do Rio Vermelho, mas que pode satisfazer a curiosidade de
quem, por acaso, tenha se interessado pelo fim que levou Mariel
Mariscot:
Os jornais anunciaram com estardalhaço: Preso na fronteira da
Bahia, ao regressar ao Rio de Janeiro, de automóvel, o bandido Mariel
Mariscot, perigoso elemento do Esquadrão da Morte...
Tempos depois, voltei a ler nos jornais: Morto por uma rajada
de metralhadora, no rosto, o fugitivo da polícia Mariel Mariscot,
membro do Esquadrão da Morte... O carro do bandido, dirigido por ele
próprio, foi abordado e metralhado, de frente, numa rua do centro do
Rio de Janeiro, por um pelotão da polícia...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
PAIXÃO
Nessa sua primeira visita à Bahia, Moustaki passou um mês
conosco e sua presença na rua Alagoinhas aumentou ainda mais o
movimento da casa: músicos e compositores o visitavam, moças
bonitas e feias também apareceriam. Houve até uma que apelidamos
de peitudinha, devido, só podia ser, aos seus peitos enormes. Essa se
plantou e não queria mais ir embora. Outra convidada por Moustaki a
ir à praia e, não tendo um biquíni à mão, declarara: Isso não tem
importância, tomo banho nua mesmo. Solícita, quis emprestar-lhe um
maio, clássico, Christian Dior. Olhando com o maior desprezo para o
meu lindo Dior, ela deu um chega pra lá, monologando com desdém:
Samba-canção.
O telefone tocou, queriam falar com Jorge. Jorge Amado foi
chamado:
— Querem falar com você — disse Misette, que passava uma
temporada conosco e atendera o telefone.
— Homem ou mulher? — quis saber Jorge.
— Tanto pode ser homem como mulher — riu Misette.
— Alô! É Jorge?
— Sim, eu mesmo.
A voz — masculina, segundo ele — vinha do fundo do coração
e exclamou:
— Paixão!!!
— Espera um pouco — disse Jorge, rindo -—, há uma pequena
confusão, não sou eu a sua paixão. Sua paixão já vai lhe falar. —
Passou o fone para Moustaki.
Essa história rendeu muita risada e até hoje os dois, Georges e
Jorge, se tratam por paixão.
Moustaki voltou ainda várias vezes à Bahia e, numa delas,
inspirado, compôs duas músicas: Bye bye Bahia e Bahia. Nessa última
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
há um verso que diz: c'est la que j'ai trouvé lê paradis, à côté de chez
Jorge Amado.
A CANJA
O show de Vinicius, no Castro Alves, foi o maior sucesso, o
teatro superlotado. Moustaki foi chamado ao palco, deu uma canja,
cantou Águas de março em sua versão francesa. Na volta para Itapuã,
ao passarem por Amaralina, Vinicius resolveu dar uma esticada no
bar Samburá. Passaria ainda uma horinha com os amigos, se
distendendo.
Toquinho dedilhava o violão, Maria Creuza cantarolava,
falavam, riam. Vinicius pediu a Moustaki que cantasse sua versão do
Balance, ele adorava ouvi-la. Moustaki cantou: ... j´sais pas dance,
pas dance... o balance, balance... A pedido de Moustaki, Vinicius
entrou com Garota de Ipanema. Cantava, alma e charme para dar e
vender, quando de repente, surgiu um empregado do bar.
Interrompendo o poeta disse: Vamos acabar com isso aí? O patrão
não quer esculhambação aqui dentro!
O HOMEM FORTE
Homem forte da Bahia, diretor do Diário de Notícias,
mandachuva da TV Itapuã, primeira estação de televisão no estado,
também da organização dos Diários Associados, de Assis
Chateaubriand, Odorico Tavares mandava e não pedia.
Na casa de Odorico Tavares, no Morro Ipiranga, encontrava-se
a mais bela coleção de quadros, pinturas de renomados artistas
brasileiros e estrangeiros. Lá estavam as famosas marinhas de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Panceti, as mais belas mulatas de Di Cavalcanti, a Bahia de Carybé,
gravuras de Calasans Neto, dois ou três Portinari. Além da valiosa
coleção de pintura, Odorico possuía imagens de ; santos, tantas e tão
belas que, basta dizer, durante alguns anos o Museu de Arte Sacra da
Bahia foi famoso pelos objetos sacros e pelas preciosas imagens
emprestados por Odorico Tavares, de sua coleção.
Numa sala, à parte, estavam os primitivos e entre os baianos
destacavam-se João Alves, Cardoso e Silva e Willys, pseudônimo de
Thales Porto, um mestre primitivo que pintava pouco, seus elos
quadros eram raros. Três personagens que faziam história.
A grande casa de Odorico, comandada por Gercina, meiga e
doce criatura, a esposa que fala pouco e manda muito, era
movimentada e sóbria. As filhas Leda e Maria, o filho Jader, ajudavam
a receber os visitantes, personalidades quase sempre recomendadas
por Chateaubriand.
A grande festa era a chegada de Di Cavalcanti, amigo fraterno
de Odorico, pernambucano como os donos da casa, que vinha para os
bate-papos e as rodadas de pôquer com parceria formada: o anfitrião,
Jorge, Mirabeau, Yves Palermo, Negro Batista... Muitas vezes o jogo
era na rua Alagoinhas e, então, todos almoçavam conosco, e o
festival de histórias contadas por Di era em nossa casa. Eu não
participava do pôquer mas me regalava, ali ao lado, sem dar palpites,
ouvindo as histórias e as invenções do imaginoso Di. Recordo ele
cantando a paródia de uma canção italiana: Comme prima..., que ele
dava a sua versão: Quem tem prima, come prima...
MÚSICA PARA o ANIVERSÁRIO
Odorico Tavares ia completar cinqüenta anos, Gercina e os
filhos haviam preparado uma festa de arromba, até Assis
Chateaubriand viria para a comemoração.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Uma festa dessas sem banda de música não tem graça, não
presta, pensaram os compadres Jorge e Carybé. Se bem pensaram,
melhor executaram: foram ao comandante do Corpo de Bombeiros,
conseguiram que a corporação prestasse uma homenagem ao ilustre
aniversariante, mandando a banda tocar marchas e dobrados, em
hora determinada pelos dois pelintras, na porta da casa em festa, no
Morro Ipiranga. Não satisfeito com isso, por conta própria, Carybé
comprou uns rojões para serem disparados à chegada dos músicos.
Do caminhão aberto que encostou, homens uniformizados,
cada qual com seu instrumento, desembarcaram em frente à casa de
Odorico, repleta de convidados. Rojões pipocaram no céu, a banda
entoou o hino: O Cisne Branco. Lá dentro os donos da casa se
entreolharam: Foram eles, disse Odorico ao poeta Carlos Eduardo da
Rocha, a seu lado, Jorge e Carybé. Gercina ouviu o comentário e
disse: Isso mesmo, obra dos dois pilantras, de Jorge e Carybé. Todo
mundo saiu à rua, o primeiro a chegar ao portão, rindo de se acabar,
foi Di Cavalcanti. Carybé, dava uns requebros na frente da banda,
Dmeval Chaves, o livreiro, vizinho de Odorico, assustado apareceu, de
roupão, entre os moradores da rua, saíra do banho com a gritaria dos
filhos que anunciavam uma revolução, bombas e soldados
desembarcando no morro...
SEM SAIR DO LUGAR
Di Cavalcanti me telefonou um dia. Soube que vocês têm
criação de Pug, vi um filhote na casa do Noel Nutels. Ando louco atrás
de um cachorrinho dessa raça.
Tínhamos, realmente, um casal de cachorros da raça Pug,
vindos da Inglaterra, chamavam-se: Mr. Pickwick e Capitu. Mr.
Pickwick, homenagem de Jorge a um personagem de Charles Dickens,
autor de seus encantos, e Capitu, heroína de um romance de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Machado de Assis.
Déramos a nosso amigo Noel Nutels um cachorrinho de Capitu,
parideira de grandes ninhadas. O cãozinho foi o amigo fiel do famoso
médico indigenista, até seus últimos dias. Numa visita ao enfermo, Di
vira o cãozinho e ficara alucinado.
— Pois olhe, Di — eu lhe disse —, minha cadelinha está
prenha e eu vou guardar um cachorrinho pra você.
Di Cavalcanti riu satisfeito.
— Em troca, vocês vão receber um quadro meu.
— Sem sair do lugar! — exclamei.
Aprendera com Odorico Tavares, cuja teoria era a de que
jamais se deve recusar um presente de obra de arte. É aceitar na
hora, sem fazer rapapés, sem discutir, sem sair do lugar, frisava o
mestre.
Semanas após minha conversa telefônica com Di, soubemos
da vinda dele à Bahia. Fora anunciado que lhe seria outorgado o título
de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia.
A notícia da homenagem da universidade a Di Cavalcanti nos
alegrara e a todos os seus amigos e admiradores. Recebíamos a
notícia com o júbilo de quem havia se revoltado, sem poder reclamar,
com a humilhação imposta ao grande pintor pelos donos da
Revolução Redentora, destituindo-o do posto de embaixador na
França.
Nomeado embaixador na França pelo presidente João Goulart
pouco antes do golpe de 64, ao receber as credenciais Di Cavalcanti
viajou para a Europa a fim de assumir o cargo. Apenas chegara a
Paris e mal tomara posse, sua nomeação fora cassada, fora tirado do
posto: Fui embaixador por um dia..., costumava dizer Di, cheio de
bom humor.
FESTIVAL DE CASSAÇÕES
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O embaixador Di Cavalcanti fora cassado, como muita gente
boa, naqueles anos de regime militar, quando se vivia num
verdadeiro festival de cassações.
Uma série de atos institucionais a partir de 1964, culminou,
em 1968, com o célebre AI-5, dando poderes totais ao regime militar,
carta branca para cometer, impunemente, os maiores crimes:
prender e torturar, cassar os direitos do homem, sobretudo de
cientistas, compositores, cantores, artistas plásticos, jornalistas.
O renomado cientista Haity Moussatché, professor e
pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, foi cassado
e passou quinze anos trabalhando no Conselho de Pesquisas, na
Venezuela, até voltar ao Instituto de Manguinhos em 1985.
Moussatché costumava dizer: Não fui eu quem foi cassado, foi toda
uma geração de jovens em formação.
Dos compositores, os mais visados e atingidos foram Caetano
Veloso e Chico Buarque de Holanda.
Com a cabeça raspada pelos esbirros da polícia, num ato de
violência e selvageria, perseguido, Caetano Veloso deixou o país, foi
procurar teto em Londres.
A vez de Gilberto Gil não tardou a chegar, não era mais
possível viver no Brasil. Como deixar de criar livremente suas
músicas? O clima de restrições, de censura, tornava-se insuportável.
Despedindo-se do Brasil e da Bahia, Gil foi encontrar-se com Caetano
em Londres, partiu deixando aquele abraço.
Chico Buarque sobreviveu muito tempo com a censura em
seus calcanhares proibindo tudo e ele teimando, prosseguindo,
camuflando: Apesar de você amanhã há de ser outro dia..., cantou
ele, cantou o povo até que a censura maliciou, cassou, prosseguiu na
tocaia à espera de novas composições para novas cassações. Chico
partiu, continuou a compor na Itália, onde viveu vários anos. Debaixo
dos caracóis dos seus cabelos, cantou Roberto Carlos para Caetano
Veloso, no exílio.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Di Cavalcanti voltou para o Brasil, para sua pintura,
aguardando dias melhores para seu país. Agora ele seria recebido
com as pompas merecidas, na Bahia.
A BARGANHA
Capitú já dera cria, o cãozinho prometido a Di estava à sua
espera. Na véspera de chegar à Bahia ele me telefonou:
— Chego amanhã. O quadro está pronto. Vou levando...
— Pois o cachorrinho também está pronto, é lindo, você vai se
apaixonar...
Di veio direto do aeroporto à nossa casa, trazendo o quadro.
Quadro enorme, de mais de um metro, mulatas deitadas, coloridas...
Cheguei a perder o fôlego, imaginara que o trabalho anunciado fosse
um desenho, quando muito uma aguada... Lembrei dos ensinamentos
de Odorico: Aceite antes que ele se arrependa... Entreguei o
cachorrinho, apanhei o quadro que foi pendurado, em seguida, na
parede de nosso quarto de dormir, onde se encontra até hoje. No
momento só me ocorreu dizer: aceitamos o quadro em troca de um
cachorro e de quarenta anos de amizade...
Em homenagem a Vasco Moscoso de Aragão, personagem de
O capitão de longo curso — dos romances de Jorge Amado, a paixão
de Di —, o cachorrinho foi batizado com o nome de Capitão. Inscrito,
por Beril, mulher de Di, em concursos caninos, Capitão recebeu
medalhas de ouro como o melhor da raça. O remorso da disparatada
barganha, até que diminuiu diante dos diplomas, das glórias e da
satisfação que Capitão dava a seus donos.
Os PRIMITIVOS
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Mostrei interesse pelos primitivos da coleção de Odorico
Tavares e ele mandou que João Alves e Cardoso e Silva nos
procurassem.
Personagem popular no centro de Salvador, João Alves
começara a pintar quando ainda era engraxate, no Largo da Sé. Sem
nenhuma instrução, João Alves era um primitivo, ele próprio, de
grande sensibilidade artística. Retratava a Bahia em cores vivas, seus
casarios, seus telhados. Sua pintura era inconfundível, destacava-se
entre os demais primitivos da Bahia.
João deixara de ser engraxate, dedicava-se apenas à pintura.
Vendia seus quadros por qualquer dinheiro e quando não vendia
trocava por bugigangas. Até por duas latas de goiabada, certa vez,
ele trocou um quadro. Estava encantado com o bom negócio e me
explicou: Eu como uma, a outra fica de pé, de enfeite, na prateleira.
João Alves vivia com uma senhora gorda e calada, a criatura,
como ele dizia, numa cafua do Pelourinho. No acanhado cubículo sem
janelas, escuro e úmido em que viviam, não havia espaço para o
cavalete de trabalho, o jeito era pintar no corredor ou na rua, o que
não fazia diferença para o artista, isso não alterava a qualidade dos
quadros.
Sobraçando três telas, João Alves apareceu um dia, todo
suado, penara debaixo do sol na ladeira íngreme. Foi doutor Odorico
que disse que doutor Jorge está interessado nos meus quadros...
Muito bonitos os três, ficamos com eles. Na hora de dar o preço, João
torceu a boca, olhou para os lados, por fim disse: Pro senhor eu faço
mais barato... Talvez, pela cara de satisfação que fez ao receber o
dinheiro, deduzi que ele nunca havia vendido um quadro tão caro.
Acostumado com clientes que pechinchavam, ele devia ter
aumentado um pouco o preço, mas mesmo assim fora barato, nós
compramos as três telas e lá se foi João, feliz da vida.
Desde esse dia, as visitas do pintor se renovaram e todas as
vezes ria satisfeito, os quadros que comprávamos eram, na sua
maioria, para presentear amigos.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
CARDOSO E SILVA
Ao contrário de João Alves, a produção de Cardosinho era
pequena. Ele pintava igrejinhas, caprichava nos detalhes. Pintava,
vendia seu quadro e quando o dinheiro acabava ele pintava outro.
Algumas igrejinhas de Cardoso permanecem em nossas paredes.
Homem de meia-idade, quase calvo, os poucos cabelos que lhe
restavam eram grisalhos. Aposentado de uma repartição pública onde
fora escriturário, Cardosinho era uma pessoa estimável. Dono de
alguma cultura — falava até frases em francês —, tinha a língua
embolada — parecia estar imitando o português falado por inglês —
devido a um derrame cerebral que sofrera.
Pessoa alegre, gargalhava por qualquer coisa e também
chorava com freqüência. Espírita e maçom, dizia ser médium vidente,
tinha lembranças de suas vidas anteriores, de suas vidas e das vidas
de amigos. Cardoso afirmava, por exemplo, com a maior convicção e
seriedade, ter nos conhecido, a mim e a Jorge, há cinco mil anos,
quando, na Arábia, eu era a princesa Nadeija e Jorge o príncipe
Zalomar. Ele, Cardosinho, um vassalo.
Nossa história fora romântica e triste, história que provocava
ao narrador lágrimas nos olhos.
Zalomar e Nadeija eram muito felizes, contava ele. Mas um
belo dia, quando o céu escureceu e o vento forte soprou anunciando
um siroco, teimoso, Zalomar montou em seu cavalo zaino e
despedindo-se de Nadeija disse: Vou para o deserto de areia, minha
amada.
Nadeija implorou: Não vá, Zalomar! É perigoso! Mas Zalomar
não a ouviu e partiu: petelé, petelé, petelé... galopava o cavalo.
Cardoso não contava uma história — e eram muitas — sem
confirmar a sua veracidade. A história de Nadeija e Zalomar não
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
escapou à regra. Interrompendo a narrativa, ele me perguntou:
— Me diga uma coisa: Jorge Amado é teimoso?
— Muito teimoso, teimoso até demais—confirmei e fui dando
corda —, quando ele encasqueta com uma coisa não há quem lhe tire
da cabeça. — Por que não colaborar com meu amigo?
O vassalo riu, glorioso:
— Estão vendo? Aí está! Teimoso como Zalomar... Não mudou
nada.
O fim da história foi muito triste, prosseguiu Cardoso. Zalomar
e seu cavalo zaino foram soterrados pelas areias do deserto. Ao saber
que nunca mais o seu amado voltaria, Nadeija caiu morta. Os
espíritos dos dois se encontraram no céu e então combinaram voltar
à terra, daí a cinco mil anos, para serem felizes para sempre.
Resolvi provocar Cardosinho:
— Jorge combinou nascer na Bahia e eu em São Paulo? Há
cinco mil anos?
— Isso mesmo — disse ele —, combinaram se encontrar na
terra... A verdade é que se encontraram... Estou mentindo? — A
gargalhada de satisfação encobriu suas últimas palavras.
Uma das mágoas do pintor era a de ter sido, numa de suas
inúmeras encarnações, o cardeal Pierre Cauchon, que presidira o
processo contra Jeanne d'Arc e assinara sua pena de morte:
Eu sabia que a garota era inocente, dizia o ex-cardeal, aos
prantos, mas fui obrigado a assinar...
Fui também prisioneiro, na França, passei dez anos na prisão
des Oubliettes, que, como o próprio nome diz, explicava o erudito, era
a prisão dos esquecidos. Quem entrasse nela, era para sempre, nunca
mais saía. A masmorra ficava num subterrâneo ao lado do no Sena e
a água me cobria até a cintura em dias de baixa e até o queixo em
dias de cheia. Eu me distraía vendo os peixes passarem pelo meu
nariz, para um lado e para outro... Por isso sou um dos maiores
entendidos em peixes. Quer uma prova?
— Claro que queremos — falava por mim e por Jorge, que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ouvia calado.
— Pois então me diga uma coisa: quantas vezes eu já comi
peixe aqui em sua casa, dona Zélia?
— Muitas vezes...
— E a senhora, por acaso, alguma vez me viu engasgar com
espinhas?
— Nunca.
— Aí está a prova — gargalhou ele, vitorioso.
João e Paloma adoravam ouvir as histórias das reencarnações
de Cardoso. João Jorge, segundo ele, fora seu colega no Egito, há
milhares de anos, quando João era um notável matemático. Querem a
prova?
— Queremos — dissemos em coro.
— Me diga uma coisa, João: qual é a sua cor preferida?
— Azul — disse João.
— Aí está confirmado: azul. A cor da matemática... Jorge
sempre dizia: De Cardoso não se deve duvidar, com Cardoso não se
deve discutir, suas histórias são lindas, cheias de imaginação. Ele não
é louco. Ele acredita no que conta. É uma alma boa.
LICÍDIO LOPES
Ainda um pintor primitivo entrou no círculo de nossas relações:
Licídio Lopes, pintor de parede. Homem de meia-idade, pacato,
simpático, Licídio Lopes pintava, para seu prazer, paisagens do Rio
Vermelho. Velho morador do bairro, ele retratava com enorme graça
e fidelidade as praias do Rio Vermelho, as banhistas, muitas
banhistas de maiôs comportados, porém sempre mostrando pernas
roliças e seios abundantes.
Terminada a pintura de nossa casa, na qual trabalhara, Licídio
veio nos trazer um quadro de presente. Só então soubemos de sua
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
arte. Creio que Licídio nunca mais precisou pintar uma casa. Sua
fama de bom primitivo se espalhou e ele passou a viver dos quadros
que vendia.
Homem surpreendente, um belo dia Licídio Lopes apareceu
com um manuscrito, um diário que escrevia nos intervalos de tempo.
Páginas de muito interesse, escritas com graça, Jorge se encantou,
fez uma revisão no texto, escreveu um prefácio: "Duas palavras sobre
Licídio Lopes" e conseguiu a publicação do livro com a Fundação
Cultural do Estado. O livro, ilustrado com fotografias do Rio Vermelho,
saiu com o título: O Rio Vermelho e suas tradições — Memórias de
Licídio Lopes.
FLORIANO TEIXEIRA
A Bahia ganhava ainda um pintor. Desta vez não se tratava de
um primitivo. Vindo do Ceará pelas mãos de Lina Bo Bardi, diretora do
Museu de Arte Moderna da Bahia, Floriano Teixeira, com sua pintura e
sua simpatia, conquistou a todos os que o cercaram. Carybé, olho
crítico severo, decretou: Esse é dos bons; Mirabeau Sampaio disse
amém; dos melhores, afirmou Odorico.
Arquiteta de grande competência, numa visita a Fortaleza,
Lina Bo Bardi batera os olhos no quadro de um artista desconhecido,
se encantou e o trouxe à Bahia; faria uma exposição no museu que
dirigia. A primorosa pintura de Floriano impressionou todo mundo,
sobretudo a Jorge, que viu no modesto funcionário da reitoria, que
jamais vendera um único quadro por lá, um pintor extraordinário. Na
Bahia ele teria mais chance de ir adiante.
Pai de sete filhos, maranhense de nascimento, radicado em
Fortaleza, Floriano titubeou diante da insistência dos amigos para que
largasse o emprego seguro no Ceará e se mudasse, com armas e
bagagens para a Bahia, numa aventura promissora. Ele contara, com
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
muito humor — humor é o que não lhe falta —, que Giotto, seu filho, o
mais velho das crianças, lhe dissera ao despedir-se dele: Olhe, pai, se
aparecer por lá, na tua exposição, um besta, e comprar um quadro,
não deixe de trazer uma televisão pra gente...
Floriano voltou para Fortaleza levando a televisão para a
família e o bolso cheio. Muitos bestas — segundo o menino Giotto —
haviam ido à exposição, comprado todos os quadros e mais
houvesse...
Em nossa casa do Rio Vermelho, Floriano viveu cerca de dois
meses, pintando, organizando sua vida para trazer Alice, sua mulher,
e os filhos que haviam ficado à espera, em Fortaleza.
Numa casa rústica, na Amaralina, cedida por Mecenas Marcos,
amigo da turma, Floriano alojou a família o tempo necessário até
engrenar e poder viver em casa própria. Com Alice, mulher tranqüila
e determinada, e seus oito filhos—o oitavo nascido na Bahia —,
Floriano mudou-se para o Rio Vermelho, numa casa próxima à nossa,
pinta e vende seus belos quadros e cria netos.
Floriano ilustrou vários livros de Jorge: Dona Flor e seus dois
maridos, Quincas Berro Dágua, O milagre dos pássaros, O menino
Grapiúna e Tocaia grande. É autor das capas de meus cinco livros de
memórias.
CAMUS, BRUNO E NELSON, NA BAHIA
Quando Marcel Camus chegou com sua equipe à Bahia para
filmar Os pastores da noite completou-se o rebuliço. Desembarcara
em Salvador, com armas e bagagens, poucos dias antes, Bruno
Barreto, trazendo a tiracolo Sônia Braga e José Wilker, para filmar
Dona Flor e seus dois maridos.
Na mesma ocasião, Nelson Pereira dos Santos, na casa da rua
Alagoinhas, trabalhava dia e noite no roteiro de Tenda dos Milagres, a
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ser rodado sob sua direção, a filmagem marcada para aqueles dias.
A produção de Os pastores da noite era rica. A equipagem que
Camus trouxera chegara de navio, num imenso caminhão com
gerador elétrico que, segundo foi dito, daria para iluminar Salvador
inteira. A produtora do filme, Claire Duval, vinha de ganhar rios de
dinheiro com seu filme Emmanuelle, sucesso mundial, e apostava no
livro de Jorge Amado e no diretor famoso.
Camus precisava de muito espaço para trabalhar. Encontrou e
alugou um terreiro de candomblé, desativado, que pertencera a
Joãozinho da Goméia. Numa das casas que permanecia no terreiro
vivia um casal de empregados.
Em conversa com a caseira, Camus perguntou-lhe se conhecia
mulatas bonitas, precisava de muitas para figurantes. A senhora lhe
respondeu que conhecia poucas, mas bonita mesmo ela só conhecera
uma e dessa ela pendurara o retrato na parede, recortado de uma
revista. Chamou-o para ver. Na página de O Cruzeiro, desbotada pelo
tempo, Marcel Camus reconheceu sua esposa, Lourdes de Oliveira,
com quem era casado havia anos, desde a filmagem de Orfeu do
carnaval, de Vinícius de Moraes, que ele dirigira e ela fora atriz.
Camus necessitava de um ator da terra para ser o padre que
batizaria o filho do Negro Massu. Explicou a Jorge as características do
personagem que necessitava para a cena de O compadre de Ogun.
Jorge não pensou duas vezes, indicou-lhe Licídio Lopes.
— Licídio Lopes?—me admirei. —Você acha que Licídio?...
Jorge me cortou:
— Acho sim. Deixa comigo...
Na bela Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, o padre
Licídio Lopes cumpriria, lindamente, sua missão de ator.
CONFUSÃO NO PELOURINHO
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
No Centro Histórico de Salvador desenvolviam-se, ao mesmo
tempo, as filmagens dos três romances de Jorge Amado.
Ao iniciar uma tomada, Camus acionava uma estrepitosa
sirene, seguida de um grito: Moteur! Como que por encanto, todo
mundo se calava, ninguém saía do lugar.
Quando Bruno Barreto ia iniciar uma tomada, munido de um
megafone, um assistente dele, um jovem chileno, alertava com seu
sotaque: Silêncio, por favor! Vamos iniciar a filmagem! O aviso se
repetia várias vezes, tantas quantas fosse preciso, até que o barulho
terminasse e as pessoas se aquietassem em seus lugares.
Quando Nelson Pereira dos Santos ia iniciar seu trabalho, no
brega, lugar quente, considerado o mais perigoso do Pelourinho, sem
ajuda de sirene nem sequer de um megafone, com sua voz tranqüila,
ele pedia: Vamos começar a filmagem: silêncio, por favor. Não
precisava repetir uma segunda vez, todo mundo se calava.
Nelson fora avisado que lá no brega vivia um temido
desordeiro por nome Sergipinho. Dele contavam que havia matado
uma pessoa com um facão e depois lambido o sangue da lâmina.
Nelson convocou o tal Sergipinho para uma conversa. Contratou-o
como auxiliar, fiscal para evitar bagunça. Encantado com o posto, o
temido facínora passou a ser o mais feliz e eficiente auxiliar da
equipe.
CONFUSÃO COM DOM AVELAR
Jorge era solicitado diariamente pelas três equipes, resolvia
problemas, os mais diversos.
Camus lhe pediu, um dia, que conseguisse autorização do
bispo, na época Dom Avelar Brandão, para que a filmagem do
batizado do filho do Negro Massu fosse realizada dentro da Igreja do
Rosário dos Pretos, na ladeira do Pelourinho. A produção se informara
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
e fora avisada de que era proibido filmar dentro da igreja.
Jorge conseguiu a autorização do bispo explicando-lhe que se
tratava apenas de uma cena de batizado católico, nada que pudesse
desrespeitar a religião.
Ao chegar à porta da igreja para a filmagem, em dois ônibus
repletos, Marcel Camus, sua equipe, equipagem, atores e figurantes
foram barrados. Havia ordem superior para não deixar ninguém
entrar com câmeras de filmagens. Surpreso, Camus telefonou para
Jorge pedindo ajuda, os ônibus à porta da igreja aguardando uma
solução. Surpreso e indignado, Jorge não perdeu tempo, telefonou
para o Palácio Arquiepiscopal. Atendeu uma pessoa dizendo que Dom
Avelar não podia atender, estava meditando.
— Meditando? E até que horas ele medita? — quis saber Jorge.
— Depende, às vezes ele fica até meio-dia — disse o rapaz.
— Meio-dia? São apenas nove horas da manhã...
— É isso, o jeito é aguardar.
Jorge não estava disposto a aguardar nem um minuto quanto
mais três horas. Falou grosso, ordenou:
— Pois vá em seguida chamar Dom Avelar, vá por minha
conta, diga que sou eu, que o assunto é urgente, urgentíssimo. Pode
ir, eu me responsabilizo.
Finalmente, Dom Avelar veio ao telefone e justificou a sua
proibição: recebera queixa da direção da irmandade de que uma
equipe de cinema, a de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge
Amado, havia dois dias filmara um homem nu dentro do templo. O
seu pedido, doutor Jorge, foi para filmar um batizado e não cenas de
nudismo... não foi isso?
Depois de muitas explicações, tudo foi esclarecido: sem saber
se podia ou não filmar na igreja e por isso não pedira autorização,
Bruno Barreto encontrara a porta do templo aberta, por ordem de
Dom Avelar. O diretor de Dona Flor não sabia — e mesmo que
soubesse do equívoco, não creio que seria louco de recuar — que, a
pedido de Jorge Amado, a igreja fora franqueada para a filmagem de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Os pastores da noite e não para ele.
Bruno Barreto filmara a saída da missa, entre os fiéis Vadinho
nu. Por acaso havíamos assistido à tomada de cena onde o ator
apareceu nu somente de costas, na frente um tapa-sexo, que, como o
próprio nome diz, tapava o sexo de José Wilker. Wilker não entrara na
igreja; aguardara, de roupão, atrás de uma coluna, para, de lá, sem o
roupão, seguir abraçado com Sônia Braga, aliás, Dona Flor, ladeira do
Pelourinho abaixo. Dom Avelar fora mal informado por seus olheiros.
O quiproquó esclarecido, nova ordem do bispo permitiu que a
cena do batizado fosse realizada. Diante da pia batismal, ao batizar o
filho do Negro Massu, o padre Licídio Lopes, bom ator, caiu em transe,
as filhas-de-santo também caíram em transe. Só faltou mesmo a
mãe-de-santo para que a festa fosse completa, comentou alguém.
CORAÇÃO MOLE
O coronel João Amado costumava dizer: Meu filho nasceu para
escrever. Fale em literatura com ele que ele entende tudo. Só não
fale em negócios com ele, pois de negócios ele não entende nada.
Tem o coração mole demais.
Em parte, o velho João Amado tinha razão. Quem assistiu ao
sucesso de público de Dona Flor e seus dois maridos, o estouro de
bilheteria por toda a parte, até no estrangeiro, ficou certo de que o
escritor havia enriquecido. Ledo engano.
Dos três filmes, rodados na mesma ocasião, na Bahia, Jorge
não teve participação nos lucros. O contrato com os franceses para
Os pastores da noite, que na França recebeu o nome de Otália de
Bahia, foi de pouca monta.
Em Tenda dos Milagres, produção de poucos recursos, dirigida
por Nelson Pereira dos Santos, Jorge nem se importou com dinheiro,
assinou um contrato modesto, quase simbólico. Amigo fraterno do
cineasta, Jorge acompanhava a sua carreira desde quando, quase um
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
menino, Nelson dirigira o premiado Rio 40 graus.
Dona Flor e seus dois maridos também rendeu pouco.
Produzido por Luiz Carlos Barreto, velho amigo de Jorge, foi dirigido
por seu filho Bruno, menino de vinte e um anos incompletos,
talentoso, apaixonado pela história de Dona Flor. O coração de Jorge
—como diria o velho João Amado — amoleceu e ele assinou um
contrato sem participação nos lucros, por dois vinténs pingados.
Jorge Amado não ficou rico com as três produções, como muita
gente pode ter pensado, mas o que ele se divertiu durante as
filmagens e as alegrias que os filmes lhe trouxeram depois, cada qual
com seu sucesso, não havia dinheiro no mundo que pagasse. Mau
negócio feito pelo filho, incompetente no ramo, na visão do velho
Coronel, excelente negócio realizado pelo escritor, mestre na arte de
viver.
PROBLEMAS DOMÉSTICOS
Numa casa movimentada como a nossa, eu sofria com os
problemas domésticos. Casa enorme, povoada, movimentada, e eu
sem conseguir arranjar empregadas competentes e de confiança. Não
me acostumava com o ritmo lento das que conseguia. Não havia —e
não há na Bahia—essa de salário alto para todo o serviço da casa,
como estava habituada no Rio. Na Bahia o salário é baixo para pouco
trabalho, serviço que pode ser feito por uma pessoa são precisas
duas ou três, restando ainda a terra de ninguém, como costumo
chamar as áreas que ninguém limpa achando que é obrigação do
outro. Ao menos essa é a minha experiência, até hoje.
A única empregada que dera certo, que me contentava,
embora lenta, era Eunice, pessoa direita, educada, cumpridora. As
outras duas estavam sempre sendo revezadas, tornavam-se mais
problema do que ajuda. Eunice está aposentada há bastante tempo, a
lacuna continua aberta.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Das Dores chegou recomendada. A moça é um pouco lesa mas
é direita, obediente, é só ensinar e mandar fazer que ela faz..,
Na adolescência, Das Dores fora babá de uma criança em
Salvador. Um belo dia ela ouviu pelo rádio que o mundo ia se acabar.
Pensou com seus botões: Se é mesmo que o mundo vai se acabar, o
melhor é eu ir morrer junto de pai mais mãe. Pediu as contas e se
mandou para o interior.
O mundo não se acabou, e a mãe de Das Dores aproveitou a
presença da filha para mandá-la tirar leite da vaca. Bem-mandada, a
mocinha foi. Procurou uma boa posição atrás das patas da vaca,
sentou-se, baldinho a postos, mas, ao tocar no úbere cheio do animal,
recebeu uma patada no pé do ouvido. Ficou sem uma orelha e, como
já foi dito, lesa para o resto da vida.
Das Dores foi contratada. Sempre sorridente, ela era tranqüila.
Todos os dias eu repetia o que devia fazer, embora fosse sempre a
mesma coisa: arrume os quartos, varra e tire o pó, bem tiradinho. A
última observação devia ser frisada para que o trabalho saísse a
contento.
Certa manhã, depois das recomendações à moça, saímos,
Jorge e eu. Ao voltarmos, horas depois, encontrei tudo do jeito que
deixara, Das Dores não havia mexido uma palha sequer. Fui encontrá-
la no terraço, sentada com o gato no colo. Das Dores nos sorriu:
— Nacib estava muito triste — disse —, miando pela casa,
com saudades de doutor Jorge...
— E você então agradou ele?... — perguntou Jorge.
— É, doutor. Depois que eu botei ele no colo e fui passando a
mão nele, ele parou de miar.
Entusiasmado com o que presenciava e ouvia, Jorge meteu a
mão no bolso, puxou uma pelega de dez, deu a ela:
— Sempre que ele miar me procurando ponha ele no colo e
agrade. Agrade muito, viu?
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Os MISTÉRIOS DA BAHIA DENTRO DAS PORTAS
Neusa chegara para substituir Das Dores, quando a moça
voltou para o interior onde foi viver com os pais.
Tipo franzino, Neusa era uma pessoa educada, discreta,
inteligente. Quase perfeita no trabalho, com Eunice ela me dava
tranqüilidade. Até que enfim..., pensava eu.
Ao receber o salário, certa manhã, Neusa saiu para depositar o
dinheiro na Caixa Econômica. Foi e nada de voltar, o que teria
acontecido com Neusa?
Por volta das três da tarde, Eunice veio me chamar, olhos
esbugalhados:
— Corre, dona Zélia. Um homem trouxe Neusa, disse que ela
estava perdida na rua. Ela está estirada na cama feito morta. Acho
que ela está morrendo.
Atirada a corpo morto em sua cama, Neusa não dava sinal de
vida. Fiz o que estava ao meu alcance para reanimá-la sem conseguir.
Mandei chamar Aurélio, pedia-lhe que buscasse um médico, quando
Neusa despertou e num salto, dando gargalhadas, pôs-se de pé em
cima da cama. Não respondia às minhas perguntas, dizia coisas
ininteligíveis.
Alertado, Jorge apareceu para ver o que estava se passando.
Ao ver Jorge, Neusa deu um salto, gritando: Vovô, vovô, vovô... Antes
que alguém pudesse impedi-la ela correu para Jorge, agarrou-o pelas
pernas, levantou-o e se pôs a cantar e a dizer coisas, com ele nos
braços, suspenso.
Eu nem precisava sair de minha casa para presenciar milagres,
os chamados mistérios das ruas da Bahia. Não podia acreditar que
uma criatura magra e frágil como Neusa tivesse força para levantar
aqueles cem quilos que era o peso de Jorge na época.
— Ela está com o santo, doutor — diagnosticou o entendido
Aurélio.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Isso mesmo — disse Jorge, tentando desvencilhar-se dos
braços da moça, sem conseguir.—Vá Aurélio, vá depressa,
imediatamente, buscar o Luiz da Muriçoca — ordenou.
Aurélio saiu rápido, em busca do pai-de-santo. Felizmente o
candomblé de Exu, onde Luiz da Muriçoca mantinha boas relações
com o Exu Toco Preto e o Sete Pinotes, ficava numa ladeira na Vasco
da Gama, bem perto de nossa casa.
Pessoa de nossa amizade, Luiz da Muriçoca, poderoso e
competente, viria em seguida socorrer o amigo caso estivesse em
casa. Não havia dúvida.
Felizmente, enquanto aguardávamos o pai-de-santo, Neusa
resolveu libertar o vovô de suas garras e, com a agilidade de um
gato, subiu ao alto do guarda-roupa. Falando e cantando sem parar,
ela descobriu lá em cima, enrolado em jornais, um litro de mel, pela
metade. Até então, não dando palpites, apenas murmurando.'Ai meu
Deus, ai minha Nossa Senhora..., Eunice gritou: Ai meu mel!,
buscando dar explicações que ninguém pediu nem interessavam a
ninguém: E o mel que eu tomo todas as noites, uma colher de sopa,
para a minha bronquite... Está me curando... Assim dizendo, levantou
as mãos para Neusa: Me dê meu mel...
Neusa não estava nem ali. Para desespero da proprietária do
precioso remédio, ela despejava o mel no chão.
Estávamos nessa quando a porta do quarto se abriu e Luiz da
Muriçoca adentrou, seguido de Aurélio.
— O que é que há, meus meninos? — disse, dirigindo-se a
Neusa.
— Meus meninos? — estranhou Jorge
— Você então não vê que ela está tomada pelos Ibejes? Só
crianças como Cosme e Damião, pra fazer essas reinações.
Neusa gritava:
— Bulofa, bulofa...
A princípio pensei que ela estava querendo o relógio Bulova de
Jorge, mas o pai-de-santo traduziu: Ela está pedindo ovos.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Traga dois ovos, Eunice, vá ligeiro...
— Cru ou cozido, dona Zélia?...
— Cozidos — respondi —, bem durinhos.
— Nada disso — interrompeu Muriçoca —, os ovos devem ser
crus.
Meleira igual nunca se viu: sentada no chão, Neusa misturava
mel com os ovos abertos sobre os ladrilhos.
A pedido de Luiz, todo mundo se retirou e o deixamos a sós
com a moça para tirar-lhe o santo que a possuía, aliás, os santos,
como afirmara ele próprio.
O trabalho não foi demorado. Ao sair do quarto, Luiz da
Muriçoca deixava a moça liberada, dormindo profundamente:
— Ela não vai lembrar nada do que aconteceu. Deixem que
durma até despertar naturalmente.
— Qual a explicação disso? — perguntei curiosa. — Ela é
católica, vai sempre à missa, não é de candomblé...
— Ela não é mas tem uma parenta que é e fez uma promessa
em nome dela a Cosme e Damião. Essa parenta, não sei se é prima
ou o que é, prometeu que se Neusa sarasse de uma doença que teve,
com o dinheiro de um salário ofereceria um caruru a sete crianças
pobres. Ela não deu a comida, botou o dinheiro na poupança... deu
nisso... — riu o pai-de-santo.
A VENDEDORA DE QUADROS
Havia muito que não víamos João Alves. Depois da morte da
criatura, ele não aparecera mais. Supúnhamos que ele devia andar
muito triste, sozinho. Por isso, ao saber que João Alves estava na sala,
me preparei para recebê-lo com palavras de consolo, mas, qual!,
encontrei um João Alves sorridente, feliz da vida, cheio de planos.
— Doutor Jorge, mais dona Zélia — foi dizendo —, encontrei
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
uma pessoa ótima.
Jorge e eu nos entreolhamos diante do inesperado:
— Ótima, como? — quis saber Jorge. — Boa pessoa? bonita?
quem é?
— É tudo isso e muito mais... — respondeu ele rindo. — É uma
vendedora de acarajé, o nome dela é Neide e eu quero casar com ela.
— Você quer casar ou juntar? — quis saber Jorge.
— Que juntar o quê! Essa é coisa séria, ela só vem pra minha
companhia de papel passado.
— Então case de papel passado, João, você não é viúvo? —
disse eu.
João torceu a boca, deu um meio sorriso:
— Eu não era casado com a criatura, não. Eu sou solteiro. Eu
só posso casar se tiver onde levar a moça. Não posso botar ela na
cafua, onde a falecida faleceu. Preciso comprar uma casa.
— E você tem dinheiro para comprar uma casa?
— Tenho não. Vim aqui hoje pra pedir a doutor Jorge mais tua
senhora pra me emprestar o dinheiro.
Tive uma idéia, sabia que ele deixava quadros, em
consignação, na galeria de arte de Renot, creio que a única em
Salvador.
— Por que você não pede o dinheiro a Renot? Ele vende teus
quadros e paga a casa. Muito fácil.
Novamente, João Alves torceu a boca:
— Ele não vai concordar não. A galeria dele dá muita
despesa...
Entendi que ele já havia tentado com Renot e nada
conseguira. Nós éramos, Jorge e eu, sua última esperança.
Ao ouvir que nós também não poderíamos comprar uma casa
para ele, João assumiu um ar dramático:
— Se eu não puder comprar essa casa, então eu me mato.
Diante da situação tragicômica, tentei conversar com ele.
Ficamos sabendo que a moradia de seus sonhos já havia sido
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
encontrada, ficava em Cosme de Faria, bairro pobre da cidade. Casa
modesta, o proprietário pedia uma entrada e o resto seria pago em
prestações. Pedi a João que trouxesse os quadros que tinha em casa,
pintasse outros e os trouxesse. Eu mesma faria uma exposição aqui
em casa, convidaria a sociedade baiana, venderia os quadros,
obtendo o dinheiro para o primeiro pagamento, assinaria as
promissórias e continuaria vendendo outros quadros que ele pintasse,
até resgatar a última promissória.
Impunha-lhe apenas uma condição: enquanto a casa não
estivesse completamente paga, João se comprometeria a me dar
prioridade na escolha dos trabalhos e estipularíamos um preço fixo.
Nada de vender quadros por qualquer trocado.
Nenhum convidado deixou de atender a meu apelo: Carybé,
Mirabeau e Norma me ajudaram a fazer a lista de prováveis
compradores e todos compareceram, quase todos compraram.
Recolhi dinheiro suficiente para o pagamento maior, dei o restante
para o pintor ir se mantendo.
João estava apressado, marcou a data do casamento,
Mirabeau e Norma, Jorge e eu fomos os padrinhos. A noiva era
realmente simpática, moça inteligente, trabalhadora. João ganhara na
loteria, como se diz, ao encontrar Neide para companheira.
Atenta ao compromisso que assumira, preocupada com o
vencimento das promissórias, aproveitei uma viagem ao Rio, poderia
vender também lá os quadros do artista.
A exposição que improvisei, no apartamento da Rodolfo
Dantas, fez sucesso. Vendi todos os quadros que levei, trouxe para a
Bahia o suficiente para quitar várias promissórias e ficar
despreocupada por alguns meses. Trouxe ainda dinheiro para o pintor
ir se mantendo enquanto pintava outros quadros. As pessoas
estavam interessadas nos artistas da Bahia e me pediram que
levasse outras telas quando voltasse ao Rio.
Ao saber que eu estava vendendo para João Alves, apareceu
Cardosinho com dois quadros pedindo-me que os vendesse também.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Aproveitou para nos contar que estivera nos visitando na véspera, à
noite, disfarçado em bolha verde. Do jardim, pelo vidro do janelão, ele
nos vira sentados diante da televisão:
— É verdade ou não é? Estavam ou não estavam sentados
nestas poltronas?
— Estávamos—respondi, dizendo a verdade, confirmando a
fantástica história.
Depois de João Alves e Cardoso e Silva, outros pintores
primitivos me procuraram, mas não havia por que só vender
primitivos. Minha clientela tornara-se grande, havia compradores para
todos os gostos e para todos os preços.
BOLA DE NEVE
De repente, não mais que de repente, me vi transformada em
marchand de tableaux, vendendo quadros dos mais importantes
pintores da Bahia. Viajava constantemente para o Rio e São Paulo,
onde, de sociedade com minha cunhada Fanny, mulher de Joelson,
expúnhamos e vendíamos os trabalhos em seu apartamento de
Higienópolis.
Os negócios aumentavam como uma bola de neve. Conseguira
pagar, antes do prazo, todas as promissórias da casa de João Alves.
Não havia sentido continuar trabalhando de graça. Começamos a
ganhar dinheiro, Fanny e eu. Vendi vários Carybé, Floriano Teixeira,
gravuras de Emanuel Araújo, Adelson do Prado, Ana Lúcia,
Eckemberger, Hélio Basto e outros. Até Cristos e ceias em madeira,
do Louco, escultor primitivo de Caxoeira, vendi.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
DE REPENTE...
Não foi tão de repente que desisti de vender quadros. Quando
me dei conta, estava tão envolvida na nova atividade que já não me
sobrava tempo para nada, nem para me ocupar de Jorge, como fazia
há mais de vinte anos. A rotina de nossa vida mudara. Minha
atividade de mercadora de arte exigia cada vez mais de mim,
sobretudo que eu viajasse constantemente, quase sempre deixando
Jorge sozinho, na Bahia. Jorge não se queixava, mas senti que ele não
estava contente, nem um pouco contente. Ora, se tudo o que eu
desejava na vida era fazer Jorge feliz e ser feliz com ele, por que
diabo eu me metera naquela empreitada, arriscando a tranqüilidade
de nossas vidas, arriscando até a estabilidade de nosso amor?
O dinheiro que eu estava ganhando significava pouco para
mim, aliás, não significava nada, absolutamente nada, diante do
mundo que Jorge me oferecia.
Não tive dúvida: desfiz a sociedade com Fanny, desisti de
vender quadros.
As BAIANAS DE CARYBÉ
Carybé fizera uma série de baianas de cerâmica, uma
diferente da outra, cada qual mais bela. Presenteou os amigos com
uma, as restantes ele vendeu. Vendeu, inclusive, cinco para nós,
ficamos com duas aqui em casa, levamos uma para o apartamento do
Rio, presenteamos James e Joelson, irmãos de Jorge, demos uma para
Alfredo Machado, nosso editor.
Ao ir em busca de mais baianas, para outros amigos, já não
encontrei. Carybé as vendera com uma rapidez incrível, muita gente
querendo, reclamando. Quisemos saber se ele iria fazer novas cópias
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
e ele disse que não. Tinham dado muito trabalho, a olaria que fizera
as fôrmas e as queimara no forno ficava distante de Salvador, o
transporte era difícil, ele havia perdido uma porção delas, quebraram-
se pelo caminho.
Ao ouvir de Carybé: Não quero mais saber de negócio com
essas baianas, pra mim chegou..., tive uma idéia:
— Quer fazer um trato comigo, Carybé? Eu me ocupo de tudo,
pago as despesas e dividimos o lucro...
Carybé gostou da proposta:
— E você vai até o português encomendar e trazer as
baianas? Tá bom, comadre, trato feito.
O português a quem Carybé se referia era o oleiro, profissional
competente, que ele descobrira em Dias D'Ávila e queimara as
fôrmas das baianas.
O português levou mais de um mês para entregar minha
encomenda. Nessa época, tínhamos uma Veraneio, caminhonete
espaçosa, com bom molejo, na medida para transportar tanta
cerâmica, de Dias D'Ávila para cá, num bom pedaço de má estrada.
Mesmo tendo Aurélio ao volante, cuidadoso como ele só, assim
mesmo, com todas essas facilidades, muitas chegaram quebradas.
Nosso terraço foi transformado num verdadeiro ateliê de
restauração de cerâmica. Em cima das mesas, que espalhei por toda
a parte, podiam-se encontrar baianas sem braço, sem mãos, sem
dedos, sem tabuleiros na cabeça, sem pés, sem enfeites dos vestidos,
aguardando a vez de serem recuperadas. Carybé se encantou ao
deparar-se com aquele verdadeiro hospital, deu-me um conselho: Vá
à feira de Água de Meninos e compre pratos de cerâmica, travessas
de barro, para substituir os tabuleiros quebrados, vai ficar porreta. E
ficou.
Consumi tubos e tubos de cola na operação cola-tudo, Jorge e
Carybé de fiscais, exigindo que tudo saísse na perfeição, uma
pagodeira mais do que um trabalho.
Visitando a Bahia, vinda do Rio Grande do Sul, a artista
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
plástica Zorávia Betiol veio à nossa casa e, ao ver aquele mar de
cerâmicas sendo restauradas, se encantou, não resistiu e entrou na
dança; não só me ajudou a colar, como me ensinou truques de
restauração que aprendi e até hoje aplico ao colar uma e outra peça
que aparece quebrada, ouvindo as empregadas dizerem: Eu não fui
ou Tem anos que está quebrado, quando cheguei aqui já estava... que
fazer? Dona Zélia vai colando.
Recuperadas, na sua quase maioria, as baianas receberam a
assinatura de Carybé. Aqui na Bahia tudo se sabe e, durante alguns
dias, a casa foi invadida por verdadeira romaria de pessoas querendo
comprar baianas. Até um grupo de turistas paulistas, de passagem
pelo porto de Salvador, sabendo, não sei como, que havia baianas de
Carybé à venda, apareceram e saíram cada qual com sua peça,
enorme, incômoda de ser carregada, porém felizes.
Contas acertadas, Carybé quis saber, um ar de provocação:
— Vai repetir a dose, comadre?
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Pra mim chega, compadre. Foi muito divertido, mas
suficiente.
Mais do que o lucro que tivemos, Carybé e eu guardamos
algumas peças que enfeitam nossas casas e as de alguns amigos a
quem presenteamos.
Com a proeza das cerâmicas de Carybé, encerrei minha
carreira de vendedora de artes.
CASA FESTIVA
Lalu bem que gostava de ver a casa sempre em festa, sempre
cheia de gente, mas não dava o braço a torcer:
— Eta trabalheira danada! Não sei como tu agüenta! O Rio de
Janeiro era muito melhor do que aqui, não era? Não tinha todo esse
movimento na casa...
— E mais alegria do que trabalho, Lalu. Você não gostou de
ver as artistas do bale do Senegal aqui?
Claro que ela havia gostado. Nem conseguira disfarçar o
impacto que sentira ao ver surgir, portas adentro, o grupo de moças
em seus trajes africanos, artistas lindas. O bale se apresentava no
Teatro Castro Alves, viera recomendado a Jorge e recebemos o grupo
em nossa casa.
Muitos artistas amigos nossos vieram à recepção: Norma e
Mirabeau, Carybé e Nancy, Calasans Neto e Auta Rosa, Lev
Smarchewski, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Bastos e Altamir, James
Amado e Luiza, entre outros.
Seguindo nosso exemplo, Luiza e James Amado haviam
trocado o Rio de Janeiro pela Bahia, dando a Lalu a maior das
alegrias: passara a ter dois filhos ao alcance da mão. Só falta agora
Joelson, dizia ela cheia de mágoa, mas esse é difícil que venha, São
Paulo é muito longe...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Encantada por uma das dançarinas, linda no seu torço
dourado, no frufru da seda pura dos drapeados do traje a envolver-lhe
o corpo, Lalu deu o braço à moça e com ela saiu andando.
Dona Eulália não esquecera os princípios da boa educação em
que fora criada: a polidez ordenava que a dona da casa, ao receber
uma visita, lhe perguntasse: Quer tomar um cafezinho ou prefere
primeiro correr a casa?
Lá se foi Lalu correndo a casa, a bailarina do Senegal a
tiracolo. Divertindo-se ao ver a sogra conversar com a moça que só
falava francês, Luiza aproximou-se e ouviu o curto diálogo:
— A senhora gosta de gatos? — perguntava Lalu.
— Je ne comprends pas le portugais, madame — respondia a
moça.
Lalu olhou para Luiza e traduziu:
— Tá vendo, fia? Ela disse que é doida por gatos!
VERUCHKA NA BAHIA
Chegavam à Bahia para uma série de reportagens o famoso
fotógrafo Franco Rubartelli e a mais comentada das modelos
fotográficas, Veruchka, mulher que, com sua beleza e charme,
causava frisson à época.
Nossa casa da rua Alagoinhas foi escolhida, entre outras
locações, para as poses e fotografias da famosa modelo,
A preparação foi grande, uma equipe de apoio se instalou no
quarto de hóspedes, o maquiador com seus estojos repletos de toda a
sorte de cosméticos; uma jovem, com um ferro elétrico, começou
logo a passar os trajes—sumários, porém trajes—que Veruchka iria
usar. A bem dizer, havia mais perucas do que roupas. Montanhas de
perucas foram despejadas sobre uma cama: cabelos longos e curtos,
castanhos de todos os tons, chegando ao louro, cada qual mais linda.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Veruchka usava uma peruca sobre a outra, misturando os tons,
cabelos de todos os comprimentos se entrelaçando, formando
mechas... verdadeira obra de arte. Na idade de gostar de perucas,
Paloma se encantou, quem me dera ter uma dessas, disse baixinho,
mas seus olhos falaram alto e a modelo percebeu o interesse da
jovem.
Ao contrário do que se possa imaginar, Veruchka só tinha pose
nas fotografias, no convívio era a pessoa mais simples e amável do
mundo. Tão gentil que ao perceber o encanto de Paloma por suas
perucas e sabendo que, em breve, Jorge e eu iríamos à Itália, ela
pediu uma mecha dos cabelos de Paloma e outra dos meus: Vou pedir
ao meu fornecedor, em Roma, que prepare duas para vocês e quando
chegarem lá as encontrarão prontas. Presente meu. Deu-me o
endereço. E não mentiu.
PARÊNTESE PARA FALAR DA PERUCA
Ao chegarmos ao cabeleireiro indicado pela modelo, em Roma,
as perucas já estavam à nossa espera. Coloquei, em seguida, a minha
na cabeça: me achei linda. O mesmo não achou Jorge que, ao me ver
toda cheia de cabelos encaracolados, quase teve um desmaio: Coisa
mais horrível, disse. Enquanto você estiver com esse troço medonho
na cabeça não vou nem olhar pra tua cara... Virou o rosto para o
outro lado.
Ao chegarmos ao hotel, fui logo tratando de retirar a cabeleira
— não era por submissão que me desfazia dela, nada disso, queria
apenas corrigir um equívoco: achara que Jorge ia gostar de me ver
toda emperucada, mas, nada disso, ele detestara, execrara, ficara
infeliz. Ora, se o que eu desejava era me enfeitar para ele, eu me
enganara. Muito simples, o jeito era abdicar da bela peruca, abdiquei
e, diga-se de passagem, ao retirá-la, senti um enorme alívio. Aí meu
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Deus! Como aquele diabo esquentava!
FIM DO PARÊNTESE
Peço desculpas pelo longo parêntese que acabo de fazer,
encompridando conversa e peço licença para reatar o fio da meada.
Quem ficou intrigada com a movimentação na casa foi Lalu. Ao
saber que aquele aparato todo era só para tirar fotografias da moça,
achou um exagero.
Com uma montanha de perucas na cabeça a cobrir-lhe parte
do rosto, estirada no parapeito do janelão que dá para o jardim,
Veruchka posava, Franco Rubartelli só acionando o disparador do
aparelho fotográfico, num clic, clic, clic interminável, verdadeira
metralhadora. Ele me explicou depois que, para conseguir uma
fotografia perfeita, a seu gosto, às vezes necessita tirar quatrocentas.
Assistíamos, a certa distância, à sessão fotográfica, quando
surgiu Lalu, de banho tomado, vestígios de talco perfumado e um
pente enterrado nos cabelos lisos, certamente na intenção de dar um
jeito neles: Enfroquei um pouco o cabelo, disse-me, por que tu não
enfroca o teu? Admirou-se ao nos ver assistindo à distância, fora do
enquadramento do fotógrafo.
— Daí tu não sai no retrato — disse —, vá ficar atrás da moça,
boba...
— Não vou, não, Lalu. E só a modelo que vai ser fotografada.
— Oxente! — reclamou ela. — E a casa não é tua, menina? Vá
lá, vai... — insistiu.
Pra não dizer que Lalu usou o pente em vão, antes de
despedir-se Rubartelli tirou uma foto dela com um aparelho Polaroid.
— Este retrato não valeu de nada — comentou Lalu mais
tarde.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
HARRY BELAFONTE NA BAHIA
Os pais de July Belafonte, russos radicados nos Estados Unidos,
haviam conhecido Nancy e Carybé quando o artista, vencedor de um
concurso internacional, foi pintar dois murais no terminal da América
Latina do Aeroporto Internacional John Kennedy, em Nova York. Dessa
época vinha a amizade deles.
Um quadro que Carybé oferecera ao casal naquela ocasião
encantava seu genro, o ator Harry Belafonte. O interesse de Belafonte
pela Bahia aumentou ainda mais quando caiu em suas mãos um
romance de Jorge Amado, Jubiabá.
Entusiasmado em conhecer a misteriosa terra distante e os
dois responsáveis por seu entusiasmo, Belafonte e July decidiram que
a próxima viagem da família seria à Bahia.
Em seu avião particular, trouxeram os pais de July e os filhos
do casal, David e Gina, crianças. A chegada da família Belafonte
causou rebuliço no Brasil, a imprensa, em peso, foi a Salvador, pois
nas declarações de Belafonte, ao desembarcar no Rio de Janeiro, ele
dissera ter vindo ao Brasil exclusivamente para visitar os amigos
Carybé e Jorge Amado e conhecer Salvador. Depois voltaria direto
para Nova York. Seu avião não pudera descer na Bahia, pois o
aeroporto de Salvador, na época, não tinha ainda estrutura para vôos
internacionais.
Hospedada no Hotel da Bahia, naquela ocasião ainda o melhor
de Salvador, a família Belafonte passou a maior parte de seu tempo
em nossa casa e na de Carybé. Com eles visitamos os artistas Carlos
Bastos e Altamir, Genaro e Nair de Carvalho, que lhes ofereceram um
jantar; Jenner Augusto e Luísa que os acolheram com um almoço. No
terreiro do Gantois, Belafonte participou de uma festa e, emocionado,
não resistiu, dançou com as filhas-de-santo em transe.
Pessoa adorável, da maior simpatia e simplicidade, Belafonte
conquistou a todos que o conheceram. Pudemos ver em seguida que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ele era igual aos compadres Jorge e Carybé: brincalhão, despojado de
empáfia, comunicativo, gozador. July nos falou de quanto o marido se
divertia pregando peças aos amigos. Entenderam-se os três
personagens, como se velhos amigos fossem.
Nas vésperas da partida, oferecemos a eles uma grande
recepção, reunindo em nossa casa o que havia de mais significativo
da intelectualidade da Bahia.
Antecipamos uma viagem ao Rio para irmos com os Belafonte,
no mesmo avião. No Rio de Janeiro, estava sendo organizado um
grande almoço a Jorge, não recordo a propósito de quê, programado
por amigos.
Harry Belafonte devia partir do Rio dois dias antes da
homenagem a Jorge, mas foi nos ver e almoçar conosco no
apartamento da Rodolfo Dantas.
Ao abrir a porta do elevador em nosso andar, Belafonte
deparou-se com uma enorme e colorida estatueta de porcelana sobre
um móvel no hall — decoração do vizinho de porta —, horrível figura
de mulher deitada com um cachorro galgo ao lado. Moleque como ele
só, Belafonte não teve dúvida: tirou a jaqueta que estava vestindo,
envolveu a estatueta nela e entrou na sala fazendo um discurso e
entregando o volume a Jorge: Não repare no presente, lhe ofereço de
coração. Assim dizendo, ele mesmo, rapidamente, retirou a jaqueta
que envolvia a peça e explodiu numa gargalhada sem tamanho,
gargalhada de satisfação ao ver a cara de espanto de Jorge diante da
execrável estatueta. Ria ele, ríamos nós com ele, ria também Misette,
que se encontrava lá em casa. Acostumada com esse tipo de
brincadeiras, muito ao gosto dos compadres da Bahia, ela os
comparava. Você não acha que os três são iguais?, perguntava
Misette, entusiasmada. Mais entusiasmada ficou ao ser convidada a
ciceronear os Belafonte durante os dois dias que ficaram no Rio.
Encontramo-nos ainda muitas vezes com Harry Belafonte e sua
família, em nossas caminhadas pelo mundo: em Nova York, quando
jantamos em seu apartamento e tivemos a surpresa e a emoção de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
encontrar pendurado, em lugar de destaque, um quadro de Portinari.
Em Paris, quando, depois de assistir à sua apresentação no Olympia,
saímos juntos para cear e Belafonte mostrou um exemplar de Tenda
dos Milagres, em edição americana, todo anotado por ele, que lia no
momento, e trouxera para receber o autógrafo do amigo. Em Cuba,
quando juntos fomos a uma casa de santeria, cujo ritual é o mesmo
do candomblé da Bahia. Da mesma forma que Belafonte se
emocionara no terreiro de Menininha do Gantois, voltava a se
emocionar com os orixás de Cuba. Com os Belafonte e Gregory Peck,
mulher e filha, que estavam com eles nessa viagem, assistimos à
inauguração da Escola de Cinema e a um encontro de artistas,
escritores e cineastas, na casa de Gabriel Garcia Márquez nas aforas
da cidade.
Foi a essa inauguração e a festa de Garcia Márquez que
compareci de chinelos. Essa história, se não me falha a memória, já
contei em outro livro. Só não contei que Belafonte, ao me ver de
chinelos, quase morreu de rir, adorou.
Para quem não conhece os detalhes, peço licença para contar
novamente e explicar que tudo aconteceu por causa da afobação de
Jorge, sempre preocupado em não chegar atrasado aos
compromissos.
Nesse dia da inauguração da Escola de Cinema, distante uns
quarenta ou cinqüenta quilômetros de Havana, Jorge exagerou na
pressa, ficou no meu pé enquanto eu me arrumava: vam´bora, vam
´bora, vam´bora... Eu também me afobei e só me dei conta de que
ainda estava de chinelos quando já tínhamos rodado mais de vinte
quilômetros. Voltar para o hotel, nem pensar. O jeito foi dar a volta
por cima, acreditar no que Jorge dizia para me consolar: Teus chinelos
são mais bonitos do que qualquer sapato... muita mulher vai morrer
de inveja ao te ver tão confortável...
A noite, após a festa da inauguração, fomos à casa de Garcia
Márquez, uma bela residência com enorme jardim e piscina, cedida
ao escritor para trabalhar e viver a vida toda. Nessa noite, o
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Comandante — como é chamado Fidel Castro, em Cuba — nos disse:
Aqui Gabo pode escrever tranqüilamente seus livros. A casa é dele
enquanto for vivo. Depois, certamente, será um museu.
Com July, nessa viagem a Cuba, fui a um deslumbrante desfile
de modas, onde ela comprou vários modelos para levar a Nova York.
Entusiasta dos produtos de beleza, os famosos cosméticos
cubanos, July comprou grande quantidade deles, para ela e para
encomendas que levava.
Encontramo-nos ainda várias vezes com os Belafonte em Nova
York e em Paris. Ao Brasil ele não voltou mais, mas, vez ou outra, nos
manda notícias.
JUBIABÁ
Jubiabá, romance de Jorge escrito em 1935, conseguiu a
proeza de atrair para a Bahia três personalidades excepcionais:
Carybé leu Jubiabá, entusiasmou-se com o livro, com a
descrição da Bahia e da maneira de viver do povo baiano. Disse lá
com seus botões: Quero ver com meus próprios olhos se essa terra
existe. Vou dar uma espiada. Veio e ficou.
Belafonte também veio à Bahia, como já se sabe, movido pelo
entusiasmo, após a leitura de Jubiabá.
PIERRE VERGER
A terceira personalidade a vir à Bahia pelas mãos de Jubiabá
merece um capítulo à parte.
Pierre Verger ainda não era doutor em ciências do Centre de
Recherches Scientifiques, na França, nem íntimo dos países da África,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
nem profundo conhecedor dos mistérios das religiões africanas,
quando veio pela primeira vez à Bahia. Era apenas um viajante
incansável a correr mundos, os mais impossíveis e distantes, na ânsia
de tudo ver, tudo conhecer, tudo registrar com sua câmera
fotográfica.
O título do livro que chamou a atenção de Verger era: Bahia de
tous les saints, tradução francesa do romance Jubiabá, editado na
França em 1938. Teve a curiosidade de ler o livro e depois o desejo
de ver de perto essa Bahia distante e desconhecida, descobrir com
seus próprios olhos o belo e o mágico que o autor do livro tão bem
descrevera.
Ancorou em Salvador. Na Bahia encontrou manancial
infindável para sua curiosidade, cidade à espera de suas descobertas,
de suas fotografias: Aqui vou viver, disse Verger. A Bahia ficou sendo
seu porto de partida e de chegada, a sua casa.
Tornou-se íntimo dos terreiros de candomblé, amigo de mães
e pais-de-santo.
No terreiro do Axé Opô Afonjá, foi proclamado, por Mãe
Senhora, Oju-Obá, os olhos de Xangô, o que tudo enxerga e tudo
sabe. Realmente, Verger tudo via, tudo sabia. Com Verger tivemos o
melhor relacionamento. Raramente vinha à nossa casa, nos
encontrávamos em festas de candomblé. Eu nunca tivera ocasião de
fotografá-lo e precisava de uma foto sua para um livro que eu
preparava, onde apareceria Jorge, ao longo dos anos, ao lado de
amigos, em vários países do mundo.
O livro, que veio a receber o título de Reportagem incompleta,
seria editado por Aríete Soares, nossa amiga, pessoa da maior
competência, que dirigia uma editora, fundada por ela mesma, a
Corrupio. O livro será incompleto se não houver uma foto de Jorge
com Pierre Verger, me disse Aríete e ela tinha razão. A ausência de
Verger no livro seria uma falha imperdoável. Na primeira
oportunidade eu faria a foto.
Na primeira oportunidade, ao receber Verger em nossa casa,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
tratei logo de apanhar a minha Leica que estava com um filme
apenas começado e anunciei, pilheriando com o Mestre: Com todo o
respeito, professor, permite-me fotografá-lo?
Para minha surpresa, Verger me respondeu:
— Senhora professora, eu não permito que me fotografe.
— E por quê?
— Porque não gosto de ser fotografado. Basta esse motivo?
— Você está brincando, Verger? Me chama de professora e se
nega a posar para mim...
Verger ria mas falava sério, o que me encabulava.
— Todas as vezes que você me chamar de professor eu vou
chamá-la de professora, certo? E não gosto de ser fotografado porque
não gosto do meu perfil, tenho um perfil de pássaro — ficou de lado
—, está vendo? Meu nariz parece um bico de passarinho... Não tire as
fotos — repetiu.
Jorge e ele saíram para o jardim, foram sentar-se num
banquinho debaixo da mangueira. Enquanto os dois conversavam,
coloquei a teleobjetiva na máquina e resolvi dar uma de paparazzi,
fotografá-los sem ser vista, à distância. Bati umas vinte chapas, feliz
da vida.
Ao revelar o filme, no entanto, tive a maior decepção: as
quinze primeiras fotos do filme, tiradas antes, estavam ótimas, as de
Verger, completamente veladas.
Em conversa com Mãe Senhora, contei-lhe o sucedido. Ela riu:
Menina, e tu foi te meter com Verger? Tu não sabe que ninguém pode
contrariar Verger? Verger é bruxo!
Acabei achando que Mãe Senhora tinha razão, alguns anos
depois. Mãe Menininha completava oitenta anos, e o historiador Cid
Teixeira programou uma gravação de depoimentos onde deviam
participar, contando de seus conhecimentos e experiências com a
mãe-de-santo, Pierre Verger, Carybé, Jorge Amado, entre outros.
A gravação deveria ser feita naquela noite, no próprio terreiro
do Gantois. Nesse dia, nos telefonou um amigo de São Paulo, que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
acabara de chegar, Thomas Farkas, conhecido homem de cinema. Ao
saber da gravação com Menininha, Farkas pediu a Jorge que
conseguisse permissão para ir conosco, tinha grande interesse em
assistir.
Ao chegarmos ao terreiro, a parafernália de Cid Teixeira já
estava instalada: aparelhos e máquinas as mais sofisticadas. Eu
levara comigo um gravadorzinho, seria interessante registrar tudo. O
aparelho que Farkas levara era maior que o meu, um gravador
profissional.
Carmem e Cleusa, filhas de sangue de Mãe Menininha, nos
receberam e nos acomodaram nas cadeiras em frente à mãe-de-
santo.
Fez-se silêncio e Cid Teixeira pediu que Verger fosse o
primeiro a falar. De microfone em punho, Verger disse algumas
palavras para, em seguida, pedir aos operadores que parassem, ele
reiniciaria. Voltou a falar, mas, de repente, parou: Não, não é isso que
eu queria dizer... por favor apaguem o que já foi gravado. Disse e só
recomeçou a falar depois de estar convencido de que seu pedido fora
atendido. Ao pedir, pela terceira vez, que apagassem o que dissera,
explicou sua emoção: desejava ser o último a intervir. Nem preciso
dizer que não desliguei o meu gravadorzinho. Atrás de mim, Farkas
também não desligou o seu.
Ao voltarmos para casa, já de madrugada, depois do
depoimento de Mãe Menininha e de Verger, uma beleza, eu disse a
Jorge: Ouça só, gravei todo o começo, Verger emocionado... Ligado o
aparelho, cadê a voz de Verger? O que se ouviu foi uma estática
ruidosa que só parou quando o primeiro depoente, Carybé, começou
a falar. Jorge riu: Também com um gravadorzinho furreca desses,
você não podia esperar outra coisa... Pela manhã, logo cedo, o
primeiro telefonema foi de Farkas, que me pedia: Por favor, Zélia,
estou precisando que você me empreste a sua gravação para
completar a minha... parece que deu um enguiço no meu gravador e
toda a fala de Verger, do início, se apagou, só deu estática...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Lembrei do que me dissera a saudosa Mãe Senhora: Não se
meta com Verger, menina, Verger é bruxo.
Verger gostou muito quando lhe contei das falcatruas que
tentara contra ele e da palavra sábia de Mãe Senhora. Isso mesmo.
Eu sou um bruxo, professora doutora.
Professora doutora foi o título que Verger passou a me dar
para sempre. Caçoada ou carinho? Preferi acreditar no carinho desde
o dia em que, no lançamento de seu livro Oxóssi, na livraria da
Editora Corrupio, Verger me chamou: Professora doutora, venha tirar
um retrato meu com Jorge e Carybé. Só não tire meu perfil. Verger
vestia um belo bubu africano e essa fotografia dele entre Jorge e
Carybé encontra-se no Reportagem incompleta, editado por Aríete
Soares, livro em três idiomas sendo que a tradução para o francês foi
feita por Pierre Verger.
Editora principal e amiga dedicada de Verger, Aríete Soares
conseguiu restaurar velhos e antigos negativos que ele deixara em
Paris para publicá-los num livro: Retratos da Bahia. Publicou ainda
Orixás, lendas africanas dos orixás e sua obra-prima, o admirável livro
sobre o tráfico de escravos, Fluxo e refluxo.
UMA NOTA APENAS
Não quero, nem posso deixar de falar em Cleusa, filha de
sangue de Mãe Menininha do Gantois. Amiga querida, herdeira da
ternura e da sabedoria da mãe, Cleusa ocupou o lugar da mãe-de-
santo no candomblé do Gantois. Cultivando com delicadeza e
bondade seus amigos e devotos, honrando o nome da Casa, Mãe
Cleusa partiu, tem poucos meses, nos deixando, seus amigos, muito
tristes e um pouco órfãos. O terreiro está de luto por um ano e,
segundo o ritual, estará fechado durante esse tempo. Só então, no
jogo de búzios, os orixás elegerão a nova mãe-de-santo.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
CARLOS BASTOS
Além, pouco além de Itapuã, estende-se a praia de mar bravio
da Pedra do Sal. Nela, Carlos Bastos levantou sua casa, casa
senhorial, requintes compatíveis com seu dono, artista de tela e
cavalete, mestre na argila e no cinzel.
Logo à entrada, na casa da Pedra do Sal, junto à porta,
encontra-se sobre uma coluna o busto de Molière com sua vasta
cabeleira, trabalho do dono da casa.
Conta-se que dois franceses foram visitar Carlos e, ao
reconhecerem o célebre conterrâneo, exclamaram entusiasmados: O
lá-lá! Molière! O empregado da casa que lhes abrira a porta, sabido
como ele só, os corrigiu em seguida: Não é mulher, não. Seu Carlos
disse que é homem mesmo.
O pintor Carlos Bastos se diferencia de todos os pintores da
Bahia: em seus quadros ele consegue, brincando com as tintas,
retratar, à perfeição, pessoas de sua intimidade e personagens da
Bahia.
Uma das curiosidades que Jorge quis me mostrar na Bahia foi
um painel de Carlos Bastos, A procissão, exposto no hall do Edifício
Martins Catharino, na rua da Ajuda. Nesse trabalho, o pintor incorpora
aos santos os rostos de artistas, em geral seus amigos, e de pessoas
conhecidas na cidade, como, por exemplo, todos os componentes da
família José Martins Catharino. Lá estavam, que me lembre, nossa
amiga, a bela atriz Nilda Spencer, os pintores Genaro de Carvalho,
Carybé, Sante Scaldafferri, Mirabeau Sampaio, Mário Cravo, Jenner
Augusto, cada qual com sua respectiva auréola de santo, uns
segurando andores, outros sendo carregados sobre andores. Jorge
Amado teve a regalia de aparecer duplamente: de bispo, puxando o
cortejo, e de São Jorge, ao lado de Cosme e Damião. Por esse painel
Carlos Bastos recebeu o título de Paleta Satânica, dado por um
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
colaborador de um jornal católico da época.
Anos depois, em 1972, fomos ao Parque da Cidade, no Rio de
Janeiro, ver o trabalho que Carlos Bastos realizava na capelinha
abandonada, uma dependência do Museu Histórico, capela que nunca
fora consagrada para atos religiosos. Funcionara sempre como um
simples depósito.
Obtendo permissão para pintá-la, Carlos Bastos não perdeu
tempo. Aproveitou todo o espaço de duas paredes para retratar
amigos, apresentar como santos alguns, outros sem o aparato da
santidade, queria que lá estivessem pessoas em evidência e
representativas da época: Di Cavalcanti, Vinícius de Moraes, Djanira,
Pele, Caetano Veloso, Gal Costa, Marta Rocha, Jorge Amado, Orlando
Villas-Boas, Genaro de Carvalho, Zanini, Adolfo Bloch... até o
presidente Medici estava lá. Marina Montini, de Salomé, segurava a
cabeça de São João Batista. O rosto de São João Batista era, sem tirar
nem pôr, o de Altamir Galimberti, o grande amigo de Carlos,
companheiro de toda a vida. Djanira era Santa Isabel, Caetano Veloso
era São João com seu carneirinho, Pele era um anjo. Dessa vez, Di
Cavalcanti, Jorge Amado e Vinicius de Moraes não foram santificados.
Gal Costa, montada a cavalo, seria Joana d'Arc? Havia outros
personagens, mas me lembro bem desses.
Os murais, que ainda precisavam de retoques, ficaram
inacabados. Ao chegar para trabalhar certa manhã, como
habitualmente fazia, Carlos Bastos encontrou a porta da capela
trancada e lacrada. Cometera a heresia de misturar aos santos,
pecadores comunistas, os mais perigosos: Jorge Amado, Vinicius de
Moraes, Di Cavalcanti, Caetano Veloso, Djanira... Ao mesmo tempo,
Carlos Bastos colocara entre eles o presidente Medici, tido e havido
como inimigo dos comunistas, presidente das perseguições, das
prisões e das torturas. Carlos não era político, de política e de seus
partidos ele nada entendia, sua única intenção fora a de retratar os
amigos de sua admiração e de seu bem-querer, sem restrições, e
pessoas em evidência na época, nada mais que isso.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
A capelinha do Parque da Cidade, no Rio de Janeiro,
permaneceu lacrada de 1972 a 1997.
ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES
A população de Salvador aumentava, a cidade sofria o
problema do menino que cresce e a roupa fica apertada; tornara-se
quase impossível o trânsito pelas ruas do centro, cada vez mais
sufocado. Fazia-se necessário abrir as comportas, estender a cidade.
Homem dinâmico, voz de comando, apaixonado por sua terra,
Antônio Carlos Magalhães, governador do Estado, arregaçou as
mangas e foi em frente: abriria vales e montes, na direção do
aeroporto, construiria avenidas, pontes e elevados nos quilômetros e
quilômetros de terras abandonadas, mato desprezado, expandiria a
cidade do Salvador.
Planejou e fez: construiu o Centro Administrativo, para onde
foram transferidas as secretarias de Estado que entulhavam o centro
da cidade. Plantados em grande área de jardins gramados, ergueram-
se prédios da mais alta qualidade, onde foram instaladas a
administração do governo estadual e as repartições públicas. Antônio
Carlos não fez por menos, mandou colocar uma obra de arte em cada
edifício. Convocados para realizá-las—sem ser levado em conta o seu
credo político, amigo ou inimigo do governador —, os grandes artistas
da Bahia lá deixaram, perpetuadas, suas pinturas e suas esculturas.
Entre outros lá estão: Carybé, Fernando Coelho, Calasans Neto,
Floriano Teixeira, Sante Scaldafferri, Mirabeau Sampaio, Juarez
Paraíso, Carlos Bastos, Tati Moreno, Mário Cravo e outros. Carlos
Bastos faria o mural do plenário da Assembléia Legislativa.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
OBRA DE POLÍTICO CORAJOSO
Ainda uma vez peço licença, quero testemunhar, não poderia
deixar de falar sobre mais uma realização de Antônio Carlos
Magalhães em sua gestão anterior, como prefeito: a instalação do
esgoto na cidade do Salvador. Obra de necessidade premente, obra
gigantesca e antipática, obra de político corajoso que não tem medo
de incomodar o povo, aquela gente que gosta de ver tudo pronto e
bonitinho, que exige benefícios mas não tolera sacrificar-se para
obter o resultado. Pois o pioneiro das obras do esgoto da cidade foi
ACM. Centenas de quilômetros de ruas foram abertas, montes de
terra entulharam as calçadas, enormes manilhas de esgoto
atravancaram o trânsito durante meses, até o trabalho estar
terminado. Fazemos parte dos sacrificados e recompensados depois,
já que nossa casa da rua Alagoinhas, até a instalação do esgoto era
servida pelo detestável sistema de fossa. Ouvi de alguém,
entusiasmado com a obra do prefeito: ... se ele não tomasse essa
providência, Salvador, logo, logo, ia afundar na merda...
O MURAL
Carlos Bastos nos chamou à sua casa, pediu que levássemos
retratos. Ele recebera uma encomenda do Estado: devia realizar um
trabalho, pintaria um painel cobrindo toda uma parede do plenário da
nova Assembléia Legislativa, no Centro Administrativo de Salvador.
O croqui do trabalho estava pronto: os desenhos da procissão
do Bom Jesus dos Navegantes, que seria pintada no mural, dava bem
noção do trabalho gigantesco que o artista tinha pela frente.
A idéia de Carlos era a de colocar na barca principal da
procissão, a galeota, a que conduz a lo. de janeiro o Bom Jesus e a
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Virgem, sua mãe, pelo golfo da Bahia em festa, personagens e
personalidades as mais importantes da terra. Atrás, no cortejo, nas
barcaças e nos saveiros, nas pequenas e nas grandes embarcações
enfeitadas de bandeirolas coloridas e bandeirinhas do Brasil,
retrataria ainda outras figuras conhecidas.
Nesse mural pintado sobre acrílico, em 1973, Carlos Bastos
retratou 170 pessoas. Tivemos a honra e o privilégio de aparecer na
primeira fila da galeota e a tristeza de desaparecer num incêndio em
1978, nas chamas que destruíram completamente o mural pintado
sobre material inflamável.
Em 1994, ainda por encomenda de ACM, Carlos Bastos pintou
novamente, para o mesmo local do mural incendiado, outra procissão
de Bom Jesus dos Navegantes. Figuras representativas da Bahia
novamente ocuparam os barcos.
CASA NA PEDRA DO SAL
Ao lado da casa de Carlos Bastos havia um terreno à venda.
Me entusiasmei, poderíamos ter uma pequena casa na praia, um bom
refúgio para trabalhar. O sossego para escrever tornava-se cada vez
mais difícil. Os últimos livros de Jorge haviam sido escritos aqui e
acolá, em casa de um e de outro e até fora do Brasil. As solicitações
eram cada vez maiores e Jorge, de coração mole, como bem dizia o
velho João Amado, não conseguia negar nada a ninguém, muitas
vezes sacrificando seu trabalho para atender a pedidos,
Nos recolhemos certa vez na chácara de Dmeval Chaves, na
Boca do Rio, mas o esconderijo logo foi descoberto e adeus viola,
tivemos que levantar acampamento.
Fomos para a casa de campo de Nair e Genaro de Carvalho, na
Estrada Velha do Aeroporto, Isso foi em 1969, quando Jorge escreveu
Tenda dos Milagres,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Lugar tranqüilo, uma beleza. Na chácara do famoso tapeceiro,
Jorge poderia trabalhar sem ter que abandonar a máquina para
resolver problemas alheios, pedidos de pessoas que o procuravam, às
vezes até desconhecidas.
Por falar nos problemas que sempre aparecem para serem
resolvidos por Jorge, até de desconhecidos, peço licença para contar
uma historinha que ilustra bem:
Em certa noite de tempestade, ouvimos tocar a campainha da
porta. Quem poderia ser àquelas horas, com aquele temporal?
Tratava-se de uma senhora de aspecto modesto,
acompanhada de uma jovem em adiantado estado de gravidez, mãe
e filha, molhadas como dois pintos: Seu Jorge Amado, foi dizendo a
mãe, só o senhor vai poder resolver o nosso problema, me desculpe
ter vindo aqui a estas horas mas não tinha outro jeito. Só o senhor
mesmo, repetiu, vai poder dar socorro pra gente. Chorava e falava ao
mesmo tempo, fungando e enxugando as lágrimas e o nariz nas
costas das mãos: Minha filha, como o senhor vê, está grávida e tem
que se casar amanhã. Tudo está pronto, os móveis do quarto, as
panelas, até as alianças... A moça abriu uma caixinha, mostrou o par
de alianças, a mãe não estava mentindo. A gente ia até fazer uma
festinha, festa de gente pobre, o senhor compreende, eu só tenho
ela...
Para encurtar a conversa, o noivo dera o fora, sumira deixando
apenas um bilhete lacônico, não ia mais se casar.
— E daí?—quis saber Jorge. — No que é que posso ajudar?
— Eu quero que o senhor me diga o que devemos fazer —
respondeu ela.
Jorge refletiu e em seguida me pediu que telefonasse a
Tibúrcio Barreiros, o nosso amigo advogado, explicasse-lhe o
problema. Tibúrcio até parecia já conhecer o caso, pois estava com a
solução na ponta da língua:
— Não há outro remédio senão adiar o casamento—
aconselhou o experiente advogado —, a noiva deve dar parte de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
doente. É só a mãe ir ao cartório amanhã, logo cedo, e dizer que a
filha não pode se locomover. Só isso.
Ao saber que devia adiar o casamento, a noiva, que até então
não pronunciara uma única palavra, pronunciou, num quase gemido
doloroso: Adiar? Só então chorou, chorou aos soluços...
Tibúrcio entendia da coisa. O noivo fora ameaçado por uma
ex-amásia com quem já tinha dois filhos: Vou ao cartório com as
crianças e acabo com tudo... gritara ela.
O jeito era sumir do mapa e foi o que ele fez. Reapareceu
quinze dias depois, quando tudo voltara à calma e, então, o
casamento realizou-se na surdina e sem festa.
Se aparece gente em casa com pedidos, ou por pura
curiosidade, quando trabalhamos, há, no entanto, pessoas que
adoramos receber, mesmo tendo que interromper nosso trabalho. Foi
o caso da inesperada visita de Clarice Lispector. Ela estava em
Salvador e desejava entrevistar Jorge para uma revista. Estávamos na
chácara de Genaro e Jorge pediu a Aurélio que a levasse até lá.
A tarde que Clarice Lispector passou conosco foi ótima, com
ela batemos grandes papos, Jorge respondeu com satisfação ao que
ela queria saber para sua reportagem. Foi a última vez que a vimos.
RUA DO LAGARTO AZUL
O terreno ao lado da casa de Carlos Bastos me entusiasmou.
Jorge ficou reticente mas se rendeu diante dos argumentos de Carlos
e de Altamir. Naquele ermo, Jorge ia ter paz e inspiração na rua que
nem nome tinha, rua deserta, apenas Carlos e Altamir como vizinhos.
Ficaríamos à esquerda deles, o terreno à direita pertencia a Pelé, que,
certamente, não tinha intenção de construir. A nossa frente todo um
oceano encheria nossos olhos, subiríamos nas pedreiras que, ao
meio-dia, com o sol escaldante, ficavam brancas de sal.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Altamir encarregou-se de providenciar a papelada para a
compra do terreno. Jorge havia estado com Juca Chaves e se
entusiasmara ao saber que o Menestrel, nosso amigo, planejava com
Yarinha comprar um terreno em praia da Bahia e nela levantar um
iglu, espécie de tenda dos esquimós do pólo Norte, novidade
pitoresca, anunciada em jornais e revistas. Jorge achou a idéia
divertida, mas um iglu não iria servir para nós, assim como não iria
servir para Yara e Juca Chaves que acabaram construindo uma bela
residência em Itapuã, perto da Pedra do Sal, em frente ao mar.
Optamos por uma casa mais modesta que a do Juca. A Sun
House anunciava casas pré-fabricadas, patente da Finlândia: A casa
que é sucesso na cidade, na praia, no campo e na montanha. Projete
você mesmo sua Sun House: paredes de poliuretano rígido injetado
entre laminados tipo Fórmica/Eucaplac. Esquadrias: madeira de lei,
com aço inox e alumínio e laminados, pisos de lajotão. Tudo isso e
muito mais eu li, decorei e repeti para entusiasmar Jorge que, como
eu, pouco ou nada entende de poliuretano rígido injetado. O mais
importante do anúncio eram os noventa dias apenas para a
construção ficar pronta para habitar. E, já que havíamos decidido
construir a tal casa de módulos, procuramos o arquiteto André Sá.
Com ele bolamos a disposição dos cômodos e ele armou e construiu a
casa a nosso gosto.
Tati Moreno, nosso amigo, escultor dos orixás, mestre no
manejo de peças de sucata, de ferros retorcidos, de placas
laminadas, com que levanta e dá vida a Exus, Oxóssis, Yemanjás e
Omolus, nos presenteou com uma bela escultura de material
refratário ao salitre e a colocou em nosso jardim da Pedra do Sal.
A casa estava pronta, uma gostosura, porém ainda havia um
senão: Jorge não se conformava em morar numa casa de rua sem
nome e sem número de porta. Depois de muita confabulação com
Carlos Bastos, acabaram por encontrar um nome que agradasse a
todos nós e rua do Lagarto Azul ficou sendo o nome de nossa rua. E o
número da porta? Carlos adiantou-se: Eu adoro o número 500. Pois eu
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
gosto do número 1.000, disse Jorge. Até hoje, as casas vizinhas
ostentam em placas nas portas: 500 e 1.000, e o correio chega
direitinho, ninguém se atrapalha.
A BRISA DO MAR
A brisa do mar é inimiga do trabalho. Jamais Jorge havia
escrito um livro em casa de praia. Em nossas férias, nos tempos de
Maria Farinha, em Pernambuco, bem que ele tentara escrever, mas a
brisa do mar o convidava à preguiça, a rede o atraía mais do que a
máquina de escrever.
Ao chegarmos à Pedra do Sal, Jorge levava na cabeça,
amadurecido, um romance. A força da criação, desta vez, foi mais
forte do que todas as brisas de todos os mares, a vontade de ir para a
máquina suplantou a preguiça. Fez como costuma fazer quando
começa a escrever um livro: impôs-se uma disciplina de trabalho e,
diariamente, inspirado ou não, sentava-se pela manhã, muito cedo, o
papel branco a ser preenchido em sua frente, e o santo baixava,
como costumo dizer.
Durante o ano que passamos na Pedra do Sal, à beira-mar,
Jorge Amado escreveu: Farda, fardão, camisola de dormir.
Eu jamais havia escrito coisa alguma, jamais pensara escrever
um dia e, no entanto, foi na casa da Pedra do Sal que escrevi meu
primeiro livro: Anarquistas, graças a Deus.
Sempre gostei de contar histórias, meus ouvintes eram as
crianças da casa e da vizinhança. Desde muito pequenos, João e
Paloma viviam atrás de mim: Conta, conta, conta... e eu contava
coisas vividas na minha infância, infância de uma criança viva, olho
crítico sempre atento a tudo, menina que nada perdia, nem esquecia.
Foi na ocasião da estada na Pedra do Sal que Paloma me
perguntou um dia:
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Por que, mãe, você não escreve as histórias da tua
infância?
Até me assustei:
— Porque não sei escrever, minha filha—respondi. — Está
brincando comigo, menina? O escritor da casa é teu pai e já estamos
bem servidos.
— Não estou brincando, não, mãe. Você acha que não sabe
escrever porque nunca tentou... Você conta histórias tão bem... Faça
uma experiência, escreva como se estivesse falando, bem natural...
por exemplo, escreva a história do disco quebrado, o da Serenata de
Schubert, tão divertida.
A semente estava atirada, a conversa com Paloma não me
saía da cabeça, bulira comigo e, num belo dia, estando eu sem ter o
que fazer, enquanto aguardava que Jorge me desse páginas já
revisadas de seu trabalho para que eu passasse a limpo, resolvi
escrever a historinha que Paloma me pedira. Fiz um cálculo: em três
ou quatro laudas liquido o assunto.
Comecei a escrever minha história e, no entusiasmo, as folhas
escritas aumentavam: Não é que essa danada é muito mais longa do
que eu imaginava?, disse eu com meus botões e continuei
escrevendo. Ao chegar às quinze páginas vi que não havia ainda
contado tudo.
A hora do recreio terminara, Jorge me chamou, pediu-me que
consultasse a enciclopédia, precisava de um dado histórico. Minha
brincadeira ficou de lado, continuaria depois. Continuaria?
Enquanto esperávamos que o almoço fosse servido, criei
coragem e, morta de encabulamento, estendi as quinze páginas a
Jorge: Leia. Entreguei as folhas e saí da sala, conjecturando: e se ele
rir? Eu também riria. E se ele disser: Que besteira é essa? Eu calaria.
E se ele me devolver as folhas sem dizer nada? Eu choraria. Tudo isso
poderia acontecer, Jorge não ia, nunca, fazer um elogio só para me
agradar, não é de seu feitio. Ele jamais iria me expor ao ridículo. Em
se tratando da mulher e dos filhos, ele possui um sentido crítico
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
severo, não dá colher de chá.
Jorge me chamou: Cadê você? Senta aqui. Sentei a seu lado,
esperando a sentença. Gostei do que você escreveu, foi dizendo,
gostei da simplicidade da escrita. Coisa difícil de se conseguir. Afora,
o que está aqui é apenas uma anedota, história que já conheço de
ouvir você contar. Essa anedota, assim, isolada, é muito pouco, não
tem valor. Você, que foi menina pobre, mas teve uma infância rica de
acontecimentos, criada num meio de imigrantes estrangeiros, de
família integrante da Colônia Cecília, de anarquistas sonhadores, que
assistiu ao crescimento de São Paulo, poderia escrever um livro de
tudo o que viveu e recorda. Quero te dar apenas um conselho:
escreva com a mesma simplicidade com que escreveu estas quinze
páginas, será um livro escrito com emoção, de dentro para fora, com
o coração, ao contrário dos historiadores que pesquisam e escrevem
de fora para dentro. Seu livro será único. Agora, uma coisa
importante: não tente fazer literatura, nem procure palavras difíceis,
você não é literata. Talvez temendo me magoar ao dizer: Você não é
literata, acrescentou ele: Eu também não sou literato.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Deus me livre! Sorriu: Toque o bonde! Me mostre quando o
livro estiver pronto.
ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS
Nunca pensara poder sentir tantas e tais emoções, àquela
altura de minha vida, aos sessenta e três anos de idade, como as que
senti ao escrever Anarquistas, graças a Deus.
Sem ter uma única anotação, apenas a memória trabalhando,
voltei ao passado, voltei a ser criança no convívio de meus pais e de
meus irmãos, recuperei amigos perdidos na distância do tempo e,
sobretudo, descobri minha mãe. Dona Angelina era uma pessoa
formidável e eu não lhe dera o devido valor. Seu Ernesto, meu pai,
era bem como o julgara: inteligente, humano, homem bom. A seu
Ernesto eu sempre fizera justiça.
Nas minhas lembranças cheguei mesmo a sentir o perfume do
talco de heliotrópio que mamãe usava na gente. Ai que saudades de
Maria Negra, chorei de saudades de Maria Negra, ri das graças dela.
Lembrei da beleza de Wanda, minha irmã, mais bonita do que Zezé
Leone, a miss Brasil. E Vera? Minha irmã tão despachada, prestativa,
tão boa... E Tito? Espírito crítico, generosidade camuflada... Remo,
irmão mais velho, sabia conquistar as meninas do bairro e eu o
admirava. Chorei novamente ao ver Flox, meu cachorro, meu
companheiro, atropelado e morto no meio da rua...
Jorge só viu o livro pronto. Tive como leitores e conselheiros,
enquanto escrevia, Paloma e João Jorge, Luiza e James Amado, que
deram palpites e me encorajaram a prosseguir.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
LINA WERTMÜLLER
Ao pensarmos que poderíamos escrever tranqüilamente
nossos livros na Pedra do Sal, nos enganamos. Durante esse ano que
passamos lá tivemos que interromper o trabalho, várias vezes. Uma
delas foi quando chegou à Bahia toda uma equipe de cineastas
italianos. Vinham conversar com Jorge e fazer locações para o filme
Tieta do Agreste, estrelado por Sofia Loren e dirigido por Lina
Wertmüller, diretora e roteirista dos filmes: Mimi o metalúrgico,
Pasqualino Sete Belezas, Dois na cama numa noite de chuva, entre
outros. Nessa embaixada cinematográfica estavam o produtor Alfredo
Bini, velho amigo nosso, e Renzo Rosselini, jovem simpático, filho de
Roberto Rosselini.
SOFIA LOREN
Numa de nossas estadas em Paris, Jorge foi procurado por
Cario Ponti e cedeu-lhe uma opção de Tieta do Agreste para o
cinema. Para Cario Ponti ele vendera, havia anos, os direitos de Mar
morto, filme nunca realizado.
Carlo Ponti e Sofia Loren nos receberam em seu apartamento
de Paris: Sofia está fascinada pelo personagem de Tieta, deseja muito
conhecê-lo pessoalmente, conversar. Quer saber se essa Tieta existiu
mesmo ou se é apenas fruto de sua imaginação, dissera Ponti ao nos
convidar à sua casa.
Fui a esse encontro munida de câmera fotográfica, não ia
perder a oportunidade.
No imenso apartamento, pouco iluminado, havia outras
pessoas além do casal. Foi nessa noite que conhecemos Lina
Wertmüller.
Ao sermos apresentados a Sofia e a Lina, Jorge disse: Podem
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
falar com Zélia em italiano, ela é filha de italianos. Com tantos
méritos, disse Lina, descubro mais este no Amado: é casado com uma
italiana... Todos riram, menos eu, pois nunca abri mão de ser
brasileira. Mas esse não era momento para discussão; aos italianos
basta o sangue italiano para ter a nacionalidade.
Entre os convidados da noite havia um cidadão muito elegante
e muito paparicado, era só: Toscan pra cá, Toscan pra lá... Esse deve
ser muito importante, pensei. Realmente era: tratava-se de Daniel
Toscan du Plantier, nada mais, nada menos que o presidente da
Académie des Arts et Techniques du Cinema, nada mais, nada menos
do que o mandachuva do mais importante prêmio do cinema francês,
o César.
Sofia repetiu a Jorge o que Carlo Ponti já lhe dissera: queria
saber se o personagem Tieta fora copiado da vida real ou era ficção.
Com todo o seu charme Jorge lhe disse o que ela gostou de ouvir:
Depois que você a interpretar ela passará a ser personagem da vida
real. Rindo muito, ela chamou o marido: Senti questa, Cario. Contou
que desde a leitura do romance se pusera na pele da personagem e
decidira interpretá-la. Ela já quisera, havia anos, fazer o papel de
Lívia, de Mar morto. Ponti comprou os direitos do romance, a
montagem da produção já andava adiantada quando Sofia
engravidou do primeiro filho. Foram obrigados a suspender tudo,
adiar a filmagem. Sofia realizava o sonho de sua vida: ter um filho e
para esse filho dava prioridade. Depois tivera outro filho, e o sonho de
ser Lívia terminou. Entusiasmara-se também por Gabriela, mas
quando Ponti correu atrás dos direitos eles já haviam sido vendidos à
Metro.
Enquanto Jorge conversava com Sofia e Lina, eu só ia tirando
fotografias. Num dado momento, Toscan se aproximou de mim e
disse: Essas fotografias vão lhe render milhões... Não são para serem
vendidas, expliquei-lhe, são para um livro que estou fazendo. Não sei
se ele acreditou, muito menos acreditaria se eu lhe dissesse que
jamais recebera um tostão furado das fotos que tenho, publicadas em
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
matérias sobre Jorge, em revistas e jornais, em capas e contracapas
de livros, no mundo inteiro. Quando muito, por muito favor, me dão
os créditos, mas em geral ao lado da foto aparece simplesmente a
palavra: arquivo. As daquela noite, com Sofia Loren e Lina
Wertmüller, estão no Reportagem incompleta.
Carlo Ponti nos convidou a voltar no dia seguinte, Sofia
desejava nos mostrar os filhos, tomaríamos um drinque e sairíamos
para jantar num restaurante. Cario Ponti até sugeriu que a própria
mulher nos preparasse uma bela macarronada, especialidade dela,
mas ficou mesmo decidido que iríamos a um restaurante.
Nessa ocasião, nosso amigo e editor, Alfredo Machado,
encontrava-se na Europa e nos telefonou de Londres. Jorge contou-lhe
que jantaríamos naquela noite com Sofia Loren. Alfredo se
entusiasmou: Estou nessa boca, disse. Pois tome um avião e venha,
aconselhou Jorge
Foi assim que, naquele jantar, com Sofia Loren, num charmoso
restaurante de Paris, Jorge levou um convidado: seu amigo, Alfredo
Machado, responsável pela publicação de Tieta do Agreste.
Como toda história deve ter começo, meio e fim, não sou eu
quem vai deixar de contar o fim desta. Seu desfecho foi bastante
complicado, mas vou tentar resumi-lo a fim de explicar por que o
filme acabou não sendo feito pelos italianos. Peço, no entanto, licença
para contar tudo depois que Lina Wertmüller for embora da Bahia.
Lina e sua equipe chegavam agora à Pedra do Sal, prontos
para com Jorge irem fazer locações em Mangue Seco. Fretaram um
pequeno avião, visitariam todos os locais das filmagens. A diretora
contava certo com a companhia do escritor nessa caravana, mas ele
se negou, à última hora, a subir no aviãozinho. Foi Renato Ferraz,
nosso amigo, que tudo conhece e sabe da região, quem lhe serviu de
cicerone.
Em Salvador, Lina Wertmüller entrevistou vários artistas,
contratou uma porção de gente. As filmagens deveriam começar o
mais cedo possível. Jorge negou-se a voar com a diretora, mas
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
prontificou-se a acompanhá-la a um candomblé, mostrar-lhe a cidade,
apresentá-la a uns e a outros.
Com a presença dos cineastas italianos na Bahia, nossas
máquinas ficaram fechadas, não pudemos escrever uma linha sequer.
Pouco depois da partida de Lina, fomos apanhados de surpresa
com a notícia dada pela televisão, em edição extraordinária: ao
desembarcar em Roma, Sofia Loren foi presa. Havia contra ela, na
Itália, um processo por sonegação de imposto, ou coisa semelhante.
Sofia Loren deveria filmar umas tomadas internas, de Tieta na
Cinecitá, em Roma, antes de viajarem para a Bahia, e, mesmo
ameaçada de ir para a cadeia caso voltasse à Itália, ela resolveu
arriscar. Ninguém poderia acreditar que alguém ousasse prender a
tão famosa atriz. Enganou-se quem assim pensou, inclusive ela.
Lina Wertmüller voltara do Brasil com tudo encaminhado. Mas
o inesperado acontecera: La Loren è in galera, realidade que acabava
com o entusiasmo da realização do filme. Segundo dizia a imprensa,
na ocasião a falência do Banco Ambrosiano, que patrocinava a
produção da parte italiana do filme, fora decisiva para que o projeto
não fosse adiante, gorasse, mesmo depois da libertação da atriz.
O destino de Tieta era o de ser interpretada por uma brasileira,
e que brasileira! Sônia Braga. Do filme de Caca Diegues, Tieta,
realizado na Bahia, recentemente, feito com a maior competência e
carinho, com excelentes atores, quero destacar, com entusiasmo, os
trabalhos de Marília Pera e de Chico Anísio. E por que não contar que
foi o primeiro trabalho de minha neta Cecília, segunda filha de
Paloma, como continuísta, tendo inclusive nos dado a emoção de
bater a claquete para a cena de abertura do filme, onde seu avô
Jorge, sentado num banco de praça, lê uma página de seu livro.
ADEUS, PEDRA DO SAL
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Com as idas e vindas da equipe italiana à Pedra do Sal, nosso
esconderijo foi descoberto e começaram a aparecer visitas,
começaram os pedidos. Como se isso não bastasse, uma empresa de
turismo colocou no seu roteiro a casa de praia do escritor.
Diariamente, à hora certa, parava em nossa porta um grande ônibus
cheio de turistas, de nacionalidades as mais variadas. Eunice, nossa
empregada, ficava de tocaia, aguardando a chegada do by day, para
dar o alarme: Lá vem eles... Com o aviso de Eunice, nos trancávamos
dentro das portas, ouvindo o rumor lá fora.
A guia da excursão fazia todo mundo saltar do ônibus e, de
microfone em punho, sapecava seu discursinho decorado: Esta é a
residência do escritor Jorge Amado... por aí ia, contando coisas sobre
o escritor, inventando gracinhas para fazer os clientes rirem. Eles
rodeavam a casa e chamavam: Jorge Amado! Jorge Amado!, saia um
pouquinho... Turistas argentinos aos gritos de: Que salga Jorge
Amado! Certa vez invadiram o jardim. Jorge me disse um dia: Não
vejo a hora de terminar esse livro e sair daqui, voltar para nossa casa.
Tenho às vezes a sensação de ser um foragido, um bandido me
escondendo da polícia,: dia e noite...
Agüentamos até o fim. Só voltamos para a casa do Rio
Vermelho de livros prontos.
CONCURSO DE BELEZA
Hoje em dia os concursos de beleza perderam a graça. Já não
são, nem de longe, aqueles de outros tempos, da época em que as
baianas foram as maiorais. Lembro das duas Martas, a Rocha,
injustiçada na hora das medidas, podia ter sido a Miss Universo, a
outra Marta, a Vasconcelos, foi vencedora nos enchendo de orgulho e
entusiasmo. Terezinha Morango, Adalgisa Colombo, Vera Fischer e
tantas outras são lindas até os dias de hoje.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Permito-me falar aqui de um concurso de Miss Bahia, do ano
de 1967, quando esses concursos ainda tinham seu lugar, quando o
interesse por eles ainda era grande e quando, irresponsável, entrei de
gaiata numa fria e sofri as conseqüências.
O movimento para a escolha da mais bela brasileira daquele
ano apenas iniciara. A TV Itapuã, única emissora da Bahia e, por isso
mesmo, ouvida por todo mundo, começava a movimentar-se na
pesquisa e na descoberta de beldades baianas.
Diretor dos Diários Associados, o mandachuva da televisão
Odorico Tavares me convidou para dar uns palpites sobre os
concursos de beleza em geral. Mesmo não sendo expert no assunto,
aceitei o convite e fui ao estúdio à noite, para a entrevista, no horário
nobre. Entre outras coisas, me perguntaram se conhecia alguma
moça bonita para concorrer. Eu conhecia: Ana Maria Guimarães,
sobrinha de Norma Sampaio. Havia estado com ela naquela mesma
tarde, em casa de Norma, e não me cansara de apreciar a beleza da
moça. Não tive dúvidas em citar seu nome e endereço.
Ao chegar em casa, Norma já havia me telefonado várias
vezes: Menina, exclamava, entusiasmada, a televisão já está na casa
da Ana Maria... Ana Maria teve a maior surpresa ao ver você falando
no nome dela... está doidinha...
Convidada, dias depois, fui à casa de Carmilton, irmão de
Norma, pai da candidata. Norma, como sempre, à frente de tudo:
Ana Maria já está inscrita e você vai ser a madrinha dela, vai
fazer a campanha... Levei um susto:
— Eu, Norma? Você está doida?
— Doida coisa nenhuma. Não foi você quem atirou a menina
no fogo? Agora agüente!!
— Eu apenas disse que ela é bonita, nada mais que isso...
— E você acha pouco? Não vejo motivo para se assustar... Vai
ser até divertido.
Felizmente, surgiram patrocinadores para a campanha da
moça: duas conhecidas casas comerciais, a Ipê e a Rosatex, dariam
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
toda a assistência à candidata, fornecendo-lhe o guarda-roupa e o
que necessitasse: acompanhante e conselheira, automóvel à
disposição, em troca da promoção das duas lojas comerciais. A mim
coube, sempre sob a batuta de Norma, dar mais umas entrevistas e
levar Ana Maria à casa de Genaro de Carvalho para que Nair,
entendida em beleza, estudasse o rosto da moça e lhe desse
conselhos sobre a maquiagem a usar. Bem ou mal eu cumpria a
minha sina de madrinha de miss.
O dia do desfile se aproximava, a consagração seria no
Balbininho. Os patrocinadores de Ana Maria encheram o estádio, por
dentro e por fora, de faixas de propaganda das duas lojas. A opinião
dos que acompanhavam o concurso era a de que não havia candidata
mais bela do que Ana Maria Guimarães. Ninguém duvidava de sua
vitória.
Só não tínhamos atinado, Norma e eu, com um perigo
ameaçador: o patrocinador do concurso, era A Moda, conceituada
casa de roupas femininas de Salvador, concorrente ferrenha da Ipê e
da Rosatex. Inocentes desse detalhe que punha em risco o desfecho
da eleição, fomos ao Balbininho com bastante antecedência, o tempo
suficiente para pensar sobre o caso. Encontramos os patrocinadores
de Ana Maria furiosos. Marcos Kertzman, proprietário de A Moda, o
que bancava o concurso e pagava alto, havia mandado retirar todas
as faixas das lojas adversárias.
Sentado em nossa frente, Odorico Tavares mal nos
cumprimentou. Fiquei cismada: Odorico sempre tão efusivo, tão
gentil... A seu lado, na primeira fila, o prefeito Antônio Carlos
Magalhães, o governador Luiz Viana Filho e dona Juju, sua esposa, o
general Augusto Tinoco e senhora, entre outros.
Entraram os componentes do júri, quase todos conhecidos
nossos, entre eles o poeta Hélio Simões. Norma se entusiasmou: Está
no papo, disse, Dr. Hélio é garantido, vota nela e os outros também.
Enquanto o meu entusiasmo diminuía, dando lugar ao pessimismo, o
de minha amiga pegava fogo. Já ganhou!, dizia ela.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
As seis misses selecionadas na finalíssima desfilavam. Mais
linda do que nunca, Ana Maria flutuava entre as pétalas de rosas que
caíam do alto sobre ela. Isso, as pétalas de rosas, seu Marcos não
pudera evitar.
O tempo passava e nada de sair o resultado. Decisão mais
demorada, reclamou Norma. O que é que essa gente está tramando
lá dentro?, disse eu, desconfiada ao ver que havia um vai-e-vem de
bilhetinhos e de recados para Odorico.
Finalmente, os alto-falantes entraram em ação, anunciavam a
decisão do júri:
Ana Maria Guimarães, sexto lugar! Isso mesmo, sexto lugar!
O estádio quase veio abaixo com as vaias: Marmelada,
marmelada...
Norma endoideceu, saiu na disparada para alcançar Odorico
que também saíra na disparada, tratando de salvar-se. Segurando-o
pelo braço, Norma esbravejou: Olhe aqui, seu Odorico, quando você
escolher outro júri filho da puta como esse para seus concursos, me
avise para não meter minha família nele... Tratei de levá-la para fora
do estádio, ela estava exaltada demais.
Enquanto esperávamos que Aurélio encostasse o carro,
aproximou-se de mim uma senhora do grupo dos patrocinadores da
miss derrotada, que, aos berros, foi me insultando: Você é a culpada
dessa derrota. Ela só perdeu por sua causa, dizia gritando. Sem ação,
surpresa com tamanho disparate, ainda a ouvi esbravejar: Seu lugar
era lá dentro e não assistindo da poltrona... Se estivesse lá dentro, ao
lado dos juizes, teria evitado essa marmelada... Sem lhe dizer
palavra, dei-lhe as costas e fui saindo. Aurélio demorava, e Norma,
que continuava exaltada, divisou entre as pessoas que saíam pelos
fundos do estádio o poeta Hélio Simões que acabara de dar seu voto.
Alcançou-o, segurou-o pelos gorgomilos e gritou para o pobre que,
atônito, não estava entendendo nada: Quer um conselho, Dr. Hélio?
Nunca mais se meta em concursos de beleza, porque de beleza o
senhor não entende nada!... A muito custo ele conseguiu se defender:
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Mas eu votei nela, dona Norma, votei em Ana Maria... Era a mais
bonita... Ele votara, sim, e outros também haviam votado na nossa
candidata. Norma conseguiu tirar tudo a limpo: Ana Maria ficara em
primeiro lugar, mas seu Marcos não concordara nem em lhe dar o
segundo.
Nesse concurso de beleza, no qual me metera de gaiata,
venceu uma casa comercial contra duas adversárias.
HANSEN BAHIA
A primeira vez que ele veio à Bahia, há muitos e muitos anos,
seu nome era Karl Heins Hansen. Alemão de Hamburgo, conceituado
professor de gravura em sua terra natal. O cidadão Karl Heins veio
dar com os costados na Bahia, trazendo Rosa, sua mulher e um casal
de filhos. Artista de primeira linha, todo mundo logo viu, homem de
hábitos diferentes dos nossos, Karl Heins fez sucesso, não teve
dificuldade em relacionar-se com o que havia de melhor nas artes,
tornou-se amigo de Deus e o mundo. Comprou uma casinha rústica
na praia de Amaralina, o mar na porta, o resto um descampado. Pela
porta sempre aberta de sua casa entravam e ficavam habitando os
animais que aparecessem: cachorros, gatos, cabras, porcos e até um
jegue passou a fazer parte da família.
Encantado com a terra que escolhera, nosso herói resolveu um
dia mudar de nome, passou a chamar-se, para todos os efeitos,
Hansen Bahia.
Do artista alemão, tínhamos notícias através de amigos, de
Carybé sobretudo, que por ele tinha o maior respeito e admiração.
Carybé se divertia contando uma história que sucedera a Hansen:
caminhava ele pelas areias da praia de Amaralina quando deparou-se
com uma pedra amarela coberta de areia. Pedra grande, deveria
pesar uns dois quilos. Lavou-a no mar, ela era transparente, uma
beleza! Levou-a para casa, tirou-lhe um pedacinho, ia levar a amostra
para ser avaliada por um entendido, na cidade. Guarda essa pedra aí,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
disse à Rosa, entregando-lhe o achado.
Não foi preciso examinar muito para que Mamede, o antiquado
da cidade, reconhecesse a qualidade do material que lhe fora
entregue. É âmbar, Hansen, disse-lhe o expert, coisa rara na Bahia.
Se você tem em casa uma pedra dessas, do tamanho que você diz
ter, está rico. Traga ela aqui para eu ver.
No percurso de bonde que o levaria ao ponto final de
Amaralina, Hansen achou a viagem longa, estava ansioso por chegar
em casa, contar a grande novidade a Rosa e aos meninos, fazia
planos. Foi entrando porta adentro e perguntando à mulher:
— Onde está a pedra, Rosa?
— Que pedra?
— A que eu te dei para guardar.
— Deve estar onde deixei, ali no chão — respondeu Rosa. No
lugar em que Rosa a havia deixado, ali no chão, restavam apenas
farelos do âmbar. O jegue a havia comido.
Hansen tornara-se assíduo freqüentador do Pelourinho, melhor
dito, do baixo meretrício que reinava no Centro Histórico de Salvador.
Chegava, sentava-se junto à janela do bar Flor de São Miguel, onde a
cachaçada era uma só, ficava apreciando os tipos que se misturavam,
homens e mulheres de todas as cores e matizes, ia tomando nota,
desenhando, material precioso para um álbum que faria, inclusive até
o título estava escolhido Flor de São Miguel.
Os originais do álbum foram levados por Carybé, ao Rio, ele
queria que Jorge visse e escrevesse: Este trabalho do Hansen merece
um texto teu, disse ele, mais uma intimação do que um pedido. Jorge
se encantou com as gravuras e o álbum de Hansen, todo feito à mão
pelo artista na sua primeira edição, teve a apresentação de Jorge
Amado.
Ao chegarmos para viver na Bahia, Hansen já se havia ido,
partira com a família. Ao que soubemos, ele mudara de mulher,
casara-se com uma jovem aluna de nome Ilse, estavam morando na
Abissínia.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Depois de correr mundos, de ter vivido na Etiópia, de ter sido
amigo de Haile Selassie, de ter tido hienas a gargalhar em seu jardim,
em Adís-Abeba, Hansen Bahia sentiu saudades da terra de seus
encantos. Trazendo uma grande tenda de campanha, com Ilse ao
lado, voltou para Salvador. Juntara algum dinheiro, comprou um
terreno em Patamares, armou a tenda e lá ficaram instalados até
levantarem a casa. A casa foi construída tempos depois, ampla e
arejada, como gostavam seus donos, portas abertas e franqueadas a
quem chegasse, suas vidas passaram a ser compartilhadas com aves
e animais: cães, gatos, papagaios, macacos, inclusive um jegue.
Fomos à inauguração da casa de Ilse e Hansen, festa para a
qual eles convidaram meia Bahia, desde as prostitutas do Pelourinho
às mais elegantes damas da sociedade baiana.
Vestido de árabe, torço na cabeça, Hansen recebia os
convidados no terraço da casa. Nunca soube se era um hábito árabe
ou invenção dele, o leilão que Hansen fazia com cada senhora que
chegava. Levantava-a pela cintura, deitando-a em seguida de
bumbum para cima e começava o pregão: Quanto me dão por esse
mulher? uma camelo? duas camelos? três camelos?... a cada camelo
ele sapecava um, dois, três tapas na bunda da dama que se debatia
no ar, tentando desvencilhar-se. Hansen ria divertido, mas os maridos
não achavam graça nenhuma na brincadeira e, quanto ao meu, tratou
de me arrastar com ele e entrar pelos fundos da casa para evitar a
maluquice do anfitrião. Carybé e Nancy nos acompanharam, aliás,
muita gente nos acompanhou.
Como esquecer a maneira como Hansen, no seu português
germânico, apresentou Ilse aos amigos?
Eu conheci Ilse no barriga do mamãe dela, Ursula, meu amiga.
Quando vi Ilse depois, ela já estava grande, era meu aluna de
desenho. Me apaixonei por Ilse, Ilse se apaixonou por mim. Meu
casamento com Rosa, muito ruim, acabou. Tinha medo de casar com
Ilse, Ilse muito novo pra mim. Fui falar com minha papai: minha
papai, eu quer casar com llse, gosto muito de Ilse mas tenho medo,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Ilse é muito moço pra mim. Minha papai disse: meu filho, mulher
velha come mais do que mulher moço. Mulher velha fica mais doente
do que mulher moço. Mulher velha gasta mais dinheiro no remédio do
que mulher moço. Mulher velha é mais feio do que mulher moço.
Casa com Ilse, minha filho. Ao terminar de contar a entrevista com o
velho pai e de louvar o sábio conselho, Hansen abria-se num sorriso
de satisfação: Minha papai uma poeta.
Hoje, vinte anos após sua morte, seu nome é recordado, suas
divertidas histórias são repetidas, sua arte é louvada por toda a parte
e, sobretudo, na Fundação Hansen Bahia, onde se encontra o acervo
do artista, em Cachoeira, cidade de encantamentos que Hansen e llse
escolheram para viver até o fim de seus dias.
TRÊS AMIGAS FRANCESAS
As três amigas francesas das quais desejo falar têm a ver com
a casa do Rio Vermelho e ainda mais com a nossa vida:
Misette Nadreau é citada em quase todos os meus livros.
Nossa amizade vem do tempo do exílio, na França e na
Tchecoslováquia. Desde então, Misette continua presente, nos bons e
nos maus momentos, estejamos aqui ou lá, no Brasil ou na
Conchinchina.
Moradora do Rio de Janeiro, que adora de paixão, sem renegar
a sua nacionalidade francesa, Misette prefere morar no Brasil onde,
trazida por nossa amizade, vive há mais de quarenta anos, rodeada
de amigos brasileiros. Em nossa casa do Rio Vermelho temos um
quarto para nossa amiga que, quando pode, vem nos dar a alegria de
sua presença. Nossa amiga? Eu diria mesmo que, mais do que amiga,
ela é irmã, se é que irmã pode ser mais do que amiga.
Anny-Claude Basset apareceu em nossa casa do Rio Vermelho
já faz muitos anos, sou muito ruim para cálculos de tempo, mas posso
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
afirmar que isso se passou há mais ou menos trinta anos. Ela trazia
na mão uma carta de recomendação de Rubem Braga para Jorge e
para mim que dizia mais ou menos isto: Tratem bem a menina, ela é
gente boa...
Formada em literatura de língua portuguesa, na França, Anny-
Claude fizera um mestrado sobre a obra de Erico Veríssimo. Estagiara
em Portugal e, nessa ocasião, conhecera Otto Lara Resende e João
Cabral de Melo Neto. Dessa amizade resultou a sua vinda ao Brasil,
mais precisamente a Porto Alegre, onde pôde ter contato com Erico
Veríssimo, autor de seus encantos, responsável pelo trabalho que
realizava. A moça francesa tornou-se amiga de Erico e de Mafalda,
amiga de grandes escritores brasileiros.
Terminado o mestrado, doutora em literatura brasileira, Anny-
Claude Basset não quis ser professora, optou pela profissão de
aeromoça, na Air France, teria a possibilidade de retornar muitas
vezes ao Brasil, país que a conquistara, rever seus amigos. Até
aposentar-se, Anny-Claude veio ao Brasil, constantemente, comprou
apartamento no Rio de Janeiro e divide sua vida entre Brasil e França.
Desde o dia em que apareceu em nossa casa com a cartinha
de Rubem Braga, Anny tomou-se nossa amiga. Nem vou contar aqui
histórias que tenham acontecido com ela, quis apenas falar dessa
amiga fiel, sempre presente em nossa vida, às vezes em temporadas
na casa do Rio Vermelho e na Pedra do Sal, outras vezes nos confins
do mundo, em viagens que fazemos juntos. Infelizmente as
temporadas de Anny-Claude na Bahia não são freqüentes, pois a
moça adora buscar emoções em mundos distantes e estranhos, adora
fazer grandes marchas e escalar montanhas. Por acaso, no momento
ela se encontra fazendo cooper no deserto de Gobi, na Mongólia, com
Mimiche, sua irmã, outra andarilha inveterada, de onde nos
mandaram notícias.
Alice Raillard é a francesa que mais conhece o português, que
mais sabe da arte de ser amiga. Conhecedora profunda da obra de
Jorge Amado, Alice traduziu a maior parte de seus livros. Não
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
contente com isso, resolveu escrever sobre ele.
Veio para a Bahia e em sua bagagem trouxe um gravadorzinho
para as entrevistas. Deixou em Paris o marido, como ela nosso
grande e querido amigo, Georges Raillard, um intelectual retado, no
dizer de Jorge, que, entre outros trabalhos, é autor de um importante
livro sobre o pintor Miro.
Se minha estima e admiração por Alice era grande, aumentou
muito depois dessa sua temporada na Bahia. Impressionante sua
paciência e obstinação. De gravador em punho, sensível, discreta, um
senso de oportunidade incrível, ela aguardava calada que Jorge se
dispusesse ou tivesse tempo de responder às suas perguntas. Devia
aproveitar os momentos livres dele, coisa rara. Muitas vezes Jorge até
se esforçava para atender à amiga, mas bastava sentar-se para ser
importunado, interrompido por telefonemas ou problemas que iam
dos mais importantes aos mais banais. Desligando o gravador, Alice
aguardava. E nesse ligar e desligar do aparelho, passou-se um mês
ou mais. O esforço de trabalho e de paciência foi coroado de êxito: O
livro Jorge Amado, conversations avec Alice Raillard, é um dos
melhores estudos já publicados sobre o escritor. Traduzido em várias
línguas, faz sucesso.
NOIVADO E CASAMENTO
Nos mudamos para a Bahia por causa das crianças, quisemos
preservá-las das ameaças de uma cidade grande. Agora as crianças
já não eram crianças, criavam asas, buscavam seu rumo próprio.
Não me admirei quando Paloma me contou um dia que estava
namorando o Pedro. Eu já percebera um certo clima entre os dois.
Filho do poeta Odylo Costa, filho, amigo da juventude de Jorge,
Pedro viera estudar na Bahia. Ainda bastante traumatizado com o que
sucedera a Odylinho, seu irmão mais velho, morto num assalto em
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Santa Tereza ao voltar do cinema com a namorada, Pedro tornara-se
um rapaz triste, parecia ter perdido o gosto pela vida. Ele precisa
mudar de ares e de ambiente, disse Odylo a Jorge que o aconselhou
em seguida a mandar o filho estudar na Bahia, onde seria nosso
hóspede.
Os ares da Bahia, realmente, faziam bem ao rapaz. Os ares, a
convivência com João, Paloma e a turma deles, jovens animados,
sempre em dia com os programas festivos da cidade, participando de
tudo. Pedro aderiu à turma e foi aderindo, com o passar dos meses,
aos encantos de Paloma.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Jorge não gostou da notícia — e qual é o pai que gosta de ver
sua filha única namorando? Nesse caso ele tinha razão, Paloma era
ainda muito nova e ele desejava vê-la formada, mais madura para
saber o que realmente queria, antes de pensar em casamento. Mas
quem é louco de se meter a dar conselhos a jovens apaixonados ou
proibir, como faziam os pais de antigamente? Nem pai, muito menos
mãe seriam ouvidos. O jeito foi atender ao apelo dos namorados,
doidos de pressa para oficializar o noivado.
Ao menos uma coisa agradou a Jorge. Gostou de saber que
Pedro, por iniciativa própria, após oficializar o namoro, mudara-se,
alugara um quarto onde passara a dormir todas as noites. Dormia no
quarto alugado, era bem verdade, mas logo cedo aparecia para o café
da manhã e, quando não estava no curso que fazia na Escola de
Arquitetura, era em nossa casa que podia ser encontrado.
Ao ter notícia do acontecido, Odylo achou muita graça, eu já
esperava por essa, teria dito. Nazareth, mãe de Pedro, da mesma
forma que nós, se preocupou, o filho era jovem demais para assumir
um compromisso tão sério. Mas também Nazareth sentiu-se
impotente diante da resolução do filho, não teve outro jeito senão
abençoá-lo.
A família Costa chegou de automóvel, pais e irmãos para o
noivado de Pedro, todos hospedados na casa da rua Alagoinhas.
Amigueiro como ele só, Odylo convidou para a festa de
noivado seus amigos da Bahia, a começar por Dom Timóteo, abade
do Mosteiro de São Bento, ex-professor de Pedro no Rio, pessoa do
nosso maior bem-querer, ao governador do Estado, na época o
escritor Luiz Viana Filho, que veio com Juju, sua esposa.
Jorge fazia questão do pedido formal, com discurso e tudo:
Afinal de contas só tenho uma filha e não faço por menos, disse.
Podíamos até vestir o fardão da Academia, pilheriou Odylo.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Na sala repleta, o pai do noivo levantou-se e mandou verbo:
com palavras cheias de poesia, pediu a mão de Paloma para seu filho
Pedro. Terminava perguntando:
— Você dá a mão de Paloma para Pedro, Jorge?
— Bem... — ia respondendo Jorge, mas Odylo exigiu que ele
ficasse de pé.
Jorge levantou-se.
— Bem — prosseguiu ele —, antes de dar uma resposta, eu
queria consultar a pessoa mais sábia que se encontra nesta sala,
minha mãe. Minha mãe — disse ele —, o Odylo está pedindo a mão
de Paloma em casamento. Paloma e Pedro querem ficar noivos. O que
você acha?
Sentada ao lado da cadeira vaga que fora ocupada pelo filho,
Lalu não titubeou, respondeu em seguida:
— Acho muito bom. Que fiquem logo noivos para acabar com
esse namoro de descaração.
Se houvera pressa para o noivado, agora havia pressa para o
casamento. Insistiram e marcaram data para daí a menos de um ano.
JOÃO JORGE ENTRA NA DANÇA
Como se o casamento de Paloma não bastasse, João Jorge
também inventara se casar. Filha de um amigo nosso, o português
Antônio Celestino, radicado na Bahia, Mariinha era a eleita de João
Jorge.
O problema se repetia, ambos muito jovens para assumir um
compromisso tão sério. João recém-formado em sociologia, ela, ainda
cursando veterinária. Mas, como já foi dito, quem é doido de se meter
a dar conselhos a jovens apaixonados, mais doido ainda de proibir?
Nessas ocasiões, pai e mãe devem concordar sem abrir o bico para
evitar problemas maiores.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
A cabeça ardendo, precisando arejar, Jorge tratou de organizar
uma longa viagem, seria bom sair um pouco.
A LONGA VIAGEM
Nossa filhinha nos escapava das mãos. Ia-se embora, voltaria a
morar no Rio de Janeiro, viveria em outro ambiente familiar, se
aproximaria da família Costa, se distanciaria de nós... Seriam ciúmes
da minha Palominha o que eu sentia? Sem que me vissem, chorei
muitas lágrimas. Embora nada dissesse, Jorge também andava triste.
Mas Jorge não é homem de se entregar, de se lamuriar, é homem de
ação: convidou Paloma a fazer uma viagem conosco pela Europa,
viagem de uns quatro meses, chegaríamos um mês antes do
casamento.
Jorge participaria de um congresso de escritores latino-
americanos, na Alemanha, na cidade de Düsseldorf. Como a data do
congresso ainda estava muito distante, ficaríamos circulando pela
Europa, iríamos à Escandinávia. Em Copenhague, visitaríamos nossos
amigos Emília e Georges Ploestanu. Ele fora, durante anos,
embaixador da Romênia no Brasil, daí nossa amizade.
Temi que Paloma fosse reagir, não querendo ficar tanto tempo
longe de Pedro, mas não, a viagem era tentadora demais. Prazerosa,
ela aceitou o convite, tinha muita vontade de conhecer a
Escandinávia. Jorge sorriu satisfeito, ao menos por mais algum tempo
a filha de seu amor estaria a seu lado.
Quanto a João, íamos cuidar de seu casamento na volta da
viagem. Ao menos ele não sairia da Bahia, teria sua própria casa mas
não o perderíamos de vista.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
CABO SAN ROQUE
A empresa de navegação espanhola, Ybarra, tinha três navios
que faziam a linha regular entre a Bahia e Vigo com escalas em
Tenerife, nas Ilhas Canárias e em Lisboa. Viagem de descanso,
agradável e confortável para quem não gosta de avião, a fazíamos
sempre, ora num ora noutro navio.
Ainda uma vez embarcamos no Cabo San Roque, voltaríamos
no Cabo San Vicente, com data já marcada.
Recordo que numa dessas viagens, no Monte Umbe, Jorge
levou a máquina de escrever e trabalhava no tombadilho quando dele
se aproximou um homem: Por favor, meu senhor, disse, onde é que
se encontra a porta de saída? Debruçou-se no tombadilho e, olhando
o mar, disse: Quero ir ao Baile... Veja que beleza! Todo mundo
dançando... Sem se perturbar, Jorge apontou-lhe Guillelmo, o barman:
Pergunte a ele, ele sabe tudo.
No porto de Lisboa uma ambulância aguardava o paciente,
portador de um desequilíbrio mental.
LISBOA À VISTA
Lá estavam, no porto, nos esperando como de hábito, vários
amigos: o escritor Ferreira de Castro, a atriz Beatriz Costa e os
amigos, editor Francisco Lyon de Castro com sua mulher, Eunice e
Aríete Soares, nossa amiga baiana que viera de Paris onde defendia
uma tese, para nos esperar e seguir viagem conosco.
Do Hotel Tivoli, onde nos hospedamos, saímos andando,
descemos a Avenida da Liberdade, subimos ladeiras, matamos
saudades dos lugares, de amigos que encontramos e da comida
portuguesa.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
À noite, com Ferreira de Castro, Lyon de Castro e Fernando de
Assis Pacheco fomos à Alfama ouvir fados. Nessa noite, no A Nau
Catarineta, deu-se um fato divertido.
Ao dar-se conta da presença dos famosos escritores na sua
casa de fados, a proprietária pediu ao fadista, que no momento ia
cantar, que anunciasse a presença dos dois insignes cidadãos.
Desembaraçado, o fadista nem engasgou ao anunciar com grande
ênfase: Temos a honra e o prazer de anunciar a presença nesta casa
de duas grandes personalidades: o ilustre poeta brasileiro Ferreira de
Castro e o escritor português Jorge Amado. Ferreira de Castro riu, mas
não gostou: Veja só o parvo... Tentou até corrigir a parvoíce do outro,
mas Jorge o dissuadiu. Deixa pra lá, foi até divertido...
RUMO À DINAMARCA
Num Mercedes preto, com motorista e tudo, carro alugado em
Lisboa, saímos numa viagem pelo norte de Portugal, atravessamos
serras e planícies, passamos a fronteira com a Espanha. Nos
divertimos constatando a diferença de caráter entre os vizinhos, tão
próximos e tão distantes na maneira de ser.
Deixávamos Portugal e antes de atravessarmos a fronteira
lemos numa parede: Um dia o sol brilhará para todos. Logo abaixo, a
intromissão de um gaiato: E nos dias de chuva?
Mal pisamos a Espanha, lemos na fachada de uma casa, em
letras garrafais: Te ódio, te ódio y te ódio!
Em Vigo almoçamos no restaurante El Mosquito os mais
deliciosos frutos do mar. Jorge fez questão de passar com Aríete por
uma papelaria, nossa conhecida, atração e divertimento de brasileiros
que por ela passam, interessados no nome do proprietário escrito na
fachada da casa comercial: Papeteria Juan Buceta.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Nosso destino era Santiago de Compostela, passaríamos, a
caminho, por Pontevedra, onde tínhamos amigos. Lá encontraríamos
Manolo ou José Alberto Moreira, donos do melhor anti-quário da
Bahia. Os Moreira tinham em Pontevedra uma sucursal ou matriz, não
sei, da casa de antiguidades. Nessa cidade também viviam alguns
baianos casados com galegos. Por onde passávamos íamos
encontrando conhecidos.
Santiago de Compostela é a cidade de meus encantos. Não
víamos a hora de chegar à catedral, não queríamos perder a
impressionante cerimônia do bota fumem, quando um gigantesco
turíbulo suspenso ao alto por grossas cordas é balançado de um lado
a outro da igreja, a velocidade aumentando cada vez mais, a fumaça
do incenso se espalhando, invadindo tudo.
Havia fila para reverenciar Santiago de Compostela, cuja
imagem estava instalada no centro do altar-mor.
Paramos para ver, dentro do templo, nas suas laterais,
enormes pinturas, onde Santiago, montado a cavalo, de espada em
punho, decepa cabeças, mata os mouros que o rodeiam. Por isso o
chamavam Santiago Mata Moros, explicava um guia de turismo a um
grupo que acompanhava.
Eu estava doida para me aproximar da imagem, no altar, ao
alto, coisa fácil pois era só subir uma escadinha atrás, que dava
acesso às costas do santo. Esperei que um grupo de turistas acabasse
de subir, fui atrás. Naquele ambiente sombrio, a proximidade com a
imagem me impressionou. Queria dar-lhe um beijinho e para
completar o carinho devia também abraçá-lo. No momento em que o
abraçava e beijava-lhe as costas, ouvi uma gargalhada, aliás, duas
gargalhadas. Sem me separar de Santiago, olhei para o lado, onde
Aríete e Paloma morriam de rir. Eu não estava ali por caçoada, nem
por devoção, apenas tivera esse ímpeto e fora adiante. Não sei se foi
impressão minha ou não, senti Santiago tremer na base, não devia
estar muito preso. Nesses momentos a gente pensa nos maiores
absurdos, e eu pensei: e se a imagem desabar sobre o altar e eu
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
junto, grudada em suas costas? Atacou-me uma vontade louca de rir,
sobretudo ao ver que Jorge chegara junto à escadinha e ria com as
duas. Não conseguia me soltar do santo, atrás de mim a fila
aumentava e eu ali, fingindo que chorava de emoção, recurso
instintivo, evitaria ser linchada caso descobrissem a falta de respeito,
rir daquele jeito nas costas de Santiago de Compostela. Situação
tragicômica, inesquecível, nos rende boas risadas todas as vezes que
a recordamos.
Nosso destino era a França onde pararíamos uns poucos dias
em Paris, antes de prosseguirmos a viagem para a Escandinávia.
PARIS
Em Paris demos folga a seu Noel, o motorista, ele não
conhecia a cidade e descansaria antes de reiniciarmos a viagem,
rumo a Estocolmo.
Aríete vivia na Casa do Brasil, na Cite Universitaire. Fazia, na
Sorbonne, um mestrado cujo tema era a praia de pescadores de Jauá
no litoral da Bahia. Tinha como orientador, em Paris, o professor
Brusse Bastide. Ela comprara um Renault 4L já bastante combalido
mas ainda muito prestativo.
No 4L de Aríete, fizemos o nosso recorrido em Paris, visitando
velhos amigos, em geral comerciantes, pessoas de nossa estima
desde os tempos do exílio.
Não podíamos deixar de visitar Madame Salvage, e a
encontramos no seu posto, na portaria do Hotel Saint Michel. Ela se
revelara uma grande amiga ao nos hospedar durante todo o tempo
de nosso exílio. Não mudara nada: Ma petite Zélia! Mon cher Jorge!,
exclamou satisfeita, ao nos ver. Quase se ofendeu ao saber que
estávamos hospedados em outro hotel. Insistiu para que
passássemos para o dela, havia feito algumas reformas, teríamos
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
mais conforto. Nossos quartos, os que habitáramos durante dois anos,
estavam ocupados, mas isso não tinha a menor importância, ela
despejaria tranqüilamente os hóspedes que lá estavam: O quarto é de
vocês, insistiu, e não vão pagar nada, serão meus convidados.
Preferimos ficar mesmo no Select, um hotelzinho simples, mas
bem melhor do que o Saint Michel.
BÉLGICA
Chegamos em Bruges num domingo pela manhã. A cidade
estava em festa, aliás, ela em si já é uma festa com seus canais
navegáveis circundando a cidade de casarões antigos, belos.
Pernoitaríamos no Hotel Portinari, o escolhemos por
patriotismo, homenagem ao nosso grande artista, e acertamos. Era
um bom hotel e bem localizado, próximo ao centro onde se
concentravam figuras gigantescas, fantasiadas, que dançavam
movimentadas por uma pessoa que se encontrava dentro. Não
consigo recordar como são chamadas no Brasil essas figuras. Em
Portugal as chamam de gigantones e, em espanhol, mascarones.
Pelas janelas dos sobrados ao lado dos canais podia-se assistir
a concertos, os músicos vestidos a caráter, com trajes de época,
tocando instrumentos antigos, enquanto barcos enfeitados de flores
deslizavam, levando personagens caracterizados.
Chegáramos a Bruges num dia de festa, por acaso, não
esperávamos assistir a espetáculo tão belo. Em meio a gigantones e
mascarones, a tanta música, tivemos ainda tempo de comprar
rendas, as famosas rendas de Bruges, feitas à mão, só comparáveis
às rendas de bilro do norte do Brasil.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
HOLANDA
Bm Amsterdã pararíamos mais tempo, havia muito a ver,
desejávamos voltar ao Museu Rembrandt e ao Museu Van Gogh,
queríamos que Paloma visse as obras dos dois gênios holandeses, na
Holanda, lá ela veria quadros que não vira em sua visita de um dia
inteiro ao Museu do Louvre.
A viagem a Amsterdã foi tranqüila e linda, passamos por
campos e campos de tulipas, verdadeiros tapetes coloridos.
Passeamos em barcos, pelos canais, vendo a parte pitoresca
da cidade, famílias inteiras, com cães, gatos e passarinhos, morando
tranqüilamente em barcos onde até jardim cultivavam.
Tínhamos grande curiosidade de conhecer as célebres ruas
das vitrines, onde prostitutas esperam alguém que as eleja para uns
momentos de prazer.
Procurávamos que alguém nos desse uma informação, nos
indicasse o caminho, quando vimos parar um imenso by night de
onde saltaram turistas, na sua maioria senhoras idosas que pelo
trajar e o indefectível chapeuzinho indicava serem americanas. Os
guias, um homem e uma mulher, com um guarda-chuva fechado,
abanando no ar, iam à frente indicando o caminho como quem dirige
uma boiada. Lá vão eles!, dissemos e, sem perda de tempo, colamos
na excursão.
Em cada vitrine, nas ruas estreitas e movimentadas,
encontrava-se uma moça, em geral bonita. O ambiente de cada
vitrine era diferente do outro: numa, apenas uma jovem sentada
numa cadeira de balanço, decentemente vestida, com o ar mais
ingênuo do mundo, lendo um livro; noutra, a moça fazia tricô, noutra
ela segurava um gatinho, noutra, apenas fumava e daí por diante. Em
toda a extensão da vitrine havia uma cortina grossa que, à chegada
de um cliente, era fechada aos olhos dos passantes. O que fora vitrine
virava uma alcova. A cortina só voltava a ser aberta depois de tudo
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
terminado, o ambiente novamente arrumado, a moça composta
esperando, comportada, um novo freguês.
DINAMARCA
Atravessamos a Alemanha e, como pretendíamos parar em
Colônia, na volta, seguimos diretos e, sempre ouvindo músicas de
Moustaki, pelo gravador de Aríete, entramos por Lubec e, costeando o
mar Bákico, chegamos a Puttgarden de onde atravessamos para a
Dinamarca num ferry-boat.
Em Copenhague os Ploestanu nos esperavam e se puseram à
nossa disposição para o que precisássemos.
Com Emília passeamos e ela nos levou a ver a famosa
Sereiazinha de Copenhague, escultura singela, homenagem da
Dinamarca ao seu escritor maior, Andersen. Nos regalamos com os
pratos romenos preparados por Emília, nas vezes que almoçamos e
jantamos na embaixada com o casal.
Enquanto seu Noel folgava, andamos pelo centro da cidade, às
vezes pelas nossas próprias pernas, às vezes com a ajuda de Emília,
que sabia tudo sobre as melhores lojas e onde fazer compras.
Diante de tanta coisa bela nas vitrines de Copenhague, Paloma
se entusiasmou, não resistiu: por que não comprar o que gostara
tanto e jamais encontraria em nenhuma outra parte? As peças e os
objetos iam fazer o maior sucesso no Brasil. Compraria o que pudesse
para sua casa, devia começar a pensar nela já que a data do
casamento estava marcada.
Ao nos despedirmos da Dinamarca, indo para a Alemanha, seu
Noel teve que amarrar uma grande mala que acabáramos de adquirir,
cheia das compras de Paloma e compras nossas, no porta-bagagem
em cima do carro. Nossa mala faria companhia à de seu Noel, que
desde o início da viagem estivera lá em cima.
Depois da parada em Colônia voltaríamos a Paris onde
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
terminaria o contrato de aluguel do carro e lá o entregaríamos.
Em Paris tomaríamos o trem noturno para Londres onde
Antônio Olinto e Zora nos esperavam. Olinto era na ocasião adido
cultural da Embaixada do Brasil na Inglaterra. Ele e Zora nos
hospedariam em seu apartamento na Harowby Street. A data do
congresso em Düsseldorf ainda estava distante, mais de um mês.
Teríamos tempo bastante para mostrar Londres a Paloma, visitar
museus, ir a teatros, fazer compras. De Londres voltaríamos, sempre
de trem, a Paris de onde, no carro de Aríete, seguiríamos direto para
Düsseldorf, a tempo de Jorge chegar antes do início do Congresso.
COLÔNIA
Por recomendação de seu Noel, paramos num hotel no centro
da cidade onde passaríamos a noite. Hotel simpático, cujos
empregados eram em grande parte portugueses. Ao contrário dos
outros hotéis nos quais pernoitáramos, esse não tinha garagem,
apenas um pátio interno de estacionamento onde já havia vários
carros ao chegarmos.
O malão das compras era tão pesado que nem tivemos
coragem de insistir para que ele fosse levado para dentro do hotel.
Lugar seguro, gente séria, garantira seu Noel, podem deixar
tranqüilamente a mala, dissera um empregado que ajudava a levar
nossas coisas pessoais para nossos quartos. Dormimos tranqüilos, um
sono só.
Nosso programa da manhã seria andar pelo centro, visitar a
famosa catedral. Isso faríamos com um amigo de Aríete, alemão de
Colônia, que ela conhecera em Paris.
Madrugador como sempre, Jorge saiu logo cedo do quarto, me
deixou dormindo. Nem estranhei de só vê-lo aparecer quando, com
Paloma e Aríete, tomávamos café. Jorge foi chegando e nos
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
estendendo uma folha de papel em branco: Vamos vê se vocês têm
memória, se lembram das compras que fizeram em Copenhague,
disse na maior calma. Vam'bora, tomem nota aí de tudo o que
trazíamos no carro, dentro e fora, insistia. Não agüentei: E loucura ou
um capricho apenas? A essa hora da manhã fazer uma lista de tudo?
Vamos perder tempo, é muita coisa pra lembrar, pra que isso
agora?... Enquanto eu reclamava, Aríete e Paloma atiravam-se à
tarefa, viam na proposta de Jorge apenas um grande divertimento,
faríamos a lista num abrir e fechar de olhos enquanto aguardávamos
a chegada do amigo de Aríete.
Ao entregarmos a lista a Jorge, devia, certamente, faltar ainda
alguma coisa a lembrar. Eu não me convencera de que o capricho de
Jorge fosse apenas um divertimento, continuava curiosa e, ao vê-lo
com a relação das coisas na mão, novamente perguntei:
— Agora me diga, por favor, pra que você quer essa lista?
— Pra mandar para Emília Ploestanu — respondeu.
— Para Emília? Por quê? — Cada vez eu entendia menos.
— Porque fomos roubados — respondeu Jorge.
— Roubados? — dissemos as três, em coro.
— Isso mesmo. Roubaram o malão de cima do carro,
arrombaram o vidro e levaram tudo o que estava dentro.
Ficamos as três sem ação. Paloma perdera tudo o que
comprara com tanto gosto para a sua casa... Aríete perdera a
máquina fotográfica, o gravador e as fitas; eu perdera um par de
botas que deixara dentro do carro e algumas compras pequenas,
sobretudo presentes que levava para amigos, coisas que estavam no
malão.
— Levaram também a mala de seu Noel? — lembrei de
perguntar.
— Não. Ele não deixou a mala dele no carro...
A mim, seu Noel explicou que retirara sua mala do porta-malas
porque precisara tirar dela um pente para pentear-se. Explicação que
achamos melhor não discutir.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O pessoal do hotel não quis saber de conversa, não tinham
nada a ver com o sucedido, isentaram-se de qualquer
responsabilidade.
Nunca mais vamos recuperar nossas coisas, disse Jorge. Eu
não quero ver ninguém de cara triste, ninguém chorando, não quero,
sobretudo, que esse roubo venha estragar a nossa viagem. Vou
telefonar aos Ploestanu, pedir à Emília que nos faça o favor de
comprar tudo novamente e nos enviar para Portugal. Virou-se para a
filha: Você vai ter de volta o teu lindo faqueiro, as peças de cerâmica,
os bordados... tudo. A Emília é uma boa amiga, ela vai conseguir
comprar tudo. Não fique triste.
Por insistência do amigo de Aríete, revoltado e encabulado
com o que nos sucedera em sua cidade, fomos à polícia que também
não resolveu nada. Disseram que havia sido imprudência nossa, que
os roubos em Colônia eram freqüentes. Se um dia conseguissem
pegar os ladrões e recuperar nossas coisas, nos dariam notícias, e
adeus, fim de conversa. O ladrão não foi apanhado e nossas coisas
não foram recuperadas.
Embarcamos novamente no Mercedes depois de Jorge ter pago
a reposição do vidro quebrado. Seguíamos a longa viagem de volta,
sem música, toda hora alguém lembrando de uma coisa que não
havia entrado na lista, quando Jorge rompeu o silêncio caindo na
gargalhada: Eu estou só pensando, dizia ele, no susto dos ladrões ao
pegarem a risadinha... Havíamos descoberto e comprado em
Copenhague a risadinha, caixinha que bastava apertá-la um pouco
para que dela saíssem gargalhadas seguidas e escandalosas,
novidade na ocasião. Essa caixa de risadas fora a única coisa que
restara, desprezada dentro do carro.
RUMO A DÜSSELDORF
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Não conhecíamos Düsseldorf. O nome para mim, no entanto,
era familiar, fazia-me recordar um filme: O vampiro de Düsseldorf,
impressionante, interpretado pelo magistral Peter Lorre, filme cujas
imagens de uma cidade sombria eu conservava na lembrança.
Depois de ter viajado dias e dias num possante Mercedes, o
frágil 4L de Aríete tornava-se bastante desconfortável, sobretudo para
mim e para Paloma, que ocupávamos o duro banco de trás, onde até
a ponta de uma mola que escapara do estofamento nos arranhava
sempre que nos distraíamos.
Viagem desconfortável, porém mais agradável, mais íntima,
livre da presença de seu Noel, com Aríete ao volante. A voz de
Moustaki retornara no gravador novo que compráramos em Paris para
Aríete em substituição ao roubado. A viagem se tornara não somente
mais íntima, como mais engraçada. Transformamos a chateação do
roubo da mala em gozação e nos divertíamos. Jorge falara com Emília
por telefone, ela lhe garantira, encontraríamos tudo em Lisboa, antes
de embarcarmos de volta para o Brasil.
A prova de generosidade e de nobreza de caráter que Jorge
nos dera ao preocupar-se em apagar nossa tristeza e nos devolver o
riso lhe dava créditos para o futuro. Daí por diante ele poderia até
implicar com bobagens, berrar fora de hora, pegar no meu pé quando
apressado, sem que eu reclamasse, e até o absolveria de um
eventual espichar de olho sobre umas ancas a rebolar em sua frente.
DÜSSELDORF
Em Düsseldorf fazia frio e o dia era sombrio. Na sede da
organização do congresso nos informaram que os hotéis da cidade
estavam lotados e nos coubera como acomodação um gentil
hotelzinho, rodeado de jardim e bosque, a uns trinta quilômetros do
centro da cidade. Mesmo com um mapa riscado na hora numa folha
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
de papel, tivemos dificuldade para encontrá-lo. Deixamos a bagagem
no hotel e voltamos para a cidade.
Os escritores convidados haviam chegado e fomos encontrá-
los reunidos num salão. Apenas Miguel Angel Asturias, Prêmio Nobel,
conseguira lugar em hotel da cidade. Os demais, Vargas Llosa,
Gabriel Garcia Márquez, Eduardo Portella, Josué Montello, estavam
espalhados em pequenos hotéis, distantes.
Se lá fora a noite era fria e triste, dentro, no salão, onde se
encontravam escritores dos mais distantes países da América Latina,
reinava a euforia num clima cálido de confraternização. Que alegria te
encontrar aqui, Príncipe, disse Jorge, ao se aproximar de Eduardo
Portella, seu amigo a quem sempre chama de Príncipe. Nosso amigo
dos tempos de exílio, Miguel Angel Asturias, me abraçou: E tu
comadrita, que me contas? Blanca quiere ver te.
A abertura do congresso estava marcada para o dia seguinte
pela manhã, em sessão solene, num teatro. Ficamos contentes ao
saber que houvera um equívoco, tínhamos reserva num hotel do
centro. Dormiríamos ainda aquela noite fora da cidade. Deixaríamos o
hotelzinho pela manhã ao sairmos para a solenidade.
Pela manhã, logo cedo, como de hábito, Jorge se arrumou,
tomou café sozinho, ficou à espera do ônibus que viria buscá-lo.
Combinou comigo que eu arrumaria a mala com calma e iria depois
com Aríete e Paloma. Eu não posso esperar por você. Tenho horror de
chegar atrasado aos compromissos, você sabe disso. Claro que sabia.
Não reclamei.
Eu sempre digo e repito que a pontualidade é uma qualidade,
mas o excesso de pontualidade, a preocupação de chegar antes da
hora marcada, é um defeito. Sobre essa minha teoria eu poderia dar
vários exemplos, contando algumas histórias, mas não me alongo,
fico por aqui.
O ônibus para Düsseldorf chegou às oito e trinta e a abertura
do congresso estava marcada para as dez horas. O chofer devia ainda
apanhar umas pessoas pelo caminho.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Eu já estava pronta, a mala fechada, faltando apenas recolher
a miuçalha de última hora quando Jorge apareceu na porta do quarto:
Vou indo que já estou atrasado. Você vai com Aríete e Paloma, já
avisei a elas. Falou e desceu rapidamente as escadas.
Desci em seguida a tempo de ainda ouvir o ronco do motor do
ônibus que acabara de partir. A moça da portaria fez um gesto
indicando com a mão o portão de saída. Pedi-lhe que mandasse
buscar a mala lá em cima e saí à procura das meninas. Não as
encontrei em parte alguma. Voltei à portaria e perguntei em inglês, à
mesma moça, pelas duas. Com o mesmo gesto que fizera havia
pouco, acrescido de uma bela risada, ela mostrou-me o portão de
saída. Essa é obtusa mesmo, pensei, não entende gestos e nem
inglês, deve estar achando que pergunto novamente: por Jorge e
responde novamente que o ônibus já foi. A risada só podia ser de
gozação: Ele foi e te deixou, hem! Não disse mas pensou, claro. Voltei
ao quarto das meninas, até os colchões das camas já não estavam.
Minha mala se encontrava na portaria e nem sombra de Aríete
e Paloma. Saí andando pelo jardim e percebi um sorriso significativo
nos lábios de cada pessoa que eu ia encontrando pela frente. A
notícia de que eu ficara esquecida, abandonada, já devia ter corrido e
eu, com razão ou não, me senti humilhada, alvo da chacota daqueles
alemães todos. Não podia me comunicar com ninguém, não tinha um
único número de telefone para chamar, ia perder a abertura do
congresso, a intervenção de Jorge... me sentia impotente.
Felizmente o tempo levantara, fazia sol e eu resolvi ler um
livro, sentada no jardim, aguardando os acontecimentos. Não
consegui ler nem uma página. Tudo estava claro para mim: Aríete e
Paloma haviam me esquecido, ido embora. O jeito era esperar.
Esperava há quase duas horas quando divisei no portão a
ponta vermelha do capo do Renault, dentro as duas, afobadíssimas:
Mãe, desculpe..., dizia Paloma.
Todos os sentimentos, os maus sentimentos, acumulados e
remoídos durante essa interminável espera, vieram à tona.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Em nenhum momento sequer, no entanto, meti Jorge no
embrulho, não o culpei: essa sua pressa exagerada, a eterna
preocupação de chegar aos encontros antes da hora marcada, estava
convencida, era coisa hereditária, defeito congênito, sem remédio, a
herdara de João Amado de Faria, seu pai, que por sua vez herdara do
velho José Amado, avô de Jorge. Não fora, porventura, o coronel João
Amado que, certa vez, saiu do barbeiro de cara ensaboada, a barba
meio feita, meio por fazer? O diabo do barbeiro mais falava do que
trabalhava... perdi a paciência, explicara o Coronel. O velho José
Amado devia embarcar às oito da manhã, num trem que saía da gare
perto de sua casa, e, precavido, chegou às seis. Na estação deserta, o
trem ainda fechado, ele não teve dúvida, não ia ficar esperando de
pé, forçou e abriu a janelinha de um vagão, por ela entrou e aguardou
sentadinho.
Despejei minha ira toda sobre Paloma e Aríete, a meu ver as
únicas responsáveis por tudo. Exaltada, exaltação congênita,
hereditária da raça italiana, atirei contra elas o que me veio à boca,
disse o diabo: não desculpava coisa nenhuma, nunca sofrerá uma
desconsideração tamanha, uma falta de respeito tal, e daí pra mais. O
próprio vampiro de Düsseldorf, a mostrar as presas afiadas, a lançar
chispas pelas narinas e pelos olhos, não teria impressionado tanto as
duas. Até hoje elas não gostam de relembrar a cena. Nem eu. Pela
primeira vez, depois de tantos anos, toco no assunto descrevendo-a
aqui, na esperança de que assim, quem sabe, consiga esquecê-la.
Acontece que, no final das contas, Aríete e Paloma não eram
tão culpadas assim: não entenderam que deviam me esperar. Ao
chegarem ao pátio viram que Jorge já se encontrava dentro do ônibus
e acharam que eu devia estar com ele. O ônibus dava a partida e as
duas não perderam tempo, colaram em seu fundo, assim não se
perderiam pelo caminho. Ao entrarem no teatro depois de estacionar
o carro, deram de cara com Jorge que perguntou à Paloma: Cadê tua
mãe? Ao saber do mal-entendido ele se alvoroçou: Voltem
imediatamente, ela deve estar aflita. Elas voltaram e se perderam
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
várias vezes, só chegaram lá àquela hora, considerando um milagre
terem conseguido encontrar o caminho.
NOTURNO PARA LONDRES
Em Paris tomamos o noturno, com leito, para Londres. Dessa
vez Aríete não nos acompanhou. Íamos sentir falta de nossa amiga.
Ao chegarmos ao apartamento dos Olinto tínhamos a sensação
de chegarmos em casa. Nos hospedáramos lá várias vezes. Perfeitos
anfitriões, eles nos deixavam à vontade, me sentia a própria dona da
casa: ia para a cozinha, fazia nossa comidinha costumeira, cansados
que estávamos de comer em restaurantes. Em Londres podíamos
encontrar tudo que quiséssemos para os meus pratos brasileiros:
desde o arroz e feijão e a farinha de mandioca à carne-seca.
Aproveitando a estada em Londres, com uma cozinha à
disposição, dei aulas de culinária a Paloma, que estava para se casar
e não entendia nada de panelas e temperos. Eu era da teoria de meu
pai, que a moça quando casa deve saber como se virar diante de um
fogão. Se não precisar, muito bem, dizia seu Gattai, mas é sempre
bom saber. Disso eu tinha experiência, quantas vezes precisei,
quantas vezes tive que assumir o comando da cozinha?
O apartamento dos Olinto era refúgio de brasileiros. Podíamos
encontrar lá pintores, músicos, estudantes brasileiros com bolsas de
estudo ou mesmo sem bolsa, dando um duro danado... Zora tinha
sempre uma palavra de boas-vindas para cada um, lá eles se sentiam
bem.
Adido cultural da Embaixada, Olinto conseguia exposições e
concertos para uns e outros. Já estivéramos hospedados na Harowby
Street, ao mesmo tempo que Genaro e Nair, por ocasião de uma
exposição das tapeçarias de Genaro.
Agora, a surpresa de encontrar Carybé já instalado na casa dos
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Olinto fora grande. Dessa vez Nancy não estava com ele. Sua estada
era rápida, o tempo de amarrar uma exposição e receber uma
homenagem do diretor de um banco de Londres que lhe oferecia um
cocktail no próprio banco. O convite para essa honraria lá estava à
nossa espera. Ficamos intrigados:
— Por que isso tudo, compadre? Você é amigo do banqueiro?
— perguntou-lhe Jorge.
— Não sou amigo do banqueiro, não conheço ele, nem sei
quem é. Não sei mesmo por que isso tudo. Vai ver que é porque eu
sou um porreta — caçoou.
— Que você é um porreta todo mundo sabe, mas como é que
esse banqueiro te descobriu?
Quem botou tudo em pratos limpos foi Olinto. O tal banqueiro
era um criador de eqüinos, apaixonado por cavalos. Seu filho estivera
na Bahia e comprara um quadro de Carybé e o presenteara. Na tela,
dezenas de cavalos, de todos os tamanhos e todas as cores, saltando
e correndo em todas as direções, cavalos em movimento que só
Carybé sabia pintar. O banqueiro apaixonara-se pela pintura e agora
homenageava o artista. (Um quadro de Carybé, de cavalos, encontra-
se num dos aposentos da rainha da Inglaterra, num de seus palácios.)
Querendo fazer uma surpresa a Carybé, Jorge comprou um
chapéu-coco. Vou com ele à tal homenagem, quero só ver a cara
dele. Escondeu o chapéu bem escondidinho, segredo absoluto, só
botaria na hora de sairmos. E assim foi. Já estávamos prontos quando
Carybé e Jorge disseram ao mesmo tempo: Esperem um pouquinho.
Carybé entrou no quarto dele, Jorge no nosso. Saíram ambos de
chapéu-coco. Haviam tido a mesma idéia. Lépidos e fagueiros, lá se
foram os dois, chapéu-coco na cabeça, dois distintos ingleses.
Estavam levando, com grande estardalhaço, num teatro de
Londres, uma peça musical, Oh! Calcutá. A peça escandalizava, pois,
coisa ainda não vista em teatro para o público em geral, os artistas
ficavam nus em cena. O musical combinava com o clima londrino
onde, pelas ruas, jovens cabeludos, os revolucionários hippies,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
enfrentavam preconceitos, muitos deles até então filhinhos de papai,
cantavam e tocavam, cuia estendida para receber um cent,
verdadeiros mendigos felizes, realizados.
No programa de Paloma, entre as visitas a museus, passeios
no Hyde Park, estava a ida ao teatro para assistir Oh! Calcutá. Não
era apenas o escandaloso ou a curiosidade de ver os homens pelados
que a atraíam, mas, sobretudo, a sensação de pensar na cara de
Balbina, de Maria Sampaio e de outras amigas da Bahia, quando
soubessem que ela assistira à tal peça proibida no Brasil e lhes
contasse, com todos detalhes, o que vira. Nem iam acreditar.
Entre outras coisas, Paloma tinha curiosidade de ir ao Hyde
Park, onde qualquer um podia dizer o que bem quisesse, até falar mal
da rainha podia. Era só conseguir um caixote, subir nele e deitar
verbo. Juntava logo gente em torno e, dependendo da eloqüência e
da pose do orador, a assistência aumentava ou diminuía. Para nós
que vínhamos de um país onde a liberdade de fazer críticas era
proibida, tal espetáculo era uma novidade. Outra curiosidade do Hyde
Park era o homem tatuado. Montado num caixote, um homem forte,
de torço nu exposto, exibia suas tatuagens inclusive no rosto e na
cabeça, tatuagens azuis formando desenhos, frases e datas, não
deixando espaço nem para se ver a cor da pele, coisa horrível, não
gostamos.
Os CELESTINO EM LONDRES
Chegavam da Bahia Antônio Celestino, Cândida, sua mulher,
pais de Mariinha, noiva de João Jorge, e Gininha, a filha mais velha.
Hospedaram-se numa pensão do bairro. Traziam notícias frescas de
todo mundo. Ficamos sabendo por eles que nossos filhos, jovens
apressados, haviam marcado data para o casamento que seria
realizado um mês depois ao de Paloma. Cândida ia comprar em
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Londres peças de enxoval para a filha.
Cândida não esquecera a malandragem que Carybé lhe fizera,
antes de viajarmos para a Europa; ainda uma vez puxou-lhe as
orelhas, reclamou e ele mais uma vez se divertiu.
Baiana, afeita a gentilezas de boa vizinhança, pelo São João
Cândida preparara uma perfumada canjica de milho verde e leite de
coco para nos mandar de presente. Telefonou para casa, pediu a
Jorge que mandasse Aurélio apanhar a encomenda. Explicou que
havia colocado a canjica numa fôrma de porcelana em formato de
carneirinho, peça antiga, de estimação, devia ser devolvida.
Ao atender o telefone Jorge comentou com Carybé, que se
encontrava em casa, a gentileza de Cândida, iria se regalar na hora
da ceia. Carybé ouviu calado mas deve ter pensado: quem vai se
regalar é aqui o compadre. Despediu-se e foi diretamente para a casa
de Celestino. Jorge me telefonou, disse a Cândida, me pediu que
apanhasse aqui com você um prato de pamonhas. Como vou lá
agora, posso levar. Cândida riu: Jorge não entendeu, eu não falei em
pamonhas, eu falei canjica e até expliquei que ele pedisse à Zélia
para virar na travessa e ver como o carneirinho sai inteirinho.
Explique isso a ele, Carybé. Pegando a encomenda, que inclusive
estava coberta com um belo e recomendado guardanapo de linho a
ser devolvido, disse; É, vai ver que Jorge se enganou porque gosta
mais de pamonha do que de canjica. Atirou a farpa e foi direto para a
casa dele onde papou a canjica toda.
Logo depois, Aurélio chegou e Cândida deu-se conta, furiosa,
de que havia sido ludibriada, caído na trama de Carybé. Indignada,
telefonou para ele que, tranqüilamente, lhe disse: Dona Cândida,
adorei sua canjica, não lembro de ter comido outra tão boa, só acho
que a senhora deve, na próxima vez, procurar um carneiro maior...
OH! CALCUTÁ!
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Com os Celestino, Olinto e Zora, fomos ao teatro assistir Oh.'
Calcutá. Tão ou mais entusiasmada do que Paloma era Gininha, pois
ouvira sobre o musical, no Brasil, os mais contraditórios comentários:
dos mais elogiosos aos mais depreciativos: o mínimo que diziam era
que se tratava de uma afronta ao pudor, uma indecência encenada...
Teatro lotado, as meninas sentaram-se longe de nós.
Adoraram e não se preocuparam em poupar comentários enquanto
assistiam ao espetáculo e parece que, segundo Paloma depois me
contou, elogiaram ou depreciaram a plástica e os complementos dos
atores. Falavam soltas, diziam coisas, satisfeitas de não serem
entendidas pelos vizinhos sem nem de longe desconfiarem que,
sentado atrás delas, um cidadão baiano divertia-se mais com os
comentários das duas moças do que com o que via em cena. Por
coincidência, o cidadão era Walter Baraúna, marido de Ninita, prima
de Jorge. Ao acenderem as luzes, ele deu uma batidinha no ombro de
Paloma: Gostou, Paloma? Onde estão teus pais? Educado, felizmente,
não fez comentários.
O que aconteceu com Paloma e Gininha costuma acontecer
com muitos brasileiros que se soltam a dizer besteiras quando se
vêem em terras estrangeiras sem pensar que sempre há alguém nas
imediações que entende o português.
Lembrei de contar uma historinha, elucidativa, sobre o assunto
que venho de comentar e não há quem me segure:
Estávamos em Paris, a data não importa, com Auta Rosa e
Calasans Neto, hospedados no Hotel de EAbbaye, e devíamos ir ao
aeroporto esperar Antônio Celestino, que chegava do Brasil.
Em Paris, todo mundo sabe, os táxis não apanham mais do
que três passageiros, a conta do banco traseiro. Quando se deseja um
táxi para quatro pessoas é preciso especificar, pagar mais caro, pois
esses carros pagam seguro para quatro passageiros, em caso de
acidente, quando os outros pagam só para três.
Com Cala e Auta pedimos o táxi para quatro, o que significava
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
termos que esperar mais tempo pois são poucos os que fazem esse
serviço. O avião de Celestino devia chegar por volta das dez horas da
noite. Fizemos um cálculo, pediríamos o táxi para as sete horas,
chegaríamos ao Charles De Gaulle por volta das oito, teríamos tempo
de sobra para jantar no restaurante do aeroporto.
O táxi foi pedido e saímos para esperá-lo na porta. O tempo
passava e nada dele chegar. Jorge começava a ficar nervoso, não
contáramos com o engarrafamento àquela hora de fim de expediente.
Enquanto Cala se encostou na porta do hotel, Jorge foi para o meio da
rua e de lá gritou: Cadê esse táxi, seu Cala.. Ele não vem e eu já
estou morrendo de fome... Olhando para a sua esquerda, Cala divisou
dois rapazes que se aproximavam trazendo na mão um queijo
redondo e várias baguetes de pão. De onde estava, Cala gritou: Ó
Jorge, você não disse que está com fome? Pois dê uma porretada na
cabeça desses dois caras, tire o queijo e o pão deles e coma. Os
rapazes, dois brasileiros, deram uma pequena parada e disseram:
Pode dar a porretada mas é perigoso! Pela primeira vez vi Cala
desconcertado.
FIM DA ESTADA EM LONDRES
Nesse fim de estada em Londres tivemos ainda uma surpresa;
vinda do Brasil, nossa amiga Heloísa Ramos, viúva do escritor
Graciliano Ramos, acabara de chegar e trazia novidades.
Heloísa pode almoçar conosco, disse Zora, convido alguns
brasileiros que gostarão de vê-la e ter notícias frescas da terra e
ainda matar a saudade de uma feijoada. Vamos fazer uma feijoada,
Cândida?
Zora era vegetariana, macrobiótica, preparava a sua gororoba
— como a denominavam, pilheriando, Jorge e Olinto — e às hóspedes
dava a liberdade de cozinhar os venenos em seu fogão e em suas
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
panelas. Por isso, Nair de Carvalho e eu já havíamos sido cozinheiras
em Londres, no apartamento dos Olinto, a preparar almoços festivos.
Chegara a vez de Cândida mostrar seus dotes culinários. Nós
estávamos de partida para Paris, Aríete nos esperava com o seu 4L
para seguirmos viagem para Lisboa.
Combinamos com Celestino e Cândida nos encontrar com eles
em Póvoa do Lanhoso, ao norte de Portugal, na quinta de dona
Virgínia, mãe de Celestino, onde eles passariam o resto das férias. Lá
então, combinaríamos os detalhes do casamento de João e Mariinha.
PORTUGAL NOVAMENTE
Tínhamos muito tempo pela frente. A data da saída do Cabo
San Vicente de Lisboa ainda estava distante. Poderíamos, com folga,
encontrar e curtir os amigos que não pudéramos ver na ida. Se
fizéssemos a conta, seria difícil dizer se tínhamos mais amigos em
Portugal ou no Brasil.
Queríamos muito estar com Fernando Namora e Zita, com
Álvaro Salema e Elisa, com Antônio Alçada Baptista, com Forjaz
Trigueiros e Helena, Fernando Assis Pacheco e Rosarinho, José Carlos
Vasconcelos e Maria José, Raul Solnado. Iríamos, sem falta, comer no
restaurante Amadora, no Parque Meyer, onde seríamos recebidos por
Mimi, Gloria e Amadora, três velhas amigas, três queridas.
Restaurante de comida caseira feita por Amadora para fregueses
certos, em geral artistas dos teatros do Parque. Alguns amigos
nossos, por exemplo, Antônio Alçada Baptista, era freguês assíduo do
pitoresco restaurantezinho.
Faríamos programas com cada amigo, almoçaríamos e
jantaríamos juntos, bateríamos grandes papos, saberíamos das
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
novidades da terra, contaríamos as nossas. Teríamos tempo de ir ao
Norte conversar com Celestim. Paloma teria a oportunidade de fazer
compras. Ela encontraria em Lisboa as mais belas porcelanas e
toalhas bordadas, para seu enxoval, as juntaria às compras de
Copenhague, que já haviam chegado. Estavam à nossa espera no
Hotel Tivoli, segundo informação de Vinagre, amigo nosso,
funcionário do hotel. Emília fora formidável, comprara e remetera
tudo.
JOSÉ FRANCO
Com Francisco Lyon de Castro e Eunice e com Beatriz Costa,
fomos ao Sobreiro, nas cercanias de Lisboa, visitar a cerâmica de José
Franco. O ceramista reproduzira num grande terreno, à volta de sua
casa, toda uma aldeia saloia: do moinho de vento à roda-d'água, uma
singela capelinha, o armazém de secos e molhados, o ferra-cavalos, o
açougue, o correio, tudo em tamanho natural, e ainda fizera um
grande presépio onde as figuras se movimentavam. As esculturas de
madonas, santos e tipos populares, que José Franco esculpia,
moldadas no barro por suas mãos de artista, eram a maior perfeição,
a maior delicadeza. Nos encantaram também as grandes peças
rústicas, e não resistimos, compramos vários gaios, azul, verde,
preto... que trouxemos para a Bahia e até hoje enfeitam a nossa casa
do Rio Vermelho. Tínhamos a tranqüilidade de comprar o que bem
quiséssemos, sem nos preocupar com o peso. Embarcaríamos tudo no
navio, em Lisboa, e desembarcaríamos tudo no porto de Salvador, a
bem dizer, na porta de casa, sem problemas. Sabedora dessa
facilidade, Beatriz Costa comprou e nos ofereceu um serviço de
jantar, de barro, completo. Nesses pratos e nessas travessas eu
costumo servir a nossa comida baiana, em grandes ocasiões.
Voltamos sempre ao Sobreiro em nossas visitas a Portugal. No
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
entanto, o que nos atrai já não são tanto as cerâmicas como o
encontro com nosso amigo José Franco. Homem de bem, grande
artista, grande amigo. Na porta de nossa casa, na rua Alagoinhas,
temos cravada na parede uma pequena placa, dois pequenos azulejos
com dois corações pintados, dentro de cada coração, nossos nomes:
Jorge e Zélia e José e Helena. Dona Helena, mulher de José Franco, ela
também com sensibilidade artística, foi a autora da plaquinha,
pintada pouco antes de morrer.
O AMIGO NUNO
Nessa tarde da visita a José Franco, encontramos lá Nuno Lima
de Carvalho, que com Clarinda, sua mulher, fazia compras. Sem
esperar que nos apresentassem, Nuno se aproximou, falou com Jorge,
era seu admirador.
Jornalista, secretário-geral do núcleo Estoril Sol, homem de
ação, executivo de primeira, pessoa simpática, inteligente, em
seguida nos tornamos amigos. Amizade que perdura até hoje,
amizade sempre presente, mesmo nas longas ausências.
Aqui venho novamente pedir licença para me adiantar no
tempo. Como o Cabo San Vicente ainda demora a zarpar de Lisboa,
nos levando e ao casal Francisco Lyon de Castro, para a Bahia, eu não
queria perder o fio da meada e contar as proezas de Nuno Lima de
Carvalho.
Interessado pela Bahia, por sua música, pela comida baiana,
pelos cantores, por seus artistas plásticos, sem nunca ter visitado
Salvador, Nuno tudo sabia, aprendera bastante lendo os livros de
Jorge Amado. De nosso encontro, de nossa convivência, nos dias que
se seguiram, Nuno projetou um intercâmbio cultural com a Bahia.
Começaria com a realização de uma semana da Bahia, no Casino
Estoril. Depois faria a semana do Estoril, na Bahia. Empreitada difícil,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
cheia de tropeços burocráticos, mil e um problemas a enfrentar,
porém, obstinado, levou o projeto avante. Custaram-lhe dez anos de
esforço até realizá-lo.
Plano amadurecido, Nuno Lima de Carvalho estudou e
entendeu que havia chegado a hora de concretizar seu projeto. Com
Antônio Carlos Magalhães no governo do Estado, homem dinâmico e
empreendedor, tudo ficara mais fácil, teria o apoio necessário.
Apresentado por Jorge, ele entrou em contato com o prefeito
de Salvador, na ocasião Manuel Castro, procurou Paulo Gaudenzi, o
responsável e quem mais entendia de turismo e divulgação da
cidade.
Estudada a importância desse projeto de intercâmbio cultural
entre Brasil e Portugal, o plano recebeu o beneplácito do proprietário
e diretor do Casino Estoril, Dr. Manuel Telles, que o apoiou permitindo
a sua realização no Casino, na sala de visitas do turismo português,
espaço privilegiado para a realização de grandes eventos culturais,
para a apresentação da Semana da Bahia no Estoril. Com a
colaboração do embaixador do Brasil em Portugal, Dário Castro Alves,
a festa foi realizada em 1980.
Numa grande sala foi montada uma exposição bibliográfica e
documental de Jorge Amado, com muitas centenas de capas de
traduções do autor, além de valiosa documentação, a primeira
exposição desse material a ser mostrado fora do Brasil.
Pode-se visitar, nessa semana de arte da Bahia, uma
exposição de obras de Carybé, Carlos Bastos, Mário Cravo Júnior,
Jenner Augusto, Calasans Neto e Floriano Teixeira. Pode-se ver as
obras e conhecer os artistas, lá presentes.
Responsável pelo catálogo, trabalho de alto nível, James
Amado também lá estava, porém dessa vez sem Luiza. Ela não
pudera viajar, ficara com Fernanda, sua filha, que esperava o primeiro
filho por aqueles dias. Também naqueles dias nasceria o terceiro filho
de João. Os nascimentos de João Jorge Filho, o nosso neto Jonga, e de
Fábio, neto de Luiza e James, foram celebrados ao mesmo tempo que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
a inauguração da Semana da Bahia no Estoril, com direito a enorme
bolo, decorado com dois bonequinhos e dizeres de boas-vindas aos
nossos netinhos.
Os portugueses poderiam, nessa semana de 11 a 19 de
fevereiro, no espaço principal do Casino, encontrar o que havia de
mais significativo na Bahia. Poderiam ver exposições de arte popular
e de artesanato. Poderiam saborear um bom vatapá, um caruru,
xinxim de galinha, de peixe e de camarão, preparados com material
da Bahia, dezenas de quilos de camarões secos, azeite-de-dendê,
castanhas de caju, transportados de avião, servidos por belas
baianas, vestidas de bata bordada, pano da Costa e torço na cabeça,
se regalariam com os acarajés e os abarás, feitos por mestras da
cozinha baiana, cozinheiras da Casa da Gamboa, sob a batuta de
dona Conceição, que lá se encontrava dirigindo a cozinha. No palco
do grande restaurante exibiam-se todas as noites grupos folclóricos
da Bahia.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Ainda no quadro da semana da Bahia, Jorge Amado foi
honrado com uma recepção no Forte S. Julião da Barra pelo
presidente da República, general Ramalho Eanes, que o condecorou
com o grau de Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada. O
secretário de Estado do Turismo atribuiu-lhe a Medalha do Mérito
Turístico.
O incansável Nuno Lima de Carvalho, à frente de tudo,
começava a pôr de pé a campanha de promoção da Semana do
Estoril na Bahia a ser realizada daí a um ano.
Uma bela medalha de bronze, comemorativa do evento, com a
efígie de Jorge Amado, foi feita pela escultora Dorita Castelo Branco.
Compareceram à inauguração dessa festa, que transformou o
Casino Estoril numa Bahia alegre e colorida, o presidente da
República, Dr. Antônio Ramalho Eanes com dona Manuela, sua
esposa. Não faltou nenhum intelectual português, pintores e
escritores lá estavam, e artistas e intelectuais baianos os receberam
como donos da casa.
Nessa noite, ao cumprimentar o presidente da República,
Calasans Neto, que, por merecimentos, conquistou o direito de
pilheriar, contar as mais picantes anedotas, sem que ninguém
reclame ou se ofenda, ao contrário, diverte a todo mundo, perguntou
a Ramalho Eanes: Sabe, Presidente, qual foi a coisa que os brasileiros
mais gostaram do senhor em sua recente visita ao Brasil! Homem
aparentemente sisudo, que não ria em público, não sabia o que os
brasileiros haviam mais gostado dele, ficou curioso: Não, não sei...
Pois foi do seu sorriso, Presidente. Sem poder conter-se, Antônio
Ramalho Eanes soltou uma boa risada. Riram juntos, e desde esse dia
o presidente e Calasans tornaram-se amigos.
Outra amizade ilustre que Cala fez nessa noite foi com o
primeiro-ministro, Mário Soares. Visitando a exposição de pintura
Mário Soares bateu um grande papo com Calasans, autor do quadro
de que gostara muito e convidou-o para, quando saíssem, levá-lo a
dar um giro por Lisboa, queria mostrar-lhe algo interessante.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Na hora de ir embora, o escritor Alçada Baptista passou pela
exposição de Cala para lhe oferecer uma carona: Vamos, Calasans!,
dou-te boléia na minha carrinha..., ao que Calasans lhe respondeu: E
eu lá vou querer boléia na carrinha de um simples escritor, quando
tenho carona garantida no carro de um primeiro-ministro, o próximo
presidente da República? Seria apenas um palpite de Cala ou ele
entendia mesmo da política portuguesa?
NOTA TRISTE
Nessa noite da inauguração da Semana da Bahia, com as
autoridades portuguesas, a direção do Casino e os artistas brasileiros
esperávamos a chegada do presidente da República para dar início à
inauguração.
Dário Castro Alves, embaixador do Brasil que dera grande
apoio ao evento, não conseguia esconder sua tensão, rosto
transtornado... Jorge quis saber o que estava ocorrendo e ele não
pôde conter as lágrimas. Sua mulher, a escritora Dinah Silveira de
Queiroz, estava agonizando, no Brasil, onde se encontrava em
tratamento. Ele só esperava que o presidente Eanes inaugurasse a
exposição, para sair direto para o aeroporto, não podia sair antes, não
podia quebrar o protocolo diplomático.
Assim que o presidente chegou, Jorge chamou dona Manuela
de lado, explicou-lhe o drama do embaixador. Dona Manuela não teve
dúvidas, discretamente falou em particular ao marido, e foi assim que
o presidente Eanes inaugurou em seguida a Semana da Bahia no
Estoril.
Dário conseguiu tomar o avião e chegar ao Brasil a tempo de
assistir aos funerais de sua amada Dinah.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ALDEIA SUBMERSA
Acompanhados pelo engenheiro-agrônomo João Vasconcelos,
primo de Celestino, visitamos uma aldeia ao lado da Serra do Jerez,
nos seus últimos dias de vida. As comportas da barragem que
acabavam de construir iam ser abertas, a aldeia e quilômetros de
campo ao seu redor iam ficar submersos.
Descemos com dificuldade o terreno íngreme até chegarmos à
aldeia, onde caminhões estavam sendo carregados com os últimos
pertences da população.
Aldeia mais linda, mais pitoresca, me emocionou. As casas, na
sua maioria, eram feitas de blocos de pedras, com vasos de delicadas
flores nos parapeitos das janelas. Por toda a parte, o terreno fora
aproveitado, lá estava o vinhedo, as parreiras baixas carregadas de
cachos de uvas mal despontadas que estavam sendo devoradas, com
avidez, por cabras, bodes e carneiros, diante da indiferença dos
camponeses. Deixa que comam, coitadinhos, ao menos que eles as
aproveitem, dizia a velhinha, já não as colheremos...
Com um nó na garganta diante da tristeza daquelas criaturas
que se despediam de toda uma vida, eu fotografava. Olhe esse, não
perca..., apontava-me o engenheiro-agrônomo a porta da igrejinha.
Dela saía um homem equilibrando um caixão mortuário na cabeça, o
único da comunidade, o que servia para velórios e o
acompanhamento do funeral até a cova, quando então o cadáver era
envolvido num lençol para ser enterrado e o ataúde devolvido para o
próximo ocupante. O caixão foi colocado no caminhão ao lado de
colchões, cadeiras, mesas, tachos e mil tralhas. Até um cachorro foi
embarcado nessa viagem.
Nosso entusiasmo ao chegarmos se fora, dera lugar à
melancolia, assistíamos aos últimos momentos, à agonia de um
povoado. Coração apertado, nos despedimos dessa gente da aldeia
do Jerez, seus últimos habitantes.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
PÓVOA DO LANHOSO
Nosso plano de passar alguns dias na quinta de Celestino não
deu certo, ficamos com eles apenas um dia e uma noite. Viagem
muito longa, de Lisboa ao norte, a gente parando em Póvoa do
Varzim, querendo visitar uma das maiores joalherias de Portugal, cujo
proprietário era casado com uma baiana, Fernanda São Paulo. Como
passar por Braga, cidade encantadora, sem parar?
Os acertos com Cândida e Celestino para o casamento de
nossos filhos não foram fáceis. Havia um problema muito sério para
os pais da noiva, a ser resolvido, problema que para nós, os pais do
noivo, não existia.
Católicos praticantes, o casal Celestino não podia admitir um
casamento que não fosse na Igreja, a noiva de véu e grinalda.
Consultado sobre a realização da cerimônia na Igreja de Santa
Tereza, no Museu de Arte Sacra do qual era diretor, Dom Clemente da
Silva Nigra se negara a oficiar a cerimônia, como não permitiria,
sequer, o casamento de um herege em sua igreja. João não queria
batizar-se, era irredutível em seus princípios.
Para nós isso não era um problema, pois tanto Jorge como eu
éramos de opinião que o casamento só no civil era suficiente e até
sem civil bastava. Tínhamos o nosso exemplo: apenas o amor nos
ligava há tantos anos. Não podíamos nos casar oficialmente, pois
Jorge e eu éramos desquitados e ainda não existia a lei do divórcio.
Por falar nesse assunto tão delicado de casamento e
amigação, eu me permitiria contar aqui um sucedido, mostrar que
nem tudo o que brilha é ouro. Quem pensa, e há muita gente que
assim julga, que na Bahia Jorge Amado manda e desmanda, tem
todas as facilidades e regalias, se engana.
Ao completarmos vinte e cinco anos de vida em comum, Jorge
achou que devíamos oficializar meu nome. Eu usava ilegalmente o
sobrenome Amado. Para quem viajava e necessitava apresentar
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
passaporte, às vezes era desagradável ter que dar explicações: Afinal
de contas a senhora é Amado ou Gattai! Encomendas postais,
recomendadas à Zélia Amado, eu não podia retirar.
Não custa nada oficializar teu nome de vez, disse Jorge, vamos
resolver isso em três tempos. Tínhamos tanto o exemplo de Mindinha
Villa Lobos, que adotara oficialmente o nome do Maestro com quem
vivia há muitos anos, como também o de Nair de Carvalho que
adotara, oficialmente, o nome de Genaro.
Tibúrcio foi convocado para tratar do assunto. Vai ser fácil,
disse, principalmente já havendo precedentes. Nenhum juiz vai ter
medo de ser o primeiro. Se foi por medo ou por qual motivo foi, não
sei. A resposta à petição foi um não redondo, o juiz, cujo nome fiz
questão de esquecer, borrar de minha mente, negou o pedido de
Jorge. Soubemos por Tibúrcio, que nos contou morto de encabulado,
que houve rebuliço no Tribunal por causa dessa negativa e até
gestões foram feitas junto ao juiz, mas ele, irredutível, confirmou a
sentença: Não pode e tenho dito.
Quem resolveu o assunto foi o senador Nelson Carneiro, que,
através de seu escritório em São Paulo, encaminhou novo pedido.
Numa semana tudo foi resolvido. Viajei para São Paulo apenas para
assinar os papéis necessários. Estava autorizada a usar oficialmente o
nome Zélia Gattai Amado.
Com a promulgação da lei do divórcio, lei proposta e batalhada
por Nelson Carneiro, Jorge e eu, após trinta e dois anos do
concubinato, nos casamos oficialmente, o que nada mudou em nossa
vida, a não ser nos permitir legalizar nossos filhos que deixaram de
ser filhos ilegítimos para serem filhos legítimos.
Ao escrever Anarquistas, graças a Deus, assinei o livro com o
nome herdado de meu pai. Não queria, de forma alguma, aproveitar a
promoção de um nome famoso, não queria vender livros na rabeira
de Jorge Amado. Se o que escrevi agradar aos leitores, pensei, que
seja esse o único motivo para um eventual sucesso. Hoje sou
conhecida como Zélia Gattai, não desprezo o nome que ganhei pelo
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
casamento, ao contrário, é um nome que muito me honra e o uso
sempre que preciso.
Dois PADRES, DUAS CABEÇAS
A seu ver, Cândida não nos pedia muito, queria apenas que, ao
voltarmos para a Bahia, convencêssemos João a se batizar. Na sua
ingenuidade ela nem desconfiava estar pedindo a coisa mais
impossível.
Criamos nossos filhos na maior liberdade religiosa, eles
seguiriam o que suas cabeças e seus corações mandassem,
estaríamos sempre ao lado deles sem interferir. Pelo visto, João e
Paloma ainda não haviam abraçado nenhuma religião e não seria o
pai nem a mãe que iriam violar seus princípios de liberdade,
forçando-os a fazer concessões. João, aliás, fizera uma concessão,
casaria na Igreja Católica para não desgostar a noiva e seus pais.
Porém, de jeito nenhum se batizaria nem confessaria.
O impasse criado, Jorge deu uma sugestão: Por que não
procuram outro padre? Certamente encontrarão um mais liberal. Por
exemplo, Paloma ia casar-se na Igreja Católica, Dom Timóteo
Amoroso Anastácio, abade do Mosteiro de São Bento, de Salvador,
convidado pelos meninos para celebrar a cerimônia, sugerira realizar
um casamento ecumênico, de um católico com uma não-católica. Mas
era difícil encontrar outro padre tão aberto, tão inteligente quanto
Dom Abade.
CASAMENTO ECUMÊNICO
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Cerimônia marcada para as onze horas da manhã, no Mosteiro
de São Bento, no Rio de Janeiro, às dez horas, em nosso apartamento
da Rodolfo Dantas, todo de branco, terno impecável, Jorge dava
pressa à filha que se vestia. Vestido simples de seda tailandesa,
presente de uma das madrinhas, Beatriz Costa, confecção de Diná,
prima de Jorge. Paloma não quisera véu nem grinalda, apenas um
arranjo na cabeça, desenhado pelo noivo.
Às onze em ponto Jorge ajudava a filha a saltar do carro, na
porta da igreja. Desta vez ele não conseguira chegar adiantado,
desistira de apressar a filha ao ver que a menina chorava nervosa. Os
convidados, em sua maioria, acostumados aos atrasos das noivas,
ainda não haviam chegado, pouca gente estava na igreja. A menina
Ana Tornaghi, filha de Maria e sobrinha de Pedro, que levaria as
alianças, só chegou no fim da cerimônia. Pedro fazia hora
conversando com Dom Abade na sacristia, quando foi chamado às
pressas, assim mesmo, ao chegar ao altar a noiva lá se encontrava à
sua espera.
Elegante, num vestido novo, comovida com o casamento da
neta, lá estava Lalu. Eu usava um vestido verde e chapéu de palha,
trazidos de Paris, onde comprara na companhia de Blanca Astúrias,
que morava lá e, muito expedita, sabia tudo de modas e onde
encontrar o melhor e mais barato.
Dom Abade, com sua batina branca, iniciou o ato: Realizo aqui
a cerimônia ecumênica do casamento de um católico com uma não-
católica. Ao meu lado Lalu não gostou, cutucou meu braço. Dom
Timóteo continuou escandalizando Lalu, a cada vez que mandava
Pedro ajoelhar-se e Paloma ficar de pé ou Pedro rezar e Paloma
permanecer calada.
Em casa, ao ser indagada se gostara do casamento, Lalu
desabafou: Se gostei? Estou indignada com esse padre, disse, havia
necessidade dele atirar na cara da menina, na frente de todo mundo,
que ela não é católica? Mandou a pobrezinha ficar de pé, mandou que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
não rezasse pra que as pessoas pensassem que ela não sabe rezar...
Eu estava vendo a hora dele meter a mão na cara de minha neta...
Nem sei como tu mais Jorge tiveram paciência de assistir tudo isso,
calados...
Não entendendo nada sobre essa modernidade de casamentos
ecumênicos, Lalu fora sincera ao desabafar e não se convenceu nem
mesmo depois de ouvir a explicação do filho sobre a significação do
progresso da Igreja Católica, permitindo, democraticamente, que tal
cerimônia se realizasse. Jorge tratou de desfazer a má impressão da
mãe sobre Dom Timóteo... Achávamos que Lalu entendera tudo mas
ela ainda tinha uma ressalva: Está tudo muito bem, disse, no meu
tempo não tinha dessas coisas, só não achei certo o padre dizer na
frente de tanta gente que a menina não é católica. Roupa suja a
gente lava em casa, não é, meu filho?
Deixamos Paloma no Rio, ela ia morar no andar superior de
nosso apartamento, na Rodolfo Dantas.
A OUTRA AVÓ
Fico pensando o que teria dito minha mãe se tivesse assistido
ao casamento da neta. Liberal, anarquista anticlerical, ela era, no
entanto, preconceituosa, tinha medo da língua do povo e,
certamente, pelos mesmos motivos de Lalu, não teria gostado da
novidade ecumênica. Não se deve fiar nos herdeiros da Santa
Inquisição; os anos passam mas o ranço fica. Ouvi mais de uma vez
dona Angelina repetir essa frase.
Mamãe nos deixara havia dois anos. O telegrama anunciando
a sua morte, enviado por meu cunhado, José Soares, marido de
Wanda, era lacônico: Dona Angelina faleceu, repentinamente, esta
noite. O enterro será às cinco horas.
Repentinamente, eu ficara sem mãe. Me atirei na cama, o
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
corpo morto, chorei, chorei, sem mesmo poder ouvir as palavras de
consolo de Jorge e de meus filhos.
Jorge trabalhava no momento num livro, escrevia Tenda dos
Milagres, não podia me acompanhar aos funerais de minha mãe.
Consegui um vôo para São Paulo e sozinha parti. Cheguei ao
cemitério do Araçá, onde o corpo estava sendo velado, a tempo de
beijar a testa gelada de mamãe e de colocar-lhe nas mãos uma rosa
vermelha.
CASAMENTO DE JOÃO
Voltamos logo do Rio, o casamento de João estava marcado
para daí a um mês e eu não tivera tempo de providenciar nada.
O impasse continuava: Dom Clemente fincara o pé, não
celebraria o casamento de um herege, filho de um ateu. Botara Jorge
na berlinda ao negar também a Igreja de Santa Tereza.
O Museu de Arte Sacra, ao qual pertencia a Igreja de Santa
Tereza, era administrado pela Universidade Federal da Bahia. Bastou
uma palavra do reitor, Roberto Santos, para que suas portas fossem
franqueadas e bastou uma autorização do cardeal-arcebispo, Dom
Avelar Brandão Vilela, para que o casamento ecumênico se realizasse
sem necessidade de batismo.
Finalmente, foi escolhido o padre ideal, pessoa ótima, liberal,
estimado na Bahia, Dom Jerônimo de Sá Cavalcante, de família
cearense. Ele, inclusive, fora citado por Jorge, como personagem,
num romance.
Dom Jerônimo deu início à cerimônia, presentes o reitor e dona
Maria Amélia, sua esposa, o governador do estado, Luiz Viana Filho
com dona Juju. Às tantas, Dom Jerônimo fez uma pausa e, dirigindo-se
ao noivo, disse: João, no romance Dona Flor e seus dois maridos seu
pai deu-me a honra de fazer-me personagem. Na página 231 ele diz:
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
"onde o celebrante, Dom Jerônimo, sapecou sermão dos mais
eloqüentes". Eu queria dizer aqui, hoje, na presença de Jorge Amado,
que não costumo sapecar sermões, costumo proferir palavras de
amor... e é o que vou fazer agora ao celebrar um casamento
ecumênico de uma católica com um não-católico.
A gargalhada foi geral, Dom Jerônimo acabara de lavar a alma,
livrara-se daquele incômodo sapecou, que havia anos estava entalado
em sua garganta.
Felizmente, segundo a praxe, os pais da noiva ocuparam-se
dos detalhes do casamento, inclusive os da recepção. A nós coube
ceder um pedaço de nosso terreno e construir uma casa para os
jovens morarem. Seríamos vizinhos, dividiríamos o mesmo jardim.
CASA VAZIA
Nossa casa tão grande, tão movimentada com nossos filhos e
seus amigos trazendo música e entusiasmo para dentro das portas,
de repente, no espaço de um mês, ficou vazia, silenciosa. Bom motivo
para fugirmos daquela tristeza, foi Jorge aceitar o convite para um
período de três meses, como autor residente de uma universidade da
Pensilvânia, a Pen State University, em State College. Sairíamos um
pouco da condição de pais órfãos de filhos.
O programa que a universidade propunha era interessante.
Jorge se reuniria uma vez por semana com alunos que estudavam
literatura brasileira nos livros de Jorge Amado. Nas reuniões semanais
entre o autor e seus leitores, haveria debates e questões
apresentadas pelos alunos, curiosidades respondidas pelo escritor.
Uma intérprete faria a tradução nesses encontros e nas palestras que
ele deveria realizar.
Jorge respondeu a Stanley Wentraub, conhecido escritor e
diretor da universidade, aceitando o convite. Seria uma boa
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
experiência o contato direto com alunos e leitores, conheceríamos de
perto o dia-a-dia da vida americana, aprenderíamos bastante. Eu
voltaria aos trabalhos de dona de casa, pois teríamos um
apartamento mas não uma empregada. Ser dona de casa, arrumar e
limpar, cuidar da roupa lavada e ir para a cozinha não me assustava.
Deveríamos estar em State College em agosto, tínhamos
muito tempo pela frente, podendo nos dar ao luxo de ir de navio até
Los Angeles, onde passaríamos uns dias com Cyva e Aloysio de
Oliveira que, ao saberem de nossa viagem, nos haviam convidado a
passar uns dias na casa deles. Depois, a conselho de Alfredo
Machado, doutor em roteiros americanos, tomaríamos um confortável
ônibus indo até Las Vegas.
BRASIL MARU
Deixamos Lalu com Fanny e Joelson, em São Paulo. Ao lado do
filho médico ela se sentiria confortada.
Tomamos em Santos o Brasil Maru que nos levaria até Los
Angeles. Navio japonês, pequeno, simpático, ele tinha apenas três
cabines de primeira classe, duas das quais já se encontravam
ocupadas por passageiros embarcados na Argentina. No convés
inferior havia uma pequena piscina e, mais abaixo, uma segunda
classe que ia lotada de japoneses de volta à sua terra, depois de
muitos anos no Brasil. Famílias inteiras com filhos nascidos em São
Paulo, haviam, como nós, embarcado em Santos.
Naquela tarde fria, tarde triste de garoa, o navio zarpou
lentamente, iria costeando as cidades do Norte.
Passávamos ao largo, em frente a Salvador, vendo ao longe as
luzinhas da cidade, quando ouvimos pelo rádio de um vizinho o
noticiário da Bahia. Teríamos entendido bem? Prestamos atenção, o
locutor falava da morte de Genaro de Carvalho, vítima de um
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
aneurisma. Genaro morrera no dia do meu aniversário. Passamos um
telegrama para Nair, falando de nossa imensa tristeza. Nada mais
podíamos fazer.
As distrações no navio eram poucas: concurso de arranjos
florais, roleta com pequenos brindes para os ganhadores, cerimônia
do chá, à tarde... Não tínhamos com quem bater grandes papos, as
conversas de nossos companheiros argentinos eram diferentes das
nossas. Um dos casais levava uma filmadora e marido e mulher
faziam planos de filmagens para um documentário, aproveitando em
Los Angeles em excursões de ônibus, já programadas, uma ao Grand
Canyon, onde pretendiam esbaldar-se. Não esqueço a cena: diante de
um espelho, o camera man, em atitude de quem está filmando,
ensaiava, dizendo com voz pausada, um texto decorado: Estamos
delante del grande canon, muy grande... muy grande...
Mais interessante do que as conversas com os companheiros
da primeira classe era o convívio com os pequenos nisseis lá de
baixo, uns azougues, vivos como eles só. Jorge os convidava todos os
dias para um piquenique, comprava na cantina Coca-Cola,
sanduíches, bolos, balas... Reunia-se com os meninos lá embaixo,
pois eles eram proibidos de subir à piscina e à primeira classe. Todos
eles tinham um nome japonês e um brasileiro. Gilberto, o mais
esperto, o mais sabido, em voz baixa, tom confidencial, perguntou-me
certa manhã, após um gole de Coca-Cola e um arroto: O marido da
senhora é prefeito? não é? então como ele compra tanta coisa pra
gente?... Esse mesmo garoto um dia, levado por mim ao nosso
camarote, se encantou ao ver que até tapetes havia no chão. Depois
pegou de cima da mesinha um jornal de Santos que compráramos ao
embarcar e, ao ver o retrato de Jorge estampado nele, se admirou.
Soletrando a legenda embaixo, descobriu o nome do generoso
promotor de piqueniques e não se conteve, bateu a mão na testa:
Jorge Amado! Pooorrra!
A freguesia para os piqueniques aumentava cada vez mais.
Jorge, com suas compras, cada vez maiores, ia esgotando os
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
estoques da cantina. Os meninos traziam a mãe, o pai, o tio, as irmãs
mocinhas que animavam o convescote com músicas de Roberto
Carlos cujos discos eram tocados numa eletrolinha. Era uma graça vê-
las revirando os olhos ao ouvir a voz de seu ídolo. Essas nunca vão se
conformar de viver longe do Brasil, profetizava Jorge.
Los ANGELES
Depois da repousante viagem no Brasil Maru, chegamos a Los
Angeles onde Cyva, Aloysio e um grupo de brasileiros nos esperavam.
Numa casa pré-fabricada da longa avenida de graciosas
residências, as casas exatamente iguais, rodeadas de grama e jardins
floridos, viviam Aloysio de Oliveira e Cyva Leite, fundadora do célebre
Quarteto em Cy. Voz suave, afinada como um sabiá, toda delicadeza,
Cyva ali na cozinha, de dona de casa, limpava um peixe enorme que
ela mesma prepararia para nós. Perguntou-me se tínhamos roupa
para lavar: Hoje é dia da lavadeira vir... Aloysio ouviu a conversa e
desmascarou-a em seguida: Não vá na conversa dela, Zélia, aqui não
é Brasil, não existe essa de dia de lavadeira vir... Temos máquina de
lavar mas é Cyva quem se ocupa disso e, se você duvidar, ela é muito
mulher de ir para o tanque e lavar a roupa de vocês, ela mesma. Vi
logo que, com a disposição de nossa amiga, não poderíamos
encompridar a estada em sua casa.
Com Cyva e Aloysio fomos à Disneylândia e passamos uma
tarde inteira nos estúdios da Universal assistindo a filmagens
simuladas, tudo novidade para nós.
Chegara a hora de partir, nossos anfitriões tinham
compromissos de trabalho, Cyva fazia dublagem em filmes da Walt
Disney e Aloysio era conselheiro musical. Já déramos muito trabalho à
nossa amiga, a nos cercar de atenções. Além do mais, tínhamos pela
frente um bom pedaço de caminho a percorrer.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Os carros do casal eram enormes, aliás, eram tão grandes
quanto os que todo mundo usava em Los Angeles, no diário. Pelas
ruas da cidade a novidade era ver-se um carro pequeno.
Estranhamos, desde o primeiro dia, um carrão estacionado no jardim,
encostado à casa de nossos hospedeiros. É do Edu Lobo, explicou
Aloysio, está aí guardado até que um dia ele volte do Brasil. Se vocês
quiserem ir a Las Vegas nele, está às ordens, Edu não vai se
incomodar, ao contrário, vai até gostar. Agradeci, preferíamos ir de
ônibus mesmo.
LAS VEGAS
Las Vegas era o que esperávamos ver e muito mais. O táxi que
nos pegou no ponto final do ônibus nos levou ao hotel indicado por
Alfredo Machado, reserva feita também por ele.
O chofer nos deixou diante de um prédio onde havia uma
porta fechada. Largou nossa bagagem na calçada, recebeu e partiu
sem querer muita conversa. Esse homem nos deixou em lugar errado,
disse Jorge. Isto não tem cara de hotel. Fique aí com as malas, vou
até a esquina, talvez a entrada seja do outro lado... Não era. Fique
você agora com as malas aí que eu vou empurrar aquela porta e ver
se alguém pode nos informar, disse eu.
Logo atrás da discreta porta, divisei um verdadeiro mar de
maquininhas, caça-níqueis com pessoas em torno, puxando
manivelas para a frente e para trás, os níqueis caindo nas cuias,
fazendo barulho. Na porta não havia uma única pessoa para dar
informações. Não foi preciso. Descobri, logo adiante, num cantinho, a
portaria do hotel. Apenas um balcão que não ocupava grande espaço.
Nossa reserva lá estava. Um hotel quatro estrelas, luxuoso, e não
tinha, no entanto, uma portaria decente. Nos deram, como oferta da
casa, alguns vales para jogar. Nessa eles não me pegam, disse Jorge
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
que tanto adora um joguinho de pôquer com amigos quanto detesta
jogos de azar. Jamais joga em cassinos.
Até chegarmos ao nosso quarto fomos esbarrando com jogos
de todos os tipos e tamanhos. Descobrimos, em seguida, que no hotel
não havia um único relógio. Ninguém devia se dar conta da hora,
estavam ali para jogar, sem se preocupar com horários, sem parar.
Passamos dois dias em Las Vegas, tempo suficiente para ver tudo,
inclusive para assistirmos ao espetacular show que o cassino oferecia
na hora do jantar.
Em Las Vegas tomamos uma excursão, o ônibus nos levaria ao
Grand Canyon e à Floresta Petrificada.
GRAND CANYON E FLORESTA PETRIFICADA
Para o Grand Canyon, eu nunca encontrarei um adjetivo que
lhe faça justiça: grandioso? monumental? A enciclopédia, à qual pedi
ajuda, diz tratar-se das gargantas do Colorado no Arizona, sem outros
comentários.
Pensávamos tê-los perdido de vista, mas lá estavam eles os
argentinos companheiros de viagem, filmando, ele de operador, ela
de assistente. A distância dava para notar que ele filmava e falava ao
mesmo tempo. Estaria repetindo o que decorara no navio ou, diante
daquela grandeza, teria mudado o texto?
Se o Grand Canyon nos causou um grande impacto, o mesmo
não aconteceu com a Floresta Petrificada. Era a segunda que
visitávamos, uma bem diferente da outra. A primeira fora em Kuo-
Ming, no sudoeste da China, em viagem com Pablo Neruda e Matilde.
Viagem começada em Sri Lanka — na época, Ceilão — depois de um
congresso de escritores. De lá seguimos para a índia, depois fomos à
Birmânia e, finalmente, à China, viagem e peripécias já narradas em
livros anteriores.
Na Floresta Petrificada do Colorado os enormes troncos de
pedras que um dia, há milhares de anos, haviam sido árvores,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
estavam tombados, caídos no chão, enquanto as árvores petrificadas
de Kuo-Ming conservavam-se de pé, verdadeira floresta de troncos e
galhos de pedra, espetáculo único. A caminho de Nova York
passaríamos pelas cataratas do Niágara.
Estávamos ansiosos para chegar a Nova York onde,
certamente, encontraríamos cartas de nossos filhos, notícias da
Bahia. Mirabeau ficara de escrever sempre. Jorge dera a todos o
endereço da Editora Knopf, que publicava seus livros, para o envio
das cartas ou para qualquer emergência.
NOVA YORK
A nossa espera, em Nova York, estava nosso amigo e editor de
Jorge, Alfred Knopf. No hotel, reservado por ele, encontramos uma
cesta de frutas, frutas de toda qualidade, formando uma pirâmide
altíssima com um gentil cartão de Helen e Alfred.
Ao lado da corbeille, estava o que mais ansiávamos: várias
cartas do Brasil e ainda um cassete. Na fita gravada, João mandava
notícias, fora de casa em casa, gravando mensagens de nossos
amigos.
Agora, deleitados, ouvíamos João contando as novidades da
casa, falando com orgulho da gravidez de Mariinha, que nos
preparássemos para estrear de avós. Norma, Mirabeau e Carybé
contavam as novidades da terra. Havia carta de Paloma, falando de
sua vida nova, de seus estudos. A carta de Joelson dava notícias de
Lalu. Havia ainda uma cartinha de Zuca: Graças a Deus, o jardim vai
bem, não tem chovido muito, nem feito muito sol...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ALFRED KNOPP
Alfred Knopf editara nos Estados Unidos, pela primeira vez, em
1945, um livro de Jorge Amado: The Violent Land tradução de Terras
do sem fim. De editor ele se tornara nosso amigo.
Knopf estivera no Brasil havia pouco tempo e com ele fizemos
uma viagem de automóvel à cachoeira de Paulo Afonso, Norma,
Caymmi e Paloma, alegrando a longa viagem.
Foi em Pedra, cujo nome hoje é Delmiro Gouveia, que Antônio
Carlos Menezes, dono de uma fábrica têxtil, nos hospedou. Essa
fábrica, ao lado da cachoeira de Paulo Afonso, estava instalada onde
outrora fora a famosa e moderna, para sua época, fábrica de linhas
de Delmiro Gouveia, destruída por concorrentes estrangeiros, que
atiraram as máquinas na cachoeira. Fato histórico.
Noto que me distanciei da viagem a State College sem ao
menos pedir licença. Mas, já que me deslanchei nesse longo
parêntese, me desculpo agora e vou até o fim que, aliás, não está
muito longe. Talvez.
Numa espécie de gaiola, sustentada por um grosso cabo de
aço, atravessamos a cachoeira, barulho ensurdecedor, espetáculo
fantástico. No jantar ao ar livre, no jardim da fábrica, assistimos a
danças populares regionais, inclusive uma de autoflagelação: homens
sem camisa, munidos de ramos de urtiga, fazendo uma roda,
cantando, dançando e se autoflagelando, batendo com violência os
ramos da erva-de-fogo no peito e nas costas, os vergões vermelhos
rompendo a pele... Espetáculo que recebia aplausos dos curiosos que
assistiam de pé, mas que a nenhum de nós agradou.
My God!, dizia Alfred Knopf, horrorizado, ao terminar o
macabro espetáculo, quando um cidadão que nos rondava desde a
nossa chegada aproximou-se, abaixou-se e lhe disse:
— Fodelequê? Fodelequê?
— O que ele está dizendo? — quis saber Knopf.
Jorge também não entendera, perguntou à mulher do gerente
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
da fábrica que riu meio encabulada:
— Ele está oferecendo mulher e, para que as esposas
presentes não entendam o que diz, ele muda um pouco a palavra...
não é a primeira vez que faz isso. É um cretino — concluiu —, está
pensando que nós somos burras.
Quem gostou da história foi Caymmi: Que moleque mais
descarado!, riu a viagem toda recordando a astúcia do pilantra. Até
hoje ele não esquece e ri novamente ao lembrar o malandro de Paulo
Afonso.
A mesma moça, a mulher do gerente da fábrica, nos falou de
um hábito da terra: na véspera de seu casamento, a noiva é banhada
pelas amigas com óleos perfumados. Ela mesma participara do banho
de Socorro, uma operária da fábrica:
No bacião, pelada, Socorro, ia recebendo a água perfumada e
os óleos que as amigas lhe passavam, respondendo, deleitada, às
suas piadas maliciosas:
— E hoje, hein, Socorro...
— Cala a boca, mulher!
— Socorro, tu tá nervosa?
— Cala a boca, mulher!
— Socorro, tu tá com medo?
— Cala a boca, mulher!
— Socorro, tu vai gritar?
— Cala a boca, mulher!
— E se tu não gostar, Socorro?
— Cala a boca, mulher!
Segundo a simpática senhora que nos contou essa e outras
historinhas da terra, o banho das noivas dura horas e enquanto
houver perguntas ele não termina.
Nosso último passeio por Paulo Afonso foi a Piranhas, nas
margens do São Francisco, quando fizemos um belo passeio de barco.
Eu sabia, de ouvir Dadá contar, que fora em Piranhas que haviam
matado o seu amado Corisco.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
O prefeito de Piranhas nos ofereceu um almoço e foi nesse
almoço que eu cometi a grande gafe: na maior das inocências
perguntei ao anfitrião, a meu lado na mesa, se o assassino de Corisco
fora preso, se ainda era vivo. Houve um silêncio de gelo, e não
precisei que me explicassem nada. Metera a pata: o tal prefeito outro
não era senão o mandante ou o próprio que matara Corisco, nunca
fora esclarecido. Em Piranhas o assunto era tabu, ninguém
comentava.
De Salvador, Knopf seguiria para o Rio de Janeiro onde se
encontraria com Helen, que devia chegar do Oregon, sua terra, para
casar-se com ele. Ambos idosos, ambos viúvos, ela autora de livros,
ele seu editor, haviam tido um romance no passado. Tendo se
reencontrado, depois de muitos anos, o amor renascera, marcaram
encontro no Rio para o casamento. Alfredo Machado se encarregara
dos papéis, de tudo. A cerimônia seria celebrada na casa do
advogado José Nabuco, grande amigo de Knopf.
Minha admiração por esse cidadão, apaixonado aos setenta e
tantos anos, aumentou ao saber que ele não iria esperar Helen à sua
chegada no aeroporto, às primeiras horas da manhã. Quero deixar
Helen à vontade, não vou constrangê-la com a minha presença...
Depois de uma viagem longa, de uma noite maldormida, na sua
idade, certamente chegará muito cansada.. Só vou me encontrar com
ela depois que descansar, de banho tomado, toalete feita, maquiada.
Pedi a Alfredo Machado, ele irá recebê-la. Tanta delicadeza me
impressionou.
Maravilhado com tudo o que vira na longa viagem, Knopf disse
sua última palavra: Quem tem uma cachoeira como a de Paulo Afonso
não pode invejar as cataratas do Niágara. Foi exatamente o que
pensamos, Jorge e eu, tempos depois, a caminho de Nova York, no
encontro com as famosas cataratas do Niágara, tão lindas, tão
arrumadinhas, tão bem-cuidadas... Nem se comparam com as nossas
cachoeiras, dissemos, a de Paulo Afonso, poderosa com sua voz de
trovão e as selvagens e grandiosa Sete Quedas do Iguaçu, únicas,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
nenhuma outra pode nos causar inveja.
LAÍS E WALTER
Além de Alfred Knopf, tínhamos encontro marcado em Nova
York com uma amiga, Laís Saldanha. Casada com o americano Walter
Palmer, Laís deixara o Rio, onde tinha uma butique de luxo, fora
morar na Pensilvânia. Íamos ser quase vizinhos por três meses,
motivo de júbilo para nós e para eles. A cidadezinha onde Laís e
Walter moravam ficava entre Washinghton e State College, nos
separaria apenas uma montanha.
A gentileza de Laís e Walter nos comovia. Em dois automóveis
eles foram a Nova York especialmente para nos oferecer um dos
carros que usaríamos enquanto estivéssemos nos Estados Unidos.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Saí, pois, de Nova York dirigindo um Chevrolet enorme, sem
tamanho. Eu nunca pegara um carrão daqueles. Morta de medo,
diante do sofisticado painel em minha frente com mil botões e mil
luzinhas, sem conhecer as estradas americanas, dei a partida e me
toquei. Seja lá o que Deus quiser. Felizmente Laís e Walter nos
acompanharam no seu carro e, comboiados na longa viagem com
montanhas e curvas fechadas, chegamos à State College sãos e
salvos.
STATE COLLEGE
A cidade universitária, pequena e simpática, nos agradou em
seguida. Professores e alguns brasileiros aguardavam a nossa
chegada, destacando-se entre eles Gerard Moser, entusiasta da
literatura brasileira, ele mesmo falando perfeitamente o português.
Nosso apartamento era situado num edifício igual a todos os
daquele correr de prédios. Apartamento de dois quartos, uma sala e
cozinha, era absolutamente idêntico, inclusive na decoração, a todos
os apartamentos do prédio. Disso tivemos uma experiência divertida.
Todos os dias, à mesma hora, da janela aguardávamos a
chegada do carteiro. Ele descia de um carro, entrava no prédio,
separava a correspondência e a depositava cada uma a seu dono, em
seus escaninhos. Assim que o carteiro apontava, corríamos ao seu
encontro. O desejo de receber cartas, ter notícias de nossos meninos,
dos amigos, era grande.
Nesse dia, o da historinha que vou contar, Jorge desceu
sozinho, eu estava ocupada na cozinha. O carteiro trouxera várias
cartas e ele tratou de abrir logo a de tarja verde e amarela com
carimbo da Bahia. Abriu a carta e foi lendo, o elevador chegou e ele
continuou lendo no elevador, a porta do elevador se abriu e ele saiu,
sempre lendo, empurrou a porta do que achou ser seu apartamento,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
entrou e, como de hábito, refestelou-se na poltrona, tirou os sapatos
e me chamou. Quem atendeu ao seu chamado foi um casal de
japoneses, habitantes daquele apartamento. Jorge descera em andar
errado. Ao dar-se conta do engano, tratou de calçar os sapatos,
desculpe, e se foi, sem outra explicação. Jorge cumpria com
seriedade o contrato que fizera com a universidade. Participava e
gostava dos encontros, sempre muito animados, com alunos
americanos e também assistidos por jovens brasileiros. Com Gerard
Moser, esses jovens haviam fundado o clube do bate-papo que, como
o nome indica, os reunia para grandes papos.
Sempre cercados de muito carinho, fomos algumas vezes
convidados a jantar em casa de um e de outro. Ninguém tinha
empregada, as mulheres, em geral professoras, acumulavam funções,
trabalhando muito, embora sempre ajudadas pelos maridos nos
afazeres da casa e, sobretudo, na hora de servir o jantar cabia ao
marido cortar o pernil assado, trinchar o frango, servir as bebidas.
Ajuda que jamais poderia esperar de Jorge, desajeitado, sem vocação
nem vontade de se bandear para tais misteres. Também não era
tanto assim, não quero ser injusta: Jorge arrumava a mesa e me
ajudava a tirá-la, despejava o lixo.
Morrendo de saudades de meus filhos, estranhei constatar
que, em geral, os jovens, ao chegar à puberdade, iam cuidar de suas
vidas, deixavam a tutela dos pais, iam se arrumar, morar sozinhos.
VÁRIAS VIAGENS
Para quem sempre teve uma vida movimentada, a tranqüila
estada em State College começava a cansar. Estávamos em pleno
outono, o inverno se aproximava, já víramos tudo o que queríamos
ver, inclusive a coisa mais bela, o amarelo em todos os seus tons, do
ouro ao vermelho, das folhas caídas das árvores, formando um
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
tapete, no outono da Pensilvânia. Descobrimos uma feira nas aforas
da cidade, onde vivia toda uma comunidade de homens e mulheres
que cultivavam a terra, construíam suas próprias casas, faziam as
próprias roupas e em suas grandes carroças, também feitas por eles,
transportavam verduras e frutas para vender. Em nosso pequeno e
frio alpendre havia sempre melancias e melões geladinhos que
comprávamos desses camponeses.
Na companhia de Laís fomos mais de uma vez a Washington,
parando nos imensos shopping centers, em plena estrada, onde eu
comprava coisas para meu neto que estava para chegar.
De Nova York, Knopf preocupava-se conosco, Alfredo Machado
também andava inquieto, telefonava muito do Brasil e, conhecendo
como conhecia Jorge, estava achando que devíamos espairecer um
pouco e trataram, ele e Knopf, de organizar viagens para nós, que
não atrapalhassem os compromissos cpm a universidade.
Organizada pelos dois amigos, passamos um fim de semana
em Filadélfia, visitando o grande museu, tão grande e tão poderoso
que um fim de semana não foi suficiente. Voltamos ainda uma vez.
BOSTON
Tínhamos grande curiosidade de conhecer Boston, queríamos
ver de perto o problema racial onde, na voz geral, o poder negro era
absoluto, dominante.
Por telefone, Knopf nos disse que chegara do Brasil para nós
uma carta e um cassete. Pedimos-lhe que mandasse tudo para o
hotel em Boston, no mesmo reservado por ele.
Cidade imensa, poderosa, Boston com seus arranha-céus,
lembrou-me um pouco São Paulo. Pelas ruas circulavam enormes
cadilaques conversíveis, de cores vivas, alguns até com pinturas de
flores, todos, sem exceção, dirigidos por negros tão ou mais
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
enfeitados que os próprios carros.
Prevenidos da animosidade deles contra os brancos,
procuramos ser o mais prudentes possível. Mesmo assim, ao olhar
encantada, sem nenhuma segunda intenção, para uma fila de
mulheres negras de vestidos coloridos e vistosos chapéus de abas
largas que, de braços dados, tomavam grande parte da calçada,
quase fui agredida por uma delas que me ameaçou com um guarda-
chuva.
Sempre repudiamos, Jorge e eu, o preconceito racial,
sabíamos, e quem não sabe? Só não sabe quem não quer, o quanto
os negros sofreram, desde os tempos da escravidão, nas mãos dos
brancos. Pela primeira vez, no entanto, conhecíamos de perto um
novo tipo de racismo, o racismo ao contrário: o do preto sentindo-se
superior ao branco, enfrentando-o, acintoso, sem camuflagem, com
evidente espírito de revanche, de vingança. Em Boston não vimos
mulatos nem casais de preto com branca, nem branco com preta.
O CASSETE
A carta que viera com o cassete de fita gravada, enviados por
Knopf de Nova York, era de James, dando notícias da Bahia, contando
que Lalu voltara de São Paulo, estava hospedada em sua casa,
esperando por nós. A fita gravada, ai a fita gravada!
Como ouví-la? Havíamos esquecido de levar nosso gravador,
falha imperdoável. Nessa gravação, como a da outra vez, certamente
João nos faria ouvir os amigos e ele próprio falando, contando do filho
por nascer... O problema, no entanto, não era tão grave como
parecera, seria solucionado: procuraríamos na cidade uma loja que
vendesse gravadores e pediríamos que nos deixassem ouvir a fita, lá
mesmo, muito fácil.
A loja era enorme, a vitrine repleta de tudo quanto era
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
aparelho, um mundo. É aqui mesmo que vamos entrar, dissemos ao
mesmo tempo. Na movimentada loja não conseguíamos localizar uma
pessoa que nos atendesse até que, finalmente, descobri um
rapazinho de crachá no peito e, com a voz mais suave deste mundo,
num precaríssimo inglês, pedi-lhe que nos emprestasse um
gravadorzinho para ouvir a voz de nossos filhos, tão distantes, no
Brasil. Para que ele entendesse bem que falava do Brasil, mostrei-lhe
o envelope tarjado de verde e amarelo, da carta de James. Sem dizer
uma única palavra, o rapaz tomou-me o cassete da mão. Graças a
Deus, ele entendeu tudo, disse eu a Jorge, enquanto o via sumir pelos
labirintos da loja. Você acha que ele foi buscar c gravador?, duvidou
Jorge. Claro!, respondi. Ele levou o cassete para ver o tamanho.
Estávamos nesses comentários quando, de repente, uma altíssima e
poderosa voz ecoou, saída de possantes alto-falantes distribuídos
pela loja toda: E a voz de Lalu, alarmou-se Jorge, reconhecendo a voz
da mãe.
— Jorginho, meu filho. Como vai? E Zélia, vai bem? —
perguntava ela.
Após o primeiro choque, baixamos a cabeça, encabulados. Ai
meu Deus que vergonha, todo mundo ouvindo, ninguém
compreendendo o que se passava.... O rapaz não me entendera. O
jeito era ficarmos encolhidos, incógnitos num canto, calados para
ouvir o que Lalu dizia. Agora ela reclamava de João:
— Eles não estão entendendo nada, nem respondem... Não
estão me ouvindo...
— Não é pra responder não, Lalu, vá falando que eles ouvem
— dizia João.
Lalu voltava a falar:
— Olhe Jorge, por aqui vai tudo bem. Eu voltei de São Paulo,
estou na Bahia, vim esperar vocês. Quando é que tu volta, meu filho?
Ainda vão demorar muito? As saudades são grandes...
— Diga, Lalu, que Paloma está grávida — soprava-lhe João, ao
lado.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Que grávida o quê, menino! Grávida! coisa nenhuma!... —
reclamava Lalu, ríspida. Tendo falado fora do microfone, ela julgara
que não a tivéssemos ouvido, nem percebido que ela estava contra a
gravidez de Paloma. Ao voltar ao microfone, Lalu mudara o tom de
voz, falava com doçura: — Olhem, Paloma veio com uma história de
gravidez... mas não tem nada certo... não passa da vontade da
moleca.
Durante um tempo sem fim, de pé, sem comentar, nem rir,
como se a coisa não fosse conosco, ouvimos Carybé, Nancy,
Mirabeau, Celestino, Luiza, James, contando as novidades da Bahia,
falando de saudades.
Ao terminar a fita, gentil, o rapaz veio nos trazer o cassete:
Querem ouvir novamente? Thank you very much, agradeci e nos
fomos. Ouviríamos a gravação ainda algumas vezes, tranqüilamente,
ao voltarmos a State College.
INVERNO
Nem bem o outono terminara, o inverno entrou dando o ar de
sua graça, dias escuros, frios, dias tristes, de vez em quando um
barrufo de neve.
De nossa janela podíamos vigiar nosso carro que, desde a
nossa chegada, ficava estacionado no pátio, bem em frente ao nosso
prédio. Não tínhamos nem por que vigiar, pois ninguém iria roubá-lo,
não havia casos de furtos de automóveis em State College. Esse
Chevrolet nos servira muito e iríamos devolvê-lo nas vésperas de
nossa partida que já se aproximava.
A festa de despedida, em homenagem a Jorge, no salão nobre
da universidade, fora organizada por Stanley Wentraub, Gerard Moser
e outros professores. Muitos convidados, vindos de fora, inclusive
Alfredo Machado, Alfred Knopf com Helen, Laís e Walter entre outros,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
lá estavam, naquela noite, quando, além dos discursos e das músicas
brasileiras, houve uma apresentação teatral, trecho de um romance
de Jorge, adaptado e interpretado por alunos e professores.
Por telefone, eu pedira a Alfredo Machado que levasse de Nova
York, onde tudo se encontra à venda, material para uma feijoada,
incluindo carne-seca, paio e farinha de mandioca.
Convidamos alunos, professores e amigos brasileiros para um
encontro de despedida em nosso apartamento. Preparei uma imensa
feijoada num caldeirão emprestado e lhes ofereci um almoço
brasileiro. Até espiga de milho e coco ralei para a canjica de milho
verde e as cocadas, preta e branca, que ofereci como sobremesa. O
aroma apetitoso da feijoada invadiu o prédio todo. Da portaria ao
último andar do edifício, podia-se sentir a presença do Brasil.
Viajaríamos para Nova York, nos primeiros dias de dezembro,
onde tomaríamos um navio de volta ao Brasil. Como fora combinado,
devolveríamos o carro de Laís no dia 25 de novembro, data que não
poderíamos esquecer pois esse era o dia do aniversário de João Jorge.
Era também o thanksgiven, dia de ação de graças dos americanos.
Jantaríamos com Laís e Walter, participaríamos de sua mesa festiva,
assistiríamos Walter trinchando o tradicional peru assado.
VIAGEM PERIGOSA
Olhei pela janela e me assustei: nosso carro estava coberto de
neve. Deveríamos devolvê-lo naquele dia. Ao saberem que
tencionávamos descer a serra, nossos amigos se alarmaram. Rodella
Wentraub me telefonou. Não façam isso, por favor, o rádio está
anunciando novas quedas de neve, pedem que ninguém viaje com
esse tempo, as estradas se encontram escorregadias, perigosas.
Enquanto Jorge, lá embaixo, com a ajuda de alguns vizinhos,
tirava a neve do carro, os telefonemas se sucediam, nossos amigos,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
alarmadíssimos, nos pediam que adiássemos a viagem. Não dava
para adiar, nosso tempo era limitado, um adiamento iria nos causar a
maior confusão. Prevenida, eu dirigiria com prudência, iria devagar e,
sem pressa, chegaríamos ao nosso destino.
Fazendo ouvidos moucos aos apelos, saímos lentamente pela
estrada afora. Dos carros que víamos passar, o nosso era o único que
não tinha correntes antiderrapantes nos pneus e além do mais nossos
pneus estavam bastante gastos, quase carecas.
Descíamos a serra, eu quase não agüentando segurar o carro.
Ele deslizava como se rolasse sobre uma pedra de gelo. De um lado
tínhamos o precipício, do outro, um barranco e uma valeta
separando-o da estrada. De repente me dei conta de que devia optar
entre o precipício e o barranco e não tive dúvidas, despenquei para
dentro da valeta cheia de neve. Os carros que vinham atrás de nós
pararam e, munidos de pás, picaretas, etc. que, prevenidos, traziam
na mala do carro, homens, mulheres e crianças puseram-se ao
trabalho e depois de muito esforço conseguiram nos colocar
novamente na estrada.
À nossa busca, na raiz da serra, encontramos Laís e Walter
que, alertados e alarmados, estavam indo nos procurar.
Digo e repito sempre que mesmo nos piores momentos não
me desespero, procuro tirar dos males o lado positivo. O lado positivo
que tiramos do acidente na serra foi descobrirmos que não
estávamos sós, estávamos protegidos pela solidariedade humana.
Aqueles americanos, sem mesmo nos conhecer, interromperam sua
viagem, pararam, desceram debaixo de neve e trabalharam duro
para nos dar ajuda. Experiência essa que, em vez de nos trazer má
recordação, nos traz boa lembrança da viagem.
GREVE NO PORTO DE NOVA YORK
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Alfredo Machado nos esperava em Nova York com uma
novidade: doqueiros e estivadores do porto de Nova York estavam em
greve. Nossa viagem, com data marcada, estava suspensa. O jeito
era esperar com paciência até que tudo se normalizasse. Enquanto
isso, eu faria compras para meus netos, que agora seriam dois, pois a
gravidez de Paloma se confirmara.
Pela primeira vez viajaríamos num navio americano, aliás, em
dois navios americanos. No primeiro, depois de fazermos uma escala
na Flórida, no porto de Fort Lauderdale, onde embarcaria muita
gente, seguiríamos até o Panamá. Mudaríamos para outro navio que
deveria passar por lá, a caminho do porto de Salvador, na Bahia, dez
dias depois.
Embora o longo roteiro e os dez dias em terra fossem atrasar
nossa chegada ao Brasil, essa viagem nos entusiasmava,
desembarcaríamos na Bahia. Conheceríamos o Panamá,
atravessaríamos o canal. Teríamos tempo suficiente para conhecer a
Cidade do Panamá, lugar que, em geral, ninguém lembra de visitar,
ninguém sai de sua casa para ir lá a passeio, como sai para ir a Paris,
Londres ou Roma. Teríamos a oportunidade única de conhecer o país,
embora de passagem. No porto livre de Cristóbal, eu compraria uma
filmadora e uma câmera fotográfica.
SOMOS AVÓS
Ainda estávamos em Nova York quando chegou a notícia tão
esperada: nascera nosso primeiro neto. João nos telefonou em
seguida ao nascimento do menino, vai se chamar Bruno, disse.
Impossível descrever a emoção que senti ao pensar que João já era
pai, Jorge e eu, avós. Agora só desejava que a greve terminasse logo,
não via a hora de chegar em casa, ver meu neto.
Em Purchase, na casa de campo dos Knopf, passamos um fim
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
de semana. Tínhamos estado lá no verão onde tudo era verde e
florido, e agora, em pleno inverno, a paisagem mudara
completamente: tudo branco, caía neve. Tomando um bom vinho da
adega dos anfitriões, nos aquecemos recordando a viagem deles ao
Brasil.
Alfredo Machado, nosso informante sobre o movimento
grevista, finalmente nos deu a boa nova; mesmo não estando
completamente resolvido o problema, o navio ia zarpar. Como os
carregadores do porto continuavam em greve, os passageiros
deveriam encarregar-se de suas bagagens, colocá-las nas cabines.
Felizmente, Alfredinho, filho de Alfredo, estava estagiando em Nova
York e, com seu pai e um funcionário da editora Knopf, conseguimos
embarcar tudo sem maiores dificuldades.
INÍCIO DA VIAGEM DE VOLTA
Viagem péssima, em mar revolto, mar de inverno, diziam, a
viagem curta tomou-se longa. Prevenida, tomei remédio contra enjôo.
Velho marinheiro, Jorge recusou o remédio, nunca precisou precaver-
se contra o mal de mar.
Naquele navio imenso, éramos os únicos a enfrentar o balanço
do barco para conseguir chegar ao salão de refeições. Nos
segurávamos em grossas correntes que atravessavam o navio e
assim mesmo muitas vezes perdemos o equilíbrio. Os demais
passageiros haviam sumido, deviam estar trancados em suas
cabines. Só nos demos conta de que eram numerosos ao chegar à
Flórida.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
RUMO AO PANAMÁ
Os novos passageiros, embarcados no porto de Fort
Lauderdale, em excursão que os levaria até a Argentina, ida e volta,
eram, na sua maioria, pessoas idosas, aposentados, que, na maior
animação, não desistiam de gozar a vida.
A longa experiência nos ensinou que numa longa viagem
marítima somente depois de muitos dias de convívio pode-se
reconhecer as pessoas. Às vezes, no último dia de viagem aparecem
caras novas: Estes embarcaram hoje, costuma pilheriar Jorge.
Nossas companheiras de viagem se pareciam muito, no modo
de trajar, no modo de vestir, no cabelo crespo de permanente.
Notamos que uma das mulheres, de seus setenta anos, todos os dias
colocava um lacinho de fita colorida nos cabelos loiros,
encaracolados; o lacinho que enfeitava sua cabeça um dia era azul,
noutro, vermelho, noutro, roxo... Eu e Jorge só reparando nos
coloridos enfeites da coquete. Quem mais se divertia era ele que ao
vê-la surgir, certo dia, com um laço bicolor, me disse: Se essa burra
me aparecer amanhã de laço amarelo, sou capaz de lhe dar um
bofete... Pela manhã do dia seguinte, não deu outra, a burra surgiu
toda faceira, um lacinho amarelo encarapitado no cocuruto. Olhei
para Jorge: E agora? Sempre rindo, ele não se atrapalhou e apontando
ostensivamente o laçarote na cabeça da outra, atrevido, gastou uma
das poucas palavras que sabia em inglês dizendo: Beautiful!
Pouca coisa, ou nada, servia para encher nossas horas.
Quando poderíamos imaginar que uma besteira daquelas, como a dos
lacinhos coloridos, poderia nos fazer rir com tanto gosto? Nos
divertiam também, e muito, os comentários que fazíamos sobre os
namoros dos velhinhos. Sapecas todos eles, velhos e velhas,
dançando, no maior assanhamento, namorando, saindo do baile,
como quem não quer nada, indo para encontros amorosos na
escuridão do tombadilho. Soubemos que alguns namoros, nessas
longas excursões, algumas vezes resultaram em casamento.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Acontecia também morrer algum velhinho, durante a viagem, em
alto-mar. O navio levava de reserva dois ou três caixões mortuários,
próprios para serem metidos no frigorífico em caso de necessidade.
Viajava, nessa excursão, uma senhora que perdera o marido durante
uma viagem anterior, havia um ano, e agora, viúva e solta, não
perdia uma dança.
Por coincidência, uma passageira que viajava com o marido
estava lendo Dona Flor e seus dois maridos, em edição americana,
presente de uma amiga, na Flórida, onde moravam. Ao ler a lista de
passageiros ela encontrara o nome de Jorge. Aproximou-se, queria
saber se ele era ele mesmo. Seu entusiasmo, grande, aumentou
ainda mais ao descobrir na Enciclopédia Britânica, na biblioteca do
navio, o nome de Jorge Amado. Nos chamou, nos levou para ver. Essa
senhora, uma das passageiras mais jovens, devia ter uns cinqüenta
anos, era quem mais dançava, o marido só apreciando. Um dia ele
confidenciou a Jorge: Ela vai esquentando o prato para eu comer
depois... Ela fez tudo para dar umas rodopiadas com Jorge, sem
conseguir. Jorge não sabe dançar e nem se esforça, o que para mim,
apaixonada por dança, é uma falha enorme.
PANAMÁ
Viagem longa, pelo mar do Caribe até Colón, e ainda teríamos
oito horas antes de chegar ao porto de Balboa. Atravessaríamos o
canal do Panamá, comportas e mais comportas antes de atracar.
Ainda era dia claro quando iniciamos a travessia do canal.
Pudemos assistir às manobras demoradas de entradas e saídas de
navios nas eclusas, a água baixando, o navio lá embaixo esperando
que ela subisse. Apaixonante movimento de água e de navios,
baixando, subindo, seguindo em frente, lentamente, até chegar ao
porto e atracar.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
No hotel, simpático, no centro da cidade, deixamos nossa
bagagem, saímos em seguida, curiosos de conhecer a cidade. Na
portaria vimos um cartaz anunciando a estréia de um show de
artistas brasileiros.
A hora marcada, aliás, muito antes da hora marcada, lá
estávamos naquele imenso teatro ao ar livre. As cadeiras vagas ao
nosso lado em seguida foram ocupadas. O rapaz moreno que sentara
ao lado de Jorge tinha ar de brasileiro. Não só era brasileiro como
baiano, soubemos depois, no intervalo do show, quando ele se
apresentou. Seu nome era Miguel Franco, morava no Panamá com a
mulher e filhos, a família toda fora assistir ao show dos brasileiros,
matar saudades.
Espetáculo bonito, entusiasmava panamenhos e americanos,
passageiros do navio que lá estavam. Ouvindo as músicas tão nossas
conhecidas, as danças tão sensuais, nos sentíamos mais próximos do
Brasil.
No intervalo, Jorge viu-se rodeado de brasileiros que o
reconheceram, não sabíamos que haviam tantos vivendo no Panamá.
Encontro providencial, Miguel Franco, que se revelou amigo de
Camafeu e de Carybé, nos deu todas as dicas da cidade, o que ver e
onde ver... Soubemos por ele que a senhora do ministro da Cultura,
Jayme Ingram, era uma pianista brasileira, Nelly Ingram.
Eu estava interessada em comprar trabalhos dos índios cunas,
as molas, trabalhos feitos com tiras de tecidos de cores variadas,
costuradas a mão, formando desenhos, verdadeiras obras de arte. Eu
já vira almofadas e até peças de vestidos, como bolsos, golas, barras,
feitos com molas. Ao desembarcar, ainda no porto, eu as vira
expostas ao lado de um índio que as vendia.
Aconselhados na portaria do hotel, fizemos uma excursão à
Ilha de San Blás, comarca indígena, onde os cunas vivem e
trabalham. Seria um experiência única, não podíamos perder tempo.
Na agência de turismo tivemos quase todas as informações: a
viagem era feita num avião de doze passageiros, trinta minutos de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
vôo até a ilha. O avião saía duas vezes por semana pela manhã e
voltava no final da tarde. O entusiasmo de Jorge era tão grande que,
mesmo sabendo que devia entrar num avião pequeno, não recuou. Ao
ver que a passagem, tirada pela funcionária da empresa, era de ida e
volta para o mesmo dia, Jorge reclamou: Não quero voltar no mesmo
dia de jeito nenhum, quero ficar lá, tenho tempo de sobra. A moça do
guichê fez uma cara admirada, todos voltam no mesmo dia, disse,
mas, como não explicou mais nada, marcamos nossa volta para dali a
três dias.
Saímos num avião lotado com um grupo de turistas franceses
e um guia. Pousamos numa pista cercada de torres de controle, ao
lado de uma espécie de quartel. Achamos que era quartel pois havia
soldados por lá. Mais adiante um restaurante, e mais nada. Cadê os
índios?, perguntei admirada ao guia da excursão. Estávamos numa
base militar e para ver os índios devíamos ir de lancha a outra ilha.
Seguimos o guia ao restaurante onde, numa sala reservada,
ele costumava dar aos excursionistas uma aula sobre os índios de
San Blás, antes de ir visitá-los. Com ares professorais, o guia contou a
história da chegada dos índios na região, pescadores de pérolas,
pérolas que, segundo ele, abundavam por lá... Essa da abundância de
pérolas no Panamá era novidade para nós, mas, se o guia afirmava
com tanta veemência, é porque devia ser verdade. Todo mundo
prestando muita atenção, faziam perguntas, ele respondia às dúvidas
de alguns, à curiosidade de todos. Bem-falante, simpático, ouvimos
sua palestra durante uma interminável meia hora.
Antes da travessia na lancha que nos levaria aos cunas o guia
tinha ainda uma tarefa a cumprir: conduziu o bando todo, e nós atrás
a segui-lo, para visitar algumas malocas. A uns cem metros do
restaurante, no meio de um pequeno bosque, as divisamos, redondas,
bonitinhas, feitas de polidos troncos de árvores e cobertura de sapé.
Construídas pela companhia de turismo à guisa de dormitórios para
hóspedes, essas malocas, estava na cara, nunca haviam sido
habitadas por índios. Nem por índios, nem por ninguém, pois o cheiro
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
abafado do mofo, lá dentro, dizia tudo. A cama de casal, bem
arrumadinha, e os lençóis com vestígios de bolor estavam à nossa
espera, seria nessa cama, com certeza, que devíamos passar a noite.
Aqui eu não durmo, nem morta, cochichei ao ouvido de Jorge. Vamos
primeiro ver como é a ilha dos índios, depois a gente resolve, disse
ele.
A ilha dos índios, onde eles viviam e trabalhavam, era outro
blefe, não havia nada de interessante a ver. Acostumados a essas
visitas de turistas curiosos, a lhes fazer perguntas idiotas, a lhes
encher o saco, eles nem nos deram confiança, ficaram na deles, na
sua pobreza, no seu trabalho. Quanto às molas que eu pretendia
comprar, não havia uma sequer, quanto a pérolas, nem o rastro. Os
trabalhos prontos eram levados para a cidade, vendidos lá, e quanto
às pérolas, que pérolas?
Somente agora entendíamos a surpresa da moça do guichê ao
saber que pretendíamos passar algumas noites na ilha. Na lancha, ao
voltarmos para a base, onde iríamos almoçar, já não tínhamos
dúvidas, estava decidido, voltaríamos naquele dia mesmo, nem
pleitearíamos a restituição do dinheiro pago pelas três noites.
Queríamos voltar mas não conseguimos, nossos lugares no avião já
estavam reservados, seriam ocupados por dois oficiais da base. Nem
adiantou insistir.
Depois de horas lutando contra mosquitos que nos atacavam,
dispostos a nos devorar, naquela maloca de lençóis úmidos,
cheirando a bolor, desistimos de dormir, saímos andando e, sentados
num degrau do restaurante fechado, passamos o resto da noite
contando estrelas no céu. Contando estrelas ou procurando nossas
estrelas? Por onde andavam elas que não nos socorriam? A minha,
que dona Angelina, minha mãe, afirmava ter nascido comigo e a de
Jorge que, segundo Lalu, era bem mais poderosa que a minha. Só em
pensar que devíamos passar ainda duas noites naquele horror,
perdêramos a graça.
Tudo aconteceu quando menos esperávamos. O dia já estava
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
alto quando nosso mau humor foi interrompido pelo ronco de um
avião. Um teco-teco descia, pousou na base. Vinha buscar um
soldado que sofrera um acidente, precisava de socorro.
Nossas estrelas tardaram mas não falharam. Apareceram
iluminando o sol do meio-dia, trazendo o aviãozinho que nos levaria
dali. Nesse teco-teco embarcamos de volta, aliviados, felizes da vida.
A notícia da presença de Jorge no Panamá correra e à nossa
espera, no hotel, várias mensagens, inclusive um convite do ministro
da Cultura, Jayme Ingram e senhora, nos convidando para um jantar.
Nossa estada no Panamá chegara ao fim. O jantar na casa de
Nelly e Jaime Ingram fora dos mais agradáveis. Conhecemos, nessa
noite, intelectuais e artistas panamenhos e brasileiros da Embaixada
do Brasil. Não pudemos aceitar mais nenhum convite, nosso navio já
estava chegando e partiria em seguida.
Antes de embarcar só tivemos tempo de combinar um almoço
com Miguel Franco e sua família. Com eles estava uma senhora,
leitora de Jorge, amiga do casal. Notei que a moça falava de boca
fechada e me impressionei. Miguel me explicou que ela fazia regime
para emagrecer utilizando um método muito empregado no Panamá,
método esse que os médicos diziam ser único e infalível: colocavam
uma armação nos dentes do paciente, trancando-lhe a boca,
permitindo-lhe apenas a ingestão de líquidos. Mas ela é gorda,
comentei com Miguel, parece que a boca trancada não está
adiantando... Miguel riu: E que ela toma, com um canudinho, todos os
dias, litros de Coca-Cola.
Há vários anos, com Telma, Miguel Franco voltou a viver na
Bahia. Amigo de Camafeu, de Carybé, nosso amigo.
Novamente atravessaríamos o canal, rumo ao Atlântico,
viajaríamos a noite inteira. Faríamos uma escala, pela manhã, em
Colón, onde o navio permaneceria algumas horas, o tempo suficiente
para que os passageiros, aproveitando a vantagem nos preços da
zona franca, pudessem fazer suas compras.
Não perdi tempo. No porto livre de Cristóbal, comprei o que
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
desejava: molas, as mais belas; uma câmera fotográfica com várias
lentes e uma filmadora com as quais pretendia fotografar e filmar a
cidade de Cristóbal Colón.
Infelizmente, não pude fotografar nem filmar nada, pois as
compras feitas na zona franca só eram entregues ao comprador
dentro do navio, na hora do embarque. Se não pude utilizar meus
aparelhos em terra, em compensação, durante a viagem para a
Bahia, no belo e luxuoso transatlântico, infinitamente melhor do que o
primeiro, fotografei, filmei, me esbaldei. Como não me esbaldar, com
tais companheiros de viagem? Verdadeiro buquê de velhinhos e
velhinhas sapecas, exemplo de amor à vida, provando não haver
limite de idade para aproveitá-la nem para se amar.
CARTAGENA
Fotografei e filmei meus velhinhos no navio, fotografei em
Cartagena, nossa primeira escala depois da saída de Colón.
Prevenidos por Carmem Balcells — nossa amiga e agente
literária em comum — de nossa passagem pela Colômbia, Mercedes e
Gabriel Garcia Márquez nos esperavam no porto de Cartagena, terra
natal de Gabriel.
Com o casal Garcia Márquez passamos o tempo todo da escala
do navio. Almoçamos na casa dos pais de Gabo, passeamos pela
cidade e pudemos constatar o prestígio, o respeito e o amor daquele
povo pelo seu escritor maior.
Personagem de vários mundos, com moradas em algumas
partes, o casal conservava um apartamento em Cartagena, para
quando pudessem aparecer. O apartamento ficava localizado em
cima de uma casa comercial, uma loja que vendia calças femininas.
Paramos em frente, na calçada, para que eu os fotografasse. Na
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
fachada da loja, em letras garrafais, um anúncio: Tenemos pantalones
para todas las nalgas. Rindo, Jorge chamou a atenção do casal e Gabo
jurou nunca tê-lo notado antes.
MAIO DE 1981
Havia pouco mais de um ano, a Bahia fora festejada pelos
portugueses, artistas e homens de cultura da Bahia recebidos com
pompa e carinho, em Portugal. Era a nossa vez de retribuir:
recepcionaríamos o que de mais significativo havia na cultura
portuguesa que chegaria às terras baianas.
Sempre sob a batuta do maestro Nuno Lima de Carvalho, com
o apoio do governador Antônio Carlos Magalhães, a colaboração de
Paulo Gaudenzi que comandava o turismo na Bahia e a do prefeito
Manuel Castro, o programa da festa do Estoril na Bahia ganhou vulto
e enorme importância.
Uma exposição histórico-documental e bibliográfica,
organizada pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar e pelo
Arquivo Histórico Ultramarino, com dezenas de documentos, códices,
espécies cartográficas e iconográficas dos séculos XVI a XIX sobre a
Bahia e o nordeste brasileiro, foi mostrada no Gabinete Português de
Leitura, em Salvador.
Uma exposição de artes plásticas, realizada no saguão do
Teatro Castro Alves, nos trouxe os artistas: Manuel Cargaleiro, Carlos
Botelho, Bartolomeu, Charters de Almeida (Conde da Bahia), Dorita
Castelo Branco, autora da medalha comemorativa com a efígie do
padre Antônio Vieira, Júlio Resende, Francisco Relógio e Maluda; com
eles, os jornalistas Vitor Direito e Vera Lagoa. Do Sobreiro, chegou
nosso amigo José Franco com sua mulher, artista ela também, dona
Helena. José Franco trazendo, para a exposição, suas peças de
cerâmica.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
A TAP, comandada na época pelo engenheiro Santos Martins,
deu contribuição fundamental para o sucesso do acontecimento. Sem
a liberação de peso para o transporte das obras de arte, do material
da culinária portuguesa e as passagens dos participantes, essa
manifestação de intercâmbio cultural entre os países irmãos não teria
sido possível.
Uma semana gastronômica portuguesa, no Hotel Othon,
ofereceu aos baianos o mais completo cardápio até hoje apresentado.
Houve a apresentação do Grupo de Folclore da TAP e uma
exposição de trajes regionais do Minho.
Verdadeira embaixada de 83 personalidades do mundo
artístico e cultural português desembarcou em Salvador. Jorge e eu
fomos ao aeroporto, o dia apenas amanhecia. Nesse vôo chegariam
amigos muito queridos: Fernando Namora que vinha para a
apresentação de uma grande exposição documental e bibliográfica de
Ferreira de Castro e pronunciar conferências. Com Namora chegava
nossa amiga Zita, sua mulher.
Também Amália Rodrigues, nossa querida, com sua voz
incomparável, participaria de um espetáculo no Teatro Castro Alves.
Espetáculo esse que teve um êxito estrondoso, levando para o Campo
Grande milhares de pessoas.
Recebemos, naquele início de manhã, nossos amigos José
Franco e Helena e os trouxemos em nosso carro para a cidade.
Franco estava encantado, assombrado com o calor e a areia fina e
alva que cobre as encostas da estrada nas imediações do aeroporto:
— Disseram-me que na Bahia já é inverno... — comentou José
Franco.
— Isso mesmo — disse Jorge, apontando as alvas areias das
dunas —, lá está a neve, e apenas entramos no inverno.
— Neve? — assombrou-se Franco.
Em seguida, dando-se conta de que o amigo pilheriava,
também riu:
— Com esse sol... ela estaria derretida há muito... Franco
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
ainda tinha uma curiosidade a satisfazer:
— E cá, no inverno não faz frio, pois não?
— Não, na Bahia nunca faz frio... — dissemos. Cada vez mais
intrigado, Franco perguntou:
— Então, quando é que deitam as batatas?
— Quando der vontade — respondeu Jorge, rindo.
— Então, não pode haver pobreza neste país... — concluiu
nosso amigo.
O rádio tocava música portuguesa. Aliás, durante uma semana
antes e outra depois do evento, o tema de fundo da programação
local, das rádios e televisões, era Portugal.
Para nós não podia haver maior alegria do que receber em
nossa casa velhos e queridos amigos e para eles fizemos um almoço:
começando pelo incansável Nuno Lima de Carvalho com sua Clarinda,
José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras, com Maria José,
sua mulher, ambos nossos queridos; Manuel Telles, que contribuiu
com seu apoio ao sucesso da Semana da Bahia no Estoril, chegado
com Maria Emília, sua mulher, recebia os agradecimentos dos baianos
e participava de nossa festa; Santos Martins com Graciete seriam
nossos convidados de honra, não fossem todos convidados de honra
as quase duzentas pessoas que vieram almoçar em nossa casa. O
etnólogo Amadeu Costa, bom amigo, de Viana do Castelo nos trouxe
duas palmas douradas, da Festa da Agonia, e o prefeito de Cascais
estavam entre os nossos convidados, em mesas espalhadas nos
terraços e jardins, entre tabuleiros de baianas fazendo acarajés,
oferecendo abarás e beijus de tapioca.
Mais numerosos eram os convidados brasileiros, a começar
pelo governador Antônio Carlos, o prefeito Manuel Castro, Paulo
Gaudenzi, Carybé e Nancy, Calasans Neto e Auta Rosa, Carlos Bastos
e Altamir, James Amado e Luiza, Mário Cravo e Lúcia, Jenner e Luísa,
Floriano e Alice, Lev Smarchewski e Quinquinha, Gilberbet Chaves e
Sônia, Mirabeau, Vitor Gradim e Grace, para citar apenas alguns
nomes.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Vitor e Grace, maravilhosos anfitriões da Bahia, costumam
abrir as portas de sua casa, no Morro da Paciência, aos amigos no dia
2 de fevereiro, festa de Yemanjá. Lá do alto, da bela residência,
descortina-se um oceano inteiro e a procissão do presente à bela
sereia, no dia de sua festa.
Em seu jardim, Grace Gradim construiu um forno onde queima
cerâmicas, peças feitas com amor por suas mãos de artista.
Na casa do Morro da Paciência refugiou-se José Franco nessa
Semana da Bahia. As peças trazidas de Portugal foram vendidas no
primeiro dia da exposição, êxito absoluto, muita gente querendo
comprar. Grace ofereceu-lhe ateliê e forno onde o ceramista do
Sobreiro criou muitas peças, novas figuras de saloios, que em seguida
também foram vendidas.
CIDADÃO SOTEROPOLITANO
Ainda uma vez, há uns poucos anos, festejamos aqui, em
nossa casa do Rio Vermelho, o cidadão Nuno Lima de Carvalho,
responsável e idealizador da Semana da Bahia no Estoril e da Semana
do Estoril na Bahia. Aplaudimos a Câmara de Vereadores de Salvador
que lhe conferira, na ocasião, o título de Cidadão Soteropolitano ou,
para quem não conhece a palavra, cidadão da cidade do Salvador,
um filho da terra.
O presidente Mário Soares encontrava-se na Bahia e veio à
homenagem que prestávamos ao seu concidadão. Veio ele e vieram
altas autoridades portuguesas e brasileiras, a começar pelo
embaixador de Portugal no Brasil, do embaixador do Brasil em
Portugal e pelo governador do estado.
Almoço sem protocolo, num dia quente de verão, todo mundo
tirou paletó e gravata, Mário Soares, pessoa mais simples e informal
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
do mundo, foi o primeiro a dar o exemplo.
Por falar na simplicidade de Mário Soares, ocorreu-me contar
um fato sucedido em Paris e para isso peço licença e me desculpo por
interromper o que contava.
Estávamos passando uma temporada em nosso apartamento
em Paris, quando Jorge adoeceu. Nessa mesma ocasião chegava à
França, em visita oficial, o presidente Mário Soares. A cidade
engalanou-se com bandeirinhas portuguesas e pela televisão o vimos,
com dona Maria de Jesus, desembarcar do avião pisando em tapete
felpudo, vermelho, recebendo todas as honras que cabem a um
estadista estrangeiro.
Recebemos um convite assinado pelo presidente Mitterrand e
senhora, para jantar no Palais de L´Elysée em homenagem ao
presidente português. Jorge estava doente, como já disse, e eu
respondi explicando o motivo de nossa ausência no jantar.
No dia seguinte, um telefonema da Embaixada Portuguesa nos
pedia agendar uma visita do presidente Mário Soares e senhora a
Jorge Amado. A visita seria às seis da tarde e já às cinco o quarteirão
onde morávamos, no quai des Célestins e rue St. Paul, foi interditado.
De nosso apartamento, no quinto andar, às seis horas, ouvimos a
sirene do pelotão que abria alas para o presidente que se
aproximava. João Jorge, que se encontrava conosco, desceu
rapidamente para receber as ilustres visitas no portão de entrada.
Mário Soares pediu aos membros da comitiva que os
aguardassem lá fora e, com Maria de Jesus, subiu ao nosso
apartamento.Tirou o paletó em seguida, refestelou-se numa poltrona,
livrou-se dos sapatos e, enquanto na rue St. Paul comitiva e curiosos
o aguardavam, lá em cima ele descansava os pés, batendo um papo
descontraído com o amigo.
Volto ao almoço oferecido ao mais jovem soteropolitano, Nuno
Lima de Carvalho e à sua bela Clarinda, num dia de grande calor, em
nossa casa do Rio Vermelho, quando cerca de duzentos convidados
vieram felicitá-lo e nos alegrar.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
No almoço a Nuno, tivemos um convidado muito especial o
doutor Aloysio Campos da Paz, diretor e criador dos hospitais Sarah,
da Associação das Pioneiras Sociais, hospitais de primeiro mundo,
atendendo, indiscriminadamente, a pobres e ricos, sobretudo, gente
pobre que jamais poderia pagar um tratamento como o que recebe
no Sarah. A Bahia tem o privilégio de possuir um desses hospitais. Dr.
Aloysio estava de passagem por Salvador e nos deu a honra de sua
presença. Após o almoço, Jorge e José Aparecido de Oliveira, nosso
embaixador em Portugal, que são conselheiros da Associação,
acompanharam o presidente Mário Soares a uma visita ao Sarah.
Queriam mostrar ao amigo, velho lutador pela causa dos deserdados,
o que já tínhamos de bom e de positivo em nossa terra.
Mário Soares percorreu as dependências do hospital, falou com
os pacientes e, ao despedir-se, foi entrevistado pela televisão, que
desejava saber sua opinião sobre o hospital. Mais do que
impressionado, emocionado, disse jamais ter visto nada que se lhe
comparasse: É bestial! Coisa de primeiro mundo. José Aparecido de
Oliveira aproveitou para contar o chiste que corria em Portugal: Deus
esteve em todos os lugares, mas antes lá esteve o doutor Mário
Soares.
Quem leu a coluna de July, em A Tarde, depois desse almoço
ao qual ela compareceu, aliás comparece sempre, é nossa amiga,
ficou a par do menu e dos convidados presentes, com a lista
completa. Terezinha Cardoso, em sua página dominical do mesmo
jornal, descreveu com imagens poéticas o que viu, estampou fotos
das personalidades presentes, instantâneos batidos por ela própria.
Mário Soares chegara acompanhado de oficiais que faziam
parte de sua comitiva. Entre eles, um simpático oficial da Marinha
que, sufocado em seu uniforme de gala, chamou-me de lado:
— Estou a morrer de calor, sufocado... — me disse. — Vejo
que estão todos em mangas de camisa...
— Pois não faça cerimônia — disse-lhe —, tire seu dólmã.
— Não posso, minha senhora, não tenho nada por baixo,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
precisaria que me arranjasse um T-shirt.
Da gaveta de camisetas de Jorge, escolhi uma com desenho de
Miro que entreguei ao oficial. Ao vê-lo com a camiseta, Paloma
perguntou-lhe se havia estado em Barcelona, na exposição de
cerâmica no centenário de Miro onde ela comprara uma igualzinha à
dele. Não estive, não senhora, e creio que estou a vestir a que a
senhora comprou, pois foi sua mãe quem ma emprestou. E era. A
empregada colocara por engano na gaveta de Jorge a camiseta de
Paloma e eu, na afobação, não reparara. Encontrei esse oficial em
outras cerimônias e ele nunca deixou de comentar a história da
camiseta de Paloma que o salvou de morrer sufocado, na Bahia, no
dia da homenagem a Nuno Lima de Carvalho.
ACERVO COBIÇADO
A carta vinha da Universidade de Boston. Assinada por um
professor, falava em nome da universidade, pedindo a Jorge Amado
que recebesse uma comissão de professores que voaria para a Bahia,
especialmente para conversar com ele sobre um pedido de doação de
seu acervo para a universidade americana.
O acervo de Jorge, material precioso, composto de centenas de
traduções de livros seus para cinqüenta e tantas línguas, em várias
edições; artigos do autor e sobre o autor, recortes de jornais e
revistas, teses de doutorado sobre sua obra, vindas de várias partes
do mundo; centenas de fotografias e negativos; retratos e caricaturas
do escritor, retratos de personagens dos romances vistos por artistas
renomados como, por exemplo, Dona Flor vista por Floriano Teixeira e
José de Dome, Tereza Batista vista por Calasans Neto, Gabriela vista
por Di Cavalcanti; o próprio Jorge Amado visto por Carybé, Portinari,
Carlos Scliar e Calasans Neto, sem esquecer a pintura dos
admiradores anônimos que, mesmo sendo amadores, quiseram
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
expressar seu carinho retratando seu autor e seus personagens.
O material, aumentando a cada dia, há mais de meio século,
invadia armários, estantes e gavetas. Nossa casa tão grande tornava-
se pequena para conter esse mundo de coisas, mas sobretudo
tornava-se cada vez mais difícil a sua catalogação, conservação e a
preservação dos livros e documentos, dos filmes e fotografias,
ameaçados pela umidade e em vias de destruição.
Os americanos da Universidade de Boston acenavam com um
departamento especializado em preservação de documentos e livros,
com salas climatizadas e pessoal qualificado na separação e na
classificação do material. Material que seria consultado pelos
estudantes da universidade. Haveria uma exposição permanente,
com vitrines, enfim, tudo que o nosso sacrificado acervo estava
necessitando.
Proposta tentadora, porém Jorge nem precisou refletir, não
podia mandar para fora do país um bem que, por direito, devia ficar
no Brasil. Recusou a proposta da Universidade de Boston.
Não tardou a surgir outra proposta. Desta vez era a USP, de
São Paulo, melhor credencial impossível, que pleiteava os arquivos de
Jorge Amado. Os planos para o aproveitamento do imenso material
estavam prontos. O acervo ficaria em boas mãos, preservado,
separado e catalogado, exposto em ambiente climatizado, à
disposição de interessados para pesquisas e estudos. Desta vez Jorge
se entusiasmou, a conversa era outra, seu acervo permaneceria no
Brasil e eu senti que ele estava propenso a mandar tudo para São
Paulo.
Me alarmei. Embora paulista, não achei justo que um material
tão rico, inspirado pela Bahia, fosse embora daqui, herdado por São
Paulo. Disse a Jorge o que pensava e ele retrucou: E você prefere que
tudo se estrague, se acabe de vez? Ele não pensava isso de mim,
sabia muito bem o que eu desejava: ver seus arquivos na Bahia,
cuidados e aproveitados pelos baianos. Porém, cético, ele não
acreditava no meu otimismo exagerado, a fazer planos, não contando
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
com obstáculos. Mesmo assim, ouviu minha opinião, concordou
comigo e recusou a proposta da USP: Não posso, meu acervo deve
ficar na Bahia, encerrou o assunto.
Com João e Paloma conversamos sobre a possibilidade de
criar-se uma instituição cultural que cuidasse de tudo. Ouvindo a
conversa Jorge apenas disse: Só não quero que façam de minhas
coisas um museu. Claro que nossa intenção era criar um centro de
cultura, mas por onde começar? Fácil era desejar, difícil executar.
A frente da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Geraldo
Machado organizou uma exposição comemorativa dos setenta anos
de Jorge Amado e dos cinqüenta anos da publicação de seu primeiro
livro, O país do carnaval. Exposição iconográfica e biobibliográfica, no
foyer do Teatro Castro Alves. Montada por Myriam Fraga e Zilah
Azevedo, com fotografias e peças do acervo do escritor, a exposição
alcançou enorme sucesso. Logo surgiram convites para que ela fosse
levada ao Ceará, a Ilhéus, a São Paulo, na Bienal do Livro, e a Brasília.
Diante do interesse despertado por esse material, surgiu a
idéia do aproveitamento do acervo de Jorge para criar-se uma
instituição cultural que permitisse, ao mesmo tempo, catalogar,
conservar o material e garantir aos estudiosos e pesquisadores o
acesso a ele.
Pessoa de prestígio, poetisa respeitada, nossa amiga Myriam
Fraga já andara sondando sobre a possibilidade da criação de uma
Casa Jorge Amado, mas não conseguira.
Soubemos que o reitor da Universidade Federal da Bahia,
Germano Tabacof, estava interessado no assunto. Com a sua
colaboração poderíamos tocar o plano avante. Com Germano Tabacof
— James Amado, desejoso de ver o problema resolvido, porém cético
como o irmão —, Myriam, Paloma, Pedro Costa, João e eu nos
reunimos e decidimos que a primeira coisa a fazer era procurar casa.
Depois iríamos atrás do dinheiro para o primeiro impulso.
Quem descobriu que o casarão do Largo do Pelourinho estava
vazio havia muito foi João Jorge. O casarão do século XIX, o mais belo
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
do Pelourinho, era ideal para o nosso plano. A Casa de Jorge Amado
ficaria no coração do centro histórico, fonte das histórias de seus
romances, onde circulavam seus personagens. Conseguirmos essa
casa seria ainda um milagre da Bahia.
A casa enorme era, no entanto, dividida em vários imóveis: um
deles pertencia ao Banco do Estado que já o utilizara com uma de
suas agências. Ao Baneb pertencia ainda parte do casarão vizinho, na
ladeira ao lado. Ainda um outro imóvel pertencia ao Estado.
Myriam Fraga procurou em seguida o presidente do Baneb,
Lafayette Ponde Filho, que, ao saber do plano de fazer-se uma
fundação contendo o acervo de Jorge Amado, mostrou-se sensível à
iniciativa e tomou as necessárias providências para a doação dos
imóveis pertencentes ao banco que iriam abrigar o patrimônio da
nova instituição. A outra parte do prédio pertencia ao Estado.
Na ocasião o governador era João Durval. Com o apoio de
Antônio Carlos Magalhães, falou-se com ele, que não teve dúvidas em
assinar um documento de cessão de uso, por dez anos, da casa do
Pelourinho
Mas nem tudo foi tão fácil como pode parecer. Ao visitarmos o
casarão encontramos, já pregada ao lado de fora da porta, uma placa
do Instituto Mauá. Dentro, no recinto principal, várias vitrines
indicavam a chegada de mudança.
Sem ter conhecimento do acerto do governador com a
instituição Jorge Amado, dona Yeda Barradas, esposa do governador,
havia cedido a casa ao Instituto Mauá. Situação embaraçosa, não foi
fácil desfazer o mal-entendido, levou algum tempo até que a decisão
fosse tomada a nosso favor e a casa nos fosse entregue.
Em péssimo estado de conservação, o casarão precisava de
grandes reformas, todo o sistema de eletricidade devia ser mudado e
tudo o mais também.
Não foi difícil conseguir, através de nosso amigo Renato
Martins, um dos diretores da Odebrecht, que a poderosa construtora
se responsabilizasse pelo trabalho de restauração da casa.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Teríamos o prédio tinindo de novo, porém sem um único
tostão furado para pôr de pé a instituição. Por intermédio de Paloma,
assessora do presidente José Sarney, consegui uma audiência com
ele no Palácio do Planalto e viajei para Brasília.
Velho amigo nosso, José Sarney ouviu tudo o que eu tinha a
lhe dizer sobre o plano. Sem fazer objeções aplaudiu a iniciativa,
dando-nos uma soma, não grande, porém suficiente para
começarmos a nos movimentar.
A 2 de julho de 1986 José Sarney e Marly ofereceram um
grande almoço no Palácio da Alvorada. Mais tarde, no Palácio do
Planalto, em presença de numerosos amigos e personalidades, foi
instituída a Fundação Casa de Jorge Amado, Germano Tabacof,
presidente, Myriam Fraga, diretora executiva. Ao mesmo tempo, o
presidente da República promulgava a lei de incentivo à cultura que
passou a ser conhecida por Lei Sarney.
Sabendo o quanto eu ficaria feliz, sensível, boa amiga, Marly
me fez uma surpresa: convidou meu filho Luiz Carlos que vive em São
Paulo e eu, rodeada pelos meus três filhos, apaguei as setenta
velinhas de um grande bolo, outra surpresa de Marly, pelo meu
aniversário, naquele dia.
INAUGURAÇÃO DA CASA
A 7 de março de 1987 foram inauguradas as instalações da
Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho, depois de
quase um ano de sua instituição em Brasília. Jovens funcionárias da
universidade atiraram-se à tarefa de separar cartas e documentos.
Bibliotecárias recém-formadas, como Maried Carneiro e Rosane
Rubim, até hoje fiéis funcionárias da Fundação, catalogaram livros,
documentos e negativos fotográficos. Claudius Portugal, diretor-
adjunto, coordenando tudo, Adenor Gondim fotografando. Jacira
Oswald foi a responsável pelo projeto arquitetônico da reforma da
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
casa. Ainda outras pessoas, contratadas ou voluntárias, trabalharam
para que a Fundação começasse a funcionar.
Compareceram à festa de inauguração da Casa o presidente
José Sarney e Marly, assim como o governador, já em fim de
exercício, João Durval com Yeda, Antônio Carlos Magalhães com
Aríete, o governador de Brasília, José Aparecido de Oliveira com
Leonor, Walter Moreira Salles, o ministro Marcos Vinícius Vilaça com
Maria do Carmo, Fernando Sabino, Aldemir Martins, Roberto Santos
com Maria Amélia, Ângelo Calmon de Sá com Aninha, Regina de Melo
Leitão, Celso Furtado, Renato Martins com Norma, Jorge Calmon, o
recém-eleito governador Waldir Pires com Yolanda, Mário Kertesz,
Newton Rique com Regina, Manuel Castro com Neusa, Edivaldo
Boaventura com Solange, Zitelmamm de Oliva com Lygia, Dmeval
Chaves com Inas, Cláudio Veiga com Mary, Wilson Lins e Anita, entre
tantas personalidades. Um dos instituídores da Fundação, Edwaldo
Pacote, veio do Rio para a festa e ofereceu à Casa um belíssimo
quadro do pintor Siron Franco. O último coronel do cacau, Raymundo
de Sá Barreto com Itassussê, vieram de Ilhéus. Alfredo Machado 'com
Glória chegaram do Rio de Janeiro.
Não citei aqui outros amigos da Bahia, amigos que nos
acompanham e estão presentes desde o início destas minhas
memórias, como, por exemplo, Calasans Neto que pintou um enorme
e magnífico retrato de Jorge, um velho marinheiro, do qual foram
feitos cartazes; Carybé que ofereceu para a Fundação uma escultura
em placa de concreto com figuras das três raças que formam a nossa
identidade: o índio, o negro e o branco. Colocada na parede azul da
fachada, pouco acima de uma escultura de Tati Moreno, um Exu,
protetor da casa.
Dom Timóteo Amoroso Anastácio e Luiz da Muriçoca, do
candomblé da Muriçoca, deram suas bênçãos: A essa casa de cultura
que hoje abre suas portas, disse Dom Timóteo. Axé, disse Luiz da
Muriçoca, libertando uma pombinha branca que voou pela janela.
Emocionado, Jorge Amado proferiu algumas palavras de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
agradecimento: ... o que desejo é que nesta Casa o sentido da vida da
Bahia esteja presente e que isto seja o sentimento de sua existência.
Que ao lado da pesquisa e do estudo, seja um local de encontro, de
intercâmbio cultural entre a Bahia e outros lugares.
Junto à porta de entrada, uma placa de azulejos, desenhada
por Floriano Teixeira com texto de James Amado, diz:
CASA DE JORGE AMADO, NESTE LARGO DO PELOURINHO
CORAÇÃO DA BAHIA E DO BRASIL E DE SUA OBRA, FIEL À NOSSA
GENTE E AO NOSSO AMOR À LIBERDADE, TENDA DOS MILAGRES
PARA O ZELO DA CRIAÇÃO LITERÁRIA E O ESTUDO DA FICÇÃO BAIANA
E BRASILEIRA.
SEJA BEM-VINDO SE FOR DE PAZ
PODE ENTRAR
O ALMOÇO
Do Pelourinho, terminada a cerimônia da inauguração,
partiram os convidados para nossa casa da rua Alagoinhas onde
oferecíamos um almoço.
Convidamos cerca de trezentas pessoas, a começar pelo
presidente da República e sua comitiva, personalidades da Bahia e de
fora, artistas, instituidores da Fundação, amigos e jornalistas.
Jorge convidara para o almoço personagens da vida baiana,
não levando em conta se eram amigos ou inimigos, adversários
políticos ou não. Convidou a todos que quis convidar,
indiscriminadamente. Não tenho nada com isso, disse ele ao lhe
chamarem a atenção para a confusão que poderiam dar esses
encontros, cara a cara: Convido quem bem me parece e estou certo
de que em minha casa não haverá brigas.
As trezentas pessoas, com lugares marcados, em mesas
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
espalhadas pelo jardim, nos terraços e ao lado da piscina,
aumentaram para quase quatrocentas. Trabalho de Pedro Costa e
Paloma, responsáveis pela disposição das mesas e dos convidados.
Estava eu atendendo a uns e a outros, quando fui chamada à
porta. Os seguranças da guarda do presidente haviam barrado a
entrada de uma senhora que, sem saber do tal almoço, insistia em
entrar sem convite. Fui socorrê-la, tratava-se de Amália, nossa amiga
de Goiás, vinda diretamente do aeroporto, trazendo-nos mudas de
orquídeas para colocar nas árvores de nosso jardim.
Oferecemos aos convidados tira-gostos, pratos típicos e não
típicos, tais como: beiju de tapioca, acarajés e abarás servidos por
baianas, lindas. Mesmo com tanta gente a mais, o almoço deu e
sobrou.
Almoço alegre e descontraído, todos, indiscriminadamente,
amigos e inimigos, alguns ferrenhos adversários políticos, riam,
esquecidos das desavenças. Ao passar por Jorge, seu xará Jorge
Calmon lhe disse ao ouvido: Só mesmo você, seu Jorge Amado, seria
capaz de realizar tal milagre.
HÓSPEDES ESPECIAIS
Aguardávamos a chegada de um jovem casal de chineses que
seriam nossos hóspedes por uma semana, duas pessoas de nossa
maior estima: Ho-Ping e Ting-Li.
Conhecêramos Ho-Ping ainda bebê, na Tchecoslováquia, no
Castelo de Dobris, onde vivemos dois anos, exilados. Ho-Ping era filho
de Eva Siao, fotógrafa alemã, e do poeta Emi-Siao, na ocasião
representante da China no Conselho Mundial da Paz, na
Tchecoslováquia. Nessa ocasião, nascia Paloma e nos divertíamos
combinando um casamento de Ho-Ping o Pupsik, como era chamado
pela mãe, com a nossa Palomita.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Anos mais tarde na China, em plena Revolução Cultural,
quando eram cometidas as maiores injustiças e crimes inomináveis,
Emi-Siao foi preso e passou dezesseis anos na cadeia de onde saiu
enfermo para falecer em seguida.
Ting-Li, esposa de Ho-Ping, era filha de Liu Chão Shi, que fora
presidente da República Popular da China e assassinado durante os
terríveis anos do domínio do Bando dos Quatro.
Filhos de traidores, proibidos, pelo regime, de estudar na
China enquanto meninos, eles só sentaram em bancos escolares
quando, já adolescentes, partiram para os Estados Unidos. Parentes
que lá viviam os chamaram responsabilizando-se por sua manutenção
e estudos.
Ting-Li e Ho-Ping conheceram-se na Universidade de Harvard,
em Cambridge, onde estudaram e se formaram. Casaram-se e
trabalham em postos de responsabilidade em grandes empresas, em
Nova York.
Chamei Eunice, nossa antiga empregada, e pedi-lhe que
preparasse o quarto de hóspedes.
— Desta vez você vai se atrapalhar, Eunice — disse-lhe —, os
hóspedes são chineses, falam chinês.
Eunice riu:
— Atrapalho, nada... A senhora é que pensa. Se eles são
chineses eu vou entender o que eles falam.
— E você entende chinês, Eunice? — me assombrei com tal
revelação.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Entendo tudo. A senhora se lembra quando a dona Tisuka
andou por aqui? Pois eu entendia tudinho do que ela dizia, não perdia
uma palavra...
Eunice referia-se à consagrada diretora de cinema, Tisuka
Iamasaki, brasileira, nissei, que fora, aqui na Bahia, assistente de
Nelson Pereira dos Santos, na filmagem de Tenda dos Milagres e
vinha muito aqui em casa.
Na estante de livros do quarto em que o casal dormia, Ting-Li
encontrou traduções de Dona Flor e seus dois maridos em edição
americana e em chinês.
Nos intervalos dos passeios pela cidade, Ting-Li mergulhava na
leitura das duas traduções. Estávamos curiosos de saber a sua
opinião sobre a chinesa. Finalmente, ao fechar os livros, ela disse a
Jorge o que achara: As duas traduções são ótimas, apenas a chinesa é
mais romântica. A americana é mais sensual. Ela explicou: Por
exemplo, na versão chinesa, quando Dona Flor, depois do ebó que fez
para mandar Vadinho embora o vê partindo, desesperada, o chama
com o coração. Na versão americana ela o chama com a outra coisa...
Fazendo-se de desentendido, malandro, Jorge perguntou: Que outra
coisa? Ting-Li não se apertou: Com aquilo que tem debaixo das
calcinhas. E como se diz isso em chinês?, insistiu ele. Desta vez a
moça encabulou, apenas riu.
Casal adorável, cheios de vida, voltamos a vê-los ainda
algumas vezes: na China, em Nova York e em Paris.
SÃO PAULO
Infalivelmente, ao chegar a São Paulo, canto o início de um
hino que aprendi na distante infância: "São Paulo, terra querida, de
gloriosas tradições, aceite de vossa filha as sinceras saudações..."
Voltar a São Paulo sempre é motivo de satisfação para mim,
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
embora há muito não reconheça a terra em que nasci. Minha casa na
Alameda Santos número 8 já não existe, deu lugar a um enorme
edifício; a rua da Consolação e a avenida Rebouças, ruas dos meus
folguedos de criança, estão irreconhecíveis.
O motivo principal de minha alegria em São Paulo era rever
meus irmãos, meu filho e minhas três netas: Adriana, Camila e
Valéria.
Lalu costumava queixar-se das saudades do filho Joelson que
morava tão longe, em São Paulo. Eu achava graça da sua noção de
lonjura, até que, pensando bem, vejo que ela estava certa.
Falo em Lalu no passado, não toquei no assunto até agora,
porque me custa. Ainda me recuso a admitir que Lalu já não existe.
Na maior tristeza, peço licença para contar que em 1972, aos oitenta
e oito anos, Lalu nos deixou. Entrou em coma diabética, e em dois
dias se foi.
Ao voltarmos do cemitério onde a deixamos, a única coisa que
me ocorreu para atenuar o sofrimento de Jorge, distender seus nervos
—nem sei mesmo se tinha cabeça para pensar, o que fiz, certamente,
foi instintivo —, enchi a banheira de água morna e, com um sabonete
perfumado, dei-lhe um banho, o banho que a mãe daria pela última
vez no seu filhinho.
Os AMIGOS CONFABULAM
Ouvi muitas vezes Jorge dizer que jamais escreveria suas
memórias. Ele e seus amigos Pablo Neruda e Ilya Ehrenburg
costumavam dizer isso.
Em anos passados, no apartamento de Ehrenburg, em Moscou,
a rua Gorki número 8, os três amigos conversavam, nunca vou
esquecer. Somos homens de mil histórias, diziam, vivemos muito.
Vimos coisas que pouca gente viu. Conhecemos povos os mais
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
distantes. Tivemos algumas alegrias e grandes decepções.
Aprendemos a conhecer os homens, os falsos e os verdadeiros, a
bondade e a maldade. Damos o que temos de melhor, por dias
melhores. Temos compromissos com nossos princípios, com nós
mesmos. Nunca poderemos escrever um livro de memórias.
Neruda costumava fazer apontamentos. Ehrenburg também.
Jorge nunca fez apontamentos, sempre disse que o que não é
importante para ele não deve ser lembrado e as coisas importantes
ele guarda na cabeça, não precisa anotar.
Depois de sua morte, a filha de Ehrenburg, Irina, reuniu os
escritos do pai e publicou suas memórias em vários tomos.
Depois da morte de Neruda, Matilde, sua mulher, publicou,
como já se sabe, o livro de memórias de Pablo Neruda, Confesso que
vivi.
NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM
Temos um pequeno e aconchegante apartamento em Paris.
Ainda uma vez o imperialismo americano contribuiu para essa
aquisição, pagando um adiantamento alto pelo contrato de
publicação de Tieta do Agreste. Foi a conta, o dinheiro deu certinho,
nem um tostão a mais, nem um tostão a menos. Já não precisamos
ficar em hotéis quando vamos a Paris.
É nesse apartamento, no Marais, ao lado do Sena, que
costumamos nos refugiar buscando paz para o nosso trabalho. Do
janelão de nossa mansarda avistamos a Notre-Dame e a Torre Eiffel,
podemos acenar para Georges Moustaki que do terraço de seu
apartamento, na Ile Saint Louis, nos acena. Foi nesse apartamento
que Jorge teve o estalo, resolveu escrever, passar para o papel, os
apontamentos que trazia na cabeça, fervendo a ponto de transbordar.
Me entusiasmei:
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Você então resolveu? Maravilha! Vai escrever um livro de
memórias?
Jorge revidou ao meu entusiasmo, bruscamente:
— De jeito nenhum! Não vou escrever um livro de memórias,
não senhora. Não invente. Vou fazer um livro de apontamentos. Já
tenho até título e subtítulo.
Sentou-se à máquina, papel branco na frente, escreveu:
NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM — Apontamentos para um livro de
memórias que jamais escreverei.
Paloma, Pedro e as meninas moravam em Paris. Pedro
trabalhava num escritório de arquitetura, Mariana e Cecília
estudavam lá.
Ao chegar ao nosso apartamento para brindar com o pai a
grande novidade, Paloma encontrou-o debruçado sobre a máquina, os
dois indicadores batendo com rapidez e força no teclado, como quem
está com pressa, várias anotações já escritas sobre a mesa.
Eu havia apenas começado a escrever Chão de meninos. Ia ter
que largar meu trabalho para ajudar Jorge. Paloma se ofereceu: deixa
comigo, mãe, eu passo tudo pelo computador, num instante, vou me
regalar. E pela primeira vez deixei de me deliciar batendo os originais
de Jorge, entregando à minha filha a agradável tarefa.
Jorge trabalhava dia e noite, as lembranças se atropelavam
sem ligar para a ordem cronológica dos fatos, numa corrida
desabalada, de quem quer chegar primeiro. As recordações
apareciam inclusive durante o sono e mesmo dormindo ele tomava
notas no primeiro pedaço de papel que encontrava à mão.
A coisa tomou tal vulto que Paloma e Pedro resolveram dar
uma ordem nos capítulos. Faziam fichas de cada assunto tratado e as
iam pregando na parede da sala. Assuntos e datas colocados em
cartões de cores diferentes davam ao quadro a idéia de um quebra-
cabeça, de um puzzle. Isso facilitaria muito a ordem dos capítulos,
pois, ao terminar o livro, tudo passado a limpo, Paloma faria um
índice que remeteria as pessoas citadas à página de citação.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Carmem Balcells, agente literária de Jorge, chegara de
Barcelona para falar com ele e se assombrou ao deparar-se com o
estranho e enorme quadro de fichas coloridas, presas com tachas de
cores variadas, que cobria a parede: Não posso acreditar, disse
encantada. Nunca vi organização semelhante. Uma beleza! É único!
Antes de sentar-se para trabalhar, todas as manhãs, Jorge
consultava o quadro e partia para novas aventuras.
FÔLEGO PARA FALAR SOBRE A DESCOBERTA DA
AMÉRICA
O livro já andava pela metade, quando Jorge recebeu uma
proposta da Itália. Queriam uma história sobre a descoberta da
América, para um pequeno livro. O assunto do dia na ocasião eram as
comemorações dos 500 anos da Descoberta da América. A proposta
que os italianos faziam era sedutora e Jorge resolveu tomar um fôlego
de suas anotações, seria até bom, e em poucos dias escreveu: A
descoberta da América pelos turcos.
VIAGEM PELO MAR NEGRO
O Navegação já passava das quinhentas páginas. O que tenho
agora a contar é pouco, quase nada, disse Jorge. Preciso terminar e
sair, tomar um pouco de ar, estou muito cansado. Fez um cálculo de
quanto tempo ainda precisava para encerrar o trabalho. Num mês,
não mais, eu liquido o assunto e então vamos sair por aí afora de
navio, disse ele. Convidamos Misette, ótima companhia, velha
companheira de viagens, e compramos passagens para zarparmos
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
dentro do prazo previsto. Faríamos uma bela excursão pelo mar
Negro.
O Cunard Princess sairia do porto de Atenas, viajaríamos pelo
mar Egeu, navegaríamos pelo mar de Mármara, atravessaríamos o
estreito de Bósforo, antes de entrarmos no mar Negro
Jorge deu o livro por terminado, entregou-o a Paloma para o
remate final, com o devido índice dos personagens. Mesmo tendo
dado o livro por terminado, eu senti que ele ainda não estava
satisfeito. Jorge estava precisando de um descanso depois de
escrever seiscentas páginas. Essa excursão era necessária,
providencial.
Os dedos feridos das batidas nos teclados da máquina iam
cicatrizar e, ao voltar, se ainda quisesse trabalhar, já estaria em
condições.
ATENAS
Viajamos para a Grécia de avião, Jorge deixou a máquina, eu o
computador, íamos bem leves sem compromissos. Ficaríamos dois
dias em Atenas, hóspedes de nosso amigo, o embaixador do Brasil na
Grécia, Alcides da Costa Guimarães, filho. Na mansão da embaixada
encontramos ainda um querido amigo, cônsul do Brasil em Zurich,
René Aguenauer, que viera para nos ver.
Nós já conhecíamos Atenas mas assim mesmo passeamos com
nosso anfitrião e René, vendo coisas que só a gente da terra tem o
privilégio de conhecer.
Durante os passeios percebi em Jorge aquele olhar distante,
olhos de quem não está nem aí, olhar muito meu conhecido.
— Está pensando no livro? Claro que estava, pergunta óbvia.
— Logo que embarcarmos vou fazer uma nota de um negócio
que lembrei e mandar para Paloma por fax — respondeu-me ele.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Jorge escreveu a nota e foi escrevendo outras e mais outras de
fatos que lhe ocorriam e que ele não queria deixar de registrar. Não
tendo máquina de escrever ele escrevia a mão e em seguida eu
passava a limpo, com letra bem legível para facilitar o trabalho de
minha filha. Na pressa de escrever, sua caligrafia, verdadeira
garatuja, era de tal maneira complicada que, por vezes, nem ele
mesmo a entendia.
Cada remessa de capítulos pelo fax do navio ia acompanhado
de um bilhete de desculpas: Palé, minha filha, vá me perdoando tanto
trabalho que te dou... Em Paris, Paloma passava tudo a limpo e
devolvia para o navio as páginas para uma última revisão do pai.
Quando aconteciam novas correções feitas por ele, o que era comum,
o trabalho de ida e volta era dobrado.
O Cunard fez rápidas escalas em várias ilhas gregas. Em
nenhuma delas Jorge desceu, absorvido no trabalho. Eu saltava com
Misette, nem via nada direito na preocupação de voltar, dar
assistência a ele.
Agora passaríamos um dia inteiro em Istambul. Com Misette
havíamos estado na Turquia e adorado.
Insisti com Jorge para que saltasse conosco, ele havia gostado
tanto de Istambul... mas não houve jeito: Vão vocês e depois me
contem... Não adiantava insistir, ele estava ocupado demais com as
provas recém-chegadas, remetidas pela filha.
Em Istambul, Misette e eu fizemos o recorrido da cidade,
revendo coisas que tanto nos agradara. Resolvi entrar numa livraria.
Da vez anterior havíamos encontrado várias traduções de livros de
Jorge, edições piratas. Quem sabe, ainda há outras, disse a Misette.
Eu lembrava bem do logotipo da editora que publicara os livros e fui
procurá-lo na estante de traduções estrangeiras. Encontrei um livro
de Jorge, localizei-o pela fotografia na contracapa, aliás, fotografia
feita por mim. Perguntei ao livreiro se não havia outros livros do
mesmo autor e ele mandou buscar mais um no depósito.
Jorge fez uma pausa no trabalho para folhear as edições de
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Tereza Batista e Tieta do Agreste, em língua turca.
Num bilhete, Paloma nos contou ter recebido uma chamada da
Francetelecom estranhando o envio diário de fax de 15 a 20 páginas.
Estranhavam sobretudo pelo preço excessivo de fax enviados para
navios.
A próxima escala foi no porto de Varna, na Bulgária. Nem em
Varna Jorge saltou. Quando muito foi à amurada do navio dar uma
espiada, não viu nada.
Peço licença para não entrar em pormenores da viagem, das
festas, dos portos de escala, das graças de Misette. Aqui o cruzeiro
entra apenas como detalhe, não é difícil perceber, do que foi o
trabalho de Navegação de cabotagem.
Em Odessa Jorge resolveu descer, tinha mandado as provas
para a filha, esperava-as de volta para correções.
— Vou desenferrujar as pernas — disse.
Odessa, na Ucrânia, era nossa penúltima escala, antes de
Ialta, quando então regressaríamos.
Em Odessa fomos ver as impressionantes escadarias que
aparecem no filme: O encouraçado Potenkim e voltamos andando até
o navio.
Nem bem pisou no navio, Jorge lembrou de outras histórias e
foi lembrando de outras e mais outras até chegarmos a Veneza, fim
de nossa excursão.
Na véspera de nosso desembarque, acompanhando os novos
capítulos, Jorge mandou um bilhete que dizia: Palézinha, meu amor.
Aqui vai o último fax. O derradeiro. Juro pela alma de tua mãe que
não haverá outro...
No mesmo dia, chegou um bilhete de Paloma: Paizinho,
querido. Jure pela alma de tua mãe que a minha ainda está viva...
VENEZA
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Perambulávamos beirando os canais de Veneza, sentando na
Piazza San Marco, praça de nosso encanto. Fomos parar na Basílica
dei Santi Giovanni e Paolo. Lembramos que nessa igreja havíamos
assistido às obséquias de Stravinski, espetáculo inesquecível!
Os olhos de Jorge brilhavam.
— O enterro de Stravinski está no livro? — provoquei, sabia
que não estava.
— Vai estar — disse ele.
PEÇO LICENÇA AO MESTRE
Com a devida licença do Mestre, aqui transcrevo o último
capítulo que ele escreveu embora não se encontre na página 638, a
última do livro.
A nota escrita em Veneza faz parte de três funerais que o
impressionaram, se intitula KARACHI e está na página 341:
Com Aríete Soares acompanhamos em Veneza os funerais de
Stravinski, as obséquias na Basílica dei Santi Giovanni e Paolo,
oficiadas por meia dúzia de padres católicos e outros tantos popes
ortodoxos, uns e outros na pompa do ritual, a música do desvario, o
incenso em labaredas, o pássaro de fogo nos turíbulos, o coro em
língua russa, coisa de ver-se e de ouvir-se. A gôndola com o esquife
singra o rio dei Mendicanti no rumo do cemitério, a marcha fúnebre
se evola da nave da Basílica, cobre os canais e os palácios da
Sereníssima.
Ao receber esta última e derradeira nota, Paloma mandou seu
último e derradeiro bilhete: Paizinho querido: adorei a nota, está linda
demais! Só quero saber onde é que ficou a alma de minha mãe. Foi
para o brejo?
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
VOLTO A SÃO PAULO
Meus irmãos já morreram. Eu sou a última e única filha de
dona Angelina e de seu Ernesto que ainda teima em viver.
Em São Paulo tenho sobrinhos, alguns primos e meu filho Luiz
Carlos com sua família que, por viverem em São Paulo, muito longe,
segundo Lalu, e por circunstâncias da vida que nos impede, os vejo
pouco. Luiz Carlos e a família, quando podem e quando coincide
estarmos aqui na época, vêm passar uns dias conosco, na Pedra do
Sal ou na casa da rua Alagoinhas. As meninas, hoje moças, lindas, já
viajaram conosco pela Europa. Adriana e Camila já se formaram e
Camila até já se casou, nos dando a honra de sermos seus padrinhos.
Valéria, a mais nova, também em breve estará formada.
Continuo tendo motivos de sobra para me entusiasmar com as
viagens a São Paulo. Além de minha família, Joelson e Fanny, como já
foi dito, moram lá há muitos anos, assim como os filhos, nossos
sobrinhos, André, Paulo e Roberto. Nem têm conta os amigos de São
Paulo, são tantos que não me atrevo a enumerá-los, a lista seria
grande demais e no fim eu acabaria esquecendo alguém, talvez dos
mais importantes, como Jô Soares e Saulo Ramos, por exemplo.
Chegamos a São Paulo naquele ano de 1993, como sempre,
tendo pela frente um programa enorme, não posso esquecer.
Devíamos fazer uma tarde de autógrafos, Jorge assinando A
descoberta da América pelos turcos, e eu, Chão de meninos. O
lançamento de nossos livros seria na mesma livraria, no mesmo dia,
na mesma hora.
Do aeroporto seguimos diretamente para a livraria onde uma
fila enorme estava à nossa espera. Assinamos sem parar durante
várias horas. Só chegamos ao hotel tarde da noite, mortos de
cansaço. Ainda teríamos em São Paulo dois dias puxadíssimos de
entrevistas e programas de televisão. A duras penas, reservamos o
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
horário do almoço para estar com Luiz Carlos e as meninas, pois à
noite iríamos a um grande jantar em homenagem a Jorge, oferecido
pelo Rotary Club.
Depois de mais um dia esfalfante, exaustos, chegamos de
volta à Bahia. Coisa boa chegar em casa, não há nada melhor.
Costumamos dizer que o melhor de uma viagem é retornar à casa da
gente. Nesse dia, no entanto, não me senti tão aliviada, não estava
satisfeita. Jorge viajara calado e, embora não se queixasse, percebi
que ele não se sentia bem, mas preferi atribuir isso ao seu pavor a
viagens aéreas.
Não havia ninguém nos esperando em casa. João e Rízia, que
moravam conosco, ainda não haviam chegado. Apenas Jorginho,
nosso neto de nove anos, filho de João e Rízia, nos recebeu. Jorge
queixou-se, sentia-se incômodo, não quis jantar, foi deitar-se. Ao vê-lo
estirado na cama, gemendo, imaginei que ele podia estar tendo um
enfarto. Não havia muito tempo, Calasans Neto tivera uma ameaça
de enfarto e os sintomas haviam sido esses que Jorge sentia agora.
Fora Dr. Jadelson Andrade quem o socorrera. Conhecêramos o médico
nessa ocasião. Corri para o telefone, chamei-o.
Ele acabava de chegar em casa, vindo do consultório. Mal
tirara o paletó quando o telefone tocou. Eu o chamava, no maior
desespero. Enquanto eu falava, na sala, Jorginho, no quarto, fazia
companhia ao avô, vendo-o se retorcer de dor. Ciente do que se
passava, Jadelson deu-me o telefone do Hospital Aliança: Chame uma
ambulância com a maior urgência! Estou indo para aí.
Jorge foi salvo, não tenho dúvida, graças ao atendimento
imediato que teve. Jadelson veio da Barra ao Rio Vermelho em menos
de quinze minutos.
Debruçado sobre o paciente, examinando-o, o médico
transmitia ordens e eu as executava: telefonei para o hospital dando
instruções, providenciando um lugar na UTI, pedindo pressa à
ambulância que já estava a caminho mas custava a chegar. Mandei
Jorginho descer a ladeira, ir ao encontro dela, talvez perdida na
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
encruzilhada, lá embaixo, para indicar o caminho... E foi o que
aconteceu. Jorginho voltou na ambulância orientando o motorista que
chegou em seguida.
Há algo que me protege em momentos difíceis. Supero o
desespero, não me entrego, conservo o sangue-frio, não perco a
cabeça, colaboro. Minha mãe diria ser a proteção da estrela que me
ajuda, mas a quem chamei naquela noite, ao ver Jorge torcendo-se
em dores, sofrendo, escapando de meus braços, vendo-me impotente
diante da morte, foi dele que lembrei, de Deus. Não parei de repetir
seu nome, ai meu Deus! Ai meu Deus do céu!
No Hospital Aliança, hospital cinco estrelas, com a assistência
permanente de Jadelson Andrade, honra seja feita, Jorge conseguiu
sair-se dessa.
Comentando com Paulo Sérgio Tourinho, dono e responsável
por esse bem aparelhado hospital, inigualável de beleza e bom gosto,
com a obra de Francisco Brenand presente a começar do piso, teto e
paredes, às esculturas espalhadas por toda a parte, até a capelinha,
única, disse-lhe do meu encanto por esse hospital: Chego até a me
atrapalhar ao falar nele, chamando-o de hotel cinco estrelas, disse-
lhe. Paulo Sérgio riu: E preciso sempre acrescentar que são cinco
estrelas para todo mundo, para todas as camadas sociais. Atendemos
aqui pobres e ricos, você pode constatar com seus próprios olhos, é
só andar pelos corredores. Ao projetá-lo, essa foi a intenção de meu
tio, Pâmphilo de Carvalho, e a minha e, graças a Deus, é o que está
acontecendo. Pâmphilo de Carvalho fora colega de colégio de Jorge e
veio do Rio para visitá-lo.
Depois de uma boa temporada no Hospital Aliança, refeito sem
precisar ser operado, Jorge voltou para casa.
Chega a ser monótono, mas eu gosto de repetir que dos
males, por maiores e negativos que sejam, sempre tiro um lado
positivo deles. Desta vez, do enfarto de Jorge que nos pegou de
surpresa, quase me levando ao desespero, salvamos o lado positivo:
descobrimos um novo amigo, um amigo para todas as horas, assim
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
como devem ser os grandes amigos. Jadelson Andrade, o médico,
com sua dedicação, competência e amor, passou a fazer parte de
nossa vida. Como se ele apenas não bastasse, trouxe-nos Tânia, sua
mulher, médica ela também, doce e adorável criatura. Com eles
temos passado bons momentos, juntos estivemos em alegres
temporadas em Paris.
Peço uma licencinha para contar, pouca coisa, mas, creio, vale
a pena:
Caminhávamos, os quatro, flanando pelas ruas de Paris, e era
exatamente o dia da música. Por toda a parte encontravam-se grupos
e mesmo solistas tocando instrumentos, os mais variados. Pessoas
caracterizadas, outras não, a gente parando aqui e ali. A Place des
Vosges, uma das mais charmosas praças de Paris, estava minada de
músicos, quando, não mais que de repente, meu coração bateu forte,
senti calor nos pés, seria a timbalada que se aproximava? A batida
forte e o ritmo não me enganavam. Compenetrados, num compasso
bem marcado, os músicos, que nem brasileiros eram, apenas jovens
franceses, aficionados de nosso embalo, recém-chegados de um
aprendizado na Bahia, batiam forte no timbau, no surdão e no
repique, trazendo o Brasil até nós. Como resistir? De que jeito?
Vambora dançar, Jorge?, convidei por convidar, já certa de sua
recusa. Antes que eu insistisse, Jorge tratou de sentar-se, Tânia o
acompanhou, ficaram assistindo de camarote. Não hesitei, já que ele
não dança eu danço sozinha. Caí no samba de pé, mas não fiquei só,
tive parceiro: contagiado, ele também, pelo ritmo, Jadelson me
acompanhou. Juntou gente em volta, alguns estrangeiros até
tentaram nos seguir no requebro mas, qual! Cadê o molejo de cintura
e a picardia no passo? Só mesmo um brasileiro é capaz. Traz a coisa
no sangue.
Pena que naquele tempo não havia ainda surgido a dança da
bundinha..., pilheriei aqui em casa, relembrando aquele dia. Jorge que
ouvia calado resolveu entrar na conversa: A dança da bundinha?
Nada me surpreenderia, Zélia é capaz de tudo...
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Dizemos sempre que temos inúmeros conhecidos, pessoas que
estimamos, mas a lista dos amigos íntimos não é tão grande assim.
Esses podem ser contados nos dedos das mãos. Pois Jadelson e Tânia
entraram nessa lista, por todos os merecimentos.
NERUDA VEM SE DESPEDIR
Já se passaram muitos anos e eu me recordo, como se fosse
hoje, da chegada de Matilde e Pablo Neruda à Bahia. Ele vinha se
despedir. Não disse, mas tudo indicava.
Ainda no aeroporto, enquanto aguardávamos a bagagem, ele
assumiu um ar solene e nos disse: Não me perguntem por ninguém,
morreram todos. Somos dos raros que ainda estão vivos. Vim para
conversar, matar saudades, ouvir uns atentos da comadrita.
A notícia da chegada de Neruda à Bahia correu rápida e a
imprensa invadiu nossa casa. Vieram poetas e literatos, amigos
nossos, como, por exemplo, Ildásio Tavares, Fernando Batinga e
Carlos Eduardo da Rocha, o jovem jornalista Guido Guerra, por
alcunha o Papagaio Devasso, certamente por não ter papas na língua,
e à frente ainda um amigo, o historiador Luiz Henrique Dias Tavares.
Organizaram em seguida um recital de poesia na Escola de Teatro.
Fazer um recital nesses dias de Bahia não estava nos planos de Pablo,
ele viera nos ver, conversar, descansar. Aceitou, no entanto, ter um
encontro com estudantes, artistas e poetas como também concordou
em passar algumas horas na sede da Ordem dos Trovadores, no
Largo 2 de Julho, onde Rodolfo Coelho Cavalcante e outros repentistas
e trovadores o saudaram numa festa popular que, verdadeiramente,
o encantou.
Com sua voz pausada, Neruda declamou poemas, falou à
multidão de admiradores que lotaram as dependências da Escola de
Teatro. Empolgou com seus versos e com suas respostas às
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
perguntas que lhe foram feitas após o recital, perguntas quase todas
políticas, às quais ele respondeu com a coragem que sempre lhe foi
peculiar.
Em nossa casa, em reunião familiar, pouca gente, Zitelman
Oliva e Ligia, James e Luiza, Luiz Henrique com Laurita, conversamos
muito, Matilde, com sua bela voz cantou uma canção de Pablo:
"Príncipe de los caminos, hermoso como un clavel, enbriagador como
el vino, era dom José Miguel..," Guardei na memória apenas esse
verso, nunca mais ouvimos a canção que era belíssima.
Perguntei a Pablo se já tinha terminado o livro de memórias.
Lembrava que por todas as partes onde andáramos ele costumava,
vez ou outra, recolher-se a um canto isolado e tomar notas num
caderno. Pablo riu. Aprenda mais essa, comadre, um livro de
memórias jamais tem fim. A vida continua. Novos fatos vão
acontecendo. Um livro de memórias de pessoas como nós, Jorge e eu,
não pode ter fim. Nós vivemos a vida ardentemente. Vidas cheias de
acontecimentos, bons e maus, sofremos as piores injustiças,
desfrutamos as maiores alegrias e recompensas, viajamos e
conhecemos esse mundo inteiro, temos amigos que nos esperam
onde quer que cheguemos, aprendemos a compreender os homens, a
perdoá-los, a amá-los, aprendemos a arrancar de nossos corações os
maus sentimentos, não precisamos ter inveja de ninguém, ai, a
inveja! Só maltrata a quem a sente, somos amados por nossos
leitores e até por pessoas que nunca leram uma só página nossa, mas
nos amam... Um livro de memórias nosso, de Jorge e meu, repetiu,
não pode ter fim. Nem nosso, nem de ninguém, riu. Não sei quando
publicarei o meu, se é que o publicarei um dia.
Ao dar-nos tão importante lição de vida, Pablo estava longe de
imaginar que um dia sua comadre também acabaria escrevendo
livros, livros que, inclusive, contariam suas histórias.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
CONFESSO QUE VIVI
Foi Matilde quem, depois da morte de Pablo, conseguindo
driblar a sanha dos perseguidores de Pablo, dos assassinos de
Salvador Allende, levou clandestinamente os originais do livro de
memórias de Pablo para a Venezuela. Com a ajuda de Miguel Otero
Silva, dono de um jornal venezuelano, velho amigo de Neruda,
compôs o livro Confesso que vivi...
Quando o livro estava quase pronto, Matilde veio à Bahia
aconselhar-se com Jorge sobre o problema de editores estrangeiros
que desejavam publicar a tradução. Ficou apenas dois dias conosco.
Em seguida à sua partida recebemos, aqui em casa, a visita de um
policial do FBI. Tinham visto, em notícia de jornal, a foto da viúva de
Neruda em nossa casa. Queriam saber quando ela chegara. Ela
esteve aqui conosco e já não está, veio legalmente, não tinha por que
esconder-se, respondeu Jorge, secamente, ao policial. Meio sem jeito
ele explicou que a polícia estava intrigada pelo fato de Matilde
Neruda não estar registrada na lista de entrada do aeroporto. Nessa
lista da polícia não constava nenhum Neruda, apenas Matilde Urrutia.
Admira-me que a polícia não saiba, disse-lhe Jorge, que nos
países da América Latina, ao casar-se, a esposa conserva o nome do
pai e acrescenta, se quiser, o nome do marido. No caso de Matilde
seria Urrutia de Neruda ou viúva de Neruda. Certamente ela não quis
acrescentar, ao seu nome de solteira, o do marido. Depois desse
esclarecimento, não nos importunaram mais.
Aqui estou pensando em Pablo, recordando seus sábios
conselhos: Um livro de memórias não pode ter fim.
Minha intenção era parar por aqui, já que um livro de
memórias não pode ter fim e eu já contei histórias até demais.
Abusando da paciência dos leitores, ainda uma vez, peço
licença para, em breves palavras, contar que a festa dos oitenta anos
de Jorge, na Bahia, foi das mais belas e emocionantes que eu já vi.
Aniversário de número redondo que nos trouxe amigos do Brasil
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
inteiro e do mundo todo.
Do Rio de Janeiro veio a família Caymmi e cantou para o velho
amigo, no palco armado no Largo do Pelourinho. E nesse palco,
quantos mais cantaram? Maria Betânia, Gal Costa, Caetano Veloso,
Waltinho Queiroz, Daniela Mercury, Margareth Menezes e tantos e
tantos outros que, com o povo da Bahia lotando a grande praça,
enfrentando até a chuva que caiu de repente, sem arredar pé,
entoaram numa só voz o "Parabéns pra você..."
Aproveitando a licença pedida, vou na cola para contar que a
Fundação Casa de Jorge Amado vai de vento em popa. Já festejou seu
décimo aniversário e, sempre sob a orientação de Myriam Fraga,
Claudius Portugal e também de Germano Tabacof, ela cumpre o seu
objetivo, segue o seu destino.
Centro de cultura no coração da Bahia, num Pelourinho
restaurado, lindo, alegre, onde o povo canta e dança nas praças e
ladeiras, a Fundação Jorge Amado edita livros, publica revista,
promove exposições, orienta estudiosos.
Num galante café-teatro recém-inaugurado, no recinto de
exposições, no andar térreo, realizam-se conferências, exibem-se
filmes, apresentam-se peças de teatro e toma-se um cafezinho. Na
parede, um pôster com um texto de Jorge, texto esse escrito para o
programa de uma exposição de xícaras pintadas por artistas:
Numa xícara de café,
pode-se colocar a beleza do mundo.
Numa xícara de café,
pode-se sentir o sabor amargo
e doce da vida.
Para meu encabulamento, a direção da Casa decidiu
homenagear-me, dando ao café-teatro o meu nome.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
VOLTO A NERUDA
Assim como Neruda nos pediu: Não me perguntem por
ninguém, já morreram todos, eu também pediria que não me
perguntassem pelos amigos que estiveram ao meu lado enquanto
escrevi estas memórias. Os amigos que me fizeram companhia,
provocando riso e às vezes pranto, permitindo-me voltar a reviver o
passado, morreram quase todos. Diria apenas que a primeira a partir
foi Norma e o último Carybé. A chaga ainda está aberta.
NA CASA DO RIO VERMELHO
Da janela de meu gabinete, onde escrevo, vejo Zuca se
aproximar entre as árvores do jardim.
— Bom dia, dona Zélia. Como passou a senhora de ontem pra
hoje? E o doutor? Ainda está dormindo? Tudo bem, não é? Graças a
Deus! Choveu muito, a senhora sabe, e as danadinhas das formigas
depois da estiada costumam aparecer... Acabei de descobrir um
formigueiro grande, ali, bem nos pés do Exu. — Zuca apontou o Exu.
— Já dei cabo delas, não sobrou nenhuma... — concluiu, satisfeito.
Encompridei conversa:
— É verdade, tem chovido muito. Por isso as formigas
aparecem, não é, Zuca?
— Isso mesmo. Dona Zélia entende dessas coisas, entende
mesmo. Com as chuvas as danadinhas voltam...
— E os coqueirinhos, Zuca?
— Já comprei o coqueirinho que a senhora pediu, trouxe hoje,
está aí.
Eu pedira a Zuca que me conseguisse dois coqueirinhos para
plantar no lugar de dois velhos coqueiros, derrubados por um
temporal.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
— Só trouxe um? Eu pedi dois...
— O outro eu trago amanhã.
— Muito bem, Zuca, então vá preparando a terra, abrindo a
cova para plantar enquanto eu fecho o computador. Vou em seguida,
quero estar lá...
— A senhora quer plantar hoje mesmo?—admirou-se Zuca.
— Sim, senhor. Hoje mesmo. Qual é o problema? Zuca coçou
a cabeça:
— Não pode ser amanhã, não, dona Zélia?
— Amanhã a gente planta o que você vai trazer. Este vai ser
plantado hoje, sem falta. Agora! — enfatizei.
Discretamente, Zuca olhou para o céu, meneou a cabeça e,
num meio sorriso, monologou: Dona Zélia é tão interessante...
Na casa do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, outubro de 1998.
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure :
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups.google.com/group/digitalsource
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho
Zélia Gattai A Casa do Rio Vermelho