· Agora lavo e passo pra fora" (lavadeira, 50 anos); " ... biscateiro) . O sentido do trabalho,...

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1. As relações sociais fundamentais; 2. Formas de ganhar a vida; 3. Tensões e conflitos; 4. Migração e marginalidade. Maria Célia P. M. Paoli ** * Este artigo é uma parte 'modi- ficada de um trabalho maísam- plo, apresentado como dissertação de mestrado ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu- manas da Universidade de São Paulo, em dezembro de 1972, sobre o tema Desenvolvimento e margi- nalidade. ** Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universi- dade de São Paulo. R. Adm. Emp., Rio de Janeiro, o objeto central do presente trabalho consiste na exploração dos problemas sociológicos le- vantados pela existência de uma mão-de-obra "marginal" aos setores econômicos da área cita- dina dos municípios que formam a Baixada Santista, e tenta apreender sua significação como processo objetivo e integrante das relações sociais vigentes na área considerada. Por vários motivos, foi escolhida como universo de estudo uma área residencial operária situada no mu- nicípio de Vicente de Carvalho, distrito de Gua- rujá, defronte à zona portuária e comercial de Santos: o Sítio Pai Cará. De um lado, esta área reunia todos os fatores empíricos pelos quais se convenciona reconhecer uma "situação proble- mática" de pauperização: condições de habita- ção precárias, desorganização familiar, padrões de alimentação e saúde deficientes, inexistência de serviços mínimos e aparentemente grande contingente de pessoas sem nenhuma estabili- dade de emprego. De um lado, ela contava com características próprias que a tornavam uma situação privilegiada de observação: consti- tuída originalmente através da invasão gra- dativa de terras particulares, gerou uma expansão rápida e incontrolável que em poucos anos se consumou, obrigando o go- verno do estado a expropriá-las em 1958. Dez anos depois, foi planejada sua urbanização, em virtude dos graves problemas ali existentes e dos conflitos e tensões que sua expansão origi- nava. Em 1970,iniciou-se a implantação do pro- grama urbanístico, no qual se tentava regula- rizar a posse jurídica da terra e instalar uma infra-estrutura de serviços urbanos básicos. Esta intervenção restringia-se, no momento da coleta de dados deste trabalho, a uma área es- pecífica, definindo limites ecológicos que pare- ciam responder à disponibilidade de renda dos habitantes para suportar o programa. Além desses limites, expandia-se a invasão dentro dos padrões de favelamento, aparentemente for- mada pelas pessoas que não queriam ou não podiam pagar o seu terreno. ~ em relação a estas pessoas, distribuídas fora da área urba- nizada pelo plano, que a investigação se cons- tituiu. Em termos gerais, sua situação peculiar neste processo reforçava a exploração dos obje- tivos gerais da pesquisa. Duas noções teóricas orientaram o trabalho. A primeira é a de "participação-exclusão", pro- posta por Luiz Pereira, 1 que se refere ao mer- cado dos fatores de produção das formações 113 13(3) : 113-134, jul./set. 1973 Trabalho e marginalidade um estudo de caso

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1. As relações sociaisfundamentais;

2. Formas de ganhar a vida;3. Tensões e conflitos;

4. Migração e marginalidade.

Maria Célia P. M. Paoli **

* Este artigo é uma parte 'modi-ficada de um trabalho maísam-plo, apresentado como dissertaçãode mestrado ao Departamento deCiências Sociais da Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Hu-manas da Universidade de SãoPaulo, em dezembro de 1972, sobreo tema Desenvolvimento e margi-

nalidade.

** Professora do Departamentode Ciências Sociais da Universi-

dade de São Paulo.

R. Adm. Emp., Rio de Janeiro,

o objeto central do presente trabalho consistena exploração dos problemas sociológicos le-vantados pela existência de uma mão-de-obra"marginal" aos setores econômicos da área cita-dina dos municípios que formam a BaixadaSantista, e tenta apreender sua significaçãocomo processo objetivo e integrante das relaçõessociais vigentes na área considerada. Por váriosmotivos, foi escolhida como universo de estudouma área residencial operária situada no mu-nicípio de Vicente de Carvalho, distrito de Gua-rujá, defronte à zona portuária e comercial deSantos: o Sítio Pai Cará. De um lado, esta áreareunia todos os fatores empíricos pelos quais seconvenciona reconhecer uma "situação proble-mática" de pauperização: condições de habita-ção precárias, desorganização familiar, padrõesde alimentação e saúde deficientes, inexistênciade serviços mínimos e aparentemente grandecontingente de pessoas sem nenhuma estabili-dade de emprego. De um lado, ela contava comcaracterísticas próprias que a tornavam umasituação privilegiada de observação: consti-tuída originalmente através da invasão gra-dativa de terras particulares, gerou umaexpansão rápida e incontrolável que empoucos anos se consumou, obrigando o go-verno do estado a expropriá-las em 1958. Dezanos depois, foi planejada sua urbanização, emvirtude dos graves problemas ali existentes edos conflitos e tensões que sua expansão origi-nava. Em 1970,iniciou-se a implantação do pro-grama urbanístico, no qual se tentava regula-rizar a posse jurídica da terra e instalar umainfra-estrutura de serviços urbanos básicos.Esta intervenção restringia-se, no momento dacoleta de dados deste trabalho, a uma área es-pecífica, definindo limites ecológicos que pare-ciam responder à disponibilidade de renda doshabitantes para suportar o programa. Alémdesses limites, expandia-se a invasão dentro dospadrões de favelamento, aparentemente for-mada pelas pessoas que não queriam ou nãopodiam pagar o seu terreno. ~ em relação aestas pessoas, distribuídas fora da área urba-nizada pelo plano, que a investigação se cons-tituiu. Em termos gerais, sua situação peculiarneste processo reforçava a exploração dos obje-tivos gerais da pesquisa.

Duas noções teóricas orientaram o trabalho.A primeira é a de "participação-exclusão", pro-posta por Luiz Pereira, 1 que se refere ao mer-cado dos fatores de produção das formações

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capitalistas periféricas. Estas "são geradoras dasuperabundância da oferta da força de traba-lho", excludentes portanto de grandes contin-gentes populacionais, "no sentido de que estesestão no interior de seu sistema econômico,participando do mercado de trabalho comoofertantes mas não necessária e definitivamen-te incorporados no processo de produção, dadaa debilidade crônica da demanda da força detrabalho que tipifica o sistema econômico capi-talista periférico em sua etapa contemporânea".As populações marginais são identificadas comoas que "estão na margem ou na fímbria dasnecessidades de consumo da força de trabalhopor cada sistema econômico capitalista periféri-co tomado em bloco". Como indicador empí-rico, a noção de participação-exclusão apontapara a renda-trabalho mínima per capíta fami-liar, "na qual se traduz o valor social e histo-ricamente fixado dessa parcela da força de tra-balho coletiva global". A segunda noção é a de"campo de carências", proposta por MarialiceForacchi,2 que se refere ao sistema de relaçõessociais que se estabelecem entre os agentesmarginais e que tipificam seu campo de açãocomo forma histórica de existência social. Ocampo de carência é constituído pelas signüi-cações e as práticas reais vividas pelos agentesconsiderados marginais e configuradas em uni-versos simbólicos de representações significati-vas. Permite, desse modo, a apreensão do sen-tido da exclusão dos agentes marginais, umavez confrontado com as condições objetivas quea constitui.

1. As relações sociais fundamentais

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Entre os muitos obstáculos que impediam acriação de uma "comunidade integrada" naárea do Pai Cará, tal como formulada pelostécnicos que implantavam a urbanização daárea, estava o problema da integração econô-mica da população no quadro da economiaregional ou municipal. Reconheciam eles quea área, podendo ser definida globalmente comoum bairro operário, diferenciava-se internamen-te de modo nítido em termos de recursos econô-micos e nível cultural, diferenciação esta quese operava também geograficamente. Dessemodo, havia "setores" onde o padrão de vidaera alto para a média local, com uma populaçãoestável "social e organicamente": suas casasRevista de Administração de Empresas

eram as melhores, dispostas em ruas traçadas eem terreno aterrado; o grau de escolaridadepredominante girava em torno do primáriocompleto, e tinham empregos estáveis. Emsuma, para o padrão vigente, esses setores se-riam ocupados pela "classe média" local. Osdemais setores, ocupados por uma mão-de-obrabarata e não qualificada chamada de "classemédia inferior", compunham o padrão típicodos habitantes da área, com habitações varia-velmente precárias, dispostas em ruelas e con-tando com equipamentos urbanos precários,nos padrões de favelamento comuns às gran-des cidades brasileiras. Na periferia, e para alémda área delimitada para a intervenção urbanís-tica, crescia em ritmo lento a ocupação dos ter-renos por pessoas cujas rendas eram estimadascomo muito baixas, cujas habitações, construí-das sobre o mangue aterrado com lixo e feitascom qualquer material que para isso servisse,indicavam uma pobreza extrema, e onde sesupunha muito alto o grau de problemas soci-ais, como a ociosidade, a prostituição e a desa-gregação familiar. Tal população era reconhe-cida, no linguajar comum de todos os queoperavam na área, como "maloqueiros", e, atra-vés disso, oposta aos "trabalhadores", lingua-gem esta que os identüicava, com base namaneira de morar, um tipo humano desquali-ficado socialmente.

Nada mais contrário a esta classificação doque a autodefinição do ocupante da área emquestão. Sua consciência empírica estabelecesolidamente a própria identüicação com tra-balhador assalariado. Esta é a primeira e aprincipal categoria introduzida em seu discur-so, em torno da qual se estrutura o seu mundoe se definem as inconsistências e tensões gera-das pela realidade objetiva em que está lançado.Subjetiva e objetivamente, ele se sabe possui-dor de força de trabalho que deve ser vendidano mercado, o que lhe permite adquirir os meiosnecessários à sua subsistência. Este é o seumundo "natural", por onde ele se apresenta edepõe sobre sua experiência de vida. A efetiva-ção da condição "normal" do trabalho assala-riado fundamenta o seu presente, enquantoaspiração, e constitui o horizonte históricopossível, enquanto projeto. De modo algum asituação do fechamento do mercado de traba-lho, objetivamente dada na realidade presente,afetou esta sua identidade fundamental, embo-ra ela tenha introduzido em sua consciência,

como se verá, uma configuração peculiar, dadapela expulsão gradativa das formas regularesde ganhar a vida. Neste sentido, suas represen-tações o inserem na integração típica e consti-tutiva do sistema. Assim é que, quando descreveo modo de ganhar a vida, reafirma a identifi-cação com o trabalho assalariado: "Eu façoqualquer trabalho com as mãos, dou duro nisso"(bagrinho, 37 anos); "Sempre trabalhei, desdepequena, de doméstica, em fábrica, catandocafé. Agora lavo e passo pra fora" (lavadeira,50 anos); " ... Quando os tempos estão ruins,faço umas coisinhas por aí, mas trabalhei sem-pre em sacaria, construção... trabalho mes-mo" (desempregado, fazendo "bicos", 26 anos);"Já fui operário, marítimo, e também na cons-trução. .. hoje estou de ajudante de motoris-ta, dá no mesmo" (ajudante de motorista, 29anos); "Vida de trabalho é nós, é profissão desofredor. Com essa idade toda que se vê, já deisaúde e muita força como trabalhador operá-rio deste país" (70 anos, aposentado); "Anoteaí: tudo aqui é trabalhador, ganhando a vidaali no braço. Os aleijões e os inutilizados, tudofoi trabalhando no braço, ficaram assim detanto trabalho. Os outros, que parece que nãoestão trabalhando, estão do mesmo jeito" (56anos, biscateiro) .

O sentido do trabalho, para esses trabalha-dores, determina-se, única e exclusivamente,como o meio de sobrevivência, ou seja, pelosalário. Dessa forma, eles reafirmam, na cons-ciência, a sua força de trabalho como mercado-ria, e não têm ligação alguma com os diferentestrabalhos que realizam ou realizaram: não dis-tinguem significativamente o objeto do tra-balho. Percebe-se isso quando se estuda osindivíduos de origem rural, que supostamentepoderiam reter a distinção entre o trabalhorural e o urbano, pelo fato de serem atividadesprodutivas diferentes. Isto, no entanto, nãoacontece: o trabalho tem apenas o sentido delhes permitir sobreviver: "Fui lavrador de roçaa vida inteira, em terra dos outros. Nunca pen-sei em mudar, quando estava lá ... quandomudei, aprendi logo. Não é diferente" (empa-cotador, 28 anos); "Não gosto da cidade, sem-pre lembro da Bahia ... não que o trabalho sejapior ou melhor, isso não conta ... é por outrascoisas" (inutilizado por acidente, 31 anos);"Desde criança assim bati amendoim, algodão,tombava a terra ... daí trabalhei em fábrica,lá no Moinho também... de último, recebia

homem. Tudo é igual, tudo deixou eu assim,acabada ... nenhum trabalho é bom" (ex-pros-tituta, 41 anos); "Trabalho para ganhar, né,qualquer coisa serve" (desempregado, pescan-do, 39 anos); "Nós tem que trabalhar, comotudo vai comer?" (desempregado, fazendo "bi-cos", 41 anos). Essas afirmações demonstramque o tipo de trabalhador em questão, longe deser um "marginal fora de", se insere dentro docampo típico de relações estruturais do sistema,pois " ... A força de trabalho em ação, o traba-lho mesmo, é a atividade vital peculiar ao ope-rário, seu modo peculiar de manifestar a vida.E é esta atividade vital que ele vende a um ter-ceiro para assegurar os meios necessários. Suaatividade vital não lhe é, pois, senão um meiode poder existir. Trabalha para viver. Para elepróprio, o trabalho não faz parte de sua vida;é antes um sacrifício de sua vida. É uma mer-cadoria que adjudicou a um terceiro. Eis porqueo produto de sua atividade não é também oobjetivo de sua atividade. .. O que ele produzpara si mesmo é o salário ... " 3

Balizada por estas duas categorias (trabalhoe salário) , a consciência do trabalhador sedefine pela junção das duas em um único esta-do: a pobreza. É como trabalhador assalariadopobre que ele trava as relações sociais funda-mentais que estruturam sua vida e seu campode ação. Desse modo, suas referências constan-tes são feitas em relação a duas figuras ineren-tes ao seu meio estrito e amplo, e necessáriasà sua apreensão de mundo: o patrão, de umlado, e o operário industrial com estabilidadede emprego, de outro. 4

O patrão surge, para ele, em primeiro lugarcomo um indivíduo que retém o poder da sobre-vivência dos trabalhadores, quando e comoquiser. Daí resulta que ele depreenda sua condi-ção de trabalhador assalariado dependente dopatrão como a única maneira possível de ga-nhar a vida e manter-se dentro da estabilidadealmejada, mesmo que - e talvez exatamenteporque - recorre em épocas "difíceis" a ou-tras formas de sobrevivência, como a coleta deprodutos naturais que existem na área, oumesmo a mendicância. De qualquer forma, opatrão é o poder e eles são basicamente domi-nados, dependentes do arbítrio e de uma von-tade que não entendem: "Patrão é como a po-lícia, manda e desmanda como quer, não dápra deixar de lado, desmancha coisas da gentequando quer" (lavadeira, 46 anos); "Patrão é

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um desacato à pobreza. Pobre tem é que lutarpor si e nunca esperar do patrão, que é iguala político" (aposentado por invalidez, 45 anos);"Patrão é sina na vida de pobre, não tem quenão tenha. .. pra viver" (servente de pedreiro,26 anos); "Patrão é patrão. Mas não dá prafazer nada. Bem ou mal, tem que agüentar ... "(doqueiro, 29 anos). Disso surge uma consci-ência apenas aparentemente ambígua, poisao final submetem-se pacificamente, por faltade alternativa; estas afirmações Jevelam quea consciência crítica tem seus limites no"bom patrão", pois o que ela pede é apenasuma inserção estável no processo de produção,que permita uma maior participação na renda:"O segredo do viver bem é saber tratar com opatrão ... patrão é uma pessoa ruim, de nas-cença, mas tudo depende do empregado, quetem que conhecer o jeito e agradar ... " (do-méstica, 50 anos); "Meu patrão agora é bomtive sorte, é bom pagador e faz todo mundotirar carteira de trabalho... já tive patrãoruim, todos acabam mandando embora" (cata-deira de café, 47 anos); "Meu patrão agora éum sargento. Se o serviço é bom, ele gosta, senão é bom, ele não gosta. Mas grita do mesmojeito o dia inteiro. É aluado... eu agüento"(29 anos, fazendo "bico" de pintor); "A gentetem que fazer tudo pro patrão gostar, eu fiz eagora sou a preferida dele. .. quem não gostade patrão é porque não sabe lidar com eles"(vendedora de bilhetes de Loteria, 45 anos).Tais afirmações são características das pessoasque há mais de dois anos têm podido contarcom salário regular, mesmo que de valor realmuito abaixo do mínimo. É interessante notarque o antagonismo contra o patrão é manifestode modo mais claro nas pessoas que então es-tavam procurando um emprego, e que retinhama dimensão da exploração mais viva na consci-ência: "Não me espanto mais da miséria domundo, sei a maneira dessa gente .. , pra nãofichar, eles admitem o sujeito por 10 meses, edepois mandam embora. Não dá pra fazer nada,ir contra ou ganhar a confiança do patrão. Acoisa é assim mesmo" (pedreiro buscando em-prego, 32 anos); "Não gosto nem de ver a caradele (do último patrão), eu já tive muitos navida e sei que é tudo igual. É outra gente" (37anos, sem ocupação); "Ficar sem serviço, pelomenos isso, não tem patrão, né? A gente morrede fome sozinho" (26 anos, sem ocupação).Revista de Administração de Empresas

Desse modo, o que se tem é a afirmação deuma consciência proletária típica, colocada es-pontânea e naturalmente no discurso.5 Noentanto, as dimensões enfatizadas no depoi-mento desse trabalhador, ainda que típicas,parecem ser outras que as do discurso do ope-rário no desempenho estável do trabalho; atodo momento, desemprego e pauperização mar-cam a referência às suas relações antagônicase às suas solidariedades. Excluído intermiten-temente do processo de produção e no limite daparticipação na renda, este trabalhador se in-terroga sobre a situação em que está lançado.O patrão como um poder absoluto é uma dasrespostas a que chegou, e que marca incoeren-temente sua aspiração de "outra vez trabalharpara o aumento da riqueza da burguesia e parao reforço do poder do capital". 6 De outro lado,a utilidade e o valor de seu trabalho tambémestão presentes neste questionamento: "Quan-do cheguei aqui era 1930, se bem me lembro.Tinha ouvido falar do porto e da grandeza docafé em Santos. Daí fui logo para a estiva,naquele tempo tava assim de lugar vago ...Comosabe, sou trabalhador operário deste meuBrasil. Agora eu pergunto uma coisa: não vale-mos mais? O porto não tá aí, crescendo feitofábrica?" (70 anos, aposentado); "Tá duro con-seguir emprego, não falo nem dos que pres-tam. .. E eu sei fazer as coisas rápido, não édisso que precisam?" (desempregado, fazendo"bicos", 26 anos); "Vou morrer de fome edoença, isso vou mesmo, me salvo porque ain-da sou esperto ... e olhe que eu já fui homemde escolher serviço" (56 anos, biscateiro);"Quando chamam (para algum emprego), voucedinho e já tem um fila que só vendo... daí,espera a manhã inteira, entra um e olha e diz:não precisa ... " Subjetivamente, este trabalha-dor confirma sua situação de participação-exclusão, ou seja, a pouca necessidade da in-corporação direta de sua força de trabalhopara a reprodução do capital. Mas para ele ascoisas assim são porque os melhores lugaresjá têm dono; desta vez, seu antagonismo volta-se contra o operário estavelmente inserido nomercado, e isto significa duas coisas para o tra-balhador "excluído": qualificação e sorte.

A qualificação do trabalho é um pesadelomítico na vida do trabalhador excluído, queele aspira a possuir, mas que é, concomitante-mente, algo não mais alcançável do seu pontode vista, no processo atual de sua vida. Desta

forma, é uma aspiração rejeitada no seu valorintrínseco e não admitida enquanto tal: demodo algum a qualificação confere maior valorao trabalho. Esta atitude é particularmente for-te quando a participação no processo produtivose faz permitida de modo estável, mesmo semqualificação. Ela é problema na medida em queas melhores oportunidades do mercado de tra-balho dependem de algum tipo de adestramentoe de escolaridade, e mais ainda porque são osserviços melhor remunerados. E é em nome daqualificação que se faz a sua rejeição nestemercado. Dessa forma, o trabalhador nega oseu valor: "Esta coisa de estudar para traba-lhar é moderno. .. tá todo mundo aí morrendode fome com estudo e tudo. . . eu fiz muito ser-viço sem estudo" (aposentado, 70 anos); 7 "Tra-balhei sempre com sacaria ... ninguém lá temestudo, e não se está precisando" (desempre-gado, 26 anos); "Sei ler e escrever, mas nãoadianta nada para o serviço... fui operárioespecializado em papel, mas só ali na experi-ência ... hoje, nem sei se ia ser aceito, nem nafábrica de papel, tudo tá mudado, eles exigemteste de conta, os que passam podem ser atéignorantes do serviço. Por isso não se tem maiscaráter" (66 anos, trabalha em estaleiro); "Ascoisas estão mais difíceis. .. queria ter leiturae saber contar. .. não passei no teste das Do-cas. Não preciso mesmo, vou carregar saco,para que saber isso?" (ajudante de pedreiro emempreitada, 36 anos); "Não sei por que pre-cisa de leitura, isso é enganação para não darserviço... tenho um parente que sabe de escri-tório, e mesmo assim tá ruim, não acha serviçoe agora tá fazendo fé nas Docas... prá mulher,sim, que não faz força, mas pros homens car-regar saco? Leitura e conta não precisa, preci-sados tão é de braço" (desocupado, 35 anos) .Ao lado dessa rejeição quanto ao valor em si daeducação como fator de acesso ao trabalho re-guiar, este trabalhador não vê possibilidade dechegar a aprender algum serviço diferente; noentanto, ao mesmo tempo em que o nega parasi, projeta tal possibilidade para seus filhos,portadores de suas aspirações; ou seja, ao finalde um processo de vida que se pautou pela lutapor uma sobrevivência cujos limites. se tornamcada vez mais estreitos, estes trabalhadores nãovisualizam mais oportunidades de uma melho-ria de vida através de uma formação profis-sional superior, negando a ela, em si, ~ quali-dade de conferir realmente maior valor de com-

pra ao seu trabalho. Mas, ao projetarem tal fu-turo para os filhos, aceitam a qualificação dotrabalho como a via possível, por excelência,para a negação das atuais condições de vida. Écomo se a eles, antes de mais nada, lhes compe-tisse lutar pela existência nos limites do seupresente imediato; nos filhos estaria a oportuni-dade de sair dos limites dessa luta, negando an-tes de mais nada a instabilidade contida nestepresente. Dessemodo, quando falam de seu coti-diano e das possibilidades de mudança, assim seexprimem: " ... é tarde para aprender um servi-ço que não sei. Prefiro andar em serviço maisconhecido, porque é o que se pode" (desocupa-do, 35 anos); "Não estudei porque sou ruim decabeça. Serviço novo não é difícil, posso fazertudo com as mãos... tudo se aprende paraviver" (bagrinho, 37 anos); "Fui lavrador deroça a vida inteira .. , quando mudei, aprendilogo. .. Faço pacote o dia inteiro, e depois osoutros pesam. Difícil? Não é, acho que capinaré mais difícil, queria ver os caras daqui indopra lá, pra ver se sabem logo. A gente dacidade é muito atrapalhada, mas só tem lugarbom para eles" (empacotador, 28 anos); "Perdia prática de leitura, aprendi na firma que tra-balhava, em dois meses. Eles queriam. . . depoisfui mandado embora, e não sei mais. Não preci-sei pra nada" (biscateiro, 31 anos); "Nãoarrumo serviço porque eles querem gente quejá sabe fazer as coisas, não querem explicar"(26 anos, procurando emprego); "Não dou praoutra coisa, já cansei de aprender" (lavadeira,46 anos). Projetada para os filhos, a situaçãose inverte: "... quero que os filhos tenhamserviço com ponto e horário e sejam fichados.Digo sempre pra eles, é com estudo que se con-segue" (catadeira de café, 47 anos); "Aprendium pouco nas estradas que andei. Agora, mi-nha filha vai ser professora; empregada nãoquero pra ela" (aposentado, 45 anos); "Queriaque o rapaz, o mais velho, fosse pra São Paulo,nas fábricas de automóvel. Dizem que os ope-rários lá vivem na lordeza, têm casa boa e tudo"(dona de casa, 50 anos); "Meu filho não ficaaqui, não, vai ser operário dos bons em Cuba-tão, se Deus quiser aprende o ofício" (dona decasa, 45 anos). 8

A qualificação do trabalho é, nesse sentido,o elemento que justifica o modo peculiar peloqual o trabalhador integra as condições e o es-tilo de existência marginal, na medida em queela constitui, concretamente, o elemento ideo-

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lógico que compõe a alternativa real de negaçãodo status quo. É um dos elementos que garan-tem a conciliação dos antagonismos e inconsis-tências que estruturam objetivamente a vidadesse trabalhador, elemento legitimado no con-texto do trabalho, coberto de sentido uma vezque representa a possibilidade de participaçãoefetiva e estável na obtenção da renda e oferecea idéia de controle das condições de existência,através de emprego regular e bem remunerado.Mais ainda, ela dá uma identidade que contémprestígio: não se trabalha "com qualquer ser-viço", mas se trabalha especializadamente "comuma produção". A crítica, vislumbrada poralguns, de que a exploração é a mesma, anula-se e se traduz na ilusão do controle sobre ascondições de existência, inclusive implicandooutra relação com o pólo "patrão". Assim. asubmissão às atuais condições de vida é ligadainvariavelmente às condições de vida dos operá-rios estáveis e qualificados: "Aqueles de lá, deCubatão, é que estão bem. Nem precisam desindicato para brigar. Se não gostam de ondeestão, dizem para o patrão: vou embora e largoa produção ... Podem fazer isso, são precisadospras máquinas, pros fornos, sabem fazer o ser-viço"; "O governo protege eles (de Cubatão) ...já viu as casas? têm médico e tudo, e não-sematam. A fábrica precisa, já fez tudo e ensi-nou eles, agora não quer perder... eles sim,têm sorte"; "O patrão deles, não que sejamelhor, mas fala mais fino ... "; "O bom emserviço assim, como os de lá das fábricas deCubatão, é que pode trocar de serviço e de pa-trão. .. nem precisa ir pra São Paulo, tão me-lhor aqui, dizem que os operários de São Paulotambém é assim, não têm peso nenhum ... " 9

Mais ainda, os operários qualificados são "outragente", cuja sorte em ter aprendido um ofícionecessário tomou o lugar de trabalho que, em

118 última instância, poderia ser deles: "... nãoé que não tenha serviço, mas tudo que é bomaqui já tem dono, é na estiva, é lá pra Cubatão,é na Cosipa, tá tudo tomado pelo operário, quetá tudo quase rico ... "; "O serviço que temaqui não é bom ... os lugares bons já estãocheios. .. quando acho um serviço, depois dedez meses o patrão despede pra não fichar, daítem que viver de coisinha aqui, coisinha ali. Sóficam no emprego esses que sabem fazer tudoe trabalham com as máquinas ... " O antago-nismo sentido pelo trabalhador marginal con-tra os operários estavelmente empregados en-Revista de Administração de Empresas

contra confirmação e correspondência, como severá, nestes próprios operários, em última ins-tância ameaçados também pela presença dessamão-de-obra barata e disposta a sobreviver aqualquer preço.

Desta maneira, para compreender o marginalcomo um tipo humano é necessário, antes demais nada, entendê-lo como um trabalhadorassalariado instavelmente inserido no processode produção em termos da exploração direta eintensiva de sua força de trabalho. Na medidaem que o caso da Baixada Santista é represen-tativo de uma situação comum a muitos traba-lhadores, tem-se uma opção de desenvolvimen-to industrial e urbano em crescente processo deexpansão, que impõe o surgimento dos gruposmarginais ao se apoiar na intensiva exploraçãodo trabalho já regularmente incorporado emseu processo de produção pelo aumento da pro-dutividade deste trabalho. Assim, em termos deestabilidade e renda, a mediação de um mer-cado de trabalho tendencialmente em processode fechamento à mão-de-obra braçal distingueessa parcela da força de trabalho como "so-brantes" do tipo de exploração direta do capital,o que não significa dizer que sejam sobrantestambém aos requisitos de multiplicação do capi-tal - e talvez nem sequer de uma forma que sepoderia chamar de "atípica" ao sistema capita-lista. A configuração de consciência do traba-lhador em questão, dentro das relações sociaisfundamentais por ele vividas, mostra-o comoum produto de tendências objetivamente dadas,assumidas pela ordem urbano-industrial emseu conjunto e atualmente dominantes comosua política deliberada. No plano das relaçõesde produção vigentes, o elemento que integrae justifica esta opção de crescimento é a produ-tividade do trabalho já incorporado, cujo treinoe qualificação atendem aos requisitos diretos dereprodução do capital e cuja remuneração ga-rante, em parte, a constituição de um tipo detrabalhador integrado por um consumo efetivosuperior. 10 Mas o que é preciso perguntar-se ése este elemento integrador teria condições deo ser sem a existência e o peso de uma forçade trabalho "sobrante"; ao nível ideológico,pelo menos, não é à toa que existe um antago-nismo, latente ou manifesto, entre os doistipos de trabalhadores. No outro pólo, as condi-ções concretas do mercado de trabalho não per-mitem, a uma grande parcela do proletariado,a reprodução de si mesmos como força de tra-

balho regularmente empregada; novamente,qualificação e despreparo são argumentos inte-gradores. Em outros termos, o certo é que se estámuito longe de uma situação que pudesse serexpressa pela palavra "marginalidade". Ambasas configurações da força de trabalho "se deter-minam tendencialmente como componentes deuma força de trabalho coletiva integrada e di-ferenciada pela divisão técnica do trabalho". 11

As representações simbólicas dos trabalhado-res excluídos a respeito de si mesmos e de seupróprio trabalho demonstram a confirmaçãoobjetiva destas tendências. De um lado, ao for-çarem sua presença neste contexto, buscamreafirmar sua auto-identificação como traba-lhadores passíveis de aproveitar as supostas al-ternativas com que o mercado urbano de tra-balho acena, através da garantia de seu lugarnessa ordem e da possibilidade de ascensão pelotrabalho. É nessa medida que aceitam a quali-ficação como justificação de uma pobreza ilu-soriamente conjuntural e que constroem seuprojeto dentro da realização possível de simesmos como operários estáveis com um con-sumo efetivo. As aberturas intermitentes domercado encobrem (em parte) o fato de que assuas aspirações não são incorporadas e que nãohá o dilatamento das oportunidades de em-prego, naquele sentido. Por outro lado, as mo-tivações do trabalhador "marginal" 12 para otrabalho e para o consumo regular são apenasparcialmente atendidas pelas necessidades queesse mercado tem da existência de uma mão-de-obra barata, utilizada em seus surtos deexpansão. Nas condições em que vive, o traba-lho, longe de ser uma fonte de ascensão e deriqueza, é apenas um meio de sobrevivênciacrescentemente empobrecedor. Deste modo, tra-balho "sobrante" e pauperização exprimem omodo de ser marginal, e ambos surgem a cadatentativa que ele faz para realizar a autonomiadefinida em sua condição de trabalhador livre.A mobilidade objetivamente possível se faz den-tro do âmbito desta experiência, e prende o tra-balhador a esta condição. É somente a partirdaí que o trabalhador marginal passa a enca-rar o "vale-tudo" como premissa de sua exis-tência, que ele vive seus projetos e exprime suasambigüidades. A discussão posterior tomarámais clara a determinação das relações acimaapontadas entre trabalho e marginalidade.

2. Formas de ganhar a vida

A condição peculiar do mercado de trabalholocal da Baixada pareceria indicar, à primeiravista, uma diversificação interna do sistemaprodutivo dado pelo nível de produtividade, estepor sua vez definido pela predominância doprocesso tecnológico. Como se viu, existem ra-mos industriais de transformação, que operamcom uma tecnologia elaborada e com altos ní-veis de produtividade, representando as prin-cipais fontes de acumulação de capital da áreae configurando um mercado característico deabsorção de mão-de-obra. De outro lado, defi-nem-se ramos pouco tecnificados e com baixaprodutividade, mas absorvedores de mão-de-obra não qualificada, que seriam a grande al-ternativa para a sobrevivência desses traba-lhadores, dada a sua "expulsão" pelo outro. 13

Esta diferenciação do mercado de trabalho pa-receria estar aparentemente em contradiçãocom a situação de grande oferta de mão-de-obra, afinal não aproveitada em uma estruturade produção em pleno desenvolvimento, umasituação irracional ao deixar essa mão-de-obrana dependência de um "mercado não forma-lizado" 14 e pouco significativo para o sistema.

O estilo de vida e as condições efetivas dostrabalhadores em questão introduzem, no en-tanto, algumas dúvidas neste esquema de ex-plicação, que no fundo traduz para o nívelsociológico a setorização econômica em relaçãoà produtividade para identificar as "popula-ções marginais". De todas as pessoas entrevis-tadas, seis tinham uma ocupação regular comestabilidade de emprego, garantidas por umsalário mínimo mensal e possuindo carteira detrabalho, registro e pagando INPS. A maioriadessas ocupações eram manuais e definiam otrabalhador típico do "baixo operariado": duasna área portuária (ajudante de motorista e em-pacotador) , duas 'nos pequenos estaleiros dailha de Santo Amaro e duas no Entreposto dePesca de Santos. Nenhuma destas áreas poderiaconstituir um "pólo marginal" da economia ouáreas não funcionais do mercado de trabalholocal. 15 Os próprios trabalhadores o indicam,quando falam do acúmulo de serviço ou do mo-vimento da unidade em que trabalham. Noentanto, todos eles ganham salário mínimopara sustentar famílias inteiras; não escapa-riam de uma caracterização de participação-exclusão ao nível da renda percebida.

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De qualquer modo, o tipo de ocupação queeles têm é valorizado na área, por ser uma fon-te certa de trabalho, mesmo que existam outrasque em tese permitiriam maior renda, mas semestarem marcadas pela estabilidade de empre-go. Assim, todos eles se consideram relativa-mente privilegiados: "Tive sorte, sim. .. come-cei como provisório, mas me dei bem no serviçologo, eu trabalhei bem pra ficar no serviço. Essacasa aqui, tudo o que tem dentro foi depois doserviço no estaleiro"; "Pago Instituto, tudo di-reitinho. .. só por ter médico pros filhos semdespesa já é bom... O dinheiro... é curto,mas é certo"; "O que é bom é poder comprara prestação ... é a garantia do emprego ficha-do." Todas as inconsistências e tensões senti-das, seja no trabalho como na área em quevivem, são abafadas pelo sentimento de "sorte"e da exclusividade da própria estabilidade, espe-cialmente quando comparados à vida anteriorou aos vizinhos: o emprego estável é o grandeexpediente de controle sobre suas vidas. Écomum a afirmação, inserida freqüentementeem seu discurso, de que "ao menos se sabe odia de amanhã", ou de que, se as coisas segui-rem nesse rumo, "de fome ninguém morre". Oestado de pobreza em que vivem estas seis pes-soas, aparentemente semelhante ao de todos naárea, é sempre contrabalançado com a "segu-rança do amanhã", e estes trabalhadores se re-ferem à sua privação de forma peculiar: paraeles, viver de "bicos" pode até ser mais vanta-joso, conforme a época, mas a possibilidade deexclusão intermitente faz com que avaliem ne-gativamente esta forma de vida: "Empregofichado tem isso, ganha salário certo todomês ... se vive melhor a necessidade."

A estabilidade de emprego existe tambémpara a categoria dos trabalhadores autônomosfiliados a sindicatos, especialmente os sindica-tos do porto, tradicionalmente fortes e já cons-tituídos, em que pesem as restrições havidasapós 1966. As três pessoas presentes nessasituação colocavam-se, em termos de renda,muito acima da média local - ganhavam nomínimo dois salários - e a visão que possuemdo próprio trabalho é inteiramente condicio-nada à filiação a um sindicato poderoso. Talcomo colocado: "A estiva é muito bom. Não temhorário nem obrigação, se trabalha quandoquer. .. dá pra tirar bastante, e sempre temserviço pro sócio." Mais ainda: "Nós somosdonos do serviço. . . ninguém mais faz. Quando

Revista de Administração de Empresas

não quer trabalho, pode dar pros outros." Opessoal da estiva é visto com respeito, e quasetodos almejam um lugar nela como resoluçãoimediata de sua situação: nada menos do que20 pessoas "faziam fé na estiva", esperavam aoportunidade de nela se engaj arem como só-cios. As razões apresentadas unem novamenteas determinações básicas do trabalhador assala-riado: maior renda auferida, estabilidade e"proteção" direta das necessidades, este últimocomponente introduzido pelo sindicato. Maso que a estiva representa de fundamental é oafrouxamento dos laços de submissão a ocupa-ções pouco seguras e rentáveis, a grande saída'para o campo "marginal" de existência. Éo que está por trás das formulações de que "omelhor que tem é o sindicato. Tamos tudo ga-rantido ... já viu os prédios e os serviços? Tema sede, o hospital, a sala de conferência ... ";"Não tem horário nem obrigação. O trabalho épesado, mas sempre dá pra contar com dinheirona hora certa"; "Não tenho patrão, meu patrãoé o sindicato"; "O sindicato é o melhor, porquenão tem trabalho igual assim - protege os in-teresses dos trabalhadores, dá sempre trabalhoe os direitos estão assegurados, sendo sócio."São também os únicos trabalhadores que têmuma idéia feita sobre o valor de seu trabalho:"Nós podemos fazer tudo isso parar ... já viuu!Il desenvolvimento sem porto? Somos a ala-vanca da exportação ... " 16 Mesmo assim, te-mem o excesso de oferta de mão-de-obra e aintervenção direta do governo nas taxas cobra-das: ". . . os nordestinos, tudo aí que a senhoraviu, esses são gente que pega qualquer empre-go, e estão tudo louco pela estiva. Precisa estarde olho." E todos os três concordam: melhorque a estiva, só mesmo operário em São Paulo.

Para a grande maioria, que cotidianamenterenova a sua sobrevivência em ocupações ouserviços vários, o emprego estável com salário,de um lado, e a estiva, de outro, representam asgrandes alternativas viáveis para o tipo de tra-balho que atribuem a si mesmos. O trabalhoautônomo filiado a um sindicato e a sua consti-tuição como operários manuais estáveis são asúnicas possibilidades reais que indicam a simesmos como solução imediata de sobrevivên-cia. A inserção destes indivíduos nas atividadesesporádicas pelas quais realizam efetivamentesua sobrevivência é vivida, o tempo inteiro, pelareferência à sua candidatura àquelas ocupações.A sua efetiva inserção na divisão de trabalho

local mostra, no entanto, que se constituemcomo trabalhadores destinados a permanecernessa condição pela configuração específica domercado de trabalho na Baixada. Contraria-mente a todas as aparências, os trabalhadoresmarginais configuram um tipo humano neces-sário à expansão da área, como se verá.

Grande parte dos entrevistados vivia deocupações pagas "por tarefa" ou "por emprei-tada", ou seja, ocupações constituídas para umdeterminado serviço. As mais freqüentes eramas atividades de construção civil, um ramopróspero na Baixada, tanto para as grandesempresas de engenharia como para as pequenasorganizações empreiteiras. Ao que tudo indica,é uma produção realizada com base principal-mente no uso puro de força de trabalho braçal,remunerada a níveis baixíssimos e com um tipode vínculo empregatício não fixo; e esta deveser exatamente a razão de ser um empreendi-mento bem sucedido. l!: possível pensar que aconstrução civil complementa a alta capitali-zação e produtividade dos outros ramos indus-triais da Baixada, permitindo uma acumulaçãode capital transferida, em parte, para as outrasatividades econômicas. O mecanismo reflete-sena composição do mercado de trabalho: criacontingentes de mão-de-obra presos a certos ti-pos de atividades, pela exclusão objetiva de ou-tras. Do ponto de vista do trabalhador margi-nal, as atividades de construção civil, de desma-tamento para novas unidades de expansãourbana, etc., são a grande fonte de sobrevivên-cia. Estas atividades são conseguidas por duasfontes: os amigos ou parentes que avisam daoportunidade, e algum trabalho anterior quepareceu satisfatório a um determinado emprei-teiro ou pedreiro regularmente vinculado a al-guma empresa, que manda chamar. Destaspessoas, três trabalhavam em empreitadas nomomento da pesquisa, oito esperavam chamadoe nove viviam de "bicos" variados enquantoesperavam ou o chamado para uma empreitadaou para um dos empregos a que sempre são can-didatos. O campo marginal de carências aí sedefine claramente: a ação do trabalhador orien-ta-se sempre para o possível e o impede de bemcompreender sua situação real. O presente detrabalho intermitente e pauperizador é vividocontraditoriamente: a exclusão é pensada pelapossibilidade da passagem para a segurança ea efetivação de um outro estilo de vida. A im-possibilidade desta passagem é que cria e marcao seu campo de experiência peculiar.

Enquanto esperam, exploram as possibili-dades oferecidas dentro das balizas deste campo- os "bicos". A fonte de obtenção de rendamais satisfatória como "bico" é a pesca. Comoatividade, ela se radica na possibilidade de dis-por de uma canoa e de contar com uma certaexperiência, especialmente em caso de trabalhoa meias. Mais ainda, é preciso conhecer os lo-cais melhores e também garantir relativamenteos prováveis compradores do produto. Quandoexistem estas condições, o pescador chega afazer de Cr$ 100,00a Cr$ 170,00por mês; quan-do não, varia entre Cr$ 50,00 e Cr$ 80,00. Setrabalha a meias com o dono da canoa, seu ren-dimento é mais baixo ainda. Por pior que seja- e a pesca é muito desvalorizada como ativi-dade, pelo sacrifício que representa - é noentanto relativamente freqüente comprar outer um projeto de comprar um "barquinho" desegunda mão, " para se garantir nos temposdifíceis". Muitas vezes, é um negócio pesadopara o comprador, que envolve longas presta-ções e que raramente se paga enquanto negócio,no sentido de uma rentabilidade satisfatória.Aqui, como em quase todas as atividades queexerce, o trabalhador marginal apenas se man-tém nos limites da sobrevivência.

A coleta de caranguejos nos extensos man-gues que margeiam o estuário é um recursobastante usado nas épocas de desocupação, e éuma atividade freqüentemente atribuída aosmenores, como atividade complementar. Comoinstrumento, precisa-se apenas de um balde ede "um bom golpe de vista". Em geral, o pro-duto é vendido por dúzia, nas casas residen-ciais, ou então por balde, na feira e em algunsbares, ou mesmo na rua e nas estradas. Pordúzia, conseguem-se Cr$ 3,00 a Cr$ 4,00. Devez em quando, em lugares especiais do man-gue, conseguem-se coletar ostras e mariscos, quevalem mais. Em épocas particularmente difí-ceis, há depoimentos de que a família intei-ra vai coletar este produto e depois se dirigeaos vários pontos da cidade para vendê-lo. Deoutro lado, na medida em que a constituiçãogeográfica da região permite, há pessoas quevivem da coleta de produtos naturais das áreasonde ainda existe mato e frutos naturais. Umdos entrevistados havia montado uma vendi-nha na parte da frente do barraco onde morava,e vendia "tudo o que acho por aí. l!: assim: saiobem cedo, pego as bananas, palmitos, laranjasque dá num lugar que eu sei para dentro da

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ilha de Santo Amaro. As vezes pego sobra defeira e das vendas do porto e aí de Itapema, quenão estão ruins... É preciso só saber ondetem". Ele ganha pouco, pois "mesmo que qui-sesse, ninguém aqui tem dinheiro pra pagar".Ganha cerca de Cr$ 3,00 por dia, variando como que achou e com a disponibilidade monetáriadas pessoas naquele dia.

Há também pessoas que descobriram, de umaforma ou de outra, alguns "protetores" nas re-sidências de Santos e de São Vicente. Esses vãovender seu trabalho para qualquer serviço quearranjarem: limpar jardim, varrer calçadas,lavar carro; e quando não há nada para fazer,sempre se consegue "algum ajutório". É umserviço considerado bom, pois em geral as resi-dências - e mesmo alguns bares ou locais queadmitem serviços semelhantes - dão o almoçotambém. Mas é um serviço de difícil aceitação:às vezes anda-se o dia fiteiro e não se conseguenada. O porto é outra fonte de algum dinheiro:não raro, vai-se para a área portuária e fica-selá, "rodando e encontrando conhecidos, e sem-pre se arranja algum". Fazer ponto na cidade,como guardar carro ou mesmo mendicância,é mais difícil: os melhores pontos já têm dono,e se alguém quiser tomá-los, é ou por acordoou por briga.

O trabalho feminino tem, relativamente,maiores alternativas, embora seja menos ren-doso. Predomina o trabalho doméstico, que nemsempre é um bom emprego, porque os saláriossão baixos - entre Cr$ 80,00e Cr$ 100,00paraquem trabalha por mês, e de Cr$ 5,00 aCr$ 7,00 por dia. As mulheres que trabalhavampor dia freqüentemente tinham de dois a trêsdias de trabalho por semana, a maioria lavandoe passando roupa exclusivamente. Em geral, asmulheres gostam desse trabalho e o valorizam

122 especialmente se tiverem a sorte de ter uma"patroa boa", pois sempre é "um amparo, ouveas dificuldades e dá comida e roupa" emboraseja difícil achar "patroa boa". Surpreendente-mente, só quatro chefes de família opunham-sea que mulher trabalhasse fora - pelo contrá-rio, valorizavam sua ajuda em casa. Ao quetudo indica, a urgência da sobrevivência fazcair o tão decantado padrão da divisão de pa-péis familiares. O serviço doméstico é conside-rado fácil: "Sempre fui doméstica, e não des-gosto. É só saber lavar, passar e pôr um gostona comida. Qualquer moça sabe isso, a senhoranão sabe?"; "Já tentei outra coisa... mas can-Revista de Administração de Empresas

sa muito. Sei lavar e passar e fico nisso, tábom... " Muitas vezes, a casa é sustentada ex-clusivamente pelo trabalho da mulher, comoempregada doméstica. A outra profissão femi-nina freqüente na área é a de catadeira decafé, nos Armazéns Gerais da área portuária.Esta ocupação é valorizada porque, de um lado,"não cansa, e o ambiente é bom. Trabalho numamesa grande, ficam as mulheres de um lado eoutro e o café vai passando. .. dá para ir con-versando e ninguém tem disputa. De domésticaacho que dava mais, mas estou velha e é muitacanseira, ainda mais agüentar patroa ... no Ar-mazém a gente fica sentada o dia inteiro". Deoutro lado, é um serviço irregular, pois quandonão há café não há trabalho; o trabalhador dosArmazéns, avulso, não tem ponto nem horárioe só trabalha quando há serviço. A média derenda obtida é de Cr$ 4,00 por dia.

As ocupações descritas constituem as únicasalternativas da população local, e representamo limite extremo permitido pela estrutura ur-bana do mercado de trabalho na Baixada. Essemercado, no entanto, alarga as possibilidadesde trabalho durante três meses por ano: a tem-porada de veraneio em Santos, São Vicente eGuarujá. É a grande época dos vendedores am-bulantes, dos fotógrafos de praia, dos empregosnos bares e cafés, do chamamento para a vendade sorvetes e refrescos, da criação de outros"pontos" de guardar e lavar carros - e quandoas prefeituras ou os serviços de assistência so-cial não atrapalham, é a grande época tambémpara a mendicância. Os produtos da pesca al-cançam melhores preços, chama-se mais gentepara os barcos e para a coleta nos mangues, háempregos mais bem remunerados para as do-mésticas. Mesmo quando acaba, a temporadadeixa alguns rastros atrás de si: há construçãode novas casas de veraneio, expandem-se os ser-viços urbanos, chamam-se pessoas para "abrirmato, levantar parede".

Finalmente, muitos dos entrevistados (cinco)eram aposentados, ou por tempo de serviço oupor invalidez - estes últimos, todos por aci-dentes de trabalho geralmente ocorridos noserviço de carga, deformadores da coluna ver-tebral. Vivem do INPS ou do Sindicato, comuma renda inferior ao salário mínimo (de 50a 70% do valor desse salário). O comércio am-bulante se fazia representar por duas pes-soas apenas: uma delas dividia seu tempoentre a venda de bilhetes da Loteria Federal e

uma representação de carnês de uma orga-nização de artigos domésticos baratos, e a outraera fotógrafo ambulante de praia.

O "Levantamento socioeconômico cadastraldo Sítio Pai Cará" encontrou, para a populaçãoativa global da área (27,8% da população pre-sente em 1968), 18,3% de desempregados euma taxa de 27,9% de sobreposiçãode empregos.Por outro lado, a renda média familiar para apopulação global da área era de Cr$ 262,94,sendo Cr$ 158,86 provenientes de salário eCr$ 103,08de "outras rendas". 17 Desta forma,o próprio bairro operário por inteiro, onde seincluem 52,3% de empregos de turno fixo, con-tém não obstante uma alta taxa de instabili-dade de participação na escala de ocupaçõesoferecidas pelo mercado de trabalho local. Istopode indicar que esta instabilidade é componen-te constitutivo das atividades e do crescimentoeconômico e urbano da Baixada, ou seja, que aampliação de setores produtivos vai lado a ladocom a incorporação instável da mão-de-obra. 18

Se tal tendência puder ser comprovada, é umfenômeno que estará sem dúvida muito longeda situação anômica ou mesmo economicamen-te irracional assinalada ou sugerida nos estudossobre "marginalidade".

Uma análise das características das formasde ganhar a vida predominantes indica que nãohá desocupação aberta absoluta na área, em-bora o grau de desemprego seja grande. 19 Ouseja, existem formas intersticiais de ocupaçãoque representam subsistência, pelas quais sevive efetivamente e que são permitidas pelaestrutura econômica global da área em questão.Lança-se mão delas nos períodos de "interva-los" entre os serviços temporários regulares, eambas as formas de atividade reforçam a espe-rança e a procura do emprego regular estável.Em segundo lugar, é de se notar que, excetuan-do as indústrias petroquímicas de Cubatão, to-dos os demais setores econômicos da Baixadapermitem a presença do trabalho marginal edas formas intermediárias de subsistência. Bas-ta lembrar que tais atividades distribuem-sepela área portuária, que permite um sem-nú-mero de biscates; pelo setor de serviços urba-nos vários, que utilizam esta mão-de-obra paraparte considerável de tarefas (ajudantes detudo); o próprio comércio, que a "contrata"esporadicamente para tarefas múltiplas. Mes-mo que alguns destes serviços sejam "desem-prego disfarçado", não tendem a constituir

unidades periféricas ou marginais do mercado,do ponto de vista de sua importância na estru-tura de produção local. Dessa forma, se a teo-ria da marginalidade, que se apoia na setoriali-zação econômica para indicar a importânciade alguns setores tecnificados em detrimento deoutros, indicar também a pouca importânciaeconômica destes últimos, de modo a seremapenas importantes como absorvedores de mão-de-obra, então ela parece estar equivocada. Semdúvida, as atividades marginais guardam umarelação direta e importante com a "heteroge-neidade tecnológica" 20 que diferencia os váriossetores econômicos entre si e em si mesmos, doponto de vista de sua produtividade. A absorçãode empregos na Baixada, como se viu, expressaessa relação direta com o nível de tecnificaçãode cada ramo produtivo. Como assinala Gold-enstein, "o pessoal requerido pelas indústrias deCubatão é pouco numeroso, principalmentequando comparado com o capital investido e ovalor da produção". 21 Nesse caso, Cubatão, querepresenta na Baixada o "setor moderno" da in-dústria de transformação, repousa seu dinamis-mo na exploração mais intensa da força de tra-balho já incorporada, excluindo com isso grandeparte da mão-de-obra presente na área. Mastudo isso não invalida a hipótese de que a mão-de-obra excluída deixe de ser rentável ao capi-tal. Pelo contrário, existem pelo menos doissentidos, conectados, em que pode representarum fator rentável ao capital, nesse contexto:primeiro, a extrema compressão da renda poderepresentar o baixo custo de reprodução da for-ça de trabalho, que se torna significativo quan-do se pensa que os trabalhadores marginais sãoaproveitados, intermitentemente, em atividadesurbanas necessárias à expansão econômica eurbana (principalmente construção civil, aber-tura de estradas e serviços urbanos vários), nãose constituindo em força de trabalho "despre- 123zada". A sua condição, de participação-exclu-são, longe de representar o resultado de umdesprezo econômico pela sua potencialidadeprodutiva, representa o resultado de uma polí-tica ao que tudo indica racionalmente feita doponto de vista da acumulação. O que se temé o seu grande aproveitamento como mão-de-obra braçal, trabalho barato, sustentador departe da expansão econêmíca e urbana da área- direta e indiretamente. Não se trata apenasde atividades que "encobrem" a diminuição dataxa de absorção de empregos produtivos, no

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sentido de uma política deliberada de sustenta-ção desta mão-de-obra. Representa tambémuma solução rentável pelo baixo custo do tra-balho em produtos cuja natureza faz, de seuuso, uma boa alternativa. Em segundo lugar,se tal hipótese for correta, a remuneração bai-xíssima e intermitente desta força de trabalhorepresentaria uma transferência de renda emfavor dos setores médios e altos, tornando es-tes últimos os grupos sociais realizadores doconsumo interno e significativo do sistema 22

- o que implica reconhecer que a margina-lização é essencial para a concentração de ren-da, e para a expansão do sistema, nos moldesem que está sendo levada. 23

Desse prisma, a mão-de-obra "sobrante" as-sume caráter funcional, exatamente na medida-em que existe como excedente da mão-de-obratotal já aproveitada diretamente na reproduçãodo capital. As formas de subsistência das pes-soas estudadas indicam duas coisas fundamen-tais: primeiro, os custos ínfimos necessários àreprodução da força de trabalho enquanto fa-tor de produção. 24 As atividades muito poucoprodutivas e em certos casos fora da interfe-rência direta do capital, que, em princípio, nãogerariam valor e não constituiriam trabalho so-cialmente necessário, descobrir-se-iam a si mes-mas com o sentido desta reprodução gratuita deum fator de produção. Em segundo lugar, amão-de-obra, uma vez reproduzida e mantidaenquanto força de trabalho, pode ser requisi-tada para participar de parte das obras de ex-pansão econômica e urbana, onde passaria aparticipar do produto de forma plena; nestesperíodos, sua exclusão e atipicidade desapare-cem. O que resta desse movimento todo é odelineamento de um campo específico de exis-tência, marcado pela pauperização, que subjeti-vamente se estrutura como participação-exclu-

124 são. Nessa medida, assume as característicasclássicas de um exército de reserva para aacumulação de capital de toda a área urbana,mesmo que não o seja especificamente para asatividades industriais de alta capitalização, emtermos de rotação de mão-de-obra facilmentesubstituível. .

3. Tensõese conflitos

A mão-de-obra marginal realiza-se a si mesma,como tipo humano sociologicamente caracteri-zável, dentro da expansão de um sistema pro-Revtsta de Admtntstração de Empresas

dutivo já formado, e caracteriza-se por ser basi-camente força de trabalho disponível, cuja par-ticipação no mercado de trabalho se dá pelaoferta constante de sua venda, mas não incor-porada estavelmente, em termos de exploraçãoregular direta, no processo de produção. A dis-ponibilidade e oferta constantes da força detrabalho, aproveitadas intermitentemente pelosistema em áreas e épocas específicas de suaexpansão, constituem os marcos da situaçãomarginal, um campo de atuação vivenciadopela impossibilidade da passagem à efetivaçãode um outro estilo de vida.

A situação de participação-exclusão, pautadapela relativa sedimentação de um estilo de vidainstável e pressionado a manter-se nos limitespossíveis de existência social, revela-se clara-mente no tipo de inconsistência e tensões for-muladas pelo trabalhador marginal, que, aomesmo tempo que nega o seu estilo de vida, aele está, não obstante, "adaptado". Isto é desco-berto, em primeiro lugar, pela atitude assu-mida frente ao esgotamento objetivo da deman-da de ocupações estáveis. O discurso do traba-lhador marginal aponta para a apropriação efe-tiva dos lugares e das oportunidades de traba-lho por outras pessoas, criando assim um outrotipo de trabalhador ao qual se opõe, seja pelafalta de "sorte" ou pela falta de qualificação.Estes "outros" trabalhadores dividem, com opatrão, o papel de objeto principal das tensõescrescentemente sentidas. A propriedade dasoportunidades de trabalho marca as relaçõessociais entre todos os participantes - efetivose potenciais - do mercado, gerando uma lutapela ocupação rendosa em um mercado ondeo ser dono e proprietário do direito efetivo dotrabalho chega a ser disputado violentamente.O antagonismo latente sentido pelo trabalha-dor marginal contra o operário estável encon-tra correspondência no forte preconceito peloqual este se refere àquele: são "baianos", "ma-loqueiros", "fracos", "não sabem fazer nada",são "malandros" e "é preciso estar de olho".Seu sentido principal é a urgência que o tra-balhador estável tem de se defender contra aredução do mercado de trabalho e de rendasalarial, ameaçado em grande parte pela exis-tência de pessoas que vendem trabalho a qual-quer preço. :s: claro que esta disputa se circuns-creve às ocupações passíveis de serem preen-chidas por qualquer trabalho - em geral, tra-balho simples, braçal e de baixa qualificação.

o sistema de trabalho imposto pelos sindicatosdo porto indica que acumulam suas funçõesde proteção e garantia do trabalhador a elesassociado, também contra a utilização direta damão-de-obra disponível. Veja-se, por exemplo, ocuidado tido na contagem de horas trabalha-das pelos "bagrinhos", representando pontosefetivos que os tornarão sócios do sindicato; acategorização do trabalho definida e controla-da pelos donos reais do direito de trabalhar,conquistado duramente ao longo da história daconstituição do porto. Um dos entrevistados,estivador, assim se expressava: "Claro que asituação às vezes se encrenca. Mas nós, quesomos operários portuários, temos que ter jeito,tratar com paz e igualdade, como falou um pro-fessor que foi ao Sindicato falar pros da estiva,mês passado. Se não, prejudica o desenvolvi-mento. Eu tenho cultura e sei disso, tá certo?Sei os truques, não sou como estes aqui (os seusvizinhos). Nós pode fazer tudo isso, tudinho,parar: já viu um desenvolvimento sem porto?Somos a alavanca para a exportação. Comosei? Eu leio nas revistas e sei disso. Sou amigodo Delegado do Trabalho marítimo e leio aspublicações todas, gosto de saber das grandezasdo Brasil e de Santos. Não sou como estes daqui,estes são baianada, não sabem fazer nada ...Mas a greve está proibida, a senhora sabe, asenhora faz estatística,. então não pode fazerporque prejudica o Brasil. Não estamos preci-sados, agora não. .. os nordestinos tudo aí quea senhora viu, tudo muito ignorante, esses sãogente que pega qualquer serviço e estão tudolouco pela estiva... precisa estar de olho, oSindicato controla ... " :t constante a referên-cia a esta mão-de-obra, mesmo que se saiba queela não tem condições de ser aproveitada deimediato, e que, quando o for, será permitidapelo Sindicato. O que acontece na área do portodeve também acontecer nas outras áreas, em-bora não haja dados que permitam a afirma-ção. Há, no entanto, pistas para isso: "NaUltrafértil. .. trabalhavam quatro grandes fir-mas empreiteiras ( ... ) as quatro juntas che-garam a ter três mil homens trabalhando; osoperários sem qualificação são contratados naprópria obra, sem que se precise anunciar. Dia-riamente apresentam-se mais de 50 homensapesar de já se estar em fase final de obra.( ... ) O número de empregados fixos das com-panhias empreiteiras é mínimo, contratam edespedem segundo os serviços." 25

A relativa "adaptação" do trabalhador margi-nal a este estado de coisas é a sua esperança- um dado variável mas sempre presente -de superar sua condição de venda intermiten-te de trabalho barato através do fator sorte,ou então de projetar aos filhos a sonhadaaspiração de ser operário qualificado. E o dado

. que corporifica essa esperança, contraposta àsua consciência de expulsão, é o sucesso (re-lativo) da invasão dos terrenos que ocupam,e que para eles tem o significado de auto-afir-mação: é o seu chão, conquistado e garanti-do por direito de fato numa ordem onde tudoo mais está fora. do seu controle.

A formação do Sítio do Pai Cará, como seviu, deu-se em meio 'a verdadeira luta - nemsempre manifesta - pela posse dos seus ter-renos, gerando tensões indisfarçáveis no quetoca à efetiva permanência do pessoal inva-sor, e fazendo da regularização dos lotes o temaque sintetiza a condição marginal. No momentodesta investigação, iniciava-se a implantaçãourbanística básica, que contava entre seus ob-jetivos de execução prioritária a "regularizaçãodo domínio jurídico da área por parte do esta-do, possibilitando a subseqüente regularizaçãoda posse individual (Levantamento... p. 22),o que traria a perspectiva de regularização de6 600 residências e um "acréscimo previsto nosserviços de arrecadação municipal" (Levanta-mento ... p. 23). Para os moradores da áreaque foram o objeto desta pesquisa, 26 a interven-ção era simplesmente uma ameaça, coisa de"má fé" e "politicagem, tem gente ganhandocom isso, às custas de nós". Era constante noseu discurso o temor frente a uma possível ex-pulsão da área, que simbolizava para alguns acompleta expulsão do próprio direito de vida:"Cada lugar novo que nós morou acabou. Aquifoi primeiro no morro do Jabaquara, lá era bom,daí durou até o desabamento. Dai nós fomosmorar na Areia Branca, um lugar que a prefei-tura deu, daí um dia chegou a polícia e desmon-tou tudo, pondo todos os barracos emboladosjuntos na rua. Aqui é o que durou mais ... jácansei de tanta transação. O marido está comserviço agora, porque tirar nós daqui? Quandofoi lá no Jabaquara, o marido falou pra mim eeu pro marido: nós ficamos. Mas era pedra eterra caindo, um rolo. .. a água levou tudo, nãodeu pra salvar nada. Na Areia Branca, só nãobrigamos porque era polícia, eles são muito for-

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teso Eu daqui só vou pro cemitério, digo paraeles"; "Eles não sabem da trabalheira toda ...a profissão de sofredor não rende dinheiro, de-viam saber"; "Somos tudo contra esse lotea-mento, preço absurdo pra morar ... estou faz 11anos aqui, desde oito ouço falar que o governovai interferir e melhorar as coisas. Sempre ficana mesma. Agora dizem que tem que pagartudo de novo, isso é que melhora? Tava nósmelhor sem eles."

O clima de insegurança que esse assunto gerafaz com que tudo o que eles têm de agressivovenha à tona, tornando a regularização doslotes a preocupação política fundamental e as-sunto de discussão obrigatória. Em primeiro lu-gar, a tomada do terreno e a moradia efetiva jádão um direito fundamental. Em segundo lugar,a posse é garantida por recibos dos mais varia-dos, contas pagas de luz, principalmente. Emterceiro lugar, os terrenos pertencem à Marinha,e portanto o governo não pode intervir. Estessão os argumentos utilizados secundariamente,pois o principal é um direito "moral" à posse.Nesse clima, não é de estranhar que o plano deurbanização recomende "uma mobilização dasforças psíquicas", um aproveitamento dos "va-lores rurais" em termos do "alto espírito decolaboração da população, particularmente noque diz respeito ao entusiasmo pelo chamadomutirão", comprovado na experiência do IPESP;o plano preocupa-se especificamente em "asse-gurar a plena cooperação da população naimplantação dos projetos específicos". 27 Eas condições específicas pelas quais lutaramsão: "acanhados barracos de madeira, cons-truídos sobre 'mourões', ao abrigo das inun-dações. .. apenas cerca de um quarto des-sas habitações encontra-se em bom estadode conservação, e, dadas as característicasclimáticas adversas e a tecnologia precária,raramente ultrapassam cinco anos de utiliza-ção ( ... ) Destituída de melhoramentos pú-blicos permanentes, dotada de um traçadourbano irracional, encontra-se a área parcial-mente servida por precárias redes de água eluz ( ... ) Inexiste rede de esgoto. O escoamentodas águas servidas se faz por valas a céu abertonas ruas ... ".28 O interessante de se notar é quefoi a partir de uma invasão conjunta, e ainda o énessa medida, que as pessoas começam a defi-nir-se dentro de uma situação comum. O pró-prio Pai Cará por inteiro passa a ser definido

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como uma dinâmica própria, destacado dasáreas vizinhas e contíguas por uma particulari-dade própria.

A permanência nos terrenos invadidos ultra-passa, portanto, o significado de ser um sim-ples fator de moradia. Ela expressa a instabili-dade existencial característica do tipo humanoque nela força sua presença. No entanto, a es-perança de estabilidade ainda está presente, nasfrases como: "se fosse acabar com isso logo,uma legalização de uma vez por todas" - nes-sas condições seria sem dúvida bem recebida aintervenção. Na verdade, não estão contra acompra e venda como critério de acesso ao ter-reno, e sim contra o valor estipulado para ele,acima de suas posses e possibilidades imediatas.O que foi uma vitória perde-se no descortíniohistórico que têm de si: a integração estávelno sistema.

4. Migração e marginalidade

Do total dos indivíduos entrevistados, a maiorparte era migrante, ou seja, não originária daBaixada Santista. Os nascidos na Baixada com-punham apenas 20% do total de pessoas dasfamílias entrevistadas, não considerando ascrianças até 15 anos, que faria esse número au-mentar a 49% dos entrevistados. Os migranteseram originários principalmente do Nordeste e,em menor grau, de Minas Gerais e Paraná. Co-mo se vê, trata-se de uma composição freqüen-temente assumida, em certos esquemas explica-tivos, como típica da situação de marginalida-de, onde "a migração pode ser metodologica-mente considerada como variável independentenos fenômenos de urbanização, formação e ofer-ta de mão-de-obra industrial, criação de zonasurbanas marginais, decadência da aldeia rurale mudanças culturais na sociedade recepto-ra" . 29 O estudo do caso em questão mostra, en-tretanto, que esta ligação indissolúvel entre mi-gração e marginalidade pode ter, em seus doiscomponentes, significação explicativa diversado que a comumente atribuída. Para tanto, aexposição que se segue distingue os indivíduosentrevistados e sua história entre os que sãooriginários da Baixada e os que são origináriosde outras localidades e regiões brasileiras. Den-tre estes últimos, nove haviam nascido em ummeio urbano com mais de 20 000 pessoas, sendo

predominantes, portanto, os originários de áreasrurais. 30

Havia sete indivíduos cuja situação originalera a de participarem de famílias de pequenosproprietários autônomos rurais, e que persisti-ram nesta condição pelo menos até a idade adul-ta (21 anos). Todos eles tiveram, como primei-ra atividade, o trabalho em "roça própria", ondese plantava "alguma coisinha do necessário epara vender" 31 na feira dos núcleos mais pró-ximos. O produto da venda era gasto no arma-zém, comprando o que desse. Era uma produ-ção familiar, todos participavam "capinando demanhã até de noite". Por várias razões, começaa não dar certo: a seca, primeiro, e o comérciodo produto, que "acabava não rendendo nada".Ao longo do processo, começaram a exercer ati-vidades a princípio subsidiárias, mas que aca-baram sendo ao final as principais: "Meu paitinha dois lotes de burros e um pasto grande.Ia de manhã pelos sitios adentro e voltava coma produção que ia vender na cidade. Isto porquea roça não dava mais" (Jacobina, Bahia). Maso papel de intermediário é uma exceção: a ati-vidade "extra" principal que começou a sergradativamente predominante foi a de "traba-lho por dia na terra dos outros" - de onde aotrabalho volante como decorrência necessária.Muito em breve, estes trabalhadores venderam("perderam") a roça e acabaram transferindo-se para outras áreas agrícolas com maiores pos-sibilidades, aí já transformados em trabalhado-res assalariados agrícolas.

Este movimento, que resume o fundamentalde histórias empiricamente diferentes, indicafatores importantes apreendidos pela consciên-cia do trabalhador. Não só a seca (Sergipe, Ba-hia) , mas principalmente a falta de um merca-do onde seus produtos pudessem ser bem ven-didos é, na verdade, o principal fator apontadopara a desistência da roça própria. Quando fa-lam dessa época de suas vidas, a pauperizaçãoque se apodera de todos na região é a referên-cia constante que organiza o depoimento: haviamais gente pobre do que gente que podia com-prar. As frutas estragavam-se ao sol. A comi-da começou a ficar escassa e não dava paracomprar até o essencial. O lote de burros nãocompensava. Faziam plantação nova e perdiamtudo. Dessa forma, aos poucos rompia-se o uni-verso de sobrevivência possível, que se aproxi-mava cada vez mais de uma auto-subsistência

não desejada e nem possível objetivamente, namedida em que havia o forte apelo de um mer-cado já constituído em moldes urbanos, nascidades próximas. Para estes pequenos proprie-tários, a transição para o trabalho assalariadoagrícola e posteriormente urbano se deu "natu-ralmente", no sentido de ser uma transiçãodeterminada por dois fatores: uma condição in-sustentável de mercado para a sua produçãocomo pequenos proprietários e a efetiva orienta-ção para um estilo de vida urbano. No primeirocaso, é lícito dizer o que foi dito para a outrasituação de trabalho independente: "o que erafonte de fartura transforma-se em fonte de mi-séria. O trabalho independente não é mais doque proletarização virtual". 32 No segundo caso,trata-se da "socialização antecipada" dos indi-víduos para a "... generalização e consolida-ção da vida urbana como padrão de referênciapositivo". 33 Essa reorientação, no caso em ques-tão, tem um sentido a mais: tal como colocadono discurso dos indivíduos, a passagem para otrabalho assalariado foi feita por uma perspec-tiva de melhoria de vida, não havendo nenhu-ma referência a qualquer dificuldade de adap-tação ou assimilação ao que deveria ser um novoestilo de vida e consciência: "Todos falavamque era melhor, que tinha mais facilidade ...eu saí de Pernambuco e fui direto pro Norte doParaná, que tinha uns parentes que se arru-maram trabalhando lá e ganhando bem, nocafé"; "Vendemos tudo e fomos embora, praMinas, bater algodão... diziam que pagavambem, que podia comprar as coisas." A falta des-sa referência pode indicar que, desde o início,esses pequenos proprietários já descortinavam,sem maiores dificuldades, o papel de trabalha-dor assalariado como um horizonte históricoprovável, conformando-se antecipadamente coma impossibilidade de sobreviver como propríe- 127tários-trabalhadores autônomos. Esse parece sero sentido de sua "socialização antecipada"; maisdo que aos padrões estritos da vida urbana, re-presenta a adesão ao estilo de vida suposto nopapel de trabalhador assalariado, como a viapossível para à efetivação de um modo de vidamais compensador: "Sentir ir embora? A gentesente, já conhece tudo .. , mas a roça não davamesmo, eu já sabia que era uma vida atrasadaantes mesmo de sair ... "; "Não desclassificominha terra, de jeito nenhum, lá era melhorde tudo ... mas não na roça, que tava cada dia

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pior ... é uma questão de meios, não de gente ede vizinhos." A passagem que todos (menosum) fizeram pelo trabalho assalariado agrícolaantes de tentarem a cidade representa a perse-guição desta possibilidade. Nesse sentido, a mi-gração não representou, aqui, neste caso.eumatransição entre mundos sociais opostos e íncon-cílíáveís, no sentido de uma identificação sub-jetiva que se desintegra frente a imposição deum outro papel histórico. Sua auto-aceitaçãocomo trabalhador assalariado era um projetoantecipado e reforçado continuadamente pelastendências objetivas do mercado.

Desde o momento em que se constituíram efe-tivamente como trabalhadores agrícolas assala-riados, podem ser reunidos aos 16indivíduos queinicialmente jâ estavam nesta condição. O queune suas histórias é a tentativa, comum a todos,de terem experimentado o trabalho agrícola emregiões diferentes, e a conseqüente rejeição,aberta e declarada, das relações de trabalho vi-vidas e vigentes no mundo rural. É por aí queapreendem a diferenciação entre campo e ci-dade: esta última oferece combinações maisamplas para se negociar a venda de trabalho,e a parte de sua vida que se passou no mundorural é pautada pelo desencanto progressivodele como um mundo possível de existência so-cial. Por um lado, esse desencanto se marcapela "alteração da estrutura das necessidadesmateriais e não materiais, implicando umquantum maior de consumo, expressa pela as-piração de uma renda-salárío maior". 34 De ou-tro lado, implica a gradativa compreensão dosseus direitos por este estilo de vida: "... àsvezes eu penso que pedra que muda muito nãocria limo ... mas também não se sabe nada quea vida pode dar, tem que arriscar, ter um lugar

128 na vida, toda a gente tem direito de co-mer, de morar, de trabalhar, né? o erradoé morrer de miséria" - e o que o mundo ruralrepresenta é essa miséria aberta, a nega-ção completa da possibilidade de efetivaçãodo estilo de vida superior. "Na roça, a gentemorre de fome, mesmo tendo fartura. Tra-balho o ano inteiro pro dono e mesmo assimfica devendo tanto, que às vezes tem até quefugir de noite por causa da situação"; "Negó-cio de meia? Pior ainda, só se trabalha e depoisnão recebe"; "Jâ viu uma plantação de cacau,das boas? É bonito, muito movimento, corregente assim pra trabalhar. .. mas tudo míse-

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rento, aquilo é ganhar não, é só morrer defome"; "Já andei por aí que nem Deus conta ...do Sergipe fui a Minas, daí Paraná, daí pra Ri-beirão, daí para Minas de novo, até no estadofluminense [á tive ... tudo em fazenda grande,trabalho onde o caminhão levava ... tudo igual,nem conto que é história ruim"; "Roça não gos-to nem de pensar, não é trabalho, é a cares-tia. .. o pior era o mês de maio, da plantação,o mês da fome pra tudo ... aquilo não tem jeito,só pro patrão dono de fazenda grande."

A transição para o trabalho assalariado ur-bano opera-se, dessa forma, novamente semgrandes rupturas. Em geral, ela se deu atravésda passagem por pequenos centros urbanos re-gionais por meio do trabalho esporádico. O tra-balha assalariado urbano era feito, então, con-comitantemente, com o trabalho rural: depen-dia de onde estivesse a oferta. O serviço nãoagrícola constituía, em sua maioria, empreita-das de construção civil e aberturas de estradase ruas; para as mulheres, empregos domésticos.Na medida em que este serviço se mostravacrescentemente satisfatório em relação ao tra-balho rural, e que subiam as referências ao con-sumo, é que surgiam as aspirações de um em-prego fixo no setor industrial, ou seja, a aspi-ração de ser operário, principalmente operá-rio "superior". É nesse momento que tentam acidade grande; a imagem desta é a imagem dotrabalho regular como operárío, do consumopermitido por um bom salárío, pelas fontes decrédito e de uma "casa própria". A forma pe-culiar desta migração transformou-os durantealgum tempo, em famílias do tipo "misto": al-guns membros participavam da situação de as-salariados urbanos e outros de assalariados ru-rais. Mas não se sustentaram durante muitotempo nesta situação. Logo apareciam, à suaconsciência, as vantagens do trabalho urbano:a possibilidade de regularização e a estabilida-de de um salário certo. O movimento migra-tório tende, então, para as cidades que possamrepresentar uma fonte de ocupação rentávelnestes moldes, preferencialmente onde [á ti-nham alguma referência de pessoas próximasque representem um apoio solidário com suasexpectativas, referência esta que condiciona asdecisões de migrar e imprime a direção geográ-fica da migração. Esta rede de relações infor-mais é fundamental no movimento migratório. 'presente em todos os casos.

Para as mulheres, deixar a família na roçae ir para a casa de parentes, ficando lá provi-soriamente até se empregarem, foi, em certoscasos, o primeiro passo para trazer o resto dafamília. O emprego que mais surge aí é o deempregada doméstica, morando com os patrões.A prostituição surge como a outra ocupaçãopossível, e também encaminhada por essas re-lações informais. Nos dois casos, elas acabamengajando-se dentro de um "sistema" próprio edaí em diante não saem destas ocupações. Se-cundariamente elas se encaminham para o tra-balho assalariado formalizado, mesmo que aestrutura das cidades o permitisse. Há apenasum caso onde a transição do meio rural à ci-dade representou diretamente a incorporaçãocomo operária, emprego abandonado apenas poruma nova migração.

Dois casos serão contados a título de expli-citação: no primeiro, uma família de Aldeia,em Sergipe, emigra para uma cidade maior, nomesmo estado. Não encontrando ocupação al-guma, passam a viver do mangue, colhendoostras e mariscos vendidos na feira por lata.Eram três pessoas trabalhando e o pai, entre-mentes, arranjava bicos de carregador na ci-dade, trabalhando também "num bananal gran-de". Os parentes também moravam lá e todosse ajudavam, "tudo do mesmo sangue na po-breza". De tempos em tempos, rodavam pelascidades próximas onde tinham conhecidos. "àsvezes até Aracaju, não era longe". Ficaramassim nada menos do que 15 anos (pos-sivelmente de 1945 a 1960). Aí começou a nãoser mais possível, os filhos crescidos não en-contravam bom trabalho. Resolveram então ira Santos, onde a mãe já tinha uma irmã. Pri-meiro foi a filha mais velha, empregou-se comodoméstica e mandou chamar os outros. Por al-gum tempo, o salário certo foi só o das mulhe-res. Os homens conseguiam empreitadas pioresou melhores. Quando parecia melhorar, acaba-va um serviço e não se achava outro - e todosse voltavam novamente para o mangue. Quandofinalmente construíram um lugar para morar,num dos morros de Santos, um filho quebrou aespinha por carregar excesso de peso; recebeuindenização, mas ficou inutilizado. Desalojadosdo morro, foram ao Pai Cará e se instalaram no-vamente por sobre o mangue. A mãe arranjouemprego de catadeira de café, nos ArmazénsGerais, os filhos casaram e continuaram em

empreitadas, e um deles está servindo o Exér-cito - "este está bem, tudo garantido". Sãounânimes em afirmar que agora é o melhor quejá tiveram: não querem mais nada "nem coma terra nem com a lama". A cidade representapara eles, portanto, uma forma menos cruel deexclusão. Outro caso é de um indivíduo que des-de os 10 anos trabalhava na cana, em Pernam-buco, onde ficou até os 23 anos. Morava comsua família "num sítio do engenho, terra dopatrão". Em 1955, ele resolveu ir embora, paramelhorar de vida. Durante um ano, mais ou me-nos, veio descendo até encontrar uns parentesque moravam em Londrina, norte do Paraná."No caminho, tive muitos ofícios, o que dava,aprendi a fazer tudo." Em Londrina, empregou-se numa firma empreiteira, como pedreiro. Con-seguiu carteira de trabalho e estava bem, atéque a firma o despediu. "Fui posto por enganona lista dos mais velhos." Com o dinheiro quesobrou, comprou um carrinho de pipoca; nãodeu certo. De Londrina foi a Maringá, ser ser-vente de bar, onde trabalhava 12 horas por diae "ganhava salário". Era muito sacrifício, eentão veio para Santos com um amigo, que lheassegurou trabalho fácil. Realmente conseguiu,como servente de pedreiro numa firma, ondeficou quatro anos, morando em Santos, numacasinha alugada. Saiu para um emprego me-lhor, o de empacotador num moinho, onde ficoumais quatro anos; depois o moinho faliu. Esta-va com 41 anos, não conseguia mais emprego;teve de sair da casa alugada, foi para o PaiCará. Hoje faz de tudo, desde serviço de pinturaaté "abrir mato para os postes da eletricidade".Diz: "Não me espanto mais de nada, sei a ma-neira dessa gente", "não tem jeito mesmo", "omundo é assim", mas tem alguma esperançaainda de arrumar a vida. A roça, nunca maispensa em voltar. 129

Com maior ou menor variação, a história des-ses indivíduos demonstra que o sentido da mi-gração, qualquer que seja a direção que se dêa ele, representa a procura de alternativas me-lhores de vida contidas na condição geral detrabalho assalariado, e desde o início represen-ta a afirmação desse papel um ajustamento pré-existente à migração e inserido nas representa-ções integradoras requeridas para a reproduçãodo sistema. A motivação maior, expressa pelaefetivação de um estilo de vida mais alto, con-figura a alienação típica constitutiva do traba-

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lho como mercadoria, a procura de uma "rea-tualização superior da alienação capitalista nu-clear do trabalhador... a afirmação, pelosagentes do trabalho, de um valor maior para amercadoria força de trabalho e a busca, poreles, dos meios de realização desse valormaior". 35 A mobilidade ocupacional, represen-tada exclusivamente pelo aprendizado de novasfunções "urbanas", quase não é citada em seudiscurso e não representa dificuldade maior,desde que tais funções sejam circunscritas aotrabalho manual, como efetivamente o forampara todos os entrevistados migrantes: asocupações do "baixo" operariado, concentradosnos setores de construção civil, serviços urbanose trabalho manual no comércio ou indústrias.Nesse sentido, inexiste um processo de ressocia-lização que se configure claramente pelo objetode trabalho.

Entretanto, existe sem dúvida uma modifica-ção significativa ao longo deste processo de mi-gração, que parece representar uma ressociali-zação fundamental - em termos da constitui-ção tendencial de algo semelhante a um "pro-letariado marginal", cuja possibilidade de exis-tência concreta é dada na medida em que oprocesso de participação-exclusão, mantidoconstante ao longo da existência dos sujeitosdesta investigação, possa compor um dos tra-ços fundamentais do processo de desenvolvi-mento, ou seja, na medida em que possa repre-sentar uma configuração histórica do fator tra-balho. Essa ressocialização é em parte fruto daexperiência migratória, que no caso em questãoculminou com o apego a um lugar possível desobrevivência, 36 no sentido de oferecer acomo-dação a uma forma de vida marcada pela ex-clusão intermitente. O que o processo de mi-gração parece ter deixado claro a esses trabalha-

130 dores é a noção de fluidez dos liames que osprendem, a si e ao seu trabalho, ao sistemaconstituído. Em outras palavras, os agentesassalariados, pressionados a se manterem numainserção instável no sistema, desenvolvem umaforma específica de viver as relações sociais da-das: forma-se neles uma consciência da própriaexclusão, orientadora e ordenadora da própriaexperiência e constitutiva de seu discurso. Em-bora não seja produto exclusivo da experiênciamigratória, a consciência da exclusão tem nelaum de seus componentes principais. Como todoe qualquer processo de migração, o deles con-

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tém também um duplo aspecto fundamental:" ... enquanto mobilidade e remanejamento daforça de trabalho no mercado ... nível da ques-tão em que o migrante cede à condição de ob-jeto, uma vez que a origem e a direção do mo-vimento não caem sob o seu domínio; e enquan-to a migração também é um movimento social,dado que subjetivamente tem sentido como pre-servação ou rejeição de um tipo de vida, comoconservação ou inovação. É justamente o con-teúdo da migração que permite destacá-la ...como transição entre uma etapa e outra da his-tória ou no âmbito de uma mesma etapa". 37

Se este for o caso, a ressocialização dada noprocesso de migração representou uma relativaadaptação à condição marginal, ao mesmo tem-po que a constituiu como forma específica deexistência social.

Isto pode ser pensado também pela ordena-ção do discurso pelo qual este trabalhador seexplica, que gira sempre em torno do presente.O mundo do trabalhador marginal repousa in-variavelmente no imediato, em torno do coti-diano, e se solidifica em volta da sobrevivên-cia, diariamente renovada como problema. Nofundo, o presente representa a explicitação detodo o processo de exclusão, fundamentando opreconceito, a dominação, e classificação quelhe é atribuída na ordem social e o fechamentodas alternativas diferenciais de vida. É atravésda experiência dada no presente que ele ordenao passado e avalia o seu futuro.

A comparação com os trabalhadores assala-riados não migrantes, mas que partilham comos migrantes a situação de instabilidade e in-suficiência na área em questão, é importantepara avaliar o peso da migração na formaçãode uma consciência "adaptada" à situação departicipação-exclusão - ou seja, na formaçãode um universo simbólico marginal. Os quatroindivíduos presentes nessa situação 38 testemu-nhavam um processo de pauperização formula-do através de sua experiência de trabalho den-tro do âmbito da cidade. Seus pais trabalhavamna área do porto ou nos serviços urbanos. Elescomeçaram a trabalhar por volta de 13 anos,em geral nos bares ou no pequeno comércio,ajudando na limpeza ou em alguns serviçosde manutenção. Para os homens, a opção detrabalho foi principalmente o porto, onde porvárias razões não conseguiram vincular-secomo sócios efetivos de algum sindicato nem

como empregados regulares nas Docas. Enga-jar-se na Marinha foi a outra opção, havendoreferências de que era um projeto a longoprazo. Mas de uma ou outra forma acabarampedindo baixa, tentando posteriormente em-pregar-se nas fábricas de Cubatão (Cosipa,principalmente), de onde saíram por causa decortes do pessoal. Hoje se voltam novamentepara o porto, como "bagrinhos" candidatos asócio; no intervalo, trabalham em empreita-das várias e não deixam de procurar constan-temente algum emprego na área industrial.Para as mulheres, é comum ter o dado de seempregarem como domésticas desde 14 anos,vinculando-se às famílias empregadoras emmoldes paternalistas. Posteriormente, ou con-tinuam no serviço de doméstica ou aprendemcostura, de que lançam mão como complemen-tação da renda. Um desses casos é de um in-divíduo que começou a trabalhar aos 14 anoscomo ajudante de ensacador de um moinho.Posteriormente trabalhou como ajudante delimpeza num bar, até os 18 anos, quando seengajou na Marinha como grumete. Pretendiaser marítimo embarcado, mas pediu baixa parair trabalhar na Prefeitura de Guarujá, comoajudante de caminhão. Foi a melhor época desua vida, construiu uma casinha em Itapema esentia-se seguro. Mas houve mudança de prefei-to, e todos foram substituídos. Sem uma ocupa-ção que lhe parecesse segura, resolveu tentarSanto André, onde foi estagiar em uma fábrica.Ficou só três meses, porque não passou nos tes-tes de qualificação. Com medo da vida em SãoPaulo, voltou para Santos, onde se associou aum amigo num barco, para pescar. Hoje tra-balha associado a um irmão, como fotógrafo derua. Ambos trabalham junto com o dono damáquina, que fica com metade da renda; a ou-tra metade é repartida entre os dois. Como éum serviço que depende muito de temporada,continua a pescar nos intervalos; entrementes,há um ano espera um emprego nas Docas. Ape-sar de haver certas vantagens iniciais, em rela-ção aos migrantes, especialmente um maiorconhecimento prático do mercado de trabalhoe também um grau de escolaridade melhor, oque representa uma margem de movimentaçãomais ampla, a significação de sua experiência éa mesma e o sentido da história contada é tam-bém captado pela ótica de um presente que

se deteriora e impõe, ainda que de modo difuso,um novo estilo de vida.

O que precede permite concluir (conservan-do estas conclusões um caráter hipotético emrelação ao objeto pesquisado) que: em primeirolugar, o caráter excludente do universo rural,revelado nas histórias de vida expostas e tam-bém afirmado em vários estudos sociológicos eeconômicos, 39 tende a reproduzir-se no univer-so urbano, mantendo seu caráter fundamentalde remanejamento de força de trabalho no mer-cado. Desse ponto de vista, a migração não temo significado do encontro entre dois mundos di-versos, assim experimentados pelos sujeitos.Sem dúvida existem diferenças marcantes, noplano dos acontecimentos da vida cotidiana: aforma de morar, de trabalhar, de relacionar-sedeve ser evidentemente diversa. Mas, do pontode vista aqui adotado, é a experiência da consti-tuição e recriação de uma situação fundamen-tal, a da constituição de um campo próprio deexistência social, marcado pela exclusão inter-mitente como forma de participação. Não é poracaso que os sujeitos entrevistados apontampara a vivência das relações de trabalho comosendo "a mesma coisa". Em segundo lugar, po-dem-se perceber os limites da própria noçãodeste universo marginal. Se entendido como aconstituição de um modo específico de inserçãodo trabalho assalariado - participação-exclu-são - marcado pela renda-salário abaixo domínimo e pela não-inserção em um empregoprodutivo de caráter permanente, tal universoexiste subjetiva e objetivamente como uma con-figuração própria ao momento histórico: de umlado, como decorrência necessária aos dilemaspróprios de uma política econômica assumidadentro dos marcos da dependência, que assimcondiciona o remanejamento da força de tra-balho para a rentabilidade do capital. De ou- 131tro lado, como formação em curso de um tipohumano acuado entre alternativas que repre-sentam a sua constituição no "limite possívelda existência ou da sobrevivência na ordem so-cial subdesenvolvida", 40 um campo próprio queem sua persistência se afirma como componen-te nas relações de dominação vigentes. Sobqualquer outro aspecto, o conceito de margina-lidade representa a transfiguração do caráterda necessidade deste remanejamento em umestado senão anômico, pelo menos lateral aosinteresses do sistema _. um "problema social".

Trabalho e marginalidade

Deste prisma, o conceito de marginalidade, senão é abertamente ideológico, é pelo menos equi-vocado, pois não há nada que se lhe assemelhena realidade concreta. No caso em questão, po-de-se perceber a relação de importância daexistência desta mão-de-obra em dois sentidos:o valor pago ao seu trabalho, no tipo de ativi-dade exercida, acarreta uma pauperização quepode representar uma redistribuição de renda(transferência) em favor dos grupos situadosacima; e o fato de poder representar um exér-cito-de-reserva, na concepção marxista do con-ceito. Isto significa que, do prisma do sistema,esses trabalhadores estariam numa mesma es-cala de exploração progressiva que caracterizao proletariado no momento histórico atual. 41

Sua peculiaridade é em relação ao grau e à for-ma pelos quais se faz a exploração e o uso delescomo força de trabalho. A metamorfose opera-da pelo conceito de marginalidade - com ex-ceção do de participação-exclusão - é equivo-cada em duplo sentido: primeiro, apoia-se naidéia de uma "conseqüência não desejada" pelapolítica econômica do desenvolvimento. Nessecaso, é um problema social passível de correção- pela educação ou pela qualificação do traba-lho, principalmente - ou então é assumidacomo um dado estrutural, no sentido de repre-sentar uma crescente e irreversível expulsão deuma parcela de mão-de-obra, sobrante em rela-ção aos requisitos do capital e em nada lhe ser-vindo, na medida em que substituída pela uti-lização intensiva de tecnologia. Estas duas hi-póteses parecem não se sustentar no caso estu-dado. O que está mais próximo é que o surgi-mento da situação marginal, que recobre parteda mão-de-obra operária, representa a introdu-ção de elementos novos na sustentação da con-

132 tinuidade de um mesmo estado de coisas, re-compondo a mão-de-obra segundo um aprovei-tamento racional à configuração histórica docapital - pelo seu confinamento a determina-das formas de exploração e a uma conseqüentebaixa participação nas relações de distribuição.Da mesma forma, não se poderia dizer que osramos produtivos nos quais se concentra sejammarginais, mas sim, pelo menos no caso emquestão, compõem uma forma específica de ex-ploração social que dá vida ao trabalhador mar-ginal - é a via pela qual esta situação é .ge-rada.Revista de Administração de Empresas

O universo de representações simbólicas, con-tido no discurso do trabalhador marginal indi-ca estes componentes que, rebatidos ao nívelobjetivo, apontam para estas relações. Seu ca-ráter é, portanto, de hipóteses consistentes ereferidas unicamente ao caso concreto consi-derado. Decorre dessas hipóteses, no entanto, aproposição de uma abordagem que permite des-tacar os fatores históricos que dão o significadosocial concreto à existência de uma mão-de-obra marginal ao conjunto de relações internasque dinamizam e particularizam as formaçõeseconômicas e sociais periféricas. Por um lado,a situação marginal está referida a uma formade existência social singular do trabalho assala-riado. Tem a ver, portanto, com a direção assu-mida pelo processo de realização das formaçõescapitalistas periféricas; o que significa que seinscreve nas transformações e descontinuidadesque esse processo assume na forma de organi-zação de seus recursos internos, por sua vez de-terminados pela dependência externa às socie-dades capitalistas avançadas e à divisão interna-cional do trabalho. Por outro lado, a situação dedependência aumenta ou diminui a margemde movimentação para a realização interna dosistema, ocasionando o remanejamento dos seusfatores de produção e elaborando a cada mo-mento uma constelação singular de relaçõessociais de dominação. É aí que a "exclusão" damão-de-obra pode representar um fato signifi-cativo: na forma peculiar de exploração destestrabalhadores estaria a reprodução "barata" daforça de trabalho como mercadoria, o seu usoem atividades necessárias à produção (emboranão diretamente produtivas) e a formação deum papel "ajustado" à concentração de rendaque parece tipificar a estratégia de crescimentoatual, na sociedade brasileira. O

1 Pereira, Luiz. Populações marginais. In Estudossobre o Brasil contemporâneo. São Paulo, Pioneira,1971.

2 Foracchi, Marlalice M. Relatório final da pesquisasobre As condições sociais da mobilização da força

. de trabalho: algumas características do subempregourbano, apresentado à FAPESP, jan. 1972,mímeogr.

3 Marx, Karl. Trabalho assalariado e capital. Riode Janeiro, Ed. Vitória, 1963,p, 24.

4 Nesse sentido, suas referências são as mesmas queas do proletariado em geral. Cf. Pereira, Luiz. Tra-

balho e desenvolvimento no Brasil. São Paulo, DifusãoEuropéia do Livro, 1965; e Rodrigues, Leôncio Martins.Industrialização e atitudes operárias. São Paulo, Edi-tora Brasiliense, 1970.

5 Ver Pereira, Luiz. Situação operária. Trabalho edesenvolvimento no Brasil. capo 4.

6 Marx, Karl. op. cito p. 45.

7 Este mesmo indivíduo considerou o investigadorcomo uma pessoa que não trabalhava: "professor nãoé trabalho, tanto que só tem mulher nessa profissão".

8 As três pessoas entrevistadas que tinham umarenda acima da média local (estivadores, os quais nãoforam considerados marginais) aspiravam, para seusfilhos, as profissões de classe média: médico e fun-cionário público. Os demais tinham como referênciao operário industrial.

9 O trabalho de Plantec-Huper anotou o seguinte,sobre as expectativas em relação ao trabalho: "Estesdados mostram que ( ... ) preferem decididamenteengaj ar-se como mão-de-obra operária... O totaldos nossos entrevistados manifestou-se desinteres-sado por um emprego de escritório (O%!), o que nãoé de admirar ante a consciência que têm de que nãoestão intelectualmente preparados para exercer fun-ções de empregados de escritório, dentro de uma pers-pectiva razoável de remuneração ... Não resta dúvidade que a consciência que têm do seu despreparo in-telectual é que os leva a essa posição ... " Plantec-Huper. Levantamento socioeconômico e cadastral dosítio Pai Cará. São Paulo, s.d.

10 O termo "consumo efetivo superior" procede deLuiz Pereira, que o utiliza como um dos componentesprincipais da alienação nuclear capitalista dos agen-tes do trabalho. Ver Pereira, Luiz op. cito especial-mente capo 3 e 4.

11 Pereira, Luiz. op. cito

12 A palavra "marginal", neste caso, precedida dapalavra "trabalhador", continua a ser empregada nosentido da participação-exclusão, que caracteriza umainserção específica da força de trabalho. Seu uso,embora infeliz, justifica-se pela absoluta falta de ou-tro termo.

13 Esta situação não é exclusividade da BaixadaSantista. Como se viu, a divisão do mercado de tra-balho e, conseqüentemente, da produção econômicaem duas estruturas diversas, coexistentes e relacio-nadas, é comum a vários trabalhos que tentam ex-plicar a marginalidade. Ver, por exemplo, Quijamo,Aníbal. Polo marginal de economía y mano de obramarginaàa. mímeogr.

14 Esta expressão é retirada de Machado da Silva,L.A. Mercados metropolitanos de trabalho manual e

marginalidade. Tese de mestrado apresentada no pro-grama de pós-graduação em Antropologia Social daUFRJ, maio 1971. mimeogr.

15 Pelo contrário, são as áreas predominantes e emcrescimento contínuo na Baixada, mesmo que sejam"atrasadas" tecnologicamente.

16 A linguagem utilizada reflete bem a filiação aosindicato que entre suas atividades mantém cursosde formação e atualização do estivador. Dentre asmatérias inclue-se educação moral e cívica.

17 O Levantamento. .. não define o que entende por"desemprego", e nessa medida o dado é de difícilutilização. Em todo o caso, deve estar se referindo àspessoas que não tinham vínculo empregatício for-mal. De qualquer forma, o dado é representativo.

18 Segundo Maria da Conceição Tavares e José Serra," . .. a incorporação e expulsão da mão-de-obra pas-sam a ser duas tendências simultâneas e contradi-tórias do processo de expansão e modernização" doBrasil atual. Ver Tavares & Serra. Além da estag-nação. In: Tavares & Serra. Da substituição de im-portações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro,Zahar, 1972.

19 Por "desemprego" entendemos todas as pessoasque não estão ocupadas e "estão ativamente em buscade emprego". Singer, Paul. Força de trabalho e em-prego no Brasil, 1920-1969.CEBRAP, São Paulo, 1971.Por "desocupação aberta" entende-se aqui todos osque estão ociosos ou ocupados em atividades indivi-duais que, segundo Singer, não fariam parte da forçade trabalho.

20 Expressão de Maria da Conceição Tavares e JoséSerra. op. cito

21 Goldenstein, Léa. A industrialização da Baixadasanusta: estudo de um centro industrial satélite.São Paulo. Instituto de Geografia da Universidade deSão Paulo, 1972.

22 Tavares, Maria da Conceição & Serra, J. op. cito

23 Id. ibid. 13324 Valemo-nos aqui da montagem feita por LuizPereira no artigo sobre "Populações marginais", deexcertos de Marx sobre o trabalho nas formaçõescapitalistas:

"1. do ponto de vista social, a classe operária(entendamos: assalariados) é ... como qualqueroutro instrumento de trabalho, uma dependência docapital, cujo processo de reprodução implica, dentrode certos limites, o consumo individual dos trabalha-dores.' (Marx. Le capital. trad. Paris, Eds. Sociales,1960, L.I., t. 3, p. 16). 'A soma dos meios de subsis-tência (existência) necessária à produção da forçade trabalho compreende (também) os meios de sub-

Trabalho e marginalidade

sistência dos substitutos, isto é, dos filhos dos tra-balhadores, a fim de que esta raça singular se per-pertue no mercado. De outra parte, para modificara natureza humana de modo a fazê-la adquirir apti-dão, precisão e celeridade num gênero de trabalhodeterminado, ou sej a, para dela fazer uma força detrabalho desenvolvida num sentido especial, é neces-sária uma certa educação que custa uma soma maiorou menor de equivalentes em mercadorias. Esta somavaria segundo o caráter mais ou menos complexo daforça de trabalho. Os custos da educação, aliás ín-fimos para a força de trabalho simples, estão com-preendidos no total das mercadorias necessárias àprodução da força de trabalho.' (Idem. L. I., t. 1, p.174-5); 2. Se, 'enquanto valor, a força de traba-lho representa o quantum de trabalho social (neces-sário) nela realizado (pelo consumo)', ou complemen-tarmente, se 'o tempo de trabalho necessário à pro-dução da força de trabalho consiste ( ... ) no tempode trabalho necessário à produção desses meios desubsistência', o certo é que a 'força de trabalho en-cerra, ... do ponto de vista do valor, um elementomoral e histórico, o que a distingue das demais mer-cadorias. Todavia, para um país e época dados, amedida necessária dos meios de subsistência é tam-bém dada." (idem, L.I., t. 1, p. 173-4). Ver Pereira,Luiz. Populações marginais. In: Estudos sobre o Brasilcontemporâneo. São Paulo, Pioneira, 1971. p. 165-6.

25 Goldenstein, Léa. A industrialização da BaixadaSantista, estudo de um centro industrial satélite. op.cit., p. 310-11.

26 Estes moradores, no dizer dos técnicos, estavamfora da área a ser urbanizada (veja-se introduçãodesse trabalho). O fato de estarem fora não diminuíao seu temor de serem atingidos por algo que não po-diam pagar.

27 Levantamento ... p. 1 (29) a 1 (33). Capítulo:Resistências e potencialidades latentes na comuni-dade. A intervenção urbanística contava, no momentoda pesquisa, com três assistentes sociais, um enge-nheiro e um advogado.

28 Levantamento ... p. 1 (13) e 1 (14).134

29 Margulis, Mário. Migración y marginalidad en lasociedad argentina. Buenos Aires, Paidós, s.d. p. 11.

30 As famílias objeto desta investigação compre-endiam ao todo 142 indivíduos. Foram entrevistadõs39, que correspondiam a chefes de famílias ou respon-sáveis pela manutenção da unidade familiar. ~ so-mente a eles que os dados se referem. Sua distribui-ção, por origem, é a seguinte: originários da Baixada:7; orígínâríos de regiões urbanas: 9; originários deregiões rurais: 23.

31 Infelizmente, não se recolheram dados para co-nhecer o tipo de lavoura que estes indivíduos cultiva-vam, tanto para subsistir como para vender.

Revista de Administração de Empresas

.32 Martins, José de Souza. A comunidade na socie-dade de classes, estudo sociológico sobre o imigranteitaliano e seus descendentes no subúrbio de São Paulo(Núcleo colonial de São Caetano). Tese de doutora-mento apresentada ao Dept.o de Ciências Sociais (so-ciologia) da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da USP. p. 11.

33 Pereira, Luiz. urbanização e industrialização. In:Trabalho e desenvolvimento no Brasil. p. 114.

34 Pereira, Luiz. op. cito p. 115-6.

35 Pereira, Luiz. Trabalho e desenvolvimento. p. 128(grifos meus).

36 Possível porque uma cidade "com funções eminen-temente comerciais tem uma maior capacidade deoferecer condições de subemprego que centros funda-mentalmente industriais. Quanto ao mais, facilidadesde pesca e coleta de frutas, clima ameno, etc. sãofatores que multiplicam as possibilidades de sobre-vivência local daqueles sem colocação produtiva decaráter permanente". Castro, Antonio. Sete ensaiossobre a economia brasileira. p. 178.

37 Martins, José de Souza. A comunidade na socie-dade de classes. p, 13-4.

38 São sete ao todo, mas três não podem ser cate-gorizados como trabalhadores marginais.

39 Não ficou discutida aqui a relação entre agri-cultura e expulsão de mão-de-obra, por não cair dire-tamente nos limites deste trabalho. Em todo caso, aquestão parece estar relacionada com as regiões cujomercado de abastecimento interno entra em crise.Se a interpretação de Antonio Castro - de que aagricultura expulsa mão-de-obra porque não se ex-pande mais do que o requerido pelo setor industrial,este último o pólo dominante da economia que con-diciona o desempenho dos demais setores - (verCastro, A. op, cito especialmente parte 2 e 3) estivercorreta, nesses termos, podemos colocar a hipótesede que o pouco desenvolvimento de certas regiõesagrícolas e a pauperização que acarreta explicaria amigração dos indivíduos com o custo que a cidadepaga pela sua dominação. Ao se tornarem um "pro-blema social", a cidade tenta incorporá-los institu-cionalmente no seu sistema específico de estratifica-ção e participação, propondo resolver o problemapela incorporação marginal institucionalizada.

40 Foracchi, Marialice M. Relatório ... p. 6.

41 Segundo Léa Goldenstein, "A indústria de Cuba-tão é conhecida pelo seu nível salarial, dos mais ele-vados de São Paulo e portanto do País ( ... ) Esse sa-lário é tido como privilegiado e, no entanto, em setratando de indústrias altamente equipadas e degrande produtividade, a despesa com a mão-de-obra,pouco numerosa no conjunto, constitui uma pequenaparcela no custo do produto. Aliás, tem-se mantidobastante constante a participação da mão-de-obra,nos custos gerais da produção" (op. cito p. 298).