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III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares1
AS MARCAS DA INTERDISCURSIVIDADE NA DOCUMENTAÇÃO
MUSEOLÓGICA SOBRE INDUMENTÁRIA DO MUSEU HISTÓRICO E
ARTÍSTICO DO MARANHÃO
Cláuberson Correa Carvalho1
Resumo
Esta pesquisa teve por objetivo analisar a documentação museológica referente ao acervo de indumentária do Museu Histórico e Artístico do Maranhão enquanto um sistema de textos (documentos) nos quais se verificam discursos relacionados aos valores, símbolos e significados que cada objeto museal detém em seu contexto de uso. Sendo assim, os postulados da Análise do Discurso de tradição francesa sustentaram a análise proposta. A contribuição desta pesquisa está tanto no desenvolvimento de uma análise relevante para os estudos em Análise do Discurso quanto para a compreensão dos museus como instituições-documento, visto que registram a história social e cultural em que suas coleções estão imersas.Palavras-chave: documentação museológica, interdiscursividade, Museu Histórico e Artístico do Maranhão, indumentária.
AbstractThis research aimed to examine the museum documentation about dressing of Historical and Artistic Museum of Maranhão as a system of texts (documents) whose discourses are related to values, symbols and meanings that each object in the museum holds in its context of use. Therefore, the postulates of Discourse Analysis of french tradition supported the analysis proposed. The contribution of this research is the development of a relevant analysis in the studies of Discourse Analysis and the understanding of museums as institutions-document, since that they record the social and cultural history in which their collections are immersed.Key-words: museum documentation, interdiscursivity, Historical and Artistic Museum of Maranhão, dressing.
1 INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, os museus são instituições encarregadas de adquirir, conservar
e expor os testemunhos materiais e imateriais do homem. Adquirir, porque os museus
lidam com peças de grande importância simbólica para a memória social; conservar,
1 Aluno do Curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e bolsista de Iniciação Científica (BIC/UEMA), sob orientação de professora Tereza Cristina Mena Barreto de Azevedo.
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referindo-se aos processos de restauração de peças; e expor, pois organizam
programações de visitas e divulgação dos acervos ao público.
Nesse sentido, a exposição é considerada a única ferramenta de aproximação entre
público e acervo, refletindo, inclusive, a ideia de que a exposição agrega todos os papéis
atribuídos aos museus. Essa atividade, no entanto, corresponde a uma de várias outras
realizadas em uma gestão. Ela é, na verdade, o resultado de uma sucessão de
procedimentos técnico-administrativos; é a parte visível de um processo.
Antes, porém, encontra-se a documentação museológica, que, por ser um trabalho
que não se mostra, permanece, geralmente, inacessível ao grande público. A documentação
em museus adquire uma função não só organizacional, mas, sobretudo, informacional. Isso
porque, enquanto unidade de informação, ela trabalha com a organização, armazenamento,
recuperação e disseminação das informações referentes a todo objeto de uma coleção
(YASSUDA, 2009, p. 17).
Dessa forma, esta pesquisa aborda a documentação em museus não só como
registro de procedimentos aos quais os objetos foram submetidos (empréstimos,
restauração, descrição técnica etc.), mas como um documento em que se percebem cadeias
discursivas pertencentes a diversos ambientes históricos. Pretendeu-se investigar, nessa
documentação, as vozes discursivas, o entrelaçamento de discursos ali registrados implícita
e explicitamente. Por isso, adotou-se uma abordagem interdiscursiva, uma vez que ela
permite identificar/analisar, em um gênero discursivo, as manifestações significativas das
quais ele faz parte.
Essa abordagem interdiscursiva representa uma postura recorrente dos estudos do
discurso. A Análise do Discurso de vertente francesa apresenta dispositivos teórico-
analíticos que investigam as formas de significação implicitamente presentes na superfície
textual. Então, as orientações de Maingueneau (2008a, 2008b) e Foucault (2010) sobre
discurso e interdiscursividade refletem a possibilidade de articulação/diálogo entre as
diferentes formações discursivas demarcadas em uma superfície linguística. Em outras
palavras, a assunção do primado do interdiscurso sobre o discurso.
A documentação museológica aqui analisada corresponde à do Museu Histórico e
Artístico do Maranhão (MHAM). Órgão integrante da Secretaria de Estado da Cultura, o
referido museu tem o acervo erudito mais importante do Maranhão, sendo responsável pela
guarda e preservação de um conjunto de bens culturais composto de, aproximadamente, 10
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mil peças: mobiliário da 1ª metade do século XIX, azulejaria de origem diversa,
porcelana, vidros cristais, coleção de numismática, pintura, gravura etc.
Entre esses acervos, optou-se por estudar a documentação referente à coleção de
indumentária, já que ela registra todos os paramentos utilizados em celebrações litúrgicas,
nas igrejas do Maranhão. A abordagem interdiscursiva permitiu compreender, inclusive, as
práticas religiosas celebradas no referido estado a partir dos estudos das indumentárias
religiosas.
Esta pesquisa insere-se na área de concentração da Linguística, com enfoque na
linha de pesquisa da Análise do Discurso, ligada ao Núcleo de Estudos Linguísticos e
Literários do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
2 A PESQUISA
Esta pesquisa problematiza a função dos museus enquanto instituições-
documento, isto é, instituições que administram a sua gestão, produzindo estratégias
(documentos) destinadas ao tratamento da informação durante as diferentes etapas por que
passam os objetos: desde a entrada no museu até a exposição.
2.1 Objetivos e metodologia
A análise da documentação museológica apresentada neste trabalho compreende
esses documentos enquanto conjunto de textos nos quais se investigam os diálogos que se
deixam entrever nesse gênero. Isso implica na ideia de que o discurso dessa documentação
ecoa outros discursos anteriores e posteriores a ele. Dessa forma, esta pesquisa teve por
objetivo geral:
1. Analisar as marcas da interdiscursividade na documentação museológica sobre
indumentária do MHAM.
Em relação aos objetivos específicos, pretendeu-se:
1. Entender o fenômeno da interdiscursividade, à luz da Análise do Discurso,
enquanto categoria que relaciona discursos de diferentes formações
discursivas;
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2. Compreender a documentação museológica no contexto
informacional do museu;
3. Identificar e descrever as peças de indumentária registradas na documentação
museológica do MHAM.
Quanto à metodologia, a Análise do Discurso da linha francesa apresenta
conceitos basilares para a fundamentação da análise adotada. Utilizou-se desde autores
clássicos (Maingueneau 2008a, 2008b; Foucault, 2010) até as recentes releituras brasileiras
– Orlandi (2008, 2009), Fiorin (2002), Fernandes (2008) e Sobral (2009) – as quais
postulam que o discurso não deve ser compreendido em uma estrutura fechada, mas aberta,
relacionando-o às manifestações significativas das quais esse discurso faz parte.
O corpus da pesquisa foi coletado durante as visitas ao MHAM. As etapas de
coleta e análise do material foram direcionadas pelas indicações de Bazerman (2005, p. 44-
45) no que se refere às diretrizes metodológicas para investigação sobre gênero:
a) coleta de todas as fichas documentais sobre o acervo de indumentária através
da máquina fotográfica;
b) seleção do material: neste momento, levou-se em consideração que as fichas
documentais passam por processos de atualização de dados, uma vez que os
objetos, dentro do espaço museológico, sofrem alterações físicas/estruturais.
Dessa forma, as fichas ainda em processo de atualização ou com dados a ser
confirmados não constituem a amostra analisada;
c) aplicação das ferramentas analíticas: após a delimitação da amostra, aplicaram-
se as fundamentações teórico-metodológicas dos estudos do discurso, com
atenção à interdiscursividade, justificando a abordagem aqui proposta.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nesta seção, apresentam-se os resultados obtidos a partir da análise das fichas de
documentação sobre indumentária do MHAM. Visando atingir os objetivos geral e
específicos, optou-se por sistematizar os resultados em quatro subseções. A primeira
refere-se à abordagem interdiscursiva, traçando os elementos teóricos que fundamentam
essa linha de análise. A segunda aborda o sistema de documentação em museus,
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destacando a sua estrutura e importância para as instituições museais. Já as
terceira e quarta subseções contemplam a análise do corpus.
3.1 A abordagem interdiscursiva
Para a Análise do Discurso, enquanto campo de investigação, o próprio nome já
faz referência ao seu objeto de estudo: o discurso. O discurso, na perspectiva científica a
que se propõe esta pesquisa, implica uma exterioridade à língua, isto é, não é a língua, nem
o texto, nem a fala; necessita, porém, de um material linguístico para proceder a sua
existência em uma superfície discursiva. O discurso envolve aspectos sociais e ideológicos
impregnados nas palavras quando são pronunciadas ou escritas (FERNANDES, 2008, p.
13).
Os discursos não são fixos, estão sempre em processo de (re)construção, visto que
acompanham as transformações sociais e políticas integrantes da vida humana. Orlandi
(2009, p. 60) argumenta que o discurso não pode ser definido como um transmissor de
informação, “mas como um efeito de sentido”, uma vez que o discurso “não resulta só da
intenção de um indivíduo em informar um outro, mas da relação de sentidos estabelecida
por eles num contexto social e histórico”.
No objetivo de identificar a presença de discursos em outros discursos da
documentação museológica (nos modos de dizer, de elaborar textos, nas formas de
interação), é interessante entender o discurso enquanto objeto de análise do método
arqueológico de Foucault (2010). Para o filósofo francês, o discurso é visto como uma
dispersão, sendo formado por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de
unidade. Esses elementos são os enunciados, isto é, o enunciado é a unidade elementar do
discurso.
Para Foucault (2010, p. 122), a análise de uma formação discursiva consistirá na
identificação dos enunciados que a estruturam. O enunciado, na visão foucaultiana:
[...] não é, pois, uma unidade elementar que viria somar-se ou misturar-se às unidades descritas pela gramática ou pela lógica. Não pode ser isolado como uma frase, uma proposição ou um ato de formulação. Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos [...] uma existência específica (FOUCAULT, 2010, p. 123).
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O discurso, por sua vez, é concebido como uma família de enunciados
pertencentes a uma mesma formação discursiva. Segundo Foucault (2010, p. 132-133), o
discurso representa:
[...] um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar [...] na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.
Já Maingueneau (2008a, p. 15) define o discurso como “uma dispersão de textos,
cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades
enunciativas”. O discurso é considerado como um objeto histórico e linguístico, não
podendo desvincular o contexto de produção à formação discursiva. Isso porque os
discursos refletem as características históricas da sociedade onde circulam: valores,
convicções, crenças e conflitos.
O discurso, nessa perspectiva, é considerado nas relações de um interdiscurso: o
discurso só assume a sua postura significativa quando em relação com os outros discursos
com os quais mantém diálogo (MAINGUENEAU, 2008b, p. 56).
O caráter dialógico do discurso, assim, não permite que se despreze a relação dele
com seu Outro, já que todo discurso mantém uma relação (conflituosa, polêmica, de
rejeição, aceitação etc.) com um exterior constitutivo, o já-dito. Segundo Fiorin (2002, p.
45), “A palavra do outro é condição de constituição de qualquer discurso”.
Sobral (2009, p. 101) ratifica a ideia de que o discurso só passa a existir
fundamentalmente mediante um processo de produção de sentidos realizado por, para e
entre discursos. Os enunciados de um discurso apreendidos em uma materialidade
linguística explicitam que o discurso constitui-se da dispersão de acontecimentos e
discursos outros, historicamente marcados, que se transformam e reinventam-se. Ainda
segundo o autor:
Discurso é uma unidade de produção de sentido que é parte das práticas simbólicas de sujeitos concretos e articulada dialogicamente às suas condições de produção, bem como vinculada constitutivamente com outros discursos. Mobilizando as formas da língua e as formas típicas de enunciados em suas condições sócio-históricas de produção, o discurso constitui seus sujeitos e inscreve em sua superfície sua própria existência e legitimidade social e histórica (SOBRAL, 2009, p. 101).
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Denomina-se, portanto, esse entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de
diversos momentos na história e de diferentes lugares sociais, presentes em uma mesma
formação discursiva de interdiscursividade.
O discurso, então, nunca é autônomo, ele está sempre em contato, mesmo que de
forma implícita, com outros discursos pertencentes ou não a uma mesma formação
discursiva. Cabe ao analista identificá-los para realizar as possibilidades de trocas
semânticas entre esses discursos, sempre em um processo de identidade aberta.
A partir dessas considerações teóricas, conclui-se que a interdiscursividade
corresponde a um sistema semântico no qual as relações de significação que circunscrevem
a especificidade de um discurso coincidem com a definição das relações desse discurso
com o seu Outro (MAINGUENEAU, 2008a, p. 35-36).
3.2 O museu enquanto instituição-documento
Entende-se por documentação museológica o conjunto de informações sobre cada
item dos acervos museológicos e a representação destes por meio da palavra e da imagem
(FERREZ, 1991, p. 1). Além disso, esse gênero implica em um sistema de recuperação
informacional capaz de transformar as coleções dos museus de fontes de informações em
fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de transmissão de conhecimento.
Nessa perspectiva, o museu, enquanto instituição-documento, tem a
responsabilidade de disponibilizar meios de transmissão da informação, portanto, cabe a
ele gerir sistemas capazes de possibilitar a comunicação dos dados oriundos dos objetos de
suas coleções. Estes dados devem receber tratamento personalizado para que, dentro de um
fluxo informacional, tornem-se instrumentos para a geração de conhecimento. Em outras
palavras, os museus estão voltados, basicamente, para a preservação, pesquisa e
comunicação das evidências materiais do homem e do seu ambiente, isto é, seu patrimônio
cultural e natural.
O corpus desta pesquisa são as fichas documentais sobre indumentária. Elas
situam o objeto/documento no universo museológico a partir da descrição técnica, menção
ao estado de conservação e especificação de um número de registro único, ímpar. A Fig. 1
registra o modelo de ficha documental do MHAM.
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No reverso da referida documentação (Fig. 2), encontram-se informações sobre
a movimentação da peça dentro do universo museológico, isto é, a sua localização durante
os processos administrativos a que ela foi submetida: empréstimo para exposição, mudança
por motivos técnicos (realização de processos de restauração, por exemplo), atualização do
acervo, entre outros.
As marcas textuais contidas nessas fichas de documentação museológica são
portadoras de informações intrínsecas e extrínsecas. As intrínsecas são deduzidas do
próprio objeto, através da análise das suas propriedades físicas: composição material,
construção técnica e morfologia, que se subdivide em forma espacial, dimensões, estrutura
da superfície, cor, imagens e texto, caso este exista.
Já as informações extrínsecas ou informações documental e contextual são
aquelas obtidas de outras fontes, isto é, informações de que o objeto-documento não dispõe
(MENSCH, 1987 apud FERREZ, 1991, p. 2). Elas permitem conhecer os contextos nos
quais os objetos existiram, funcionaram e adquiriram significado. São geralmente
Figura 1: Anverso de ficha documental Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
Figura 02: Reverso de ficha documental Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
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oferecidas quando da entrada desses objetos no museu a partir das fontes
bibliográficas registradas em fichas documentais. Significado da função, significado
expressivo e significado simbólico constituem exemplos de informações extrínsecas. É
nesse momento de investigação que o discurso da documentação ecoa outros discursos
anteriores e posteriores a ele, caracterizando as construções interdiscursivas.
O sistema de documentação museológica tem o objetivo de identificar, de forma
precisa, as informações referentes a cada objeto do museu. A entrada de dados nesse
sistema não se esgota com o término do processo de registro e catalogação do objeto
recém-adquirido. Ao entrar para o contexto museológico, o objeto continua a ter vida:
muda de localização, participa de exposições, é restaurado. Isso significa que os sistemas
de documentação museológica precisam, permanentemente, ser atualizados e/ou
retificados.
Ferrez (1991, p. 9), então, destaca a importância da documentação
museológica:
A documentação de acervos museológicos é uma atividade, sobretudo, de natureza prática que pode encontrar apoio em outras áreas do conhecimento, como a Biblioteconomia, a Ciência da Informação e a Informática. A aplicação de técnicas oriundas dessas áreas, no entanto, deve ocorrer sempre dentro de uma abordagem museológica. Não basta, porém, adquirir novas técnicas, muitas vezes ultrapassadas ou distanciadas do nosso contexto sócio-cultural. É preciso refletir sobre os aspectos teóricos da Museologia, sobre o museu enquanto instituição social e sobre a necessidade de informação daqueles a quem serve.
3.3 O interdiscurso religioso
O museólogo, ao escrever a ficha documental, identifica cada objeto do espaço
museológico. Como se optou por estudar a documentação referente ao acervo de
indumentária, verificou-se que o discurso dessa documentação ecoa, retrata, evoca,
implicitamente, os significados e usos que cada indumentária religiosa detém em seu
contexto de uso.
É nesse sentido que as peças de indumentária estão ligadas ao discurso religioso.
A análise, direcionada pela abordagem interdiscursiva, parte do texto e se estende aos
significados imbricados na superfície textual (documento). Nessa etapa, há o diálogo entre
o discurso da ficha documental e o discurso sobre as representações simbólicas dos
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paramentos. Reforça-se que o estudo desses paramentos permite uma maior
compreensão acerca das práticas religiosas instauradas no Maranhão.
A amostra de análise, após a etapa de seleção, apresenta 238 fichas documentais,
que descrevem 16 indumentárias religiosas. Em um tratamento quantitativo, quatro peças
receberam maior caráter de descrição. Isto é, dentre todos os paramentos registrados em
cerimônias litúrgicas no Maranhão, quatro foram as mais usadas durante essas celebrações,
a saber2:
a) estola: corresponde a uma faixa de tecido ou lenço luxuoso, muitas vezes de lã
ou de seda, que os padres usam em torno do pescoço, descendo até os joelhos.
São de cores variadas, para serem usadas conforme a celebração e o tempo
litúrgicos. É colocada pelo diácono no ombro esquerdo, como faixa
transversal, e pendente sobre os ombros pelos presbíteros e bispos. A estola
simboliza o poder sacerdotal e a imortalidade ou glória eterna que o sacerdote
pede ao revestir-se dela;
b) manípulo: é outro exemplo de paramento litúrgico usado nas celebrações da
Santa Missa. Inicialmente, era uma espécie de guardanapo, preso a um dos
braços; mais tarde, passou a ser utilizado como lenço pelos oradores no
objetivo de enxugar o suor e as lágrimas. Atualmente, é utilizado preso ao
braço esquerdo por aqueles de ordens maiores. O seu valor simbólico
corresponde às boas obras mediante as quais o sacerdote conquistará o céu e à
corda com que Jesus Cristo foi preso à coluna para ser açoitado;
2 Os significados simbólicos dos paramentos foram referenciados por Pastro (2007, p. 156-160).
Figura 3: Estola em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
Figura 4: Manípulo em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
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c) dalmática: os primeiros registros do uso da dalmática são dos Imperadores e
nobres romanos. Essa indumentária corresponde a uma túnica branca com duas
faixas púrpuras. No século IV, começou a ser usada como paramento exclusivo
do Romano Pontífice. O seu uso não se dava diariamente, mas somente em
ocasiões especiais. Na liturgia católica, essa indumentária passou por algumas
adaptações: colocação de mangas ou capuz, redução do tamanho, utilização de
ornamentações, entre outros. Ela simboliza a justiça;
d) casula: é uma veste litúrgica confeccionada geralmente em seda, damasco ou
tecido em paramentos dos séculos XVII e/ou XVIII. Corresponde a um grande
manto que cobre todo o corpo do sacerdote em relação ao mundo. Ao longo do
tempo, o comprimento do manto foi diminuindo por razões práticas – era
bastante difícil de o sacerdote movimentar-se com ele. A cor da casula varia de
acordo com a cor da Missa celebrada. Existe uma grande cruz nas costas desse
paramento simbolizando o jugo suave da lei de Cristo que o sacerdote deve
carregar e ensinar aos demais.
Figura 5: Dalmática em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
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Percebe-se, portanto, que o discurso da ficha topográfica mantém um diálogo
implícito com o discurso dos sentidos (simbólicos, culturais, expressivos e estéticos) que
essas indumentárias religiosas detêm em seu contexto de uso. Isso é ratificado por Ferrez
(1991, p. 2), quando afirma que um objeto museológico possui informações extrínsecas
que possibilitam conhecer os contextos nos quais existiu e adquiriu significado.
3.4 A ficha documental enquanto prática discursiva
As relações interdiscursivas, no entanto, também se manifestam de outra forma.
Na análise do corpus desta pesquisa, observou-se que os discursos presentes nos textos
produzidos pelo museólogo e/ou técnico de atividades culturais relacionam-se explícita ou
implicitamente com o discurso de outros textos consultados para prepará-la. Há uma
significativa aliança interdiscursiva ligando-os, o que é ratificado por um fato que se
coloca como base fundamental dessa relação: a instituição museológica é uma agência
sócio-histórica de informação.
Segundo Orlandi (2008, p. 89, grifo nosso):
[...] o texto é um lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade. Sendo assim, ele é trabalho de interpretação. É tarefa do analista compreender tanto como os sentidos estão neles quanto como ele pode ser lido. Esta dimensão ambígua da historicidade do texto mostra que o analista não toma o texto como o ponto de partida absoluto nem como ponto de chegada. [...] O texto é parte de um processo discursivo mais abrangente. Com os resultados da análise não é sobre o texto que fala o analista mas sobre o discurso.
Figura 6: Casula em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
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A partir da citação, percebe-se que, na análise de determinado corpus,
o analista precisa atingir o processo discursivo que constrói o texto, na medida em que o
texto é formado por diferentes discursos que contribuem para a compreensão de todo o
processo discursivo do qual eles fazem parte. Isso se justifica pelo fato de que o texto é
“matéria provisória de análise” (ORLANDI, 2008, p. 89).
No canto superior esquerdo da ficha (Fig. 7), nota-se que a sigla AR precede a sua
numeração de identificação dentro do contexto museológico. As peças, por sua vez, que
admitem em suas fichas essa sigla têm como interdiscurso o contrato de comodato. Este
corresponde ao documento que possibilita o empréstimo temporário da peça para outra
instituição, neste caso, a Arquidiocese de São Luís. Em outras palavras, embora esteja
implícito, o discurso do contrato de comodato está representado, denunciado por marcas na
própria superfície da ficha documental.
Outro interdiscurso registrado é quanto ao estado de conservação. Como os
objetos/documentos são suportes de informações, um dos principais objetivos de um
museu é preservar a integridade desses objetos, garantindo a possibilidade de informação
que eles detêm. Assim, o museólogo classifica os objetos museais em estados de
conservação específicos: bastante precário, precário, regular, bom, e muito bom.
Na Fig. 6, a peça foi demarcada com a conservação “regular”. Isso significa que a
peça possui sujeira aderida, pequenas perdas e/ou passa por processo inicial de
deterioração (fissuras, rachaduras, manchas, escurecimento de verniz, desenvolvimento de
fungos etc.). Mesmo com esses problemas, a leitura estética do objeto é legível, havendo a
necessidade, entretanto, de higienização e/ou pequenas intervenções feitas por
profissionais especializados (restaurador), que é capaz de realizar os ajustes necessários
sem que haja a mudança em sua estrutura física e formal.
Figura 7: Ficha documental de nº AR. 92.312.02 Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão
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Percebe-se, no discurso da ficha em análise, que a identificação do
estado de conservação dessa peça ecoa o discurso do regulamento do MHAM, que
determina as características estruturais para que tal classificação seja feita.
A tarefa do analista do discurso, neste momento, não é simplesmente identificar o
porquê de uma peça estar em estado precário ou muito bom, mas compreender como essas
informações foram interpretadas, originadas e de que maneira elas interferem na
compreensão global do discurso da ficha documental, uma vez que a menção ao estado de
conservação de um objeto/documento sinaliza uma série de outros discursos provenientes
das atividades do museológico quanto à produção de novos discursos (documentos) e à
prática efetiva de suas funções: o processo de restauração, por exemplo.
4 CONCLUSÃO
Este trabalho possibilitou, ao se adentrar o universo museológico, investigar o
funcionamento do gênero ficha documental. Cada peça transcrita corresponde a uma
análise sobre sua história, produção e consumo, contextualizando passado e presente.
Observou-se, ainda, o diálogo estabelecido entre os diversos tipos de documentos, que
fornecem informações a outros gêneros. Isso porque todo discurso é precedido por∕
responde a discursos anteriores e é seguido por outros discursos, isto é, um entrelaçamento
interdiscursivo.
Além disso, esta pesquisa reitera que os museus têm contribuído para o
rompimento das ideias que submetem os homens aos limites da transitoriedade temporal e
aos constrangimentos das delimitações geográficas. Através da sua coleção de
indumentária, o MHAM colabora para a aproximação entre a sociedade maranhense e a
interpretação de suas práticas religiosas.
Refletir sobre a importância das instituições museológicas, seja por suas
exposições ou sistemas de documentação, significa preservar os registros materiais da
experiência humana, evitando, portanto, que se percam no imenso universo dos valores
excluídos, na partilha dos sentidos e significados da amnésia cultural.
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