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III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 1 AS MARCAS DA INTERDISCURSIVIDADE NA DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA SOBRE INDUMENTÁRIA DO MUSEU HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO MARANHÃO Cláuberson Correa Carvalho 1 Resumo Esta pesquisa teve por objetivo analisar a documentação museológica referente ao acervo de indumentária do Museu Histórico e Artístico do Maranhão enquanto um sistema de textos (documentos) nos quais se verificam discursos relacionados aos valores, símbolos e significados que cada objeto museal detém em seu contexto de uso. Sendo assim, os postulados da Análise do Discurso de tradição francesa sustentaram a análise proposta. A contribuição desta pesquisa está tanto no desenvolvimento de uma análise relevante para os estudos em Análise do Discurso quanto para a compreensão dos museus como instituições-documento, visto que registram a história social e cultural em que suas coleções estão imersas. Palavras-chave: documentação museológica, interdiscursividade, Museu Histórico e Artístico do Maranhão, indumentária. Abstract This research aimed to examine the museum documentation about dressing of Historical and Artistic Museum of Maranhão as a system of texts (documents) whose discourses are related to values, symbols and meanings that each object in the museum holds in its context of use. Therefore, the postulates of Discourse Analysis of french tradition supported the analysis proposed. The contribution of this research is the development of a relevant analysis in the studies of 1 Aluno do Curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e bolsista de Iniciação Científica (BIC/UEMA), sob orientação de professora Tereza Cristina Mena Barreto de Azevedo.

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AS MARCAS DA INTERDISCURSIVIDADE NA DOCUMENTAÇÃO

MUSEOLÓGICA SOBRE INDUMENTÁRIA DO MUSEU HISTÓRICO E

ARTÍSTICO DO MARANHÃO

Cláuberson Correa Carvalho1

Resumo

Esta pesquisa teve por objetivo analisar a documentação museológica referente ao acervo de indumentária do Museu Histórico e Artístico do Maranhão enquanto um sistema de textos (documentos) nos quais se verificam discursos relacionados aos valores, símbolos e significados que cada objeto museal detém em seu contexto de uso. Sendo assim, os postulados da Análise do Discurso de tradição francesa sustentaram a análise proposta. A contribuição desta pesquisa está tanto no desenvolvimento de uma análise relevante para os estudos em Análise do Discurso quanto para a compreensão dos museus como instituições-documento, visto que registram a história social e cultural em que suas coleções estão imersas.Palavras-chave: documentação museológica, interdiscursividade, Museu Histórico e Artístico do Maranhão, indumentária.

AbstractThis research aimed to examine the museum documentation about dressing of Historical and Artistic Museum of Maranhão as a system of texts (documents) whose discourses are related to values, symbols and meanings that each object in the museum holds in its context of use. Therefore, the postulates of Discourse Analysis of french tradition supported the analysis proposed. The contribution of this research is the development of a relevant analysis in the studies of Discourse Analysis and the understanding of museums as institutions-document, since that they record the social and cultural history in which their collections are immersed.Key-words: museum documentation, interdiscursivity, Historical and Artistic Museum of Maranhão, dressing.

1 INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, os museus são instituições encarregadas de adquirir, conservar

e expor os testemunhos materiais e imateriais do homem. Adquirir, porque os museus

lidam com peças de grande importância simbólica para a memória social; conservar,

1 Aluno do Curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e bolsista de Iniciação Científica (BIC/UEMA), sob orientação de professora Tereza Cristina Mena Barreto de Azevedo.

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referindo-se aos processos de restauração de peças; e expor, pois organizam

programações de visitas e divulgação dos acervos ao público.

Nesse sentido, a exposição é considerada a única ferramenta de aproximação entre

público e acervo, refletindo, inclusive, a ideia de que a exposição agrega todos os papéis

atribuídos aos museus. Essa atividade, no entanto, corresponde a uma de várias outras

realizadas em uma gestão. Ela é, na verdade, o resultado de uma sucessão de

procedimentos técnico-administrativos; é a parte visível de um processo.

Antes, porém, encontra-se a documentação museológica, que, por ser um trabalho

que não se mostra, permanece, geralmente, inacessível ao grande público. A documentação

em museus adquire uma função não só organizacional, mas, sobretudo, informacional. Isso

porque, enquanto unidade de informação, ela trabalha com a organização, armazenamento,

recuperação e disseminação das informações referentes a todo objeto de uma coleção

(YASSUDA, 2009, p. 17).

Dessa forma, esta pesquisa aborda a documentação em museus não só como

registro de procedimentos aos quais os objetos foram submetidos (empréstimos,

restauração, descrição técnica etc.), mas como um documento em que se percebem cadeias

discursivas pertencentes a diversos ambientes históricos. Pretendeu-se investigar, nessa

documentação, as vozes discursivas, o entrelaçamento de discursos ali registrados implícita

e explicitamente. Por isso, adotou-se uma abordagem interdiscursiva, uma vez que ela

permite identificar/analisar, em um gênero discursivo, as manifestações significativas das

quais ele faz parte.

Essa abordagem interdiscursiva representa uma postura recorrente dos estudos do

discurso. A Análise do Discurso de vertente francesa apresenta dispositivos teórico-

analíticos que investigam as formas de significação implicitamente presentes na superfície

textual. Então, as orientações de Maingueneau (2008a, 2008b) e Foucault (2010) sobre

discurso e interdiscursividade refletem a possibilidade de articulação/diálogo entre as

diferentes formações discursivas demarcadas em uma superfície linguística. Em outras

palavras, a assunção do primado do interdiscurso sobre o discurso.

A documentação museológica aqui analisada corresponde à do Museu Histórico e

Artístico do Maranhão (MHAM). Órgão integrante da Secretaria de Estado da Cultura, o

referido museu tem o acervo erudito mais importante do Maranhão, sendo responsável pela

guarda e preservação de um conjunto de bens culturais composto de, aproximadamente, 10

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mil peças: mobiliário da 1ª metade do século XIX, azulejaria de origem diversa,

porcelana, vidros cristais, coleção de numismática, pintura, gravura etc.

Entre esses acervos, optou-se por estudar a documentação referente à coleção de

indumentária, já que ela registra todos os paramentos utilizados em celebrações litúrgicas,

nas igrejas do Maranhão. A abordagem interdiscursiva permitiu compreender, inclusive, as

práticas religiosas celebradas no referido estado a partir dos estudos das indumentárias

religiosas.

Esta pesquisa insere-se na área de concentração da Linguística, com enfoque na

linha de pesquisa da Análise do Discurso, ligada ao Núcleo de Estudos Linguísticos e

Literários do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

2 A PESQUISA

Esta pesquisa problematiza a função dos museus enquanto instituições-

documento, isto é, instituições que administram a sua gestão, produzindo estratégias

(documentos) destinadas ao tratamento da informação durante as diferentes etapas por que

passam os objetos: desde a entrada no museu até a exposição.

2.1 Objetivos e metodologia

A análise da documentação museológica apresentada neste trabalho compreende

esses documentos enquanto conjunto de textos nos quais se investigam os diálogos que se

deixam entrever nesse gênero. Isso implica na ideia de que o discurso dessa documentação

ecoa outros discursos anteriores e posteriores a ele. Dessa forma, esta pesquisa teve por

objetivo geral:

1. Analisar as marcas da interdiscursividade na documentação museológica sobre

indumentária do MHAM.

Em relação aos objetivos específicos, pretendeu-se:

1. Entender o fenômeno da interdiscursividade, à luz da Análise do Discurso,

enquanto categoria que relaciona discursos de diferentes formações

discursivas;

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2. Compreender a documentação museológica no contexto

informacional do museu;

3. Identificar e descrever as peças de indumentária registradas na documentação

museológica do MHAM.

Quanto à metodologia, a Análise do Discurso da linha francesa apresenta

conceitos basilares para a fundamentação da análise adotada. Utilizou-se desde autores

clássicos (Maingueneau 2008a, 2008b; Foucault, 2010) até as recentes releituras brasileiras

– Orlandi (2008, 2009), Fiorin (2002), Fernandes (2008) e Sobral (2009) – as quais

postulam que o discurso não deve ser compreendido em uma estrutura fechada, mas aberta,

relacionando-o às manifestações significativas das quais esse discurso faz parte.

O corpus da pesquisa foi coletado durante as visitas ao MHAM. As etapas de

coleta e análise do material foram direcionadas pelas indicações de Bazerman (2005, p. 44-

45) no que se refere às diretrizes metodológicas para investigação sobre gênero:

a) coleta de todas as fichas documentais sobre o acervo de indumentária através

da máquina fotográfica;

b) seleção do material: neste momento, levou-se em consideração que as fichas

documentais passam por processos de atualização de dados, uma vez que os

objetos, dentro do espaço museológico, sofrem alterações físicas/estruturais.

Dessa forma, as fichas ainda em processo de atualização ou com dados a ser

confirmados não constituem a amostra analisada;

c) aplicação das ferramentas analíticas: após a delimitação da amostra, aplicaram-

se as fundamentações teórico-metodológicas dos estudos do discurso, com

atenção à interdiscursividade, justificando a abordagem aqui proposta.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta seção, apresentam-se os resultados obtidos a partir da análise das fichas de

documentação sobre indumentária do MHAM. Visando atingir os objetivos geral e

específicos, optou-se por sistematizar os resultados em quatro subseções. A primeira

refere-se à abordagem interdiscursiva, traçando os elementos teóricos que fundamentam

essa linha de análise. A segunda aborda o sistema de documentação em museus,

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destacando a sua estrutura e importância para as instituições museais. Já as

terceira e quarta subseções contemplam a análise do corpus.

3.1 A abordagem interdiscursiva

Para a Análise do Discurso, enquanto campo de investigação, o próprio nome já

faz referência ao seu objeto de estudo: o discurso. O discurso, na perspectiva científica a

que se propõe esta pesquisa, implica uma exterioridade à língua, isto é, não é a língua, nem

o texto, nem a fala; necessita, porém, de um material linguístico para proceder a sua

existência em uma superfície discursiva. O discurso envolve aspectos sociais e ideológicos

impregnados nas palavras quando são pronunciadas ou escritas (FERNANDES, 2008, p.

13).

Os discursos não são fixos, estão sempre em processo de (re)construção, visto que

acompanham as transformações sociais e políticas integrantes da vida humana. Orlandi

(2009, p. 60) argumenta que o discurso não pode ser definido como um transmissor de

informação, “mas como um efeito de sentido”, uma vez que o discurso “não resulta só da

intenção de um indivíduo em informar um outro, mas da relação de sentidos estabelecida

por eles num contexto social e histórico”.

No objetivo de identificar a presença de discursos em outros discursos da

documentação museológica (nos modos de dizer, de elaborar textos, nas formas de

interação), é interessante entender o discurso enquanto objeto de análise do método

arqueológico de Foucault (2010). Para o filósofo francês, o discurso é visto como uma

dispersão, sendo formado por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de

unidade. Esses elementos são os enunciados, isto é, o enunciado é a unidade elementar do

discurso.

Para Foucault (2010, p. 122), a análise de uma formação discursiva consistirá na

identificação dos enunciados que a estruturam. O enunciado, na visão foucaultiana:

[...] não é, pois, uma unidade elementar que viria somar-se ou misturar-se às unidades descritas pela gramática ou pela lógica. Não pode ser isolado como uma frase, uma proposição ou um ato de formulação. Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos [...] uma existência específica (FOUCAULT, 2010, p. 123).

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O discurso, por sua vez, é concebido como uma família de enunciados

pertencentes a uma mesma formação discursiva. Segundo Foucault (2010, p. 132-133), o

discurso representa:

[...] um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar [...] na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.

Já Maingueneau (2008a, p. 15) define o discurso como “uma dispersão de textos,

cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades

enunciativas”. O discurso é considerado como um objeto histórico e linguístico, não

podendo desvincular o contexto de produção à formação discursiva. Isso porque os

discursos refletem as características históricas da sociedade onde circulam: valores,

convicções, crenças e conflitos.

O discurso, nessa perspectiva, é considerado nas relações de um interdiscurso: o

discurso só assume a sua postura significativa quando em relação com os outros discursos

com os quais mantém diálogo (MAINGUENEAU, 2008b, p. 56).

O caráter dialógico do discurso, assim, não permite que se despreze a relação dele

com seu Outro, já que todo discurso mantém uma relação (conflituosa, polêmica, de

rejeição, aceitação etc.) com um exterior constitutivo, o já-dito. Segundo Fiorin (2002, p.

45), “A palavra do outro é condição de constituição de qualquer discurso”.

Sobral (2009, p. 101) ratifica a ideia de que o discurso só passa a existir

fundamentalmente mediante um processo de produção de sentidos realizado por, para e

entre discursos. Os enunciados de um discurso apreendidos em uma materialidade

linguística explicitam que o discurso constitui-se da dispersão de acontecimentos e

discursos outros, historicamente marcados, que se transformam e reinventam-se. Ainda

segundo o autor:

Discurso é uma unidade de produção de sentido que é parte das práticas simbólicas de sujeitos concretos e articulada dialogicamente às suas condições de produção, bem como vinculada constitutivamente com outros discursos. Mobilizando as formas da língua e as formas típicas de enunciados em suas condições sócio-históricas de produção, o discurso constitui seus sujeitos e inscreve em sua superfície sua própria existência e legitimidade social e histórica (SOBRAL, 2009, p. 101).

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Denomina-se, portanto, esse entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de

diversos momentos na história e de diferentes lugares sociais, presentes em uma mesma

formação discursiva de interdiscursividade.

O discurso, então, nunca é autônomo, ele está sempre em contato, mesmo que de

forma implícita, com outros discursos pertencentes ou não a uma mesma formação

discursiva. Cabe ao analista identificá-los para realizar as possibilidades de trocas

semânticas entre esses discursos, sempre em um processo de identidade aberta.

A partir dessas considerações teóricas, conclui-se que a interdiscursividade

corresponde a um sistema semântico no qual as relações de significação que circunscrevem

a especificidade de um discurso coincidem com a definição das relações desse discurso

com o seu Outro (MAINGUENEAU, 2008a, p. 35-36).

3.2 O museu enquanto instituição-documento

Entende-se por documentação museológica o conjunto de informações sobre cada

item dos acervos museológicos e a representação destes por meio da palavra e da imagem

(FERREZ, 1991, p. 1). Além disso, esse gênero implica em um sistema de recuperação

informacional capaz de transformar as coleções dos museus de fontes de informações em

fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de transmissão de conhecimento.

Nessa perspectiva, o museu, enquanto instituição-documento, tem a

responsabilidade de disponibilizar meios de transmissão da informação, portanto, cabe a

ele gerir sistemas capazes de possibilitar a comunicação dos dados oriundos dos objetos de

suas coleções. Estes dados devem receber tratamento personalizado para que, dentro de um

fluxo informacional, tornem-se instrumentos para a geração de conhecimento. Em outras

palavras, os museus estão voltados, basicamente, para a preservação, pesquisa e

comunicação das evidências materiais do homem e do seu ambiente, isto é, seu patrimônio

cultural e natural.

O corpus desta pesquisa são as fichas documentais sobre indumentária. Elas

situam o objeto/documento no universo museológico a partir da descrição técnica, menção

ao estado de conservação e especificação de um número de registro único, ímpar. A Fig. 1

registra o modelo de ficha documental do MHAM.

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No reverso da referida documentação (Fig. 2), encontram-se informações sobre

a movimentação da peça dentro do universo museológico, isto é, a sua localização durante

os processos administrativos a que ela foi submetida: empréstimo para exposição, mudança

por motivos técnicos (realização de processos de restauração, por exemplo), atualização do

acervo, entre outros.

As marcas textuais contidas nessas fichas de documentação museológica são

portadoras de informações intrínsecas e extrínsecas. As intrínsecas são deduzidas do

próprio objeto, através da análise das suas propriedades físicas: composição material,

construção técnica e morfologia, que se subdivide em forma espacial, dimensões, estrutura

da superfície, cor, imagens e texto, caso este exista.

Já as informações extrínsecas ou informações documental e contextual são

aquelas obtidas de outras fontes, isto é, informações de que o objeto-documento não dispõe

(MENSCH, 1987 apud FERREZ, 1991, p. 2). Elas permitem conhecer os contextos nos

quais os objetos existiram, funcionaram e adquiriram significado. São geralmente

Figura 1: Anverso de ficha documental Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

Figura 02: Reverso de ficha documental Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

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oferecidas quando da entrada desses objetos no museu a partir das fontes

bibliográficas registradas em fichas documentais. Significado da função, significado

expressivo e significado simbólico constituem exemplos de informações extrínsecas. É

nesse momento de investigação que o discurso da documentação ecoa outros discursos

anteriores e posteriores a ele, caracterizando as construções interdiscursivas.

O sistema de documentação museológica tem o objetivo de identificar, de forma

precisa, as informações referentes a cada objeto do museu. A entrada de dados nesse

sistema não se esgota com o término do processo de registro e catalogação do objeto

recém-adquirido. Ao entrar para o contexto museológico, o objeto continua a ter vida:

muda de localização, participa de exposições, é restaurado. Isso significa que os sistemas

de documentação museológica precisam, permanentemente, ser atualizados e/ou

retificados.

Ferrez (1991, p. 9), então, destaca a importância da documentação

museológica:

A documentação de acervos museológicos é uma atividade, sobretudo, de natureza prática que pode encontrar apoio em outras áreas do conhecimento, como a Biblioteconomia, a Ciência da Informação e a Informática. A aplicação de técnicas oriundas dessas áreas, no entanto, deve ocorrer sempre dentro de uma abordagem museológica. Não basta, porém, adquirir novas técnicas, muitas vezes ultrapassadas ou distanciadas do nosso contexto sócio-cultural. É preciso refletir sobre os aspectos teóricos da Museologia, sobre o museu enquanto instituição social e sobre a necessidade de informação daqueles a quem serve.

3.3 O interdiscurso religioso

O museólogo, ao escrever a ficha documental, identifica cada objeto do espaço

museológico. Como se optou por estudar a documentação referente ao acervo de

indumentária, verificou-se que o discurso dessa documentação ecoa, retrata, evoca,

implicitamente, os significados e usos que cada indumentária religiosa detém em seu

contexto de uso.

É nesse sentido que as peças de indumentária estão ligadas ao discurso religioso.

A análise, direcionada pela abordagem interdiscursiva, parte do texto e se estende aos

significados imbricados na superfície textual (documento). Nessa etapa, há o diálogo entre

o discurso da ficha documental e o discurso sobre as representações simbólicas dos

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paramentos. Reforça-se que o estudo desses paramentos permite uma maior

compreensão acerca das práticas religiosas instauradas no Maranhão.

A amostra de análise, após a etapa de seleção, apresenta 238 fichas documentais,

que descrevem 16 indumentárias religiosas. Em um tratamento quantitativo, quatro peças

receberam maior caráter de descrição. Isto é, dentre todos os paramentos registrados em

cerimônias litúrgicas no Maranhão, quatro foram as mais usadas durante essas celebrações,

a saber2:

a) estola: corresponde a uma faixa de tecido ou lenço luxuoso, muitas vezes de lã

ou de seda, que os padres usam em torno do pescoço, descendo até os joelhos.

São de cores variadas, para serem usadas conforme a celebração e o tempo

litúrgicos. É colocada pelo diácono no ombro esquerdo, como faixa

transversal,  e pendente sobre os ombros pelos presbíteros e bispos. A estola

simboliza o poder sacerdotal e a imortalidade ou glória eterna que o sacerdote

pede ao revestir-se dela;

b) manípulo: é outro exemplo de paramento litúrgico usado nas celebrações da

Santa Missa. Inicialmente, era uma espécie de guardanapo, preso a um dos

braços; mais tarde, passou a ser utilizado como lenço pelos oradores no

objetivo de enxugar o suor e as lágrimas. Atualmente, é utilizado preso ao

braço esquerdo por aqueles de ordens maiores. O seu valor simbólico

corresponde às boas obras mediante as quais o sacerdote conquistará o céu e à

corda com que Jesus Cristo foi preso à coluna para ser açoitado;

2 Os significados simbólicos dos paramentos foram referenciados por Pastro (2007, p. 156-160).

Figura 3: Estola em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

Figura 4: Manípulo em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

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c) dalmática: os primeiros registros do uso da dalmática são dos Imperadores e

nobres romanos. Essa indumentária corresponde a uma túnica branca com duas

faixas púrpuras. No século IV, começou a ser usada como paramento exclusivo

do Romano Pontífice. O seu uso não se dava diariamente, mas somente em

ocasiões especiais. Na liturgia católica, essa indumentária passou por algumas

adaptações: colocação de mangas ou capuz, redução do tamanho, utilização de

ornamentações, entre outros. Ela simboliza a justiça;

d) casula: é uma veste litúrgica confeccionada geralmente em seda, damasco ou

tecido em paramentos dos séculos XVII e/ou XVIII. Corresponde a um grande

manto que cobre todo o corpo do sacerdote em relação ao mundo. Ao longo do

tempo, o comprimento do manto foi diminuindo por razões práticas – era

bastante difícil de o sacerdote movimentar-se com ele. A cor da casula varia de

acordo com a cor da Missa celebrada. Existe uma grande cruz nas costas desse

paramento simbolizando o jugo suave da lei de Cristo que o sacerdote deve

carregar e ensinar aos demais.

Figura 5: Dalmática em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

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Percebe-se, portanto, que o discurso da ficha topográfica mantém um diálogo

implícito com o discurso dos sentidos (simbólicos, culturais, expressivos e estéticos) que

essas indumentárias religiosas detêm em seu contexto de uso. Isso é ratificado por Ferrez

(1991, p. 2), quando afirma que um objeto museológico possui informações extrínsecas

que possibilitam conhecer os contextos nos quais existiu e adquiriu significado.

3.4 A ficha documental enquanto prática discursiva

As relações interdiscursivas, no entanto, também se manifestam de outra forma.

Na análise do corpus desta pesquisa, observou-se que os discursos presentes nos textos

produzidos pelo museólogo e/ou técnico de atividades culturais relacionam-se explícita ou

implicitamente com o discurso de outros textos consultados para prepará-la. Há uma

significativa aliança interdiscursiva ligando-os, o que é ratificado por um fato que se

coloca como base fundamental dessa relação: a instituição museológica é uma agência

sócio-histórica de informação.

Segundo Orlandi (2008, p. 89, grifo nosso):

[...] o texto é um lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade. Sendo assim, ele é trabalho de interpretação. É tarefa do analista compreender tanto como os sentidos estão neles quanto como ele pode ser lido. Esta dimensão ambígua da historicidade do texto mostra que o analista não toma o texto como o ponto de partida absoluto nem como ponto de chegada. [...] O texto é parte de um processo discursivo mais abrangente. Com os resultados da análise não é sobre o texto que fala o analista mas sobre o discurso.

Figura 6: Casula em tecido Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

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A partir da citação, percebe-se que, na análise de determinado corpus,

o analista precisa atingir o processo discursivo que constrói o texto, na medida em que o

texto é formado por diferentes discursos que contribuem para a compreensão de todo o

processo discursivo do qual eles fazem parte. Isso se justifica pelo fato de que o texto é

“matéria provisória de análise” (ORLANDI, 2008, p. 89).

No canto superior esquerdo da ficha (Fig. 7), nota-se que a sigla AR precede a sua

numeração de identificação dentro do contexto museológico. As peças, por sua vez, que

admitem em suas fichas essa sigla têm como interdiscurso o contrato de comodato. Este

corresponde ao documento que possibilita o empréstimo temporário da peça para outra

instituição, neste caso, a Arquidiocese de São Luís. Em outras palavras, embora esteja

implícito, o discurso do contrato de comodato está representado, denunciado por marcas na

própria superfície da ficha documental.

Outro interdiscurso registrado é quanto ao estado de conservação. Como os

objetos/documentos são suportes de informações, um dos principais objetivos de um

museu é preservar a integridade desses objetos, garantindo a possibilidade de informação

que eles detêm. Assim, o museólogo classifica os objetos museais em estados de

conservação específicos: bastante precário, precário, regular, bom, e muito bom.

Na Fig. 6, a peça foi demarcada com a conservação “regular”. Isso significa que a

peça possui sujeira aderida, pequenas perdas e/ou passa por processo inicial de

deterioração (fissuras, rachaduras, manchas, escurecimento de verniz, desenvolvimento de

fungos etc.). Mesmo com esses problemas, a leitura estética do objeto é legível, havendo a

necessidade, entretanto, de higienização e/ou pequenas intervenções feitas por

profissionais especializados (restaurador), que é capaz de realizar os ajustes necessários

sem que haja a mudança em sua estrutura física e formal.

Figura 7: Ficha documental de nº AR. 92.312.02 Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão

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Percebe-se, no discurso da ficha em análise, que a identificação do

estado de conservação dessa peça ecoa o discurso do regulamento do MHAM, que

determina as características estruturais para que tal classificação seja feita.

A tarefa do analista do discurso, neste momento, não é simplesmente identificar o

porquê de uma peça estar em estado precário ou muito bom, mas compreender como essas

informações foram interpretadas, originadas e de que maneira elas interferem na

compreensão global do discurso da ficha documental, uma vez que a menção ao estado de

conservação de um objeto/documento sinaliza uma série de outros discursos provenientes

das atividades do museológico quanto à produção de novos discursos (documentos) e à

prática efetiva de suas funções: o processo de restauração, por exemplo.

4 CONCLUSÃO

Este trabalho possibilitou, ao se adentrar o universo museológico, investigar o

funcionamento do gênero ficha documental. Cada peça transcrita corresponde a uma

análise sobre sua história, produção e consumo, contextualizando passado e presente.

Observou-se, ainda, o diálogo estabelecido entre os diversos tipos de documentos, que

fornecem informações a outros gêneros. Isso porque todo discurso é precedido por∕

responde a discursos anteriores e é seguido por outros discursos, isto é, um entrelaçamento

interdiscursivo.

Além disso, esta pesquisa reitera que os museus têm contribuído para o

rompimento das ideias que submetem os homens aos limites da transitoriedade temporal e

aos constrangimentos das delimitações geográficas. Através da sua coleção de

indumentária, o MHAM colabora para a aproximação entre a sociedade maranhense e a

interpretação de suas práticas religiosas.

Refletir sobre a importância das instituições museológicas, seja por suas

exposições ou sistemas de documentação, significa preservar os registros materiais da

experiência humana, evitando, portanto, que se percam no imenso universo dos valores

excluídos, na partilha dos sentidos e significados da amnésia cultural.

REFERÊNCIAS

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BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e Interação. Ângela Paiva

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