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O SONHO DAS CRIANÇAS BOLIVINAS EM UMA OCUPAÇÃO DE MORADIA EM SÃO PAULO
Carolina Abrão GonçalvesFaculdade de Educação da Universidade de São Paulo- FEUSP
Este artigo parte da pesquisa de mestrado em andamento, que tem por objetivo compreender os modos de viver a infância de crianças imigrantes bolivianas moradoras de uma ocupação de moradia na região central da cidade de São Paulo. Baseada em autores que refletem sobre temáticas, como: a sociologia urbana (Lúcio Kowarick), imigração de bolivianos na cidade de São Paulo (Carlos Freire da Silva, Giovanna Modé Magalhães e Odair da Cruz Paiva) e infância (Ana Paula Silva e Fernanda Müller); buscamos um olhar do ponto de vista econômico, histórico, social, político e cultural. Levando em consideração a trajetória dos imigrantes bolivianos que cruzam as fronteiras físicas e identitárias em busca de novas oportunidades de vida e enfrentam importantes questões na cidade, como a exploração do trabalho e dificuldade em encontrar moradia, fato este que os aproximam de movimentos sociais conhecidos por ocupar espaços ociosos na cidade, transformando-os em locais de moradia. Como se tratam, em alguns casos, de famílias imigrantes, passamos a olhar não somente para os adultos e adultas que compõem os grupos de imigrantes residindo em ocupações de moradia na cidade, mas também para as crianças que acompanham seus parentes neste percurso ou aquelas que nem chegaram a conhecer a nação de origem, nascendo na nação de destino. E buscando compreender o modo de viver a infância das crianças imigrantes nas ocupações é que propusemos a observação participante como metodologia de pesquisa percebendo seus cotidianos e interagindo por meio de oficinas de desenho e fotografia, dando ênfase ao processo desta interação, notando falas, brincadeiras e os artefatos produzidos pelas crianças. Compreender o tempo social de ser criança - a infância - boliviana na cidade de São Paulo é levar em consideração suas vozes na composição destas identidades que se situam no limiar, na fronteira, entre as nações de origem e de destino. Deste modo, propomos neste trabalho ressaltar a importância de olhar para as pequenas e os pequenos bolivianos imigrantes que residem em uma ocupação de moradia na região central da capital paulista. Em hipótese, ao resgatar as narrativas que compõem o universo da infância imigrante boliviana, temos a possibilidade de compreendermos e aprendermos com as trajetórias das crianças na cidade de São Paulo. Palavras- chave: Crianças bolivianas- Imigração- São Paulo
Introdução
Conhecer e trazer um pouco a cerca do cotidiano de crianças e adultos
imigrantes de uma ocupação de luta por moradia foi a maneira que encontramos de
resgatar alguns jeitos, gestos e histórias da vida de famílias que atravessam as fronteiras
físicas e identitárias em busca de novas formas de viver. Neste artigo, voltamos o nosso
olhar para meninas e meninos imigrantes bolivianos, que vivenciam múltiplas questões
fundamentais na composição do tempo social de ser criança. O intuito é o de trazermos
algumas questões levantadas pelas próprias crianças e recolhidas ao longo da
observação participante1, pois de que forma podemos esboçar alguns traços desta
infância imigrante moradora da metrópole paulista?
Para tal desenvolvimento, traremos algumas reflexões importantes como a opção
metodológica pela observação participante, esboçando os primeiros passos em campo,
no qual procuramos enfatizar três etapas: mobilização, parceria e protagonismo infantil.
E como parte do aporte metodológico, se fez necessário entrevistas semi-estruturadas
com as famílias imigrantes moradoras das ocupações. A seguir traremos dados da
imigração em São Paulo, em especial do grupo de bolivianos, que como pudemos
constatar durante a pesquisa, se revelou como o mais numeroso dentre as populações de
imigrantes no interior da ocupação de luta por moradia. E para finalizar, abordaremos
dados preliminares da pesquisa, como falas de adultos e crianças, que possam nos
ofertar indícios para pensarmos o cotidiano da infância imigrante no interior do
movimento social, e também a que se esboça na cidade de São Paulo.
(Des)construções: breve relato da metodologia de pesquisa
Estabelecer métodos e metodologias ao longo da pesquisa se constitui num
desafio constante em que é necessário sempre avaliar e reavaliar os caminhos
escolhidos. Por isso, buscaremos expor de forma sucinta tais desafios encontrados ao
longo estudo de campo (em andamento).
Inicialmente o estudo de campo seria realizado nas escolas municipais de
educação infantil (EMEIs), localizadas na cidade de São Paulo e caracterizadas por
1 Pesquisa de mestrado em andamento, previamente intitulada “Os sonhos das crianças bolivianas na Ocupação Prestes Maia”. Desenvolvida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) com orientação da Profª. Drª. Marcia Gobbi.
receberem um grande número de imigrantes oriundos de diversos países. Porém, ao
longo de pesquisas bibliográficas, identificamos um elevado número de famílias de
imigrantes em ocupações de moradia, como ressaltado por Galhera e Santos (2014), que
abordaram as dificuldades encontradas por imigrantes em busca de moradia na cidade.
Tais dificuldades, como problemas como falta de vagas nos centros de acolhida da
cidade, especulação imobiliária, entre outras, culminam em um grande número de
imigrantes e refugiados nas ocupações de moradia espalhadas por São Paulo e Grande
São Paulo. E a partir destes dados é que chegamos até a Ocupação Prestes Maia na
região central da cidade de São Paulo, considerada a maior ocupação vertical do país e a
segunda maior da América Latina, abrigando um total de 478 famílias, dentre elas de
imigrantes: bolivianos, colombianos, haitianos e paraguaios.
A ocupação Prestes Maia se apresentou como um importante local para o
desenvolvimento e ampliação dos horizontes da pesquisa, pois acolhe um grande
número de famílias de imigrantes e refugiados, sendo o grupo mais numeroso composto
por bolivianos que em sua maioria possuem filhos ou netos. Neste espaço, além de ter a
possibilidade de ter encontros com as crianças, imigrantes e não-imigrantes, também
pudemos conversar com as famílias, conhecendo seus percursos até chegar em São
Paulo e na ocupação.
E como forma de conhecer as famílias e as crianças imigrantes da ocupação
Prestes Maia e de buscar uma relação de parceria com as crianças, por considerá-las
sujeitos sociais e que, portanto, podem nos contar sobre seus universos e cotidiano é que
optamos em fazer a pesquisa com as crianças e não sobre as crianças, como já nos foi
alertado por alguns estudiosos da infância, como Abramowicz (2003) e Campos (2008).
E privilegiar a ação das crianças ao longo da pesquisa, por meio da investigação
participativa:
permite considerar formas colaborativas de construção do conhecimento nas ciências sociais, que se articulam com modos de produção do saber empenhadas na transformação social e na extensão dos seus direitos sociais. (Soares, 2006, p.29)
Outros estudiosos do campo das Ciências Sociais, também trouxeram as vozes
das crianças como testemunhos da história, como José de Souza Martins:
O pesquisador quase sempre pressupõe e descarta, no grupo que estuda, uma parcela de seres humanos silenciosos, os que não falam. De nada adiantaria conversar com eles. São os que em público e diante do estranho permanecem em silêncio: as mulheres, as crianças, os velhos, os agregados da casa, os dependentes, os que vivem de favor. Ou os mudos da história, os que não deixam textos escritos, documentos. (Martins, 2009, p. 103-104)
Deste modo, os relatos das crianças são ouvidos e incorporados no estudo do
pesquisador. E também tivemos por inspiração as pesquisas, como “As trocinhas do
Bom Retiro” do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes (2004) e de Marcia Gobbi
(2009), que afirma a importância das:
Pesquisas produzidas pela pedagogia da educação infantil, estudos estes que hoje se consolidam e caminham no sentido de afirmar as crianças pequenas como portadoras e criadoras de cultura, desenhistas, falantes, sujeitos de sua história e cujas produções devem ser conhecidas, valorizadas, respeitadas. Sendo assim, a criação e a reflexão sobre metodologias de pesquisas com os pequenos e pequenas constitui um dever e um desafio daqueles que afirmam tê-las como temas de trabalho e pesquisa. (2009, p. 73)
E como forma de dialogar com crianças de maneira respeitosa e buscando uma
metodologia que considere a criança como sujeito social, é que a observação
participante foi escolhida como método de recolha de dados, possibilitando conhecer o
cotidiano da ocupação e combinado diferentes maneiras de recolha de dados como
entrevistas semi-estruturadas, observação e oficinas de brincadeiras e arte.
A observação participante foi composta por diferentes etapas com objetivo de
que todas se complementassem e pudessem enriquecer os dados encontrados na
pesquisa. Sendo composta por: 1) observação do grupo de crianças nacionais e não
nacionais, principalmente nos espaço da brinquedoteca e alguns espaços escolhidos por
eles e elas, como a pátio do 10º andar; 2) Desenhos e fotografias solicitados em
conversas informais, tais como em oficinas no espaço da brinquedoteca; 3) entrevistas
semi-estruturadas com seus familiares, adultos imigrantes, tal como lideranças da
ocupação.
A entrevista semi-estruturada com adultos (imigrantes e lideranças da ocupação)
como instrumento de recolha de dados nos possibilitou a sistematização e atualização de
informações importantes a cerca da caracterização e história do local da pesquisa e,
principalmente, buscou ouvir relatos orais e captar gestos, suspiros e sensações que
dificilmente seriam expressos por meio de questionários estruturados. E buscando
estabelecer um clima de confiança, apesar de um roteiro semi-estruturado, a entrevista
em formato de diálogo, permitiu adaptações necessárias para o seu desenvolvimento,
como sugerido: “a entrevista semi-estruturada, que se desenrola a partir de um esquema
básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as
necessárias adaptações.” (Lüdke e André, 2003, p. 34).
E as oficinas de brincadeira e arte com as crianças da ocupação foram oferecidas
principalmente durante o mês de janeiro, portanto período de férias escolares, tanto para
as crianças, como para a pesquisadora, que como professora da rede municipal de
ensino, dispunha de tempo restrito para os momentos de imersão a campo. Com esta
organização, tivemos a oportunidade de melhor conhecer as crianças e suas famílias, já
que durante o período de aulas, muitas crianças imigrantes participam do ensino integral
na escola, ou no contraturno escolar frequentam atividades em organizações não
governamentais (ONGs) que atuam na região.
Procurando cumprir os três patamares para pesquisa que envolvam as crianças
na investigação participativa, como elencado por Soares (2006, p. 35): mobilização,
parceria e protagonismo, é que a pesquisa se estrutura basicamente nestes patamares.
Por meio da mobilização de lideranças da ocupação e de famílias das crianças
imigrantes, por meio de autorização dos termos de pesquisa na Ocupação Prestes Maia,
é que iniciamos, pesquisadora e orientadora, a imersão à campo. E a pergunta inicial
era: como iríamos fazer para conhecer as crianças imigrantes da ocupação? E
inicialmente restringimos a pesquisa apenas às crianças imigrantes ou filhas de
imigrantes, pois a ocupação possui um grande número de crianças, que teríamos
dificuldades em trabalhar. São 478 famílias e praticamente todas as famílias possuem
filhos. A partir da mobilização inicial convocamos uma reunião no espaço da
brinquedoteca, chamando as crianças e responsáveis, para esclarecer dúvidas, explicar a
pesquisa, o papel da pesquisadora, em formato de roda de conversa, momento
caracterizado por procurar estabelecer e firmar parcerias.
Dúvidas surgiram em torno do caderno de campo, objeto de grande curiosidade
principalmente por parte das crianças, que desejavam saber o que eu anotava. Em
alguns momentos em que deixava o caderno de lado, eles procuravam bisbilhotar o que
eu havia escrito e identificavam “Olha só! Ela escreveu o meu nome!”.
Outra surpresa que notei em relação às crianças foi a de adentrarem aquela porta
e descobrirem uma possibilidade de brincar dentro do lugar em que moram. O espaço,
composto de brinquedos e livros (em sua maioria livros didáticos, ou adultos, notamos
que existem poucos livros destinados às crianças), era praticamente desconhecido pelas
crianças imigrantes, que disseram não utilizá-lo para brincar. O espaço da
brinquedoteca, segundo as lideranças da ocupação, é pouco utilizado devido à falta de
tempo e de pessoas que possam se responsabilizar em ficar com as crianças. Em alguns
momentos, as próprias lideranças destinam um tempo para abrir a brinquedoteca, que
normalmente acontece aos domingos, mas não existe uma rotina para utilização deste
espaço.
Deste modo, as crianças foram entrando e demonstrando um encantamento pelo
local, que apesar da simplicidade, esboçada por alguns brinquedos quebrados e alguns
dispostos em carrinhos de supermercado, o espaço se mostrou acolhedor e possibilitou
uma importante aproximação da pesquisadora com as crianças. O espaço da
brinquedoteca foi fundamental para tal aproximação e contribuição para a observação
participante, pois havia o receio inicial de pesquisa: qual seria o lugar mais adequado
para fazer as oficinas e entrevistas? Como teria a liberdade de fazer as oficinas nas casas
das pessoas, será que não iriam sentir-se incomodados?
O espaço da brinquedoteca nos possibilitou uma importante forma de
aproximação e negociação com as crianças, tal como nos mostrou que não fazia parte do
cotidiano de suas brincadeiras e por isso, com a presença das pesquisadoras puderam
explorar, interagir, nos mostrando do que gostam de brincar neste e noutros espaços, tal
como contar como se relacionam com os grupos de crianças imigrantes e não-
imigrantes. Tiveram a possibilidade de desenhar e fotografar, que se constituíram
formas de nos contar sobre suas vidas, seus sonhos e desejos.
Os desenhos e fotografias solicitados ao longo da imersão se constituíram como
importantes artefatos na construção da metodologia de pesquisa, pois para além de
revelarem as expressões e desejos das crianças, do ponto de vista delas mesmas,
também se constituíram como facilitadores de diálogos, para que pudéssemos ouvir as
histórias que têm a nos contar. Ou Seja, os desenhos conjugados com a oralidade se
constituem como formas privilegiadas de metodologia com as crianças, podendo
resultar em documentos históricos e como nos aponta Gobbi:
poderemos pensar e imaginar produções acadêmicas e, por que não, um mundo em que percebamos a presença de meninos e meninas pequenos e bem pequenos a partir de suas criações, de seus risos, de seus gestos, e no qual seus olhares possam revelar fenômenos sociais que se encontram obscurecidos e cuja revelação contribuirá tanto para as pesquisas que estão sendo empreendidas, como para ações políticas que respeitem as crianças. (Gobbi, 2009, p. 73).
Desta maneira, expusemos brevemente a metodologia de pesquisa empreendida
que é construída e reconstruída, pois quem nos mostra os caminhos a serem traçados é a
própria pesquisa e seus interlocutores, traduzida pelas vozes de seus sujeitos, sendo
crianças ou adultos imigrantes. O objetivo fundamental é ofertar espaços de escuta para
que possamos aprender e refletir sobre fenômenos sociais, como os atuais fluxos
migratórios na cidade de São Paulo, problemas de moradia e os universos da infância
imigrante. Como as crianças imigrantes, no olho do furacão destes fenômenos sociais,
se expressam e nos contam sobre os seus cotidianos na ocupação Prestes Maia?
Trajetórias: Adultos e Crianças Imigrantes na Ocupação
Partimos do pressuposto de que para conhecer as crianças imigrantes na
ocupação, também temos que conhecer o contexto social do qual são oriundas. Por isso,
empreendemos, para além da observação participante por meio de oficinas com as
crianças, entrevistas e estudos bibliográficos que pudessem nos dar embasamento para
melhor compreendermos as trajetórias das crianças. Tais trajetórias serão brevemente
explanadas, com o intuito apenas de esboçar o estudo, visto que ainda esta em
andamento.
A cidade de São Paulo tornou-se nação de destino de muitos imigrantes
bolivianos, que junto de suas famílias intensificam os fluxos migratórios a partir da
década de 1980, constituindo-se como maior grupo de latino-americanos na metrópole,
como nos aponta Silva (2011, p. 76). A chegada à cidade, em muitos casos, é agenciada
por compatriotas, brasileiros ou coreanos, conhecidos como brokers que atuantes no
ramo da indústria têxtil, contratam o trabalho de bolivianos em troca do pagamento pelo
custo da viagem, estadia e alimentação.
Situações como esta, são relatadas em pesquisas, como a de Silva (2011) que
sugere a existência de um caminho cruzado entre a migração de bolivianos e coreanos à
São Paulo. Estes caminhos cruzados, também surgiram ao longo dos relatos feitos às
pesquisadoras na ocupação Prestes Maia, pois houve falas em que se referem à oficina
que trabalharam como pertencentes a coreanos. Além de denunciarem situações de
abuso em relação ao trabalho, ameaças que envolvem a situação documental no país,
violência e condições precárias de moradia.
Condições estas, que como podemos notar em grande parte dos relatos, foram
disparadoras para que as famílias rompessem com situações que causavam desagrado.
As trajetórias familiares de bolivianos no Brasil, quase sempre se iniciam em pequenas
oficinas de costura, mas no caso de grande parte dos moradores de ocupações, como na
Prestes Maia, são interrompidas por situações em que tomam a consciência dos
problemas vividos e conseguem sair destas oficinas, que se caracterizam em ser casa e
trabalho ao mesmo tempo. O sair das situações de miséria e opressão relatadas acaba
sendo maior que o pagamento dos direitos trabalhistas devidos, fazendo com que tais
saídas se façam sem dinheiro algum e tendo por destino inicial ser morador de rua.
Em situação de rua, muitas famílias se aproximam do movimento de luta por
moradia, ou por indicação de moradores de rua, ou pelas manifestações organizadas
pelo movimento, que são portas de entrada para muitos imigrantes que se encontravam
sem moradia. Lefebvre (2015) analisando a crise habitacional em Paris após a segunda
guerra mundial também identificou a consciência social provocada em um momento de
crise “o direito a moradia aflora na consciência social. Ele se faz reconhecer de fato na
indignação provocada pelos casos dramáticos no descontentamento engendrado pela
crise.” (p.26).
Estas trajetórias são comuns nos relatos de imigrantes na ocupação que nos
revelam também a dificuldade em encontrar vagas nos centros de acolhida, como: A
Casa do Migrante (CDM), Centro de Referência e Acolhida ao Imigrante (CRAI) e Casa
de Passagem Terra Nova. A maioria dos centros de acolhida recebe imigrantes recém-
chegados à cidade, o que não é o caso da maioria dos entrevistados.
E em companhia de pais, mães, avós, avôs, tios e tias as crianças vivem no olho
do furacão das problemáticas sociais enfrentadas pelas famílias. Relatando como era
morar nas antigas casas (comumente oficinas de costuras), nos contam suas trajetórias,
brincadeiras e sonhos de vida.
Os momentos de brincadeiras foram observados ao longo das oficinas, onde
conversamos sobre as brincadeiras preferidas, e surgiram “escravos de jó” e “corre
cutia”. E num segundo momento, solicitamos em roda de conversa que nos trouxessem
alguns brinquedos que gostavam e no caso de uma mãe, que participava da oficina,
convidamos a também trazer um brinquedo que lembrasse sua infância.
Ao partilhar os brinquedos na roda ao longo da oficina, pudemos observar os
suspiros da mãe ao contar sobre os brinquedos que havia nos trazido. Em um rico
momento, ela abriu uma caixa de sapatos e tirou pequenas miniaturas de cozinha, feitas
de lata. Com muito cuidado, ela explicou que fora uma das poucas recordações que
trouxe da Bolívia, as miniaturas ofertadas durante a festa de Alasitas, que louva o Deus
Ekeko da abundância. Segundo a mãe, esta é uma festa ligada aos sonhos e desejos
feitos ao meio-dia de 24 de janeiro de cada ano. É comum comprarem miniaturas de
dinheiro, carros, passaportes, entre outros para fazer os pedidos.
No caso da mãe, tinha uma grande quantidade de utensílios domésticos, como
fogãozinho, panelas e até um pequeno bule e coador de café, que segundo ela já fora
utilizado. A mãe explicou que é uma forma que encontrou de passar um pouco dos seus
costumes as filhas (duas meninas) já que ambas são nascidas no Brasil e não conhecem
a Bolívia. E apesar da vontade de viajar ao país de origem, ela enfatiza que seria apenas
a passeio, pois o seu desejo é permanecer no Brasil com sua família e trazer seus pais
para morar com ela, que moram em Buenos Aires – Argentina.
As crianças foram indagadas e diziam brincar com as miniaturas, mas trouxeram
entre os brinquedos preferidos Pollys, Barbies e o relato de uma corda de se pendurar,
que não puderam trazer, pois estava fixada na moradia. Alguns meninos, também
relataram o gosto em assistir desenhos na televisão.
E os relatos giraram em torno da brincadeira dentro das moradias, pois segundo
as mães os corredores e os outros andares são perigosos, por isso, não deixam as
crianças brincando sozinhas. Quando estão no pátio é sob a supervisão de alguma mãe,
ou avó, mas pertencente ao grupo de bolivianos.
Outro importante dado é o fato de se chamarem de primos, entre o grupo de
bolivianos, mesmo não pertencendo à mesma família. Esta relação se dá principalmente
entre as famílias do 10º andar, onde se concentram maior número de bolivianos.
Indagando as crianças, me explicaram que se chama de primos, pois quando fazem
aniversário, são eles os convidados. Assim, nomeiam os homens e mulheres bolivianos
da ocupação de tios e tias respectivamente.
Esta foi uma das maneiras encontradas pelo grupo de bolivianos, segundo um
relato, de manterem relações de parentesco, já que a maioria não possui mais contato
com a família, por morarem em outro país, ou por estarem no Brasil, mas com paradeiro
desconhecido.
As crianças bolivianas também relatam violência por parte das crianças
brasileiras, cujo apelido entoado por outras crianças é “china” e este é um dos motivos
disparadores nos relatos, de terem medo de descer para brincarem sozinhos em outros
espaços da ocupação. Por conta da violência relatada, vinda de outras crianças, preferem
brincar em casa com os seus irmãos e “primos” de consideração.
E finalizando este artigo trato do sonho que de forma unânime apareceu em
todas as falas dos entrevistados adultos e em algumas falas de crianças e desenhos. A
reflexão sobre a moradia, o sonho da casa própria, foi citado por todas as famílias. Com
cadastro nos programas de moradia do governo, as famílias sonham com casas e
apartamentos, partilhando de uma aspiração, identificada por Sader (2001) como projeto
de vida de famílias de migrantes brasileiras nos fluxos a partir de 1950 é o símbolo de
consolidação da estrutura familiar:
A aspiração à casa própria (como alternativa à alugada) esteve relacionada com razões instrumentais: deixar de pagar aluguel e tornar dispêndios com habitação uma reserva de valor. Mas também expressou um valor cultural profundamente arraigado e reafirmado: a busca de estabilidade contra as incertezas de mudanças não queridas, a segurança para a coesão familiar, o poder de organizar o próprio espaço. (idem, p.111)
O sonho da casa própria é também um desejo por uma casa ampla, em oposição
aos pequenos espaços da moradia ocupada, que possui em média dois cômodos cada
apartamento, com banheiro de uso coletivo dividido entre os demais moradores do
andar. A louça também é lavada em torneiras coletivas.
A falta de privacidade na casa foi relatada por uma entrevistada, que diz
atrapalhar a intimidade entre o casal. Ela disse que o problema não tem solução, já que
tem que compartilhar não somente o cômodo com os filhos, mas a cama do casal
também é dividida.
Segundo Sader (2001) ao invés da problemática em relação a moradia ser sanada
ela foi cada vez mais agravada, com o aumento de favelas e cortiços, sendo pequena a
proporção de casas alugadas e próprias.
Foi portanto claramente diferenciada a experiência do progresso, e para muitos o que aconteceu foi justamente o inverso: não só a deterioração das condições de moradia como o estigma de uma marginalização, da exclusão à moradia legal e considerada digna e às benfeitorias urbanas que caracterizaram o progresso metropolitano. A esses, permanecendo na esfera privada das histórias familiares, restava a projeção dos mesmos sonhos na figura dos filhos. E por isso também a pressão por escolas foi algo tão forte nessas décadas. Preparar os filhos para talvez alcançarem o que não alcançaram os pais. (Sader, 2001, p. 114)
De forma semelhante, podemos notar uma intensa cobrança das famílias de
bolivianos em relação aos estudos dos filhos, que dificilmente faltam a escola e que
possuem um alto nível de exigência dos pais, que classificam as escolas brasileiras
como fracas e com poucas lições. Narram uma rigidez da educação boliviana, com
castigos aos alunos desobedientes e que passavam muito mais lições. Mesmo assim,
existe uma expectativa em relação aos estudos dos filhos e também quanto aos seus
próprios estudos, ainda não terminados. Em hipótese, podemos nos basear em Sader
(2001) ao notar nas falas de pais e mães uma expectativa em relação ao futuro dos
filhos, como mais promissor que os próprios e sendo um facilitador para a realização de
sonhos, como o da casa própria.
E com o resgate de alguns relatos ao longo das oficinas na brinquedoteca, em
que pudemos conhecer mais e melhor as crianças imigrantes, assim como desenvolver
entrevistas semi-estruturadas com seus familiares e lideranças da ocupação é que
encerramos estes breves dados não com um ponto final, mas com indícios que nos
façam refletir a partir das crianças, a cerca da sua própria infância. Dados que nos levam
a pensar sobre seus desenhos, fotografias, suspiros, falas e emoções e serão melhor
desenvolvidos ao longo da dissertação de mestrado.
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