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Alexis de Tocqueville Sobre O Socialismo, 2 Isabel Paterson – O Humanitário Com A Guilhotina, 9 • Friedrich Hayek Por Que Os Piores Chegam Ao Poder, 19 Ludwig von Mises – O Cálculo Econômico No Sistema Socialista, 28

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Alexis de Tocqueville – Sobre O Socialismo, 2 • Isabel Paterson – O Humanitário Com A Guilhotina, 9 • Friedrich Hayek – Por Que Os Piores Chegam Ao Poder, 19 • Ludwig von

Mises – O Cálculo Econômico No Sistema Socialista, 28

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Sobre o Socialismo Alexis de Tocqueville (1805-1859)

O texto a seguir reproduz o discurso de Alexis de Tocqueville na Assembléia Constituinte francesa em 12 de setembro de 1848. Os socialistas da época defendiam o direito ao trabalho, e que o governo deveria implementar políticas que criassem empregos assalariados para todos. Apesar de parecer lugar comum para os nossos dias, as idéias socialistas eram novidade na França de Tocqueville, e foram denunciadas por ele por ser contrárias aos ideais democráticos da república francesa. Mesmo prematura, a crítica de Tocqueville atinge o alvo dos problemas morais e políticos do socialismo. ***

Nada poderemos ganhar ao não discutir questões que põem em dúvida as raízes de nossa sociedade, questões essas que, mais cedo ou mais tarde, deverão ser enfrentadas. No fundo do projeto que está em discussão, talvez sem o conhecimento de seu autor – mas eu a percebo claramente – , está a questão do socialismo. [Longa excitação – murmúrios da esquerda.]

Sim, cavalheiros, mais cedo ou mais tarde, a questão do socialismo, que todos parecem temer e que ninguém até agora ousou debater, deverá ser discutida, e essa assembléia deverá decidi-la. Somos obrigados a esclarecer essa questão, que pesa sobre o peito da França. Confesso ser esse o meu principal motivo para subir à tribuna hoje: que a questão do socialismo seja finalmente resolvida. Eu preciso saber, a Assembléia nacional precisa saber, toda a França precisa saber – a Revolução de Fevereiro é uma revolução socialista ou não? [“Excelente!”]

Não é minha intenção analisar aqui os diferentes sistemas que possam ser classificados como socialistas. Apenas quero tentar revelar características comuns a todos eles e verificar se podemos dizer que a Revolução de Fevereiro as apresentou.

A primeira característica de todas as ideologias socialistas, creio eu, é um apelo vigoroso, extremo, às todas as paixões materiais dos homens. [Sinais de aprovação.]

Assim, alguns disseram: “Vamos reabilitar o corpo”; outros, que “o trabalho, mesmo os mais pesados, não deve ser apenas útil, mas prazeroso”; outros dizem que “os homens devem ser pagos não de acordo com seu mérito, mas de acordo com sua necessidade”; por fim, disseram aqui que o objetivo da Revolução de Fevereiro, do socialismo, seria proporcionar riquezas infinitas para todos.

Uma segunda característica, sempre presente, é um ataque, direto ou indireto, ao princípio da propriedade privada. Desde o primeiro socialista que disse, há 50 anos, que “a propriedade é a origem de todos os males do mundo”, ao socialista que falou dessa tribuna e que, menos generoso que o primeiro, passando da propriedade para seu proprietário, exclamou que “propriedade é roubo,” todos os socialistas, insisto, todos, atacam, direta ou indiretamente, a propriedade privada. [”É verdade, é verdade.”] Não pretendo afirmar que todos que o fazem agem da forma franca e brutal que um de nossos colegas adotou. Mas digo que todos os socialistas, por meios mais ou menos diretos, se não destroem o princípio sobre o qual ela se baseia, transformam-no, diminuem-no, obstruem-no, limitam-no e moldam-no como algo completamente estranho ao que nós conhecemos e com que nos familiarizamos, desde o começo dos tempos, como propriedade privada. [Sinais de concordância.]

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Agora, a terceira e final característica, a qual, aos meus olhos, melhor descreve os socialistas de todas as escolas e nuances, é a profunda oposição à liberdade individual e o desprezo à liberdade de pensamento, ou seja, um total desrespeito ao indivíduo. Eles incessantemente tentam mutilar, restringir, obstruir a liberdade individual de toda e qualquer maneira. Afirmam que o Estado não deve agir apenas como diretor da sociedade, mas ser o mestre de cada homem, e não apenas o mestre, mas o guardião e instrutor. [ “Excelente.”] Por medo de permitir ao homem que erre, o Estado deve se colocar para sempre a seu lado, acima dele e em torno dele, para melhor guiá-lo e preservá-lo, ou seja, para confiná-lo. Na verdade, eles clamam pelo confisco da liberdade humana, em graus maiores ou menores, [Mais sinais de aprovação.], de forma que, se eu estivesse tentando resumir o que é o socialismo, diria que ele é simplesmente um novo sistema de servidão. [Grande aprovação.]

Não entrarei na discussão dos detalhes desses sistemas. Apenas indiquei o que é o socialismo, apontando suas características universais. Elas são suficientes para permitir sua compreensão. Em qualquer lugar que você encontrar essas características, certamente encontrará o socialismo, e onde quer que o socialismo esteja, essas características são encontradas.

Cavalheiros, será que o socialismo, como tantos disseram, é a continuação, a conclusão legítima, o aperfeiçoamento da Revolução Francesa? Será que ele é, como fingem alguns, o desenvolvimento natural da democracia? Não, ele não é um nem outro. Lembrem-se da Revolução! Reexaminem as impressionantes e gloriosas origens da nossa história moderna. Como insistia ontem um orador, foi através do apelo às necessidades materiais do homem que a Revolução Francesa realizou aqueles grandes atos que maravilhou todo o mundo? Vocês acreditam que a Revolução falava de salários, de bem estar, de riquezas ilimitadas, de satisfação das necessidades materiais?

Cidadão Mathieu: Eu não disse nada desse tipo.

Cidadão de Tocqueville: Você acredita que, ao falar dessas coisas, toda uma geração de homens se levantaria para lutar por elas nas fronteiras, se exporia aos riscos da guerra, enfrentariam a morte? Não, cavalheiros. A Revolução realizou aquilo tudo por falar sobre coisas grandiosas, sobre o amor a um país, sobre honrar a França, por falar de virtude, generosidade, abnegação, glória. Estejam certos, cavalheiros, que apenas através do apelo aos sentimentos mais nobres que se pode alcançar as alturas mais elevadas. [ “Excelente, excelente.” ]

E em relação à propriedade, cavalheiros: é verdade que a Revolução Francesa resultou em uma guerra dura e cruel contra alguns proprietários. Porém, em relação ao princípio da propriedade privada, a Revolução sempre o respeitou. Ela o colocou no topo da lista em suas constituições. Nenhum povo tratou esse princípio com maior respeito. Ele estava gravado na fachada de suas leis.

A Revolução Francesa fez ainda mais. Não apenas consagrou a propriedade privada, ela a universalizou. A Revolução viu um número ainda maior de pessoas terem acesso à propriedade. [ Exclamações variadas. “Exatamente o que queremos!”]

É graças a isso, cavalheiros, que hoje não precisamos temer as conseqüências fatais das idéias socialistas que estão espalhadas por todo o país. É porque a Revolução Francesa povoou o território francês com dez milhões de proprietários que nós podemos, sem perigo, permitir que essas doutrinas apareçam entre nós. Elas podem, sem dúvida, destruir a sociedade, mas graças à Revolução Francesa, elas não prevalecerão e não nos causarão danos. [ “Excelente.” ]

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E finalmente, cavalheiros, a liberdade. Há uma coisa que me choca mais do que qualquer outra. É que o Antigo Regime, que sem dúvida diferia em muitos aspectos do sistema de governo que os socialistas reivindicam (e precisamos compreender isso), estava, em sua filosofia política, muito mais próximo do socialismo do que se pensa. Muito mais próximo do que estamos hoje. Na verdade, o Antigo Regime assegurava que somente o Estado era sábio e que os cidadãos são seres fracos e debilitados que devem ser eternamente guiados pela mão para que não se machuquem. Afirmava que era necessário obstruir, conter e restringir a liberdade individual; que, para assegurar a abundância dos bens materiais, era imperativo organizar a indústria e impedir a livre competição. Sob esse aspecto, o Antigo Regime propunha as mesmas coisas que os socialistas de hoje. Foi a Revolução Francesa que negou isso.

Cavalheiros, o que foi isso que quebrou as correntes que, de todos os lados, impediam a livre movimentação dos homens, dos bens e das idéias? O que restabeleceu a individualidade do homem, que é a sua verdadeira grandeza? A Revolução Francesa! [ Aprovação e clamor ] Foi a Revolução Francesa que aboliu todos esses obstáculos, que arrebentou as correntes que vocês trariam de volta sob um novo nome. E não foram apenas os membros dessa assembléia imortal – a Assembléia Constituinte, a assembléia que fundou a liberdade, não apenas na França, mas em todo o mundo – que rejeitaram as idéias do Antigo Regime. Foram os homens eminentes de todas as assembléias que a seguiram!

E após essa grande revolução, o resultado será aquela sociedade que os socialistas nos oferecem, uma sociedade formal, organizada, fechada, onde o Estado é responsável por tudo, onde o indivíduo não conta, onde a comunidade acumula todo o poder, toda a vida, onde o fim designado para um homem é apenas o seu bem estar material – essa sociedade em que o próprio ar sufoca e em que a luz mal consegue penetrar? Foi para essa sociedade de trabalhadores incansáveis, antes animais capacitados do que homens livres e civilizados, que a Revolução Francesa aconteceu? Foi por isso que tantos homens morreram no campo de batalha, na forca, que tanto sangue nobre molhou a terra? Foi por isso que tantas paixões foram inflamadas, que tanta inteligência, tanta virtude andou por essa terra?

Não! Eu juro pelos homens que morreram por essa grande causa! Não foi por isso que morreram. Foi por algo muito maior, mais sagrado, que merecia mais dedicação, deles e da humanidade. [“Excelente.”] Se ela aconteceu apenas para criarmos um sistema como esse, a Revolução foi um desperdício terrível. Um Antigo Regime aperfeiçoado teria servido adequadamente. [Clamor prolongado.]

Mencionei agora há pouco que o socialismo fingia ser a continuação legítima da democracia. Não pesquisei pessoalmente, como alguns de meus colegas fizeram, pela etimologia real dessa palavra, a democracia. Não vou revirar o jardim das raízes gregas, como foi feito ontem, para procurar a origem dessa palavra. [Risos.] Procuro pela democracia onde eu a vi, viva, ativa, triunfante, no único país da terra onde ela existe e no único lugar onde ela possivelmente poderia ter-se estabelecido com estabilidade no mundo moderno – na América. [Sussurros.]

Lá se encontra uma sociedade na qual as condições sociais são ainda mais iguais do que entre nós; em que a ordem social, os costumes, as leis, são todas democráticas; onde todos os tipos de pessoas entraram e onde cada indivíduo ainda possui uma completa independência, mais liberdade do que se tem notícia em qualquer outro lugar ou tempo; um país essencialmente democrático, as únicas repúblicas completamente democráticas que o mundo já conheceu. E nessas repúblicas procurar-se-á em vão o socialismo. Não apenas as teorias socialistas não

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cativaram a opinião pública, como possuem um papel tão insignificante na vida intelectual e política dessa grande nação que não se poderia nem ao menos dizer que as pessoas as temem.

Os Estados Unidos são, hoje, o único país no mundo onde a democracia é completamente soberana. Além disso, é o país onde as idéias socialistas, as quais os senhores presumem estar de acordo com a democracia, tiveram menor influência, o país onde aqueles que apóiam as causas socialistas estão, por certo, um uma posição de desvantagem. Eu, pessoalmente, não acharia inconveniente, se fossem para lá propagar sua filosofia, mas para seu próprio bem, eu não os aconselharia. [Risos]

Um deputado: As mercadorias deles estão sendo vendidas agora.

Cidadão de Tocqueville: Não, cavalheiro. A democracia e o socialismo não são conceitos interdependentes. Eles não são apenas diferentes, mas filosofias opostas. É compatível com a democracia instituir um governo intrometido, superabrangente e restritivo, desde que ele tenha sido escolhido pela população e aja em nome do povo? Será que o resultado não seria a tirania, sob o disfarce de um governo legítimo que, ao se apropriar dessa legitimidade asseguraria para si o poder e a onipotência que de outra forma lhe faltaria? A democracia expande a esfera da independência pessoal; o socialismo a confina. A democracia valoriza o que o homem tem de melhor; o socialismo faz de cada homem um agente, um instrumento, um número. A democracia e o socialismo só possuem uma coisa em comum – a igualdade. Mas percebam bem a diferença. A democracia visa a igualdade através da liberdade. O socialismo busca a igualdade pela força e a servidão. [ “Excelente, excelente.”]

Dessa forma, a Revolução de Fevereiro não deve ser “social”, e se é exatamente isso que ela não deve ser, devemos ter a coragem de dizê-lo. Se ela não deve ser isso, devemos ter energia para proclamar em voz alta que ela não deveria sê-lo, como faço agora. Quando alguém se opõe aos fins, deve se opor aos meios pelos quais se chega a esses fins. Quando alguém não possui nenhum desejo em relação ao fim, não deve entrar pelo caminho que levará até ele. O que foi proposto hoje foi a nossa entrada nesse caminho.

Não deveremos seguir aquela filosofia política que Baboeuf abraçou com tanto entusiasmo [gritos de aprovação] – Baboeuf, o avô de todos os socialistas modernos. Não devemos cair na armadinha que ele indicou, ou melhor, sugeriu, através de seu pupilo e biógrafo Buonarotti. Ouça às palavras de Buonarotti. Elas merecem atenção, mesmo depois de cinqüenta anos.

Um deputado: Não há babovistas aqui.

Cidadão de Tocqueville: “A abolição da propriedade individual e o estabelecimento da Grande Economia Nacional era o objetivo final de seus [de Baboeuf] trabalhos. Mas ele compreendeu bem que tal ordem não poderia ser estabelecida imediatamente após a vitória. Ele acreditava que seria essencial que o Estado agisse de tal forma que todas as pessoas aboliriam a propriedade privada através da realização de suas próprias necessidades e interesses.” Aqui estão os principais métodos que ele concebeu para realizar seu sonho. (Veja bem, ele é seu próprio panegirista, estou apenas citando.) “Para estabelecer, através das leis, uma ordem pública na qual os proprietários, provisoriamente autorizados a manter seus bens, descobririam que não possuiriam riquezas, nem o direito de dispor de seus bens ou receber por eles, em que, forçados a gastar uma grande parte de sua renda em investimentos ou impostos, esmagados sob o peso da tributação progressiva, afastados das questões públicas, privados de qualquer influência, formando, dentro do Estado, nada além de uma classe de

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estranhos suspeitos, seriam forçados a deixar o país, abandonar os seus bens ou limitar-se a aceitar o estabelecimento da Economia Universal.”

Um deputado: Nós já estamos nesse ponto!

Uma voz da esquerda: Sim! [ “Não! Não!” (interrupção)]

Cidadão de Tocqueville:: Aqui está, senhores, o programa de Baboeuf. Espero sinceramente que esse não seja o programa da República de Fevereiro. Não, a República de Fevereiro deve ser democrática e não socialista.

Uma voz da esquerda:Sim! [ “Não! Não!” (interrupção)]

Cidadão de Tocqueville: E se não for socialista, o que ela deverá ser?

Um deputado da esquerda: Monarquista!

Cidadão de Tocqueville (se virando para a esquerda): Ela poderá ser, talvez, se o Sr. deixar que isso aconteça, [ grande aprovação], mas ela não será.

Se a Revolução de Fevereiro não é socialista, o que, então, ela é? Será ela, como muitas pessoas dizem e acreditam, um mero acidente? Será que ela não necessariamente acarreta uma mudança completa no governo e nas leis? Eu acho que não.

Quando discursei em janeiro na Câmara dos Deputados, na presença da maioria dos delegados, que murmuravam em suas mesas, embora por diferentes razões, da mesma forma que vocês murmuravam agora a pouco – [ “Excelente, excelente”]

(O orador se vira à esquerda)

– eu lhes disse: cuidem-se. A Revolução está no ar. Será que vocês não conseguem senti-la? A Revolução se aproxima. Será que vocês não conseguem vê-la? Estamos sentados sobre um vulcão. Ficará registrado que eu disse isso. E por quê? – [Interrupção vinda da esquerda.]

Será que eu tive a fraqueza mental de supor que a revolução se aproximava porque esse ou aquele homem estava no poder, ou porque esse ou aquele acontecimento provocaram a raiva política da nação? Não, cavalheiros. O que me fez acreditar que a revolução se aproximava, o que realmente produziu a revolução, foi isso: eu vi a negação básica dos princípios mais básicos que a Revolução Francesa espalhou pelo mundo. O poder, a influência, as honras, e por que não, a própria vida, estavam sendo confinados dentro dos limites estreitos de uma só classe, como nenhum outro país do mundo antes fizera.

Foi isso que me fez acreditar que a revolução estava à nossa porta. Eu vi o que aconteceria a essa classe privilegiada, o que sempre acontece quando existem aristocracias pequenas e exclusivas. O papel de estadista não existia mais. A corrupção crescia a cada dia. A intriga tomou o lugar da virtude pública e tudo se deteriorou.

Como a classe mais alta.

E entre as classes mais baixas, o que estava acontecendo? Cada vez mais se libertando, tanto intelectual quanto emocionalmente, daqueles cuja função era liderá-los, o povo em sua

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maioria se encontrou naturalmente inclinado em direção àqueles que lhes eram amigáveis, entre os quais estavam demagogos perigosos e utopistas inúteis daquele tipo com o qual temos nos ocupado aqui.

Por eu ter visto essas duas classes, uma pequena, outra numerosa, separando-se pouco a pouco uma da outra – uma imprudente, insensível e egoísta, outra cheia de inveja, resistência e raiva, por eu ter visto essas duas classes isoladas e avançando em direções opostas, eu disse – e tinha razões para isso – que a revolução estava levantando a sua cabeça e logo estaria sobre nós. [ “Excelente!”]

Era para estabelecer algo parecido com isso que a Revolução de Fevereiro aconteceu? Não, cavalheiros. Recuso-me a acreditar nisso. Tanto quanto qualquer um de vocês, acredito no contrário. Desejo o oposto, não apenas pelos interesses da liberdade, mas também pela segurança pública.

Eu admito que não trabalhei pela Revolução de Fevereiro, porém, tendo ela ocorrido, desejo que ela seja uma revolução séria e comprometida, porque desejo que seja a última. Sei que apenas revoluções dedicadas perduram. Uma revolução que não defende nada, que, contaminada com a esterilidade desde seu nascimento, que destrói sem construir, não faz nada além de dar à luz novas revoluções. [Aprovações.]

Assim, desejo que a Revolução de Fevereiro tenha um significado, claro, preciso e grande o suficiente para que todos vejam.

E qual é esse significado? Em resumo, a Revolução de Fevereiro deve ser uma continuação real, uma execução sincera e honesta daquilo que a Revolução Francesa defendia, deve ser a atualização daquilo que nossos pais ousaram sonhar. [ Grande concordância.]

Cidadão Ledru-Rollin: Peço permissão para falar.

Cidadão de Tocqueville: É isso que a Revolução de Fevereiro deve ser, nem mais nem menos. A Revolução Francesa defendia a idéia que, na ordem social, não deve haver classes. Ela nunca incentivou a divisão dos cidadãos em proprietários e proletários. Não se encontrará essas palavras, carregadas de ódio e guerra, em nenhum dos grandes documentos da Revolução Francesa. Pelo contrário, ela foi baseada na filosofia de que, politicamente, não devem existir classes; a Restauração, a Monarquia de Julho, defendiam o oposto. Devemos permanecer com nossos pais.

A Revolução Francesa, como já disse, não possuía a pretensão absurda de criar uma ordem social que colocava nas mãos do Estado o controle sobre o destino, o bem estar, a afluência de cada cidadão, que substituía a altamente questionável “inteligência” do Estado pela inteligência prática e útil dos governados. Ela acreditava que essa tarefa era grande o suficiente para garantir a cada cidadão esclarecimento e liberdade. [“Excelente”.]

A Revolução teve essa crença firme, nobre, orgulhosa, de que vocês parecem carecer, que é suficiente para homens corajosos e honestos ter essas duas coisas, esclarecimento e liberdade, e para não pedir nada mais daqueles que o governam.

A Revolução foi baseada nessa crença. Ela não determinava tempo ou meios de viabilizá-la. É nosso dever permanecermos com ela e, dessa vez, cuidar para que ela se realize.

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Por fim, a Revolução Francesa desejava – e foi isso que a fez não apenas ser beatificada, mas santificada aos olhos da população – introduzir a caridade na política. Ela concebeu a noção de dever em relação aos pobres, aos que sofrem, algo mais extenso, mais universal do que qualquer coisa já implementada. É essa idéia que deve ser recapturada, não, repito, trocando a inteligência individual pela do Estado, mas agindo para ajudar aqueles que têm necessitades, aqueles que, após ter esgotado seus recursos, seriam jogados à miséria caso não lhes fosse oferecido auxílio, através de meios que o Estado já possui à sua disposição.

Essencialmente, é isso que a Revolução Francesa buscava, e é o que nós devemos fazer.

Então, eu pergunto?

Será que isso é socialismo?

Grito da esquerda: Sim! Sim, o socialismo é exatamente isso.

Cidadão de Tocqueville: De forma alguma!

Não, isso não é socialismo, mas cristianismo aplicado à política. E não há nada que…

(Interrupção…)

Cidadão Presidente: Você não pode ser ouvido. É obvio que você não possui a mesma opinião. Você terá a sua chance de falar da tribuna, mas não interrompa.

Cidadão de Tocqueville: Não há nada que dê aos trabalhadores o direito de fazer reivindicações ao Estado. Não há nada na Revolução que force o Estado a colocar-se no lugar da do cuidado individual, no lugar do mercado, no lugar da integridade individual. Não há nada que autorize o Estado a interferir nas questões industriais ou a impor suas regras à indústria, a tiranizar o indivíduo para governá-lo melhor, ou, como se afirma audaciosamente, para salvá-lo de si mesmo. Não há nada além do cristianismo aplicado à política.

Sim, a Revolução de Fevereiro deve ser cristã e democrática, mas ela não deve ser, sob qualquer circunstância, socialista. Essas palavras resumem o que eu penso e encerro aqui o que eu tinha a dizer.

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O Humanitário com a Guilhotina

Isabel Paterson (1886-1961)

A maior parte do mal do mundo é causada por pessoas boas, e não por acidente, lapso ou omissão. É o resultado de práticas deliberadas, nas quais elas insistiram por muito tempo, e que acham ser motivadas por elevados ideais, voltados a nobres objetivos. Isto é demonstrável, e é forçoso que seja. A porcentagem de pessoas más, cruéis ou corruptas é necessariamente pequena, já que nenhuma espécie conseguiria sobreviver se seus membros fossem habitual e conscientemente inclinados a prejudicar uns aos outros. É tão fácil destruir que uma minoria de pessoas mal intencionadas já seria suficiente para exterminar uma inocente maioria de pessoas bem intencionadas. O assassinato, o roubo e a destruição são possibilidades disponíveis a todos os indivíduos, em todos os momentos. Se presumirmos que é apenas o medo ou a força que segura essas pessoas, devemos perguntar do que é que elas têm medo, e quem usaria de força contra elas se todas as pessoas pensassem da mesma forma. Certamente, se fossem contabilizados apenas os males causados por pessoas conscientemente criminosas, o número de assassinatos e a extensão das perdas e danos seriam considerados insignificantes diante do total de mortes e prejuízos causados pelos seres humanos a seus semelhantes. Portanto, é óbvio que em períodos nos quais milhões são assassinados, a tortura é praticada, a fome é imposta e a opressão é uma política pública, como acontece hoje em grande parte do mundo, e como freqüentemente aconteceu no passado, isso ocorre sob o comando de pessoas boas, sendo até resultado de sua ação direta, pois elas almejam um fim que consideram válido. Quando não agem diretamente, participam dando sua aprovação, elaborando justificativas, ou então encobrindo os fatos com o silêncio e desencorajando as discussões.

Obviamente, isso não poderia acontecer sem alguma causa ou razão. Vale ressaltar que, na passagem acima, por pessoas boas queremos realmente dizer pessoas boas; pessoas que, conscientemente, não tentariam agir de forma que prejudicasse seus semelhantes e não incentivariam alguém a fazê-lo, nem gratuitamente, nem em próprio benefício. As pessoas boas desejam o bem a seus semelhantes e desejam agir de acordo com esse desejo. Além disso, não pressupomos aqui nenhuma “adulteração de valores”, confundindo o bem e o mal, sugerindo que o bem produza o mal, que não haja diferença entre o bem e o mal ou entre boas e más ações. Tampouco sugerimos que as virtudes das pessoas boas não sejam realmente virtudes.

Deve haver, então, um erro gravíssimo nos meios pelas quais essas pessoas buscam atingir seus fins. Talvez haja até um erro em seus axiomas primários, já que elas continuam a usar esses meios. Em algum lugar, algo está terrivelmente errado no procedimento. O que seria?

Com certeza, os assassinatos cometidos de tempos em tempos por bárbaros que invadem regiões povoadas ou os cruéis caprichos de tiranos confessos não somariam um décimo dos horrores perpetrados por governantes com boas intenções.

Diz-nos a história que o faraó escravizou os antigos egípcios por meio do benevolente programa de estabilização dos celeiros. Estocaram-se alimentos para evitar a fome, mas logo as pessoas foram obrigadas a negociar propriedades e até sua liberdade por tais reservas, que tinham sido formadas a partir do confisco de sua própria produção. A rigidez inumana dos antigos espartanos servia a um ideal cívico de virtude.

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Os primeiros cristãos foram perseguidos por razões de Estado, pelo bem-estar coletivo; e resistiram em nome do direito à personalidade, pois cada um tinha uma alma própria. Aqueles que Nero matou apenas por esporte foram poucos comparados aos condenados estritamente por razões “morais” por imperadores posteriores. Gilles de Retz, que assassinava crianças para satisfazer uma perversão animalesca, não matou mais de cinqüenta ou sessenta. Cromwell ordenou o massacre de trinta mil pessoas de uma só vez, inclusive bebês de colo, em nome da justiça. Mesmo as brutalidades do tzar Pedro, o Grande, foram justificadas por belos pretextos para que parecessem benesses aos seus súditos.

A guerra atual [N. do T.: a Segunda Guerra Mundial], que começou com um tratado perverso entre duas nações poderosas (Rússia e Alemanha), que permitia que esmagassem vizinhos menores impunemente, tratado este que foi rompido por um ataque surpresa contra o colega conspirador, teria sido impossível sem o poder político interno que, em ambos os casos, foi tomado com a justificativa de fazer o bem à nação. As mentiras, a violência e os assassinatos generalizados foram utilizados, primeiramente, contra pessoas de ambas as nações por seus respectivos governos. Podemos dizer, com certa razão, que em ambos os casos os detentores do poder são hipócritas cruéis e que seus objetivos eram maus desde o começo. Apesar disso, eles não poderiam ter assumido o poder de nenhuma outra forma senão com o consentimento e a assistência de pessoas boas. O regime comunista na Rússia ganhou poder prometendo distribuir terra aos camponeses, usando uma fórmula que mesmo os que a prometiam sabiam ser mentirosa. Quando tomaram o poder, os comunistas retiraram dos próprios camponeses a terra que possuíam e exterminaram os que resistiram. Tudo isso foi feito seguindo planos e intenções e suas mentiras foram saudadas como “engenharia social” por admiradores socialistas nos Estados Unidos. Se isso é engenharia, qualquer vigarista é engenheiro. Toda a população da Rússia foi submetida à coerção e ao terror; milhares foram executados sem julgamento; milhões, aprisionados, trabalharam e passaram fome até morrer. Da mesma forma, toda a população da Alemanha foi submetida à coerção e ao terror usando os mesmos métodos. Com a guerra, tanto os russos em prisões alemãs quanto os alemães em prisões russas não estão enfrentando destino pior do que os já experimentados por um grande número de seus compatriotas, por obra de seus próprios governos, em seus próprios países. Se há alguma diferença, seria a de que talvez sofram menos com a vingança de seus inimigos declarados do que com a suposta benevolência de seus compatriotas. As nações européias, conquistadas por russos e alemães, estão experimentando somente agora o que cidadãos de ambos os países já sofrem há tempos nas mãos de seus próprios governos.

Para completar, as principais figures políticas que hoje detêm o poder na Europa, incluindo aqueles que venderam seus países ao invasor, são socialistas, ex-socialistas ou comunistas; homens cujas crenças baseavam-se no bem comum.

Mesmo tendo essa realidade sido exaustivamente demonstrada, ainda testemunhamos um peculiar espetáculo: o homem que condenou milhões à fome em seu governo é admirado por filantropos que, entre outras coisas, desejam a garantia de que todos no mundo tenham leite disponível para sua alimentação. Um graduado profissional da caridade atravessou meio mundo para ter uma audiência com esse mestre do seu ramo, e para compor rapsódias sobre a concessão de um tal privilégio. Para manter seu emprego, alegando o objetivo de fazer o bem, tais idealistas recebem o apoio político de corruptos, cafetões condenados e gângsteres profissionais. A afinidade entre todos esses tipos invariavelmente se revela quando chega o momento. Mas qual é o momento?

Por que a filosofia humanitária do século XVIII europeu conduziu ao Reino do Terror? Isso não aconteceu por acaso, mas seguiu-se da premissa, objetivos e meios originalmente propostos.

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O objetivo é fazer o bem aos outros, como se isso fosse a justificativa primária da existência; os meios são o poder do coletivo; e a premissa é que o “bem” é coletivo.

A raiz da questão é ética, filosófica e religiosa, envolvendo a relação entre homem e o universo e entre sua capacidade criativa e seu Criador. O desvio principal está em não reconhecer a norma da vida humana. Obviamente, uma grande parcela de dor e angústia faz parte da vida. A pobreza, a doença e o acidente são possibilidades que podem ser reduzidas a um mínimo, mas não podem ser completamente eliminadas dos riscos com que a humanidade precisa se defrontar. E não são condições desejáveis, que se deseje provocar ou perpetuar. Naturalmente, as crianças têm pais e a maioria dos adultos tem boa saúde durante a maior parte de sua vida e trabalham em atividades úteis que lhes trazem sustento. Esta é a norma e a ordem natural. As doenças são marginais. Elas podem ser aliviadas pelo excedente marginal da produção; para além disso, nada mais pode ser feito. Portanto, não se pode supor que o produtor exista somente para o não-produtor, o são exista para o doente e o competente para o incompetente; nem que qualquer outra pessoa exista para outra. (O procedimento lógico, que dizia que uma pessoa existia somente para outra, era executado em sociedades semi-bárbaras, em que a viúva ou os seguidores de um morto eram enterrados vivos na mesma sepultura.)

As grandes religiões, que também são grandes sistemas intelectuais, sempre reconheceram as condições da ordem natural. Elas tomam a caridade e a benevolência como obrigações morais, a serem cumpridas a partir do excedente do produtor. Isto é, fazem disso algo secundário à produção, pela inescapável razão de que sem produção não haveria nada a ser dado. Conseqüentemente, prescrevem a regra mais severa, a ser adotada voluntariamente, para aqueles que desejam devotar suas vidas inteiramente a trabalhos de caridade, vivendo de contribuições. Tal estilo de vida é considerado uma vocação especial, porque não pode ser um meio de vida comum. Como o arrecadador de doações tem que obter dos produtores os fundos ou bens que distribui, ele não tem nenhuma autoridade para comandar; ele precisa pedir. Quando retira seu próprio sustento das doações, deve tomar não mais que o necessário para sua sobrevivência. Como prova de sua vocação, o arrecadador deve até mesmo desistir da felicidade da vida familiar, se quiser entrar para uma ordem religiosa. Ele nunca pode obter conforto para si da infelicidade alheia.

As ordens religiosas mantiveram hospitais, criaram órfãos, distribuíram comida. Parte dessas doações foram dadas incondicionalmente, sem que houvesse compulsão sob o disfarce de caridade. Não é digno fazer um homem se despojar de sua alma em troca de pão. Esta é a verdadeira diferença quando a caridade é prescrita em nome de Deus, e não de princípios humanitários ou filantrópicos. Se os doentes foram curados, os que tinham fome alimentados, os órfãos criados até crescerem, a essas pessoas, sem dúvida, foi feito o bem, e esse bem não pode ser computado somente em termos físicos; essas ações foram executadas com a intenção de ajudar seus beneficiários durante um período difícil, para restabelecê-los à normalidade logo que possível. Se os beneficiários pudessem, mesmo que parcialmente, ajudar a si mesmos, melhor. Caso contrário, admitia-se este fato. Além disso, a maioria das ordens religiosas também se empenhava, simultaneamente, em ser produtiva, para poder doar seus próprios excedentes, e não só distribuir donativos. Quando realizavam um trabalho produtivo, como o de construção, de ensino por uma pequena taxa, da criação de animais e cultivo de vegetais, ou de pequena manufatura e trabalhos de arte, os resultados foram duráveis, não somente em alguns produtos em particular, mas na difusão de conhecimento e de no aprimoramento de seus métodos, de forma que, a longo prazo, a normalidade do bem-estar fosse elevada. E deve ser notado que esses resultados duradouros foram derivados do auto-aprimoramento.

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O que um ser humano pode realmente fazer por outro? Pode doar seus próprios recursos, seu próprio tempo ou qualquer coisa que lhe sobre. Mas ele não pode doar a alguém habilidades que a natureza negou, nem doar seu próprio sustento sob pena de ele próprio se tornar um dependente. Se ele doa parte do que ganha, deve ganhá-lo primeiro. Certamente, ele tem direito a uma vida doméstica, se pode sustentar uma esposa e filhos. Deverá então reservar o suficiente para si e sua família, para continuar produzindo. Pessoa nenhuma, mesmo que seus ganhos sejam de dez milhões de dólares ao ano, pode cuidar de todas as necessidades no mundo. Porém, supondo que ela não tenha meios próprios, e ainda imagina que pode transformar “ajudar os outros” no principal propósito de sua vida e no seu modo normal de existência – o que é exatamente a doutrina central da crença humanitária – , como essa pessoa poderia atingir seus objetivos? Têm-se publicado listas dos Casos Mais Necessitados, certificadas por fundações leigas de caridade, que pagam ótimos salários a seus próprios funcionários. Os necessitados têm sido pesquisados, não confortados. Com as doações recebidas, os funcionários pagam a si mesmos em primeiro lugar. Essa situação é embaraçosa até para o imperturbável filantropo profissional. Mas como evitar a confissão? Se o filantropo tivesse o domínio dos meios do produtor, ao invés de pedir uma parte, poderia exigir o crédito pela produção, estando assim em posição de dar ordens ao produtor. Então, poderia culpar o produtor por não atender suas ordens de produzir mais.

Se o objetivo primário do filantropo, sua razão de viver, é ajudar os necessitados, seu bem em última instância depende de que outros passem necessidades. Sua alegria é o outro lado dos infortúnios deles. Se deseja ajudar a “humanidade”, toda a humanidade deve passar necessidades. O humanitário deseja ser o principal motor da vida dos outros. Ele não pode admitir a existência nem da ordem divina nem da natural, segundo a qual os homens têm o poder de ajudar a si mesmos. O humanitário se coloca no lugar de Deus.

Porém, dois fatos incômodos o desafiam; primeiro, quem está bem não precisa de sua ajuda; e segundo, a maioria das pessoas, se não corrompidas, certamente não quer ser “ajudadas” pelos humanitários. Quando se diz que todos devem viver primeiramente para os demais, o que se deve fazer especificamente? Cada pessoa deve fazer exatamente o que qualquer outra quiser, sem limites ou reservas? E somente o que elas quiserem? E se várias pessoas fizerem pedidos conflitantes? Esse esquema é impraticável. Talvez ela vá fazer somente o que é “bom” para os outros. Mas será que os outros sabem o que é bom para eles? Não, esta opção está excluída pelo mesmo problema. Então deverá A fazer o que julga ser bom para B, e B o que julga ser bom para A? Ou deverá A aceitar somente o que pensa ser bom para B e vice versa? Mas isso é absurdo. É claro que a proposta do humanitário é que ele mesmo faça o que ele julga ser bom para todos. E é neste momento que o humanitário prepara a guilhotina.

Como seria o mundo que daria ao humanitário mais possibilidades de ação? Só poderá ser um mundo cheio de filas para receber pães, e de hospitais, no qual ninguém possui o poder natural e humano de ajudar a si mesmo ou de resistir a coisas que lhe sejam feitas. E é precisamente este o mundo que o humanitário obtém quando atinge seus objetivos. Quando um humanitário deseja que todos no mundo tenham leite, é evidente que ele não tem o leite, e que não tem como produzi-lo; caso contrário, não estaria apenas desejando. Além disso, mesmo que possuísse quantidade de leite suficiente para doar um pouco a cada pessoa, enquanto seus pretensos beneficiários tiverem condições, e produzirem leite para si mesmos, eles dirão não, obrigado. Então, como o humanitário iria produzir uma situação em que tenha leite para distribuir, e em que todos necessitem de leite?

Há apenas um caminho, e este é o uso máximo da força política. Então, o humanitário sente uma extrema satisfação quando ele visita ou ouve falar de um país no qual todo o consumo é

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racionado. Onde a subsistência é doada, o objetivo do humanitário é atingido: há a necessidade geral e uma força superior para “aliviá-la”. O humanitário na teoria é o terrorista em ação.

As pessoas boas dão-lhe o poder que ele demanda porque aceitam sua falsa premissa. O avanço da ciência emprestou a esta premissa uma falsa plausibilidade, graças ao aumento da produção. Sabendo que há o suficiente para todos, por que não podem os “necessitados” serem satisfeitos em primeiro lugar e esta questão ser abandonada para sempre?

Neste ponto surge a pergunta: como você definiria os “necessitados”, e a partir de que fontes e por qual poder o sustento lhes seria suprido? As pessoas de bom coração podem exclamar indignadas: “Isto não é tão importante; estreite a definição a um limite extremo, e quando um mínimo irredutível for atingido, não se poderá negar que um homem faminto, mal-vestido e sem-teto seja um necessitado. A fonte da ajuda só poderá ser os meios daqueles que não são tão necessitados. O poder já existe; se pode existir o direito de taxar pessoas para os exércitos, marinhas, polícias locais, construção de estradas ou qualquer outro propósito que se possa imaginar, com certeza, poderá existir algo que torne possível taxar pessoas para a preservação da vida em si.”

Muito bem. Peguemos um caso específico. Nos tempos difíceis, nos anos de 1890, um jovem jornalista de Chicago estava preocupado com as terríveis necessidades dos desempregados. Ele queria acreditar que qualquer homem que realmente quisesse trabalhar conseguiria encontrar emprego. Porém, para ter certeza, ele investigou alguns casos. Um deles era o de um jovem vindo de uma fazenda, onde a família talvez tivesse o suficiente para comer, mas precisava de recursos para tudo mais. O garoto da fazenda tinha ido a Chicago procurar emprego e teria certamente, aceito qualquer tipo de trabalho, mas não havia empregos disponíveis. Supomos que ele tenha pedido esmolas para conseguir voltar para casa. Havia outros necessitados, mas estavam a meio continente e mais um oceano de suas casas. Esses não podiam de jeito nenhum voltar só por seus próprios esforços, e não há o que discutir a respeito. Eles simplesmente não podiam. Eles dormiam em calçadas, esperavam por alguma comida – mesmo que insuficiente – e sofriam muito. Havia ainda outra coisa. Entre esses desempregados, algumas pessoas, é impossível dizer quantas, eram excepcionalmente empreendedoras, talentosas ou competentes – e foi isso que as colocou em dificuldade imediata. Elas tinham se livrado por pouco da dependência em um período particularmente difícil; tinham arriscado muito. Extremos se encontravam entre os desempregados; os extremos de um empreendimento corajoso, da pura má-sorte e da absoluta extravagância e incompetência. Um ferreiro que trabalhasse perto da Brooklyn Bridge e desse a um pobre que passava dez centavos para pagar a taxa da ponte não tinha como saber que fazia um empréstimo à imortalidade, a um futuro poeta laureado da Inglaterra. Mas John Masefield era o homem que passava. Portanto, não necessariamente, os necessitados são pessoas que nada merecem. Também há pessoas no campo, que sofreram com a seca ou em áreas atacadas por pragas de insetos, que estavam em extrema necessidade, e que teriam, literalmente, morrido de fome se alguma ajuda não tivesse lhes tivesse sido mandada. Esses também não receberam quase nada e foi tudo de uma forma desorganizada. Mas todos lutaram até a surpreendente recuperação de todo o país.

Incidentalmente, teriam havido muito mais dificuldades entre aqueles que só produziam para a subsistência não fosse pelas doações de vizinhos, que não eram chamadas de caridade. As pessoas sempre doam bens, se eles os têm; é um impulso humano, que o humanitário manipula de acordo com seus propósitos. O que haveria de errado em institucionalizar esse impulso natural, transformando-o numa agência do governo?

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Retornando ao jovem, teria ele feito algo de errado ao deixar sua casa, onde tinha o suficiente ao menos para comer, e ir a Chicago procurar por trabalho?

Se a resposta for sim, então deveria haver um poder legítimo que o impedisse de deixar a fazenda sem permissão. O poder feudal fez isso. Essa atitude não impediu que pessoas passassem fome, apenas as forçou a passar fome onde tinham nascido.

Mas se a resposta for não, o garoto da fazenda não fez nada de errado. Ele tinha o direito de dar-se aquela chance. Então, o que deve ser feito para termos certeza de que ele não irá passar por dificuldades, quando chegar ao local que escolheu como destino? Podemos prover empregos para qualquer pessoa, em qualquer lugar que ela escolha? Não, isso é um absurdo. Não pode ser feito. Ela terá direito a assistência, se escolher ficar por lá, ou terá, ao menos, direito a uma passagem de volta para casa? Isso é igualmente absurdo. A demanda seria ilimitada e não haveria abundância de produção que a absorvesse.

Porém, as pessoas que foram empobrecidas pela seca não poderiam ter sobrevivido sem receber assistência governamental? Aí, a questão seria sob que condições receberiam tais benefícios. Elas receberão assistência enquanto passarem por necessidades, enquanto permanecerem onde estão? (Elas não podem ser financiadas para viagens sem destino.) Isso é exatamente o que tem sido feito nos últimos anos; e assim, mantiveram-se destinatários de doações por sete anos em ambientes sujos, desperdiçando tempo, trabalho e sementes no deserto.

A verdade é que qualquer método proposto que realmente combatesse as necessidades e angústias da vida humana, por estabelecer um imposto fixo sobre a produção, seria adotado com satisfação por aqueles que hoje a ele se opõem, caso fosse viável. Eles se opõem a esses métodos porque são impraticáveis em sua natureza. Essas pessoas já tentaram todos os meios possíveis para combater suas próprias necessidades futuras, na forma de um seguro privado; e eles sabem exatamente qual é o problema, porque se defrontam com ele quando tentam assegurar o sustento de seus próprios dependentes.

O obstáculo insuperável é que é absolutamente impossível tirar algo da produção antes de tirar para a própria subistência.

Mesmo que os produtores, os administradores de indústrias e outros realmente tivessem frios corações de aço e não dessem a mínima importância para o sofrimento humano, ainda assim seria mais conveniente para eles se a questão da assistência a todos os tipos de problemas, seja o desemprego, a doença ou a velhice, pudesse ser sanada de uma vez por todas. Assim, não precisariam mais ouvir falar desse assunto. Os administradores estão sempre sendo atacados por causa disso; e o ataque dobra quando a indústria entra em recessão. Os políticos podem conseguir votos a partir de crises; os humanitários conseguem empregos lucrativos em escritórios, distribuindo fundos de assistência; só mesmo os que estão envolvidos na produção, os capitalistas ou os trabalhadores, sofrem as conseqüências e pagam o preço de uma crise.

A dificuldade aparece melhor num caso particular. Suponhamos que um homem, que possua um negócio bem lucrativo, que vai muito bem, com um longo histórico de boa administração, deseje garantir à sua família rendimentos futuros provenientes deste negócio. Ele deve, como proprietário, estar em posição de poder planejar para a família retornos de determinada quantia; digamos que esse retorno fosse de somente 5.000 dólares/ano, em um negócio que pagasse 100.000 dólares por ano de lucro bruto. Esse plano é o melhor que ele poderia fazer;

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porém, se em algum momento, o seu negócio não conseguir render o suficiente para que sejam retirados os 5000 dólares, sua família não receberá o dinheiro. Eles devem preocupar-se com a falência e com seus bens, mas seus bens depois da falência podem já não valer mais nada. É impossível tirar algo da produção antes de tirar para a própria subistência.

Além disso, é claro que a família do empresário pode hipotecar sua parte na empresa ou doá-la a algum amigo “benevolente” que possa “administrá-la” – algo que acontece, como se sabe – ; então, de qualquer forma, eles não receberiam o dinheiro. É esse o caso de organizações de caridade sustentadas por um fundo. Elas sustentam vários amigos com empregos pouco exigentes.

Mas e se o empresário, com sua grande generosidade, determinasse, irrevogavelmente, que sua esposa e sua família teriam uma conta, cujos cheques seriam cobertos com os fundos da empresa, para sacar o quanto quisessem. Ele poderia estar, inocentemente, certo de que eles nunca sacariam mais que uma pequena porcentagem para suas verdadeiras necessidades. Porém, poderia chegar o dia em que o caixa diria a feliz esposa que não havia fundos para cobrir seu cheque; e, se a empresa seguisse tal determinação, este dia chegaria rapidamente; nos dois casos, bem quando a família mais precisasse de mais dinheiro, a empresa lhe renderia menos.

Mas o procedimento seria completamente insano se o empresário desse a um terceiro o poder irrevogável de sacar o quanto quisesse dos fundos da empresa, respeitando apenas o acordo impossível de cumprir de que esse terceiro sustentaria a família do empresário. Essa opção é exatamente a proposta de se cuidar dos necessitados por meios governamentais. A idéia dá aos políticos o poder ilimitado de cobrar impostos; e não há absolutamente nenhum meio de se garantir que o dinheiro vá para onde deveria. De todo modo, nenhuma empresa suportaria uma evasão de recursos ilimitada.

Por que as pessoas de bom coração convocam o poder político? Elas não têm como negar que os recursos para os benefícios deva vir da produção. Mas dizem que há recursos suficientes e que até sobram. Então, devem supor que os produtores não desejam doar o que “devem”. Além disso, supõem também que há um direito coletivo de cobrar impostos para qualquer objetivo que a coletividade determinar. Elas localizam aquele direito no “governo”, como se este existisse por si, esquecendo o axioma americano de que o governo não existe por si, mas é instituído pelos homens para exercer papéis limitados. O próprio pagador de impostos espera proteção do exército, da marinha e da polícia; ele utiliza as estradas; logo, seu direito em insistir em que a taxação seja limitada é evidente. O governo não tem nenhum “direito”, apenas a autoridade que lhe foi delegada pelo indivíduo.

Mas se cobram-se impostos para prestar assistência aos necessitados, quem julgaria o que seria possível ou positivo? Os produtores, os necessitados ou um terceiro grupo. Dizer que deveríamos ter os três juntos não responde à questão; o veredito deve balançar entre a maioria ou pluralidade de um grupo ou de outro. Irão os necessitados votar no que quiserem em benefício próprio? Ou os humanitários, o terceiro grupo, votarão em si mesmos para controlar ambos, os produtores e os necessitados? (Isso eles já vêm fazendo.) O governo deveria, supostamente, dar “segurança” aos necessitados. Mas não pode. O que o governo faz é tomar os recursos acumulados por pessoas, para sua própria segurança; assim, priva todos de qualquer esperança ou chance de ter alguma segurança. O governo não pode fazer nada além disso, se fizer alguma coisa. Aqueles que não entendem a natureza da ação são como selvagens, que cortariam uma árvore para colher o fruto; eles não levam em consideração o tempo e o espaço, como fariam homens civilizados.

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Nós vimos o que pode acontecer de pior quando há apenas assistência privada e assistência estatal improvisada de caráter temporário. A caridade privada sem organização é aleatória e esporádica, e nunca conseguiu prevenir completamente o sofrimento. Porém, ela nunca perpetuou a dependência de seus beneficiários. É o método do capitalismo e da liberdade, que envolve altos e baixos extraordinários, mas os altos são sempre cada vez maiores e mais longos que os baixos. E nos piores momentos, não existiu fome real, nenhum desespero terrível, mas um otimismo ativo e estranhamente nervoso, e uma crença inabalável de que tempos melhores viriam, a qual foi justificada pelos resultados. A caridade privada e não-oficial efetivamente atendeu aos propósitos. Funcionou, ainda que imperfeitamente.

Por outro lado, o que pode fazer o poder político? Um dos “abusos” atribuídos ao capitalismo eram os sweatshops [N. R.: fábricas de trabalho pesadíssimo]. Imigrantes chegavam aos Estados Unidos sem dinheiro, sem conhecer a língua e sem nenhuma experiência em trabalhos que exigissem alguma habilidade; eram contratados por salários muito baixos, trabalhavam por longas horas, em péssimas instalações, e dizia-se que eram explorados. Ainda assim, misteriosamente, com o tempo, eles melhoraram sua qualidade de vida; a grande maioria adquiriu conforto, e alguns conseguiram riqueza. Será que algum poder político poderia ter fornecido trabalhos lucrativos para todo mundo que desejasse vir? Claro que não poderia – e não pode. Desta forma, as pessoas boas clamaram pelo governo, para que aliviasse o fardo desses novos imigrantes que chegavam. O que fez o governo? Sua primeira providência foi determinar que cada imigrante deveria trazer consigo uma certa soma em dinheiro. Isto é, tirou dos mais necessitados no estrangeiro sua única esperança. Depois, quando o poder político transformou a vida na Europa num triste inferno, mas muitas pessoas ainda conseguiam juntar a soma exigida para serem admitidos nos EUA, o governo americano simplesmente reduziu a admissão de imigrantes a uma determinada cota. Quanto maiores fossem as necessidades, menores eram as oportunidades concedidas pelo poder político. Será que milhões e milhões de pessoas na Europa não estariam felizes e gratos, se pudessem ter tido uma oportunidade como as oferecidas pelo antigo sistema, em vez de campos de concentração, porões de tortura, vis humilhações e mortes violentas?

O proprietário do sweatshop não possuía muito capital. Arriscava o pouco que tinha empregando pessoas e era acusado de fazer-lhes algo terrível e seu negócio era considerado revelador da brutalidade do capitalismo.

Um funcionário do governo é razoavelmente bem pago e tem um emprego estável. Não arrisca nada e recebe seu salário para empurrar pessoas desesperadas para fora das nossas fronteiras, como a homens que, em vias de se afogar, fossem espancados para largar as bordas de um barco cheio de provisões. O que mais pode fazer um funcionário do governo? Nada. O capitalismo fez o que podia; o governo faz o que pode. A propósito, o barco foi construído e equipado pelo capitalismo.

Para analisarmos as ações do filantropo e do capitalista privado, peguemos o caso de um homem que esteja realmente necessitado, mas não incapacitado, e suponhamos que esse filantropo lhe dê comida, roupas e abrigo – quando terminar de usar o que lhe foi doado, estará onde estava antes, porém, pode ter adquirido o hábito da dependência. Por outro lado, suponhamos que alguém, sem nenhum motivo benevolente, simplesmente desejando que algum trabalho seja feito, deseje empregar o necessitado e pagar-lhe um salário. O empregador não terá feito nenhuma boa ação. Ainda assim, a condição do homem empregado foi mudada. Qual é a diferença vital entre as duas ações?

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A diferença é que o empregador não-filantrópico trouxe o trabalhador de volta à linha de produção, ao grande circuito de energia; ao passo que o filantropo só pode desviar essa energia de tal maneira que não haja retorno para a produção, diminuindo assim a probabilidade do objeto de suas benesses encontrar algum emprego.

Eis a razão profunda e racional pela qual os seres humanos fogem da assistência e chegam até a odiar a palavra. Essa é também a razão pela qual as pessoas realmente vocacionadas que desenvolvem trabalhos de caridade fazem o melhor possível para mantê-lo à margem, e com prazer abririam mão de “fazer o bem” se houvesse qualquer oportunidade de o beneficiário trabalhar em condições minimamente aceitáveis. Aqueles que não têm alternativa exceto a caridade sentem e exibem fisicamente os resultados: são excluídos das fontes vivas da energia auto-renovável, e sua vitalidade se esvai.

O resultado, se filantropos e políticos os mantêm dependentes de assistência por um tempo longo o suficiente, foi descrito por um profissional da assistência. No inicio, os “clientes” se inscrevem com certa relutância. “Em poucos meses,tudo muda. O sujeito que só queria o suficiente para resolver acaba se adaptando e vivendo da assistência, como se fosse normal.” O funcionário que deu esta declaração estava ele próprio “vivendo da assistência, como se fosse normal”, mas estava um degrau abaixo de seu ‘cliente’, já que nem mesmo reconhecia sua própria condição. Como conseguiu desviar-se da verdade? Escondendo-se atrás de seus motivos filantrópicos: “Nós ajudamos a prevenir a fome, e vemos que estas pessoas, hoje, possuem algum tipo de moradia e abrigo”. Se perguntássemos ao agente se ele planta a comida, constrói os abrigos ou doa seu próprio dinheiro para pagar por eles, ele não veria a menor diferença entre fazer isso ou não. Ele foi ensinado que é certo “viver pelos outros”, para “objetivos sociais” e pelos “ganhos sociais”. Enquanto ele acreditar que está fazendo aquilo, não vai perguntar a si mesmo o que está exatamente fazendo aos outros, nem de onde vêm os meios para seu sustento.

Se reuníssemos todos os filantropos sinceros, desde o inicio dos tempos, descobriríamos que todos eles juntos, exercendo suas atividades filantrópicas, nunca trouxeram à humanidade um décimo dos benefícios advindos dos esforços normalmente em interesse próprio de Thomas Alva Edison, para não mencionar as grandes mentes que explicaram os princípios científicos que Edison aplicou. Inumeráveis pensadores, inventores e organizadores contribuíram para o conforto, a saúde e a felicidade de seus semelhantes – porque esses não eram seus objetivos. Quando Robert Owen tentou administrar eficientemente uma fábrica, o processo naturalmente melhorou o caráter de alguns de seus funcionários, pessoas que tinham estado sob assistência, e estavam tristemente degradadas. Owen enriqueceu e, comprometido com seu projeto, lhe ocorreu um dia que se fossem pagos melhores salários talvez a produção crescesse, já que o mercado estava criado. Isso foi perspicaz e verdadeiro. Mas depois Owen foi inspirado por ambições humanitárias, tentando fazer o bem a todo mundo. Reuniu vários humanitários em uma colônia experimental; eles estavam tão preocupados em fazer o bem aos outros, que ninguém trabalhava nunca. A colônia se dissolveu, cheia de ressentimentos. Owen faliu e morreu vagamente louco. Assim, o importante princípio que vislumbrara teria de esperar um século para ser redescoberto.

Sempre encontramos o filantropo, o político e o cafetão aliados, pois têm as mesmas motivações e buscam os mesmos fins – existir para os outros, por meio dos outros e pelos outros. As boas pessoas não podem ser desculpadas por apoiá-los. Também não podemos acreditar que as pessoas boas sejam totalmente ignorantes em relação ao que realmente acontece. Porém, quando essas pessoas realmente sabem, como certamente sabem, que três milhões de pessoas (pelo menos estimadamente) morreram de fome em um ano pelos

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métodos que aprovam, por que ainda se associam com assassinos e apóiam suas medidas? Porque lhes foi dito que a morte de três milhões pode vir a beneficiar um número maior de pessoas. O argumento se aplica igualmente bem ao canibalismo.

Reproduzido de The God of the Machine (1943)

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Por Que Os Piores Chegam Ao Poder Friedrich Hayek (1899-1922)

Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta.

Lord Acton Analisaremos agora uma idéia que, se de um lado serve de consolo para muitos que consideram inevitável o advento do totalitarismo, de outro enfraquece sobremodo a resistência dos que a ele se oporiam com todas as forças se lhe compreendessem a natureza. Trata-se da idéia de que os aspectos mais repelentes dos regimes totalitários se devem à casualidade histórica de esses regimes terem sido estabelecidos por canalhas e bandidos. Se, na Alemanha, a criação de um regime totalitário levou ao poder os Streichers e Killingers, os Leys e Heines, os Himmlers e Heydrichs - argumenta-se -, isso sem dúvida poderá provar a perversidade do caráter alemão, mas não que a ascensão de tais homens seja conseqüência inevitável de um regime totalitário. Por que não seria possível que o mesmo sistema, se necessário à consecução de objetivos importantes, fosse dirigido por indivíduos honestos para o bem da comunidade? Não devemos iludir-nos supondo que todas as pessoas de bem são forçosamente democratas ou desejam fazer parte do governo. Muitos prefeririam confiá-lo a alguém que reputam mais competente. Embora isso possa ser importante, não há erro ou desonra em aprovar uma ditadura dos bons. O totalitarismo, ouve-se dizer, é um sistema poderoso tanto para o bem como para o mal, e o fim para o qual é usado depende inteiramente dos ditadores. Aqueles que julgam não ser o sistema que cumpre recear, e sim o perigo de que ele venha a ser dirigido por maus indivíduos, poderiam até ser tentados a prevenir esse perigo fazendo com que ele fosse estabelecido antes por homens de bem. Não há dúvida de que um sistema "fascista" inglês ou americano diferiria muito dos modelos italiano ou alemão; por certo, se a transição fosse efetuada sem violência, poderíamos ter esperanças de que surgisse entre nós um líder melhor. E, se eu tivesse de viver sob um regime fascista, preferiria indubitavelmente um que fosse dirigido por ingleses ou americanos a qualquer outro. Entretanto, isso não quer dizer que, julgado pelos padrões atuais, um sistema fascista inglês viesse no fim a revelar-se muito diferente ou muito menos intolerável do que seus protótipos. Há razões de sobra para se crer que os aspectos que consideramos mais detestáveis nos sistemas totalitários existentes não são subprodutos acidentais mas fenômenos que, cedo ou tarde, o totalitarismo produzirá inevitavelmente. Assim como o estadista democrata que se propõe a planejar a vida econômica não tardará a defrontar-se com o dilema de assumir poderes ditatoriais ou abandonar seu plano, também o ditador totalitário logo teria de escolher entre o fracasso e o desprezo à moral comum. Ê por essa razão que os homens inescrupulosos têm mais probabilidades de êxito numa sociedade que tende ao totalitarismo. Quem não percebe essa verdade ainda não mediu toda a vastidão do abismo que separa o totalitarismo dos regimes liberais, a profunda diferença entre a atmosfera moral do coletivismo e a civilização ocidental, essencialmente individualista. O "embasamento moral do coletivismo" foi, é claro, muito debatido no passado; mas o que nos interessa em nosso estudo não é sua base moral e sim seus resultados morais. Nos debates habituais sobre os aspectos éticos do coletivismo pergunta-se se este é exigido pelas convicções morais existentes, ou se devem existir certas convicções morais para que o coletivismo produza os resultados esperados. A questão que estudaremos, entretanto, é: que atitudes morais serão geradas por uma organização coletivista da sociedade, e por que idéias morais tal sociedade tenderá a ser dirigida? A interação da moral e das instituições poderá

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fazer com que a ética resultante do coletivismo seja totalmente diversa dos ideais morais que levam a exigir a implantação desse mesmo coletivismo. Embora nos inclinemos a pensar que, como o desejo de um sistema coletivista nasce de elevados motivos morais, em tal sistema se desenvolverão as mais altas virtudes, não existe, na realidade, nenhuma razão para que qualquer sistema estimule necessariamente aquelas atitudes que concorrem para o fim a que ele se destina. As idéias morais dominantes dependerão em parte das qualidades que conduzem os indivíduos ao sucesso num sistema coletivista ou totalitário e, em parte, das exigências do mecanismo totalitário. Devemos agora voltar por um momento ao estágio que precede a supressão das instituições democráticas e a criação de um regime totalitário. Nesse estágio, a exigência geral de uma ação governamental rápida e decidida torna-se o elemento dominante da situação, enquanto a insatisfação com o curso lento e trabalhoso dos processos democráticos faz com que o objetivo seja a ação em si. É então que o homem ou o partido que parecem bastante fortes ou resolutos para "fazerem as coisas funcionar'' exercem maior sedução. "Forte", neste sentido, não indica apenas uma maioria numérica, pois o povo está insatisfeito justamente com a ineficácia das maiorias parlamentares. O que as pessoas procuram é um homem que goze de sólido apoio, de modo a inspirar confiança quanto à sua capacidade de realizar o que pretende. E aqui entra em cena o novo tipo de partido, organizado em moldes militares. Nos países da Europa Central, os partidos socialistas já haviam familiarizado as massas com organizações políticas de caráter semi-militar, que tinham por objetivo absorver tanto quanto possível a vida privada dos seus membros. Para conferir um poder esmagador a um grupo, bastava estender um pouco mais o mesmo princípio, buscando a força não no imenso número de votos garantido em eleições ocasionais, mas no apoio absoluto e irrestrito de um grupo menor, porém perfeitamente organizado. Para conseguir impor um regime totalitário a toda uma nação, o líder deve em primeiro lugar reunir à sua volta um grupo disposto a submeter-se voluntariamente à disciplina totalitária que ele pretende aplicar aos outros pela força. Embora os partidos socialistas tivessem poder político suficiente para obter o que desejassem, desde que resolvessem empregar a força, relutaram em fazê-lo. Sem o saber, tinham assumido uma tarefa que só poderia ser executada por homens implacáveis, prontos a desprezar as barreiras da moral reinante. Muitos reformadores sociais aprenderam, no passado, que o socialismo só pode ser posto em prática por métodos que seriam condenados pela maioria dos socialistas. Os velhos partidos socialistas sentiam-se inibidos por seus ideais democráticos; não possuíam a insensibilidade necessária à execução da tarefa por eles escolhida. É importante notar que, tanto na Alemanha como na Itália, o êxito do fascismo foi precedido pela recusa dos partidos socialistas a assumir as responsabilidades do governo. Repugnou-lhes empregar os métodos que eles próprios haviam apontado. Ainda esperavam pelo milagre de um acordo da maioria em torno de um plano especial para a organização de toda a sociedade. Outros já haviam aprendido que, numa sociedade planificada, não se trata mais de saber sobre o que concorda a maioria do povo, mas qual é o maior grupo cujos membros encontraram um grau de acordo suficiente para tornar possível a direção unificada de todos os assuntos públicos; ou, caso não exista nenhum grupo bastante numeroso para impor suas idéias, de que forma e por quem ele pode ser criado. Há três razões principais para que um grupo numeroso, forte e de idéias bastante homogêneas não tenda a ser constituído pelos melhores e sim pelos piores elementos de qualquer sociedade. De acordo com os padrões hoje aceitos, os princípios que presidiriam à seleção de tal grupo seriam quase inteiramente negativos.

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Em primeiro lugar, é provavelmente certo que, de modo geral, quanto mais elevada a educação e a inteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciam os seus gostos e opiniões e menor é a possibilidade de concordarem sobre determinada hierarquia de valores. Disso resulta que, se quisermos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, teremos de descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevalecem os instintos mais primitivos e "comuns". Isso não significa que a maioria do povo tenha padrões morais baixos; significa apenas que o grupo mais amplo cujo valores são semelhantes é constituído por indivíduos que possuem padrões inferiores. Ê, por assim dizer, o mínimo denominador comum que une o maior número de homens. Quando se deseja um grupo numeroso e bastante forte para impor aos demais suas idéias sobre os valores da vida, jamais serão aqueles que possuem gostos altamente diferenciados e desenvolvidos que sustentarão pela força do número os seus próprios ideais, mas os que formam a "massa" no sentido pejorativo do termo, os menos originais e menos independentes. Se, contudo, um ditador em potencial tivesse de contar apenas com aqueles cujos instintos simples e primitivos são muito semelhantes, o número destes não daria peso suficiente às suas pretensões. Seria preciso aumentar-lhes o número, convertendo outros ao mesmo credo simples. A esta altura entra em jogo o segundo princípio negativo da seleção: tal indivíduo conseguirá o apoio dos dóceis e dos simplórios, que não têm fortes convicções próprias mas estão prontos a aceitar um sistema de valores previamente elaborado, contando que este lhes seja apregoado com bastante estrépito e insistência. Serão, assim, aqueles cujas idéias vagas e imperfeitas se deixam influenciar com facilidade, cujas paixões e emoções não é difícil despertar, que engrossarão as fileiras do partido totalitário. O terceiro e talvez mais importante elemento negativo da seleção está relacionado com o esforço do demagogo hábil por criar um grupo coeso e homogêneo de prosélitos. Quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos homens concordarem sobre um programa negativo - o ódio a um inimigo ou a inveja aos que estão em melhor situação -do que sobre qualquer plano positivo. A antítese "nós" e "eles", a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum. Por essa razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram não só o apoio a um programa político mas também a fidelidade irrestrita de grandes massas. Do seu ponto de vista, isso tem a vantagem de lhes conferir mais liberdade de ação do que qualquer programa positivo. O inimigo, seja ele interno, como o "judeu" ou o "kulak", seja externo, parece constituir uma peça indispensável no arsenal do líder totalitário. Se na Alemanha o judeu se tornou o inimigo, cedendo em seguida o lugar às "plutocracias", isso foi decorrência do sentimento anticapitalista em que se baseava todo o movimento, o mesmo acontecendo em relação à escolha do kulak na Rússia. Na Alemanha e na Áustria, o judeu chegara a ser encarado como o representante do capitalismo porque a antipatia tradicional votada por vastas classes da população às atividades comerciais tornara tais atividades mais acessíveis a um grupo praticamente excluído das ocupações mais respeitadas. É a velha história: a raça alienígena, admitida apenas nas profissões menos nobilitantes, torna-se objeto de ódio ainda mais acirrado precisamente por exercê-las. O fato de, na Alemanha, o anti-semitismo e o anticapitalismo terem a mesma origem é de grande importância para a compreensão do que tem acontecido naquele país, embora os observadores estrangeiros poucas vezes se dêem conta disso. Considerar a tendência universal da política coletivista ao nacionalismo como decorrência exclusiva da necessidade de um apoio sólido seria negligenciar outro fator não menos

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significativo. Com efeito, é questionável que se possa conceber com realismo um programa coletivista que não atenda aos interesses de um grupo limitado, ou que o coletivismo possa existir sob outra forma que não a de um particularismo qualquer, nacionalista, racista ou classista. A idéia de uma comunhão de propósitos e interesses com os próprios semelhantes parece pressupor maior similaridade de idéias e pontos de vista do que aquela que existe entre os homens na qualidade de simples seres humanos. Se não podemos conhecer pessoalmente todos os outros componentes do nosso grupo, eles terão de ser pelo menos do mesmo tipo dos que nos cercam, terão de pensar e falar do mesmo modo e sobre os mesmos assuntos, para que nos possamos identificar com eles. O coletivismo em proporções mundiais parece inconcebível, a não ser para atender aos interesses de uma pequena elite dirigente. Ele por certo suscitaria problemas, não só de natureza técnica mas sobretudo moral, que nenhum dos nossos socialistas estaria disposto a enfrentar. Se o proletário inglês tem direito a uma parcela igual da renda atualmente proporcionada pelos recursos financeiros do país, assim como ao controle do emprego desses recursos, porque eles resultam da exploração, pelo mesmo princípio todos os hindus teriam direito não só à renda mas também ao uso de uma parcela proporcional do capital britânico. Que socialistas, porém, pensam de fato em repartir de maneira equitativa, entre toda a população da terra, os atuais recursos de capital? Para todos eles o capital pertence, não à humanidade, mas à nação - embora, mesmo no âmbito da nação, poucos ousem sustentar que as regiões mais ricas devem ser privadas de "seus" bens de capital para auxiliar as regiões mais pobres. Os socialistas não estão dispostos a conceder ao estrangeiro aquilo que proclamam como um dever para com os seus concidadãos. De um ponto de vista coletivista coerente, os direitos dos países pobres a uma nova divisão do mundo são de todo justificados - embora, se fossem aplicados com lógica, aqueles que os reivindicam com maior insistência acabassem quase tão prejudicados quanto as nações mais ricas. Têm, por conseguinte, o cuidado de não Fundamentar suas exigências em princípios igualitários, mas numa pretensa capacidade superior de organizar outros povos. Uma das contradições inerentes à filosofia coletivista é que, embora baseada na moral humanista aperfeiçoada pelo individualismo, só se mostra praticável no interior de um grupo relativamente pequeno. Enquanto permanece teórico, o socialismo é internacionalista; mas ao ser posto em prática, na Alemanha ou na Rússia, torna-se violentamente nacionalista. Esta é uma das razões por que o "socialismo liberal", tal como o imagina a maioria das pessoas no mundo ocidental, é apenas teórico, ao passo que a prática do socialismo é em toda parte totalitária.1 No coletivismo não há lugar para o amplo humanitarismo do liberal, mas apenas para o estreito particularismo do totalitário. Se a "comunidade" ou o Estado têm prioridade sobre os indivíduos, se possuem objetivos próprios superiores aos destes e deles independentes, só os indivíduos que trabalham para tais objetivos podem ser considerados membros da comunidade. Como conseqüência necessária dessa perspectiva, uma pessoa só é respeitada na qualidade de membro do grupo, isto é, apenas se coopera para os objetivos comuns reconhecidos, e toda a sua dignidade deriva dessa cooperação, e não da sua condição de ser humano. Os próprios conceitos de humanidade e, por conseguinte, de qualquer forma de internacionalismo são produtos exclusivos da atitude individualista e não podem existir num sistema filosófico coletivista.2 Além do fato fundamental de que a comunidade coletivista só pode chegar até onde exista ou possa ser estabelecida uma unidade de propósitos individuais, vários elementos contribuem para fortalecer a tendência do coletivismo a tornar-se particularista e exclusivista. Destes, um dos mais importantes é que o desejo de identificação do indivíduo com um grupo resulta com freqüência de um sentimento de inferioridade, e por isso tal desejo só será satisfeito se a

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qualidade de membro do grupo lhe conferir alguma superioridade sobre os que a este não pertencem. Às vezes, ao que tudo indica, o próprio fato de esses instintos violentos que o indivíduo é obrigado a refrear no seio do grupo poderem ser liberados numa ação coletiva contra os estranhos constitui mais um incentivo para fusão de sua personalidade com a do grupo. Uma profunda verdade está expressa no título do livro de Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society (O homem moral e a sociedade imoral) - embora seja difícil aceitar conclusões a que chega a sua tese. Na verdade, como diz ele em outra obra, "o homem moderno tende a se considerar uma pessoa de moral elevada por ter delegado seus vícios a grupos cada vez mais numerosos".3 Agir no interesse de um grupo parece libertar os homens de muitas restrições morais que regem seu comportamento como indivíduos dentro do grupo. A atitude de muitos planejadores de nítida oposição ao internacionalismo explica-se também pelo fato de que, no mundo atual, todos os contatos exteriores de um grupo constituem obstáculos ao planejamento efetivo da esfera em que este pode ser empreendido. Não é, pois, mera coincidência se. conforme descobriu com pesar o organizador de um dos mais abrangentes estudos coletivos sobre o planejamento, "os 'planejadores' são, em sua maioria, nacionalistas militantes".4 As propensões nacionalistas e imperialistas dos planejadores socialistas – muito mais comuns do que em geral se admite - nem sempre são tão flagrantes como no caso dos Webb e de alguns outros fabianos primitivos, nos quais o entusiasmo pela planificação se somava, de modo característico, à veneração para com as grandes e poderosas unidades políticas e ao desprezo pelos pequenos Estados. Referindo-se aos Webb na ocasião em que os conheceu, há quarenta anos, afirmava o historiador Elie Halévy que seu socialismo era profundamente antiliberal. Não odiavam os conservadores, eram até muito tolerantes com eles; entretanto, mostravam-se implacáveis para com o liberalismo gladstoniano. Era no tempo da guerra dos bôeres e tanto os liberais quanto aqueles que começavam a constituir o Partido Trabalhista haviam se alinhado aos bôeres contra o imperialismo britânico, em nome da liberdade e da humanidade. Mas os dois Webb e seu amigo Bernard Shaw não os apoiaram. Eram ostentosamente imperialistas. A independência das pequenas nações poderia ter alguma importância para um individualista liberal mas, para coletivistas como eles, nada significava. Ainda ouço Sidney Webb a explicar-me que o futuro pertence às grandes nações administrativas, onde os funcionários governam e a polícia mantém a ordem. Em outra parte, Halévy cita a afirmação de Bernard Shaw, mais ou menos da mesma época, de que "o mundo pertence necessariamente aos Estados grandes e poderosos, e os pequenos devem ser incorporados, a eles ou esmagados e aniquilados".5 Citei por extenso essas passagens, que não deveriam surpreender num relato sobre os precursores alemães do nacional-socialismo, porque apresentam um exemplo muito característico da glorificação do poder que facilmente conduz do socialismo ao nacionalismo e que tanto influencia as concepções éticas de todos os coletivistas. No que se refere aos direitos das pequenas nações, Marx e Engels pouco diferiam da maioria dos outros coletivistas coerentes, e as opiniões que ambos expressaram ocasionalmente a respeito dos tchecos ou dos poloneses assemelham-se às dos nacional-socialistas contemporâneos.6 Enquanto para os grandes filósofos sociais individualistas do século XIX, como Lord Acton ou Jacob Burckhardt, e mesmo para socialistas contemporâneos como Bertrand Russell,que herdaram a tradição liberal, o poder sempre se afigurou o supremo mal, para o coletivista puro ele é um fim em si mesmo. O próprio desejo de organizar a vida social segundo um plano unitário nasce basicamente da ambição de poder, mas não apenas disso, conforme destacou Russell com propriedade.7 Esse desejo resulta sobretudo do fato de que, para realizar seu

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objetivo, os coletivistas precisam criar um poder de uma magnitude jamais vista até hoje - poder exercido por alguns homens sobre os demais - e de que seu êxito dependerá do grau de poder alcançado. Isto permanece válido ainda que muitos socialistas liberais orientem suas ações pela desastrosa ilusão de que, privando os indivíduos do poder que possuem num sistema individualista e transferindo-o à sociedade, lograrão acabar com o próprio poder. O que todos aqueles que usam esse argumento esquecem é que, concentrando-se o poder de modo a empregá-lo a serviço de um plano único, ele não será apenas transferido mas aumentado a um grau infinito; e que, enfeixando-se nas mãos de um só grupo uma autoridade antes exercida por muitos de forma independente, cria-se um poder infinitamente maior - tão amplo que quase chega a tornar-se um outro gênero de poder. É de todo errôneo afirmar, como por vezes se faz, que o grande poder exercido por uma comissão de planejamento central "não seria maior do que o poder exercido conjuntamente pelas diretorias das empresas privadas''".1 Numa sociedade baseada na concorrência, ninguém exerce uma fração sequer do poder que uma comissão planejadora socialista concentraria nas mãos; e se ninguém o pode empregar de modo intencional, não passa de abuso de linguagem afirmar que este se encontra nas mãos de todos os capitalistas reunidos.' Falar do "poder conjuntamente exercido pelas diretorias das empresas privadas" é apenas manipular palavras, se essas diretorias não se unem para uma ação comum -o que significaria, é evidente, o fim da concorrência e a criação de uma economia planificada. Fracionar ou descentralizar o poder corresponde, forçosamente, a reduzir a soma absoluta de poder, e o sistema de concorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo, pela descentralização, o poder exercido pelo homem sobre o homem. Já vimos como a separação dos objetivos políticos e dos objetivos econômicos representa uma garantia essencial da liberdade individual e como, em conseqüência, tal separação é atacada por todos os coletivistas. Devemos acrescentar agora que a "substituição do poder econômico pelo político", tão demandada hoje em dia, significa necessariamente a substituição de um poder sempre limitado por um outro ao qual ninguém pode escapar. Embora possa constituir um instrumento de coerção, o chamado poder econômico nunca se torna, nas mãos de particulares, um poder exclusivo ou completo, jamais se converte em poder sobre todos os aspectos da vida de outrem. No entanto, centralizado como instrumento do poder político, cria um grau de dependência que mal se distingue da escravidão. Das duas características principais de todo sistema coletivista - a necessidade de um sistema de objetivos aceito por todos os membros do grupo e o desejo imperioso de conferir ao grupo o máximo de poder para realizar tais objetivos - brota um sistema moral definido, que em certos pontos coincide e em outros se contrapõe violentamente ao nosso. Dele difere, entretanto, num detalhe que torna questionável podermos aplicar-lhe o termo "morar'': tal sistema não deixa à consciência individual a liberdade de aplicar suas regras próprias, nem mesmo conhece quaisquer regras gerais cuja prática seja exigida ou permitida ao indivíduo em todas as circunstâncias. Isso torna a moral coletivista tão diferente daquilo que conhecemos como moral que é difícil encontrar nela qualquer princípio - o que, no entanto, ela possui. A diferença de princípio é praticamente a mesma que já consideramos em relação ao Estado de Direito. Como o Direito formal, as regras da ética individualista são gerais e absolutas, por mais imprecisas que possam parecer sob certos aspectos. Prescrevem ou proíbem um tipo geral de ação, sem levar em conta se num caso específico o objetivo último é bom ou mau. Trapacear ou roubar, torturar ou trair segredos é considerado mau, apresentem ou não conseqüências prejudiciais em determinado caso. E sua maldade intrínseca não se altera,

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mesmo que em dadas circunstâncias ninguém venha a sofrer por isso, e mesmo que tais ações tenham sido praticadas em nome de um propósito elevado. Embora por vezes sejamos forçados a escolher entre dois males, estes não deixam por isso de ser males. Na ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado a negação de toda a moral. Na ética coletivista, torna-se a regra suprema; não há literalmente nada que o coletivista coerente não deva estar pronto a fazer, desde que contribua para o "bem da comunidade", porque o "bem da comunidade" é para ele o único critério que justifica a ação. A "razão de Estado", em que a ética coletivista encontrou a sua formulação mais explícita, não conhece outros limites que não os da conveniência - a adequação do ato particular ao objetivo que se tem em vista. E o que a "razão de Estado" afirma no tocante às relações entre diferentes países aplica-se também às relações entre diferentes indivíduos no Estado coletivista. Não pode haver limites para aquilo que o cidadão desse Estado deve estar pronto a fazer, nenhum ato que a consciência o impeça de praticar, desde que seja necessário à consecução de um objetivo que a comunidade impôs a si mesma ou que os superiores lhe ordenem. Dessa ausência de normas absolutas e formais na ética coletivista não se infere, naturalmente, que a comunidade não estimule certos hábitos úteis do indivíduo, e que não condene outros. Ao contrário, ela se interessará muito mais pelos hábitos individuais de vida do que uma comunidade individualista. Ser membro útil de uma sociedade coletivista requer qualidades muito precisas, as quais devem ser fortalecidas por uma prática constante. A razão por que designamos essas qualidades como "hábitos úteis", uma vez que não é possível denominá-las virtudes morais, é que nunca se permitiria ao indivíduo colocar essas regras acima de quaisquer ordens positivas ou deixar que se tornassem um obstáculo à realização dos objetivos concretos da comunidade. Elas apenas servem para preencher as lacunas deixadas pelas ordens diretas ou pela indicação de finalidades concretas. Jamais, entretanto, poderão justificar um conflito com a decisão da autoridade. As diferenças entre as virtudes que continuarão a ser valorizadas num sistema coletivista e aquelas que virão a desaparecer são bem elucidadas por uma comparação entre as virtudes atribuídas aos alemães, ou melhor, ao "prussiano típico", mesmo por seus piores inimigos, e aquelas que lhes são negadas pela opinião geral, mas que o povo inglês, com alguma razão, se orgulhava de possuir em alto grau. Poucos deixarão de admitir que os alemães, em geral, são laboriosos e disciplinados, detalhistas e enérgicos a ponto de se mostrarem insensíveis, conscienciosos e coerentes em qualquer tarefa á qual se dedicam; que possuem um acentuado senso de ordem, dever e estrita obediência à autoridade, e que muitas vezes dão provas de grande capacidade para o sacrifício pessoal e de admirável coragem diante do perigo físico. Essas virtudes fazem do alemão um instrumento eficiente na execução de uma tarefa prescrita, e todas elas foram cuidadosamente ensinadas no velho Estado prussiano e no novo Reich, também sob o domínio prussiano. O que se supõe faltar ao "alemão típico" são as virtudes individualistas da tolerância e do respeito pelos demais indivíduos e suas opiniões; o pensamento independente e aquela integridade de caráter que fazem o indivíduo defender suas convicções perante um superior - qualidades que os próprios alemães, em geral cônscios de não possuírem, chamam Zivilcourage; a consideração pelos fracos e doentes; e o saudável desprezo e antipatia pelo poder, que somente uma longa tradição de liberdade pessoal pode criar. Parece faltar-lhes ainda quase todas essas pequenas porém importantes qualidades que facilitam as relações entre os homens numa sociedade livre: a bondade e o senso de humor, a modéstia pessoal, o respeito pela privacidade e a fé nas boas intenções de seus semelhantes. Após tais considerações, não causará surpresa a ninguém que essas virtudes individualistas sejam ao mesmo tempo virtudes eminentemente sociais, qualidades que suavizam os contatos

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sociais c que tornam menos necessário, e ao mesmo tempo mais difícil, o controle que vem de cima. São virtudes que florescem onde quer que tenha prevalecido a sociedade de tipo individualista ou comercial e que, inversamente, inexistem quando predomina a de tipo coletivista ou militar – diferença que se pode (ou se podia) observar nas várias regiões da Alemanha, como agora se observa entre as idéias que reinam naquele país e as idéias características do Ocidente. Até bem pouco, pelo menos, nas regiões da Alemanha que mais longamente estiveram expostas às forças civilizadoras do comércio - as antigas cidades comerciais do Sul e do Oeste e as cidades hanseáticas - os conceitos éticos em geral tinham muito mais afinidade com os dos povos ocidentais do que com aqueles que hoje prevalecem em toda a Alemanha. Seria, no entanto, injusto considerar as massas que sustentam um regime totalitário destituídas de qualquer fervor moral só porque prestam apoio irrestrito a um sistema que a nós se afigura a negação dos melhores valores morais. Para a sua grande maioria, é justamente o contrário que se verifica: a intensidade das emoções morais em que repousa um movimento como o nacional-socialista ou o comunista talvez só possa ser comparada à dos grandes movimentos religiosos da história. Uma vez admitido que o indivíduo é simples instrumento para servir aos fins da entidade superior que se chama sociedade ou nação, manifesta-se necessariamente a maior parte dessas características dos regimes totalitários que nos enchem de horror. Da perspectiva coletivista, a intolerância e a brutal supressão da dissidência, o completo desrespeito pela vida e pela felicidade do indivíduo são conseqüências essenciais e inevitáveis dessa premissa básica. O coletivista pode aceitar esse lato, e ao mesmo tempo afirmar que seu sistema é superior àqueles em que se permite que interesses individuais "egoístas" criem embaraços à plena realização das metas visadas pela comunidade. Quando os filósofos alemães repetidas vezes caracterizam como imoral em si mesma a busca da felicidade pessoal e apenas digno de louvor o cumprimento do dever imposto, estão usando de completa sinceridade, por mais incompreensível que isso pareça às pessoas educadas numa tradição diferente. Onde existe uma finalidade comum e soberana, não há lugar para uma moral ou para normas gerais. Até certo ponto, nós próprios experimentamos isso durante a guerra. A guerra e o perigo mais grave, no entanto, levaram os países democráticos a uma situação que só de longe se assemelhava ao totalitarismo, poucas vezes prejudicando os demais valores em função de um objetivo único. Mas quando toda a sociedade é dominada por alguns fins específicos, é inevitável que, vez por outra, a crueldade se torne um dever; que ações que nos revoltam, tais como o fuzilamento de reféns ou o extermínio de velhos e doentes, sejam tratadas como meras questões de conveniência; que arrancar centenas de milhares de indivíduos de suas casas e transportá-los compulsoriamente para outro lugar se converta numa linha de ação política aprovada por quase todos, menos pelas vítimas; ou que idéias como a "conscrição das mulheres para fins de procriação'' possam ser consideradas a sério. O coletivista tem sempre diante dos olhos uma meta superior para a qual concorrem essas ações e que, no seu modo de ver, as justifica, porque a busca do objetivo social comum não pode ser limitada pelos direitos ou valores de qualquer indivíduo. Mas, enquanto para a massa dos cidadãos do Estado totalitário é muitas vezes a dedicação desinteressada a um ideal - embora esse ideal nos pareça detestável - que os leva a aprovar e até a praticar tais atos, o mesmo não se pode alegar em favor dos dirigentes da política estatal. Para ser um auxiliar útil na administração de um Estado totalitário, não basta que um indivíduo esteja pronto a aceitar justificações capciosas de atos abomináveis; deve estar preparado para violar efetivamente qualquer regra moral de que tenha conhecimento, se isso parecer necessário à realização do fim que lhe foi imposto. Como o chefe supremo é o único que determina os fins, seus instrumentos não devem ter convicções morais próprias. Cumpre-lhes, acima de tudo, votar uma fidelidade irrestrita à pessoa do líder; em seguida, o mais importante é que sejam desprovidos de

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princípios e literalmente capazes de tudo. Não devem possuir ideais próprios que desejem realizar, nenhuma idéia sobre o que é justo ou injusto que possa criar obstáculos às intenções do líder. Desse modo, as posições de mando oferecem àqueles que possuem convicções morais semelhantes às que têm guiado os povos europeus poucos atrativos que compensem a repugnância causada por muitas das tarefas a executar, e escassas oportunidades de satisfazer os desejos mais idealistas, de recompensar os inegáveis riscos, o sacrifício da maioria dos prazeres da vida privada e da independência pessoal que esses postos de grande responsabilidade sempre impõem. A única satisfação é a da ambição do poder em si mesmo, o prazer de ser obedecido e de fazer parte de uma máquina perfeita, imensamente poderosa, diante da qual tudo deve ceder. Por outro lado, embora pouco haja para induzir homens bons, segundo nossos padrões, a aspirar a cargos de importância na máquina totalitária, e muito para afastá-los dessas posições, haverá oportunidades especiais para os insensíveis e os inescrupulosos. Será preciso desempenhar tarefas de inegável crueldade, mas que não podem deixar de ser executadas, a serviço de alguma finalidade superior, com a mesma perícia e a mesma eficiência que quaisquer outras. Havendo, assim, necessidade de ações intrinsecamente nocivas e que todas as pessoas ainda influenciadas pela moral tradicional relutarão em fazer, a disposição para praticar tais ações converte-se no caminho da ascensão social e do poder. Numa sociedade totalitária, são numerosas as posições em que é necessário praticar a crueldade e a intimidação, a duplicidade e a espionagem. Nem a Gestapo, nem a administração de um campo de concentração, nem o Ministério da Propaganda, nem a S.A. ou a S.S. (ou seus equivalentes italianos ou russos) são lugares favoráveis à prática de sentimentos humanitários. E, no entanto, é exercendo esses cargos que se chega às posições supremas no Estado totalitário. É corretíssima a conclusão do ilustre economista americano que, após enumerar os deveres das autoridades num Estado coletivista, afirmou: Eles seriam obrigados a fazer essas coisas, quisessem ou não; e é tão reduzida a probabilidade de o poder ser exercido por homens que detestem a sua posse e exercício quanto a de alguém extremamente bom e sensível vir a ser feitor de escravos.

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A Impossibilidade do Cálculo Econômico no Sistema Socialista Ludwig Von Mises (1881-1973)

1 — O problema

O diretor quer construir uma casa; para isso pode recorrer a vários métodos. Cada um deles oferece, do ponto de vista do próprio diretor, vantagens e desvantagens em relação à utilização futura da edificação cujo aproveitamento terá, em função disso, uma duração diferente; cada um deles requer gastos diferentes em materiais e mão de obra, e absorve períodos de produção desiguais. Que método deve o diretor adotar? Ele não tem como reduzir ao mesmo denominador comum os vários materiais e os vários tipos de mão de obra a serem utilizados. Não tem como compará-los. Não tem como atribuir uma expressão numérica, nem ao período de espera (período de produção) nem à durabilidade da casa. Em suma, não tem como comparar os custos a serem incorridos com os benefícios a serem obtidos, por meio de uma operação aritmética qualquer. Os planos dos seus arquitetos enumeram uma vasta multiplicidade de matérias-primas e suas respectivas qualidades físicas e químicas; referem-se à produtividade física de várias máquinas, ferramentas e processos. Mas todos esses elementos são dados isolados, sem relação entre si. Não há como estabelecer qualquer conexão entre eles.

Imagine a perplexidade do diretor diante de um projeto qualquer. O que precisa saber é se a execução do projeto em questão aumentará ou não o bem-estar, isto é, se acrescentará algo à riqueza existente sem comprometer a satisfação de outras necessidades que ele considera urgentes. Mas nenhum dos relatórios que recebe contém qualquer indicação quanto à solução desse problema.

Só para argumentar, não levemos em consideração o dilema representado pela escolha dos bens de consumo a serem produzidos. Suponhamos que esse problema esteja resolvido. Ainda assim, persistiria a embaraçosa escolha entre uma enorme quantidade de bens de produção e uma infinidade de processos que poderiam ser usados para fabricação de determinados bens de consumo. Haveria a necessidade de determinar a localização e o tamanho de cada indústria e de cada equipamento; de escolher que tipo de energia deveria ser usada e qual, entre as várias maneiras de produzi-la, deveria ser a escolhida. Todos esses problemas são suscitados diariamente em milhares e milhares de casos. Cada caso apresenta condições especiais e requer uma solução individual adequada às suas particularidades. O número de elementos a serem considerados na decisão do diretor é muito maior do que os que possam estar contidos numa mera descrição técnica das características físicas e químicas dos bens de produção disponíveis. A localização de cada unidade fabril deve ser levada em consideração, assim como a possibilidade de utilização de investimentos já feitos anteriormente. O diretor não terá que lidar simplesmente com carvão, mas com milhares e milhares de minas já em exploração em diversos locais, e com a possibilidade de explorar novas jazidas, com os vários processos de mineração que possam ser usados em cada caso, com as diferentes qualidades do carvão nas várias jazidas, com os vários métodos de utilização do carvão para produzir calor, energia e uma grande variedade de derivados. Pode-se dizer que o atual estágio do conhecimento tecnológico torna possível produzir quase tudo a partir de quase tudo. Nossos antepassados, por exemplo, conheciam apenas um número limitado de utilizações para a madeira. A tecnologia moderna acrescentou uma profusão de novos empregos aos já existentes; hoje a madeira pode ser usada para produzir papel, várias fibras têxteis, alimentos, remédios, e muitos outros produtos sintéticos.

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Para abastecer uma cidade de água potável, costuma-se recorrer a dois métodos: ou trazê-la de longe por meio de aquedutos — método usado desde a Antiguidade — ou tratar quimicamente a água disponível nas cercanias. Por que não produzi-la sinteticamente? A tecnologia moderna poderia resolver facilmente os problemas técnicos, se fosse essa a solução escolhida. O homem comum, na sua inércia mental, se apressaria em ridicularizar um tal projeto como uma sandice. Entretanto, a única razão para não se utilizar a produção sintética de água potável — que talvez possa vir a ocorrer no futuro — reside no fato de que o cálculo econômico mostra ser esse um método mais caro do que outros métodos conhecidos. Elimine-se o cálculo econômico e não se terá como escolher racionalmente entre as várias alternativas.

Os socialistas objetam, com razão, que o cálculo econômico não é infalível. Dizem eles que os capitalistas às vezes se enganam nos seus cálculos. É claro que isso acontece e acontecerá sempre, já que a ação humana está voltada para o futuro e o futuro é sempre incerto. Os planos mais cuidadosamente elaborados se frustram, se as expectativas são desmentidas pelos fatos. Mas o problema que estamos examinando não é esse. O cálculo que efetuamos considera o nosso conhecimento atual e a previsão que fazemos hoje da situação futura. Não se trata de saber se o diretor será ou não capaz de prever a situação futura. O que estamos afirmando é que o diretor não tem como calcular com base no seu próprio julgamento de valor e na sua própria previsão da situação futura, seja ela qual for. Se investir hoje na indústria de alimentos enlatados, pode ocorrer que uma mudança nos hábitos ou nas considerações higiênicas sobre a comida em lata venha a transformar seu investimento num desperdício. Mas a questão não é essa; o problema consiste em como definir, hoje, a melhor maneira de construir uma fábrica de conservas da maneira mais econômica.

Algumas estradas de ferro construídas no início do século não o teriam sido, se as pessoas àquele tempo tivessem previsto o iminente progresso do automóvel e da aviação. Mas os que naquele tempo construíram estradas de ferro sabiam qual, entre as várias possíveis alternativas para a realização de seus planos, devia ser a escolhida, em função de suas próprias avaliações e previsões, e dos preços de mercado nos quais estavam refletidas as valorações dos consumidores. É precisamente esta possibilidade de discernir que faltará ao diretor. Sua situação será idêntica a de um navegante em alto mar que não conheça os métodos de navegação, ou à de um sábio da Idade Média a quem fosse atribuída a tarefa de fazer funcionar uma locomotiva.

Havíamos suposto que o diretor já se tinha decidido quanto à construção de uma determinada usina ou edificação. Entretanto, mesmo para tomar essa decisão, já teria sido necessário o cálculo econômico. Para decidir sobre a construção de uma usina hidrelétrica, é preciso saber se ela representa ou não a maneira mais econômica de produzir a energia necessária. Como se poderá saber, se não se tem como calcular os custos e nem o valor da energia produzida?

Podemos supor que no seu período inicial um regime socialista poderia, numa certa medida, basear-se na experiência do período capitalista anterior. Mas o que fará mais tarde, à medida que as condições mudam cada vez mais? Para que servem os preços de 1900 para o diretor em 1949? E que proveito pode o diretor em 1980 derivar do conhecimento dos preços de 1949?

O paradoxo do "planejamento" é a impossibilidade de se fazer um plano onde não exista cálculo econômico. O que se denomina de economia planificada pode ser tudo, menos economia. É apenas um sistema de tatear no escuro. Não permite uma escolha racional de meios que tenham em vista atingir objetivos desejados. O que se denomina de planejamento consciente é, precisamente, a eliminação da ação com um propósito consciente.

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2 — Erros passados na concepção do problema

O principal tema político dos últimos cem anos tem sido a substituição da iniciativa privada pelo planejamento socialista. Milhares de livros foram publicados a favor ou contra o planejamento comunista. Nenhum outro assunto tem sido tão exaustivamente discutido em círculos privados, na imprensa, em reuniões públicas, nos círculos acadêmicos, em campanhas eleitorais e nos parlamentos. Pela causa socialista, guerras foram travadas e muito sangue foi derramado. Apesar disso, durante todos esses anos, a questão essencial não chegou a ser levantada.

É verdade que alguns economistas eminentes — Hermann Heinrich Gossen, Albert Schäffle, Vilfredo Pareto, Nikolaas G. Pierson, Enrico Barone — chegaram a entrever o problema. Mas, com exceção de Pierson, não chegaram ao cerne da questão e não conseguiram perceber sua importância fundamental. Tampouco tentaram integrá-lo à teoria geral da ação humana. Essas falhas impediram que as pessoas dessem atenção às suas observações; por isso, foram logo esquecidas.

Seria um grave equívoco culpar a Escola Historicista e o Institucionalismo de terem negligenciado esse problema vital da humanidade. Essas duas linhas de pensamento denegriram fanaticamente a economia, a "ciência funesta", para servir à sua propaganda intervencionista ou socialista. Não conseguiram, entretanto, suprimir inteiramente o estudo da economia. É compreensível que os detratores da economia tenham deixado de perceber esse problema, mas é surpreendente que os economistas tenham incorrido nessa mesma falha.

São dois os erros fundamentais dos economistas matemáticos a serem apontados. Os economistas matemáticos praticamente limitaram a sua análise àquilo que eles chamam de equilíbrio econômico ou situação estática. O recurso à construção imaginária da economia uniformemente circular é, como já foi assinalado antes, uma ferramenta mental indispensável ao raciocínio econômico. Mas é um erro grave considerar essa ferramenta auxiliar como algo mais do que uma construção imaginária, esquecendo-se do fato de que tal construção não tem contrapartida na realidade e nem pode ser consistentemente concebida até as suas últimas consequências lógicas. O economista matemático, obnubilado pelo preconceito de que a ciência econômica deve ser estruturada segundo o modelo da mecânica newtoniana, passível portanto de ser tratada por métodos matemáticos, se equivoca inteiramente quanto ao tema central de suas investigações. Já não lida com a ação humana, mas com um mecanismo sem vida própria, que atua misteriosamente por meio de forças não susceptíveis de uma análise mais profunda. Na construção imaginária da economia uniformemente circular, evidentemente, não existe a função empresarial. Dessa maneira, o economista matemático elimina o empresário nas suas considerações; elimina esse personagem agitado e irrequieto cuja constante intervenção impede que o sistema imaginário atinja o estado de equilíbrio perfeito e uma situação estática. Detesta o empresário por ser um elemento perturbador. Os preços dos fatores de produção, para o economista matemático, são determinados pela interseção de duas curvas e não pela ação humana. Além do mais, ao traçar suas preciosas curvas de custos e preços, o economista matemático não chega a perceber que, para reduzir custos e preços a grandezas homogêneas, seria necessário que houvesse uma relação de troca comum que possibilitasse esse cálculo.

Assim procedendo, forja a ilusão de que é possível calcular preços e custos, mesmo não dispondo desse denominador comum das relações de troca dos vários fatores de produção.

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O resultado desse equívoco é que a construção imaginária de uma comunidade socialista emerge dos escritos dos economistas matemáticos como um sistema de organização econômica que pode efetivamente funcionar, sendo portanto uma alternativa habilitada a substituir o sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção. O diretor da comunidade socialista estaria, assim, em condições de alocar os vários fatores de produção de uma maneira racional, isto é, com base no cálculo econômico. Seria, portanto, possível combinar a cooperação socialista e a divisão do trabalho com o emprego racional dos fatores de produção. Os homens poderiam adotar o socialismo e continuar empregando os meios disponíveis do modo mais econômico possível. O socialismo não implicaria em renunciar ao emprego racional dos fatores de produção. Seria uma variante racional de ação social.

As experiências dos governos socialistas da Rússia soviética e da Alemanha nazista pareciam confirmar a viabilidade dessas teses equivocadas. As pessoas não se davam conta de que esses não eram sistemas socialistas isolados. Funcionavam num contexto em que o sistema de preços ainda existia. Podiam recorrer ao cálculo econômico com base nos preços internacionais. Sem a ajuda desses preços, suas ações teriam sido desnorteadas e sem objetivo. Se não fossem os preços internacionais, não lhes teria sido possível calcular, contabilizar e nem elaborar seus tão decantados planos.

3 — Sugestões recentes para o cálculo econômico socialista

Os textos socialistas tratam de tudo, menos do único problema essencial do socialismo, qual seja, o cálculo econômico. Até bem poucos anos atrás, os escritores socialistas ainda conseguiam evitar o exame desse tema primordial. Entretanto, mais recentemente, começaram a suspeitar que a técnica marxista de difamar a ciência econômica "burguesa" não bastava para justificar a utopia socialista. Tentaram substituir a arrogante metafísica hegeliana da doutrina marxista por uma teoria do socialismo. Esforçaram-se por conseguir encontrar uma forma de efetuar o cálculo econômico numa sociedade socialista.

Evidentemente, não conseguiram realizar o seu intento. Não haveria necessidade de examinar suas sugestões espúrias, não fosse o fato de esse exame oferecer uma boa oportunidade para esclarecer alguns aspectos fundamentais, tanto da sociedade de mercado como da construção imaginária de uma sociedade sem mercado.

As várias formas propostas podem ser classificadas da seguinte maneira: 1. O cálculo econômico em termos de moeda seria substituído pelo cálculo em espécie. Esse método, evidentemente, não tem cabimento. Não se podem somar ou subtrair números de espécies diferentes (quantidades heterogêneas). 2. Recomendam outros, ao amparo da teoria de que valor é trabalho acumulado, a adoção da hora de trabalho como unidade de cálculo. Essa sugestão não leva em consideração os fatores materiais originais de produção e ignora as diferenças existentes na capacidade de produção das diversas pessoas, bem como da mesma pessoa em momentos distintos. 3. A unidade deveria ser uma "quantidade" de utilidade. Mas o agente homem não mede a utilidade das coisas. Ordena-as em escalas de maior ou menor preferência. Os preços de mercado não são a expressão de uma equivalência, mas de uma divergência entre as valorações do comprador e do vendedor. Não é admissível, a essa altura, pretender ignorar o teorema fundamental da economia moderna, qual seja: o valor atribuído a uma unidade de um conjunto de n-1 unidades é maior do que o atribuído a uma unidade de um conjunto de n unidades. 4. O cálculo econômico seria possível pelo estabelecimento de um quase mercado artificial. Essa proposição será analisada na seção 5 deste capítulo. 5. O cálculo seria possível com a ajuda de equações diferenciais da matemática cataláctica. Essa sugestão

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será analisada na seção 6 deste capítulo. 6. O cálculo seria tornado desnecessário pela aplicação do método de tentativa e erro. Essa ideia será analisada na seção 4 deste capítulo.

4 — Tentativa e erro

Os empresários e os capitalistas nunca sabem de antemão se os seus planos são a melhor maneira de alocar os fatores de produção aos diversos setores da atividade produtiva. Só mais tarde, ao efetuar os seus empreendimentos e seus investimentos, é que constatarão se acertaram ou não. O método aplicado seria, portanto, o método de tentativa e erro. Por que, então, dizem alguns autores, o diretor socialista não poderia recorrer a esse mesmo método?

O método de tentativa e erro só é aplicável quando se pode constatar, sem deixar margem a dúvidas e independentemente do próprio método em si, que a solução encontrada é a correta. Se um homem perde sua carteira, poderá procurá-la em vários lugares; ao encontrá-la, não há dúvida de que o método de tentativa e erro resolveu o seu problema. Quando Ehrlich estava procurando encontrar um remédio para a sífilis, testou centenas de medicamentos até encontrar o que estava procurando: um remédio que matasse os espiroquetas sem causar dano ao corpo humano. A solução correta, a droga número 606, podia ser identificada porque era a que atendia a essas duas condições, o que poderia ser comprovado por testes de laboratório e por constatações clínicas.

As coisas são bastante diferentes quando a única identificação da solução correta reside no fato de ter sido aplicado um método que é considerado apropriado à solução do problema. Para reconhecer o resultado correto da multiplicação de dois fatores, basta aplicar corretamente o processo indicado pela aritmética. Alguém poderia tentar descobrir o resultado correto usando o método de tentativa e erro. Mas, nesse caso, o método de tentativa e erro não substitui o processo aritmético; se não fosse possível efetuar a operação por intermédio da aritmética de maneira a poder distinguir a solução certa da solução errada, de nada serviria o processo de tentativa e erro.

Quem quiser qualificar a ação empresarial como sendo uma aplicação do método de tentativa e erro não deve esquecer-se de que a solução correta é facilmente identificável: corresponde a um excedente de receitas sobre custos. O lucro informa ao empresário que os consumidores aprovam suas iniciativas; o prejuízo, que as desaprovam.

O problema do cálculo econômico num regime socialista reside precisamente no fato de que, na ausência de preços de mercado para os fatores de produção, não é possível apurar se houve lucro ou prejuízo.

Podemos supor que numa comunidade socialista exista um mercado para bens de consumo e que os preços em moeda desses bens de consumo sejam determinados nesse mercado. Podemos supor que o diretor aquinhoe, periodicamente, cada membro da comunidade com uma certa quantidade de moeda, e venda os bens de consumo àqueles que ofereçam os maiores preços. Podemos também supor que os vários bens de consumo sejam diretamente distribuídos e que os membros da comunidade sejam livres para transacioná-los entre si, utilizando para isso um meio de troca, uma espécie de moeda. Mas não haveria preços para os bens de produção, pois o traço característico do sistema socialista é o de que esses bens são alocados por determinação de uma autoridade central, e não através de operações de compra e venda no mercado. Sendo assim, não há condição de comparar receita e despesa por métodos aritméticos.

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Nós não estamos afirmando que o cálculo econômico capitalista garanta invariavelmente a melhor solução para alocação dos fatores de produção. Soluções perfeitas, para qualquer problema, estão fora do alcance dos homens mortais. O que o funcionamento do mercado não obstruído pela interferência da compulsão e coerção pode nos assegurar é apenas a melhor solução acessível à mente humana, considerando-se o atual estágio do conhecimento tecnológico e a capacidade intelectual dos homens mais sagazes da época.

Quando um homem descobre uma discrepância entre o atual estado de produção e um estado melhor, e que seja realizável, a motivação pelo lucro o incita a se esforçar ao máximo para realizá-lo. O êxito na venda de seus produtos lhe mostrará em que medida estava certo ou errado nas suas previsões. O mercado todo dia testa de novo os empresários e elimina aqueles que não conseguem passar na prova, confiando a condução da atividade econômica aos que são mais capazes de atender as necessidades mais urgentes dos consumidores. Só nesse sentido é que se pode considerar a economia de mercado como um sistema de tentativa e erro.

5 — O quase mercado

O traço característico do socialismo é a unidade e a indivisibilidade da vontade que dirige todas as atividades econômicas do sistema social. Quando os socialistas afirmam que a "ordem" e a "organização" devem substituir a "anarquia" de produção, que a ação consciente é preferível à alegada falta de planejamento do capitalismo, a verdadeira cooperação à competição, a produção para o uso à produção para o lucro, o que na realidade estão defendendo é a substituição da infinidade de planos dos consumidores individuais e daqueles que atendem os desejos dos consumidores — os empresários e os capitalistas — pelo poder exclusivo e monopolístico de uma única agência de governo. A essência do socialismo é a completa eliminação do mercado e da competição cataláctica. O sistema socialista é um sistema sem mercado, sem preços de mercado e sem competição; representa a centralização e a unificação da gestão de toda atividade econômica nas mãos de uma única autoridade. Na confecção do planejamento central e único que deve dirigir toda a atividade econômica, a contribuição dos cidadãos limita-se, se tanto, a eleger o diretor geral do sistema. No mais, são apenas subordinados, obrigados a obedecer incondicionalmente às ordens emitidas pelo diretor; são súditos, cujo bem-estar está a cargo do diretor. Todas as maravilhas que os socialistas atribuem ao socialismo, bem como todas as vantagens que segundo imaginam decorrerão de sua implantação, são uma consequência natural dessa centralização e dessa unificação absolutas.

O obsessivo interesse com que os líderes intelectuais do socialismo têm procurado demonstrar que o sistema socialista não implica em suprimir o mercado, os preços de mercado para os fatores de produção e a competição cataláctica, representa o pleno reconhecimento da procedência e da irrefutabilidade das devastadoras críticas das doutrinas socialistas feitas pelos economistas. O avassalador e fulminante triunfo da demonstração de que no sistema socialista não é possível o cálculo econômico não tem precedente na história do pensamento humano. Os socialistas não têm como negar sua esmagadora derrota. Já não afirmam que o socialismo seja incomparavelmente superior ao capitalismo por acabar com mercados, preços de mercado, competição. Ao contrário. Agora, apressam-se em justificar o socialismo, alegando que essas instituições podem ser mantidas mesmo no regime socialista.

Querem esquematizar um socialismo no qual existam preços e competição. O que esses neossocialistas sugerem é realmente um paradoxo. Querem abolir o controle privado dos meios de produção, querem acabar com o mercado e seus preços e com a competição. Mas,

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ao mesmo tempo, querem organizar a utopia socialista de uma tal maneira que as pessoas possam agir como se essas instituições existissem. Querem que as pessoas brinquem de mercado como as crianças brincam de guerra, de estrada de ferro, ou de escola.

Não percebem a diferença que existe entre as brincadeiras infantis e a realidade que as crianças procuram imitar.

Dizem esses neossocialistas: foi um erro lamentável o fato de que os antigos socialistas (isto é, todos os socialistas antes de 1920) tivessem acreditado que o socialismo exigisse, necessariamente, a abolição do mercado e do intercâmbio mercantil, e que esse aspecto fosse tanto o elemento essencial como a característica preeminente de uma economia socialista. Essa crença, admitem eles relutantemente, é absurda e sua implementação resultaria numa confusão caótica. Mas, felizmente, continuam eles, o socialismo dispõe de alternativas melhores. Basta que se instruam os gerentes das várias unidades de produção a gerirem suas unidades da mesma maneira como se faz no regime capitalista. O gerente de uma companhia privada não atua por sua própria conta e risco; atua em benefício da empresa, isto é, dos acionistas. No socialismo, continuará a agir com o mesmo zelo e atenção. A única diferença consistirá no fato de que os frutos de seus esforços enriquecerão a sociedade como um todo e não apenas os acionistas. No mais, os gerentes comprarão e venderão, contratarão e pagarão os empregados, tentarão obter lucros da mesma maneira que o faziam até então. A transição do sistema gerencial do capitalismo maduro para o sistema gerencial de uma comunidade socialista planificada ocorrerá sem traumas. Nada mudará a não ser a propriedade do capital investido. A sociedade substituirá os acionistas e o povo embolsará os dividendos. Pronto!

O erro fundamental implícito nesta ou em propostas semelhantes é o de contemplar a realidade econômica do ângulo de um funcionário subalterno cujo horizonte não ultrapassa tarefas menores. Consideram a estrutura da produção industrial e a alocação de capital aos vários setores de produção como algo rígido, e não se dão conta da necessidade de alterar essa estrutura a fim de ajustá-la às mudanças de condições. Idealizam um mundo no qual não ocorram mais mudanças; no qual a história econômica tenha atingido seu estágio final. Não chegam a perceber que a atividade dos dirigentes de uma empresa consiste simplesmente em executar lealmente as tarefas que lhes foram confiadas pelos seus patrões, os acionistas, e que para executar as ordens recebidas são forçados a se ajustarem à estrutura de preços do mercado, os quais são determinados, em última instância, por outros fatores e não pela atividade gerencial. A atuação dos gerentes, dos diretores de empresa, suas decisões de comprar e vender, representam apenas uma pequena parte das operações de mercado. O mercado na sociedade capitalista realiza, além disso, todas as operações necessárias à alocação dos bens de capital aos diversos setores da atividade econômica. Os empresários e os capitalistas criam sociedades anônimas e outros tipos de empresa, aumentam e diminuem o seu tamanho, dissolvem umas, criam outras; compram e vendem ações e títulos de empresas já existentes ou novas; concedem, negam ou recuperam créditos; em suma, realizam todos os atos cuja totalidade é denominada de mercado financeiro ou de mercado de capitais. São essas transações financeiras de promotores e especuladores que dirigem a produção de modo a atender da melhor maneira possível as necessidades mais urgentes dos consumidores. Essas transações constituem o mercado propriamente dito. Ao eliminá-las, não se preserva uma parte do mercado; o que resta é um fragmento que não pode subsistir sozinho e nem pode funcionar como um mercado.

O papel de um diretor de empresa na condução da atividade econômica é muito mais modesto do que imaginam os aludidos teóricos. Sua função é apenas gerencial; auxilia os empresários e capitalistas, desincumbindo-se de tarefas subordinadas. O gerente não substitui jamais o

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empresário. Os especuladores, promotores, investidores e banqueiros, ao determinarem a estrutura das bolsas de valores e de mercadorias e o mercado financeiro, delimitam a órbita na qual as tarefas menores são confiadas aos gerentes. Ao se desincumbir dessas tarefas, o gerente tem que ajustar sua atuação à estrutura do mercado, a qual depende de fatores que vão muito além das funções gerenciais.

O problema de que estamos tratando não diz respeito às atividades gerenciais; está relacionado à alocação de capital aos vários setores da atividade econômica. A questão é a seguinte: em quais setores deveria haver aumento ou redução de produção, em quais setores deveriam ser alterados os objetivos de produção, que novos setores devem ser criados? O honesto e experiente diretor de empresa não tem como responder a essas questões. Quem confunde atividade empresarial com gerência ignora o verdadeiro problema econômico. Nas disputas trabalhistas, as partes em confronto não são a direção da empresa e a mão de obra; são o empresário (ou o capital) e os assalariados. O sistema capitalista não é um sistema gerencial; é um sistema empresarial. Não se está diminuindo o mérito do dirigente de empresa ao se registrar o fato de que não é a sua conduta que determina a alocação dos fatores de produção aos vários setores da atividade econômica.

Ninguém jamais imaginou que uma comunidade socialista pudesse convidar promotores e especuladores para exercer uma atividade de risco e entregar os seus lucros a um fundo comum. Aqueles que sugerem um quase-mercado para o sistema socialista nunca pensaram em preservar a bolsa de ações e de mercadorias, o mercado futuro, os banqueiros e os emprestadores de dinheiro, como se fossem quase-instituições. Não se pode brincar de especulação e de investimento. Os especuladores e os investidores arriscam o seu próprio dinheiro, o seu próprio destino. É esse fato que os obriga a se submeterem aos consumidores, que são os soberanos da economia capitalista. Se suas iniciativas não afetam o seu patrimônio, deixam de exercer a sua função social; deixam de ser empresários para se tornarem apenas um grupo de homens a quem o diretor da economia delegou a direção de uma atividade econômica. Mas terão de enfrentar o mesmo problema que o diretor era incapaz de resolver: o problema do cálculo econômico.

Conscientes do fato de que essa idéia simplesmente não faz sentido, os defensores do quase-mercado, às vezes, recomendam vagamente uma outra saída: a autoridade socialista deveria agir como agem os bancos, emprestando dinheiro a quem estivesse disposto a pagar mais pelo empréstimo. Essa idéia também não tem sentido. Quem quer que possa habilitar-se a esses fundos não tem propriedades próprias, o que é auto-evidente numa sociedade socialista. Podem oferecer a esse hipotético banqueiro oficial qualquer taxa de juros, por mais alta que seja, pois não correm nenhum risco financeiro pessoal. Não aliviam em nada a responsabilidade do diretor-banqueiro. O risco inerente aos empréstimos que lhes são feitos não é garantido pelos bens pessoais do tomador, como o são numa sociedade capitalista. Esse risco recai exclusivamente sobre a sociedade, que é a única dona de todos os recursos disponíveis. Se o diretor-banqueiro, sem hesitação, emprestasse os recursos disponíveis àqueles que se propõem a pagar um juro maior, estaria simplesmente premiando a audácia, a imprudência e o otimismo leviano. Estaria abdicando em favor de visionários inescrupulosos ou de salafrários. Deveria reservar a si a decisão de como devem ser utilizados os recursos da sociedade. Mas, sendo assim, voltamos ao ponto de partida: o diretor, ao pretender conduzir a atividade econômica, não pode recorrer à divisão do trabalho intelectual que, no regime capitalista, nos proporciona um método prático de efetuar o cálculo econômico.

O emprego dos meios de produção pode ser controlado seja pela empresa privada ou pelo aparato social de coerção e compulsão. No primeiro caso, há um mercado, há preços de

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mercado para todos os fatores de produção e é possível o cálculo econômico. No segundo caso, não. É inútil iludir-se na esperança de que os órgãos da economia coletiva serão "onipresentes" e "oniscientes". A praxeologia não lida com os atos de uma divindade onipresente e onisciente; lida com os atos de homens dotados apenas de uma mente humana.

E a mente humana só pode planejar se puder fazer uso do cálculo econômico.

Uma sociedade socialista com mercado e preços é algo tão contraditório como um triângulo quadrado. A produção é dirigida ou por empresários que visam ao lucro ou pela decisão de um diretor a quem é concedido o poder supremo e exclusivo. Serão produzidos ou os bens com cuja venda o empresário espera obter maiores lucros ou os bens que o diretor quer que sejam produzidos. A questão é a seguinte: a quem deve caber a decisão, aos consumidores ou ao diretor? Quem deve decidir, em última instância, se uma determinada quantidade de fatores de produção deveria ser empregada para produzir o bem de consumo a ou o bem de consumo b? Essa questão não admite respostas evasivas. Deve ser respondida de maneira direta e sem ambiguidades.

6 — As equações diferenciais da economia matemática

Para melhor compreender a ideia de que as equações diferenciais da matemática econômica possibilitariam o cálculo econômico na sociedade socialista, convém recordar o que realmente significam essas equações.

Ao concebermos a construção imaginária de uma economia uniformemente circular, supusemos que todos os fatores de produção estão sendo empregados de tal maneira que cada um deles presta o serviço mais valioso que lhe é possível prestar. Nessas condições, nenhuma mudança no emprego de qualquer desses fatores poderia satisfazer melhor as necessidades das pessoas. Essa situação, em que não adianta recorrer a qualquer nova mudança na distribuição dos fatores de produção, é representada por meio de sistemas de equações diferenciais. Não obstante, essas equações não nos dão informação sobre as ações humanas por meio das quais esse hipotético estado de equilíbrio teria sido atingido. O que elas informam é o seguinte: se, nesse estado de equilíbrio estático, m unidades de a são empregadas para produzir p, e n unidades de a para produzir q, nenhuma outra mudança no emprego das unidades disponíveis de a poderia resultar num aumento da satisfação de necessidades (mesmo se admitirmos que a é perfeitamente divisível e adotarmos a unidade de a como infinitesimal, seria um erro grave afirmar que a utilidade marginal de a seria a mesma em ambas as utilizações).

Esse estado de equilíbrio é uma construção puramente imaginária. No mundo real, cambiante, jamais chega a existir. Não corresponde à situação vigente hoje, nem a qualquer outra situação possível.

Na economia de mercado, é a ação empresarial que continuamente faz variar as relações de troca e realoca os fatores de produção. Um homem empreendedor descobre uma discrepância entre os preços dos fatores complementares de produção e os futuros preços dos produtos (segundo imagina que serão) e tenta tirar vantagem dessa diferença em seu próprio benefício. Esse futuro preço que o empreendedor tem em mente não é, certamente, o hipotético preço de equilíbrio. A nenhum ator da cena econômica interessa a noção de equilíbrio ou de preços de equilíbrio; esses conceitos são estranhos à vida real e à ação; são ferramentas auxiliares do raciocínio praxeológico, cujo emprego é necessário quando a mente humana não tem outro meio de conceber a incessante mobilidade da ação, a não ser contrastando-a com a noção de

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um repouso perfeito. Para o teórico, toda mudança é um passo adiante no caminho que, se não ocorrerem novas mudanças, conduzirá finalmente ao estado de equilíbrio. Nem os teóricos, nem os capitalistas e os empreendedores, nem os consumidores têm possibilidade de, com base no seu conhecimento da realidade presente, formar uma opinião sobre o nível futuro desse preço de equilíbrio. Nem há necessidade de que se tenha essa opinião. O que impulsiona um homem a mudar e a inovar não é a visão de preços de equilíbrio, mas a antecipação do nível de preços de um limitado número de artigos, que prevalecerá no mercado na época prevista para sua venda. O que o empresário tem em mente, ao se engajar num determinado projeto, são apenas os primeiros passos de uma transformação que, se não ocorrerem novas mudanças além das provocadas pelo seu próprio projeto, resultariam no estabelecimento do estado de equilíbrio.

Mas, para se utilizarem as equações que descrevem o estado de equilíbrio, é necessário conhecer a gradação de valor dos bens de consumo nesse estado de equilíbrio. Essa gradação é um dos elementos dessas equações que se presumem já serem conhecidos.

Entretanto, o diretor conhece apenas as suas próprias valorações atuais e ignora o que serão quando atingido o hipotético estado de equilíbrio. Com base nas suas valorações atuais, está convencido de que a alocação dos fatores de produção não é a mais satisfatória e pretende modificá-la. Mas ele mesmo não sabe qual será o seu julgamento de valor no dia em que o equilíbrio for alcançado. Essas futuras valorações refletirão as condições que resultarão das sucessivas mudanças na produção, provocadas por ele mesmo.

Chamemos o dia de hoje de D1 e de Dn o dia em que o equilíbrio venha a ser estabelecido. Denominemos, da mesma maneira, as seguintes grandezas correspondentes a esses dois dias: V1 e Vn, a escala de valorações dos bens de primeira ordem; Ol e On, a disponibilidade total de fatores originais de produção; P1 e Pn, a disponibilidade total de fatores de produção já produzidos; resumamos chamando O1 + P1 de M1, e On + Pn de Mn.

Finalmente, designemos o estágio de conhecimento tecnológico por T1 e Tn. Para resolver as equações, precisamos conhecer Vn, On + Pn = Mn e Tn. Mas o que conhecemos atualmente é apenas V1, O1 + P1 = M1 e T1.

Ao aludir ao fato de que a ausência de novas mudanças nos dados é condição necessária para estabelecer o equilíbrio, estamos referindo-nos apenas àquelas mudanças que poderiam perturbar o ajuste da atividade econômica em decorrência do próprio funcionamento dos elementos que já estão operando hoje. Seria inadmissível presumir que as grandezas no dia D1 pudessem ser iguais às do dia Dn, porque o estado de equilíbrio seria atingido se não ocorressem novas mudanças nos dados. O sistema não poderia atingir o estado de equilíbrio se novos elementos, vindos de fora do sistema, desviassem-no da direção que o levaria ao equilíbrio. Enquanto o equilíbrio não é atingido, o sistema está permanentemente movimentando-se, o que faz mudar os dados. A simples tendência ao estabelecimento de equilíbrio, não perturbada por mudanças vindas de fora do sistema, constitui, em si mesma, um processo de sucessivas mudanças nos dados.

P1 representa um conjunto de bens cujos valores não correspondem aos de hoje. Resultam de ações praticadas com base em valorações passadas, em função de um estágio de conhecimento tecnológico e de informações sobre disponibilidades de fatores primários de produção que são diferentes das atuais. Uma das razões pelas quais o sistema não está em equilíbrio reside precisamente no fato de que P1 não está ajustado às condições atuais. Há fábricas, ferramentas e disponibilidades de outros fatores de produção que não existiriam se a

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situação fosse de equilíbrio; e outras fábricas, ferramentas e fatores de produção deveriam existir para que o equilíbrio pudesse estabelecer-se. O equilíbrio só pode ocorrer quando essas partes perturbadoras de P1, na medida em que ainda sejam utilizáveis, forem devidamente gastas e substituídas por outras que correspondam aos demais dados sincrônicos, quais sejam, V, O e T. O que o agente homem precisa saber não é a situação no estado de equilíbrio, mas qual a melhor maneira de transformar gradualmente P1 em Pn. E, para isso, as equações são inúteis.

Não se pode conduzir o exame dessas questões eliminando-se P e considerando-se apenas O. Sem dúvida, tanto a qualidade como a quantidade dos fatores de produção já produzidos, ou seja, dos produtos intermediários, dependem exclusivamente da forma como são utilizados os fatores originais de produção. Mas a informação que poderia ser obtida dessa maneira só tem validade no caso de situações de equilíbrio. Não nos informa quanto aos métodos e procedimentos necessários para atingir a situação de equilíbrio. A disponibilidade de produtos intermediários, que hoje é P1, não é a mesma que existiria na situação de equilíbrio. Temos de levar em consideração a realidade, isto é, P1, e não uma condição hipotética Pn.

Esse hipotético futuro estado de equilíbrio só poderá existir quando todos os métodos de produção tiverem sido ajustados às valorações dos diversos agentes e ao correspondente estágio de conhecimento tecnológico. Aí, então, todos estarão trabalhando na localização mais apropriada e com os métodos tecnológicos mais adequados. A economia de hoje é diferente. Funciona com disponibilidades de meios que não correspondem ao estado de equilíbrio e que, portanto, não podem ser consideradas por um sistema de equações que descreve esse estado por meio de símbolos matemáticos. Para o diretor cuja tarefa é agir hoje, nas condições atuais, é inútil conhecer quais serão as condições que prevalecerão quando o equilíbrio for atingido. O que ele precisa é descobrir como proceder, da maneira mais econômica, com os meios de que dispõe hoje, e que lhe foram legados por uma época em que as valorações, o conhecimento tecnológico e as informações sobre localização eram diferentes. O que precisa saber é qual o próximo passo a ser dado. Para isso, as equações não lhe ajudam em nada.

Suponhamos que um país isolado, cujas condições econômicas sejam similares às da Europa central no meio do século XIX, seja governado por um ditador perfeitamente familiarizado com a tecnologia americana de nossos dias. Esse governante saberia, de uma maneira geral, a que objetivos deveria conduzir a economia sob seu comando. Entretanto, mesmo o pleno conhecimento das condições da América de hoje de nada lhe valeria para solucionar o problema que tem diante de si: que medidas adotar para transformar, da maneira mais apropriada e mais conveniente, o sistema econômico vigente no sistema desejado.

Mesmo supondo, só para argumentar, que por milagrosa inspiração o diretor, sem necessidade de recorrer ao cálculo econômico, conseguisse resolver da melhor maneira possível todos os problemas relativos ao ajuste de todas as atividades econômicas, de modo a atingir o objetivo que tem em mente, restariam ainda problemas essenciais que não poderiam ser resolvidos sem o cálculo econômico. Isso porque a tarefa do diretor não consiste em iniciar uma civilização e começar a história econômica a partir do zero. Os elementos com os quais terá de operar não são apenas os recursos naturais ainda virgens. São também os bens de capital produzidos no passado e que não são conversíveis, ou não são perfeitamente conversíveis, em novos projetos. É precisamente nesses bens — produzidos em circunstâncias em que as valorações, o conhecimento tecnológico e muitas outras coisas eram muito diferentes do que são hoje — que está cristalizada a nossa riqueza. Sua estrutura, qualidade, quantidade e localização são de primordial importância nas futuras decisões da atividade econômica. Alguns deles possivelmente se revelarão absolutamente inaproveitáveis;

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permanecerão como "capacidade ociosa". Mas a maior parte deles deverá ser utilizada, a não ser que prefiramos começar de novo da extrema pobreza e indigência do homem primitivo e que encontremos a maneira de sobreviver durante o período que nos separa do dia em que estará concluída a reconstrução do aparato de produção. O diretor não se poderá limitar a edificar a nova sociedade sem se importar com a sorte do seus súditos até que fique pronta a sua construção. Terá de procurar empregar, da melhor maneira possível, todos os bens de capital já existentes.

Não só os tecnocratas, mas também os socialistas de todos os matizes, reiteram incessantemente que o que torna possível a realização de seus planos ambiciosos é a enorme riqueza já acumulada. Mas, ao mesmo tempo, não chegam a perceber o fato de que grande parte dessa riqueza consiste em bens de capital já existentes e que, portanto, são mais ou menos antiquados do ponto de vista das nossas atuais valorações e do nosso atual conhecimento tecnológico. Para eles, o único objetivo da atividade econômica é o de transformar o aparato de produção de tal maneira, que as futuras gerações possam desfrutar de um melhor padrão de vida. Para eles, os seus contemporâneos são simplesmente uma geração perdida cujo único propósito devia ser o de usar seus esforços e preocupações em benefício dos que ainda não nasceram. Entretanto, na realidade, nossos semelhantes não pensam dessa maneira. Querem não só criar um mundo melhor para os seus bisnetos, como querem também usufruir a sua própria vida. Querem utilizar da melhor maneira possível todos os bens de capital que hoje estão disponíveis. Aspiram a um futuro melhor, mas querem atingir esse objetivo da maneira mais econômica. E, para isso, não podem prescindir do cálculo econômico.

Foi um erro grave acreditar que seria possível, mediante operações matemáticas, definir um hipotético estado de equilíbrio, com base no conhecimento das condições de um estado de não equilíbrio. Não menos errado foi supor que esse conhecimento das condições de um hipotético estado de equilíbrio pudesse ser de alguma utilidade para o agente homem na sua busca da melhor solução para os problemas do seu dia a dia. Não há, portanto, necessidade de enfatizar o fabuloso número de equações que teriam de ser resolvidas cotidianamente — o que por si só já tornaria esse método inviável -, mesmo se essa fosse realmente uma alternativa razoável para o cálculo econômico de mercado.