1403317047 ARQUIVO Bianchi2014ABCPSkinner...1962). O individualismo possessivo refletiria a...

24
IX ENCONTRO DA ABCP Área Temática: Teoria Política CONTEXTUALIZANDO SKINNER Alvaro Bianchi Professor Livre-docente do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

Transcript of 1403317047 ARQUIVO Bianchi2014ABCPSkinner...1962). O individualismo possessivo refletiria a...

IX ENCONTRO DA ABCP

Área Temática: Teoria Política

CONTEXTUALIZANDO SKINNER

Alvaro Bianchi

Professor Livre-docente do Departamento de Ciência Política

da Universidade Estadual de Campinas

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

Contextualizando Skinner

Alvaro Bianchi

Professor do Departamento de Ciência Política

da Universidade Estadual de Campinas

Resumo: Embora Quentin Skinner seja reconhecido como um defensor do contextualismo, e

de um tipo particular deste, o contextualismo linguístico, chama a atenção que raríssimas

vezes seus críticos, defensores ou exegetas tentaram contextualizar seu próprio pensamento.

O resultado é frequentemente uma análise e uma exposição “filosófica” das ideias do

historiador. Contrariando essa tendência, este paper procurará compreender o pensamento

desse autor em três níveis diferentes – historiográfico, metodológico e político – procurando

demonstrar como em cada um deles Skinner procurou apresentar uma terceira via que lhe

permitisse manter distância da historiografia whig, do positivismo e do liberalismo, por um

lado, e da historiografia marxista, do materialismo histórico e do socialismo, por outro. Dessa

maneira será possível aproximar a obra de Skinner do contexto intelectual e político no qual

ela foi produzida, permitindo uma melhor compreensão das intenções do autor

.

Escrevendo nos anos 1950 do século XX, Leo Strauss encontrava-se assustado. Nascido

em 1899, na pequena cidade alemã de Kirchhain, e criado em um ambiente judeu

conservador, Strauss viveu sua infância tranquilamente em várias cidades alemãs e deu início

a sua vida acadêmica seguindo um caminho desimpedido, até que no começo dos anos 1930

teve início a perseguição antissemita nas universidades e esta se tornou insuportável.

Migrando primeiro para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos livrou-se da guerra,

mas não de seu horror. Desde sua saída da Alemanha refugiou-se na filosofia política e,

particularmente, à filosofia política platônica. O ideal grego de virtude orientava sua

investigação.

Seguindo os gregos, Strauss considerava a filosofia como uma reflexão abrangente

sobre os assuntos humanos a qual deveria ter por fim superar a opinião por meio do

3

conhecimento. Tendo por objetivo a investigação sobre a natureza da política e do bom

governo, a filosofia política era o coroamento de toda a filosofia. Em uma aula ministrada em

1942, Strauss definiu do seguinte modo a filosofia política:

“By political philosophy, we under stand the coherent reflection carried on by politically minded people, con cerning the essentials of political life as such, and the attempt to establish, on the basis of such reflection, the right standards of judgment concerning political institutions and actions; political philosophy is the attempt to dis cover the political truth.”(STRAUSS, 2007 [1942], p. 516)

A opção de Strauss pelo termo filosofia política, no lugar de teoria política não era

ingênua. Na citada aula o filósofo emigrado justificou sua preferência. Segundo afirmava, o

termo teoria pressuporia: 1) uma oposição entre teoria e prática, o que implicaria aceitar que

haveria um conhecimento sobre a política separado da prática e 2) na aceitação de que o

conhecimento político implicaria na observação de “dados” e na construção de hipóteses

sobre esses dados. A recusa da teoria política tinha um resultado ambíguo. Enquanto o

primeiro pressuposto aproximava a filosofia da prática, o segundo pressuposto acercava a

teoria da ciência. Assim, enquanto a filosofia poderia emergir de sua relação com a prática

como um guia para a valoração de instituições políticas realmente existentes, a teoria,

tomando como ponto de partida dados referentes a instituições políticas chegaria apenas a

conclusões a respeito da relação entre os diferentes dados disponíveis e as instituições, mas

deixava em aberto a avaliação destas.

Mas as décadas precedentes haviam abalado completamente esse projeto. A natureza

da política estava, aparentemente, comprometida de modo intrínseco com a realização do mal

e o bom governo parecia não ser mais do que uma quimera. Em 1953, Strauss considerava o

ideal clássico prestes a ser definitivamente derrotado. A filosofia política se encontrava para

ele em um “estado de decadência e talvez putrefação, se é que não foi banida

completamente” (STRAUSS, 1988, p. 17).

Na Inglaterra, movido por um mesmo diagnóstico, Peter Laslett (1915-2001) ecoou esse

protesto: “No momento, de todo modo, a filosofia política está morta” (1956, p. vii). A

afirmação era forte e mirava, de modo preciso, o positivismo lógico e o behavioralismo. O

positivismo lógico havia considerado toda afirmação que não fosse definicional (analítica) ou

empírica (sintética) como desprovida de sentido. Desse modo, o significado de uma

investigação sobre o dever ser da política perderia todo sentido. Essa investigação encontrar-

se-ia acuada. O positivismo lógico parecia apontar para o tipo de investigação cientificamente

4

orientada e epistemologicamente objetiva pretendida pelo behavioralismo dominante na

Political Science de então. As tendências dominantes na filosofia e na ciência pareciam unidas,

desse modo, contra a existência da filosofia política.

Paradoxalmente era no âmbito da filosofia analítica que os primeiros ensaios de um

renascimento começavam a se manifestar. O primeiro volume da coleção Philosophy, Politics

and Society, editada por Laslett e para a qual havia escrito a introdução na qual anunciava a

morte da filosofia política, havia sido planejado para, juntamente com esse anúncio, registrar

novas direções de pesquisa na área. O renascimento desejado por Laslett era um que

conciliasse definitivamente a filosofia política com a filosofia analítica que havia se tornado

hegemônica nas universidades inglesas no pós-guerra. Uma reconciliação como essa

assentaria as bases para uma filosofia política anglo-saxã. O próprio editor da coleção

considerava que a filosofia analítica poderia permitir uma atitude que, embora modesta, era

mais realista no estudo da política e a qual poderia ter efeitos positivos: “em anos recentes, há

sinais de que nossos filósofos estavam se preparando para assumir mais uma vez suas

responsabilidades com relação às discussões políticas. É a partir desses pequenos sinais que

alguns podem desejar basear expectativas de um renascimento da filosofia política

tradicional” (LASLETT, 1956, p. x).

Kari Palonen apontou que o debate inglês sobre “o fim da filosofia política” ecoava, a

sua maneira, a agitação a respeito do “fim das ideologias” que nos Estados Unidos encontrou

seu principal porta-voz em Daniel Bell (PALONEN, 2003, p. 11). De maneira bastante

persuasiva para a época, Bell argumentou que as ideologias políticas humanistas do século

XIX, particularmente o socialismo e o liberalismo, haviam se esgotado e se tornado

irrelevantes para pessoas sensíveis. Ao invés de um mundo orientado pelos grandes projetos

humanistas do século anterior, os anos 1960 pareciam antecipar uma vida política e social

tecnocraticamente organizada(BELL, 1960).

Assim como as versões posteriores dessa tese, notadamente a conhecida versão de

Francis Fukuyama, o argumento de Bell era claramente teleológico e apontava para uma

nítida vitória do liberalismo: “In the Western world, therefore, there is a rough consensus

among intellectuals on political issues: the acceptance of a Welfare State; the desirability of

decentralized power; a system of mixed economy and of political pluralism. In that sense, too,

the ideological age has ended” (BELL, 1960, p. 373).

O renascimento da historiografia

5

No âmbito da historiografia inglesa, o debate sobre “o fim das ideologias” coincidiu

com a crítica àquilo que depois viria a ser chamado de “grandes narrativas”, particularmente

asinterpretações whige marxista da história. A crítica à interpretação whig havia sido lançada

por Herbert Butterfield, com a publicação em 1931, do livro The Whig Interpretation of History,

mas a obra só fez sucesso a partir de sua segunda edição, em 1960, quando foi reeditada para

aproveitar a repercussão positiva que havia tido a obra Christianity and

History(BUTTERFIELD, 1960).

De acordo com Butterfield, essa interpretação consistiria na “tendency in many

historians to write on the side of Protestants and Whigs, to praise revolutions provided they

have been successful, to emphasise certain principles of progress in the past and to produce a

story which is the ratification if not the glorification of the present.” (BUTTERFIELD, 1965

[1931], p. v) Uma das principais características da chamada interpretação whig seria sua

tendência a interpretar o passado com referência ao presente e, desse modo, conceber o século

XVI como uma antecipação do séculos seguintes (BUTTERFIELD, 1965 [1931], p. 11-12).

Seguindo essa tendência o historiador, no exercício de seu ofício, abstrairia os eventos de seus

contextos específicos e os submeteria a julgamentos que não levariam em conta as situações

particulares nas quais os eventos tiveram lugar. O resultado mais evidente e simples dessa

tendência seria o anacronismo.

Na historiografia inglesa a interpretação whig estabeleceu uma linha de continuidade,

sem rupturas, entre os confrontos envolvendo protestantes e católicose o presente político da

Inglaterra do séculos XIX e XX. Enquanto os reformadores representariam o progresso e

abririam o caminho para o iluminismo, os papistas encarnariam as forças da reação e do

obscurantismo. A vitória dos protestante teria aberto o caminho para a afirmação da

liberdade e da tolerância como princípios norteadores. No âmbito da historiografia do

pensamento político essa corrente enfatizava um caminho que partindo do pensamento de

John Locke e das instituições políticas nascidas na Revolução Gloriosa de 1688 chegava até o

pensamento liberal e as instituições políticas contemporâneas.

Paradoxalmente, a interpretação da historia inglesa e do pensamento político

predominante no marxismo não chegava a conclusões muito diferentes. Embora abordassem

o presente de maneira crítica, estabeleciam uma leitura retrospectiva deste que encontrava as

raízes das ideias e instituições liberais contemporâneas nos mesmos autores e processos

políticos apontados pela historiografia whig. Autores como C. B. Macpherson (1962; 1977)não

6

titubearam em apresentar a história do pensamento político liberal como uma lenta evolução

cujos efeitos se fariam sentir fortemente nas instituições políticas e no pensamento

contemporâneo.

De acordo com Macpherson o pensamento político contemporâneo estaria marcado

por uma concepção de indivíduo proprietário que remontaria ao século XVII. Uma

“concepção do indivíduo como sendo essencialmente proprietário de sua própria pessoa e de

suas próprias capacidades, nada devendo à sociedade por elas” seria o fundamento

ontológico do pensamento liberal que se afirmaria a partir do século XIX(MACPHERSON,

1962). O individualismo possessivo refletiria a existência de uma sociedade possessiva de

mercado e as relações de classe subjacentes a este. A persistência desse fundamento

ontológico permitiria a Macpherson traçar uma linha de continuidade homogênea entre

Hobbes e Bentham a qual encontraria forte expressão também no âmbito das instituições

políticas.

De vários modos a crítica de Butterfield à historiografia whig antecipou alguns temas e

motivos da renovação dos estudos de história do pensamento político levados a cabo em

Cambridge. O próprio Butterfield foi fellow nessa instituição entre 1928 e 1979 e editor do

Cambridge Historical Journal por quase vinte anos. J. G. A. Pocock realizou seus estudos de

História sob sua supervisão nos anos 1940 e na conclusão de seu primeiro livro – The Ancient

Costitution and the Feudal Law – reconheceu a importância de Butterfield e de Duncan Forbes

tanto para a redescoberta da historiografia do século XVII como para alertar a respeito do

perigo que a “interpretação whig” representava nesse campo de estudos(POCOCK, 1967, p.

250-251).1Muito embora Pocock tenha afirmado, anos mais tarde, não ter sido particularmente

influenciado em sua abordagem por Butterfield, é evidente que a oposição deste a uma

1Ver também FORBES (1952) e BUTTERFIELD (1965 [1931]).

7

perspectiva anacrônica no estudo do passado inspirou fortemente os alunos de Cambridge(cf.

BENTLEY, 2011, p. 299).2

The Ancient Costitution and the Feudal Law iniciava-se com a afirmação de que seu

objetivo era iluminar um aspecto da moderna historiografia, um movimento que poderia ser

datado no início do século XVI e cujo objetivo era o de “reconstruir as instituições pretéritas

da sociedade e usá-las como um contexto no qual, e por meio do qual, interpretar as ações,

palavras e pensamento dos homens que viveram naquele tempo”(POCOCK, 1967, p. 1). Foi

nas universidades francesas influenciadas pelo pensamento historiográfico italiano, que

Pokock encontrou um enfoque histórico no estudo do direito romano que valorizava “the

meaning which these laws had possessed in the minds of the Romands who penned them”.

Esse enfoque recebeu, nas escolas de jurisprudência “o nome de ‘gramática’, a ciência do

sentido e uso das palavras”(POCOCK, 1967, p. 9).

Essa ênfase nos contextos históricose nos sentidos que as obras e as palavras assumiam

neles já havia sido anunciada alguns anos antes por Peter Laslett. Historiador profissional, ele

estava mais interessado na compreensão do que os autores clássicos teriam dito do que na

apropriação daquilo que disseram para compreender o mundo contemporâneo. Esse interesse

fica evidente em sua investigação sobre a história do pensamento político de John Locke e a

nova edição dos Two Treatises of Government, quepreparou para e editora da Cambridge

University. Em uma introdução de mais de cem páginas Lasllet reconfigurou os estudos sobre

o pensamento político inglês do século XVII. Mas seus objetivos não deixavam de ser

explicitamente modestos:

“nosso primeiro objetivo deve ser um modesto exercício do historiador:

estabelecer o texto de Locke como ele desejou que fosse lido, fixá-lo em seu

2 Senão a influência, pelo menos algumas coincidências entre a perspectiva de Butterfield e a de seus pósteros pode ser encontrada no pequeno livro que este escreveu sobre Niccolò Machiavelli, em 1962. Já na breve introdução o historiador de Cambridge alertava que em seu ensaio procuraria estudar “what Machiavelli himself had to say about his purpouse and his Science of statecraft; from it wich may appear that he for his part would not always have ratified the interpretation which have been put upon him by his friends” FORBES (1952). E algumas páginas adiante o mesmo autor afirmou, parecendo antecipar a perspectiva assumida por Skinner: “we are in position to impose upon Machiavelli many o our assumptions, conscious or unconscious, and we shall be greatly tempted to endow him with our modern mentality. It is importante therefore, that we should interpret Machiavelli in the light of his own aims and avowed intentions, seeking to know what his books signified to himself (...). It is essential to find out what in real life was his dominating passion; and in particular to keep in mind the declared intention, rather than the historical consequences, of his political thought” (BUTTERFIELD, 1962, p. 10)

8

contexto histórico, o contexto do próprio Locke, e demonstrar as conexões

entre o que ele pensou e escreveu e sua influência histórica” (LASLETT,

2003 [1960], p. 4)

De modo rigoroso Laslettenfrentou alguns dos mais persistentes problemas de

interpretação da obra de Lockeprocurando contextualizá-la de modo eficaz; revelar o público

para o qual ela foi escrita; e estabelecer contra quem ela foi publicada. Amparado em uma

erudita leitura diplomática dos manuscritos,ele determinou de modo exemplar que a data da

redação dos tratados antecedeu a revolução gloriosa de 1688, ao contrário do que se pensava

até então (LASLETT, 2003 [1960], p. 65); que estes eram “um clamor pela revolução a ser

promovida, e não a racionalização de uma revolução necessitada de justificativas” (LASLETT,

2003 [1960], p. 47); e que o alvo de Locke eram mesmo as teorias patriarcalistas de sir Robert

Filmer, e não o contratualismo de Thomas Hobbes, como muitos imaginaram (LASLETT, 2003

[1960], p. 67-92).

A reconstrução que Laslett levou a cabo do pensamento de John Locke não deixou,

assim, de ser um duro golpe nessas narrativas. O forte vínculo que essa historiografia havia

estabelecido entre John Locke e a Revolução Gloriosa permitia localizar no mesmo instante

histórico as origens da ideologia e das instituições liberais ingleses. Ao datar a redação dos

Two treatises dez anos antes, o historiador de Cambridge deslocou o pensamento de Locke

para o interior da crise da exclusão que ocorreu na Inglaterra durante a monarquia dos Stuart.

O efeito dessa simples alteração foi devastador sobre as interpretações que estabeleciam um

nexo indissolúvel entre o pensamento de John Locke as instituições nascidas na Revolução

Gloriosa.

Para o jovem estudante Quentin Skinner, a leitura da nova edição dos Two treatises on

governmente de The Ancient Constitution and the Feudal Lawfoi profundamente

marcante(PALONEN, 2003, p. 10-11). De acordo com Skinner foi a partir da leitura dessas

obras que começou a pensar de modo mais claro que toda forma de estudo de textos

filosóficos deveria, de alguma maneira, contextualizá-los historicamente. A obra de Pocock

foi lida ainda durante a graduação, segundo afirmou em uma entrevista: “A obra de John

oferece uma bússola para a contextualização de algumas figuras chaves do pensamento

histórico e político do início da idade moderna e foi uma das obras que mais gostei de ler

durante meu curso de graduação” (SKINNER, 2002a, p. 42). Skinner foi aluno de Laslett e leu

a nova edição de Locke pouco depois, durante seu Mestrado, seguindo o conselho de seu

supervisor, John Burrow (SKINNER, 2002a, p. 41).

9

O jovem historiador ficou impressionado com os resultados da reconstrução histórica

levada a cabo por Laslett e decidiu seguir um caminho semelhante para estudar o

pensamento de Thomas Hobbes. A escolha do objeto de investigação não deixou de ter suas

contingências. Na época seu colega John Dunn estava estudando o pensamento político de

Locke e Skinner achou por bem não fazer o mesmo e escolher outro autor. Em sua introdução

aos Two treatises on government Laslett deixou claro que considerava o texto de Locke um

panfleto político redigido para um contexto histórico específico com um propósito claramente

polêmico: denunciar a arbitrariedade da coroa e questionar sua legitimidade. Esse caráter de

panfleto permitiria uma abordagem histórica que procurava entende-lo como um movimento

em um debate politico específico. Ao proceder dessa maneira, Laslett evitava tanto as

explicações filosóficas, que tratavam o texto como um objeto em si e se limitavam a ele,

quanto as explicações sociológicas – como a marxista – que procurariam explicar o texto

estabelecendo a relação entre ideologias políticas e estruturas econômicas. No ensaio de

interpretação levado a cabo pelo historiador inglês, as ações do agente eram valorizadas e

tornavam o texto inteligível.

Skinner ficou extasiado com as possibilidades que essa interpretação abria para a

historiografia. O radicalismo histórico de seus primeiros textos encontrou, em Laslett, um

exemplo a ser seguido. A proposta de pesquisa de Skinner radicalizava a metodologia de seu

precursor. De acordo com Laslett, o método histórico não seria apropriado para a

interpretação de autores mais “sistemáticos” e “filosóficos”, como o próprio Hobbes. Skinner

relembraria em uma entrevista que seu antigo mestre o desaconselhou a tratar Hobbes da

mesma maneira que Locke: “As I remember him telling me, he had shown that Locke should

not be ranked with such architectonic writers as Hobbes, on whom such an analysis could not

be performed.” (SKINNER, 2002a, p. 42).Mas o jovem historiador estava disposto a ir além de

seu professor. Em uma ácida resenha a respeito de algumas leituras de Hobbes, Skinner

criticou C.B. Macpherson, Howard Warrender e Francis Campbell Hood, acusando-os de

forçar o pensamento de Hobbes para torná-lo coerente e compatível com “a theory about the

'real' assumptions of his thought.” (SKINNER, 1964, p. 322). A crítica de Skinner a esse

procedimento foi devastadora:

“Exegetical coherence is gained at the expense of any historical

plausibility. This danger, moreover, seems inherent in the tendency to

treat the study of intellectual history as ersatz philosophy. When inquiry

proceeds exclusively by the analysis of a conventional number of

10

classical texts, their relation to their contemporary philosophical

undergrowth is bound to stop being visible. There is thus still no

account of the intellectual relations, rather than merely reactions,

implied either by Hobbes's philosophical or scientific interests”

(SKINNER, 1964, p. 333).

Se bem tenha posteriormente se distanciado do radicalismo histórico que marcou seus

primeiros escritos, Skinner nunca renegou a crítica, presente nesses textos, às formas de

presentismo que marcavam a historiografia whig e o marxismo. Mas quem eram os

representantes dessa historiografia whig? E. H. Carr já havia jocosamente apontado que o

livro de Butterfield contra essa interpretação “não nomeava um único whig exceto [Charles

James] Fox, que não era historiador, nem um historiador, salvo [Sir John Dalberg-] Acton, que

não era whig”. E não é muito diferente o que pode se dizer a respeito da obra de Skinner.

Embora as referências críticas à interpretação whig da história, esta não era nunca

personificada. Na obra de Skinner a crítica a historiografia whig aparecia apenas como o

contraponto, o álibi, que permitia afirmar sua crítica contra aquela historiografia que “provia

alegadamente evidências para o próprio modelo base/superestrutura”(SKINNER, 2002a, p.

38), ou seja o marxismo. E este era personificado: C. B. Macpherson.

A virada linguística na história do pensamento

A fortes evidências de que foi a oposição ao materialismo histórico o que levou Skinner

a debruçar-se sobre a metodologia da história do pensamento político, na tentativa de

apresentar uma alternativa consistente. Segundo afirmou em uma entrevista:

“From the perspective, however, of an intellectual historian, the economic determinism associated with Marxism always seemed to me a hostile as well as a misguided argument. You are right to say that much of my early philosophical work was directed against the accompanying assumption that intellectual life is simply ‘superstructural,’ and hence susceptible of being causally explained by reference to underlying economic forces.”(SEBASTIÁN, 2007, p. 104)

Mas para o histgoriador o positivismo lógico não era uma alternativa. No final dos

anos 1950 o debate sobre a filosofia da história assumia tons cada vez mais fortes. O ponto de

partida da discussão havia sido um artigo de Carl G. Hempel, no qual este procurava

estender seu modelo explicativo para o estudo da história. De acordo com este filósofo, um

11

evento E poderia ser explicado por meio de um conjunto de enunciados afirmando a

existência de certos eventos (C1, C2, ..., Cn) “em certos tempos e espaços” e um conjunto de leis

gerais, ambos os conjuntos bem estabelecidos pelas evidências empíricas existentes

(HEMPEL, 1942, p. 36).3O pressuposto básico dessa tentativa encontrava-se na ideia daquilo

que era chamada de “unidade metodológica das ciências empíricas” (HEMPEL, 1942, p. 48).

O modelo de Hempel havia sido desenvolvido paralelamente por Karl Popper em seu

The Logic of Sicentific Discovery, obra publicada em alemão no ano de 1935. De acordo com o

filósofo austríaco, “fornecer uma explicação causal de um evento significa deduzir um

enunciado que o descreve usando como premissas da dedução uma ou mais leis universais

conjuntamente com certos enunciados singulares, as condições iniciais” (POPPER, 2002

[1935], p. 38). Embora, segundo Popper, as ciências históricas não pudessem ser capazes de

produzir suas próprias leis universais, elas utilizariam as leis fornecidas por ciências teóricas,

tais como a psicologia, a economia e a psicologia, para explicar os eventos

históricos(POPPER, 1945, v. 2, p. 251).

Este modelo de explicação histórica, conhecido como Teoria Popper-Hempel (cf. p. ex.

DONAGAN, 1964) encontrou forte resistência na filosofia da história anglo-saxã,

particularmente de William Dray (1957) e Alec Donagan (DONAGAN, 1956; 1957; 1964). O

que a maior parte desses críticos argumentou foi que as “hipóteses universais” e as “leis

gerais” que Hempel e Popper julgavam explicar os eventos históricos eram muito fracas ou

porosas para permitir que eventos históricos pudessem ser deduzidos delas. Ao invés de leis

gerais, o que se tinha eram enunciados particulares incapazes de explicar outros eventos (cf.

p. ex. MANDELBAUM, 1961, p. 231). Dessa maneira o que esses autores procuraram foi

construir um modelo de explicação causal que prescindia de leis causais (DRAY, 1957, ch.

IV).Ao construir um modelo de explicação causal sem leis causais, esse filósofos procurariam

encontrar as “conexões internas” entre eventos e ideias. Desse modo, a atividade do

historiador consistiria em estabelecer os padrões de influencias que vinculariam de alguma

maneira ideias e eventos.

Skinner esteve atento a esse debate e o abordou em um artigo publicado em 1966 no

qual se empenhou em rejeitar tanto o modelo Hempel-Popper como o de seus adversários

3 Segundo Hempel uma lei geral é “um enunciado de condicionalidade universal” o qual pode ser confirmado ou desconfirmado por evidência empíricas. O termo lei indicaria que as evidências existentes são suficientes para confirmar o enunciado. Na medida em que essa condição seria irrelevante para seus propósitos, Hempel usa, com frequência a expressão “hipóteses universais” ao invés de “lei geral”. (HEMPEL, 1942, p. 35)

12

não idealistas, os quais chamou de “filósofos reacionistas da história”, dentre os quais Dray e

Donagan.4Skinner considerou essa abordagem desses autores equivocada e questionou a

própria possibilidade de sustentar hipóteses explicativas satisfatórias: “A matéria prima

documental do historiador está frequentemente incompleta, às vezes sistematicamente

equivocada, e, então, em muitos casos é incapaz de sustentar qualquer hipótese explicativa

convincente”(SKINNER, 1966, p. 207). Sem poder sustentar hipóteses explicativas, o

historiador deveria mudar seu foco e abandonar o desejo de explicar os eventos:

“O historiador necessita, talvez, considerar de maneira mais séria a

questão de se ele pode ser capaz de explicar sem ambiguidades. Ele não

parece ser capaz de providenciar explicações bem sucedidas traçando as

influências e conexões internas fora de todo contexto histórico. Ele é

claramente capaz, entretanto, de examinar e descrever o próprio

contexto de maneira detalhada.” (SKINNER, 1966, p. 214)

A filosofia da história anglo-saxão não constituía o único ponto do qual Skinner

pretendia se afastar com este seu texto metodológico. Ankersmit atirou à cara dessa filosofia a

acusação de que seus proponentes não eram historiadores e não se encontravam

familiarizados com a pesquisa histórica. Talvez por essa razão, Skinner evitou utilizar

exemplos históricos provenientes da obra desses filósofos. Foi nos historiadores anglo-saxões

que ele procurou os casos aos quais se contrapor. Dois chamam a atenção Christopher Hill e,

de novo, C. B. Macpherson. De acordo com Skinner, ambos os historiadores estariam presos a

um modelo explicativo segundo o qual seria possível estabelecer a influência de um evento E1

sobre um evento E2, ou de um personagem histórico P1 sobre um personagem P2. De acordo

com esse modelo, o “historiador dos eventos poderia neste caso tipicamente afirmar que

podemos ajudar a explicar a Revolução Inglesa (ou a Francesa ou a Russa) considerando a

influência dos intelectuais”, como fez Christopher Hill. E o “historiador das ideias poderia

similarmente afirmar (...) que podemos explicar a estrutura da filosofia política de Locke,

considerando a influência de Hobbes”, como fez C. B. Macpherson (SKINNER, 1966, p. 206-

207).

Percebe-se de que tipo de historiografia Skinner quer se afastar, mas embora tivesse

concluído esse artigo com um programa de pesquisa, as ferramentas metodológicas que

4 Esse artigo não se encontra em nenhuma das coletâneas de textos metodológicos de Skinner (cf. SKINNER, 2002b; TULLY, 1988). Skinner apropriou-se da denominação de reacionistas cunhada por Mandelbaum (1961, p. 229).

13

mobilizaria para realiza-lo não eram explicitadas. Coube a outro estudante de Cambridge, J.

G. A. Pocock dar os primeiros passos nesse sentido, em um primeiro ensaio metodológico,

publicado em 1962. De acordo com Pocock, a história das ideias políticas seria “a tradition of

intellectualizing”. Seguindo uma caracterização inspirada em Edmund Burke e Michael

Oakeshott, o historiador considerava que a teoria política era uma atividade de “abstracting

or abridgement, from a tradition” (POCOCK, 2009, p. 5).

O conceito de tradição utilizado era diretamente tributário da ideia de “tradition of

behavior” presente na obra de Oakeshott. De acordo com Pocock, uma “tradition of

behavior” representaria o “todo complexo todo de meios de comportamento, falar e pensar

em política, os quais herdamos de um passado social” (POCOCK, 2009, p. 5).O pensamento

político de uma sociedade seria formado pela adoção de linguagens tradicionais decorrentes

de certos aspectos das experiências sociais e culturais e pelo desenvolvimento de linguagens

teóricas e especializadas utilizadas para explicar e defender o uso de linguagens tradicionais

como instrumentos da discussão política (POCOCK, 2009, p. 15). Segundo Pocock,

“O historiador deve abordar o pensamento político de uma sociedade

pro meio da observação, primeiro, dos modos de criticar ou defender a

legitimidade dos comportamentos políticos existentes, dos símbolos ou

princípios aos quais se referem e das linguagens e formas dos

argumentos por meio dos quais procuram alcançar seus fins”

(POCOCK, 2009, p. 16).

É importante notar que Pocock enfatizou sempre que a pluralidade de linguagens

conformariam diferentes tradições presentes simultaneamente nos debates políticos.

Concebido historicamente o pensamento político seria um aspecto do comportamento social e

uma atividade intelectual. Como aspecto do comportamento social ele expressaria as crenças

e valores dos indivíduos a respeito da vida social e das instituições da sociedade. Como

atividade intelectual procuraria adquirir conhecimento a respeito dessas crenças e valores,

bem como das praticas sociais que eles orientariam. Compreende-se porque seu sentido

revelar-se-ia apenas por meio da reconstrução do contexto no qual ele teria lugar. O

pensamento político receberia da tradição a carga semântica que lhe dariaa forma, ao mesmo

tempo que mobilizaria e atualizaria essa tradição na discussão política.

Como fica claro na obra de Pocock e, particularmente em seus ensaios metodológicos,

ele partilhava com Oakeshot seu léxico político, mas não deixava de flertar também com o

conservadorismo do filósofo. “I had my troubles with self-appointed Red Guards” no final

14

dos anos 1960, confessou Pocock (POCOCK, 2009, p. xiii).Quentin Skinner, por sua vez, não

se alinhava com esse conservadorismo político, nem se encontrava inclinado a aceitar as

ideias de Oakeshott e embora gostasse de conversar com ele, o considerava uma figura do

passado. Além do mais não tinha nenhuma atração pela sua leitura de Hobbes: “He was

widely acknowledged as an illuminating commentator on Hobbes, although I must confess

that I found him virtually unreadable on that subject.” (SKINNER, 2002a, p. 45). Embora não

simpatizasse metodológica, teórica ou politicamente com o professor de filosofia de

Cambridge, Skinner considerava magníficos os resultados da pesquisa de John Pocock em The

ancient constitution and the feudal law e a perspectiva por este adotada no estudo do

pensamento político (POCOCK, 1967), bem como as primeiras incursões deste autor no

campo da metodologia (cf. p. ex. POCOCK, 2009, p. 3-19).

A atenção dada por Pocock em seu ensaio de 1962 às “linguagens da política” era um

sintoma da uma virada linguística na historiografia. Na historiografia inglesa esse movimento

intelectual abriu caminhos que permitiram afastar-se da crescente influência da Social History

nas universidades inglesas.5 O Linguistic turn representou uma nova ênfase na linguagem e

seus sentidos, tratou-se mais de um movimento intelectual do que de uma nova teoria.

Teorias, a bem da verdade, havia muitas. Na historiografia inglesa, os primeiros sinais desse

movimento se fizeram notar mediante a influência das teorias narrativas. De acordo com

Ankersmit: “When philosophy of history finally joined in the linguistic turn in Anglo-Saxon

philosophy it did so under the guise of narrativism.” (ANKERSMIT, 1994, p. 61). Autores

como Gallie e Danto, já nos anos 1950-1960, haviam demonstrado forte interesse nas

narrativas históricas. Gallie, por exemplo, considerava que a explicação histórica consistia na

capacidade de seguir uma narrativa: “narrative is the form which expresses what is basic to

and characteristic of historical understanding” (GALLIE, 1963, p. 169), enquanto Danto

insistia na afirmação de que a “in history, to seek truth is to seek a true story.” (DANTO,

1956, p. 23).

Mas para os historiadores de Cambridge as maiores influências foram Ludwig

Wittgenstein (1889-1951) e J. L. Austin (1911-1960). Skinner contou que assim como muitos de

sua geração ele foi profundamente atraído pela filosofia e pela áurea de Wittgenstein e que

havia adquirido um exemplar das Philosophical Investigations logo após seu lançamento em

5 Tardiamente o Linguistic turn atingiu até mesmo a história social inglesa, como se podever na obra do discípulo de E. P. Thompson, Gareth Stedman Jones, e no debate que esta despertou na revista Social History.

15

1958. Nos anos subsequentes, o jovem historiador leu e releu esse livro, assim como todas as

resenhas e comentários que encontrou a respeito. Foi a partir do estudo dessa obra que

Skinner elaborou um conceito de meaning que se faria presente posteriormente em todos os

seus ensaios metodológicos (SKINNER, 2002a, p. 46). O ponto de partida para esse conceito

era uma ênfase maior não no sentido das palavras em si, mas a afirmação de Wittgenstein

segundo a qual a significação de expressões linguísticas consistiria em seu uso (SKINNER,

2002a; WITTGENSTEIN, 2009 [1953]).6

O passo seguinte foi dado mediante a apropriação dos refinamentos conceituais

promovidos por J. L. Austin (1911-1960) na filosofia da linguagem. Para Skinner, Austin era o

mais influente e afamado representante da filosofia analítica inglesa no começo dos anos

1960. Sua obra mais importante, How To Do Things with Words, foi publicada dois anos depois

de sua morte e adquirida por Skinner em 1963, um exemplar que ele diz ainda possuir

(SKINNER, 2002a, p. 47). A familiaridade de Skinner com a gramática, adquirida em seus

prévios e intensos de Latim, permitiriam que ele criasse uma relação empática com o texto de

Austin, mas o que decisivamente contribuiu para a apropriação das ideias contidas nele foi o

forte nexo que Skinner identificou entre a nova filosofia da linguagem com a qual tomava

contato e o pensamento de Wittgenstein.

A partir do estudo de Wittgenstein, Skinner concluiu que a investigação sobre o léxico

político de uma época implicaria em uma pesquisa sobre os usos práticos das expressões

linguísticas que compõem esse léxico. Mas foi a distinção feita por Austin entre atos

locucionários, ilocucionários e perlocucionários que forneceu ao historiador as ferramentas

conceituais necessárias para apresentar de modo mais acabado seu método (cf.

principalmente AUSTIN, 1962, p. 94-107; SKINNER, 1988). Para entender um enunciado seria

preciso entender o que o agente estava fazendo ao emiti-lo e o que o agente pretendia fazer ao

pronunciar o enunciado com aquele sentido específico. Compreender o sentido que

usualmente as palavras carregam seria importante, mas não bastaria para uma compreensão

plena do que foi dito. Para tal seria necessário investigar, igualmente, a força particular com a

qual um enunciado foi posto em uma ocasião específica.

Segundo Austin, um ato de fala conteria muitas dimensões que precisariam ser

compreendidas para um conhecimento completo. O ato de dizer uma coisa por meio de

palavras, ou seja, o ato de formular e expressar foneticamente uma sentença, seria um ato

6 Segundo Wittgenstein, “o sentido é o uso que fazemos de uma palavra” (2009 [1953], p. 59).

16

locucionário. Mas compreender o que foi dito não implicaria em conhecer o uso ou a intenção

disso. Expressar foneticamente uma sentença seria, também, agir e para ampliar nosso

conhecimento sobre o que foi dito seria necessário investigar o sentido dessa ação. Para tal

importaria investigar a dimensão ilocucionária dos atos de fala, ou seja, o que um agente

poderia querer fazer ao dizer aquilo que enunciou. Uma terceira dimensão diria respeito aos

efeitos que aquilo que foi dito produziu sobre aquele que falou, a audiência, ou outras

pessoas. Esta dimensão foi chamada por Austin de perloucionária(SKINNER, 2002b, p. 104).

Desse modo, para entender o sentido de certos enunciados em um contexto particular,

seria necessário conhecer: (a) o sentido usual das palavras utilizadas; (b) o que o autor do

enunciado estava tentando fazer ao emitir esse enunciado; e (c) as consequências reais do que

foi dito. Enquanto as abordagens tradicionais enfatizaram frequentemente (a) e (c), a filosofia

da linguagem de Austin colocou toda a ênfase em (b), os seja, na capacidade que os agentes

dos enunciados teria de explorar a força ilocucionária destes atos de fala de modo a “fazer

coisas por meio de palavras” (SKINNER, 2002b, p. 105).

Embora inspiradora, a abordagem de Austin pareceu a Skinner falha em ao menos um

ponto, na ênfase que o filósofo inglês colocava no uso convencional das palavras em

detrimento das intenções dos agentes. Para superar essa falha Skinner recorreu aos

desenvolvimentos posteriores que essa filosofia da linguagem teve, particularmente nas obras

de P. F. Strawson, John Searle, Stephen Schiffer e David Holderoft. Por meio destes autores, o

historiador de Cambridge pode expandir o conceito de atos ilocucionários, questionando a

ênfase que Austin havia posto nas convenções linguísticas e destacando em seu lugar que os

atos ilocucionários são ações que carregam consigo as intenções do autor.7

Apropriando-se dessa sofisticada teoria dos atos de fala, Skinner pretendeu desferir

um duro golpe contra as leituras do pensamento político que procuravam encontrar o sentido

de uma obra exclusivamente no próprio texto, por meio de uma rigorosa investigação do

sentido dos conceitos. Restritas à pesquisa dos atos locucionários, essas investigações teriam

deixado escapulir a dimensão ilocucionária dos atos de fala. Osignificadodeumaafirmação–

7 De acordo com Austin, o ato ilocucionário é “a conventional act; an act done as conforming to a convention” (AUSTIN, 1962, p. 105). Strawson contestou esse postulado afirmando que além dos atos ilocucionários baseados nas convenções linguísticas existiriam outros não-convencionais: In the case of an illocutionary act of a kind not essentially “conventional, the act of communication is performed if uptake is secured, if the utterance is taken to be issued with the complex overt intention with which it is issued” (STRAWSON, 1964, p. 458).

17

ou de um conceito – nãodeveria ser investigado exclusivamente naquilo que

foipronunciado,poiseletambémpossuifontesdeentendimentonaquiloquenãofoi

“verbalizado”,emsua “força ilocucionária”.

Mas para tal seria necessário distinguir as intenções dos motivos do autor. Os motivos

de um autor estariam relacionados aos antecedentes externos e contingentemente conectados

com o aparecimento de uma obra, enquanto as intenções diriam respeito ao plano de criar um

certo tipo de obra, escrita de certa maneira para atingir certo objetivo. Assim, enquanto os

motivos são externos ao autor e a sua obra, as intenções são internas a ambos. De acordo com

Skinner, determinar quais seriam as intenções de um autor ao escrever uma obra seria igual a

determinar o sentido dessa obra, mas a investigação dos motivos que levaram esse autor a

escrevê-la seria irrelevante.

Essa distinção entre motivos e intenções teria um forte impacto epistemológico sobre o

programa de investigação promovido por Skinner. Enquanto a investigação das intenções

permitiria compreender o que um autor entendia e pretendia fazer com determinada obra o

estudo dos motivos levaria a explicar por que um autor escreveu uma certa obra. A

apropriação dessa abordagem por parte de Skinner lhe permitiu revalorizar o papel dos

agentes no pensamento político e ir além da leitura dos textos canônicos. Percebe-se, assim, a

inspiração fortemente weberiana desse programa de pesquisa. Na filosofia da linguagem

Skinner encontrou o que julgou ser as bases para uma hermenêutica para a história das ideias

e uma revalorização do pensamento político. Foi por meio dessa hermenêutica que marcou

distância tanto do positivismo lógico como do materialismo histórico.

Republicanismo como alternativa política

De acordo com Kari Palonen, a crise de Suez, em 1956, teve um impacto profundo

sobre a evolução política de Quentin Skinner e de sua geração. A invasão do Egito pelo

império britânico, sem recorrer ao aval das Nações Unidas, criou um grave precedente na

política externa inglesa e cindiu a opinião pública. Os trabalhistas reagiram de modo

estridente e pela primeira vez na história questionaram uma operação militar inglesa durante

seu próprio curso. Mas os trabalhistas encontravam-se em uma posição delicada. Nos meses

precedentes, liderados por Hugh Gaitskell,haviam condenado abertamente a nacionalização

18

do Canal de Suez e aventado abertamente a possibilidade de uma invasão. O aval das Nações

Unidas parecia ser a única diferença entre conservadores e trabalhistas.8

A crise de Suez está na origem do nascimento da new left britânica. Referindo-se à

geração de jovens intelectuais que se engajavam na new left, E. P. Thompson a descreveu

como: “Uma geração que aprendeu de Belsen e Hiroshima quando ainda estava na escola

primária; e que formou suas impressões da conduta do Ocidente Cristão com os exemplos de

Kenya e Chipre, Suez e Argelia” (THOMPSON, 1959, p. 2). Levantando-se contra os poderes,

as ortodoxias e as instituições estabelecidas, esses jovens associavam-se ao “movimento

socialista”. “Mas seu entusiasmo não é pelo Partido, pelo Movimento, pelos Líderes

Políticos” (THOMPSON, 1959, p. 2). Recusando tanto a socialdemocracia liberal quanto a

ortodoxia comunista, a new left afirmava um programa radical: “A new left é feita de

socialistas revolucionários; mas a revolução que procuram deverá ocasionar não apenas a

conquista do poder estatal mas também seu desmantelamento.” (THOMPSON, 1959, p. 10)

Por essa razão, um contemporâneo atento como Alasdair MacIntyre podia afirmar: “não há

hesitação da parte dos escritores da New Left em rejeitar o reformismo clássico”

(BLACKLEDGE; DAVIDSON, 2008, p. 89).

Uma reconstrução do pensamento político da new left britânica no final dos anos 1950

e início dos anos 1960 deve bastar para revelar a fragilidade da hipótese avançada por Emile

Perreau-Saussine, o qual procurou aproximar Quentin Skinner desse pensamento

(PERREAU-SAUSSINE, 2007). É verdade que a new left repudiava tanto a exaltação whig do

privado, como a crítica proveniente do stalinismo (PERREAU-SAUSSINE, 2007, p. 110). Mas a

new left britânica ia muito além desse repúdio. Recusava, também, o apoio do Labour Party à

Otan, seu compromisso com a corrida nuclear, sua comportada adesão às regras do jogo

parlamentar e abominava a burocracia partidária. Não foi comprovado que Skinner estivesse

disposto a ir tão longe.

Não é fácil estabelecer por meio de documentos as posições políticas do historiador

inglês. Não há registros da atividade política do jovem professor de Cambridge.9 Mas além de

sua explícita e precoce recusa do marxismo e do materialismo histórico, bem como da

8 Sobre o episódio e a política do Labour Party ver (CALLAGHAN, 2007, p. 230-243) e (PHYTHIAN, 2007, p. 49-58)

9Perreau-Saussine reconhece essa dificuldade: “The young Skinner was neither a public figure nor a garrulous writer. In the absence of archival documents, published letters, or memoirs, it is difficult to be more precise.” (PERREAU-SAUSSINE, 2007, p. 121)

19

historiografia whig e do positivismo lógico, recusas essas que não deixam de ter um conteúdo

político, não há sinais mais evidentes de suas opções políticas em suas obras. Estes sinais

começaram a aparecer apenas na década de 1970 e com mais ênfase a pós a publicação de

Foundations of modern political thought, em 1978.

A monumental Foundations of modern political thought foi redigida por Skinner durante

um prolongado estágio no Institute for Advanced Study da Princeton University. É nessa

obra que a que a opção republicana de Skinner começa a se tornar evidente. No primeiro dos

volumes desse monumental estudo, o historiador de Cambridge mostrou todo seu interesse

na particular visão política renascentista de acordo com a qual a política é “a public dialogue

in which it is always possible to argue on both sides of any case”(PROKHOVNIK, 2011, p.

277; SKINNER, 1978). Mais marcante ainda para o desenvolvimento ulterior de suas

pesquisas foi a revalorização do republicanismo associado à vida política das cidades-Estado

do norte da Itália nos séculos XV e XVI, na esteira das descobertas de Hans Baron(1966), Felix

Gilbert (1965)e J. G. A. Pocock(1975). Foi a partir desse estudo que apareceu o pequeno

volume sobre Machiavelli, publicado em 1981, no qual o secretário florentino aparece como

um amante da liberdade e um partidário do governo popular (SKINNER, 1981). O ponto

culminante dessa defesa do republicanismo foram as Tanner Lectures em Harvard, no ano de

1984, e, mais tarde a publicação de Liberty before liberalism, em 1998.

Seria um anacronismo explicar a guinada republicana no pensamento político de

Skinner como uma reação à ascensão de Margareth Thatcher na Inglaterra. Mas parece

bastante plausível a hipótese de que Skinner encontrou no pensamento político republicano

uma importante fonte de inspiração para pensar alternativas à hegemonia neoliberal da qual

Thatcher foi a máxima expressão. A maneira como Skinner articulava a pesquisa história à

polêmica política pode ser vista no artigo que Skinner escreveu em 1984, contestando o

conceito de liberdade negativa exposto por Isaiah Berlin. Conhecido como o Philosopher-in-

Chief do liberalismo, Berlin circulava livremente por Downing Street e era citado e aclamado

no discurso político da dama-de-ferro.

Recorrendo ao pensamento de Machiavelli, Skinner procurou nesse texto demonstrar

como o conceito de liberdade negativa – a liberdade como a ausência de impedimentos –

pedra de toque do pensamento neoliberal poderia ser compatibilizado com os ideais de

virtude e de serviço público que esse mesmo pensamento abominava (SKINNER, 2002c, p.

190). Skinner procurava assim participar do debate político de sua época, mas o fazia na

condição de historiador.

20

Apenas nos últimos anos começou a deixar explícito em algumas entrevistas o nexo

existente entre sua pesquisa histórica e o debate político, assumindo que sua obra também

tinha um caráter fortemente político.10Os temas sobre os quais demonstrou preocupação são

aqueles que caracterizaram a hegemonia neoliberal: a desregulamentação do mercado de

trabalho, a derrota dos sindicatos, a repressão policial, a concentração de poderes no

Executivo. 11 E para estes males liberais a receita que ofereceu foi sempre a mesma: o

fortalecimento de instituições republicanas, o controle dos governantes pelos cidadãos e a

descentralização do poder.

Parece um exagero associar essa tímida alternativa republicana à trajetória da new left

inglesa, como procurou fazer Emile Perreau-Saussine(2007, p. 110, 117, 120 e 122). A new left,

desde suas origens, sempre andou às turras com os trabalhistas e a socialdemocracia

europeia. Criticou-lhes a falta de ousadia, seu apego ao establishment parlamentar, sua

política belicista e sua automoderação. E principalmente, a new left nunca deixou de afirmar

uma identidade socialista.12 Skinner, por sua vez, nunca pareceu afastar-se muito da política

trabalhista, advogando uma renovação republicana desta ao invés de sua superação. Além do

10Em uma entrevista publicada em 2008, Skinner afirmou: “Of recent years I have become increasingly anxious about the anti-democratic direc- tion being followed in the politics of my own country. As a result, my recent work has, as you rightly note, probably slipped in the direction of becoming more political and perhaps too political in character.”(SEBASTIÁN, 2007, p. 119)

11 “The more I observe the operations of the labour market under de-unionised conditions, and the more I read about the extent of domestic violence in our society, the more it seems to me that we need to place far more emphasis on the republican insight that living in dependence on the will of others serves in itself to undermine our liberty. I also believe that if in the United Kingdom we were to take this claim seriously, we would come to see that our present constitutional arrangements are urgently in need of reform. (...) Currently, there are no democratic controls over who becomes Prime Minister: it remains possible simply to succeed to the job. Nor are there any democratic controls over the Prime Minister’s power to form a government: the elected representatives of the people have no say in the making of ministerial appointments at any stage. Furthermore, the Prime Minister as head of the executive has charge of the royal prerogative, which embodies many discretionary powers surviving from pre-democratic days. Some of these stem from the duty of the crown to guard the boundaries of the realm. They currently include the right to grant and withhold passports, to expel foreign nationals, to prevent them from entering the country, and to judge whether the country is in a state of emergency. Others stem from the historic right of the crown to regulate relations with other states. These include the right to deploy the armed forces, to ratify the terms of treaties and until recently to declare war and peace. What the republican theory of liberty tells us is that, to the extent that we lack democratic control in these areas, we lack political liberty.”(PROKHOVNIK, 2011, p. 279-280)

12Ver por exemplo o livro manifesto Out of apathy(THOMPSON, 1960) ou a devastadora crítica de Ralph Miliband (1961).

21

mais, o anacronismo é evidente. Quando Skinner avançou sua plataforma republicana no

começo dos anos 1980, a new left era um pálido espectro e as alternativas políticas presentes

na esquerda britânica eram outras, algumas muito mais radicais.

Referências bibliográficas

ANKERSMIT, F. R. History and tropology : the rise and fall of metaphor. Berkeley: University of California Press, 1994. AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 1962. BARON, Hans. The crisis of the early Italian Renaissance : civic humanism and republican

liberty in an age of classicism and tyranny. Rev. 1 vol. with an epilogue. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1966. BELL, Daniel. The end of ideology : on the exhaustion of political ideas in the fifties. Glencoe, Ill.: Free Press, 1960. BENTLEY, Michael. The Life and Thought of Herbert Butterfield: History, Science and

God. Cambridge: Cambdidge university, 2011. BLACKLEDGE, Paul; DAVIDSON, Neil (eds.). Alaisdair MacIntyre's engagement with

Marxism. Selected writings 1953-1974. Leiden: Brill, 2008. BUTTERFIELD, Herbert. Christianity nd History. London: Collins, 1960. ______. The Statecraft of Machiavelli. New York: Macmillan, 1962. ______. The Whig Interpretation of History. London: Norton, 1965 [1931]. CALLAGHAN, John. The Labour Party and foreign policy : a history. London ;New York: Routledge, 2007. DANTO, Arthur Coleman. On Explanations in History. Philosophy of Science, v. 23, n. 1, p. 15-30, 1956.

22

DONAGAN, Alan. The Verification of Historical Theses. The Philosophical Quarterly, v. 6, n. 24, p. 193-208, 1956. ______. Explanation in History. Mind, v. 66, n. 262, p. 145-164, 1957. ______. Historical Explanation: The Popper-Hempel Theory Reconsidered. History and

Theory, v. 4, n. 1, p. 3-26, 1964. DRAY, William. Laws and Explanation in History. London: Oxford University, 1957. FORBES, Duncan. The Liberal Anglican idea of History. Cambridge: Cambridge University, 1952. GALLIE, W. B. The historical understanding. History and Theory, v. 3, n. 2, p. 149-202, 1963. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini; politics and history in sixteenth-century

Florence. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1965. HEMPEL, Carl G. The function of gernal laws in history. The Journal of Philosophy, v. 39, n. 2, p. 35-48, 1942. LASLETT, Peter. Introduction. In: (Ed.). Locke. Two Teatises of Government Camrbidge: Cambridge University, 2003 [1960]. p. 3-125. LASLETT, Peter (ed.). Philosophy, politics and society; a collection. Oxford: Blackwell, 1956. MACPHERSON, C. B. The political theory of possessive individualism : Hobbes to Locke. Oxford: Clarendon Press, 1962. ______. The life and times of liberal democracy. Oxford [Eng.] ;New York: Oxford University Press, 1977. MANDELBAUM, Maurice. Historical Explanation: The Problem of 'Covering Laws'. History

and Theory, v. 1, n. 3, p. 229-242, 1961. MILIBAND, Ralph. Parliamentary socialism; a study in the politics of labour. London: Allen & Unwin, 1961.

23

PALONEN, Kari. Quentin Skinner: History, Politics, Rethoric. Cambridge: Polity, 2003. PERREAU-SAUSSINE, Emile. Quentin Skinner in Context. The Review of Politics, v. 69, n. 01, p. 106-122, 2007. PHYTHIAN, Mark. The Labour Party, war and international relations, 1945-2006. London ;New York: Routledge, 2007. POCOCK, J. G. A. The ancient constitution and the feudal law, a study of English historical

thought in the seventeenth century. New York: Norton, 1967. ______. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic

republican tradition. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1975. ______. Political thought and history: essays in theory and method. Cambridge: Cambridge University, 2009. POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery. London: Routledge, 2002 [1935]. POPPER, Karl R. The open society and its enemies. London: G. Routledge & Sons, Ltd., 1945. PROKHOVNIK, Raia An interview with Quentin Skinner. Contemporary Political Theory v. 10, n. 2, p. 273–285, 2011. SEBASTIÁN, Javier Fernández. Intellectual history, liberty and republicanism: An interview with Quentin Skinner. Contributions to the History of Concepts, v. 3, n. 1, p. 103-123, 2007. SKINNER, Quentin. Hobbes' "Leviathan". The Historical Journal, v. 7, n. 2, p. 321-333, 1964. ______. The limits of historical explanations. Philosophy, v. 41, n. 157, p. 199-215, 1966. ______. The foundations of modern political thought. Cambridge ;New York: Cambridge University Press, 1978. ______. Machiavelli. Oxford ;New York: Oxford University Press, 1981.

24

______. Meaning and understanding in the history of ideas. In: TULLY, James (Ed.). Meaning

and context: Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University, 1988. p. 30-67. ______. On encountering the past. An interview with Quentin Skinner by Petri Koikkalainen and Sara Syrjämäki. Finish Yearbook of Political Thought, n. 6, p. 34-63, 2002a. ______. Visions of politics: Regarding method. Cambridge: Cambridge University, 2002b. ______. Visions of politics: Renaissance virtues. Cambridge: Cambridge University, 2002c. STRAUSS, Leo. What is Political Philosophy. Chicago: The Univesity of Chicago, 1988. ______. What can we learn from political theory? The Review of Politics,, v. 69, n. 4, p. 515-529, 2007 [1942]. STRAWSON, P. F. Intention and convention in speech acts. The Philosophical Review, v. 73, n. 4, p. 439-460, 1964. THOMPSON, E. P. The new left. The New Reasoner, n. 9, p. 1-17, 1959. THOMPSON, E. P. ed. Out of apathy. London: Stevens, 1960. TULLY, James. Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University, 1988. WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical nvestigations. 2nd. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009 [1953].