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1. INTRODUÇÃO A preocupação com a saúde e a busca de tratamentos eficazes para a obtenção da cura sempre foi uma grande preocupação da humanidade, em todos os tempos A ciência da saúde evoluiu de forma muito rápida, principalmente na segunda metade do século XX. Ficou mais fácil tratar e curar muitas doenças que no passado eram consideradas fatais, como as infecções, por exemplo, graças à descoberta de antibióticos poderosos. Porém quando a doença atinge um órgão humano vital e o mesmo deixa de funcionar, a única possibilidade de cura do paciente passa a ser o transplante. Hoje em dia, se por um lado as técnicas de transplante possibilitam uma significativa melhora na qualidade de vida do paciente, principalmente com a descoberta de drogas que inibem a rejeição do organismo ao órgão transplantado, que considera invasor 1 [1], por outro lado não há oferta de órgãos suficientes para atender a todos os pacientes que se encontram na fila de espera, havendo um evidente desequilíbrio entre a demanda e a oferta, problema que é ainda agravado pelo fato de que tais pacientes não dispõem de tempo suficiente para aguardar o transplante, e muitas vezes a morte chega antes da oportunidade de realizá-lo. Com o surgimento de um potencial doador de órgãos, uma série de outros problemas, de ordem médica, jurídica, ética passam a constituir obstáculos para o paciente possa ser 1

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 1. INTRODUÇÃO

  

A preocupação com a saúde e a busca de tratamentos eficazes para a obtenção da

cura sempre foi uma grande preocupação da humanidade, em todos os tempos A ciência

da saúde evoluiu de forma muito rápida, principalmente na segunda metade do século

XX. Ficou mais fácil tratar e curar muitas doenças que no passado eram consideradas

fatais, como as infecções, por exemplo, graças à descoberta de antibióticos poderosos.

Porém quando a doença atinge um órgão humano vital e o mesmo deixa de funcionar, a

única possibilidade de cura do paciente passa a ser o transplante.

Hoje em dia, se por um lado as técnicas de transplante possibilitam uma

significativa melhora na qualidade de vida do paciente, principalmente com a

descoberta de drogas que inibem a rejeição do organismo ao órgão transplantado, que

considera invasor1[1], por outro lado não há oferta de órgãos suficientes para atender a

todos os pacientes que se encontram na fila de espera, havendo um evidente

desequilíbrio entre a demanda e a oferta, problema que é ainda agravado pelo fato de

que tais pacientes não dispõem de tempo suficiente para aguardar o transplante, e muitas

vezes a morte chega antes da oportunidade de realizá-lo.

Com o surgimento de um potencial doador de órgãos, uma série de outros

problemas, de ordem médica, jurídica, ética passam a constituir obstáculos para o

paciente possa ser beneficiado com o transplante. Quando se trata de transplantes inter

vivos as dificuldades são menores, porque a pessoa doadora tem condições de

manifestar o seu consentimento e acompanhar todas as etapas do procedimento de

remoção e transplante, embora mesmo nesse caso existam problemas éticos que

precisam ser enfrentados. No entanto, as dificuldades e os questionamentos de ordem

ética se avolumam quando se pretende a realização do transplante a partir de um doador

cadáver, denominada remoção post mortem.

Surgem, com a morte da pessoa humana, diversos questionamentos éticos,

muitos dos quais solucionados pelo próprio texto legal. A partir de que momento é

possível a remoção dos órgãos ? Como se constata a morte ? O médico que faz o

diagnóstico da morte pode participar da remoção e do transplante ? A quem pertence o

cadáver ? Quem pode autorizar a remoção dos seus órgãos ? Como se processa a

obtenção dessa autorização ? Pode haver compra dos órgãos de pessoa viva ou

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falecida ? A gravidade da doença, a urgência, justifica a desrespeito ao critério da ordem

cronológica, ou seja, a quebra da fila de transplante ? A remoção rotineira de órgãos de

pessoas falecidas se justifica eticamente ?

Os progressos da ciência em todos os campos, principalmente na área médica, ao

tempo em que proporciona ao indivíduo uma série de benefícios, também lhe retira uma

significativa parcela de sua liberdade individual, o que torna necessário a imposição de

limites, papel que cabe, em parte, à conduta ética dos profissionais envolvidos no

processo. Surgiu, dessa forma, um novo ramo do conhecimento humano, que é a

bioética, que “consiste no estudo sistemático da conduta humana no âmbito das

ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e

princípios morais” (JUNGES 1999, p. 15).

A proposta do presente trabalho é abordar essas e outras questões, relacionadas

com a ética nos transplantes. Porém, antes de adentrarmos propriamente ao tema, para

uma melhor compreensão, é necessária a fixação de alguns conceitos.

 

 

2. CONCEITO DE TRANSPLANTES E SUJEITOS

 

 

A matéria relativa aos transplantes de órgãos é regulada pela Lei Federal n.º

9.434, de 04 de fevereiro de 1997.

O termo transplante é empregado pela lei que regula a matéria, no sentido de

retirada ou remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo de um ser humano, vivo ou

morto (doador), para aproveitamento, com finalidade terapêutica, no mesmo ou em

outros indivíduos da mesma espécie (receptor).

O sujeito ativo ou doador: é o indivíduo que consente na retirada de órgãos,

tecidos ou partes de seu corpo, para fins de transplantes.

O Sujeito passivo ou receptor: é o indivíduo que recebe tecidos, órgãos ou

partes do corpo humano. É a pessoa que se busca favorecer com a liberalidade, com a

intenção de salvar ou melhorar a sua condição de vida.

O Sujeito interveniente: é o médico e sua equipe. Pela Lei nº 9.434/97, a

realização de transplantes somente poderá ser realizada por estabelecimentos de saúde, e

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por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante, previamente autorizadas pelo

órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde2[2].

Órgão é definido como sendo “cada uma das partes de um organismo animal ou

vegetal, que exerce uma função definida” (PACIORNIK, 1978, p. 402). A lei inglesa

sobre transplante (Human Organ Transplants Act 1989) define órgão como sendo

qualquer parte do corpo humano, que consiste num conjunto estruturado de tecidos, os

quais, se removidos na totalidade, não podem ser reconstituídos pelo corpo

(CARDOSO, 2002, p.115).

Por tecido se deve entender o “grupo de células e seus derivados, especializadas

no mesmo sentido e associadas, com o fim de realizarem uma ou mais funções

específicas” (PACIORNIK, 1978, p. 504). São exemplos, o tecido epitelial, sangüíneo,

muscular, nervoso, etc.

Fica, assim, concluída a fixação da etimologia da expressão transplante, bem

como uma breve explicação dos significados dos termos órgão e tecido, permitindo,

dessa forma, uma melhor compreensão do tema objeto do estudo.

 

3. TRANSPLANTES INTER VIVOS E POST MORTEM - ESPÉCIES

 

 

A Lei de Transplantes disciplina a remoção e transplante de tecidos, órgãos e

partes do corpo humano de pessoa viva, denominado inter vivos, bem como do corpo de

pessoas já falecidas, denominado post mortem.

Do transplante post mortem, trata o artigo 3.º, com a seguinte redação:

 

Art. 3.º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo

humano, destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida

de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois

médicos não participantes das equipes de remoção e transplante,

mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos

por resolução do Conselho Federal de Medicina.

 

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O artigo 9.º, da Lei de transplantes, prevê a hipótese de remoção e transplante

com doador vivo – é o chamado transplante inter vivos:

 

Art. 9.º É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor

gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo

para fins de transplante ou terapêuticos.

Para cada uma dessas espécies, há normas específicas, e procedimentos éticos a

serem adotados pelos profissionais envolvidos no processo de remoção e transplante de

órgãos, tecidos e partes do corpo humano, como se verá.

A doutrina concebe as seguintes espécies de transplantes: autotransplantes,

isotransplantes, homotransplantes e heterotransplantes. Para explicar os significados

desses termos, recorre-se aos ensinamentos do Professor ATUALPA P. DOS REIS

(1971, p. 367-372):

 

1) Autotransplantes – quando o tecido é tomado do próprio animal – é

o exemplo de transplante de pele em queimaduras, quando se retira

uma faixa de pele vitalizada para colocar em lugar da que sofreu

queimadura.

2) Isotransplantes (isogênico e singênico) – quando o tecido

transplantado vem de outro animal da mesma espécie e relacionado

geneticamente – é o exemplo do tecido transplantado entre dois

camundongos de inbred strain.

3) Homotransplantes (alogênicos) – quando o tecido vem de outro

animal da mesma espécie, porém não relacionado geneticamente.

4) Heterotransplantes (xenogênico) – quando o transplante é realizado

entre animais de espécies diferentes.”

No autotransplante, que ocorre quando se transplantam tecidos colhidos do

organismo da mesma pessoa, como ocorre nas pontes de safena, não há maiores

preocupações do ponto de vista da ética, porque há uma sujeição da parte ao todo. O

princípio que norteia essa espécie de transplante é o princípio da totalidade, que pode

ser enunciado da seguinte maneira: cada parte do membro, órgão ou função pode ser

sacrificado em benefício do corpo, desde que seja útil e benéfico à integralidade do

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organismo. Basta ao médico tomar o cuidado de obter o consentimento informado do

paciente.

Da mesma forma, não oferecem problemas ou objeções de ordem ética, a

transplantação heteróloga ou xenotransplantação, em que o doador do tecido ou órgão é

de espécie diferente da do receptor, como, por exemplo, a utilização de tecidos e órgãos

de animais. Por força de costumes seculares, os animais são colocados a serviço do

homem, legitimando-se seu sacrifício, desde que não haja crueldade, com o objetivo de

salvar uma vida humana ou melhorar as condições de vida. É claro que deve haver uma

fundamentada esperança de sucesso no transplante, não sendo motivado o ato por

simples experimentação, além do mais é preciso tomar a precaução de preparar

psicologicamente o receptor para que possa conviver com um órgão heterólogo em seu

organismo.

Os isotransplantes e os homotransplantes suscitam maiores questionamentos de

ordem ética, porque nessas espécies de transplante os tecidos e órgãos, ou partes destes,

são retirados ou removidos de indivíduos da mesma espécie, ou seja, o doador e o

receptor são pessoas diferentes. No isotransplante doador e receptor apresentam

caracteres hereditários, genéticos, idênticos, como, por exemplo, transplante entre

gêmeos monovulares ou univitelinos. No homotransplante, doador e receptor

apresentam caracteres hereditários, genéticos, diferentes. É o mais comum. Mais

adiante, serão abordados os cuidados de ordem ética que essas espécies de transplantes

exigem, à luz da Lei nº. 9.434/97 – Lei de Transplantes.

 

 

4. OS TRANSPLANTES E AS RELIGIÕES: CIÊNCIA E RELIGIÃO

 

 

Nem sempre os progressos científicos na área da medicina são bem recebidos

pelas doutrinas religiosas. Os experimentos científicos na área da clonagem, a pesquisa

envolvendo embriões humanos, por exemplo, são rejeitados pela maioria das religiões.

Há um antigo conflito entre a ciência e a religião, começando pelo fato de que a maioria

dos cientistas não acredita em Deus. Pesquisa realizada em 1997 por Edward Larson e

Lerry Witham, na revista Nature, revela que cerca de 39% dos cientistas pesquisados

crêem em algum deus, 45% não crêem e 15% têm dúvida ou são agnósticos, sendo que

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os mais novos são os líderes em ceticismo. Mário Eugênio Saturno, pesquisador do

INPE, em entrevista ao Instituto Metodista de Ensino Superior, disse acreditar que a

religião não é uma detentora de verdades científicas e diz que até o papa vem

promovendo, desde 1988, encontro entre cientistas e religiosos para abordar a questão

da religião e da ciência. Diz “o campo da religião é o da moral e ética. Tem na fé um

propósito para a vida humana. Se não houver uma ética regendo os cientistas, viveremos

um caos”. E prossegue: cada um tem sua função e seu espaço a ser preenchido. Cabe à

religião questionar os valores humanos e à sociedade escolher qual valor deve seguir. A

religião só se torna um problema quando seus seguidores se julgam os donos da verdade

e da ética” (SATURNO, 2005).

O conflito entre a ciência e a religião é antigo. A busca por explicação científica

para fenômenos que a religião sempre explicou através da fé nunca foi bem aceita pelos

religiosos. O cientista Marcelo Gleiser (GLEISER, 1997, p. 39-40) explica que a questão

somente pode ser pacificada a partir do momento em que a religião passar a se

preocupar mais com o mundo espiritual do que com o mundo natural, enquanto que a

ciência deve se preocupar mais com os questionamentos e as investigações do mundo

natural, respeitando, a ciência e a religião, os espaços que lhes são reservados:

 

 

À medida que um número maior de fenômenos naturais passou a ser

compreendido cientificamente, a religião lenta e forçosamente passou

a se preocupar mais com o mundo espiritual do que com o mundo

natural. Essa “divisão de águas” entre ciência e religião se deu de

forma bem dramática, conforme veremos adiante. Na verdade, esse

drama continua a se desenrolar ainda hoje, devido à aplicação errônea

tanto de ciência em debates teológicos como de religião em debates

científicos.

(...)

O debate entre ciência e religião restringe-se na maior parte

das vezes à discussão de sua mútua compatibilidade: será possível que

uma pessoa possa questionar o mundo cientificamente e ainda assim

ser religiosa ? Acredito que a resposta é um óbvio sim, contanto que

seja claro para essa pessoa que ambas não devem interferir entre si de

modo errado, ou seja, que existem limites tanto para a ciência como

para a religião. Cientistas não devem abusar da ciência, aplicando-a a

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situações claramente especulativas, e, apesar disso, sentirem-se

justificados em declarar que resolveram ou que podem resolver

questões de natureza teológica. Teólogos não devem interpretar textos

sagrados cientificamente, porque estes não foram escritos com este

objetivo”.

 

No entanto, hoje em dia, quase todas as religiões admitem o transplante de

órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, para fins de tratamento, porque todas têm

em comum os princípios da solidariedade e do amor ao próximo, que caracterizam o ato

de doar, deixando ao critério dos seguidores a decisão de serem doadores ou não.3[3]

O catolicismo aceita a doação de órgãos, como se pode constatar da mensagem

feita pelo Papa João Paulo II aos participantes do XVIII Congresso Internacional de

Transplantes, realizado em Roma, em agosto de 2000:

 

“Os transplantes são um grande avanço da ciência a serviço do

homem e não são poucas aquelas pessoas que hoje devem suas vidas a

um transplante de órgãos. A técnica de transplantes tem se afirmado

progressivamente como um instrumento válido para atingir o principal

objetivo de toda a Medicina – servir a vida humana. Por essa razão,

em minha Carta Encíclica Evangeliumm Vitae, sugeri que um modo

de nutrir a genuína cultura da vida “é a doação de órgãos, realizada de

um modo eticamente correto, com uma perspectiva de proporcionar a

recuperação da saúde, e até mesmo da vida, a doentes que algumas

vezes não têm outra esperança” (nº 86)”

 

O islamismo4[4] também não rejeita os transplantes, por ser considerada a

religião da misericórdia. O islã dá ênfase à salvação de vidas (Alcorão 5:32). Para o

Sheik Aly Abdoune, presidente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica da

América Latina (WAMY) diz que “a religião islâmica aceita e incentiva a doação de

órgãos, após a morte do indivíduo, desde que haja permissão do doador e da família e

que a doação não ocorra por comércio”.5[5]

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4

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O hinduísmo6[6] também não se opõe ao transplante de órgãos, pois, segundo os

Brahmanistas “uma pessoa se torna boa por atos bondosos e má por atos malévolos”

(LEITE, 2005).

Da mesma forma, o judaísmo7[7] não se opõe à doação de órgãos. Para a religião

judaica há a exigência de que na remoção de órgão efetivada em cadáver, a morte tenha

sido determinada de acordo com o Halachá8[8]. O Professor Sami Goldstein,

reproduzindo o pensamento do Rabino Henry I. Sobel, entende que deve ser apoiada a

decisão da família de doar os órgãos, pois “nada mais judaico que salvar uma vida,

dando aquilo que não mais nos serve àqueles que darão continuidade a sua existência”.

Ressalva, entretanto, que a doação de órgãos “é permitida desde que o receptor os

receba imediatamente e seja conhecida a sua identidade. Isso porque, doando-se os

órgãos a um banco de órgãos, teme-se que os mesmos não sejam aproveitados”.9[9]

Como se viu, as religiões não rejeitam o ato médico de transplante de órgãos,

tecidos e partes do corpo humano, pois a solidariedade e o amor ao próximo são

princípios inerentes a todas as religiões, tanto que um dos mandamentos sagrados

determina que se de deve amar ao próximo como a si mesmo, e nada é mais

representativo desses princípios do que a doação de parte do próprio corpo, ou do corpo

de um ente querido falecido, para salvar a vida do próximo.

 

 

5. ASPECTOS ÉTICOS DOS TRANSPLANTES

 

Para Barton & Barton, a ética está representada por um conjunto de normas que

regulamentam o comportamento de um grupo particular de pessoas, como, por exemplo,

advogados, médicos, psicólogos, psicanalistas etc., pois é comum que esses grupos

tenham o seu próprio código de ética, normatizando as suas ações específicas (apud

COHEM & SEGRE, 1999, p. 17).

ZUENIR VENTURA, falando sobre o “Renascimento da Ética”, na Revista do

Provão (n. 4, p. 7, 1999), apontou que :

6

7

8

9

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Uma das descobertas positivas deste tumultuado fim de milênio

é a consciência de que, sem princípios normativos, instaura-se o reino

da entopia e do caos, a civilização dá lugar à barbárie. A ética não é,

portanto, uma abstração acadêmica, mas uma das maneiras de ajudar

a preservação não só das profissões, como da espécie.

 

Realmente, nunca se ouviu falar tanto em ética como nesse final de milênio. E

tem razão o autor, quando sustenta que essa tomada de consciência objetiva ajudar na

preservação da própria espécie, na medida em que a intervenção na esfera particular do

ser humano nunca foi tão intensa como nos dias atuais.

E o que se deve entender por ética ? Maria Celeste Cordeiro Leite Santos define

ética, em sentido restrito, como sendo “a ciência do dever moral” (SANTOS, 1992, p.

233). De Plácido e Silva explica a origem do vocábulo, bem como o que se deve

entender por ética profissional:

 

ÉTICA. Derivada do grego `éthikos´, é definida como a ciência da

moral. Mas, na terminologia da técnica profissional, é o vocábulo

usado, sob a expressão ética profissional, para indicar a soma de

deveres, que estabelece norma de conduta do profissional no

desempenho de suas atividades e em suas relações com o cliente e

todas as demais pessoas com quem possa ter trato. Assim, estabelece a

pauta de suas ações em todo e qualquer terreno, onde quer que venha a

exercer suas profissão. Em regra, a ética profissional é fundada no

complexo de normas, estabelecidas pelos usos e costumes. Mas, pode

ser instituída pelos órgãos, a que se defere a autoridade para dirigir e

fiscalizar a profissão (DE PLÁCIDO E SILVA, 1996).

O Papa João Paulo II, falando aos participantes do XVIII Congresso

Internacional de Transplantes, em 29 de agosto de 2000, em Roma, enfatizou que “todo

transplante de órgão origina-se de uma decisão de grande valor ético”. Não há como

negar que o transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, embora seja um

problema eminentemente técnico, afeto às ciências médicas, traz questionamentos de

ordem ética, que não se situam na intervenção cirúrgica considerada em sim mesma,

mas nos aspectos sociais e pessoais que circundam esse ato, tais como o consentimento

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prévio e esclarecido do doador e do receptor, o estabelecimento de critérios para a

determinação da morte, a vedação de comercialização, dentre outros.

No que concerne aos transplantes, diversas regras éticas devem ser observadas.

Cite-se, como as mais importantes, as seguintes:

 

 

5.1) transplante como último recurso terapêutico

 

 

Segundo a Lei de Transplantes (Lei nº 9.434/97), em seu artigo 9º, § 3º, parte

final, o transplante deve corresponder a uma necessidade terapêutica indispensável à

pessoa receptora, ao paciente.

O transplante, por se tratar de operação que oferece um risco muito acentuado

para o paciente, constitui recurso de que poderá se valer o médico somente quando for a

única alternativa para o paciente, ou seja, quando não houver nenhuma outra

possibilidade de tratamento. Esse método terapêutico não pode ser utilizado senão

depois de esgotadas todas as outras alternativas viáveis de tratamento do paciente.

O desrespeito a essa regra é prejudicial para todos. Não coloca em risco somente

o receptor, mas também o doador vivo, nesse caso com a agravante de que a remoção do

órgão, tecido ou parte do seu corpo poderia ser evitada, caso uma outra técnica viável

tratamento fosse anteriormente aplicada, ao invés de recorrer-se de imediato ao

transplante. Quanto ao doador cadáver, outra pessoa poderia ser beneficiada.

 

 

5.2) necessidade de consentimento do doador e do receptor

 

 

Outro aspecto a ser observado pelos profissionais envolvidos no processo de

remoção e transplante de órgãos tecidos ou partes do corpo humano, e que legitima o

ato médico, é a necessidade da obtenção do consentimento, tanto do doador quanto do

receptor. O Código de Ética Médica, nos artigos 46 e 48, veda ao médico efetuar

qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do

paciente ou de seu responsável legal.10[10] No que concerne ao transplante, a

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necessidade do consentimento informado do receptor consta do artigo 10, da lei

9.434/97.11[11] O consentimento deverá ser outorgado de forma expressa e por escrito.

Consentimento significa “manifestação de vontade, séria e definitiva, em

virtude da qual a pessoa, concordando com os desejos de outrem, vincula-se à obrigação

ou obrigações, que servem de objeto ao ato jurídico ou ao contrato firmado entre elas”.

(DE PLÁCIDO E SILVA, 1984, p. 520).

O Papa João Paulo II, na mensagem passada aos participantes do XVIII

Congresso Internacional de Transplantes, realizado em Roma, ressaltou a importância

do consentimento e o seu valor ético:

 

...Esse primeiro ponto traz uma conseqüência imediata de grande significado

ético: a necessidade do consentimento informado. A `autenticidade´ humana

de gesto tão decisivo requer que os indivíduos estejam adequadamente

informados sobre os processos envolvidos, para que possam exprimir seu

consentimento ou negar de um modo livre e consciente. O consentimento de

familiares tem sua própria validade ética na ausência de uma decisão por

parte do doador. Naturalmente que um consentimento análogo deve ser

fornecido pelos receptores de órgãos doados.”

 

A respeito da necessidade do consentimento da pessoa, ou da família, como

condição para a remoção de tecidos, órgãos e partes do corpo da pessoa, para depois de

sua morte, existem vários sistemas possíveis, alguns em vigor em determinados países,

a saber:

a) remoção compulsória: por esse sistema, é possível a remoção de tecidos,

órgãos e partes do corpo da pessoa, após a sua morte, sem a necessidade de autorização

da família. Formalmente, nenhum país adota esse sistema, embora existem registros na

literatura de casos, na China, envolvendo prisioneiros condenados à morte.

b) consentimento presumido forte: por esse sistema, se a pessoa não registrou a

sua condição de não-doador, quando em vida, presume-se que seja doador,

independentemente da vontade da família. É o sistema adotado na Áustria.

c) consentimento presumido fraco: prevê que na ausência de objeção da pessoa,

em vida, quanto à remoção de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo, para depois de sua

morte, bem como ante a ausência de oposição de seus familiares, presume-se que existe

o consentimento para a doação. Bélgica, Itália e França adotam esse sistema.

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O consentimento presumido tem a vantagem de evitar que a família da pessoa

falecida tenha que tomar a decisão sobre a doação ou não dos órgãos do ente querido

falecido em um momento emocional complicado, em razão do luto, sofrimento,

ansiedade, e até confusão mental. Para ser eticamente aceitável essa forma de

consentimento, necessário se faz que a lei seja de conhecimento de toda a população,

que haja facilidade para a manifestação da oposição à condição de doador, e que seja

respeitada a decisão individual.

d) decisão obrigatória: impõe que todas as pessoas adultas e capazes decidam se

são ou não doadores de tecidos, órgãos e partes do corpo, para depois de sua morte.

Essa decisão é registrada em documento de identidade ou na carteira de habilitação.

Por esse sistema é a pessoa quem decide, e não a família, mas é criticado por

muitos por ser coercitivo e por implicar em invasão de privacidade.

e) decisão registrada voluntária: nessa modalidade, as pessoas têm a

oportunidade de decidir se são ou não doadoras, e registrar a decisão que tomar. O

registro, informatizado, é consultado apenas depois de sua morte. Se não houver

registro, competirá à família decidir. A diferença em relação ao sistema do registro

obrigatório consiste em que nessa modalidade, não existe a imposição do registro.

f) consentimento informado: por esse sistema, a remoção de tecidos, órgãos ou

partes do corpo de uma pessoa falecida somente será possível se houver consentimento

da pessoa em vida e ou dos familiares, após a morte. É o sistema nos Unidos, Inglaterra

e Canadá.

Atualmente, no Brasil, prevalece a decisão da família. O consentimento

presumido, desde que não consignada a condição de não doador na carteira de

identidade ou de motorista, que vigorava quando da publicação da Lei nº 9.434/97, não

mais vigora. Ainda que dos referidos documentos conste a informação de que a pessoa é

doadora, quando de sua morte, a família deve ser consultada. Nessa decisão, a família é

soberana. Só existe a possibilidade de doação se na hora a família autorizar.

Deverá haver anuência expressa do receptor do órgão, ou seja, do paciente. Para

que essa anuência possa ser válida, do ponto de vista ético, o profissional deverá

informar o paciente de todos os riscos atuais e futuros que o procedimento oferece.

Essas informações deverão ser prestadas de forma clara e precisa, em linguagem

absolutamente compreensível para o doente, considerando a sua condição social e

intelectual.

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O paciente, nesse caso, poderá recusar o tratamento. Aliás, essa regra passou a

integrar de forma expressa o novo Código Civil Brasileiro, cujo artigo 15 preceitua:

“ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico

ou a intervenção cirúrgica”.

Em se tratando de doador vivo (transplante inter vivos), exige a lei que o mesmo

seja juridicamente capaz , salvo na hipótese de transplante de medula óssea, caso em

que os pais ou responsáveis deverão autorizar (art. 3.º, § 6.º). O doador não poderá ser

gestante, salvo em se tratando também de transplante de medula, e desde que não

ofereça risco à sua saúde ou a do feto.

Esse consentimento deverá ser também informado, ou seja, o profissional

responsável pela cirurgia de remoção deverá prestar ao doador, também de forma clara e

compreensível, segundo a sua condição social, todas as informações acerca dos riscos

do procedimento e das seqüelas que poderão advir. Esse requisito reveste-se de grande

importância ética, constando expressamente do Código de Ética Médica.12[12]

A doação de órgãos de pessoa viva somente é possível nas hipóteses do art. 9.º,

§ 3.º, da Lei de Transplantes, ou seja, quando se tratar de órgãos duplos, de partes de

órgãos (fígado, por exemplo), tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o

doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave

comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou

deformação inaceitável.

Inicialmente, a Lei de Transplantes adotou o sistema do consentimento

presumido, transformando todos os brasileiros capazes em doadores presumidos,

prevendo a possibilidade da remoção dos órgãos e tecidos e partes do corpo na hipótese

de não ter o falecido, quando em vida, manifestado oposição expressa. A oposição

poderia ser feita mediante anotação na Cédula de Identidade, Carteira Nacional de

Habilitação, ou ainda Carteira Profissional, da expressão “não doador de órgãos e

tecidos”. A manifestação de vontade poderia ser reformulada a qualquer momento.

Tratava-se de uma retirada compulsória de órgãos e tecidos humanos, o que é

eticamente inaceitável, porque a doação é, antes de tudo, um ato de solidariedade, de

autruísmo, e jamais poderia resultar de uma imposição.

Entretanto, por questões de ética, os médicos jamais concordaram em retirar os

órgãos e tecidos dos falecidos que não haviam manifestado oposição, sem o

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consentimento da família. Nesse caso, a ética médica se impôs à Lei Federal de

transplantes, que acabou sendo modificada no ano de 2001.

A doação post mortem deve resultar, sempre, de liberalidade e não de presunção

legal. Esse é o pensamento da sociedade brasileira, que levou à reformulação da

legislação. Atualmente, o artigo 4º, da Lei nº 9.434/9713[13], com a redação que lhe deu

a Lei nº 10.211/2001, prevê a necessidade de autorização do cônjuge ou de parente,

maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau

inclusive, cuja autorização deve ser firmada em documento subscrito por duas

testemunhas presentes à verificação da morte. Assim, o consentimento deve ser dado,

em primeiro lugar, pelo cônjuge. Na falta ou impossibilidade do cônjuge em consentir, o

consentimento deverá ser prestado pelos filhos, depois netos (linha sucessória reta

descendente), sendo que na falta ou impossibilidade destes, o consentimento deve ser

buscado junto aos pais e depois avós (linha sucessória reta ascendente) e, finalmente, na

falta ou impossibilidade de obtenção do consentimento junto aos descendentes e

ascendentes, deve-se recorrer aos colaterais até o segundo grau (irmãos).

 

 

 

5.3) gratuidade do ato de disposição

 

O artigo 199, § 4.º, da Constituição Federal veda a comercialização de órgãos,

tecidos e substâncias humanas.14[14] O artigo 16 da Lei de Transplante considera crime

a realização de transplante utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano obtidos

em desconformidade com a lei, prevendo pena de reclusão, de um a seis anos.

O corpo humano é considerado um bem fora do comércio ou fora do

mercado. Esse é um princípio adotado na quase totalidade das nações. No entanto, o

comércio ilegal de órgãos é uma realidade degradante e cada vez mais presente na

realidade. No Brasil, embora vedado expressamente pela Constituição Federal e pela

legislação ordinária, no chamado “mercado negro” essa prática aumenta a cada dia,

13

14

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chegando ao ponto de oferta de venda de órgãos em classificados de jornais. O

desequilíbrio entre a oferta e a demanda de órgãos continua sendo a principal causa,

aliada à pobreza extrema da população e a ganância incontrolada de lucro por parte de

alguns médicos e hospitais sem compromisso com a ética da medicina.

Afirma Volnei Garrafa (GARRAFA, 2005, p. 1) que “o mercado de órgãos

humanos constitui um dos aspectos mais acirrados e dramáticos na discussão da bioética

mundial”, acrescentando que “o mercado de estruturas humanas é hoje uma realidade.

Embora há alguns anos fosse ele mencionado somente em algumas obras de ficção

literária ou cinematográfica, atualmente já alcança dimensões concretas e preocupantes

no contexto mundial”.

Lembra Volnei Garrafa que a primeira manifestação de um órgão oficial com

relação ao comércio de órgãos humanos aconteceu em 1971, através da declaração do

Comitê de Moral e Ética da Transplantation Society: “a venda de órgãos por doadores

vivos ou mortos é indefensável em qualquer circunstância” (GARRAFA, 2005, p. 2).

Nos Estados Unidos a National Organ Transplant Act, lei federal, proíbe naquele país a

compra e venda de órgãos.

No entanto, há cientistas que defendem explicitamente a comercialização de

órgãos, tecidos e partes do corpo humano. No ano de 1987, o cirurgião indiano C. T.

PATEL, em um simpósio na cidade de Pittsburgh, defendeu a possibilidade de compra e

venda de rins entre pessoas vivas e sem grau de parentesco, asseverando que a “doação

de um rim é um ato de bondade. Ele é o presente da vida. (it is gift of life). O incentivo

financeiro para promover tal ato bondoso é moral e justificável” (GARRAFA, 2005, p.

2).

 

A Índia “é a nação na qual o mercado dos órgãos de seres humanos vivos é o

mais difuso, tolerado e legalizado” (BERLINGUER & GARRAFA, 1996, p. 93).

Também há registros de comercialização clandestina de órgãos na Argentina, Colômbia,

Brasil, China, Estados Unidos.

A comercialização de órgãos humanos denota a completa ausência de padrões

mínimos de conduta ético-jurídica exigida pela lei aos profissionais de saúde aos

doadores e suas famílias, pois atenta contra a dignidade da pessoa humana. Tal prática

deve ser rechaçada e reprimida, pois provoca conseqüências desastrosas, na medida em

que desestimula as doações altruístas efetivadas por sentimento de solidariedade,

princípio ético que deve prevalecer em matéria de transplante.

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5.4) não efetivar a remoção de órgãos e tecidos, no transplante post mortem, senão

depois de constatada a morte encefálica

 

 

Para o Código Civil brasileiro, a morte é causa de extinção da personalidade

jurídica, conforme regra estabelecida no artigo 6º. Com a morte, a pessoa humana deixa

de ser sujeito ou titular de direitos. O corpo humano sem vida, passa à condição de

objeto de direito. Entretanto, não se trata o cadáver de uma coisa qualquer, suscetível de

sobre ele se exercerem direitos de natureza patrimonial, pois a doutrina dominante

entende ter o cadáver a natureza jurídica de coisa fora do comércio, porque sua

comerciabilidade ofenderia a dignidade humana.

No caso de transplante post mortem, a remoção dos tecidos e órgãos do doador

depende da constatação da morte encefálica. Essa constatação deverá ser atestada por

dois médicos, não integrantes das equipes de remoção e de transplante, sendo permitida

a intervenção de um médico de confiança da família.

Não se aguarda, nesse caso, a parada cardiorespiratória, bastando a ocorrência do

dano encefálico de natureza irreversível.

Para salvar uma vida, precisa-se agir rapidamente sobre o cadáver-doador

e manter seus órgãos em funcionamento até sua retirada para o transplante. Somente as

córneas podem ser retiradas após a parada cardíaca.15[15]

Assim, é preciso que os médicos atuem com cuidado para não precipitar a morte

do doador, caso em que, além de grave violação da ética, caracterizaria o crime de

homicídio.16[16]

No Brasil, o diagnóstico de morte encefálica deve ser feita de conformidade com

a Resolução n.º 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina.17[17]

 

 

15

16

17

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5.5) somente se dispor a realizar a remoção e o transplante se estiver regularmente

habilitado

 

Não é qualquer profissional que pode realizar um procedimento de remoção e

transplante de órgãos e tecidos humanos, pois a Lei de Transplantes (artigo 2.º) exige

que tal procedimento somente poderá ser realizado por estabelecimentos de saúde,

público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante

previamente autorizadas pelo órgão nacional do Sistema Único de Saúde.

 

 

5.6) respeito às listas únicas

 

A Lei de Transplantes instituiu o critério da lista única de receptores, cuja

organização compete às Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos

(CNCDOs), que têm a incumbência de coordenar as atividades de transplantes no

âmbito estadual.

O principal critério é o da chamada “fila de espera”, que é organizada

cronologicamente, ou seja, o tempo que o paciente aguarda o transplante. O receptor

deverá ser escolhido de conformidade com a lista única, não apenas pelo critério

cronológico, pois o receptor será aquele que primeiro apresentar compatibilidade do

respectivo organismo para o respectivo enxerto, que poderá não coincidir com o

primeiro da fila.

Não obedecer a lista única constitui grave violação ética.

Constatada a morte encefálica, os estabelecimentos de saúde são obrigados a

notificar imediatamente as centrais, sob pena de incorrerem em sanções administrativas.

Uma vez recebida a notificação, as Centrais devem consultar a família visando

obter a anuência na remoção.

Os critérios estão estabelecidos na Portaria n.º 3.407, de 06/08/88, do Ministério

da Saúde.

No entanto, cabe indagar, e se existir um paciente com condição de saúde mais

grave do que aquele que tem precedência de conformidade com o critério cronológico ?

Terá ele preferência para o transplante, em razão da urgência, em relação ao que tem

precedência na lista de espera ?

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No dia 27 de outubro de 2005, noticiou o Jornal Folha de São Paulo18[18], que a

estudante de farmácia Eliane Lopes Jimenes, de 39 anos, que estava no 595º lugar na

fila, no dia anterior, submeteu-se a um transplante de fígado, pois sofria de cirrose biliar

primária que provoca necrose do órgão. Conseguiu “furar a fila” de transplantes

organizada com base no critério da ordem cronológica, graças a uma decisão judicial,

que entendeu que em razão da gravidade do caso, não teria que respeitar o critério da

ordem cronológica. A juíza Fátima Aparecida Douverny, da 8ª Vara Cível da Comarca

de São Bernardo do Campo sustentou que o critério da ordem cronológica é “falho e

insuficiente” e afirmou que a estudante não poderia passar na frente de pessoas com

estado de saúde igual ou pior. A “TransPática” (Associação Brasileira dos

Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas), ouvida pela reportagem,

manifestou apoio à decisão judicial. Segundo o Presidente da entidade, Sidnei Moura

Nehme, o critério da fila precisa deixar de ser o da ordem cronológica e deveria se

basear na gravidade do estado do paciente, pois, de 1998 a 2004, cerca de 60% (sessenta

por cento) dos pacientes foram excluídos da lista por óbito, “os mais doentes morrem

sempre, não conseguem aguardar três ou quatro anos na fila”.

Realmente, a organização da fila única através da ordem cronológica, atualmente

em vigor, precisa ser reavaliado, para considerar os casos de urgência, contemplando

aqueles pacientes com estado de saúde grave, que não têm condições de suportar a

longa espera que pode demorar anos.

Porém, enquanto não for alterado o critério da ordem cronológica, somente por

decisão judicial é que poderá ser quebrada a ordem estabelecida na lista única.

5.7) recomposição do corpo após a remoção

 

Após a remoção dos órgãos, tecidos ou partes, no transplante post mortem, o

cadáver deve ser condignamente recomposto e entregue aos parentes ou seus

responsáveis legais para as últimas homenagens e sepultamento. Nesse sentido,

preceitua o artigo 8º, da Lei nº 9.434/97. O artigo 21, do Decreto nº 2.268/97 detalha a

regra, acrescentando que, após efetuada a retirada, o cadáver será condignamente

recomposto, de modo a recuperar, tanto quanto possível, sua aparência anterior, com

cobertura das regiões com ausência de pele e enchimento, com material adequado, das

cavidades resultantes da ablação.

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A intenção do legislador, ao impor essa obrigação aos médicos, foi de resguardar

o respeito à dignidade humana, aos sentimentos dos familiares do morto, bem como o

respeito ao sentimento vigente na sociedade de que merecem consideração os restos

mortais humanos.

A não observância da regra que determina a recomposição do cadáver constitui

crime, punido com detenção de seis meses a dois anos, conforme artigo 19 da Lei de

transplantes.

 

6. CONCLUSÕES

 

É forte o debate nos meios acadêmicos e científicos a respeito da ética aplicada

aos transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano.O consentimento do

doador, no caso de transplante inter vivos, ou da família, no caso de transplante post

mortem, devidamente informado, constitui pressuposto ético indeclinável para legitimar

a remoção e o transplante. Nada justifica, do ponto de vista ético, a comercialização ou

a atribuição de qualquer outra espécie de vantagem econômica, ainda que indireta, para

incentivar a doação de órgãos, que deverá ser efetivada somente de forma altruísta e

com base nos princípios da solidariedade e do amor ao próximo. Aliás, é com base

nesses princípios que as religiões aprovam e apóiam a doação de órgãos. O critério da

lista única de receptores, organizada apenas pela ordem cronológica, precisa ser

reavaliado, para poder contemplar os pacientes mais graves e que não conseguem

suportar longo tempo na fila de espera e, não raro, morrem antes da oportunidade de

realizar o transplante de órgãos. Finalmente, é necessária a conscientização de todos os

profissionais envolvidos no processo de remoção e transplante, tais como médicos,

profissionais do ramo de farmácia e bioquímica, que realizam o exame de

compatibilidade, e de todos aqueles que trabalham nas Centrais de Notificação e

Captação de Órgãos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BERLINGUER, Giovanni & GARRAFA, Volnei. O mercado humano. Brasília: Editora

da Universidade de Brasília, 1996.

 

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CARDOSO, Alaércio. Responsabilidade civil e penal dos médicos nos casos de

transplantes. Belo horizonte: Del Rey, 2002.

 

COHEN, Cláudio & Segre Marco. Definição de valores, moral, eticidade e ética. In:

Bioética. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 12-22).

 

GARRAFA, Volnei. O mercado de estruturas humanas. In:

www.portalmédico.org.br/revista/bio2v1/mercado.htmll, capturado em 17/11/2005.

 

GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos da criação ao big- bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1977. 

LEITE, Gisele. A ética contemporânea em xeque. In: www.usinadasletras.com.br,

caputurado em 09 de novembro de 2005.

 

REIS, Atualpa P. dos. Imunologia dos transplantes. Revista da Associação Médica

Brasileira, n. 7, v. 17, p. 367-372, jun. 1971.

 

SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia. São Paulo:

Saraiva, 1992.

 

SATURNO, Mário Eugênio. Existe acordo entre ciência e religião ? In: Revista do

Instituto Metodista de Ensino Superior, ano 2, número 19, abril de 2005.