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1. INTRODUÇÃO
A preocupação com a saúde e a busca de tratamentos eficazes para a obtenção da
cura sempre foi uma grande preocupação da humanidade, em todos os tempos A ciência
da saúde evoluiu de forma muito rápida, principalmente na segunda metade do século
XX. Ficou mais fácil tratar e curar muitas doenças que no passado eram consideradas
fatais, como as infecções, por exemplo, graças à descoberta de antibióticos poderosos.
Porém quando a doença atinge um órgão humano vital e o mesmo deixa de funcionar, a
única possibilidade de cura do paciente passa a ser o transplante.
Hoje em dia, se por um lado as técnicas de transplante possibilitam uma
significativa melhora na qualidade de vida do paciente, principalmente com a
descoberta de drogas que inibem a rejeição do organismo ao órgão transplantado, que
considera invasor1[1], por outro lado não há oferta de órgãos suficientes para atender a
todos os pacientes que se encontram na fila de espera, havendo um evidente
desequilíbrio entre a demanda e a oferta, problema que é ainda agravado pelo fato de
que tais pacientes não dispõem de tempo suficiente para aguardar o transplante, e muitas
vezes a morte chega antes da oportunidade de realizá-lo.
Com o surgimento de um potencial doador de órgãos, uma série de outros
problemas, de ordem médica, jurídica, ética passam a constituir obstáculos para o
paciente possa ser beneficiado com o transplante. Quando se trata de transplantes inter
vivos as dificuldades são menores, porque a pessoa doadora tem condições de
manifestar o seu consentimento e acompanhar todas as etapas do procedimento de
remoção e transplante, embora mesmo nesse caso existam problemas éticos que
precisam ser enfrentados. No entanto, as dificuldades e os questionamentos de ordem
ética se avolumam quando se pretende a realização do transplante a partir de um doador
cadáver, denominada remoção post mortem.
Surgem, com a morte da pessoa humana, diversos questionamentos éticos,
muitos dos quais solucionados pelo próprio texto legal. A partir de que momento é
possível a remoção dos órgãos ? Como se constata a morte ? O médico que faz o
diagnóstico da morte pode participar da remoção e do transplante ? A quem pertence o
cadáver ? Quem pode autorizar a remoção dos seus órgãos ? Como se processa a
obtenção dessa autorização ? Pode haver compra dos órgãos de pessoa viva ou
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falecida ? A gravidade da doença, a urgência, justifica a desrespeito ao critério da ordem
cronológica, ou seja, a quebra da fila de transplante ? A remoção rotineira de órgãos de
pessoas falecidas se justifica eticamente ?
Os progressos da ciência em todos os campos, principalmente na área médica, ao
tempo em que proporciona ao indivíduo uma série de benefícios, também lhe retira uma
significativa parcela de sua liberdade individual, o que torna necessário a imposição de
limites, papel que cabe, em parte, à conduta ética dos profissionais envolvidos no
processo. Surgiu, dessa forma, um novo ramo do conhecimento humano, que é a
bioética, que “consiste no estudo sistemático da conduta humana no âmbito das
ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e
princípios morais” (JUNGES 1999, p. 15).
A proposta do presente trabalho é abordar essas e outras questões, relacionadas
com a ética nos transplantes. Porém, antes de adentrarmos propriamente ao tema, para
uma melhor compreensão, é necessária a fixação de alguns conceitos.
2. CONCEITO DE TRANSPLANTES E SUJEITOS
A matéria relativa aos transplantes de órgãos é regulada pela Lei Federal n.º
9.434, de 04 de fevereiro de 1997.
O termo transplante é empregado pela lei que regula a matéria, no sentido de
retirada ou remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo de um ser humano, vivo ou
morto (doador), para aproveitamento, com finalidade terapêutica, no mesmo ou em
outros indivíduos da mesma espécie (receptor).
O sujeito ativo ou doador: é o indivíduo que consente na retirada de órgãos,
tecidos ou partes de seu corpo, para fins de transplantes.
O Sujeito passivo ou receptor: é o indivíduo que recebe tecidos, órgãos ou
partes do corpo humano. É a pessoa que se busca favorecer com a liberalidade, com a
intenção de salvar ou melhorar a sua condição de vida.
O Sujeito interveniente: é o médico e sua equipe. Pela Lei nº 9.434/97, a
realização de transplantes somente poderá ser realizada por estabelecimentos de saúde, e
por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante, previamente autorizadas pelo
órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde2[2].
Órgão é definido como sendo “cada uma das partes de um organismo animal ou
vegetal, que exerce uma função definida” (PACIORNIK, 1978, p. 402). A lei inglesa
sobre transplante (Human Organ Transplants Act 1989) define órgão como sendo
qualquer parte do corpo humano, que consiste num conjunto estruturado de tecidos, os
quais, se removidos na totalidade, não podem ser reconstituídos pelo corpo
(CARDOSO, 2002, p.115).
Por tecido se deve entender o “grupo de células e seus derivados, especializadas
no mesmo sentido e associadas, com o fim de realizarem uma ou mais funções
específicas” (PACIORNIK, 1978, p. 504). São exemplos, o tecido epitelial, sangüíneo,
muscular, nervoso, etc.
Fica, assim, concluída a fixação da etimologia da expressão transplante, bem
como uma breve explicação dos significados dos termos órgão e tecido, permitindo,
dessa forma, uma melhor compreensão do tema objeto do estudo.
3. TRANSPLANTES INTER VIVOS E POST MORTEM - ESPÉCIES
A Lei de Transplantes disciplina a remoção e transplante de tecidos, órgãos e
partes do corpo humano de pessoa viva, denominado inter vivos, bem como do corpo de
pessoas já falecidas, denominado post mortem.
Do transplante post mortem, trata o artigo 3.º, com a seguinte redação:
Art. 3.º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo
humano, destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida
de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois
médicos não participantes das equipes de remoção e transplante,
mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos
por resolução do Conselho Federal de Medicina.
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O artigo 9.º, da Lei de transplantes, prevê a hipótese de remoção e transplante
com doador vivo – é o chamado transplante inter vivos:
Art. 9.º É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor
gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo
para fins de transplante ou terapêuticos.
Para cada uma dessas espécies, há normas específicas, e procedimentos éticos a
serem adotados pelos profissionais envolvidos no processo de remoção e transplante de
órgãos, tecidos e partes do corpo humano, como se verá.
A doutrina concebe as seguintes espécies de transplantes: autotransplantes,
isotransplantes, homotransplantes e heterotransplantes. Para explicar os significados
desses termos, recorre-se aos ensinamentos do Professor ATUALPA P. DOS REIS
(1971, p. 367-372):
1) Autotransplantes – quando o tecido é tomado do próprio animal – é
o exemplo de transplante de pele em queimaduras, quando se retira
uma faixa de pele vitalizada para colocar em lugar da que sofreu
queimadura.
2) Isotransplantes (isogênico e singênico) – quando o tecido
transplantado vem de outro animal da mesma espécie e relacionado
geneticamente – é o exemplo do tecido transplantado entre dois
camundongos de inbred strain.
3) Homotransplantes (alogênicos) – quando o tecido vem de outro
animal da mesma espécie, porém não relacionado geneticamente.
4) Heterotransplantes (xenogênico) – quando o transplante é realizado
entre animais de espécies diferentes.”
No autotransplante, que ocorre quando se transplantam tecidos colhidos do
organismo da mesma pessoa, como ocorre nas pontes de safena, não há maiores
preocupações do ponto de vista da ética, porque há uma sujeição da parte ao todo. O
princípio que norteia essa espécie de transplante é o princípio da totalidade, que pode
ser enunciado da seguinte maneira: cada parte do membro, órgão ou função pode ser
sacrificado em benefício do corpo, desde que seja útil e benéfico à integralidade do
organismo. Basta ao médico tomar o cuidado de obter o consentimento informado do
paciente.
Da mesma forma, não oferecem problemas ou objeções de ordem ética, a
transplantação heteróloga ou xenotransplantação, em que o doador do tecido ou órgão é
de espécie diferente da do receptor, como, por exemplo, a utilização de tecidos e órgãos
de animais. Por força de costumes seculares, os animais são colocados a serviço do
homem, legitimando-se seu sacrifício, desde que não haja crueldade, com o objetivo de
salvar uma vida humana ou melhorar as condições de vida. É claro que deve haver uma
fundamentada esperança de sucesso no transplante, não sendo motivado o ato por
simples experimentação, além do mais é preciso tomar a precaução de preparar
psicologicamente o receptor para que possa conviver com um órgão heterólogo em seu
organismo.
Os isotransplantes e os homotransplantes suscitam maiores questionamentos de
ordem ética, porque nessas espécies de transplante os tecidos e órgãos, ou partes destes,
são retirados ou removidos de indivíduos da mesma espécie, ou seja, o doador e o
receptor são pessoas diferentes. No isotransplante doador e receptor apresentam
caracteres hereditários, genéticos, idênticos, como, por exemplo, transplante entre
gêmeos monovulares ou univitelinos. No homotransplante, doador e receptor
apresentam caracteres hereditários, genéticos, diferentes. É o mais comum. Mais
adiante, serão abordados os cuidados de ordem ética que essas espécies de transplantes
exigem, à luz da Lei nº. 9.434/97 – Lei de Transplantes.
4. OS TRANSPLANTES E AS RELIGIÕES: CIÊNCIA E RELIGIÃO
Nem sempre os progressos científicos na área da medicina são bem recebidos
pelas doutrinas religiosas. Os experimentos científicos na área da clonagem, a pesquisa
envolvendo embriões humanos, por exemplo, são rejeitados pela maioria das religiões.
Há um antigo conflito entre a ciência e a religião, começando pelo fato de que a maioria
dos cientistas não acredita em Deus. Pesquisa realizada em 1997 por Edward Larson e
Lerry Witham, na revista Nature, revela que cerca de 39% dos cientistas pesquisados
crêem em algum deus, 45% não crêem e 15% têm dúvida ou são agnósticos, sendo que
os mais novos são os líderes em ceticismo. Mário Eugênio Saturno, pesquisador do
INPE, em entrevista ao Instituto Metodista de Ensino Superior, disse acreditar que a
religião não é uma detentora de verdades científicas e diz que até o papa vem
promovendo, desde 1988, encontro entre cientistas e religiosos para abordar a questão
da religião e da ciência. Diz “o campo da religião é o da moral e ética. Tem na fé um
propósito para a vida humana. Se não houver uma ética regendo os cientistas, viveremos
um caos”. E prossegue: cada um tem sua função e seu espaço a ser preenchido. Cabe à
religião questionar os valores humanos e à sociedade escolher qual valor deve seguir. A
religião só se torna um problema quando seus seguidores se julgam os donos da verdade
e da ética” (SATURNO, 2005).
O conflito entre a ciência e a religião é antigo. A busca por explicação científica
para fenômenos que a religião sempre explicou através da fé nunca foi bem aceita pelos
religiosos. O cientista Marcelo Gleiser (GLEISER, 1997, p. 39-40) explica que a questão
somente pode ser pacificada a partir do momento em que a religião passar a se
preocupar mais com o mundo espiritual do que com o mundo natural, enquanto que a
ciência deve se preocupar mais com os questionamentos e as investigações do mundo
natural, respeitando, a ciência e a religião, os espaços que lhes são reservados:
À medida que um número maior de fenômenos naturais passou a ser
compreendido cientificamente, a religião lenta e forçosamente passou
a se preocupar mais com o mundo espiritual do que com o mundo
natural. Essa “divisão de águas” entre ciência e religião se deu de
forma bem dramática, conforme veremos adiante. Na verdade, esse
drama continua a se desenrolar ainda hoje, devido à aplicação errônea
tanto de ciência em debates teológicos como de religião em debates
científicos.
(...)
O debate entre ciência e religião restringe-se na maior parte
das vezes à discussão de sua mútua compatibilidade: será possível que
uma pessoa possa questionar o mundo cientificamente e ainda assim
ser religiosa ? Acredito que a resposta é um óbvio sim, contanto que
seja claro para essa pessoa que ambas não devem interferir entre si de
modo errado, ou seja, que existem limites tanto para a ciência como
para a religião. Cientistas não devem abusar da ciência, aplicando-a a
situações claramente especulativas, e, apesar disso, sentirem-se
justificados em declarar que resolveram ou que podem resolver
questões de natureza teológica. Teólogos não devem interpretar textos
sagrados cientificamente, porque estes não foram escritos com este
objetivo”.
No entanto, hoje em dia, quase todas as religiões admitem o transplante de
órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, para fins de tratamento, porque todas têm
em comum os princípios da solidariedade e do amor ao próximo, que caracterizam o ato
de doar, deixando ao critério dos seguidores a decisão de serem doadores ou não.3[3]
O catolicismo aceita a doação de órgãos, como se pode constatar da mensagem
feita pelo Papa João Paulo II aos participantes do XVIII Congresso Internacional de
Transplantes, realizado em Roma, em agosto de 2000:
“Os transplantes são um grande avanço da ciência a serviço do
homem e não são poucas aquelas pessoas que hoje devem suas vidas a
um transplante de órgãos. A técnica de transplantes tem se afirmado
progressivamente como um instrumento válido para atingir o principal
objetivo de toda a Medicina – servir a vida humana. Por essa razão,
em minha Carta Encíclica Evangeliumm Vitae, sugeri que um modo
de nutrir a genuína cultura da vida “é a doação de órgãos, realizada de
um modo eticamente correto, com uma perspectiva de proporcionar a
recuperação da saúde, e até mesmo da vida, a doentes que algumas
vezes não têm outra esperança” (nº 86)”
O islamismo4[4] também não rejeita os transplantes, por ser considerada a
religião da misericórdia. O islã dá ênfase à salvação de vidas (Alcorão 5:32). Para o
Sheik Aly Abdoune, presidente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica da
América Latina (WAMY) diz que “a religião islâmica aceita e incentiva a doação de
órgãos, após a morte do indivíduo, desde que haja permissão do doador e da família e
que a doação não ocorra por comércio”.5[5]
3
4
5
O hinduísmo6[6] também não se opõe ao transplante de órgãos, pois, segundo os
Brahmanistas “uma pessoa se torna boa por atos bondosos e má por atos malévolos”
(LEITE, 2005).
Da mesma forma, o judaísmo7[7] não se opõe à doação de órgãos. Para a religião
judaica há a exigência de que na remoção de órgão efetivada em cadáver, a morte tenha
sido determinada de acordo com o Halachá8[8]. O Professor Sami Goldstein,
reproduzindo o pensamento do Rabino Henry I. Sobel, entende que deve ser apoiada a
decisão da família de doar os órgãos, pois “nada mais judaico que salvar uma vida,
dando aquilo que não mais nos serve àqueles que darão continuidade a sua existência”.
Ressalva, entretanto, que a doação de órgãos “é permitida desde que o receptor os
receba imediatamente e seja conhecida a sua identidade. Isso porque, doando-se os
órgãos a um banco de órgãos, teme-se que os mesmos não sejam aproveitados”.9[9]
Como se viu, as religiões não rejeitam o ato médico de transplante de órgãos,
tecidos e partes do corpo humano, pois a solidariedade e o amor ao próximo são
princípios inerentes a todas as religiões, tanto que um dos mandamentos sagrados
determina que se de deve amar ao próximo como a si mesmo, e nada é mais
representativo desses princípios do que a doação de parte do próprio corpo, ou do corpo
de um ente querido falecido, para salvar a vida do próximo.
5. ASPECTOS ÉTICOS DOS TRANSPLANTES
Para Barton & Barton, a ética está representada por um conjunto de normas que
regulamentam o comportamento de um grupo particular de pessoas, como, por exemplo,
advogados, médicos, psicólogos, psicanalistas etc., pois é comum que esses grupos
tenham o seu próprio código de ética, normatizando as suas ações específicas (apud
COHEM & SEGRE, 1999, p. 17).
ZUENIR VENTURA, falando sobre o “Renascimento da Ética”, na Revista do
Provão (n. 4, p. 7, 1999), apontou que :
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7
8
9
Uma das descobertas positivas deste tumultuado fim de milênio
é a consciência de que, sem princípios normativos, instaura-se o reino
da entopia e do caos, a civilização dá lugar à barbárie. A ética não é,
portanto, uma abstração acadêmica, mas uma das maneiras de ajudar
a preservação não só das profissões, como da espécie.
Realmente, nunca se ouviu falar tanto em ética como nesse final de milênio. E
tem razão o autor, quando sustenta que essa tomada de consciência objetiva ajudar na
preservação da própria espécie, na medida em que a intervenção na esfera particular do
ser humano nunca foi tão intensa como nos dias atuais.
E o que se deve entender por ética ? Maria Celeste Cordeiro Leite Santos define
ética, em sentido restrito, como sendo “a ciência do dever moral” (SANTOS, 1992, p.
233). De Plácido e Silva explica a origem do vocábulo, bem como o que se deve
entender por ética profissional:
ÉTICA. Derivada do grego `éthikos´, é definida como a ciência da
moral. Mas, na terminologia da técnica profissional, é o vocábulo
usado, sob a expressão ética profissional, para indicar a soma de
deveres, que estabelece norma de conduta do profissional no
desempenho de suas atividades e em suas relações com o cliente e
todas as demais pessoas com quem possa ter trato. Assim, estabelece a
pauta de suas ações em todo e qualquer terreno, onde quer que venha a
exercer suas profissão. Em regra, a ética profissional é fundada no
complexo de normas, estabelecidas pelos usos e costumes. Mas, pode
ser instituída pelos órgãos, a que se defere a autoridade para dirigir e
fiscalizar a profissão (DE PLÁCIDO E SILVA, 1996).
O Papa João Paulo II, falando aos participantes do XVIII Congresso
Internacional de Transplantes, em 29 de agosto de 2000, em Roma, enfatizou que “todo
transplante de órgão origina-se de uma decisão de grande valor ético”. Não há como
negar que o transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, embora seja um
problema eminentemente técnico, afeto às ciências médicas, traz questionamentos de
ordem ética, que não se situam na intervenção cirúrgica considerada em sim mesma,
mas nos aspectos sociais e pessoais que circundam esse ato, tais como o consentimento
prévio e esclarecido do doador e do receptor, o estabelecimento de critérios para a
determinação da morte, a vedação de comercialização, dentre outros.
No que concerne aos transplantes, diversas regras éticas devem ser observadas.
Cite-se, como as mais importantes, as seguintes:
5.1) transplante como último recurso terapêutico
Segundo a Lei de Transplantes (Lei nº 9.434/97), em seu artigo 9º, § 3º, parte
final, o transplante deve corresponder a uma necessidade terapêutica indispensável à
pessoa receptora, ao paciente.
O transplante, por se tratar de operação que oferece um risco muito acentuado
para o paciente, constitui recurso de que poderá se valer o médico somente quando for a
única alternativa para o paciente, ou seja, quando não houver nenhuma outra
possibilidade de tratamento. Esse método terapêutico não pode ser utilizado senão
depois de esgotadas todas as outras alternativas viáveis de tratamento do paciente.
O desrespeito a essa regra é prejudicial para todos. Não coloca em risco somente
o receptor, mas também o doador vivo, nesse caso com a agravante de que a remoção do
órgão, tecido ou parte do seu corpo poderia ser evitada, caso uma outra técnica viável
tratamento fosse anteriormente aplicada, ao invés de recorrer-se de imediato ao
transplante. Quanto ao doador cadáver, outra pessoa poderia ser beneficiada.
5.2) necessidade de consentimento do doador e do receptor
Outro aspecto a ser observado pelos profissionais envolvidos no processo de
remoção e transplante de órgãos tecidos ou partes do corpo humano, e que legitima o
ato médico, é a necessidade da obtenção do consentimento, tanto do doador quanto do
receptor. O Código de Ética Médica, nos artigos 46 e 48, veda ao médico efetuar
qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do
paciente ou de seu responsável legal.10[10] No que concerne ao transplante, a
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necessidade do consentimento informado do receptor consta do artigo 10, da lei
9.434/97.11[11] O consentimento deverá ser outorgado de forma expressa e por escrito.
Consentimento significa “manifestação de vontade, séria e definitiva, em
virtude da qual a pessoa, concordando com os desejos de outrem, vincula-se à obrigação
ou obrigações, que servem de objeto ao ato jurídico ou ao contrato firmado entre elas”.
(DE PLÁCIDO E SILVA, 1984, p. 520).
O Papa João Paulo II, na mensagem passada aos participantes do XVIII
Congresso Internacional de Transplantes, realizado em Roma, ressaltou a importância
do consentimento e o seu valor ético:
...Esse primeiro ponto traz uma conseqüência imediata de grande significado
ético: a necessidade do consentimento informado. A `autenticidade´ humana
de gesto tão decisivo requer que os indivíduos estejam adequadamente
informados sobre os processos envolvidos, para que possam exprimir seu
consentimento ou negar de um modo livre e consciente. O consentimento de
familiares tem sua própria validade ética na ausência de uma decisão por
parte do doador. Naturalmente que um consentimento análogo deve ser
fornecido pelos receptores de órgãos doados.”
A respeito da necessidade do consentimento da pessoa, ou da família, como
condição para a remoção de tecidos, órgãos e partes do corpo da pessoa, para depois de
sua morte, existem vários sistemas possíveis, alguns em vigor em determinados países,
a saber:
a) remoção compulsória: por esse sistema, é possível a remoção de tecidos,
órgãos e partes do corpo da pessoa, após a sua morte, sem a necessidade de autorização
da família. Formalmente, nenhum país adota esse sistema, embora existem registros na
literatura de casos, na China, envolvendo prisioneiros condenados à morte.
b) consentimento presumido forte: por esse sistema, se a pessoa não registrou a
sua condição de não-doador, quando em vida, presume-se que seja doador,
independentemente da vontade da família. É o sistema adotado na Áustria.
c) consentimento presumido fraco: prevê que na ausência de objeção da pessoa,
em vida, quanto à remoção de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo, para depois de sua
morte, bem como ante a ausência de oposição de seus familiares, presume-se que existe
o consentimento para a doação. Bélgica, Itália e França adotam esse sistema.
11
O consentimento presumido tem a vantagem de evitar que a família da pessoa
falecida tenha que tomar a decisão sobre a doação ou não dos órgãos do ente querido
falecido em um momento emocional complicado, em razão do luto, sofrimento,
ansiedade, e até confusão mental. Para ser eticamente aceitável essa forma de
consentimento, necessário se faz que a lei seja de conhecimento de toda a população,
que haja facilidade para a manifestação da oposição à condição de doador, e que seja
respeitada a decisão individual.
d) decisão obrigatória: impõe que todas as pessoas adultas e capazes decidam se
são ou não doadores de tecidos, órgãos e partes do corpo, para depois de sua morte.
Essa decisão é registrada em documento de identidade ou na carteira de habilitação.
Por esse sistema é a pessoa quem decide, e não a família, mas é criticado por
muitos por ser coercitivo e por implicar em invasão de privacidade.
e) decisão registrada voluntária: nessa modalidade, as pessoas têm a
oportunidade de decidir se são ou não doadoras, e registrar a decisão que tomar. O
registro, informatizado, é consultado apenas depois de sua morte. Se não houver
registro, competirá à família decidir. A diferença em relação ao sistema do registro
obrigatório consiste em que nessa modalidade, não existe a imposição do registro.
f) consentimento informado: por esse sistema, a remoção de tecidos, órgãos ou
partes do corpo de uma pessoa falecida somente será possível se houver consentimento
da pessoa em vida e ou dos familiares, após a morte. É o sistema nos Unidos, Inglaterra
e Canadá.
Atualmente, no Brasil, prevalece a decisão da família. O consentimento
presumido, desde que não consignada a condição de não doador na carteira de
identidade ou de motorista, que vigorava quando da publicação da Lei nº 9.434/97, não
mais vigora. Ainda que dos referidos documentos conste a informação de que a pessoa é
doadora, quando de sua morte, a família deve ser consultada. Nessa decisão, a família é
soberana. Só existe a possibilidade de doação se na hora a família autorizar.
Deverá haver anuência expressa do receptor do órgão, ou seja, do paciente. Para
que essa anuência possa ser válida, do ponto de vista ético, o profissional deverá
informar o paciente de todos os riscos atuais e futuros que o procedimento oferece.
Essas informações deverão ser prestadas de forma clara e precisa, em linguagem
absolutamente compreensível para o doente, considerando a sua condição social e
intelectual.
O paciente, nesse caso, poderá recusar o tratamento. Aliás, essa regra passou a
integrar de forma expressa o novo Código Civil Brasileiro, cujo artigo 15 preceitua:
“ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico
ou a intervenção cirúrgica”.
Em se tratando de doador vivo (transplante inter vivos), exige a lei que o mesmo
seja juridicamente capaz , salvo na hipótese de transplante de medula óssea, caso em
que os pais ou responsáveis deverão autorizar (art. 3.º, § 6.º). O doador não poderá ser
gestante, salvo em se tratando também de transplante de medula, e desde que não
ofereça risco à sua saúde ou a do feto.
Esse consentimento deverá ser também informado, ou seja, o profissional
responsável pela cirurgia de remoção deverá prestar ao doador, também de forma clara e
compreensível, segundo a sua condição social, todas as informações acerca dos riscos
do procedimento e das seqüelas que poderão advir. Esse requisito reveste-se de grande
importância ética, constando expressamente do Código de Ética Médica.12[12]
A doação de órgãos de pessoa viva somente é possível nas hipóteses do art. 9.º,
§ 3.º, da Lei de Transplantes, ou seja, quando se tratar de órgãos duplos, de partes de
órgãos (fígado, por exemplo), tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o
doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave
comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou
deformação inaceitável.
Inicialmente, a Lei de Transplantes adotou o sistema do consentimento
presumido, transformando todos os brasileiros capazes em doadores presumidos,
prevendo a possibilidade da remoção dos órgãos e tecidos e partes do corpo na hipótese
de não ter o falecido, quando em vida, manifestado oposição expressa. A oposição
poderia ser feita mediante anotação na Cédula de Identidade, Carteira Nacional de
Habilitação, ou ainda Carteira Profissional, da expressão “não doador de órgãos e
tecidos”. A manifestação de vontade poderia ser reformulada a qualquer momento.
Tratava-se de uma retirada compulsória de órgãos e tecidos humanos, o que é
eticamente inaceitável, porque a doação é, antes de tudo, um ato de solidariedade, de
autruísmo, e jamais poderia resultar de uma imposição.
Entretanto, por questões de ética, os médicos jamais concordaram em retirar os
órgãos e tecidos dos falecidos que não haviam manifestado oposição, sem o
12
consentimento da família. Nesse caso, a ética médica se impôs à Lei Federal de
transplantes, que acabou sendo modificada no ano de 2001.
A doação post mortem deve resultar, sempre, de liberalidade e não de presunção
legal. Esse é o pensamento da sociedade brasileira, que levou à reformulação da
legislação. Atualmente, o artigo 4º, da Lei nº 9.434/9713[13], com a redação que lhe deu
a Lei nº 10.211/2001, prevê a necessidade de autorização do cônjuge ou de parente,
maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau
inclusive, cuja autorização deve ser firmada em documento subscrito por duas
testemunhas presentes à verificação da morte. Assim, o consentimento deve ser dado,
em primeiro lugar, pelo cônjuge. Na falta ou impossibilidade do cônjuge em consentir, o
consentimento deverá ser prestado pelos filhos, depois netos (linha sucessória reta
descendente), sendo que na falta ou impossibilidade destes, o consentimento deve ser
buscado junto aos pais e depois avós (linha sucessória reta ascendente) e, finalmente, na
falta ou impossibilidade de obtenção do consentimento junto aos descendentes e
ascendentes, deve-se recorrer aos colaterais até o segundo grau (irmãos).
5.3) gratuidade do ato de disposição
O artigo 199, § 4.º, da Constituição Federal veda a comercialização de órgãos,
tecidos e substâncias humanas.14[14] O artigo 16 da Lei de Transplante considera crime
a realização de transplante utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano obtidos
em desconformidade com a lei, prevendo pena de reclusão, de um a seis anos.
O corpo humano é considerado um bem fora do comércio ou fora do
mercado. Esse é um princípio adotado na quase totalidade das nações. No entanto, o
comércio ilegal de órgãos é uma realidade degradante e cada vez mais presente na
realidade. No Brasil, embora vedado expressamente pela Constituição Federal e pela
legislação ordinária, no chamado “mercado negro” essa prática aumenta a cada dia,
13
14
chegando ao ponto de oferta de venda de órgãos em classificados de jornais. O
desequilíbrio entre a oferta e a demanda de órgãos continua sendo a principal causa,
aliada à pobreza extrema da população e a ganância incontrolada de lucro por parte de
alguns médicos e hospitais sem compromisso com a ética da medicina.
Afirma Volnei Garrafa (GARRAFA, 2005, p. 1) que “o mercado de órgãos
humanos constitui um dos aspectos mais acirrados e dramáticos na discussão da bioética
mundial”, acrescentando que “o mercado de estruturas humanas é hoje uma realidade.
Embora há alguns anos fosse ele mencionado somente em algumas obras de ficção
literária ou cinematográfica, atualmente já alcança dimensões concretas e preocupantes
no contexto mundial”.
Lembra Volnei Garrafa que a primeira manifestação de um órgão oficial com
relação ao comércio de órgãos humanos aconteceu em 1971, através da declaração do
Comitê de Moral e Ética da Transplantation Society: “a venda de órgãos por doadores
vivos ou mortos é indefensável em qualquer circunstância” (GARRAFA, 2005, p. 2).
Nos Estados Unidos a National Organ Transplant Act, lei federal, proíbe naquele país a
compra e venda de órgãos.
No entanto, há cientistas que defendem explicitamente a comercialização de
órgãos, tecidos e partes do corpo humano. No ano de 1987, o cirurgião indiano C. T.
PATEL, em um simpósio na cidade de Pittsburgh, defendeu a possibilidade de compra e
venda de rins entre pessoas vivas e sem grau de parentesco, asseverando que a “doação
de um rim é um ato de bondade. Ele é o presente da vida. (it is gift of life). O incentivo
financeiro para promover tal ato bondoso é moral e justificável” (GARRAFA, 2005, p.
2).
A Índia “é a nação na qual o mercado dos órgãos de seres humanos vivos é o
mais difuso, tolerado e legalizado” (BERLINGUER & GARRAFA, 1996, p. 93).
Também há registros de comercialização clandestina de órgãos na Argentina, Colômbia,
Brasil, China, Estados Unidos.
A comercialização de órgãos humanos denota a completa ausência de padrões
mínimos de conduta ético-jurídica exigida pela lei aos profissionais de saúde aos
doadores e suas famílias, pois atenta contra a dignidade da pessoa humana. Tal prática
deve ser rechaçada e reprimida, pois provoca conseqüências desastrosas, na medida em
que desestimula as doações altruístas efetivadas por sentimento de solidariedade,
princípio ético que deve prevalecer em matéria de transplante.
5.4) não efetivar a remoção de órgãos e tecidos, no transplante post mortem, senão
depois de constatada a morte encefálica
Para o Código Civil brasileiro, a morte é causa de extinção da personalidade
jurídica, conforme regra estabelecida no artigo 6º. Com a morte, a pessoa humana deixa
de ser sujeito ou titular de direitos. O corpo humano sem vida, passa à condição de
objeto de direito. Entretanto, não se trata o cadáver de uma coisa qualquer, suscetível de
sobre ele se exercerem direitos de natureza patrimonial, pois a doutrina dominante
entende ter o cadáver a natureza jurídica de coisa fora do comércio, porque sua
comerciabilidade ofenderia a dignidade humana.
No caso de transplante post mortem, a remoção dos tecidos e órgãos do doador
depende da constatação da morte encefálica. Essa constatação deverá ser atestada por
dois médicos, não integrantes das equipes de remoção e de transplante, sendo permitida
a intervenção de um médico de confiança da família.
Não se aguarda, nesse caso, a parada cardiorespiratória, bastando a ocorrência do
dano encefálico de natureza irreversível.
Para salvar uma vida, precisa-se agir rapidamente sobre o cadáver-doador
e manter seus órgãos em funcionamento até sua retirada para o transplante. Somente as
córneas podem ser retiradas após a parada cardíaca.15[15]
Assim, é preciso que os médicos atuem com cuidado para não precipitar a morte
do doador, caso em que, além de grave violação da ética, caracterizaria o crime de
homicídio.16[16]
No Brasil, o diagnóstico de morte encefálica deve ser feita de conformidade com
a Resolução n.º 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina.17[17]
15
16
17
5.5) somente se dispor a realizar a remoção e o transplante se estiver regularmente
habilitado
Não é qualquer profissional que pode realizar um procedimento de remoção e
transplante de órgãos e tecidos humanos, pois a Lei de Transplantes (artigo 2.º) exige
que tal procedimento somente poderá ser realizado por estabelecimentos de saúde,
público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante
previamente autorizadas pelo órgão nacional do Sistema Único de Saúde.
5.6) respeito às listas únicas
A Lei de Transplantes instituiu o critério da lista única de receptores, cuja
organização compete às Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos
(CNCDOs), que têm a incumbência de coordenar as atividades de transplantes no
âmbito estadual.
O principal critério é o da chamada “fila de espera”, que é organizada
cronologicamente, ou seja, o tempo que o paciente aguarda o transplante. O receptor
deverá ser escolhido de conformidade com a lista única, não apenas pelo critério
cronológico, pois o receptor será aquele que primeiro apresentar compatibilidade do
respectivo organismo para o respectivo enxerto, que poderá não coincidir com o
primeiro da fila.
Não obedecer a lista única constitui grave violação ética.
Constatada a morte encefálica, os estabelecimentos de saúde são obrigados a
notificar imediatamente as centrais, sob pena de incorrerem em sanções administrativas.
Uma vez recebida a notificação, as Centrais devem consultar a família visando
obter a anuência na remoção.
Os critérios estão estabelecidos na Portaria n.º 3.407, de 06/08/88, do Ministério
da Saúde.
No entanto, cabe indagar, e se existir um paciente com condição de saúde mais
grave do que aquele que tem precedência de conformidade com o critério cronológico ?
Terá ele preferência para o transplante, em razão da urgência, em relação ao que tem
precedência na lista de espera ?
No dia 27 de outubro de 2005, noticiou o Jornal Folha de São Paulo18[18], que a
estudante de farmácia Eliane Lopes Jimenes, de 39 anos, que estava no 595º lugar na
fila, no dia anterior, submeteu-se a um transplante de fígado, pois sofria de cirrose biliar
primária que provoca necrose do órgão. Conseguiu “furar a fila” de transplantes
organizada com base no critério da ordem cronológica, graças a uma decisão judicial,
que entendeu que em razão da gravidade do caso, não teria que respeitar o critério da
ordem cronológica. A juíza Fátima Aparecida Douverny, da 8ª Vara Cível da Comarca
de São Bernardo do Campo sustentou que o critério da ordem cronológica é “falho e
insuficiente” e afirmou que a estudante não poderia passar na frente de pessoas com
estado de saúde igual ou pior. A “TransPática” (Associação Brasileira dos
Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas), ouvida pela reportagem,
manifestou apoio à decisão judicial. Segundo o Presidente da entidade, Sidnei Moura
Nehme, o critério da fila precisa deixar de ser o da ordem cronológica e deveria se
basear na gravidade do estado do paciente, pois, de 1998 a 2004, cerca de 60% (sessenta
por cento) dos pacientes foram excluídos da lista por óbito, “os mais doentes morrem
sempre, não conseguem aguardar três ou quatro anos na fila”.
Realmente, a organização da fila única através da ordem cronológica, atualmente
em vigor, precisa ser reavaliado, para considerar os casos de urgência, contemplando
aqueles pacientes com estado de saúde grave, que não têm condições de suportar a
longa espera que pode demorar anos.
Porém, enquanto não for alterado o critério da ordem cronológica, somente por
decisão judicial é que poderá ser quebrada a ordem estabelecida na lista única.
5.7) recomposição do corpo após a remoção
Após a remoção dos órgãos, tecidos ou partes, no transplante post mortem, o
cadáver deve ser condignamente recomposto e entregue aos parentes ou seus
responsáveis legais para as últimas homenagens e sepultamento. Nesse sentido,
preceitua o artigo 8º, da Lei nº 9.434/97. O artigo 21, do Decreto nº 2.268/97 detalha a
regra, acrescentando que, após efetuada a retirada, o cadáver será condignamente
recomposto, de modo a recuperar, tanto quanto possível, sua aparência anterior, com
cobertura das regiões com ausência de pele e enchimento, com material adequado, das
cavidades resultantes da ablação.
18
A intenção do legislador, ao impor essa obrigação aos médicos, foi de resguardar
o respeito à dignidade humana, aos sentimentos dos familiares do morto, bem como o
respeito ao sentimento vigente na sociedade de que merecem consideração os restos
mortais humanos.
A não observância da regra que determina a recomposição do cadáver constitui
crime, punido com detenção de seis meses a dois anos, conforme artigo 19 da Lei de
transplantes.
6. CONCLUSÕES
É forte o debate nos meios acadêmicos e científicos a respeito da ética aplicada
aos transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano.O consentimento do
doador, no caso de transplante inter vivos, ou da família, no caso de transplante post
mortem, devidamente informado, constitui pressuposto ético indeclinável para legitimar
a remoção e o transplante. Nada justifica, do ponto de vista ético, a comercialização ou
a atribuição de qualquer outra espécie de vantagem econômica, ainda que indireta, para
incentivar a doação de órgãos, que deverá ser efetivada somente de forma altruísta e
com base nos princípios da solidariedade e do amor ao próximo. Aliás, é com base
nesses princípios que as religiões aprovam e apóiam a doação de órgãos. O critério da
lista única de receptores, organizada apenas pela ordem cronológica, precisa ser
reavaliado, para poder contemplar os pacientes mais graves e que não conseguem
suportar longo tempo na fila de espera e, não raro, morrem antes da oportunidade de
realizar o transplante de órgãos. Finalmente, é necessária a conscientização de todos os
profissionais envolvidos no processo de remoção e transplante, tais como médicos,
profissionais do ramo de farmácia e bioquímica, que realizam o exame de
compatibilidade, e de todos aqueles que trabalham nas Centrais de Notificação e
Captação de Órgãos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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da Universidade de Brasília, 1996.
CARDOSO, Alaércio. Responsabilidade civil e penal dos médicos nos casos de
transplantes. Belo horizonte: Del Rey, 2002.
COHEN, Cláudio & Segre Marco. Definição de valores, moral, eticidade e ética. In:
Bioética. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 12-22).
GARRAFA, Volnei. O mercado de estruturas humanas. In:
www.portalmédico.org.br/revista/bio2v1/mercado.htmll, capturado em 17/11/2005.
GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos da criação ao big- bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1977.
LEITE, Gisele. A ética contemporânea em xeque. In: www.usinadasletras.com.br,
caputurado em 09 de novembro de 2005.
REIS, Atualpa P. dos. Imunologia dos transplantes. Revista da Associação Médica
Brasileira, n. 7, v. 17, p. 367-372, jun. 1971.
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia. São Paulo:
Saraiva, 1992.
SATURNO, Mário Eugênio. Existe acordo entre ciência e religião ? In: Revista do
Instituto Metodista de Ensino Superior, ano 2, número 19, abril de 2005.