19 Omar Ribeiro

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Este ensaio foi escrito a partir de uma pesquisa mais ampla que, desde 2001, conta com o apoio da Fapesp. Nos últimos anos, e em diferentes etapas da pesquisa, contei também com o apoio da Faepex (Unicamp) e da Fundação Ford. Agradeço os comentários e o entusiasmo de Lilia Schwarcz e Sérgio Costa. Este texto, como outros, não teria sido escrito sem a interlocução constante de Sebastião Nascimento. OMAR RIBEIRO THOMAZ é professor da Unicamp, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e autor de Ecos do Atlântico Sul. Representações sobre o Terceiro Império Português (Editora da UFRJ). OMAR RIBEIRO THOMAZ “Raça”, nação e status: histórias de guerra e “relações raciais” em Moçambique

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Transcript of 19 Omar Ribeiro

  • Este ensaio foi escrito a partir de uma pesquisa mais ampla que, desde 2001, conta com o apoio da Fapesp. Nos ltimos anos, e em diferentes etapas da pesquisa, contei tambm com o apoio da Faepex (Unicamp) e da Fundao Ford. Agradeo os comentrios e o entusiasmo de Lilia Schwarcz e Srgio Costa. Este texto, como outros, no teria sido escrito sem a interlocuo constante de Sebastio Nascimento.

    OMAR RIBEIRO THOMAZ professor da Unicamp, pesquisador do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento e autor de Ecos do Atlntico Sul. Representaes sobre o Terceiro Imprio Portugus (Editora da UFRJ).

    OMAR RIBEIRO THOMAZ

    Raa, nao e status:

    histrias de guerra

    e relaes raciais em Moambique

  • Im abril de 1992, o jornalista moam-

    bicano Machado da Graa respondeu,

    no jornal Notcias de Maputo, missiva que

    sucedeu o debate no qual se reuniu com outros

    intelectuais e polticos, como Leite de Vasconce-

    los e Domingos Arouca. Tudo indica que o clima

    que dominou o debate foi tenso: de um lado,

    aqueles que, como Machado da Graa e Leite de

    Vasconcelos, situavam-se num espectro polti-

    co prximo ao Partido Frelimo1; de outro, o dr.

    Domingos Arouca que, j na altura da transio

    para a independncia, procurou ser uma alterna-

    tiva frente liderada por Samora Machel, e que

    naquele momento fazia parte do grupo que pro-

    curava institucionalizar uma oposio ao partido

    no poder, antes mesmo dos tratados de paz de

    outubro de 1992 (Graa, 1996). O autor da mis-

    siva, sr. Nhamite, em crticas aos simpatizantes

    da Frelimo, questionou a relao dos cidados

    de raa branca com o ltimo con ito armado que

    a igira o pas. Teriam os senhores passado por

    situaes de nomadismo e fuga aos massacres,

    abandonado suas casas e dormido no topo das

    rvores? No seria um privilgio a excluso dos

    brancos do servio militar obrigatrio?

    s duas questes, Machado da Graa respon-

    de com contundncia. No apenas os brancos

    tiveram seus lares preservados ou foram poupa-

    dos de uma ameaa fsica evidente, mas todos

    aqueles que permaneceram nos centros urbanos.

    Como sabemos, a fria dos bandidos armados,

    logo identi cados como guerrilheiros da Rena-

    mo2, atingiu fundamentalmente as reas rurais,

    onde vivem cerca de 70% da populao. Os mo-

    ambicanos brancos, assim como boa parte dos

    indianos e mestios, habitavam normalmente os

    1 Frente de Libertao de Mo-ambique. Protagonista da guerra de libertao nacional (1964-74), assume o poder em 1975 como partido nico. A partir do incio dos anos 90, transforma-se no principal partido do pas no processo de consolidao do sistema multipartidrio.

    2 Resistncia Nacional Moam-bicana. Protagonista da guerra de desestabilizao do governo da Frelimo estabelecido aps a independncia, seus membros foram inicialmente conhecidos como bandidos armados ou matxangas. Desde os tratados de paz de 1992, a Renamo transformou-se no principal partido poltico da oposio.

    E

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    ncleos urbanos, tendo sido, assim, pou-

    pados da faceta mais tenebrosa da guerra,

    mas no das mltiplas carncias dela resul-

    tantes: [] quando em Maputo se comia

    s repolho, em minha casa era repolho que

    se comia, e, por vezes, nem isso (Graa,

    1996, p. 47).

    No que diz respeito ao servio militar

    obrigatrio, Machado da Graa arma:

    A questo foi esclarecida h cerca de dois

    anos pelo presidente Chissano que declarou

    publicamente que o fato de brancos, india-

    nos e mestios no fazerem o servio militar

    obrigatrio no porque a isso fujam,

    porque foi uma deciso do Comit Central

    da Frelimo. Foi segregao racial por falta

    de conana. Recordo-me de ter escrito,

    aqui h uns anos, um artigo precisamente a

    reivindicar o direito de pessoas de todas as

    raas poderem servir nas foras armadas

    (Graa, 1996, p. 48).

    A distribuio desigual dos sofrimentos

    ao longo da recente guerra civil, bem como

    a situao aparentemente privilegiada de

    determinadas minorias demogrcas, so

    temas que interferem constantemente no

    debate em torno dos critrios que devem

    definir aqueles que so os verdadeiros

    moambicanos. O que para o missivista

    seria um privilgio a excluso de bran-

    cos, indianos e mestios do servio militar

    obrigatrio para Machado da Graa, na-

    cionalista convicto, consistiria sobretudo

    em discriminao, conseqncia da falta de

    conana que os no-negros despertariam

    na maioria negra do pas: a suspeita, dolo-

    rosa para muitos, de que as minorias seriam

    potenciais traidores do corpo nacional.

    O que este ensaio pretende explorar so

    as relaes existentes entre raa, tempo

    (histria), espao (urbano versus rural)

    e a idia de nao. Tal objetivo exige o

    enfrentamento de um universo freqen-

    temente denominado de relaes raciais,

    convidando o leitor a suspender aquilo que

    entende por relao e por raa com

    o propsito de se aproximar aos sentidos

    que esses termos ganham na realidade

    moambicana.

    II

    Moambique um pas de esmagado-

    ra maioria negra. No estamos, contudo,

    diante de uma realidade homognea, e uma

    imensa diversidade expressa por referncia

    a lngua, religio ou terra de origem marca

    o dia-a-dia dos moambicanos. Fiquemos

    por ora com uma clivagem que se sobrepe

    a todas as demais, aquela que distancia o

    universo rural do urbano.

    A Tabela 1 procura discriminar o grupo

    somtico (termo usado no censo em Mo-

    ambique e que faz referncia a raa) e

    origem por rea de residncia. Os negros

    constituem 99% da populao total do

    pas, 99,5% da populao rural e 97,6% da

    urbana. Mistos, brancos e indianos esto,

    assim, concentrados fundamentalmente em

    reas urbanas: se 0,1% da populao rural

    mista, a presena estatstica de brancos e

    indianos fora das cidades nula.

    Se olhamos para as principais lnguas

    faladas no pas (Tabela 2), damo-nos conta

    da dimenso da clivagem existente entre o

    mundo rural e o mundo urbano3. Estima-se

    que cerca de 6,5% do total de moambicanos

    tenham o portugus como lngua materna,

    os quais correspondem a 17% do total dos

    que habitam em zonas urbanas, e apenas 2%

    dos que se encontram na rea rural. Com

    exceo dos falantes do xichangana, h um

    agrante desequilbrio do peso das lnguas

    nacionais diante do portugus na relao

    urbano/rural, e o fato de 18,4% da populao

    urbana do pas ter como primeira lngua o

    xichangana indica no apenas a existncia

    de grandes cidades no sul do pas, como

    Maputo, Matola e Xai-Xai, mas tambm

    a predominncia dos falantes dessa lngua

    entre os quadros preferenciais do Estado.

    Atentar para a principal lngua falada

    escancara a ruptura entre o espao do mato

    ou da machamba e o espao urbano. 26,1%

    dos habitantes das zonas urbanas declaram

    ter como principal lngua de comunicao

    o portugus, enquanto esse nmero alcana

    a cifra de 1,4% para os habitantes da zona

    rural. Para o xichangana, o desequilbrio

    se reproduz. evidente: Maputo funciona

    3 As lnguas foram designadas segundo o padro definido pelo Ncleo de Estudos de Lnguas Moambicanas (Ne-limo), lgado Universidade Eduardo Mondlane (cf. Firmino, 2002).

    Karen1Realce

    Karen1NotaBranos, ndios e mestios no participavam da guerra pela FRELIMO

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006256

    como plo de atrao para os demais grupos

    lingsticos do pas. Assim, mais fcil um

    falante de emakuwa dirigir-se para Maputo

    do que um changana se deslocar para o norte

    do pas; enquanto um makuwa em Maputo

    muito provavelmente acabe por aprender

    xichangana, um changana no norte far uso

    do portugus como lngua de comunicao

    veicular.

    No h dados relacionando grupo so-

    mtico e lngua, mas podemos armar que

    a totalidade dos brancos moambicanos

    tem como primeira lngua o portugus. Os

    indianos, bons conhecedores do portugus

    Lngua

    Populao (%)

    Lngua materna Lngua falada

    rea de residncia rea de residncia

    Total Urbana Rural Total Urbana Rural

    Portugus 6,5 17,0 2,0 8,8 26,1 1,4

    Emakuwa 26,3 16,8 29,6 26,1 17,0 29,9

    Xichangana 11,4 18,4 9,0 11,3 16,6 9,0

    Elomwe 7,9 3,5 9,7 7,6 2,8 9,7

    Cisena 7,0 6,3 7,3 6,8 5,6 7,3

    Echuwabo 6,3 4,0 7,3 5,8 2,5 7,1

    Outras lnguas moambicanas 33,0 32,0 33,5 32,0 27,5 33,9

    Outras lnguas estrangeiras 0,4 0,6 0,3 0,3 0,4 0,3

    Nenhuma 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1

    Desconhecida 1,3 1,3 1,3 1,3 1,4 1,3

    Grupo somtico e origem

    Populao (%)

    rea de residncia

    Total Urbana Rural

    Negro 99 97,6 99,5

    Misto 0,45 1,4 0,1

    Branco 0,08 0,2 0

    Indiano 0,08 0,3 0

    Outros 0,03 0,1 0

    Desconhecidos 0,4 0,4 0,4

    Nota: percentual calculado sobre o total de 15.278.400 habitantes, dos quais 4.454.900 na rea urbana e 10.823.500 na rea rural.

    Fonte: II Recenseamento Geral da Populao e Habitao, 1997, Instituto Nacional de Estatstica (Tho-maz & Caccia-Bava, 2001, p. 33).

    TABELA 1

    TABELA 2

    Nota: percentual calculado sobre o total de 12.536.800 habitantes, dos quais 3.757.700 na rea urbana e 8.779.100 na rea rural.

    Fonte: II Recenseamento Geral da Populao e Habitao, 1997, INE (Thomaz & Caccia-Bava, 2001, p. 35).

    Karen1RealcePortugus lngua oficial, porm h outras lnguas faladas em MoambiqueEmakuwa Xichangana

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    e muito freqentemente de alguma lngua

    nacional, teriam como lngua materna outra

    lngua estrangeira no caso, o hndi, o

    urdu ou o gujarate.

    Os dados apresentados so indicativos de

    uma imensa fronteira que separa o mundo

    urbano do mundo rural: se os negros so

    maioria da populao, no campo ou na

    cidade, o fato que minorias decisivas no

    universo social moambicano, como os

    brancos, os mistos e os indianos, se fazem

    presentes fundamentalmente na cidade.

    na cidade que o portugus aparece como

    lngua materna de uma parte signicativa

    da populao e como lngua veicular de

    um nmero ainda maior de pessoas. Das

    lnguas nacionais, se o emakuwa o idioma

    mais falado e se faz presente no apenas

    no campo mas em importantes cidades do

    norte do pas , o xichangana se destaca

    por seu carter tambm urbano, revelando

    a importncia da deslocada capital no extre-

    mo sul do pas e a sobre-representao dos

    changanas em posies-chave da sociedade

    e da poltica moambicanas.

    O termo nativo para branco extensivo

    a todos aqueles que ostentem hbitos civi-

    lizados: ao lado dos brancos e dos mistos,

    os negros que se expressem adequadamente

    em portugus e atuem como os citadinos

    so denominados pelos camponeses de

    mulungos, se no sul, e muzungos, quando

    caminhamos rumo ao norte do pas4. Mu-

    lungo ou muzungo so termos indicativos

    de uma posio social que se sobrepem e

    incorporam a referncia ao grupo somti-

    co. Se todos os brancos so mulungos, aos

    negros cabe esta possibilidade, pois uma

    minoria desde o perodo colonial podia se

    enquadrar na categoria de assimilado, a qual

    no foi efetivamente superada no perodo

    ps-independncia. E se o assimilado, ao

    longo de toda a histria colonial, consistia

    em um negro que se aproximava efetiva-

    mente no ncleo do poder sem se con-

    fundir com ele , nos anos que sucederam

    independncia passou a ocupar um lugar

    decisivo no funcionamento do aparelho de

    um Estado que no apenas adotou o portu-

    gus como lngua ocial mas, no interior de

    um projeto marxista-leninista, apropriou-se

    com um propsito revolucionrio de um

    conjunto de atributos anteriormente asso-

    ciados civilizao.

    O trabalho de Jos Teixeira revelador.

    Quando no norte do pas, entre os makuwas,

    percebeu que o termo mkunya (branco; plu-

    ral akunya) era usado concomitantemente

    para se referir a ele mesmo antroplogo

    portugus, branco e estrangeiro e aos ele-

    mentos da administrao estatal e agentes

    do partido Frelimo. Segundo Teixeira (2004,

    p. 314), essa denominao aplicvel a

    todos os indivduos que sejam associveis

    posse ou usufruto de smbolos corres-

    pondentes a uma posio social urbana de

    algum relevo estatutrio e/ou econmico.

    A extenso do termo branco f-lo cobrir

    um universo associvel ao poder, um eixo

    urbano, estatal e monetarizado. E mais,

    se, como lembra Teixeira e foi observado

    por mim em Inhambane5 e por Peter Fry

    (2000) no Chimoio, uma das clivagens a

    separar os brancos dos pretos o uso ou no

    da feitiaria, a permanncia no mato pode

    transformar brancos em grandes feiticeiros,

    os ma-guerra (Teixeira, 2004, p. 319).

    A idia de raa negra deve ser revista,

    no apenas em funo da sua fragmentao

    em etnias associadas em grande medida

    profuso lingstica6, mas tambm como

    conseqncia da aproximao entre todos

    aqueles que ostentem hbitos outrora as-

    similados civilizao, mas na atualidade

    conectados a uma maior ou menor familia-

    ridade com o universo urbano.

    De certa forma, podemos armar que

    uma grande oposio caracterstica do uni-

    verso de relaes raciais em Moambique

    nos dias que correm, a qual foi construda e

    consolidada ao longo do perodo colonial:

    oposio central existente entre brancos

    versus pretos, sucederam-se outras, civili-

    zados versus selvagens, assimilados versus

    indgenas, citadinos versus camponeses. No

    perodo colonial, a oposio traduzia um po-

    der poltico e econmico real, concentrado

    em portadores de uma distncia simblica

    em relao ao continente africano; no pe-

    rodo ps-colonial, e progressivamente, o

    poder poltico foi efetivamente transferido

    para as mos dos autctones. No entanto,

    4 No nal do sculo XIX, nota Mouzinho de Albuquerque (1934, p. 67): Os pretos da Zambzia chamam mu-zungo (senhor) aos brancos e geralmente do a mesma denominao a todos os ho-mens de chapu, mesmo que sejam pretos, como sucede por exemplo com Igncio de Jesus Xavier da Chicoa, uns Arajos Lobos do Panhame e Romo de Jesus Maria do Marral.

    5 Em todos os relatos recolhidos por mim entre indivduos de lngua gitonga e xitshwa, na pro-vncia de Inhambane, um dos grandes elementos a diferenciar brancos e pretos era a suposta imunidade dos primeiros ao feitio e sua ignorncia quanto manipulao do mundo dos espritos. Saliente-se que tais armaes nunca foram realizadas no sentido de armar alguma sorte de superioridade dos pretos diante dos brancos, muito pelo contrrio: os brancos no fariam uso da magia e seriam imunes ao feitio em funo de sua superioridade.

    6 Como lembra Firmino (2002, p. 110), a lngua constitui um fator crucial na denio da identidade tnica. A denio de fronteiras lingsticas no signica, contudo, universos de comunicao intransponveis. Geralmente, os moambicanos falam mais de uma lngua autctone, as quais podem ser reunidas em grandes grupos que favorecem a intercomuni-cao.

    Karen1Realce

    Karen1Realce

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    a oposio citadino versus campons no

    fez mais que repor as anteriores.

    Todos os demais grupos existentes em

    Moambique no perodo colonial indianos,

    mistos, gregos, chineses se enquadravam

    no plo desenhado acima, distanciando-se,

    evidentemente, do plo da tutela, mas nem

    sempre sendo plenamente incorporados no

    plo do poder. Sobre os gregos e chineses

    no me deterei neste texto, pois so co-

    munidades que fazem parte da memria:

    poucas centenas de remanescentes caram

    em Moambique aps a independncia,

    concentrados em poucos ncleos. Mistos e

    indianos, contudo, fazem parte da realidade

    presente do pas e, na atualidade, como no

    perodo colonial, introduzem um princpio

    de desordem no quadro descrito acima.

    IIIOs classicados como mistos renem

    cerca de 0,45% da populao total do pas e,

    como indica a Tabela 1, esto concentrados

    nas cidades, perfazendo 1,4% do total da

    populao urbana e apenas 0,1% da popu-

    lao rural. Se evidente que so poucos

    numericamente (superiores, contudo, ao

    nmero total de brancos moambicanos),

    sua importncia social no pode ser obli-

    terada.

    Durante boa parte do perodo colonial

    portugus, constituam um grupo evidente-

    mente incmodo. O novo sistema colonial

    se impe, por toda a frica, a partir de uma

    linha de cor extremamente rigorosa, e em

    Moambique esse processo no foi distin-

    to. Como nos mostra Mahmood Mamdani

    (1996), a criao de duas classes polticas

    de indivduos cidados de um lado, nas

    cidades, e sditos de outro, no campo foi

    conseqncia da administrao indireta im-

    posta maioria nativa7. E esse processo se

    deu, em grande medida, em meio a conitos

    que percorreram distintas colnias africanas

    e que implicaram a excluso sistemtica de

    uma minoria de funcionrios negros e mes-

    tios que h muito mantinham uma relao

    de compromisso com o legado europeu do

    antigo sistema colonial8. No caso de centros

    urbanos como Loureno Marques, Inham-

    bane, Quelimane e a Ilha de Moambique,

    famlias is bandeira portuguesa e pos-

    sibilidade de civilizao dos indgenas, na

    sua maioria mestias, foram assim alijadas

    das estruturas de poder erguidas pelo novo

    sistema colonial. Se no estavam subme-

    tidas ao sistema de administrao indireta,

    foram completamente afastadas da prpria

    estrutura de poder e, sobretudo, da funo

    de sujeitos de qualquer tipo de processo de

    incorporao da massa nativa.

    O novo sistema colonial seria construdo

    a partir de uma linha de cor que deplorava

    Perodo colonial

    Poder TutelaBrancos (metropolitanos e naturais) Pretos (autctones)

    Sujeitos da assimilao Objetos da assimilaoCivilizados (brancos e pretos assimilados) Indgenas (pretos)

    Cidade Campo

    Perodo ps-colonial

    Poder estatal Poder localPretos (mulungos) PretosCitadinos (pretos) Camponeses

    Estruturas PovoSujeitos do desenvolvimento Objetos do desenvolvimento

    7 Por administrao indireta entendemos uma forma de estruturao de poder colonial que incorpora e xa as dife-renas entre os grupos tnicos africanos, a qual foi aplicada com matizes em todas as col-nias africanas. Grosso modo, o poder local era exercido por uma autoridade tradicional, que contava com o apoio do representante do Estado colo-nial. Os indgenas eram, assim, concomitantemente, atrelados a um sistema jurdico denido por sua pertena tnica, submetidos a uma autoridade tradicional e presos a um determinado terri-trio rural (Mamdani, 1996).

    8 O antigo regime no foi responsvel pela formao de colnias no continente africano como nas Amricas e no Caribe. Com exceo da presena boer no extremo sul do continente, os assentamen-tos europeus reduziam-se a alguns milhares de indivduos distribudos entre pequenos ncleos urbanos em ambas as costas (atlntica e ndica), feiras e presdios enclaves, em suma, sempre submetidos hegemonia africana do entorno, e geralmente atrelados a atividades comerciais, em especial o trco de escravos. Ao longo de sculos, forma-ram-se sociedades crioulas marcadas fortemente pela mestiagem ncleos como Saint Louis (Senegal), Ajud (Benin), Luanda e Benguela (Angola), Quelimane e Ilha de Moambique (Moambique), ou os arquiplagos atlnticos de Cabo Verde e So Tom e Prncipe. As elites locais nesses enclaves eram geralmente mestias e a possibilidade de sua reproduo com o grupo estava diretamente atrelada aos laos que mantinham com os centros europeus.

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    qualquer forma de mestiagem. Antigas

    famlias mistas, como os Albasini, os Pott

    ou os Fornazini, ver-se-iam assim numa situ-

    ao paradoxal: de um lado, identicavam-

    se com a lngua e a cultura portuguesas; de

    outro, eram marginalizadas pelos portadores

    da civilizao e cultura que admiravam. Es-

    sas famlias conhecidas como tradicionais

    nos dias que correm no foram alheias ao

    processo descrito por Leo Spitzer (2001)

    para as famlias Zweig, na ustria, Rebou-

    as, no Brasil, e May, na frica Ocidental:

    viveram na pele os paradoxos da assimila-

    o. Acreditavam que qualquer forma de

    superao estaria ligada assimilao ao

    ambiente cultural e civilizacional europeu;

    no entanto, a expanso colonial contempo-

    rnea se faz em meio consolidao das

    teorias raciais, que condenavam os grupos

    humanos a sua herana biolgica. Nesse

    processo, as famlias tradicionais mistas de

    Loureno Marques e outros ncleos urbanos

    transformam-se, no dizer de Norbert Elias

    (2000), em outsiders9: grupo social formado

    a partir de um conjunto de processos sociais

    que acaba por lhe atribuir a condio de

    inferioridade.

    O historiador moambicano Jos Mo-

    reira (1997) faz uma descrio preciosa dos

    dilemas impostos a essas famlias mistas e

    assimiladas a partir da anlise da atuao

    de Joo Albasini, em particular por meio

    dos seus textos publicados nas primeiras

    dcadas do sculo XX em O Brado Afri-

    cano. Seu apego monarquia lusitana ex-

    pressava seu desprezo pelas promessas de

    uma repblica que, proclamada em 1910,

    tentava dinamizar um processo colonial que

    implicava a construo de fronteiras raciais

    institucionais entre grupos humanos.

    Tive a oportunidade de entrevistar

    membros idosos de famlias tradicionais

    de Maputo que possuam lembranas vivas

    dos anos que sucederam consolidao do

    Estado colonial em Moambique, institudo

    em 1930, na esteira do Estado Novo fascista

    de Salazar. Todos foram unnimes em ar-

    mar que o tratamento violento dispensado

    aos indgenas submetidos a trabalhos

    forados e estrutura de poder local de

    rgulos legitimados pelo administrador

    colonial10 tinha seu correspondente na

    humilhao cotidiana dispensada aos mistos

    e assimilados11.

    ramos muitos irmos. Eu era mais clari-

    nha, e no costumava ter problemas. Mas

    meus irmos tinha um irmo muito escu-

    ro, muito mesmo. Ele era sempre barrado na

    porta do cinema, ou impedido de se sentar

    no eltrico.

    Quando fui contratada para trabalhar no

    banco, fui a primeira mista. Alguns colegas,

    nem me olhavam.

    Considerados cidados portugueses do

    ponto de vista legal, mistos e assimilados

    dicilmente podiam ascender na socieda-

    de colonial. Os cargos altos e mdios da

    burocracia estatal estavam reservados aos

    brancos, assim como algumas categorias

    prossionais, como os trabalhadores dos

    caminhos de ferro. A dinmica associativista

    da sociedade urbana moambicana, que

    tinha que conviver com os limites impostos

    pelo fascismo salazarista, reveladora das

    fronteiras raciais existentes na colnia: os

    brancos metropolitanos organizavam clu-

    bes e associaes em grande medida em

    funo de sua adscrio prossional ou

    de sua origem regional metropolitana; os

    brancos nascidos em Moambique criaram

    a associao dos naturais; os mistos, o

    grmio africano; e os pretos assimilados,

    o instituto negrlo12.

    O lusotropicalismo, com seu elogio

    mestiagem, foi incorporado tardiamente

    como ideologia ocial (cf. Castelo, 1999;

    Thomaz, 2002) e nunca alcanou, efetiva-

    mente, o universo social: os mistos, longe

    de representarem um grupo dinmico e

    sujeitos de ascenso social, ocupavam os

    cargos mdios e intermedirios da limitada

    sociedade colonial e urbana moambicana.

    Seu acesso aos estudos fez com que de

    suas leiras sassem importantes vozes a

    dar origem a discursos em torno da singu-

    laridade nacional moambicana. Contudo,

    a fronteira social no os separava somente

    dos brancos, mas tambm dos pretos, que

    os olhavam com desconana. Tal des-

    9 Em Notas sobre os Judeus como Participantes de uma Relao entre Estabelecidos Outsiders, Norbert Elias (2001, p. 135) arma: Cultu-ralmente muito ligado tradio alem, eu pertencia pela estrutu-ra de minha personalidade a um grupo minoritrio desprezado. [] Embora estivesse isento de seu sinal distintivo mais manifesto, a religio, o destino singular desta minoria alm disso perseguida e oprimida h sculos , isto , o destino social do grupo exprimia-se de maneira evidente tanto em meu comportamento como na conscincia que eu tinha de mim mesmo e no meu pensa-mento. Mais tarde, inclu muitos aspectos dessas experincias em uma teoria sociolgica, a teoria das relaes entre grupos estabelecidos e grupos outsiders. O problema dos ju-deus alemes era efetivamente um problema de relaes entre grupos estabelecidos e grupos outsiders. Como muitos outros grupos outsiders, os judeus estavam excludos, na Ale-manha imperial, de toda uma srie de promoes sociais. Existem muitos paralelos a essa solidariedade dos grupos estabelecidos face aos outsiders e excluso desses ltimos de inmeras situaes reservadas aos estabelecidos, sua exclu-so das chances de poder que elas oferecem.

    10 O que Mandani (1996) deniu como despotismo descentrali-zado.

    11 Os indgenas que demonstras-sem um conhecimento consi-dervel da lngua e da cultura portuguesas podiam solicitar o estatuto de assimilados, esta-riam livres dos trabalhos fora-dos, mas ver-se-iam obrigados ao pagamento de impostos em papel-moeda. O processo de assimilao era, contudo, extremamente difcil, em grande medida em funo dos limites do prprio Estado colonial. Em 1945, a populao assimilada de Moambique era de apenas 1.845 indivduos, e em 1955, era de 4.554 almas (Newitt, 1997, p. 441).

    12 Para a gnese do associativismo em Moambique e sua relao com o nativismo, ver: Rocha, 2002.

    Karen1Realce

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  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006260

    conana reproduziu-se no perodo ps-

    colonial, e as famlias mistas, hoje como

    no perodo colonial, constituem ainda um

    grupo social outsider. Ostentam hbitos e

    costumes que os aproximam da elite negra

    urbana moambicana e dos brancos, mas

    no so nem negros nem brancos. Pequena

    classe mdia, vem suas possibilidades de

    ascenso no mundo da poltica restritas

    pelo fato de o pas se armar mais e mais

    como terra de pretos Portugal, terra

    de brancos, Moambique, terra de pretos,

    Brasil, terra de mulatos, foi-me dito mais

    de uma vez. Quando se expem no frgil

    debate pblico nacional, correm o risco de

    ver sua moambicanidade questionada:

    mulato no tem bandeira.

    IVInterpretar a presena indiana em Mo-

    ambique no perodo contemporneo exige

    um rpido mergulho em sua histria, que

    nos dar boas pistas para pensarmos os pa-

    radoxos que suscita sua reproduo como

    grupo em diferentes pases do continente

    em especial, Qunia, Tanznia, Uganda,

    Zmbia, Zimbbue, Moambique e frica

    do Sul. De entrada, uma advertncia: no

    estamos diante de um grupo homogneo,

    e os genericamente denominados in-

    dianos ou asiticos so divididos em

    subgrupos perfeitamente percebidos pela

    populao local.

    Encontramos registros da presena india-

    na na costa moambicana j nos sculos XVI

    e XVII (cf. Dias, 1992; 1998). Se pensamos

    em regies onde a presena portuguesa

    no mnimo contnua desde o sculo XVII,

    tais como a Ilha de Moambique, a regio

    da Zambzia e Inhambane, deparamo-nos

    com um universo de relaes que acabaram

    por opor os sditos do rei de Portugal aos

    distintos ncleos indianos que, apesar de es-

    tratgicos agentes comerciais, responsveis

    pela circulao de todo tipo de mercadoria e

    monopolistas do apreciado tecido da regio

    do Gujarate, em geral no eram considerados

    como is vassalos da coroa.

    Saliente-se que sua presena entre os

    sculos XVII e XIX no se congurava

    no mesmo formato que na atualidade. Na

    altura, indianos hindus, catlicos (goeses)

    e os muitas vezes denominados de mouros

    indianos muulmanos faziam-se sentir,

    sobretudo, a partir da distribuio de agentes

    entre os portos Ilha de Moambique, Rio

    de Sena, Quelimane, Beira e Inhambane e

    o interior. Donos de cantinas e armazns,

    freqentemente amasiados com africanas,

    os indianos acabam por se encarregar da

    distribuio de produtos entre as empresas

    indianas, francesas, alems, inglesas, holan-

    desas e portuguesas que passam a disputar

    os uxos comerciais na regio. Entre nais

    do XVIII e primeiras dcadas do XIX, se o

    uxo de oleaginosas e algodo e tambm de

    ferro e ouro era controlado pelos indianos,

    o comrcio de escravos para o Brasil e para

    os arquiplagos ndicos estava nas mos das

    casas de Marselha, de uma elite crioula e

    de senhores luso-brasileiros.

    A consolidao colonial portuguesa na

    regio far-se- assim em meio a conitos

    que opunham os novos colonizadores aos

    Estados-conquista africanos e aos senhores

    e senhoras do trco de escravos. Mas a

    frica Oriental Portuguesa ver-se- s vol-

    tas com outra sorte de conitos: aqueles que

    opunham os novos interesses lusitanos ao

    controle efetivo que os indianos exerciam

    sobre as rotas comerciais que conectavam

    a costa ao interior. pacicao dos cha-

    mados indgenas se sobrepe a necessidade

    urgente de neutralizar o grande capital india-

    no, enraizado na regio pela profundidade

    temporal, extenso geogrca e, sobretudo,

    em funo de alianas e cumplicidades com

    as populaes nativas13. E se as guerras

    serviram para submeter efetivamente os

    indgenas destruindo suas lideranas (parte

    das quais posteriormente incorporadas na

    administrao indireta), o conito entre a

    administrao portuguesa, os colonos e os

    indianos no apenas reproduzir tenses

    seculares, como ganhar novos signicados

    ao longo do perodo colonial.

    Tenses seculares porque tratava-se de

    competio tenaz por rotas comerciais. Em

    seu momento gentico, o regime portugus

    13 Sobre os indianos no nal do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX, ver: Leite, 1996; Zamparoni, 2000.

    Karen1Realce

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    em Moambique (e o britnico no Qunia,

    e o alemo na Tanganica) depara-se com

    o que podemos chamar de colonialismos

    concorrentes: efetivamente, os indianos,

    hindus e muulmanos, controlavam, ao lado

    dos rabes, importantes rotas comerciais,

    as quais representavam a possibilidade de

    riqueza para a frgil burguesia mercantil

    portuguesa. Uma indstria incipiente por-

    tuguesa era responsvel pela produo de

    txteis de baixa qualidade, de enlatados,

    azeite de oliva e alguns vinhos que no

    encontravam mercado na Europa ou no

    Brasil. E se o vinho para preto exigiu

    uma atividade repressiva brutal por parte

    do Estado colonial no sentido de desati-

    var alambiques e produes caseiras de

    destilados e fermentados, o tecido e, em

    menor medida, os enlatados demandava

    um confronto direto com os comerciantes

    indianos (cf. Capela, 1973; 1975).

    Mas o desao dos comerciantes indianos

    extrapolava uma pauta de produo e mesmo

    de comercializao. Empresas portuguesas

    poderiam impor uma restrio fsica aos

    indianos e beneciar-se da importao dos

    seus produtos e das taxas alfandegrias

    resultantes. A grande questo era espacial:

    os indianos j estavam distribudos pelo

    interior do pas no momento anterior

    conquista. Ao lado de comerciantes ra-

    bes (em grande medida concentrados no

    norte de Moambique), possuam pontos

    comerciais nos locais mais distantes e eram

    responsveis pelo escoamento da produo

    camponesa para a costa. Trata-se, portanto,

    de uma questo de ocupao espacial: os

    indianos no s estavam no mato, como

    estavam dispostos a ali continuar. O mesmo

    no podemos dizer quanto aos europeus,

    reticentes a se estabelecerem no serto, em

    grande medida inspito nas dcadas que su-

    cederam conquista. Assim, o colonialismo

    portugus ver-se- s voltas com a neces-

    sidade de se aliar ao comerciante indiano

    no sentido de garantir a formao territorial

    de Moambique. Da mesma forma que a

    administrao indireta foi conseqncia de

    uma somatria de fatores que teve como

    conseqncia a incorporao da autoridade

    nativa, investida de novos signicados, a

    relativa tolerncia com relao presena

    indiana acabou por obedecer, embora no

    exclusivamente, a uma sorte de razo pr-

    tica. Incapaz de evit-los, ou substitu-los,

    e reconhecendo sua necessidade, o melhor

    ser incorpor-los.

    Em todo caso, nesse enfretamento que

    podemos denominar de colonialismos

    concorrentes, os europeus levariam a me-

    lhor: no m do sculo XIX, a burguesia

    europia foi capaz de construir ecazes

    instrumentos de presso junto ao Estado,

    no sentido de fazer valer seus interesses

    na frica, transformando-os em interesses

    nacionais. Os indianos, se controlavam u-

    xos comerciais, conferiam outros sentidos

    terra de origem e de destino, entre outras

    coisas por estarem submetidos s diretrizes

    do imprio britnico. Enfrentaram, enm,

    constrangimentos de natureza poltica, mais

    do que diculdades de insero no universo

    capitalista dos grandes imprios, ao qual

    se adaptaram bem, ajudando a constru-lo

    e a mant-lo.

    Seja como for, e como ca evidente no

    relatrio de Mouzinho de Albuquerque, a

    desconana diante do comerciante indiano

    est na gnese do colonialismo portugus

    naquela regio da frica Oriental:

    Mais sbrios que o italiano, mais astutos

    que o levantino, mais onzeneiros e ava-

    rentos que o prprio judeu e, no que toca a

    internarem-se por pases inexplorados, to

    persistentes como o mais destemido sax-

    nio, o mouro e o baneane da ndia, sempre

    humildes e trmulos diante de brancos e

    pretos, vo, com artigos avariados, com

    lcool semivenenoso, vendidos com lucros

    nmos e medidas falsas, caa das libras

    que andam espalhadas por essa frica

    imensa, fazendo escravatura onde lha to-

    leram, contrabandeando o que podem, e

    sempre sorridentes e curvados em salames,

    sempre gananciosos e vidos de ouro que

    mandam para o Industo (Albuquerque,

    1934, p. 103).

    Voltemos incorporao dos indianos

    no contexto colonial moambicano. O novo

    sistema colonial, em Moambique e por

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006262

    toda a parte, fundava-se, como j vimos, a

    partir de uma oposio bsica entre negros

    nativos e brancos colonizadores que, com

    raras excees, no romperam seus laos

    com a metrpole colonial, muito pelo con-

    trrio: armavam-na continuamente, pois

    se tratava do nexo que lhes conferia uma

    situao de extraordinrio poder. Os brancos

    europeus foram transformados em sujeitos

    da civilizao, o que no contexto portugus

    se traduzia na armao de seu potencial

    assimilador, pedra-de-toque ideolgica

    do colonialismo portugus na frica (cf.

    Thomaz, 2002). O nativo africano, negro

    e rural, era o objeto da assimilao, a qual,

    por outro lado, deveria ocorrer lentamente,

    garantindo desse modo a reproduo do

    prprio sistema colonial. Como j procu-

    rei indicar, assimilados e mistos passam a

    desempenhar um papel tenso no interior

    do sistema e constituem, com toda a cer-

    teza, uma verso colonial dos outsiders de

    Elias (2000): beneciados pelas benesses

    do mundo urbano e colonial, no estavam

    sujeitos ao trabalho compulsrio; contudo,

    representavam quase que um arremedo

    de uma civilizao que se queria branca e

    europia, e que impunha travas brutais a

    sua ascenso social. Concomitantemente,

    eram o produto mais acabado do projeto

    colonial portugus.

    Aos indianos no coube a mesma sorte,

    pois no eram nem sujeito, nem objeto,

    nem produto da assimilao. No eram

    indgenas, mas tampouco eram metropoli-

    tanos, e mais: na prtica, e simbolicamente,

    constituam o nexo entre a cidade e o mato,

    no estando integrados em nenhuma dessas

    esferas plenamente.

    Da perspectiva das populaes indianas

    hindus, a grande transformao, entre nais

    do sculo XIX e incio do XX, se d no que

    diz respeito ao padro de organizao fami-

    liar. Durante sculos, a costa oriental foi o

    espao de atuao de comerciantes indianos

    do sexo masculino, que se amasiavam com

    africanas gerando uma prole mestia, mas

    que voltavam ao Gujarate no momento de

    contrair matrimnio, levando parte de seu

    patrimnio consigo e deixando o restante

    com sua famlia africana. Se o nal do sculo

    Karen1Realce

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 263

    XIX e incio do XX representou a tentativa

    por parte dos portugueses de romper o do-

    mnio indiano na regio sobretudo porque

    o apreciado tecido do Gujarate exercia uma

    competio avassaladora em relao ao

    txtil portugus , o controle do interior e a

    criao e higienizao dos centros urbanos

    e vilarejos representaram a possibilidade

    de estabelecimento de ncleos familiares

    indianos, a mulher se deslocando para a

    regio e favorecendo o estabelecimento e o

    enraizamento das casas, as quais passaram

    a desempenhar um papel crucial na repro-

    duo de sua presena em Moambique no

    perodo colonial e ps-colonial.

    Grosso modo, e a partir das informaes

    recolhidas em Inhambane, o perodo colo-

    nial foi marcado por uma certa prosperidade.

    Entre o incio do sculo e a dcada de 1960,

    boa parte das casas comerciais indianas se

    consolidou por todo o pas, estabelecendo

    uma relao de competio discreta com

    os portugueses, mantendo seus laos com

    a ndia original e estendendo-os para outras

    regies do hinterland africano. Fazem parte

    da memria dos membros da coletividade

    as viagens ao Indosto, geralmente associa-

    das a dinmicas familiares e a turbulncias

    polticas que, por outro lado, tiveram um

    profundo impacto nas redenies identi-

    trias das distintas comunidades indianas

    existentes na colnia. Para os indianos, o

    tempo-colnia se subdivide a partir de cli-

    vagens internas e externas a Moambique

    que dicilmente fariam sentido para os

    outros grupos da colnia.

    Assim, a dupla independncia da ndia

    e do Paquisto em 1947 teve um profundo

    impacto na congurao de uma grande

    coletividade que passa a ser denominada

    de asitica, subdividida entre hindus e

    muulmanos, crescentemente associa-

    dos formao desses novos Estados no

    subcontinente. Curiosamente, e at onde

    pudemos perceber, a mobilizao dos in-

    dianos na frica do Sul e no Qunia, com

    a formao do Congresso Nacional Indiano,

    nesses pases, sob o impacto da gura de

    Gandhi, teve um efeito nulo entre os in-

    dianos hindus de Moambique. O mesmo

    no podemos dizer da invaso e anexao

    do Estado da ndia Portuguesa pela ndia

    de Nerhu, em dezembro de 1961. Nesse

    momento, os indianos muulmanos armam

    denitivamente um lao de suposta origem

    com o Paquisto, ao tempo que os hindus

    originrios dos enclaves portugueses, Goa,

    Damo e Diu, se colocam sob a bandeira da

    metrpole colonial. Em dezembro de 1961,

    os demais, cerca de 20.000 hindus espalha-

    dos por todo o pas, foram concentrados em

    campos. Considerados potenciais traidores

    e estrangeiros (embora boa parte tivesse

    nascido na colnia), receberam, em maio de

    1962, um ultimato: teriam trs meses para

    abandonar Moambique14. A formao de

    uma identidade portuguesa entre as famlias

    indianas hindus originrias de Goa, Damo

    e Diu est, com toda a certeza, associada

    a esse conturbado perodo, em que ser

    confundido com um indiano da ndia de

    Nerhu, os antigos british indians, poderia

    ser fatal e resultar na perda dos seus bens

    e na expulso.

    Dessa forma, Salazar antecipou-se em

    uma dcada a outra expulso, aquela pro-

    movida por Idi Amin Dada em Uganda, que,

    entre agosto e outubro de 1972, obrigou os

    cerca de 80.000 indianos a abandonarem o

    pas15. At os dias de hoje, as turbulncias

    vividas pelos indianos na antiga frica

    Oriental Britnica Qunia, Uganda, Tan-

    ganica e Zanzibar so lembradas uma e

    outra vez pelos indianos remanescentes

    em Moambique como um indicativo de

    sua vulnerabilidade. O desastre que resul-

    tou da expulso dos indianos de Uganda

    tambm lembrado como forma de armar a

    sua necessidade na regio, como ca claro

    no depoimento abaixo recolhido junto a um

    indiano hindu de Inhambane:

    A expulso dos nossos de Uganda foi ter-

    rvel. No s eles perderam tudo, Uganda

    tambm. As lojas foram divididas entre os

    africanos que no sabiam como as abastecer,

    e no sabiam o preo das coisas. O vendedor

    perguntava o preo aos clientes, ou confun-

    dia a marcao do peso com o preo. Um

    desastre. Os africanos no sabem o valor

    das coisas, o indiano sabe. Os africanos

    tambm no sabem o cmbio: quando foram

    14 Sobre a expulso dos indianos hindus de Moambique no pe-rodo salazarista, ver: Thomaz & Nascimento, 2005.

    15 Sobre a expulso dos indianos de Uganda, ver: Thomaz & Nascimento, 2004.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006264

    embora, Amin mandou imprimir dinheiro

    e mais dinheiro, e ningum o sabia trocar

    por libras ou dlares.

    O incio do tempo-Samora vivido com

    ansiedade por membros da coletividade que,

    em grande medida, permanece no pas. A

    possibilidade de se estabelecer em Portugal

    metrpole empobrecida e convulsionada

    tambm por uma revoluo no era nada

    clara. Ir para onde? Por outro lado, muitos

    se beneciaram com a sada dos brancos,

    portugueses e gregos, e zeram-se com

    suas propriedades e lojas. Ao contrrio de

    Amin, ou de Kenyata, Samora ofereceu

    garantias aos indianos para permanecerem

    no pas, muito provavelmente ciente de sua

    importncia no sistema de abastecimento

    e da necessidade de manter as trocas entre

    o mato e a cidade.

    Mas o perodo Samora no foi fcil.

    Tiveram que se dobrar ao sistema de par-

    tido nico e tentativa de construo de

    uma economia pretensamente planicada;

    tinham que competir com as Lojas do Povo e

    se inserir num sistema centralizado de distri-

    buio de produtos, bem como se submeter

    s restries ao crdito e posse de divisas

    estrangeiras. Nesse perodo, era freqente

    a suspeita de que os indianos estocavam

    produtos tendo em vista a especulao ou

    possuam secretamente divisas.

    Na atualidade, a visibilidade de india-

    nos, muulmanos e hindus em atividades

    comerciais e o enriquecimento de parte

    dos membros dessas comunidades con-

    vertem-nos freqentemente em objeto de

    desconana e mesmo de acusaes de

    fetiaria (em especial os muulmanos)16.

    Sobre eles pesa a desconana de partici-

    pao em toda a sorte de atividades ilci-

    tas, do trco de drogas e armas evaso

    de divisas. Hoje, como antes, so vistos

    como corpos estranhos quele universo

    poltico: ento inimigos dos portugueses,

    ora transformados em inimigos da nao.

    Constantemente representados como fo-

    rasteiros, diante da massa autctone, ne-

    gra, os indianos, denunciados por sua cor

    marrom, agarram-se de forma paradoxal

    a essas terras.

    V

    Falar de relaes raciais em Moam-

    bique nos coloca, sem sombra de dvida,

    no contexto regional. Para todos aqueles

    habitantes das regies central e sul do pas, as

    referncias aos brancos que se encontram do

    outro lado da fronteira so constantes. Far-

    meiros brancos no Zimbbue (anglfonos)

    ou os boers na frica do Sul (afrikaans) se

    fazem continuamente presentes no cotidiano

    dos moambicanos, que desde a segunda

    metade do sculo XIX encontram nos

    territrios ento controlados pelo imprio

    britnico trabalho e alguma remunerao.

    O trabalho clssico coordenado por Ruth

    First sobre os mineiros moambicanos

    (Centro de Estudos Africanos, 1998) deixa

    claro, a partir de depoimentos e da coleta de

    canes de trabalho, o vnculo secular dos

    habitantes do sul de Moambique com as

    terras sul-africanas. Diante da expectativa

    do trabalho forado sem remunerao na

    colnia sob domnio portugus, a ida para

    as minas e as farmes da frica do Sul e da

    Rodsia do Sul (atual Zimbbue) constitua

    a nica possibilidade de qualquer forma de

    acumulao.

    Na atualidade, os boers constituem uma

    presena constante no sul de Moambique,

    quando os moambicanos fazem referncia

    aos duros anos passados nas minas ou nas

    farmes, quando pensam na possibilida-

    de de trabalhar ou encontrar parentes na

    frica do Sul, quando fazem referncia

    ao desenvolvimento do pas vizinho, ou

    ainda no cotidiano marcado pela presena

    sul-africana, na forma de investidores ou

    turistas. Os mais velhos fazem referncia

    aos pidgis usados nas minas ou nas farmes

    em suas relaes com os patres brancos, o

    chilapalapa ou o funacal. Lnguas absolu-

    tamente limitadas ao universo do trabalho e

    pontuadas por imperativos que lembram a

    impossibilidade de relaes afetivas entre

    brancos e negros

    As constantes narrativas sobre os boers

    e ingleses nos revelam que, da perspectiva

    dos moambicanos negros, os brancos cons-

    tituem um grupo marcado por uma imensa

    16 Sobre os indianos e as acusa-es de feitiaria, ver: Thomaz, 2004.

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    diversidade. Portugueses, boers e ingleses

    constituem grupos percebidos como dife-

    rentes, e os trs grupos nos remetem tem-

    poralidade colonial, o tempo-colnia. Nas

    regies do Chimoio e Inhambane, aqueles

    que tiveram experincias nas farmes rodesia-

    nas ou nas minas sul-africanas so unnimes

    em reconhecer o retorno nanceiro de seu

    trabalho. Boers e rodesianos valorizavam o

    trabalho manual, pagavam por ele. E mais:

    os boers, aos gritos ou no, chegam mesmo

    a trabalhar lado a lado com os africanos nas

    fazendas. Do lado portugus, s sobravam

    os gritos e os trabalhos forados.

    Assim, as representaes em torno do

    segregacionismo britnico e do apartheid

    sul-africano no so necessariamente pon-

    tuadas pela condenao moral ou pela dor

    provocada pela discriminao. Pelo menos,

    no mais do que as lembranas do prprio

    colonialismo portugus na regio. Na me-

    mria dos mais velhos, em diversas regies

    de Moambique sob o domnio portugus, o

    trabalho forado constitui a lembrana mais

    marcante. Do lado britnico ou boer, tnha-

    mos segregao e gritos, mas a valorizao

    do trabalho manual na forma de dinheiro; do

    lado portugus, apenas segregao e gritos.

    O apartheid sul-africano e o segregacionis-

    mo rodesiano no so mais impressionantes

    do que o segregacionismo portuguesa:

    nos trs casos, os brancos promovem uma

    separao fsica com relao aos no-bran-

    cos e situam-se no plo do poder; no caso

    sul-africano, mais de um trabalhador com

    quem conversei salientou suas vantagens,

    entre elas o fato de o apartheid possuir re-

    gras claras: L sabamos onde podamos

    e onde no podamos ir, o que podamos

    fazer ou no; em Moambique, sabamos,

    mas nem sempre era claro, e era mais fcil,

    assim, levar uma bofetada.

    A origem nacional dos brancos se

    britnico, boer ou portugus crucial

    para compreendermos as suas relaes com

    a maioria negra do pas. Muitas vezes, o

    conhecimento da lngua nativa condio

    para uma maior aproximao com os habi-

    tantes das zonas rurais era mais freqente

    entre os anglfonos e os boers do que entre

    os portugueses. De um lado, anglfonos e

    boers no tinham, em princpio, nenhum

    tipo de ideal assimilacionista, ou seja, no

    fazia muito sentido encorajar um negro a

    conhecer bem qualquer lngua europia; de

    outro, os administradores britnicos viam

    o seu soldo aumentar consideravelmente

    se demonstravam aprendizagem da lngua

    nativa. Assim me relatou um antigo admi-

    nistrador colonial portugus:

    No incio dos anos 40, trabalhei no Milan-

    ge, ao p da fronteira com a Niassalndia

    (atual Malaui). A Niassalndia era um bem

    da coroa, um protetorado, no uma colnia.

    Os indgenas seguiam sua vida. Tnhamos

    boas relaes com os administradores in-

    gleses, pois tentvamos solucionar muitos

    problemas com os indgenas entre ns, sem

    ter que entrar em contato com Loureno

    Marques ou Blantyre. Eles viviam muito

    melhor que ns, ganhavam muito mais.

    Ns no ganhvamos quase nada. E eles

    falavam a lngua dos indgenas. Eu no,

    os administradores portugueses no. Se

    eles aprendessem a lngua dos indgenas,

    ganhavam mais. Em Moambique no, e

    mais: mudavam-nos de lugar a cada dois

    anos, o que tornava impossvel o aprendi-

    zado da lngua.

    VIEm Moambique, raa, nao, ocupa-

    o, status e poder esto intrinsecamente

    conectados. A herana biolgica suposta

    na idia de raa deve-se enfrentar histria

    colonial e ps-colonial dos povos moam-

    bicanos e nos processos que deram origem

    a um intenso debate cotidiano em torno da

    nao. Uma das justicativas ideolgicas

    que serviu de base para a expanso imperial

    europia entre nais do sculo XIX e incio

    do sculo XX foi a idia de raa a que

    atrelava homens e mulheres ao seu patrim-

    nio gentico e transformava o livre-arbtrio

    e a prpria noo de liberdade numa iluso.

    Paradoxalmente, o imperialismo pautava

    sua prtica em torno ao projeto de elevao

    civilizacional da massa nativa. Assim, de um

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    lado pretendia-se sistematizar e conservar

    o patrimnio cultural autctone, e atar os

    indgenas aos desgnios de sua raa; de

    outro, uma parte diminuta dos nativos era

    devidamente incorporada (de forma subal-

    terna) no universo cultural do colonizador

    europeu. A estes ltimos, coube a elaborao

    de projetos nacionais que procurou recons-

    truir uma identidade com a grande massa

    indgena subdividida em uma innidade

    de grupos tnicos ao longo do processo

    colonial a partir da apropriao de uma

    noo criada no bojo do prprio sistema

    colonial, raa, doravante associada ao

    ncleo do poder legtimo por meio de sua

    associao com a idia de autoctonia. A

    associao entre raa, autoctonia e nao

    ganha, em Moambique, um tom particular

    na medida em que a guerra que a articula.

    A histria e o debate em torno da nao

    fazem contnua referncia experincia

    de cada um dos grupos ao longo da guerra

    civil que, entre nais dos anos 70 e 1992,

    devastou o pas e afetou a vida de todos os

    moambicanos. E neste ltimo item, e como

    uma considerao nal, procurarei atar, por

    meio de narrativas em torno da guerra, pelo

    menos parte dos mltiplos os estendidos

    nesse labirinto moambicano.

    Todos os moambicanos viram-se dura

    e tragicamente envolvidos numa guerra que

    direta ou indiretamente comprometeu a vida

    de mais de um milho de indivduos em

    pouco mais de uma dcada. Na atualidade,

    histrias de guerra constituem um dos temas

    preferidos dos moambicanos: todos tm

    algo a contar. No entanto, a distribuio

    dos sofrimentos no foi igualitria e, como

    cou claro no incio deste ensaio, suspei-

    tas e acusaes em torno de experincias

    de guerra acabam por denir o lugar que

    cada um desses grupos ocupa nas narrativas

    sobre a nao.

    Boers e ingleses so evidentemente

    considerados como elementos externos

    ao corpo nacional, mas no esto ausentes

    da guerra. Para alm do fato de parte das

    interpretaes acadmicas da guerra enfa-

    tizar a agresso externa da Rodsia de Ian

    Smith e da frica do Sul do apartheid, a

    agresso estrangeira faz parte da memria

    dos moambicanos, pelo menos em algu-

    mas regies do pas. Assim, falar sobre a

    guerra tambm falar sobre os boers e os

    anglfonos, sobre os brancos do outro lado

    da fronteira. Aqueles que bombardearam os

    subrbios do Chimoio procurando atingir os

    guerrilheiros do movimento de libertao

    zimbabuano e acabaram por matar deze-

    nas de moambicanos; ou aqueles que, da

    mesma forma, bombardearam a cidade de

    Matola, atrs dos militantes do Congresso

    Nacional Africano. Parte das histrias faz

    ainda referncia aos seqestros de crianas

    moambicanas pelas foras sul-africanas,

    logo devolvidas como guerrilheiros da

    Renamo, ou ainda origem do material

    blico usado pelos bandidos armados: ar-

    mas e uniformes do exrcito sul-africano.

    Esses brancos so, assim, representados

    como parte do conito, mas na forma de

    inimigos externos.

    Sobre os portugueses, no h muito a

    dizer: a esmagadora maioria fugiu nos anos

    que sucederam independncia do pas. O

    que, sim, certo que, para muitos, essa

    fuga foi precipitada e, em grande medida,

    deveria ter sido evitada. Se sua participao

    maior ou menor na guerra no objeto de

    reexo por parte da populao17, associar

    os bandidos armados a grupos saudosos do

    perodo colonial relativamente freqente,

    sobretudo ali onde antigos rgulos passaram

    a garantir o suprimento de jovens para as

    leiras da Renamo (Geffray, 1990). No

    entanto, os portugueses so portugue-

    ses, e o retorno contemporneo de alguns

    milhares se d sempre em meio a formas

    mais ou menos explcitas de diferenciao

    da nacionalidade moambicana diante da

    portuguesa. Estamos diante de um conjun-

    to de situaes cotidianas que por vezes

    anunciam tenso e conito, pois parte dos

    portugueses que ora retornam deixou o

    pas na altura da independncia ou nos

    anos que a sucederam, em geral temendo

    as privaes da guerra e da revoluo. Seu

    distanciamento da nao ao longo da guerra

    suciente para transform-los denitiva-

    mente em estrangeiros.

    justamente sua relao com a guerra

    que diferencia os portugueses daqueles

    17 O mesmo no podemos dizer quanto a determinadas inter-pretaes acadmicas, que enfatizam o apoio dos antigos colonos aos guerrilheiros da Renamo, sobretudo daqueles que se estebeleceram na frica do Sul e na Rodsia (Minter, 1998).

    Karen1Realce

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    brancos que assumiram a nacionalidade

    moambicana e permaneceram no pas. Tal

    como Machado da Graa, todos lembram-

    se dos duros anos de repolho e carapau,

    das las que faziam lado a lado com todos

    os demais moambicanos para conseguir

    qualquer produto. Sobre eles paira, contudo,

    uma suspeita. Podem ser moambicanos,

    sim, mas no so autnticos. Anal, esta-

    mos num pas de pretos, e aos pretos cabe

    governar e decidir o seu destino. Impe-se

    a outra clivagem, aquela que separa o

    universo urbano do rural e, mais uma vez,

    as histrias de guerra sugerem fronteiras,

    pois os que permaneceram nas cidades

    todos os brancos moambicanos, assim

    como boa parte dos mistos no viveram

    a face mais dura da guerra, no permane-

    ceram dias ou semanas no mato comendo

    razes, no foram obrigados a matar seus

    familiares e se juntar s tropas da Renamo

    ou foram vtimas da operao produo

    ou da operao sem camisa18.

    Com relao aos indianos, deparamo-

    nos novamente com suspeitas de seu no

    pertencimento pleno ao pas, por suposta-

    mente no terem sofrido como os negros

    os duros anos da guerra civil. No entanto,

    so os mesmos indianos que se opem a

    esse processo de excluso em suas his-

    trias de guerra, aquelas que lembram

    os indianos assassinados, seqestrados,

    mortos de fome no meio do mato; ou bem

    de mulheres violadas muitas vezes pelos

    matxangas e que tiveram lhos com os

    bandidos. Insistir em narrativas da guerra

    constitui uma busca de reconhecimento. De

    qu? De pertencimento ao corpo da nao.

    Nesse processo, e diante de uma frica

    que se arma negra, uma frica para os

    africanos legtimos, armar repetidamente

    ter compartilhado esse sofrimento, e mais,

    atrever-se a elaborar uma verso do porqu

    do seu sofrimento especco, constitui, em

    meio a outras manifestaes, uma armao

    visceral de nacionalidade. Ns somos deste

    pas, camos aqui, sofremos como todo

    mundo19. Trata-se de uma armao deses-

    perada e simblica que no ganha, contudo,

    carter poltico. Encontramo-nos diante

    de narrativas da precariedade: os indianos

    lembram constantemente a vulnerabilidade

    que caracteriza a sua situao. Ao lado de

    uma situao econmica bastante instvel,

    devem conviver com narrativas que vm de

    todos os lados e que armam a sua condio

    de forasteiros.

    Fragmentao. Assim convm inter-

    pretar esse universo que, por comodismo,

    podemos denominar de relaes raciais em

    Moambique. Ao contrrio do ocorrido em

    muitos contextos ps-coloniais do Novo

    Mundo, na Amrica Latina em geral, e no

    Brasil em particular, no h um esforo

    de sntese ou um modelo de superao. A

    herana colonial se expressa em Moam-

    bique, e em outros pases africanos, na

    forma de excluso. O pertencimento a um

    determinado grupo denido em funo da

    raa interpela o jogo social mais amplo

    posio social, cultura, lngua, estatuto,

    ocupao prossional, local de residncia,

    origem e converge rumo armao da

    autoctonia. No passado, o ser autctone de-

    nia sua distncia com relao ao ncleo de

    poder e sua excluso do aparato institucional

    colonial; na atualidade, dene os que so ou

    no membros plenos do corpo nacional. As

    histrias de guerra, contadas ainda tempos

    depois de seu m, sugerem a pertena sim-

    blica e real de uns a uma nao construda

    em meio a um conito que ainda resiste a

    interpretaes generalizadoras. Constituem,

    contudo, um campo de debate, pois mino-

    rias exludas simbolicamente da nao se

    agarram a suas histrias, tambm forjadas

    na guerra, para interpretar o seu passado e

    armar a sua deciso de fazer parte de um

    pas que ajudaram a construir.

    18 A operao produo foi de-sencadeada no nal de 1982 e foi responsvel pela evacuao de milhares de indivduos (entre 50.000 e 100.000) dos centros urbanos para os campos de colonizao no Niassa. Esses indivduos eram acusados de serem malandros ou desocupados. A operao sem camisa afetou sobretudo a cidade da Beira e consistia no recrutamento forado de jovens, muitas vezes menores de idade, por parte da Frelimo. H notcias de alguns brancos vtimas da operao produo, mas no da operao sem camisa (Thomaz, 2005).

    19 Sobre a interpretao dos indianos hindus de Inhambane da guerra civil, ver: Thomaz & Nascimento, 2004.

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