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    ISSN

    0034-7612

    Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de

    administrao pblica; 200 anos de reformas*

    Frederico Lustosa da Costa**

    SU MRI O: 1. Introduo; 2. Administrao colonial portuguesa; 3. A construo do

    Estado nacional; 4. A Repblica Velha; 5. A burocratizao do Estado nacional;6. O nacional desenvolvimentismo; 7. A modernizao autoritria; 8. A reformaadministrativa da Nova Repblica; 9. A reforma do governo Collor; 10. A reformaBresser; 11. Consideraes finais sntese histrica.

    SUMMARY: 1. Introduction; 2. Colonial Portuguese administration; 3. The construc-tion of the national state; 4. The Old Republic; 5. The bureacraticization of thenational state; 6. National underdevelopment; 7. An authoritarian modernization;8. Administrative reform of the New Republic; 9. Reform of the Collor government;10. Bresser reform; 11. Final remarks historic synthesis.

    PAL AV RAS -CHAVE : Estado; administrao pblica; histria administrativa; reformado Estado; reformas administrativas.

    KE Y W O RD S: state; public administration; administrative history; state reform;administrative reforms.

    A passagem dos 200 anos da transferncia da corte portuguesa para o Brasil tem sus-citado a realizao de inmeros eventos comemorativos, como seminrios, palestras,exposies e a publicao de livros e artigos em jornais e revistas. Entretanto, poucosencontros, discusses e publicaes em torno dos 200 anos procuraram destacar aquesto da constituio do Estado nacional e da formao da administrao pblicabrasileira. Este artigo preenche uma pequena parte da lacuna deixada na comemo-rao do bicentenrio da chegada da famlia real portuguesa ao Brasil. Oferece um

    * Artigo recebido em dez. 2007 e aceito em maio 2008. Nasceu de um dos captulos da tese dedoutoramento em gesto intitulada Reforma gerencial do Estado no Brasil condicionantes,estratgias e resultados, defendida junto ao Instituto Superior de Cincias do Trabalho e daEmpresa (Iscte), em Lisboa, em junho de 2007.** Professor titular da Escola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas (Ebape) daFundao Getulio Vargas (FGV). Endereo: Praia de Botafogo, 190 CEP 22250-900, Rio deJaneiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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    rpido panorama da histria das transformaes por que tem passado a administra-o pblica brasileira, destacando as mudanas planejadas, quer dizer, os esforosde reforma do aparelho de Estado. So enfatizadas as trs grandes reformas que sesucederam a partir de meados dos anos 1930 do sculo passado, separadas entre sipor intervalos de 30 anos 1937, 1967 e 1995 (ou 1998, ano da promulgao daEmenda Constitucional no19). Todo o percurso percorrido desde 1808 configura hojeuma trplice efemride 200 anos de Estado nacional, 200 anos de administraopblica e 200 anos de reformas institucionais e administrativas.

    Brazil: 200 years of state; 200 years of public administration;

    200 years of reformsThe passing of 200 years since the transfer of the Portuguese Royal Court for Bra-zil has generated the realization of innumerable commemorative events, such asseminars, guest speakers, expositions and the publication of books and articles in

    journals and magazines. However, few findings, discussions and publications aboutthe 200 years looked to examine the question of the constitution of the nationalstate and the formation of Brazilian public administration. This article intends tofill the large void left in the commemoration of the 200 years since the arrival ofthe Royal Portuguese Family in Brazil. It offers a quick historical panorama of thetransformations that Brazilian public administration experienced, emphasizing theplanned changes, i.e. the efforts aimed at reforming the state apparatus. Three bigreforms are stressed that began in the mid-1930s, separated by intervals of thirty years

    1937, 1967, and 1995 (or 1998, the year of the promulgation of ConstitutionalAmendment n. 19). The entire trajectory that was initiated in 1808 exhibits today atriple celebration 200 years of national state, 200 years of public administration,and 200 years of institutional and administrative reforms.

    1. Introduo

    A passagem dos 200 anos da chegada da famlia real portuguesa ao Brasil, em1808, tem suscitado a realizao de inmeros eventos comemorativos, comoseminrios, palestras, exposies, e a publicao de muitos livros e artigos em

    jornais e revistas. A maior parte desses eventos e publicaes destaca, em pers-pectiva histrica, os acontecimentos polticos, as transformaes econmicase o impacto sociocultural da presena da corte na cidade do Rio de Janeiro.Todas as curiosidades esto orientadas para as circunstncias da partida, datravessia e da chegada a estratgia; a sofreguido; a logstica; o nmerode expatriados; os dissabores da viagem e os piolhos da princesa; a passagempor Salvador; a abertura dos portos e os acordos comerciais assimtricos comos ingleses; a instalao da corte e o P. R. (ponha-se na rua) e todas as boas

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    obras do prncipe regente, como a Biblioteca Real, a Imprensa Rgia, o JardimBotnico e tantas outras.

    Poucos encontros, discusses e publicaes em torno dos 200 anosprocuraram destacar a questo especfica da constituio do Estado nacionale da formao da administrao pblica brasileira. Sabe-se que foi a transfe-rncia da famlia real que criou condies para a emergncia do espao p-blico e a formao da burguesia nacional, tornando impossvel a restauraoda situao colonial anterior e favorecendo a independncia nacional. Foi ainstalao da corte que transformou uma constelao catica de organismos

    superpostos em um aparelho de Estado. Pois o Estado representado pela admi-nistrao colonial era, ao mesmo tempo, um todo que abrangia o indivduo emtodos os aspectos e uma mirade de instncias e jurisdies que iam do rei ato mais modesto servidor, cujas atribuies se superpunham, se confundiam ese contradiziam.

    verdade que, at 1808, existia no Brasil e, sobretudo, na sede do go-verno geral (vice-reino) uma administrao colonial relativamente aparelha-da. Mas a formao do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e a instala-o de sua sede na antiga colnia tornaram irreversvel a constituio de umnovo Estado nacional. Todo um aparato burocrtico, transplantado de Lisboaou formado aqui, em paralelo antiga administrao metropolitana, teve que

    ser montado para que a soberania se afirmasse, o Estado se constitusse e seprojetasse sobre o territrio, e o governo pudesse tomar decises, ditar pol-ticas e agir.

    Este artigo preenche uma pequena parte da lacuna deixada na comemo-rao do bicentenrio da chegada da famlia real portuguesa ao Brasil. Ofere-ce um rpido panorama da histria das transformaes por que tem passadoa administrao pblica brasileira, destacando as mudanas planejadas, querdizer, os esforos de reforma do aparelho de Estado. So enfatizadas trs gran-des reformas que se sucederam a partir de meados dos anos 1930, separadasentre si por intervalos de 30 anos 1937, 1967 e 1995 (ou 1998, ano dapromulgao da Emenda Constitucional no19). De qualquer maneira, todo o

    percurso percorrido desde 1808 configura hoje uma trplice efemride 200anos de Estado nacional, 200 anos de administrao pblica e 200 anos dereformas institucionais e administrativas.

    Parte-se do pressuposto de que no possvel entender as recentestransformaes do Estado, da organizao governamental e da administraopblica brasileira sem tentar reconstruir os processos de formao e diferen-ciao histrica do aparato estatal que se constituiu no Brasil, desde que aempresa da colonizao aqui aportou, no alvorecer do sculo XVI, ou, pelo

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    menos, desde que o prncipe regente dom Joo VI transferiu a sede da Coroaportuguesa para o Rio de Janeiro e instituiu o Reino Unido de Portugal, Brasile Algarves.

    2. Administrao colonial portuguesa

    Tomar o desembarque da Coroa portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808,como marco para a construo do Estado nacional no significa dizer que

    nada existisse em termos de aparato institucional e administrativo. Havia nacolnia uma ampla, complexa e ramificada administrao. Caio Prado Jnior(1979:299-300) adverte que, para compreend-la, preciso se desfazer de no-es contemporneas de Estado, esferas pblica e privada, nveis de governoe poderes distintos. A administrao colonial, apesar da abrangncia das suasatribuies e da profuso de cargos e instncias, do ponto de vista funcional,pouco se diferencia internamente. Tratava-se de um cipoal de ordenamentosgerais, encargos, atribuies, circunscries, disposies particulares e mis-ses extraordinrias que no obedeciam a princpios uniformes de diviso detrabalho, simetria e hierarquia. O caos legislativo fazia surgir num lugar fun-es que no existiam em outros; competncias a serem dadas a um servidor

    quando j pertenciam a terceiros; subordinaes diretas que subvertiam a hie-rarquia e minavam a autoridade.Em princpio, a administrao colonial estava organizada em quatro

    nveis as instituies metropolitanas, a administrao central, a adminis-trao regional e a administrao local. Essa estrutura tinha em seu topo oConselho Ultramarino, subordinado ao secretrio de Estado dos Negcios daMarinha e Territrios Ultramarinos que se ocupava de todos os aspectos davida das colnias, exceo dos assuntos eclesisticos, a cargo da Mesa deConscincia e Ordens.

    Do ponto de vista da organizao territorial, o Brasil estava divididoem capitanias, que eram as maiores unidades administrativas da colnia. O

    territrio delas era dividido em comarcas que, por sua vez, era composto portermos sediados nas cidades ou vilas. Os termos eram constitudos de fregue-sias que correspondiam s parquias da circunscrio eclesistica. Por ltimo,as freguesias se dividiam em bairros, cuja jurisdio era imprecisa (Caio PradoJunior, 1979:306).

    Desde o incio da colonizao, com o fracasso da administrao privadada maioria das capitanias hereditrias, a Coroa portuguesa assumiu direta-mente o seu controle e preocupou-se em instituir uma administrao central

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    para se ocupar das questes de defesa contra os ataques dos invasores e dosndios mais belicosos. Foi assim que constituiu o governo geral, em 1549, naBahia, que muito mais tarde, j no Rio de Janeiro, viria a ser o vice-reino.Embora o vice-rei tivesse maior proeminncia sobre os demais governadores,seu poder era limitado, nada mandava da Bahia para o norte e tampouco aosul de So Paulo.

    O chefe supremo da capitania era o governador ou capito-general ouainda capito-mor. O governador do Rio de Janeiro tambm era chamado device-rei. Havia capitanias gerais1e subalternas,2sendo que os governadores

    das primeiras exerciam atribuies semelhantes s do vice-rei e havia mesmoalguns que reivindicavam esse tratamento. A funo de governador era, so-bretudo, militar, mas sua autoridade superintendia toda a administrao. Seupoder era grande, mas limitado por normas restritas ditadas pelo Conselho Ul-tramarino. Ademais, sua influncia era contrabalanada pela autoridade dasrelaes, entidades de natureza judiciria e administrativa das quais os gover-nadores eram membros, entre outros, e dos demais rgos setoriais como asintendncias do ouro e dos diamantes e as mesas de inspeo. Ainda assim,era amplo o seu poder e variada a sua competncia. Sua autoridade era real esimblica, pois encarnava a figura do prprio rei. Sob sua superviso encon-travam-se os setores da administrao geral, militar e fazendria.

    A administrao militar estava dividida em tropa de linha, milcias ecorpos de ordenana. A primeira era a tropa regular e profissional, formadapor regimentos permanentemente armados. As milcias eram tropas auxiliaresde cidados recrutados obrigatoriamente, sem remunerao, e organizadasem regimentos. As ordenanas constituam a terceira linha, formada por todaa populao masculina com idade entre 18 e 60 anos, no alistada na troparegular ou nas milcias.

    A administrao geral contemplava tanto a esfera propriamente admi-nistrativa quanto a judiciria, com sua complexa distribuio de encargos,sujeita a superposies e conflitos de competncia. Os juzes tinham funesjudiciais e administrativas, julgando e executando ao mesmo tempo. A admi-

    nistrao geral s vezes se confundia com a administrao local. As cmarasexerciam funes legislativas, executivas e judicirias. Seu senado era presidi-

    1Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, So Paulo, Par, Maranho, Gois e Mato Grosso.2So Jos do Rio Negro, Piau, Cear, Rio Grande do Norte, Paraba, Esprito Santo, Rio Grandede So Pedro e Santa Catarina. As capitanias do Cear e da Paraba tornaram-se autnomas em1799 e do Rio Grande de So Pedro em 1802.

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    do por um juiz letrado, ou juiz-de-fora, ou por um juiz leigo, o juiz ordinrio.Alm do juiz, o senado era formado por trs vereadores e um procurador,todos sem remunerao e reunindo-se duas vezes por semana em vereanaou vereao.

    A administrao fazendria, encarregada de arrecadar os tributos, reali-zar despesas e gerir o Real Errio nas capitanias, estava sob a direo de umaJunta da Fazenda, presidida pelo governador. Paralela ou complementarmenteatuavam tambm as Juntas de Arrecadao do Subsdio Voluntrio Alfnde-ga, o Tribunal da Provedoria da Fazenda, alm dos rgos que exerciam fun-

    es judicirias e administrativas o Juzo da Conservatria, Juzo da Coroae Execues, Juzo do Fisco, das Despesas etc. O principal tributo era o dzimoe sua arrecadao, como a dos demais (direitos de alfndega, passagens, en-tradas, imposies especiais, donativos e emolumentos), se fazia por contrato,entregando-se a particulares, por prazo determinado, a cobrana.

    Alm desses trs grandes setores, havia ainda rgos especiais comoa Administrao dos ndios, a Intendncia do Ouro e dos Diamantes, a In-tendncia da Marinha, a Mesa de Inspeo, as Conservatrias de Cortes deMadeira, alguns j referidos, e toda a Administrao Eclesistica, que tambmexercia funes civis.

    A sntese histrica de Caio Prado Jnior, retomada por Arno e Maria

    Jos Wehling (1999), aponta como principais caractersticas da administra-o colonial a centralizao, a ausncia de diferenciao (de funes), omimetismo, a profuso e minudncia das normas, o formalismo e a morosi-dade. Essas disfunes decorrem, em grande medida, da transplantao paraa colnia das instituies existentes na metrpole e do vazio de autoridade(e de obedincia) no imenso territrio, constituindo um organismo autorit-rio, complexo, frgil e ineficaz.

    Isso no quer dizer que no tenha havido um processo de gradual ra-cionalizao do governo colonial ao longo de trs sculos. A partir da admi-nistrao pombalina, pouco a pouco, o empirismo paternalista do absolutismotradicional foi sendo substitudo pelo racionalismo tpico do despotismo escla-

    recido. Essa mudana se expressava principalmente nos mtodos e processosde trabalho que davam lugar emergncia de uma burocracia.A centralizao de decises na Coroa portuguesa, aparentemente, esva-

    ziava o poder dos governadores e juzes. Tudo era prescrito em regulamentoscircunstanciados e nada se exclua da alada de competncia de uma autorida-de superior que poderia decidir em primeira instncia ou em grau de recurso.Mas a enorme distncia da sede do poder e a lentido na troca de mensagenscriavam um vazio de autoridade legal. Tentava-se limitar a ao dos prepostos

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    da Coroa com a minudncia dos regulamentos que eram repetitivos, superpos-tos, contraditrios e confusos. Como estatuam instituies simtricas s daadministrao da metrpole, pecavam pelo artificialismo mimtico que torna-va as normas suprfluas e ineficazes. O formalismo das regras, o brao curtoda autoridade e a corrupo generalizada ensejavam o autoritarismo daquelesque deviam se impor aos sditos entregues ao abandono, com os prpriosmeios que deles conseguissem extrair.

    3. A construo do Estado nacional

    A transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil deu-se de formaconfusa. At o ltimo instante, o prncipe regente hesitou em partir dianteda remota possibilidade de os franceses aceitarem mais um suborno. S sedecidiu quando as tropas de Junot j se encontravam em solo portugus, sportas de Lisboa. O alvoroo descrito por alguns dos relatos dos momentosque antecederam a longa travessia no condiz com o minucioso planeja-mento que a indita mudana de uma corte para outro continente deveriamerecer (Wilcken, 2005:35-38). Em primeiro lugar, a prpria escolha dascinco, 10 ou 15 mil pessoas os nmeros so imprecisos que comporiam

    a lotao das naus, diz alguma coisa sobre as instituies e espaos de poderque estavam sendo transplantados. Em segundo lugar, a seleo dos bensque era possvel carregar, alm dos tesouros e objetos de indiscutvel valor,contemplava material, livros, papis, artefatos, instrumentos e smbolos ne-cessrios administrao. Em terceiro lugar, a instituio de um simulacrode governo em solo europeu, que se deu na forma de uma regncia, logodestituda pelo ocupante.

    Todo o acervo administrativo estava a bordo: arquivos, documentos epapis de governo, e de tal maneira arranjados que, ao desembarcarem no Riode Janeiro, nenhuma falta ou dificuldade especial se fez sentir, e a faina dedirigir a monarquia continuou no novo continente to normalmente como se

    estivera o regente em Lisboa. Que melhor prova exigir da previso, do longopreparo, e da observncia das ordens mais minudentes para organizar o planode transferncia (Calgeras, 1980:59)?

    As condies da chegada tambm so indicativas da possibilidade deconstituio do aparato administrativo, militar, protocolar e simblico de umacorte europia. O primeiro problema era de edificaes para acolher as re-sidncias da nobreza exilada e as novas reparties do reino. Isso se fez de-salojando os prepostos da Coroa, os poucos fidalgos e os ricos comerciantes

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    que cederam suas casas e palacetes. Por outro lado, acentuou-se a tendnciapatrimonialista de reunir no mesmo edifcio o domiclio e o local de trabalho.

    O regente chegou ao Rio de Janeiro com um governo formado pelos mi-nistrios do Reino ou dos Negcios do Reino, cujo titular atuava tambm comoministro assistente ao despacho do gabinete e como presidente do Errio Real;da Guerra e Estrangeiros (ou dos Negcios da Guerra e Estrangeiros) e daMarinha (ou dos Negcios da Marinha) e Domnios Ultramarinos; ou seja,trs ministros para seis pastas. Trs dias depois de sua chegada, substituiu osministros.

    A instalao da corte ensejou a criao de uma srie de organismos queexistiam na antiga sede do Reino, alguns deles no to necessrios quantooutros. O governo arranjado de acordo com oAlmanaque de Lisboadava opor-tunidade de criar cargos e honrarias para tantos que haviam feito o sacrifciode acompanhar sua alteza real. Assim, criaram-se o Desembargo do Pao, oConselho de Fazenda e a Junta de Comrcio, quando o pas precisava, segun-do Hiplito da Costa, de um conselho de minas, de uma inspeo para aber-tura de estradas, uma redao de mapas, um exame da navegao dos rios(Vinhosa, 1984:167). Mas cuidou tambm o governo de criar instituies eorganismos teis e necessrios, como a Academia de Marinha, a de Artilhariae Fortificaes, o Arquivo Militar, a Tipografia Rgia, a Fbrica de Plvora, o

    Jardim Botnico, a Biblioteca Nacional, a Academia de Belas Artes, o Bancodo Brasil e os estabelecimentos ferrferos de Ipanema. So muitas as criaese inovaes institucionais, jurdicas e administrativas que tiveram largo im-pacto na vida econmica, social, poltica e cultural do Brasil, tanto no planonacional, quanto na esfera regional. So leis, cidades, indstrias, estradas,edificaes, impostos, cadeias, festas e costumes que foram introduzidos nopacato cotidiano da antiga colnia.

    O fato que a transferncia da corte e mais tarde a elevao do Brasila parte integrante do Reino Unido de Portugal constituram as bases do Es-tado nacional, com todo o aparato necessrio afirmao da soberania e aofuncionamento do autogoverno. A elevao condio de corte de um imp-

    rio transcontinental fez da nova administrao brasileira, agora devidamenteaparelhada, a expresso do poder de um Estado nacional que jamais poderiavoltar a constituir-se em mera subsidiria de uma metrpole de alm-mar.

    Com a derrocada de Napoleo I, a reorganizao geopoltica da Europae as agitaes dos liberais no Porto, em 1821, d. Joo VI teve que retornara Portugal e reassumir o controle poltico da metrpole. Ficaram no Brasilo prncipe herdeiro, na condio de regente dessa parte do Reino, e todo oaparato administrativo instalado pelo rei. D. Pedro I nomeou seu prprio mi-

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    nistrio. Transferiu a pasta dos Negcios Estrangeiros da Secretaria da Guerra,para o Ministrio do Reino, dando ainda mais relevncia a esse ministro. Masera o prprio prncipe a maior autoridade do Brasil, que a exercia com vigor,impetuosidade e, por vezes, intemperana, colocando-se no centro das dispu-tas polticas locais e no contraponto dos interesses da metrpole.

    Os conflitos em matria fiscal, as propostas em discusso nas cortes paraa retomada da condio colonial do Brasil e a exigncia do retorno do prncipea Lisboa colocaram-no em franca oposio aos interesses da metrpole, ense-jando a realizao de uma seqncia de atos polticos de peso que culminaram

    com a independncia, pouco mais de um ano depois da partida de d. Joo VI.A sete de setembro de 1822, d. Pedro I declarou a independncia e instituiuo governo do Brasil, valendo-se do aparato da regncia do Reino Unido quese partia. No convm nos alongarmos aqui sobre as peripcias relacionadascom a constituio (poltica) do governo, o enfrentamento das resistncias independncia, a convocao, instalao, atuao e dissoluo da AssembliaConstituinte e a outorga da Constituio de 1824.

    O fato que, dissolvida a Assemblia Constituinte, o prncipe criou umConselho de Estado e a ele encomendou a redao da Carta que outorgou aopas em 25 de maro de 1824. A primeira Constituio do Brasil mantinha amonarquia, a dinastia da Casa de Orlans e Bragana e d. Pedro I como impe-

    rador e defensor perptuo do Brasil. Constitua um Estado unitrio e centra-lizador, cujo territrio era dividido em provncias, que substituam as antigascapitanias. Os poderes polticos eram quatro Legislativo, Moderador, Exe-cutivo e Judicial. Cada provncia era dirigida por um presidente nomeado peloimperador, que tomava posse perante a cmara da capital. Em cada uma delashavia tambm um conselho geral, cujos membros eram eleitos juntamentecom a representao nacional. O monarca exercia o Poder Moderador, com oapoio do Conselho de Estado, rgo de carter consultivo e, ao mesmo tempo,o Poder Executivo, auxiliado pelos seus ministros de Estado. O Poder Legisla-tivo era exercido pela Assemblia Geral, formada pela Cmara dos Deputadose pela Cmara dos Senadores ou Senado do imprio. O Poder Judicial era

    exercido pelos juzes de direito e pelos juzes de paz, para as tentativas de con-ciliao prvias a qualquer processo. Na capital do imprio e nas provnciashavia um Supremo Tribunal de Justia, composto de juzes letrados tiradosdas relaes. A organizao dos municpios no mudou de forma significativa,tendo as cmaras o mesmo papel que exerciam na colnia.

    Depois de 10 anos frente do destino do Brasil, d. Pedro I abdicou dotrono em favor de seu filho Pedro II, ento com apenas cinco anos de idade.Deixou o governo em meio a uma crise de grandes propores, gerada por

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    problemas financeiros, revoltas regionais, identificao com os interesses por-tugueses e queda de brao com o Legislativo. Conforme previa a Constituio,assumiu uma Regncia Trina que enfrentou, assim como as que lhe sucede-ram, uma srie de crises que terminaram por ensejar, em 1841, a declaraoda maioridade do imperador menino, aos 15 anos de idade. Logo no inciodo perodo regencial, em 1832, foi feita uma reforma constitucional, queinstituiu a Regncia Una, aboliu o Conselho de Estado e criou as assembliaslegislativas provinciais, em substituio aos conselhos gerais. Tratava-se depequeno passo no sentido da descentralizao, uma vez que institua o Po-

    der Legislativo provincial e a diviso de rendas entre o governo central e osgovernos provinciais.Outra mudana constitucional importante, j em 1847, foi a criao

    do cargo de presidente do conselho de ministros que, na prtica, significou ainstituio do regime de gabinete, conferindo maior estabilidade ao governoimperial. O imperador passou a concentrar-se no exerccio do Poder Modera-dor, embora no se eximisse de participar da escolha dos gabinetes, chegandomesmo a designar um governo que no tinha maioria na cmara. Num e nou-tro caso, tratava-se de arbitrar os conflitos entre fraes das classes dominan-tes e sustentar a ordem monrquica, apoiada na grande propriedade rural, naeconomia primrio-exportadora e no trabalho escravo em declnio.

    Nos 10 ltimos anos do Imprio, esses conflitos tornaram-se mais agu-dos, exercendo forte presso sobre o governo. Em primeiro lugar, a questodo trabalho escravo colocava, de um lado, grandes proprietrios de terra e, deoutro, os setores urbanos, adeptos do abolicionismo. Sua libertao suprimiuuma das bases de sustentao da ordem imperial. Em segundo lugar, o pro-blema da autonomia das provncias contrapunha os centralizadores e os par-tidrios da descentralizao. Em terceiro lugar, a Guerra do Paraguai trouxecomo conseqncia o desequilbrio das finanas pblicas, o fortalecimento dopapel poltico do Exrcito e a exposio da contraditria condio do soldadoescravo, contribuindo para desestabilizar ainda mais o governo. Por ltimo, oprecrio estado de sade do imperador, muito querido pelos sditos de todas

    as classes, colocava em primeiro plano a questo sucessria e a ameaa de queo pas viesse a ser governado com o concurso de um estrangeiro, o conde DEu,marido da princesa Isabel, extremamente antipatizado.

    Nesse ambiente poltico, germinava um incipiente movimento republi-cano, apoiado num vago programa de reformas que tentava conciliar interes-ses opostos de monarquistas liberais e de escravocratas descontentes com apoltica abolicionista do Imprio. O movimento republicano se dividia em doisplos o federalismo e o liberalismo. O primeiro era protagonizado pelas

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    lideranas polticas de So Paulo e do Rio Grande do Sul e o segundo repre-sentado pelos polticos da cidade do Rio de Janeiro. Os republicanos do Rio deJaneiro defendiam a participao poltica da populao e os gachos e pau-listas partidrios do federalismo pregavam uma maior autonomia regional.As crticas mais comuns recaam sobre a centralizao excessiva do regimemonrquico, que restringia a liberdade poltica e econmica das provncias.

    Assim, as repetidas crises dos gabinetes imperiais geravam um climade instabilidade poltica que dava fora ao movimento republicano e tenta-o intervencionista do Exrcito. Pequenos incidentes entre lderes militares

    e o governo acabaram dando o ltimo estmulo aos oficiais descontentes paraque deflagrassem o golpe de 15 de novembro de 1889. O que houve foi umamarcha de 600 soldados liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca contrao quartel-general do Exrcito, onde estava reunido o ministrio.

    4. A Repblica Velha

    A proclamao da Repblica no alterou profundamente as estruturas socio-econmicas do Brasil imperial. A riqueza nacional continuou concentrada naeconomia agrcola de exportao, baseada na monocultura e no latifndio. O

    que se acentuou foi a transferncia de seu centro dinmico para a cafeiculturae a conseqente mudana no plo dominante da poltica brasileira das antigaselites cariocas e nordestinas para os grandes cafeicultores paulistas.

    O governo provisrio adotou as reformas imediatas necessrias vign-cia do novo regime e convocou eleies para uma assemblia constituinte. ACarta de 1891, francamente inspirada na Constituio americana de 1787,consagrou a Repblica, instituiu o federalismo e inaugurou o regime presiden-cialista. A separao de poderes ficou mais ntida. O Legislativo continuavabicameral, sendo agora formado pela Cmara dos Deputados e pelo Sena-do, cujos membros passaram a ser eleitos para mandado de durao certa.Ampliou-se a autonomia do Judicirio. Foi criado o Tribunal de Contas para

    fiscalizar a realizao da despesa pblica. As provncias, transformadas emestados, cujos presidentes (ou governadores) passaram a ser eleitos, ganha-ram grande autonomia e substantiva arrecadao prpria. Suas assembliaspodiam legislar sobre grande nmero de matrias. Esse sistema caracterizavao federalismo competitivo.

    A Repblica federalista, com estados politicamente autnomos, con-sagrou um novo pacto poltico que acomodava os interesses das elites eco-nmicas do Centro-Sul e do resto do pas. O governo federal ocupava-se de

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    assegurar a defesa e a estabilidade e proteger os interesses da agriculturaexportadora atravs do cmbio e da poltica de estoques, com reduzida inter-ferncia nos assuntos internos dos demais estados. L vicejavam os mandeslocais, grandes proprietrios de terra e senhores do voto de cabresto, e asgrandes oligarquias, que controlavam as eleies e os governos estaduais e as-seguravam as maiorias que apoiavam o governo federal. A poltica dos gover-nadores garantia a alternncia na presidncia da Repblica de representantesde So Paulo e Minas Gerais. Esse sistema era marcado pela instabilidade dosgovernos estaduais passveis de serem derrubados e substitudos em funo da

    emergncia de novas oligarquias.Nesse perodo, no houve grandes alteraes na conformao do Esta-do nem na estrutura do governo. Desde a proclamao da Repblica, a prin-cipal mudana no Poder Executivo foi a criao dos ministrios da InstruoPblica, de brevssima existncia; da Viao e Obras Pblicas; e da Agricul-tura, Indstria e Comrcio, cujos nomes sofreram pequenas modificaes.Do ponto de vista da federao, houve uma ligeira reduo na capacidadelegislativa dos estados, que perderam o poder de legislar sobre determinadasmatrias.

    A Repblica Velha durou cerca de 40 anos. Aos poucos, foi se tornandodisfuncional ao Brasil que se transformava, pela diversificao da economia,

    pelo primeiro ciclo de industrializao, pela urbanizao e pela organizaopoltica das camadas urbanas. Novos conflitos de interesse dentro dos setoresdominantes, entre as classes sociais e entre as regies punham em causa opacto oligrquico, as eleies de bico de pena3e a poltica do caf-com-leite.4

    Por outro lado, desde a guerra contra o Paraguai (1864-70), o Exrcito passoua ser um ator poltico cada vez mais importante, como arena de revoltas ousujeito de aes determinantes, perseguindo ideais modernizadores ou salva-cionistas.

    A eleio do paulista Jlio Prestes para suceder o tambm paulistaWashington Lus, derrotando o gacho Getlio Vargas, desencadeou o rompi-mento do pacto com os mineiros e com as demais oligarquias estaduais, abrin-

    do espao para mais uma interveno do Exrcito a Revoluo de 1930.

    3Assim eram chamadas as eleies que ento se realizavam, cujos resultados favorveis s oli-garquias dominantes eram ajustados nos mapas eleitorais, ao bico da pena.4A expresso refere-se alternncia na presidncia da Repblica de polticos originrios de SoPaulo, grande produtor de caf, e de Minas Gerais, principal produtor de leite.

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    5. A burocratizao do Estado nacional

    A narrativa precedente d conta do processo de formao do Estado nacional,a partir de suas razes coloniais, ao longo do Imprio (1882-89) e da chama-da Repblica Velha (1889-1930). Embora seja desse perodo a cristalizaodas principais caractersticas do Estado brasileiro apontadas anteriormente,observa-se que a prpria diferenciao do aparelho de Estado e a criao denovas instituies fazem parte da dinmica de instaurao da modernidade.Estado e mercado, autnomos com relao ordem do sagrado e dominao

    patriarcal e cada vez mais separados entre si, constituem as bases da formaosocial moderna. Seu desenvolvimento, consideradas as caractersticas do con-texto local, se d no sentido da racionalizao. A burocracia est no horizonteda administrao pblica que se consolida e atualiza. Se esse movimento sedeu de forma lenta e superficial nos primeiros 100 anos de histria do Brasilindependente, ele vai encontrar seu ponto de inflexo e acelerao na Revo-luo de 1930.

    De fato, a partir desse marco e durante a maior parte do sculo XX, oBrasil empreendeu um continuado processo de modernizao das estruturas eprocessos do aparelho de Estado. Como resposta a transformaes econmicase sociais de largo alcance, esse esforo se desenvolveu ora de forma assiste-

    mtica, pelo surgimento de agncias governamentais que se pretendia fossemilhas de excelncia com efeitos multiplicadores sobre as demais, ora de formamais orgnica, por meio das reformas realizadas no governo federal, em 1938,1967 e a partir de 1995.

    A chamada Revoluo de 1930 representou muito mais do que a to-mada do poder por novos grupos oligrquicos, com o enfraquecimento daselites agrrias. Significou, na verdade, a passagem do Brasil agrrio para oBrasil industrial. Para compreender essa transformao e a emergncia do mo-delo de crescimento que presidiu o desenvolvimento nacional no sculo XX, preciso entender como se dava a insero do pas na economia internacionale como o Brasil viveu a Grande Depresso.

    Como foi dito, o Brasil era uma economia perifrica apoiada na expor-tao de produtos primrios entre os quais se destacava o caf, principal itemda pauta de exportaes. O lucro dessa monocultura permitiu financiar o pri-meiro ciclo de industrializao brasileira, concentrando-se em So Paulo, ploda cafeicultura. Os interesses dos produtores de caf eram protegidos pelogoverno federal, com polticas de cmbio favorvel e formao de estoquesreguladores. Com a crise de 1929, que penalizou os mercados consumidores,o Brasil foi obrigado a reduzir a exportao de caf, ficando sem divisas para

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    manter a importao de produtos industrializados. O governo federal, entre-tanto, continuou comprando, embora a preos reduzidos, o excedente de cafno-exportvel, formando estoques que no conseguia comercializar. Confor-me os estoques envelheciam, o caf era queimado para dar lugar aquisiode novas safras. Essa poltica mantinha um fluxo de renda para o setor maisdinmico da economia, evitando o desemprego no campo e a recesso gene-ralizada. Por outro lado, a impossibilidade de continuar importando para sa-tisfazer a demanda por produtos industrializados estimulou uma srie de ini-ciativas de produo industrial para substituir bens importados. Praticava-se

    assim, de forma intuitiva, uma poltica keynesiana, onde o Estado exercia umpapel fundamental na manuteno da demanda agregada, pela transfernciade rendas para os trabalhadores-consumidores, e estimulava a substituio deimportaes.

    Esse comportamento ensejou mais tarde uma reflexo sobre o desen-volvimento econmico na Amrica Latina. De um lado, passou-se a propugnaruma poltica de crescimento baseada na industrializao via substituio deimportaes, reduzindo a dependncia das economias primrio-exportadoras,sujeitas crescente desvalorizao de seus produtos. De outro, o sucesso doNew Deal, poltica de interveno do Estado na economia americana para re-cuperar sua dinmica de crescimento, levava a pensar que ela tambm seria

    possvel e desejvel para promover o crescimento das economias perifricas.O Estado nacional poderia liderar o processo de desenvolvimento, estabele-cendo barreiras alfandegrias, construindo infra-estruturas, criando subsdiose incentivos e oferecendo crdito. Esse papel supunha no s a capacidadede gerar poupana interna para participar da formao bruta de capital comotambm um elevado grau de interveno na economia, em particular, e navida social em geral. Estavam lanadas as bases do modelo de crescimento edo Estado intervencionista brasileiro.

    Do ponto de vista poltico, havia um quadro favorvel transformaodo Estado para atender s novas exigncias do seu papel de indutor do desen-volvimento. As elites oligrquicas excludas do compromisso do antigo regime

    uniram-se s foras emergentes representativas da nova burguesia industriale das camadas mdias urbanas. O movimento revolucionrio tambm teve oapoio dos tenentes, lideranas militares egressas da revolta de 1922, com-prometidos com um projeto de reformas modernizadoras (e autoritrias).5

    5Uma revolta de jovens oficiais no Rio de Janeiro deu origem ao movimento militar denominadotenentismo que, por um iderio nacionalista, modernizador e autoritrio, interferiu na poltica

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    O primeiro perodo de Vargas na presidncia durou 15 anos, sendo qua-tro de governo provisrio, trs de governo constitucional e oito de ditadura.No perodo inicial, houve uma grande concentrao de poderes nas mos doExecutivo federal, em conseqncia da dissoluo dos corpos legislativos e danomeao de interventores para os governos estaduais. Como marco da incor-porao de novos atores sociais, foi criado o Ministrio do Trabalho, Indstriae Comrcio, que estabelecia uma interlocuo com esses setores e lanava asbases do pacto corporativista que se seguiria. Os tenentes foram absorvi-dos em diversas posies de governo, alguns inclusive como interventores nos

    estados, trazendo suas idias e a marca da ruptura com o velho pacto oligr-quico. Mas o governo manteve a poltica de valorizao do caf e procuroucontemporizar com as oligarquias que aderiram ao movimento revolucionrio.Embora tenha contribudo para a ampliao e consolidao da burguesia in-dustrial, essa foi a imagem bifronte da poltica de Vargas uma face voltadapara as oligarquias rurais e outra para as massas urbanas.

    A centralizao e a suspenso das franquias constitucionais geraramcrescente insatisfao em setores liberais, sobretudo em So Paulo, desenca-deando uma srie de revoltas, entre as quais a Revoluo de 1932 que, depoisde sufocada, ensejou a convocao de uma Constituinte e, em seguida, a pro-mulgao da Constituio de 1934.

    A Constituio de 1934 restabeleceu os direitos e garantias dos cida-dos, restaurou o Poder Legislativo e devolveu a autonomia dos estados. Noconsentiu a volta dos mesmos nveis de descentralizao que vigoravam naRepblica Velha. Na repartio de encargos e recursos, concentrou compe-tncias no nvel da Unio. Promoveu a uniformizao das denominaes doscargos de governador e prefeito e fixou limites para a organizao e as atribui-es dos legislativos estaduais. Inaugurou o federalismo cooperativo, com arepartio dos tributos, beneficiando inclusive os municpios, e a coordenaode aes entre as trs esferas de governo.

    A nova Constituio teve vida muito breve. Enfrentando a oposio po-ltico-partidria e a ao organizada do movimento integralista e a ao revo-

    lucionria dos comunistas, o governo encontrou o pretexto de que precisavapara desfechar um golpe de Estado que se deu em novembro de 1937, insti-tuindo o chamado Estado Novo. A ditadura fechou o Congresso Nacional e asassemblias legislativas, suspendeu as garantias constitucionais, destituiu os

    brasileira em diversos momentos, tendo papel importante na Revoluo de 1930 e no longoprimeiro perodo presidencial de Getlio Vargas.

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    governadores eleitos, centralizou recursos, aboliu as bandeiras e os hinos esta-duais, prendeu e perseguiu adversrios e oposicionistas e outorgou uma novaconstituio, a dita polaca. A centralizao passa a constituir um princpio deorganizao do Estado brasileiro que se aplica de forma sistemtica em todosos setores e nveis de estruturao territorial.

    Mantendo a poltica de proteo s matrias-primas exportadas, o go-verno lanou-se de maneira franca e direta no projeto desenvolvimentista,criando as bases necessrias da industrializao a infra-estrutura de trans-porte, a oferta de energia eltrica e a produo de ao, matria-prima bsica

    para a indstria de bens durveis. Mais do que isso, assumiu papel estratgicona coordenao de decises econmicas. Para tanto, teve que aparelhar-se.As velhas estruturas do Estado oligrquico, corrodas pelos vcios do patri-monialismo, j no se prestavam s novas formas de interveno no domnioeconmico, na vida social e no espao poltico remanescente. Urgia reformaro Estado, o governo e a administrao pblica.

    Assim, sob o impulso de superao do esquema clientelista e anrquicode administrao oligrquica, o governo de Getlio Vargas iniciou uma sriede mudanas que tinham pelo menos duas vertentes principais (Lima Junior,1998):6

    estabelecer mecanismos de controle da crise econmica, resultante dos efei-

    tos da Grande Depresso, iniciada em 1929, e subsidiariamente promoveruma alavancagem industrial;

    promover a racionalizao burocrtica do servio pblico, por meio da pa-dronizao, normatizao e implantao de mecanismos de controle, nota-damente nas reas de pessoal, material e finanas.

    A partir de 1937, promoveu uma srie de transformaes no aparelhode Estado, tanto na morfologia, quanto na dinmica de funcionamento. Nesseperodo foram criados inmeros organismos especializados e empresas esta-tais. At 1939, haviam sido criadas 35 agncias estatais; entre 1940 e 1945surgiram 21 agncias, englobando empresas pblicas, sociedades de econo-mia mista e fundaes (Lima Jnior, 1998:8). At 1930 existiam no Brasil12 empresas pblicas; de 1930 a 1945, foram criadas 13 novas empresas,sendo 10 do setor produtivo, entre elas a Companhia Vale do Rio Doce, hoje

    6Baseio neste artigo boa parte da descrio que se segue sobre os esforos para a reforma admi-nistrativa no Brasil.

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    uma gigante da minerao, e a Companhia Siderrgica Nacional, ambas jprivatizadas.

    Desde o incio do governo provisrio, foram tomadas medidas visando racionalizao dos procedimentos. J no discurso de posse do presidenteVargas, ao apresentar sua plataforma de governo, ele se propunha a promoveruma srie de reformas, entre elas a criao de um Ministrio de Instruo eSade Pblica; a remodelao do Exrcito e da Armada; a reorganizao doaparelho judicirio; a consolidao das normas administrativas, com o intuitode simplificar a confusa e complicada legislao vigorante, bem como de re-

    fundir os quadros do funcionalismo, que dever ser reduzido ao indispensvel,suprimindo-se os adidos e os excedentes (Wahrlich, 1975:7-8); a manuten-o de uma administrao de rigorosa economia, cortando todas as despesasimprodutivas e sunturias; a reorganizao do Ministrio da Agricultura; areviso do sistema tributrio; e a instituio do Ministrio do Trabalho, des-tinado a superintender a questo social, o amparo e a defesa do operariadourbano e rural (Wahrlich, 1975:7-8).

    Dando cumprimento a esse programa, em 1930 foi criada a comissopermanente de padronizao e, no ano seguinte, a comisso permanente decompras, ambas voltadas para a aquisio de material. Na rea de pessoal, aConstituio de 1934 introduziu o princpio do mrito. Em 1935, foi criada a

    comisso mista de reforma econmico-financeira, que destacou uma subco-misso, que ficou conhecida como comisso Nabuco, para estudar a possibi-lidade de um reajustamento dos quadros do servio pblico civil (Wahrlich,1975:10). Em decorrncia do seu trabalho, em 1936 foi promulgada a Leino284, de 28 de outubro, a chamada Lei do Reajustamento, que estabeleceunova classificao de cargos, fixou normas bsicas e criou o Conselho Federaldo Servio Pblico Civil.

    De todas essas medidas, a mais emblemtica foi a criao do Departa-mento Administrativo do Servio Pblico, o lder inconteste da reforma e,em grande parte, seu executor (Wahrlich, 1974:29). O Dasp foi efetivamenteorganizado em 1938, com a misso de definir e executar a poltica para o

    pessoal civil, inclusive a admisso mediante concurso pblico e a capacitaotcnica do funcionalismo, promover a racionalizao de mtodos no serviopblico e elaborar o oramento da Unio. O Dasp tinha sees nos estados,com o objetivo de adaptar as normas vindas do governo central s unidadesfederadas sob interveno.

    Essa primeira experincia de reforma de largo alcance inspirava-se nomodelo weberiano de burocracia e tomava como principal referncia a organi-zao do servio civil americano. Estava voltada para a administrao de pes-

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    soal, de material e do oramento, para a reviso das estruturas administrativase para a racionalizao dos mtodos de trabalho. A nfase maior era dada gesto de meios e s atividades de administrao em geral, sem se preocuparcom a racionalidade das atividades substantivas.

    A reforma administrativa do Estado Novo foi, portanto, o primeiro es-foro sistemtico de superao do patrimonialismo. Foi uma ao deliberadae ambiciosa no sentido da burocratizao do Estado brasileiro, que buscavaintroduzir no aparelho administrativo do pas a centralizao, a impessoali-dade, a hierarquia, o sistema de mrito, a separao entre o pblico e o pri-

    vado. Visava constituir uma administrao pblica mais racional e eficiente,que pudesse assumir seu papel na conduo do processo de desenvolvimento,cujo modelo de crescimento, baseado na industrializao via substituio deimportaes, supunha um forte intervencionismo estatal e controle sobre asrelaes entre os grupos sociais ascendentes a nova burguesia industrial eo operariado urbano (Marcelino, 1987).

    O Dasp representou a concretizao desses princpios, j que se tornou agrande agncia de modernizao administrativa, encarregada de implementarmudanas, elaborar oramentos, recrutar e selecionar servidores, treinar opessoal, racionalizar e normatizar as aquisies e contratos e a gesto do esto-que de material. O Dasp foi relativamente bem-sucedido at o incio da rede-

    mocratizao em 1945, quando houve uma srie de nomeaes sem concursopblico para vrios organismos pblicos. A liberdade concedida s empresaspblicas, cujas normas de admisso regulamentadas pelos seus prprios esta-tutos tornavam facultativa a realizao de concursos foi em parte responsvelpor tais acontecimentos.

    Para Beatriz Wahrlich (1984) essas atitudes revelavam que o favori-tismo tinha maior peso que as admisses por mrito no sistema brasileirode administrao de pessoal dos rgos pblicos. Contriburam para isso, oambiente cultural encontrado pela reforma modernizadora. (...), o mais ad-verso possvel, corrodo e dominado por prticas patrimonialistas amplamentearraigadas (Torres, 2004:147).

    6. O nacional desenvolvimentismo

    A queda do governo Vargas, alm de suas causas mais remotas, foi provoca-da por mais uma interveno militar na vida poltica brasileira. O crescentemovimento de oposio ao regime viu-se reforado pelas lideranas milita-res recm-sadas da II Guerra Mundial. De fato, parecia contraditrio que os

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    militares brasileiros voltassem da Europa vitoriosos na luta contra governostotalitrios para dar suporte ditadura.

    falta de lideranas institucionalizadas em posio legtima para as-sumi-la, a presidncia da Repblica foi entregue ao presidente do SupremoTribunal Federal, que conduziu o governo de transio e convocou as eleiese a Assemblia Nacional Constituinte. A Constituio de 1946 restabeleceu oestado de direito e as garantias individuais, restaurou a diviso de poderes daRepblica, devolveu a autonomia dos estados, ampliou os direitos sociais dostrabalhadores, reorganizou o Judicirio e previu a mudana da capital. Forta-

    leceu-se o federalismo cooperativo, por meio de novos mecanismos de coor-denao e transferncia de rendas entre regies. Eleito em dezembro de 1945,o presidente Dutra, ex-ministro da Guerra de Getlio Vargas, tomou posse emjaneiro do ano seguinte e realizou um governo legalista e conservador, marca-do pela dissipao das reservas cambiais acumuladas durante o conflito mun-dial, pela perda da legalidade do Partido Comunista e pela proibio dos jogosde azar. Durante esse qinqnio, foi criada a Companhia Hidreltrica do SoFrancisco, aumentando a oferta de energia para o Nordeste do Brasil.

    Cinco anos depois de deixar o governo, Getlio Vargas foi eleito presi-dente da Repblica, pelo voto direto, em 3 de outubro de 1950. Vargas assu-miu o governo, com poderes limitados pela Constituio de 1946, para cum-

    prir um programa francamente nacionalista e reformista, prometendo ampliaros direitos dos trabalhadores e investir na indstria de base e em transportese energia, o que requeria o aumento da interveno do Estado no domnioeconmico. Nesse perodo, foram criadas 13 empresas estatais, entre elas aPetrobras e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDES), gran-de pilar da poltica de fomento da poltica nacional. Vargas tambm tentoucontrolar a remessa de lucros das empresas estrangeiras e criar a Eletrobrs,empresa controladora do setor eltrico. Contra ele insurgiram-se as forasconservadoras ligadas a interesses contrariados, desencadeando acirrada opo-sio. As presses aumentaram com a investigao do atentado ao jornalistaCarlos Lacerda, perpetrado por membros de sua guarda pessoal, culminando

    com o ultimato dos chefes militares. Getlio preferiu a morte renncia ou deposio. Na madrugada do dia 24 de agosto de 1954 desferiu um tiro nopeito que o tirou da vida para coloc-lo na histria do Brasil, segundo ele mes-mo deixou escrito em sua carta-testamento.

    Durante o segundo governo Vargas tambm se pretendeu retomar osesforos reformistas pela designao, em 1952, de um grupo de trabalho coma misso de elaborar um projeto de reforma administrativa que resultou numprojeto de lei que previa a reorganizao administrativa do ministrio e a

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    alterao do cdigo de contabilidade das despesas pblicas, abolindo o re-gistro prvio. Submetida ao Congresso Nacional, mereceu um substitutivo decomisso interpartidria que previa a criao do Conselho de Planejamento eCoordenao e dos ministrios do Interior e das Comunicaes e Transportes,que no chegou a ser aprovado, no obstante o apoio do Executivo.

    Depois de um tumultuado perodo de transio de mais de um ano,com golpes, contragolpes, a eleio e a tentativa de impedimento da posse doeleito, assumiu o governo em 1956, Juscelino Kubitscheck de Oliveira. SeuPlano de Metas tinha 36 objetivos, com destaque para quatro setores-chave:energia, transporte, indstria pesada e alimentao. Propugnava a industria-lizao acelerada, apoiada na associao entre capitais nacionais e estrangei-ros, com nfase na indstria de bens durveis, dando prioridade indstriaautomobilstica e ao transporte rodovirio. Seu lema era a realizao de 50anos em cinco e a meta smbolo era a construo da nova capital do pas, Bra-slia (Mendona, 1990:335). Era uma fase de grande euforia e de afirmaonacionalista.

    Do ponto de vista institucional, a dcada que vai de 1952 a 1962 foimarcada pela realizao de estudos e projetos que jamais seriam implemen-tados. A criao da Cosb (Comisso de Simplificao Burocrtica) e da Cepa(Comisso de Estudos e Projetos Administrativos), em 1956, representa asprimeiras tentativas de realizar as chamadas reformas globais. A primeira ti-

    nha como objetivo principal promover estudos visando descentralizao dosservios, por meio da avaliao das atribuies de cada rgo ou instituio eda delegao de competncias, com a fixao de sua esfera de responsabilida-de e da prestao de contas das autoridades. A Cepa teria a incumbncia deassessorar a presidncia da Repblica em tudo que se referisse aos projetos dereforma administrativa.

    Esse perodo se caracteriza por uma crescente ciso entre a administra-o direta, entregue ao clientelismo e submetida, cada vez mais, aos ditamesde normas rgidas e controles, e a administrao descentralizada (autarquias,empresas, institutos e grupos especiais ad hoc), dotados de maior autonomiagerencial e que podiam recrutar seus quadros sem concursos, preferencial-

    mente entre os formados em think thanksespecializados, remunerando-os emtermos compatveis com o mercado. Constituram-se assim ilhas de excelnciano setor pblico voltadas para a administrao do desenvolvimento, enquantose deteriorava o ncleo central da administrao. De acordo com Lima Jnior(1998:10)

    a administrao do plano de metas foi executada, em grande medida, fora dosrgos administrativos convencionais. Considerando-se os setores essenciais

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    do plano de desenvolvimento (energia, transportes, alimentao, indstrias debase e educao) apenas 5,2% dos recursos previstos foram alocados na admi-nistrao direta; o restante foi aplicado por autarquias, sociedades de economiamista, administraes estaduais e empresas privadas. A coordenao polticadas aes se fazia atravs dos grupos executivos nomeados diretamente pelopresidente da Repblica.

    O governo seguinte ao de Kubitscheck, embora caracterizado por gran-de agitao poltica, no produziu transformaes de largas conseqncias noaparelho de Estado. Pode parecer at um contra-senso afirmar que a mudanado sistema de governo seja de pouca relevncia. Na verdade, a introduodo parlamentarismo depois da renncia do presidente Jnio Quadros, apenassete meses depois da sua investidura no cargo, foi uma soluo poltica, decurta durao, para o enfrentamento das resistncias militares posse do vice-presidente Joo Goulart. O governo instalou-se em meio a uma crise e com elaconviveu durante os 32 meses seguintes. Jango era apoiado pelo Partido Tra-balhista Brasileiro e se propunha a realizar um programa de esquerda, orien-tado para a realizao de reformas de base bancria, fiscal, urbana, agrria,universitria e administrativa. O programa contemplava a extenso do direitode voto aos analfabetos e s patentes. Esse pacote de medidas enfrentava forteoposio dos setores militares que viam na ao poltica orientada para subo-

    ficiais e praas uma grave ameaa disciplina.Apesar da crise, o governo Goulart criou a Comisso Amaral Peixoto,

    que deu incio a novos estudos para a realizao da reforma administrativa.Seu principal objetivo era promover uma ampla descentralizao administra-tiva at o nvel do guich, alm de ampla delegao de competncia (Marce-lino, 1988:41).

    Embora tenha havido avanos isolados durante os governos de GetlioVargas, Juscelino Kubitschek, Jnio Quadros e Joo Goulart, o que se obser-va a manuteno de prticas clientelistas, que negligenciavam a burocraciaexistente, alm da falta de investimento na sua profissionalizao. A cada de-safio surgido na administrao do setor pblico, decorrente da prpria evolu-

    o socioeconmica e poltica do pas, a sada utilizada era sempre a criaode novas estruturas alheias administrao direta e o conseqente adiamentoda difcil tarefa de reformulao e profissionalizao da burocracia pblicaexistente (Torres, 2004:151).

    Todas as iniciativas anteriormente descritas, como a criao dessas co-misses, mesmo que no tenham sido implementadas, no deixaram de inau-gurar uma nova viso na administrao pblica com a introduo de concei-tos, diretrizes e objetivos mais racionais, que serviriam de base para futuras

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    reformas no aparato administrativo brasileiro. Na verdade, algumas das gran-des inovaes introduzidas pela reforma de 1967 estavam consignadas nosrelatrios da Cosb, da Cepa e, sobretudo, da Comisso Amaral Peixoto, confor-me exaustivamente documentado por Beatriz Wahrlich (1974:30-41).

    De fato, o ministrio extraordinrio para a reforma administrativa ela-borou quatro projetos que nunca conseguiram aprovao no Congresso, masalguns especialistas no assunto afirmam que foi a partir deles que se concebeuo Decreto-Lei no200, de 1967. Seu estatuto bsico prescreve cinco princpiosfundamentais:

    o planejamento (princpio dominante); a expanso das empresas estatais (sociedades de economia mista e empre-

    sas pblicas), bem como de rgos independentes (fundaes pblicas) esemi-independentes (autarquias);

    a necessidade de fortalecimento e expanso do sistema do mrito, sobre oqual se estabeleciam diversas regras;

    diretrizes gerais para um novo plano de classificao de cargos;

    o reagrupamento de departamentos, divises e servios em 16 ministrios:Justia, Interior, Relaes Exteriores, Agricultura, Indstria e Comrcio, Fa-

    zenda, Planejamento, Transportes, Minas e Energia, Educao e Cultura,Trabalho, Previdncia e Assistncia Social, Sade, Comunicaes, Exrcito,Marinha e Aeronutica.

    7. A modernizao autoritria

    A agitao poltica provocada pelas reformas de base, a ebulio dos movimen-tos populares de esquerda, a mobilizao da direita catlica, a conspirao nosquartis e as revoltas dos marinheiros e sargentos do Exrcito acabaram porprovocar mais uma interveno militar que se deu com o golpe de 1ode abril

    de 1964. O endurecimento do regime ocorreu aos poucos. Primeiro, a deposiodo presidente e de alguns governadores; em seguida, a cassao de mandatoseletivos e a suspenso de direitos polticos; depois, a extino dos antigos par-tidos e a suspenso das eleies diretas. Cumpria-se o mesmo programa auto-ritrio de supresso de garantias, cerceamento do Congresso, centralizao dedecises, concentrao de recursos e esvaziamento da federao.

    De certa forma, o governo militar realizou, sua maneira, com sinaistrocados, o programa de reformas de base elaborou o Estatuto da Terra,

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    promoveu uma reforma tributria, reorganizou o sistema bancrio, reestrutu-rou o ensino universitrio e realizou uma ampla reforma administrativa. Em1965 teve incio a reforma tributria que se consolidou com a Constituio de1967, uniformizando a legislao, simplificando o sistema e reduzindo o n-mero de impostos. Ela trouxe uma brutal concentrao de recursos nas mosda Unio, esvaziando financeiramente estados e municpios que ficaram de-pendentes de transferncias voluntrias.

    Ainda em 1964, o novo governo retirou do Congresso Nacional o pro-jeto de lei elaborado pela Comisso Amaral Peixoto para reexame do assun-

    to por parte do Poder Executivo. Instituiu a Comestra (Comisso Especial deEstudos da Reforma Administrativa), presidida pelo ministro extraordinriopara o planejamento de coordenao econmica, com o objetivo de procederao exame dos projetos elaborados e o preparo de outros considerados essen-ciais obteno de rendimento e produtividade da administrao federal(Wahrlich, 1974:44).

    Do trabalho dessa comisso e das revises que se seguiram em mbitoministerial resultou a edio do Decreto-Lei no 200, de 25 de fevereiro de1967, o mais sistemtico e ambicioso empreendimento para a reforma da ad-ministrao federal. Esse dispositivo legal era uma espcie de lei orgnica daadministrao pblica, fixando princpios, estabelecendo conceitos, balizan-

    do estruturas e determinando providncias. O Decreto-Lei no

    200 se apoiavanuma doutrina consistente e definia preceitos claros de organizao e funcio-namento da mquina administrativa.

    Em primeiro lugar, prescrevia que a administrao pblica deveria seguiar pelos princpios do planejamento, da coordenao, da descentralizao,da delegao de competncia e do controle. Em segundo, estabelecia a distin-o entre a administrao direta os ministrios e demais rgos diretamen-te subordinados ao presidente da Repblica e a indireta, constituda pelosrgos descentralizados autarquias, fundaes, empresas pblicas e socie-dades de economia mista. Em terceiro, fixava a estrutura do Poder Executivofederal, indicando os rgos de assistncia imediata do presidente da Rep-

    blica e distribuindo os ministrios entre os setores poltico, econmico, social,militar e de planejamento, alm de apontar os rgos essenciais comuns aosdiversos ministrios. Em quarto, desenhava os sistemas de atividades auxilia-res-pessoal, oramento, estatstica, administrao financeira, contabilidade eauditoria e servios gerais. Em quinto, definia as bases do controle externo einterno. Em sexto, indicava diretrizes gerais para um novo plano de classifi-cao de cargos. E finalmente, estatua normas de aquisio e contratao debens e servios.

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    Para Beatriz Wahrlich (1984:52) de 1964 at 1978 assistiu-se ao ressur-gimento da reforma administrativa como programa de governo formal.

    De 1967 a 1979, a coordenao da reforma administrativa cabia Se-mor (Subsecretaria de Modernizao e Reforma Administrativa), que cuida-va dos aspectos estruturais, sistmicos e processuais, e ao Dasp, que atuavasomente no domnio dos recursos humanos. Nesta fase, a Semor se preocu-pou em recorrer a freqentes exames da estrutura organizacional e analisouprojetos de iniciativa de outros departamentos, visando criao, fuso ouextino de rgos e programas que trouxessem maior eficcia gesto p-

    blica. Foram realizados muitos estudos, trazendo contribuies importantespara a formulao do arcabouo terico e de metodologias que embasassema modernizao administrativa. Quanto s Dasp, alm de suas atividadesregulares, seu principal projeto foi a elaborao de um novo plano de clas-sificao de cargos, que se pautava numa classificao por categoria, emoposio ao anterior, aprovado em 1960, que se apoiava num sistema declassificao por deveres e responsabilidades. Esse plano no logrou xitoem modificar a estrutura hierrquica de cargos na administrao pblica,o que significa dizer que o sistema de mrito continuou restrito aos postosiniciais da carreira.

    Apesar da distncia entre as metas estabelecidas e as metas cumpridas,

    no resta dvida de que o Decreto-Lei no

    200 contribuiu para a consolidaodo modelo de administrao para o desenvolvimento no Brasil. Essa novaconcepo viria substituir o modelo clssico de burocratizao, baseado nasidias de Taylor, Fayol e Weber. Adaptado nova condio poltica do Brasil,que atravessava uma ditadura militar, ambicionava expandir a intervenodo Estado na vida econmica e social. A modificao do estatuto do funcio-nalismo de estatutrio para celetista7e a criao de instituies da adminis-trao descentralizada visavam facilitar as pretenses intervencionistas dogoverno.

    A tentativa de modernizao do aparelho de Estado, especialmente apartir da dcada de 1960, teve como conseqncia a multiplicao de entida-

    7As expresses estatutrio e celetista referem-se ao regime jurdico das relaes de trabalho doEstado com os servidores pblicos, que poderiam ser regidos pelo Estatuto dos FuncionriosPblicos Civis da Unio (estatutrios) ou pela Consolidao da Legislao do Trabalho CLT(celetistas), esta ltima comum a todas as relaes de emprego. Com a Constituio de 1988,foi institudo o Regime Jurdico nico (RJU) do servidor pblico, transformando os empregadosceletistas estveis em funcionrios estatutrios. A Emenda Constitucional no19, promulgada emmaio de 1998, criou a figura jurdica do emprego pblico, que ainda no foi regulamentada.

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    des da administrao indireta: fundaes, empresas pblicas, sociedades deeconomia mista e autarquias. A expanso e a multiplicao de novos centrosde administrao indireta buscavam maior agilidade e flexibilidade de atuaodessas entidades, melhor atendimento s demandas do Estado e da sociedade,facilidade de aporte de recursos e, naturalmente, facilidade de recrutamento,seleo e remunerao (Marcelino, 1988:44).

    Embora tenha se verificado um crescimento na administrao direta, so-bretudo com o aumento do nmero de ministrios que foram desmembradosde outros, a marca maior do modelo do crescimento foi mesmo a expanso da

    administrao indireta. Isso resultou no fenmeno da dicotomia entre o Esta-do tecnocrtico e moderno das instncias da administrao indireta e o Estadoburocrtico, formal e defasado da administrao direta, que subsiste mesmodepois da reforma administrativa de maro de 1990 (Marcelino, 1988:44).Esse fenmeno tinha se iniciado ainda no final do primeiro governo Vargas,que entre 1940 e 1945 chegou a criar 21 rgos descentralizados.

    Apesar dos avanos, a reforma de 1967 no logrou eliminar o fossocrescente entre as burocracias pblicas instaladas na administrao direta ena indireta, nem garantir a profissionalizao do servio pblico em toda asua extenso: No se institucionalizou uma administrao do tipo weberiano;a administrao indireta passou a ser utilizada como fonte de recrutamento,

    prescindindo-se, em geral, do concurso pblico (Lima Jnior, 1998:14).A reforma administrativa embutida no Decreto-Lei no 200 ficou pela me-

    tade e fracassou. A crise poltica do regime militar, que se inicia j em meadosdos anos 1970, agrava ainda mais a situao da administrao pblica, j quea burocracia estatal foi identificada com o sistema autoritrio em pleno pro-cesso de degenerao (Bresser-Pereira, 1996:273-274).

    Antes da descrio da reforma administrativa da Nova Repblica, me-recem registro dois programas de reforma elaborados entre 1979 e 1982, adesburocratizao e a desestatizao. De iniciativa do Poder Executivo, os doisprogramas foram concebidos de forma a atender objetivos complementaresque seriam o aumento da eficincia e eficcia na administrao pblica e o

    fortalecimento do sistema de livre empresa. Mais especificamente, o programade desburocratizao, institudo pelo Decreto-Lei no83.740, de 18 de julhode 1979, visa simplificao e racionalizao das normas organizacionais,de modo a tornar os rgos pblicos mais dinmicos e mais geis (Wahrlich,1984:53). Esperava-se que a supresso de etapas desnecessrias tornaria maisgil o sistema administrativo, trazendo benefcios para funcionrios e clientes.Diferentemente dos outros programas, o da desburocratizao privilegiava o

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    usurio do servio pblico. Da o seu ineditismo, porque nenhum outro pro-grama antes era dotado de carter social e poltico. Mas, ele tambm incluaentre seus objetivos o enxugamento da mquina estatal, j que recomendavaa eliminao de rgos pouco teis ou cuidava para impedir a proliferao deentidades com tarefas pouco definidas ou j desempenhadas em outras insti-tuies da administrao direta e indireta.

    O balano de sua atuao registrou at maro de 1981 a anlise decentenas de rotinas de trabalho, para efeito de simplificao, procedendo supresso de documentos e informaes dispensveis. Em 1983, ele ganha

    estatuto de ministrio, depois de passar por uma fase que volta a ser um pro-grama, a desburocratizao recupera na Nova Repblica sua condio de mi-nistrio, quando suprimida definitivamente em 1986.

    O programa de desestatizao visava ao fortalecimento do sistema livrede empresa e tinha os seguintes pressupostos:

    organizao e explorao das atividades econmicas competem preferen-cialmente empresa privada, na forma estabelecida na Constituio brasi-leira. O papel do Estado, no campo econmico, de carter suplementar, evisa sobretudo encorajar e apoiar o setor privado;

    o governo brasileiro est firmemente empenhado em promover a privati-

    zao das empresas estatais nos casos em que o controle pblico se tenhatornado desnecessrio ou injustificvel;

    a privatizao das empresas estatais, porm, no dever alcanar nem en-fraquecer as entidades que devam ser mantidas sob controle pblico, sejapor motivos de segurana nacional, seja porque tais empresas criem, efeti-vamente condies favorveis ao desenvolvimento do prprio setor privadonacional, ou ainda, quando contribuem para assegurar o controle nacionaldo processo de desenvolvimento (Wahrlich, 1984:54).

    Para Beatriz Wahrlich (1984:57), o programa da desestatizao haviasido concebido para estabelecer limites aos excessos de expanso da adminis-trao pblica descentralizada, tendncia marcante na dcada anterior sem,entretanto, se configurar na reverso desse processo. Ela completa:

    a necessidade de um programa de desestatizao indica que na questo da or-ganizao para o desenvolvimento, a administrao pblica brasileira ultrapas-sou suas metas e chegou a hora de corrigir a disfuno existente, para atender opo constitucional do pas por uma economia de mercado.

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    8. A reforma administrativa da Nova Repblica

    A reforma do Estado era uma das principais promessas da Nova Repblica,que se traduzia em diversas bandeiras de luta que iam muito alm do rear-ranjo administrativo vigncia efetiva do imprio da lei, desobstruo doLegislativo, aparelhamento da Justia, reforma tributria, descentralizao e,subsidiariamente, reforma agrria, saneamento da previdncia, implantaodo sistema nico de sade, erradicao do analfabetismo, reforma do ensinobsico, desenvolvimento regional.

    Tancredo Neves promoveu uma pequena reforma administrativa desti-nada a acomodar os interesses das diversas faces polticas que o apoiavam ampliao do nmero de ministrios e criao de novas diretorias em quasetodas as empresas estatais. A verdadeira reforma do Estado, prometia, viriadepois da posse. Para realizar essa imensa tarefa, ele indicou um ministro ex-traordinrio da administrao para dirigir o velho e desgastado Dasp.

    O governo civil que acabara de se instalar em 1985, aps mais de duasdcadas de ditadura militar, herdava um aparato administrativo marcado ain-da pela excessiva centralizao. Apesar de representar a primeira tentativa dereforma gerencial da administrao pblica pela inteno de mexer na rigidezburocrtica, o Decreto-Lei no200/67 deixou seqelas negativas. Em primeiro

    lugar, o ingresso de funcionrios sem concurso pblico permitiu a reproduode velhas prticas patrimonialistas e fisiolgicas. E, por ltimo, a neglignciacom a administrao direta burocrtica e rgida que no sofreu mudanassignificativas na vigncia do decreto, enfraquece o ncleo estratgico do Estado,fato agravado pelo senso oportunista do regime militar que deixa de investir naformao de quadros especializados para os altos escales do servio pblico.

    No final das mais de duas dcadas de regime ditatorial a situao dopas no era muito alentadora. Paralelamente ao desafio da redemocratizao,lidava-se com uma severa crise econmica marcada pelas crescentes desigual-dades sociais. As distores no aparelho administrativo, geradas at o mo-mento, dificultavam qualquer tentativa de reverso desse quadro. Ora, se para

    realizar mudanas importantes na engrenagem administrativa era necessriouma reviso crtica de todas as experincias anteriores, a misso mais urgenteque se apresentava nos meados dos anos 1980 era a instalao de sistemasadministrativos capazes de promover o desenvolvimento, fazendo com que opas pudesse dispor de toda a potencialidade de seus recursos. importantesublinhar, portanto, que o processo de reforma est estreitamente ligado aocontexto poltico, social e cultural do pas, o que significa que no se podeenfatizar somente os aspectos legal e tcnico.

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    Assim, o governo da chamada Nova Repblica teria como tarefa inadi-vel a reverso desse quadro, que se expressaria na necessidade de tornar oaparelho administrativo mais reduzido, orgnico, eficiente e receptivo s de-mandas da sociedade (Marcelino, 2003:645).

    Para empreender tamanha tarefa, o governo Sarney instituiu uma nu-merosa comisso, cujos objetivos eram extremamente ambiciosos, j que, numprimeiro momento, pretendia redefinir o papel do Estado (nas trs esferas degoverno); estabelecer as bases do funcionamento da administrao pblica;fixar o destino da funo pblica; reformular as estruturas do Poder Executivo

    federal e de seus rgos e entidades; racionalizar os procedimentos adminis-trativos em vigor; alm de traar metas para reas consideradas prioritrias,como a organizao federal, recursos humanos e a informatizao do setorpblico. Nessa poca, ainda operavam os programas de privatizao e desbu-rocratizao herdados do governo Figueiredo.

    Segundo Marcelino (2003:646), o documento elaborado pela comissogeral da reforma define as propostas para a reorganizao da administraopblica:

    restaurao da cidadania para prover os cidados de meios para a realiza-o de seus direitos, obedecendo aos critrios de universalidade e acessoirrestrito;

    democratizao da ao administrativa em todos os nveis do governo, por

    meio de dinamizao, reduo do formalismo e transparncia dos mecanis-mos de controle, controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo e pelasociedade, e articulao e proposio de novas modalidades organizacio-nais de deciso, execuo e controle administrativo-institucional;

    descentralizao e desconcentrao da ao administrativa com o objetivode situar a deciso pblica prxima do local de ao, alm de reverter oprocesso de crescimento desordenado da administrao federal;

    revitalizao do servio pblico e valorizao dos servios;

    melhoria dos padres de desempenho a fim de promover a alocao maiseficiente de recursos.

    Essa comisso, criada em agosto de 1985, suspende seus trabalhos emfevereiro de 1986, quando todas as atenes e esforos estavam voltados parao plano de estabilizao da economia o Plano Cruzado. Em setembro da-quele mesmo ano, lanado o primeiro programa de reformas do governoSarney, que tinha trs objetivos principais: racionalizao das estruturas admi-

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    nistrativas, formulao de uma poltica de recursos humanos e conteno degastos pblicos (Marcelino, 2003:647).

    Quanto estrutura, o que se pretendia era fortalecer a administraodireta com base na assertiva de que ela tinha sido negligenciada em detrimen-to da administrao indireta, que acusava altos nveis de expanso ano apsano, desde o comeo das reformas. Para estancar o crescimento dos rgos daadministrao indireta e promover o desenvolvimento da direta, elaborou-seuma primeira verso da Lei Orgnica da Administrao Pblica Federal, quesucedia o Decreto-Lei no200.

    Valorizar a funo pblica e promover a renovao de quadros eram asmetas principais da poltica de recursos humanos do governo Sarney. Para isso,foram criadas a Escola Nacional de Administrao Pblica (Enap) e o Centrode Desenvolvimento da Administrao Pblica (Cedam), ambos vinculados Secretaria de Recursos Humanos. O primeiro seria responsvel pela formaode novos dirigentes do setor pblico e ao segundo caberia a funo de treinare reciclar servidores pblicos, objetivando uma alocao mais lgica e racionalde funcionrios pblicos. Complementando essa poltica, a Secretaria de Ad-ministrao Pblica (Sedap), ao tentar resgatar o sistema de mrito, elaborouum novo plano de carreira, uma reviso do estatuto do funcionalismo e umplano de retribuies.

    Na prtica, nem a comisso, nem o grupo executivo que a sucedeu con-seguiu implementar as medidas que preconizaram. A ampla reforma moder-nizadora e democrtica foi deixada de lado para dar lugar mais tradicionalestratgia de reforma administrativa a racionalizao dos meios. Mas mes-mo com a emulao suscitada pelo Plano Cruzado, o governo no foi capaz dereativar as antigas ilhas de eficincia do setor pblico planejamento, arre-cadao, comunicaes, poltica agrcola desmanteladas a partir do incioda gesto de Delfim Neto na Secretaria de Planejamento, da presidncia daRepblica, no governo Figueiredo. Por outro lado, como medidas de racionali-zao, o governo Sarney extinguiu o Banco Nacional de Habitao (BNH), queenfrentava grave crise na lgica de financiamento da casa prpria e, com ele,

    a poltica de habitao, cuja responsabilidade, em parte, foi transferida para aCaixa Econmica Federal (CEF). Tambm pouco avanou na implementaodo Sistema nico de Sade (SUS), duramente conquistado na Constituinte.

    No campo da poltica de recursos humanos do setor pblico, o gover-no no conseguiu instituir um sistema de carreiras, apoiando o progressoprofissional na formao dos servidores, que justificasse a existncia dessesorganismos. Deixou para seu sucessor o projeto de um regime nico para osservidores pblicos, determinado pela Constituio de 1988 que, cedendo

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    a presses de interesses corporativos, estabelecia mais de 100 direitos, unsdois ou trs deveres e alguns poucos dispositivos sobre o processo disciplinare as sanes cabveis em caso de falta grave (Lei no8.112, de 11 de dezem-bro de 1990, mais tarde, profundamente alterada pela Lei no9.527, de 10 dedezembro de 1997). Sancionado com vetos posteriormente derrubados peloCongresso Nacional, esse emblema do privilgio em nada contribuiu paravalorizar a funo pblica.

    Para Gileno Marcelino (1988), as tentativas de reforma at 1985 ca-receram de planejamento governamental e de meios mais eficazes de imple-

    mentao. Havia uma relativa distncia entre planejamento, modernizao erecursos humanos, alm da falta de integrao entre os rgos responsveispela coordenao das reformas. Os resultados dessa experincia foram rela-tivamente nefastos e se traduziram na multiplicao de entidades, na margi-nalizao do funcionalismo, na descontinuidade administrativa e no enfra-quecimento do Dasp. Em resumo, a experincia das reformas administrativasno Brasil apresentou distores na coordenao e avaliao do processo, oque dificultou a sua implementao nos moldes idealizados. Persistia na suaconcepo uma enorme distncia entre as funes de planejamento, moderni-zao e recursos humanos.

    Paralelamente s tentativas de reforma empreendidas pelo governo,

    tinham incio os trabalhos da Assemblia Nacional Constituinte, eleita em1986 e instalada no comeo de 1987. A Constituinte pretendia, com a novaCarta, refundar a Repblica, estabelecendo outras bases para a soberania,a ordem social, a cidadania, a organizao do Estado, as formas de delibe-rao coletiva, o financiamento do gasto pblico, as polticas pblicas e aadministrao pblica. A Constituio de 1988 proclamou uma nova enun-ciao dos direitos de cidadania, ampliou os mecanismos de incluso polticae participao, estabeleceu larga faixa de interveno do Estado no domnioeconmico, redistribuiu os ingressos pblicos entre as esferas de governo,diminuiu o aparato repressivo herdado do regime militar e institucionalizouos instrumentos de poltica social, dando-lhes substncia de direo. Nesse

    sentido, a promulgao da Carta Magna representou uma verdadeira refor-ma do Estado.Entretanto, do ponto de vista da gesto pblica, a Carta de 1988, no

    anseio de reduzir as disparidades entre a administrao central e a descentra-lizada, acabou por eliminar a flexibilidade com que contava a administraoindireta que, apesar de casos de ineficincia e abusos localizados em termosde remunerao, constitua o setor dinmico da administrao pblica. Elafoi equiparada, para efeito de mecanismos de controle e procedimentos,

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    administrao direta.8A aplicao de um regime jurdico nico (RJU) a todosos servidores pblicos abruptamente transformou milhares de empregados ce-letistas em estatutrios,9gerando um problema ainda no solucionado para agesto da previdncia dos servidores pblicos, pois assegurou aposentadoriascom salrio integral para todos aqueles que foram incorporados compulsoria-mente ao novo regime sem que nunca tivessem contribudo para esse sistema.Alm disso, o RJU institucionalizou vantagens e benefcios que permitiram umcrescimento vegetativo e fora de controle das despesas com pessoal, criandosrios obstculos ao equilbrio das contas pblicas e aos esforos de moderni-

    zao administrativa em todos os nveis de governo.Apesar do propalado retrocesso em termos gerenciais, a Constituiode 1988 no deixou de produzir avanos significativos, particularmente noque se refere democratizao da esfera pblica. Atendendo aos clamores departicipao nas decises pblicas, foram institucionalizados mecanismos dedemocracia direta, favorecendo um maior controle social da gesto estatal,incentivou-se a descentralizao poltico-administrativa e resgatou-se a im-portncia da funo de planejamento.

    Embora tenha participado da administrao do presidente Sarney, Bres-ser-Pereira (1998:274) faz uma crtica mais contundente s tentativas de re-forma do governo da transio democrtica e s mudanas introduzidas pela

    Constituio de 1988. Ele acredita que, no plano gerencial, houve uma voltaaos ideais burocrticos dos anos 1930 e, no plano poltico, uma tentativa deretorno ao populismo dos anos 1950. Partindo de uma perspectiva de anlisepoltica, considera que os dois partidos que comandaram a transio eram,apesar de democrticos, visceralmente populistas, no tinham, como a socie-dade brasileira tambm no tinha, noo da gravidade da crise que o pas esta-va atravessando. Havia, ainda, uma espcie de euforia democrtico-populista.Uma idia de que seria possvel voltar aos anos dourados da democracia e dodesenvolvimento brasileiro, que foram os anos 1950.

    8O Decreto-Lei no200, de 25 de fevereiro de 1967, estabeleceu a distino entre administraodireta (ou centralizada) e administrao indireta (ou descentralizada), englobando na primeiraapenas os ministrios e seus rgos constitutivos, inclusive os relativamente autnomos e, naindireta, as autarquias, fundaes, empresas pblicas e sociedades de economia mista.9Relao de emprego regida pela Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), que vale tanto paraos empregados das empresas privadas quanto para os das estatais. At 1988, esse regime tambmera utilizado na contratao de servidores de autarquias, fundaes e mesmo de alguns rgos daadministrao direta. Eram chamados de estatutrios os funcionrios regidos pelo antigo Estatutodos Servidores Civis da Unio. Na prtica, o RJU transformou todos os empregados pblicos emfuncionrios estatutrios.

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    menses do fenmeno macro-organizacional.10Mas a redistribuio de auto-ridade e responsabilidade por diferentes reas de especializao, organismose nveis hierrquicos pode caracterizar, por si s, a mudana organizacional econstituir o contedo da reforma administrativa.

    A rpida passagem de Collor pela presidncia provocou, na administrao p-

    blica, uma desagregao e um estrago cultural e psicolgico impressionantes. Aadministrao pblica sentiu profundamente os golpes desferidos pelo governo

    Collor, com os servidores descendo aos degraus mais baixos da auto-estima e

    valorizao social, depois de serem alvos preferenciais em uma campanha pol-tica altamente destrutiva e desagregadora.

    Torres (2004:170)

    Sua reforma administrativa caminhou de forma errtica e irresponsvelno sentido da desestatizaoe da racionalizao.11As medidas de racionalizaoforam conduzidas de maneira perversa e equivocada. Algumas das extinestiveram que ser logo revistas, como a da Capes, por exemplo. Muitas das fuses,principalmente de ministrios, no eram convenientes, pois criavam superestru-turas (como os ministrios da Economia e da Infra-Estrutura) sujeitas a pressesde interesses poderosos, e dificultavam a superviso que intentavam favorecer.Os cortes de pessoal, desnecessrios, se examinarmos a administrao como umtodo, no trouxeram expressiva reduo de custos. A reforma administrativadesmantelou os aparelhos de promoo da cultura e contribuiu ou, pelo menos,serviu de pretexto para a paralisao de todos os programas sociais. Depois doincio da crise de seu governo, Collor voltou ao velho sistema de concesses po-lticas para atrair apoios, desmembrando e criando ministrios.

    O governo Collor tambm prometeu uma reforma do Estado orientadanuma outra direo. Se ela fosse sincera nos seus propsitos poderia, como j

    10Os principais modelos de anlise e interveno organizacional utilizados no processo de re-forma administrativa e a proposta de mudana ambiental planejada so expostos em Motta,1979:153.11Essas categorias foram desenvolvidas para melhor compreender a reforma administrativa dogoverno Collor. A desestatizao parte da premissa que no cabe ao Estado realizar determinadasfunes, e a racionalizaose apia no critrio da eficincia e parte do pressuposto que, entre asfunes indelegveis, o Estado pode, com menos recursos, realizar o mesmo volume de atividadesou, em outros casos, com o mesmo volume de recursos, realizar um maior nmero de atividades(Lustosa da Costa e Cavalcanti, 1991:82).

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    vimos, contribuir para a consolidao e universalizao do Estado mnimo, eassim assegurar o bem-estar dos cidados brasileiros. Na verdade, movida aoportunismo neoliberal e constituda como uma empresa de desmantelamen-to do setor pblico, ela produziu uma srie de remanejamentos no plano daorganizao administrativa, desarticulou as estruturas encarregadas de operarpolticas compensatrias e em nada contribuiu para a garantia de direitos civisou de direitos sociais bsicos.12

    O governo Itamar Franco, dado o seu carter de excepcionalidade, ado-tou uma postura tmida e conservadora com relao reforma do Estado e

    mesmo reforma administrativa. Para conservar a ampla base de apoio quepossibilitou a sua emergncia, persistiu na estratgia de ressucitar ministriosextintos por Collor e restringiu-se a tocar, de forma hesitante, o programa deprivatizao.

    Esse relato inicial no contempla o perodo dos mandatos do presidenteFernando Henrique Cardoso, que objeto de anlise detalhada mais frente.

    10. A reforma Bresser

    No Brasil dos anos 1990, o debate sobre a reforma do Estado foi liderado pelo

    professor Luis Carlos Bresser-Pereira, seja na qualidade descholar, seja na qua-lidade de ministro. Manifestando-se num ou noutro papel, seus argumentos epropostas foram sempre basicamente os mesmos e esto resumidos no PlanoDiretor da Reforma do Aparelho de Estado Pdrae (1995). O documentoest dividido em nove partes e apresenta, entre outros, os seguintes pontos:

    uma breve interpretao da crise do Estado;

    uma classificao evolutiva da administrao pblica;

    um histrico das reformas admini