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  • Estatsticas criminais e segurana pblica no Brasil1

    Renato Srgio de Lima

    65NOVOS ESTUDOS 80 MARO 2008

    RESUMO

    No Brasil, a anlise das estatsticas mostra que dados sobre

    o crime e a criminalidade existem e fazem parte da histria do sistema de justia criminal do pas; no entanto, eles no

    se transformam, mesmo aps a redemocratizao, em informaes e conhecimento. O aumento da quantidade de

    dados produzidos, decorrente da modernizao tecnolgica do Estado, provoca, por sua vez, a opacidade do excesso de

    exposio e permite que discursos de transparncia sejam assumidos sem, todavia, instaurar mudanas nas regras e

    prticas de governo. Em suma, a redefinio dos papis de tais estatsticas e a superao desse quadro tm menos

    relao com aspectos tcnicos, que so controlveis e dependem da tomada de decises, e, mais, com aspectos polti-

    cos que dem conta de atribuir responsabilidades e resolver conflitos.

    PALAVRAS-CHAVE: estatsticas criminais, transparncia, opacidade,

    democracia

    SUMMARY

    In Brazil, the analysis of statistics shows that crime and cri-

    minality data are produced and that they are part of our criminal justice system history. Nevertheless, these data are not

    transformed into information and knowlegde, even after the re-democratization of the country. The raising amount of

    produced data, which results from the technological modernization of the state, causes the opacity of excessive exposure

    and allows the circulation of transparency discourses without the occurence of actual changes in governmental rules and

    practices. To sum up, the re-definition of those statistics role does not rely on technical aspects, which are controlable

    and depend on decision making; it relies on political aspects that can attribute responsibilities and resolve conflicts.

    KEYWORDS: criminal statistics, transparency, opacity, democracy.

    [1] Este texto reproduz, com modi-ficaes pontuais e acrscimos, cap-tulo intitulado Estatsticas crimi-nais, justia e segurana pblica noBrasil, a ser publicado no quartovolume do livro Histria das estatsti-cas brasileiras: 1822-2002(estatsticasformalizadas: c.1972-2002), editadopelo IBGE e previsto para o primeirosemestre de 2008. Uma anlise deta-lhada da produo e do uso de estats-ticas criminais no Brasil pode serobtida em Lima, Renato S. Contandocrimes e criminosos em So Paulo: umasociologia das estatsticas produzidas e

    Um dos temas que mais chamam a ateno na dis-cusso sobre segurana pblica no Brasil ,sem dvida,a (in)existn-cia de estatsticas criminais que permitam mensurar e subsidiar atomada de decises e o planejamento de polticas pblicas eficientes edemocrticas na rea. A disponibilidade e o papel das informaessobre crimes e criminosos configuram-se como centrais neste debatee,assim,mobilizam diferentes atores em torno da definio de atribui-es, categorias, contedos, regras e procedimentos envolvidos nesseprocesso,na medida em que iro determinar rumos e sentidos de pol-ticas pblicas de pacificao social.

    A PRODUO DA OPACIDADE

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  • utilizadas entre 1871 e 2000. So Paulo:tese de doutorado, Departamento deSociologia, FFLCH-USP, 2005.

    [2] Ademais, dados sobre crimes e,mais residualmente, sobre crimino-sos foram amplamente produzidospelas instituies que compem o sis-tema de justia e segurana do pas epelas agncias de estatsticas pbli-cas, sendo objeto de preocupaesdesde o Imprio brasileiro. Em ter-mos histricos, as primeiras refern-cias e utilizaes sistemticas deestatsticas criminais no Brasilremontam aos anos da dcada de1870. Naquele perodo, foi promul-gada a Lei n- 2.033, de 20 de setem-bro de 1871 e,sua regulamentao,noque diz respeito especificamente sestatsticas, foi feita por meio doDecreto n- 7.001, de 17 de agosto de1878, e precisou de 83 pginas paradetalhar todas as possibilidades devariveis e cruzamentos necessriosao atendimento da demanda dogoverno imperial. Esse ltimodecreto faz distino entre estatsti-cas policiais e judiciais e, dentro des-sas ltimas,caracteriza as estatsticascomo criminal,civil,comercial e peni-tenciria. H 59 modelos diferentesde formulrios de coleta de dados edefinies sobre prazos de apurao eretificao das informaes. Paracada situao, havia uma orientaoespecfica. Existiam modelos para aapurao de crimes,hipotecas e tran-saes comerciais diversas.

    [3] Muniz, Jacqueline O. e Zacchi,Jos Marcelo. Avanos, frustraes edesafios para uma poltica progressista,democrtica e efetiva de segurana p-blica no Brasil. So Paulo: FundaoFriedrich Ebert Stiftung (Textos Pro-sur/Segurana Cidad), 2004.

    A anlise sociolgica das estatsticas exige,por conseguinte,que res-ponsabilidades, interpretaes, significados e, mesmo, segredos sejamassumidos como elementos de compreenso da produo e utilizao dedados estatsticos e, em complemento, das associaes dessas com aincorporao, pelas instituies responsveis pela segurana pblica,dos requisitos democrticos de transparncia e controle do poder.

    Nessa direo, possvel defender a hiptese de que o Brasil noconseguiu avanar na montagem de um ciclo de produo e utiliza-o de estatsticas criminais; no conseguiu coordenar politica-mente o ciclo das informaes sobre justia e segurana2. O modelobrasileiro no superou a dimenso do registro de fatos criminais,aqui includas ocorrncias policiais e dados prisionais, e, conse-qentemente, no toma a produo de dados pelas instituies desegurana e justia como passo inicial para a utilizao de informa-es e, a partir da, para o acmulo de conhecimento sobre os fen-menos sociais derivados das situaes e casos descritos. Entre asrazes para essa realidade est, por certo, que o conhecimento valo-rizado nesse campo aquele que domina as tcnicas jurdicas deprocessamento legal de casos, de processos, no obstante a legisla-o nacional prever vrios mecanismos de monitoramento da atua-o das instituies da rea.

    Alm disso, o aparato de segurana e justia criminal manteve-se,mesmo aps a Constituio de 1988, basicamente com as mesmasestruturas e prticas institucionais desenhadas pelo regime militar de1964 e herdeiras de polticas criminais pautadas no direito penal fortee absoluto. Os avanos nessa rea foram residuais e cuidaram de darcarter civil ao policiamento, retirando-o do campo da defesa nacio-nal e das foras armadas. Os rudos no pacto federativo no foramalterados e,ao contrrio,novas situaes foram criadas com a cada vezmais presente introduo dos municpios na formulao e execuode polticas de preveno e combate violncia.3

    Entre as permanncias,o quadro institucional manteve as estrutu-ras e regulamentos internos,as rotinas e os procedimentos burocrti-cos;as categorias e as classificaes adotadas nos levantamentos esta-tsticos at ento produzidos; bem como manteve um quadrobifurcado de produo de dados criminais,pelos quais instituies dejustia e segurana e agncias de estatsticas compartilham a respon-sabilidade legal pela existncia dessas estatsticas. Como exemplo, oBrasil possui 58 polcias,incluindo as polcias da Cmara e do Senado,e cada uma possui um critrio diferente de classificao e produo deestatsticas criminais. O Ministrio da Justia tenta, desde 1995,padronizar tais dados,mas,mesmo com avanos na construo de umsistema nacional, enfrenta grandes obstculos para compatibilizar eequalizar as categorias utilizadas.

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  • [4] Paixo, Antnio L. Crimes e cri-minosos em Belo Horizonte, 1932-1978.Seminrio sobre Violncia, Crime ePoder, Campinas, Unicamp, 1982;Pinheiro, Paulo Srgio. Escritos indig-nados: polcia, prises e poltica noEstado autoritrio. So Paulo: Brasi-liense, 1984.

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    A partir da dcada de 1970,a demanda poltica por transparncia nasdecises governamentais e o aproveitamento,pela mdia e pelos setoresorganizados da sociedade civil4, das estatsticas criminais existentespara retratar o modo de funcionamento do sistema de justia criminal ereivindicar direitos criam tenses nos padres e regras de trabalho deproduo de dados que foraro a redefinio de papis tanto dos funcio-nrios e instituies quanto dos prprios dados produzidos. No obs-tante essas tenses,um fio condutor parece ter guiado os produtores deestatsticas criminais no Brasil, isto ,os dados passaram a ser produzi-dos ainda de forma mais intensa,porm tendo-se por critrio as classifi-caes e linguagens do universo do direito penal vigentes. Questes demodus operandi e/ou teis gesto e reforma democrtica das instituiesno so completamente incorporadas e, em paralelo, perdem espaopara o acompanhamento costumeiro da incidncia de ocorrncias dostipos penais previstos na legislao brasileira s no final dos anos1990 que a adoo de ferramentas de georreferenciamento muda essecenrio e comea a indicar a utilidade e atualidade dos dados para plane-jamento operacional e ttico e, portanto, circunscritos s polcias. Emsuma,o movimento foi,como destacado,o de colar os dados s regras ecategorias penais, num reforo do discurso jurdico como aquele capazde dotar de sentido as informaes criminais.

    Em conseqncia, mesmo carente de conhecimento, a rea crimi-nal no conseguiu manter-se como prioridade das instituies desegurana e, de igual forma, das agncias pblicas de estatsticas noBrasil ao longo dos anos 1970, 1980, 1990 e 2000, tanto no mbitofederal como no estadual. O interesse dessas ltimas instituiescomeou a ressurgir, inclusive, a partir da possibilidade de aplicaojunto populao das pesquisas de vitimizao,cujo controle sobretodas as fases de sua produo e cujo uso que poderia ser feito de seusresultados foram mais fceis de serem tomados como algo passvel deser contado. A grande diferena em relao s instituies de justia esegurana que os olhares das agncias de estatsticas repousam,agora, sobre o crime, no como categoria penal, e sim como ele socialmente percebido e sentido.

    Assim,em 1988,o IBGE produz a primeira pesquisa de vitimizaonacional da histria do Brasil. De fato, o que foi feito foi um estudo-piloto sobre justia e violncia com questes suplementares ao ques-tionrio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD).Mediante perguntas objetivas, procurou-se investigar a incidncia decrimes junto populao e os nveis de confiana nas instituies decontrole social.Porm,mesmo transcorridos quase vinte anos e produ-zidas mais de trinta pesquisas regionais do gnero no pas, uma novapesquisa nacional continua,desde 2000,sendo negociada entre IBGEe Ministrio da Justia e tem previso de campo para 2008 ou 2009.

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  • [5] Lima, op. cit.

    Nesta medida, o uso de estatsticas criminais no incorporadocomo um modo de pensar a ao das instituies de justia criminal esegurana pblica no pas.Diante desse quadro,em nome de uma lin-guagem tcnico-processual, procedimentos burocrticos so mobili-zados para justificar os padres de funcionamento do sistema de jus-tia criminal e os principais dilemas da rea no ganham o benefcio datransparncia e do envolvimento sistemtico de outros atores relevan-tes,como o IBGE,por exemplo.Quando lembradas,as estatsticas cri-minais so,em geral,associadas necessidade de sistemas informati-zados de informao, em um movimento que, em alguns casos, podefetichizar a tecnologia como panacia para todos os males da burocra-cia e como soluo para os dilemas da transparncia democrtica.5

    Assim, diante da multiplicidade de atores e da fragmentao demodelos e levantamentos existentes, as instituies de justia e segu-rana,bem como as agncias pblicas de estatsticas,no se sentem obri-gadas a continuar produzindo dados com base em registros administra-tivos e,para elas,o tema perde centralidade e deixa de fazer parte da suasagendas, exceo feita, no caso das agncias, Fundao Joo Pinheiro,de Minas Gerais,e Fundao Seade,em So Paulo,que mantm a divul-gao de dados produzidos pelas respectivas polcias estaduais.

    Ou seja, diante da fragmentao discursiva do campo e das difi-culdades na definio do que se deve contar, do que se deve monito-rar a partir da estatstica como instrumento de objetivao da reali-dade,h,em traduo,intensas disputas sobre o sentido do controlesocial contemporneo.

    Como resultado,h um reforo do processo em que os fenmenosda desordem,da criminalidade e da violncia ainda so absorvidos porlgicas pouco democrticas de resoluo de conflitos. O problema dasegurana pblica e da justia criminal visto como predominante-mente afeito ao universo jurdico e policial, cujas solues devem serpensadas preferencialmente pelos operadores jurdicos, que teriam aexperincia do cotidiano para legitimar os seus atos. Mltiplas tesesso construdas, mas ao custo de um baixo nvel de informao econhecimento no de dados, como se est ressaltando.

    A presso por aes efetivas de reduo da insegurana reapro-priada no sentido da manuteno desse quadro descrito, na medidaem que novos recursos humanos,financeiros e materiais so alocadospelos dirigentes polticos mais em funo daquilo que entendidoempiricamente como prioritrio do que daquilo que seria fruto de umamplo debate sobre qual controle social compatvel com a democra-cia brasileira. Aes espetaculosas so mobilizadas e os principaisproblemas do modelo de organizao do sistema de justia criminal eda pouca participao da sociedade deixam de ser considerados urgen-tes e politicamente pertinentes.

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  • O tempo dos produtores se ope ao dos usurios.No h centrosde clculo legitimados para atribuir sentidos aos dados e coordenarsua produo.Sem essa coordenao,no h conhecimento para a ava-liao ou redefinio das polticas pblicas de pacificao social.Disso, os segredos burocrticos e os modelos de atuao se refazemno na indisponibilidade de dados ou de vontade em divulgar infor-maes, mas na opo poltica das instituies de justia criminal deno estruturarem suas aes nas interpretaes que so feitas dosdados disponveis e, tambm, na timidez das agncias pblicas deestatsticas em assumir o tema em seus programas de trabalho.

    Em sntese, a anlise das estatsticas criminais brasileiras revelaque dados existem e fazem parte da histria do sistema de justia cri-minal do pas, mas que eles no se transformam, mesmo aps a rede-mocratizao, em informaes e conhecimento. O aumento da quan-tidade de dados produzidos,advindo da modernizao tecnolgica doEstado, provoca, por sua vez, a opacidade do excesso de exposio epermite que discursos de transparncia sejam assumidos mas noprovoquem mudanas nas regras e prticas de governo (do queadianta ter disponvel milhes de registros se o usurio no-especia-lista no sabe o que elas significam ou traduzem?). Hoje, vrias secre-tarias de segurana do pas e outros rgos de governo colocam dis-posio, pela internet, estatsticas sobre crimes e criminosos e, nempor isso,podemos afirmar que conhecemos muito mais sobre os prin-cipais dilemas do tema do que alguns anos atrs.

    Em relao aos requisitos da democracia, a transparncia se diluina permanncia de mltiplas agendas polticas em torno do contar cri-mes e criminosos e na falta de coordenao na produo de estatsti-cas criminais. Ao mesmo tempo, mecanismos de controle pblico dopoder so diludos pela emergncia que a prevalncia da criminalidadeviolenta e do medo e da insegurana impe,na medida em que so vis-tos,por parcela significativa da opinio pblica,como obstculos paraa ao eficaz das instituies de justia e segurana e,com isso,perdemlegitimidade e so de difcil implementao.

    Enfim,a redefinio dos papis de tais estatsticas e a superao dessequadro tm menos relao com aspectos tcnicos,que so controlveis edependem da tomada de decises, e, mais, com aspectos polticos quedem conta de atribuir responsabilidades, evitar conflitos de competn-cia e definir o significado e o sentido dos dados necessrios s aesdemocrticas no campo da justia e da segurana pblica no Brasil.

    Renato Srgio de Lima doutor em sociologia pela USP,chefe da Diviso de Estudos Socioeco-

    nmicos da Fundao Seade e coordenador executivo do Frum Brasileiro de Segurana Pblica.

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    Recebido para publicao em 20 de novembro de 2007.

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