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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    EDMILSON BRITO RODRIGUES

    TERRITRIO E SOBERANIA NA GLOBALIZAO: Amaznia, jardim de guas sedento

    (Tese de Doutorado)

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Adlia Aparecida de Souza

    So Paulo 2010

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    Edmilson Brito Rodrigues

    TERRITRIO E SOBERANIA NA GLOBALIZAO: Amaznia, jardim de guas sedento

    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, sob orientao da Professora Doutora Maria Adlia Aparecida de Souza, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Geografia Humana

    So Paulo

    2010

  • Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    Rodrigues, Edmilson Brito. Territrio e soberania na globalizao:

    Amaznia, jardim de guas sedento / Edmilson Brito Rodrigues; orientadora: Maria Adlia Aparecida de Souza. So Paulo, 2010. 404f. : Il.

    Tese (Doutorado)--Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. Departamento de Geografia. rea de concentrao: Geografia Humana.

    1. Geografia humana. 2. Recursos hdricos (Amaznia). 3. Uso do territrio. 4. Globalizao. I. Ttulo. II. Souza, Maria Adlia Aparecida de.

    CDD 304.2

    E-MAIL:[email protected]

  • TERRITRIO E SOBERANIA NA GLOBALIZAO: Amaznia, jardim de guas sedento

    Edmilson Brito Rodrigues

    Data do Exame: ____/____/______

    Banca Examinadora:

    _________________________________________

    Profa. Dra. Maria Adlia Aparecida de Souza Universidade de So Paulo (USP)

    __________________________________________

    Prof. Dr. Wanderley Messias da Costa Universidade de So Paulo (USP)

    __________________________________________

    Prof. Dr. Franklim Leopoldo da Silva Universidade de So Paulo (USP)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Alberto Ferreira Lima Universidade Nacional de Braslia (UNB)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Mrcio Cataia Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

  • professora Maria Adlia Aparecida de Souza,

    em reconhecimento profcua contribuio renovao da cincia geogrfica,

    enredada em meio sculo de trabalho rduo, e pelos setenta anos de existncia

    cuja virtuosidade apenas o anteato do muito que ainda vir

    em favor dos homens e mulheres pobres e lentos do Brasil e do mundo

    no perodo popular da histria que, com sabedoria, ousa anunciar.

  • AGRADECIMENTOS

    Este momento seria impossvel sem a solidariedade de diversas pessoas e instituies s quais agradeo intensa e amorosamente.

    Aos meus pais Gumercindo (em memria) e Abigail pela vida, exemplo de dignidade e amor incondicional que, por sobre imensas dificuldades, tornaram possvel minha formao; aos manos Gerson, Vera Lcia, Selma Leni, Roberto Otvio, Gilberto e Edilene, meus esteios afetivos e incentivadores; Luclia pelo amor, compreenso e solidariedade de todas as horas que no me deixaram desistir; aos filhucos Marina, Natlia e Solano, sem os quais a existncia seria insuportvel e aos quais me penitencio pelas ausncias que as

    circunstncias impuseram; neta Ana Luza, sntese de amor, esperana no futuro humano feliz.

    Secretaria de Estado de Educao do Par (SEDUC) e Universidade Federal Rural da Amaznia (UFRA), que me honram servir profissionalmente, pela certeza renovada de que a educao pblica um valor fundamental estratgico para o futuro igualitrio do nosso territrio e do mundo. Agradeo aos meus colegas de Instituo de Cincias Cibernticas e Espaciais e, em especial, ao professor Everaldo Carmo da Silva pelo empenho em liberar-me para esta etapa de formao acadmica. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelos dois anos de bolsa que ajudaram a proceder este trabalho.

    Ao amigo Ivan Valente, brilhante Deputado Federal, que me honrou assessorar em 2005 e possibilitou minha insero, ainda como aluno especial, no desafio do doutoramento; Vera Valente, pela confiana e aval sem os quais seria impossvel morar em So Paulo.

    s amigas Glria Rocha e Slvia Helena Seabra, procuradoras imprescindveis no mundo regido pela burocracia; aos irmos de sonhos Aldenor Junior, Araceli Lemos, Edilene Rodrigues e Jos Nery Silveira, Marinor Brito e Sandra Alencar pela solidariedade que se fez preciosa quando ausente estive do meu lugar.

    Ao amigo Alceu Pontes Filho pela ajuda valiosa na traduo para o ingls do resumo deste trabalho e amiga Iraneide Silva pela reviso normativa da bibliografia.

    equipe da Secretaria da Ps-Graduao do Departamento de Geografia da USP, Ana, Cida, Jurema e Rosngela, pela abnegao, solidariedade e conscincia de que a cincia vale mais que a burocracia.

    Ao Laboratrio de Planejamento Territorial (LABOPLAN), abrigo de convivncia frutfera, lugar do pensamento crtico e da geografia renovada, agradeo: gegrafa Ana

  • Pereira, suporte administrativo cotidiano feito com o compromisso apaixonado que o sorriso permanente anuncia; aos professores Armen Mamigonian, Fbio Contel, Mnica Arroyo, Mara Laura Silveira e Rosa Ester Rossini, pela generosa convivncia e amor cientfico contagiantes; destaco as contribuies imprescindveis do Professor Contel qualificao da tese, das professoras Mnica e Mara Laura pela pacincia e generosidade ao meu exerccio incessante de perguntar e pelas respostas que iluminaram este caminho; aos colegas pesquisadores to valorosos e tantos, que me obrigo a pedir perdo por algum esquecimento: Adriano Zerbini, Aline Santos, Breno Viotto, Carin Carrer, Carlos Pvoa, Cassiano Amorim, Daniel Huertas, Doraci Zanfolim, Edison Bicudo, Elias Jabbour, Elisa Almeida, Evelyn Pereira, Fbio Tozi, Fabola Lana, Flvia Grimm, Helosa Molina, Hendenson Rocha, James Zomighani, Jonatas Mendona, Jos da Rocha, Jlia Andrade, Jurandir Novaes, Lucas Melgao, Maria do Carmo Alves, Maria do Ftal, Mariana Albuquerque, Mario Ramalho, Mateus Sampaio, Pablo Ibaez, Rodolfo Finatti, Virna David, Marina Montenegro, Paulo Borin, Pedro Mezgravis, Ricardo Gilson Silva, Snia Cintra, Victor Iamonti, Villy Creuz, Virgnia Holanda. Sem suas companhias generosas e tolerantes seria muito difcil suportar a solido do fazer acadmico. Especial agradecimento Helosa, Jurandir, Ricardo e Hendeson pelas jornadas sistemticas de estudo que muito me ensinaram.

    Aos professores Mrcio Cataia, da Unicamp, pelas contribuies inestimveis qualificao desta tese e Jorge Grespan, do Departamento de Histria da USP, por ajudar a tornar mais claro que a geografia de Milton Santos a recuperao da dialtica seqestrada pelo marxismo vulgar das analises socioespaciais; aos professores Jorge Raffo, do Laboratrio de Cartografia (LABCART), pelos conhecimentos de geomtica; Vanderli Custdio, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), pela solidria superviso durante o estgio no Programa de Aperfeioamento do Ensino (PAE), Eduardo Yazigi e Rita de Cssia Ariza, pelo privilgio de palestrar em suas aulas e muito aprender.

    Finalmente, agradeo professora Maria Adlia Aparecida de Souza pelo privilgio de merecer sua confiana para orientar-me durante esses ltimos quatro anos. Sua sabedoria, seu modo apaixonado de ensinar; a humildade e a disposio de muito ouvir, mesmo quem, como eu, pouco tm a lhe acrescentar; o agudo rigor crtico hibridizado generosa pacincia, enfim, sua grandeza como pessoa humana e como filsofa das tcnicas, faz de minha luta por liberdade, que s a compreenso do mundo possibilita, a eterna gratido, a imensurvel admirao, o respeito mais profundo desde o rio de carinho, amizade e amor que me tem como abrigo.

  • Entre o rio e sua margem habitam corifeus do tempo-aquele. Os trabalhos e os dias so reescritos. O subterrneo tesouro dos cabanos permanece. Icamiabas guerreiam seus guerreiros brancos. Tribos e turbas nas cinzas das queimadas desesperam-se a buscar a terra sem males. A preamar o rio fecundo de palavras. Piracema de palavras que nadam na linguagem em busca das origens. Enquanto o remo leva o canoeiro por entre peixes e constelaes. (Joo de Jesus Paes Loureiro, A gua da Fonte, 2008).

    Devemos nos preparar para estabelecer os alicerces de um espao verdadeiramente humano, de um espao que possa unir os homens para e por seu trabalho, mas no para em seguida dividi-los em classes, em exploradores e explorados: um espao matria-inerte que seja trabalhada pelo homem mas no se volte contra ele; um espao Natureza social aberta contemplao direta dos seres humanos, e no uma mercadoria trabalhada por outra mercadoria, o homem fetichizado. (Milton Santos, Pensando o espao do homem, 1982).

    Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presena no planeta, pode-se dizer que uma histria universal verdadeiramente humana est, finalmente, comeando. A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condio da construo de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutaes ora em gestao: a mutao tecnolgica e a mutao filosfica da espcie humana. A grande mutao tecnolgica dada pelas tcnicas da informao, [...] quando sua utilizao for democratizada, essas tcnicas doces estaro a servio do homem. [...] Pouco se fala das condies [...] que podem assegurar uma mutao filosfica do homem, capaz de atribuir um novo sentido existncia de cada pessoa e, tambm, do planeta. (Milton Santos, Por uma outra globalizao: do pensamento nico conscincia universal, 2000).

  • RESUMO

    Analisa-se o uso do territrio no perodo da globalizao e seu rebatimento na soberania. Apreendeu-se o fenmeno da apropriao mercantil dos recursos hdricos, mormente na Amaznia, observando-se a imanncia de usos no-mercantis do territrio como resistncia dos lugares. Analisou-se a realidade como uma totalidade dinmica, norteando-se pelo imperativo tico de uma prxis transformadora. A hiptese de que o uso do territrio como recurso mercantil constrange a soberania, tornando o territrio um crescente de tenses. Como recurso de mtodo, cindiu-se o espao-tempo segundo eventos normativos, tcnicas da ao, significativos da formao socioespacial brasileira. Concebendo-se o espao como acumulao desigual de tempos, mostrou-se que o processo de reconfigurao geogrfica atual tem razes distantes; que muitos eventos contemporneos contm velhas intencionalidades. Entre 1933 e 1960 as bases da modernizao atual se estabeleceram; a criao da Diretoria de guas e a do Cdigo de guas regularam todas as possibilidades de uso da gua. Entre 1960 e 1993 a criao do MME, do DNAEE, e da Eletrobrs aprimoram o poder de planejamento e ao institucionais atinentes ao aproveitamento mltiplo dos recursos hdricos do territrio; a criao da Eletronorte, viria viabilizar um significativo aumento de densidades tcnicas na Amaznia, com a instalao de sistemas de engenharia como a Usina Hidreltrica de Tucuru, entre outros, para viabilizarem a fluidez exigida pela racionalidade econmica vigente, ora aprofundada na globalizao atravs de sistemas de engenharia como Belo Monte e da privatizao dos sistemas de saneamento. O perodo iniciado em 1994 criou metforas destinadas a consolidar a psicoesfera segundo a qual o princpio de soberania territorial deve ser relativizado. Essa ideologia de estados desterritorializados, contudo, necessita do territrio como um hbrido de normatizado e norma para tornar-se tecnoesfera. O BIRD, o FMI e a OMC so agentes normatizadores ativos do territrio, mas somente o estado territorial pode legitimar sua racionalidade normativa que , no caso em estudo, a mercantilizao da gua que social. o contedo territorial do estado que autoriza afirmar a possibilidade de um projeto soberano de pas, porque, se a racionalidade do territrio alienado constrange a soberania, tambm gesta o seu contrrio: um territrio no-alienado, um exerccio consciente, dos lugares, de soberania, como resistncia e como produo de uma racionalidade alternativa.

    Palavras chave: Globalizao, Soberania, Territrio Usado, Recursos Hdricos, Amaznia.

  • ABSTRACT

    The use of territory in globalization era and its consequences on sovereignty is analyzed. The phenomenon of mercantile appropriation of water resources, especially in the Amazon, has been perceived, observing the immanence of non-mercantile uses of territory as resistance of geographical sites. Reality has been analyzed as a dynamic whole, shaped by the ethical imperative of a transformative praxis. Hypothesis here is that the use of territory as a market resource restrains sovereignty by turning land into a source of tensions. As a means of method, time and space were divided following normative events and techniques for action, which were significant for the formation of Brazilian society and territory. By perceiving space as an unequal accumulation of times, it has been demonstrated that the current process of geographical reconfiguration has its roots far back in time and many contemporary events have old intentions behind. The foundations of the current modernization were established between 1933 and 1960; the creation of Diretoria de guas and the Cdigo de guas provided the regulations for all possible uses of water. Between 1960 and 1993 the creation of MME, DNAEE, and Eletrobrs enhances the possibility of planning and taking institutional actions related to the multiple uses of water resources of the territory; the creation of Eletronorte would enable a significant increase in technical densities in the Amazon, engineering sites were created such as the hydroelectric power plant of Tucurui dam, among others, to provide the fluidity required by the economical rationality of that time, and reinforced today in globalization era with engineering sites such as Belo Monte Dam and the privatization of sewage systems. In a period that started in 1994 metaphors have been created to consolidate a collective mindset in which the principle of sovereignty should be relativized. This ideology of states without territory, however, needs territory as a hybrid form between the regulated and the regulation to become a technosphere. The IBRD, the IMF and WTO are active territory regulatory agents, but only a state with a territory can legitimize their regulatory rationality which is, in this case study, the merchandization of water, meant to be collective - social. It is the integrity of a state territory that authorizes the assertion of the

    possibility of a sovereign project of country, because if the rationality of the alienated territory restrains sovereignty, it also creates its opposite: a non-alienated territory, a conscious exercise of geographical sites, of territorial sovereignty as resistance and production of a different and alternative rationality.

    Key words: Globalization, sovereignty, territory used, water resources, Amazon.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 01: mapa da Amaznia sulamericana....................................................................... Figura 02: mapa do estado do Par Belm, encontro do amazonas com o atlntico - sistema hidrovirio.............................................................................................................. Figura 03: mapa da Amaznia brasileira principais rios.................................................. Figura 04: mapa do territrio brasileiro - representao dos principais aquferos subterrneos......................................................................................................................... Figura 05: mapa do territrio brasileiro - Sistema Interligado Nacional (SIN) energia... Figura 06: foto da usina hidreltrica Coaracy Nunes, rio Araguari, estado do Amap....... Figura 07: foto da usina hidreltrica de Balbina, estado do Amazonas.............................. Figura 08: foto da usina hidreltrica de Samuel, estado de Rondnia................................ Figura 09: foto da usina hidreltrica Tucuru, estado do Par............................................ Figura 10: principais eventos intencionados pelo PAC energia eltrica - para a Amaznia 2010.................................................................................................................

    Figura 11: Amaznia: florestas pblicas nacionais em processo de privatizao............... Figura 12: mapa de localizao da AHE Belo Monte......................................................... Figura 13: mapa da bacia do Amazonas - reas indgenas e reservas florestais oeste de Belo Monte..........................................................................................................................

    Figura 14: mapa da bacia do Amazonas/sub-bacia do Xingu terras indgenas, unidades de conservao e reas prioritrias (ao sul de Belo Monte)................................................ Figura 15: mapas da bacia do Tocantins/Araguaia e da bacia Atlntico Nordeste Oriental................................................................................................................................

    Figura 16: foto (Paulo Jares) da Tura Kayap e Jos Antnio Muniz Lopes no encontro dos povos indgenas do Xingu Altamira-Pa 1989......................................................... Figura 17: organograma estatal/corporativo para os estudos de viabilidade de Belo Monte...................................................................................................................................

    Figura 18: desenho em corte vertical da alternativa um (1): quatro (4) UHE..................... Figura 19: desenho em corte vertical da alternativa trs (3): uma (1) UHE........................ Figura 20: organograma de executores dos estudos e projetos........................................... Figura 21: foto do porto de Altamira: nveis do reservatrio..............................................

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  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 01: distribuio dos recursos hdricos superficiais, nas regies (IBGE) do territrio 2000...............................................................................................................

    Quadro 2: distribuio relativa dos recursos hdricos pelas regies brasileiras consideradas suas superfcies e populaes.................................................................... Quadro 3: municpios, por condio de esgotamento sanitrio total e proporcional segundo bacias hidrogrficas............................................................................................. Quadro 04: Estado de Roraima - Usina Termeltrica Floresta 2010 ............................. Quadro 05: Estado do Amap Usina Hidreltrica Coaracy Nunes 2010.................... Quadro 06: Estado do Amap Usina Termeltrica Santana 2010............................... Quadro 07: Estado do Amazonas - UTE aparecida 2010............................................... Quadro 08: Estado do Amazonas - UTE Mau 2010..................................................... Quadro 09: Estado do Amazonas - UTE Electron 2010................................................ Quadro 10: Estado do Acre - UTE Rio Acre 2010........................................................ Quadro 11: Estado do Acre UTE Rio Branco I 2010................................................. Quadro 12: Estado do Acre UTE Rio Branco II 2010................................................ Quadro 13: Estado do Par Usina Hidreltrica de Tucuru 2010................................ Quadro 14: Estado do Par UHE Curu-Una 2010.................................................... Quadro 15: Regio Norte - parque gerador 2010.......................................................... Quadro 16: instrumentos de incentivo s empresas de energia......................................... Quadro 17: Florestas pblicas nacionais (FLONAS) em processo de privatizao......... Quadro 18: bacia do Amazonas. Restries ambientais ao potencial hidreltrico a aproveitar por sub-bacia (mw)........................................................................................... Quadro 19: dados comparativos das trs alternativas analisadas......................................

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  • LISTA DE ABREVIATURAS

    AGU Advocacia Geral da Unio AMFORP American & Foreign Power Company ANA Agncia Nacional de guas ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica ASSEMAE Associao Nacional dos Servios Municipais em Saneamento BASA Banco da Amaznia S.A. BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento - Banco Mundial BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CANAMBRA Engineering Consultants Limited CDB Conveno sobre a Diversidade Biolgica CELPA Centrais Eltricas do Par S.A. CEMIG Centrais Eltricas de Minas Gerais CEPEL Centro de Pesquisas de Energia Eltrica CEM Companhia de Eletricidade de Manaus CER Companhia Energtica de Roraima CESP Centrais Eltricas de So Paulo CF Constituio Federal CGTEE Companhia de Gerao Trmica de Energia CHESF Companhia Hidro Eltrica do So Francisco CMA Conselho Mundial da gua CME Conselho Mundial de Energia CNUMAD Conferncia das Naes Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento CODESVASF Companhia de Desenvolvimento do Vale do So Francisco CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente CHEVAP Companhia Hidroeltrica do Vale do Paraba COSAMA Companhia de Saneamento do Amazonas COSANPA Companhia de Saneamento do Par CSN Companhia Siderrgica Nacional CVRD Companhia Vale do Rio doce DNAE Departamento Nacional de guas e Energia DNAEE Departamento Nacional de guas e Energia Eltrica DNPM Departamento Nacional de Produo Mineral EGRHB Estratgias de Gerenciamento dos Recursos Hdricos no Brasil: reas de Cooperao com o Banco Mundial ELETROACRE Centrais Eltricas do Acre ELETROBRAS Centrais Eltricas Brasileiras ELETRONORTE Centrais Eltricas do Norte do Brasil S.A ELETRONUCLEAR Eletrobrs Termonuclear S.A. ELETROSUL Centrais Eltricas do Sul do Brasil EPE Empresa de Pesquisa Energtica ESCELSA Esprito Santo Centrais Eltricas EUA Estados Unidos da Amrica FFE Fundo Federal de Eletrificao FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Servio FHC Fernando Henrique Cardoso

  • FMI Fundo Monetrio Internacional FUNASA Fundao Nacional da Sade FURNAS Centrais Eltricas S.A. GATT Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (do ingls General Agreement on Tariffs and Trade) GEBAM Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas GETAT Grupo executivo de terras no Araguaia e Tocantins IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Arquitetnico Nacional INPA Instituto Nacional de Pesquisa da Amaznia INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais IIRSA Iniciativa para a Integrao Regional da Infraestrutura Sulamericana LI Licena Ambiental LIGHT Light and Power Company Limited MAB Movimento de Atingidos por Barragens MAE Mercado Atacadista de Energia Eltrica MERCOSUL Mercado Comum do Sul MME Ministrio das Minas e Energia MMA Ministrio do Meio Ambiente MPF Ministrio Pblico Federal OCDE Organizao para a Cooperao no Desenvolvimento Econmico do Terceiro Mundo OGU Oramento Geral da Unio OIT Organizao Internacional do Trabalho OMC Organizao Mundial do Comrcio ONGs Organizaes No Governamentais ONS Operador Nacional do Sistema Eltrico ONU Organizao das Naes Unidas ou Naes Unidas OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte PAC Plano de Acelerao do Crescimento PAS Plano Amaznia Sustentvel PDA Plano de Desenvolvimento da Amaznia PIB Produto Interno Bruto PLANASA Programa Nacional de Saneamento PMB Prefeitura Municipal de Belm PNB Produto Nacional Bruto PND Plano Nacional de Desenvolvimento PNS Poltica Nacional de Saneamento PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PPP Parceria Pblico-Privada PTB Partido Trabalhista Brasileiro RMB Regio Metropolitana de Belm SIH Sistema de Informaes Hidrolgicas SIN Sistema Interligado Nacional (Eltrico) SIPOP Sistema de Informaes do Potencial Hidreltrico Brasileiro SNIS Sistema Nacional de Informaes do Saneamento SNSA Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental SPVEA Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (SPVEA) STF Supremo tribunal Federal SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia

  • SUDENE Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste SUFRAMA Superintendncia do Desenvolvimento da Zona Franca de Manaus SUS Sistema nico de Sade TERMOCHAR Termoeltrica de Charqueadas S.A. UFRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UHE Usina Hidreltrica UHT Usina Hidreltrica de Tucurui USAID Agency For International Development. USP Universidade de So Paulo UTE Usina Termeltrica WRSS Estratgia para o Setor de Recursos Hdricos: orientaes estratgicas para o engajamento do Banco Mundial (do ingls, Water Resources Sector Strategy: Strategic Directions for World Bank Engagement)

  • NDICE

    INTRODUO................................................................................................................... (i) Ouvir o apelo do lugar, escrever na solido do nunca estar s...................................... (ii) Algumas perguntas fceis, mas no ociosas, para respostas necessrias, mas no evidentes.............................................................................................................................. (iii) Consideraes metodolgicas...................................................................................... (iv) Tessitura preliminar de respostas no contexto de um espao geogrfico complexo que mais pergunta do que responde.................................................................................... (v) Concepo de mundo e prxis transformadoras: um imperativo tico.......................... (vi) Periodizao histrico-geogrfica: um fundamento de mtodo................................... (vii) A composio da tese.................................................................................................. PARTE I A CRTICA DA GLOBALIZAO E DA TESE DO FIM DO TERRITRIO E A PERMANNCIA DO PRINCPIO DA SOBERANIA Captulo 1 - Globalitarismo e territrio usado: a crise socioespacial em processo............. 1.1 - Territrio usado, um espao banal: o futuro humano da humanidade como possibilidade........................................................................................................................ 1.2 - Perodo tcnico-cientfico e informacional: Globalitarismo, crise e revanche do territrio............................................................................................................................... Captulo 2 - Soberania Territorial em tempos de globalizao........................................... 2.1 - Territrio alienado soberania constrangida.............................................................. 2.2 - Soberania: uma construo histrica, dinmica e fundamento para um projeto de futuro................................................................................................................................... 2.3 - Tenses contemporneas da soberania territorial brasileira....................................... PARTE II GUA - RECURSO HDRICO DO TERRITRIO USADO: TENSO ESTRUTURAL ENTRE O USO DO TERRITRIO COMO RECURSO SOCIAL OU COMO RECURSO MERCANTIL.................................................................................... Captulo 3 O espao banal como instncia social e recurso: coexistncia conflitiva entre o uso do territrio como recurso mercantil ou como recurso social.......................... 3.1 Recurso territrio sendo usado................................................................................ 3.2 - Reserva intencionalidade: sistemas de objetos do territrio tornados recursos em estado potencial de uso........................................................................................................ Captulo 4. Os recursos hdricos no subespao amaznico................................................. 4.1 A Amaznia e as metforas Jardim das guas x escassez hdrica no territrio usado.................................................................................................................................... 4.2 - Recursos hdricos do territrio usado: distribuio natural e desigualdades territoriais............................................................................................................................ PARTE III A TRINDADE FINANCEIRA DA GLOBALIZAO: BIRD, FMI E OMC - A AO DA ONU NA PRODUO DE TERRITRIOS COMO NORMA............... Captulo 5 A significao dos eventos privatizantes dos recursos hdricos e produo de contrarracionalidades na globalizao............................................................................ 5.1 - A ONU, as metforas da globalizao e os constrangimentos soberania................ 5.2 A trindade financeira da globalizao e o estado parceiro.................................... Captulo 6 Eventos de normatividade do territrio: pacto permissivo e reao coero hegemnica na formao socioespacial brasileira................................................. 6.1 Evento, esse produtor de possibilidades..................................................................... 6.2 - Territrio como norma e territrio normatizado: os riscos da poltica como um fazer corporativo.................................................................................................................. PARTE IV - A NORMATIZAO DO TERRITRIO DO USO HEGEMNICO, INSTITUIES ESTATAIS E SISTEMAS TCNICOS NA FORMAO

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  • SOCIOESPACIAL BRASILEIRA: OS RECURSOS HDRICOS EM QUESTO.......... Captulo 7 - Um recorte espao-temporal significativo da formao socioespacial brasileira.............................................................................................................................. 7.1 A formao socioespacial brasileira: futuro do ontem se tornando existncia no presente................................................................................................................................ 7.2 - Eventos normativos pregressos e balizadores da concreticidade do territrio no perodo atual........................................................................................................................ 7.2.1 - Cdigo de guas: uma baliza para os eventos normativos contemporneos.......... 7.2.2 - Da introduo das bacias hidrogrficas como unidades de planejamento e os aparatos do estado necessrios poltica da gua como setor para os agentes hegemnicos........................................................................................................................ 7.2.3 - Eletrobrs uma aparato institucional essencial: pode servir ao Brasil como s foras exgenas hegemnicas na globalizao................................................................... Captulo 8 - Recursos hdricos e sistemas eltricos de engenharia na Amaznia............... 8.1 O contexto da criao e evoluo da Eletronorte....................................................... 8.2 - A distribuio atual dos recursos hdricos expressos nos sistemas eltricos de engenharia pelos estados da Amaznia............................................................................... 8.2.1 Estado de Roraima................................................................................................... 8.2.2 Estado do Amap..................................................................................................... 8.2.3 Estado do Amazonas............................................................................................... 8.2.4 Estado do Acre........................................................................................................ 8.2.5 Estado de Rondnia................................................................................................. 8.2.6 Estado do Maranho................................................................................................ 8.2.7 Estado do Tocantins................................................................................................ 8.2.8 Estado do Mato Grosso........................................................................................... 8.2.9 Estado do Par......................................................................................................... PARTE V EVENTOS GLOBALITRIOS, ALIENAO DO TERRITRIO: CONSTRANGIMENTOS SOBERANIA E RESISTNCIAS..................................... Captulo 9 Globalizao, territrio alienado: um espao-tempo significativo de apropriao dos recursos hdricos em perspectiva anti-soberana........................................ 9.1 Processos espaciais do atual perodo: prembulos ....................................................... 9.2 Consideraes sobre o FMI, Banco Mundial e OMC - agentes destacados na estratgia de normatizao financeira do territrio............................................................. 9.3 - Territrio usado e recursos hdricos na globalizao.................................................. 9.4 - Da Conferncia de Dublin aos eventos voltados ao uso dos recursos hdricos como bem mercantil no territrio brasileiro.................................................................................. 9.5 A dialtica entre territrio normatizado e territrio como norma: forma-contedo contempornea da formao socioespacial brasileira......................................................... 9.6 Os princpios de Dublin assumidos oficialmente como estratgia do Banco Mundial: engajamento para a privatizao do setor de recursos hdricos....................... 9.7 - A Estratgia do Banco Mundial para a Gesto dos Recursos Hdricos do Brasil: sistemas de aes normativas e soberania territorial constrangida..................................... 9.8 O WRSS e o EGRHB: dois eventos normativos, uma mesma estratgia e novos eventos permissivos dos abusos contra o territrio............................................................. Captulo 10 - Os fundamentos sistmicos da mercantilizao do territrio........................ 10.1 uma economia espacial para o territrio usado........................................................ 10.2 - Recursos naturais e globalitarismo: as terras dos recursos hdricos como novo fronte da acumulao capitalista......................................................................................... 10. 3 - A terra, a gua nela contida, o trabalho, como base territorial das determinaes da renda fundiria................................................................................................................

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  • 10. 4 - Usos do territrio nos lugares portadores de recursos hdricos como diferencial para acumulao baseada no monoplio da terra ............................................................... 10.5 - Frmula Trinitria: anotaes sobre a irracional racionalidade do modo de produo capitalista e seu rebatimento no espao geogrfico............................................. Captulo 11. Globalizao, a simbiose geopoltica externo-interna, verticalidades e resistncias na Amaznia.................................................................................................... 11.1 Nota introdutria..................................................................................................... 11. 2 Geopoltica, reconfigurao e refuncionalizao do subespao amaznico: antecedentes do atual perodo.............................................................................................. 11. 3. Sistemas de objetos e de aes expressos em uma forma autoritria de planejamento territorial voltada a normatizar o uso monopolista do territrio .................. 11. 4. Do planejamento territorial autoritrio ao abandono do planejamento: a submisso agenda do capital financeiro no perodo tcnico-cientfico e informacional.. 11.5 - Globalizao como nova face do imperialismo: a geopoltica estadunidense e a Amaznia............................................................................................................................. Captulo 12 - Normatividade e uso hegemnico do territrio na Amaznia....................... 12.1 territrio sendo usado na Amaznia: uma dinmica perversa porque desequalizadora................................................................................................................... 12.2 - Polticas para o uso do territrio na Amaznia: a fora dos agentes hegemnicos na definio da ao normativa do estado........................................................................... 12.3 - Lei de Gesto de Florestas Pblicas: a normatizao hegemnica para a concesso de florestas e a concesso poltica feita por agentes autoproclamados ambientalistas...................................................................................................................... 12.4 Floresta zero: norma para a acumulao das agrocorporaes................................ 12.5 - PAG Plano de Acelerao da Grilagem: nem o imprio brasileiro ousou tanto desconhecer o carter social da propriedade....................................................................... 12.6 - Adeus s faixas de fronteiras do territrio: soberania para quem?........................... 12.7 - Normatizao para a perpetrao da violncia contra afrodescendentes.................. 12.8 - Considerar a complexidade da Amaznia: a primeira obrigao para quem objetiva inseri-la como subespao estratgico em um projeto soberano de nao............. 12.9 - Uso do territrio: aes institucionais e corporativas anti-soberanas, PPP e outras formas de alienao............................................................................................................. 12.10 - Fluxos interregionais: a Amaznia e a Regio concentrada: trocas desiguais........ 12.10.1 - As principais corporaes favorecidas:................................................................ 12.11 - Iniciativa para a integrao regional da infraestrutura sulamericana (IIRSA): mais um evento hegemnico outrora constrangido pela resistncia popular Captulo 13. Belo Monte de flechas do tempo: totalizao de longo prazo, frices entre aes hegemnicas e contra-hegemnicas na reconfigurao e refuncionalizao territorial da Amaznia........................................................................................................ 13.1 Belo Monte: evento significativo da ordem espacial atual....................................... 13.2 - De que projeto se trata? Uma descrio sucinta de Belo Monte............................... 13.3 Razo corporativa e obsesso poltica e resistncias: um evento forjando sua existncia............................................................................................................................. 13.4 - Procuradores da Repblica: alguns so mos esquerdas no estado brasileiro.......... 13.5 - Oito aes do MPF, constrangimentos totalizao do evento................................ 13.6 - As irregularidades encontradas pelo MPF................................................................ 13.7 - As pretensas tentativas de mitigao realizadas pelo governo................................. CONCLUSO: para seguir perguntando............................................................................ REFERNCIAS .................................................................................................................

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  • INTRODUO

    (i) Ouvir o apelo do lugar, escrever na solido do nunca estar s

    Nesta seo introdutria no se antecipam definies precisas sobre certas categorias, conceitos e noes que, necessariamente, sero apresentados e utilizados como base analtica desta tese. Os esclarecimentos sero feitos ao longo dos captulos. Desse modo, far-se- uma redao mais livre, que possa cumprir o objetivo de transmitir, em linhas gerais, uma idia do caminho, do mtodo, construdo. Ser exigido, portanto, um esforo abstrativo maior, enquanto a base conceitual no esteja ainda acompanhada da devida explicitao de sua origem autoral e da significao dada por este autor.

    Este trabalho expressa um movimento e uma trajetria conjuntos. Um movimento de construo metodolgica convicta de que sempre se chega a algum lugar quando se move por um compromisso com a verdade. Uma trajetria incerta e sinuosa, porque expressa a convico de que a verdade absoluta inalcanvel. Movimento e trajetria indissociveis que se baseiam em enriquecedores flvios, cuja fluidez mediada por um tipo solitrio de operacionalizao da bssola e dos azimutes que ela indica; necessrio e inevitavelmente solitrio, a despeito do contexto coletivo e sistmico das aes no qual esta contribuio individual est inserida como pequenssima gota de orvalho no ocenico mundo do conhecimento geogrfico. Gota importante na formao de igaraps, rios e mares, mas nem por isso mais do que uma gota diante da complexidade ocenica representada pelo desafio de conhecer o mundo contemporneo tendo o espao geogrfico historicizado, melhor dizendo, o territrio usado, como categoria de anlise social.

    A definio do objeto deste estudo, concebendo-se mtodo como processo, emergiu a partir das leituras, reflexes, argumentos e contra-argumentos travados no mbito do prprio pensamento e realizados com base e contextualizado na realidade do mundo presente. Aos poucos, manifestou-se mediante a ordem desordenada prenha de complexidades que potencializa a unio de lugares, regies, nos territrios e entre territrios usados segundo vieses de simultaneidade e instantaneidade que tornam arriscado as certezas fceis.

    Se nesse oceano bravio configurado no espao geogrfico, como totalidade dinmica, quase tudo impondervel, definir o objeto deste estudo poderia ser o anteato do naufrgio da tese pretendida. Contudo, como alcanar o trapiche sem correr o risco de definir o lugar desse porto talvez seguro? Bem, as reflexes preliminares levaram o caboclo a propor-

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    se o desafio de contribuir, ao seu modo, para o enriquecimento do debate sobre a relao dialtica entre os processos de globalizao e de soberania. Apesar e por causa do mar de incertezas, constituiu-se um norte - o subespao amaznico -, como direo prioritria deste esforo analtico. Assim, a Amaznia, entendida como totalidade menor da dinmica territorial, tambm um rio-mar de complexa decifrao, um verdadeiro emaranhado de tcnicas e aconteceres que se do a partir de e nos lugares, reconfigurando-a e refuncionalizando-a, atravs da objetivao de contraditrias e mesmo antagnicas racionalidades expressas permanentemente nos diversos usos do territrio. Por isso, alm desse mergulho escalar, priorizou-se o estudo da gua, mas como recurso hdrico. Em sntese, analisa-se nesta tese o processo atual de uso do territrio - o territrio sendo usado - com base em eventos voltados sua apropriao privada territrio como bem ou recurso mercantil - que, no presente perodo da formao socioespacial brasileira tem, como nunca, se constitudo como existncia; mas no se descuidou da anlise do uso do territrio como bem ou recurso social o territrio como abrigo -, como resistncias e, mais do que isso, como dinmica de produo de um projeto contra-hegemnico. Mesmo porque injustificvel que em um territrio usado de solo to encharcado pela abundncia de recursos hdricos, um verdadeiro jardim de guas, permanea sedento; mais injustificvel, ainda, a possibilidade de que, mais alienado, o territrio venha a ficar ainda mais sedento.

    O caminho metodolgico construdo procurou estabelecer as devidas conexes entre as partes e o todo espaciais de modo a evitar, na medida do possvel, incompletudes comuns s anlises cientficas de uma realidade to complexa, mormente se resultantes do difcil e solitrio processo de trabalho concreto de indivduos concretos. Processo ao mesmo tempo grvido de desafios tericos e da convico de que o conhecimento da realidade entendida como totalidade em convulsivo, contraditrio e permanente movimento a contribuio mais importante para transformar em existncia um projeto diferente de sociedade-mundo. Por menor que seja esta contribuio, a oportunidade de afirmar um projeto assentado no princpio do direito de todos os humanos felicidade tornou-a um compromisso tico pessoalmente salutar. Mesmo que essa felicidade, em se fazendo como utopia, como pergunta Fernando Pessoa sobre a realidade, ao refletir sobre histria da humanidade, seja [...] o que no conseguimos nunca. /que daquela nossa verdade o sonho janela da infncia? / que daquela nossa certeza o propsito mesa de depois? [...] que da minha realidade, que s tenho a vida?/ que de mim que sou s quem existo? (PESSOA, 2008, p. 80).

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    Que a solido permeia as vias de elaborao de uma tese, haja vista ser essa uma ao individual, j se sabe. Assim parece Marguerite Duras para quem a [...] solido da escrita uma solido sem a qual o texto no se produz, ou ento a gente se acaba, exangue, de tanto procurar o que escrever. (DURAS, 1994, p. 14). Talvez, a solido, do modo como entende Franklin Leopoldo e Silva (s/d), possa ser interpretada no sentido de que, estando junto de tantos com objetivos parecidos, ainda assim ou talvez por isso mesmo, eu no possa evitar que a solido constitua-me como marca do que me falta para ser, ou seja, participar efetivamente do absoluto que almejo. Porque a escrita solido, no compartilhvel, o que me obriga a assumir, livremente, a responsabilidade que s minha, por ser condio da produo da minha prpria existncia, mesmo que haja muitas solides fundindo-se solidariamente atravs da transposio mental e sentimental das distncias.

    Adolfo Snchez Vzquez (1997) observa que o eu nunca tem existncia absoluta e nunca est fechado, auto-suficiente, margem do no-eu. O indivduo s existe como parte de todo um conjunto variado e varivel de diferentes circunstncias. Diz, por isso, que poderia fazer sua a sentena de Ortega y Gasset segundo a qual eu sou eu e minhas circunstncias. Observa, porm, que a conjuno e da expresso ortegueana pode sugerir uma relao de exterioridade, de existncia independente, entre eu e minhas circunstncias. O eu s tal ou existe por suas circunstncias, como produto delas e, por sua vez, as circunstncias no s produzem o eu como de certo modo so produzidas por ele.

    Alerta correto, se bem que para Ortega y Gasset o homem s pode se comunicar com o universo atravs das circunstncias e, por isso, render o mximo de sua capacidade somente quando adquire plena conscincia delas, quando busca para elas, considerando sua limitao e peculiaridade, o lugar acertado, o destino concreto do homem, na imensa perspectiva do mundo, reabsorvendo-as e transformando-as, ao invs de ficar em xtase diante dos valores hierticos. Porque as circunstncias, essas coisas mudas que esto [...] muito perto de ns levantam suas tcitas fisionomias com um gesto de humildade e de desejo, como necessitadas de que aceitemos sua oferta e ao mesmo tempo envergonhadas pela simplicidade aparente de seu donativo. (ORTEGA Y GASSET, 1953, p. 319).

    A Tese III de Marx sobre Feuerbach, qual seja, a de que o homem produz as circunstncias e ao mesmo tempo produzido por elas, expressa corretamente essa dialtica de negao, a um s tempo, do objetivismo ou determinismo mecnico e do voluntarismo ou subjetivismo no comportamento humano que, obviamente incide nas anlises cientficas; idia que tem complemento na tese VI sobre Feuerbach, segundo a qual o homem o conjunto de

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    suas relaes sociais, ou seja, que no existe o indivduo absoluto, isolado, seno o indivduo como ser social (SANCHEZ, idem, p. 30).

    Karl Marx e Friedrich Engels fazem na tese III a crtica ao materialismo Feuerbachiano. Nesse, a doutrina da transformao das circunstncias e da educao, segundo observam, [...] esquece que as circunstncias tm de ser transformadas pelos homens e que o prprio educador deve ser educado. (MARX e ENGELS, 1984, p. 108). As circunstncias implicam, em termos metodolgicos, em uma ciso da sociedade em duas partes, uma das quais ser elevada acima dela e, somente como prxis revolucionria permite apreender e entender racionalmente a coincidncia possvel entre mudana das circunstncias e autotransformao humana. Afirmam, ainda, na tese VI (idem, p. 109) que [...] a essncia humana no inerente a cada indivduo [...], mas s relaes sociais em conjunto; logo, somente uma abordagem no-histrica pressuporia um indivduo humano isolado. Seria uma abstrao, j que somente [...] como espcie, como generalidade interior, muda, que liga naturalmente os muitos indivduos [...], se pode apreender a essncia humana.

    Nessa perspectiva, entende-se que a ao no anula, ao contrrio enriquece, o pensamento. No se trata, portanto, de recolher-se a um tipo de solido criadora imune intencionalidade poltica - dos eventos que reconfiguram o mundo totalidade dinmica sob um invlucro fabular, mas de uma essncia geogrfica perversa - uma inrcia dinmica ou forma-contedo, como concebe Milton Santos em seu A Natureza do Espao (2006 [1996]), produtora de desigualdade scio-espacial. Trata-se, de um distanciamento quanto ao objeto estudado que no admite verdades pr-estabelecidas, mas um distanciamento que percebe transcendncia na relao entre o sujeito que estuda e o objeto de estudo.

    Diante de um mundo desigualmente estruturado pela seletividade dos lugares no territrio e sob mediao da formao socioespacial brasileira, cabe definir-se pela no neutralidade cientfica e, como procede Maria Adlia de Souza (1999) ao refletir sobre o lugar de todo mundo: a geografia da solidariedade, quando recupera o sentido da mxima de Ortega y Gasset - [...] el mundo soy yo, mi vida y mis circunstancias! no contexto de sua viso de mundo inspirada na crena goetheana para quem se um lutador tenho sido, ento isso quer dizer que tenho sido um homem (GOETHE, sd, sp, apud ORTEGA y GASSET, ibidem) para afirmar uma geografia da solidariedade, um mundo como lugar de todo mundo, como possibilidade concreta das circunstncias tcnicas e filosficas imanentes ao perodo histrico-geogrfico atual.

    Este trabalho um retrato do momento presente, fruto de um processo metodolgico que envolve como autor um indivduo concreto, seu cotidiano, sua forma

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    particular de conceber o mundo somente apreensvel atravs da prxis, logo, limitado pelas possibilidades concretas das circunstncias postas - limitaes do pesquisador, complexidade do objeto de estudo, existncia de poucas anlises tericas crticas sobre este na geografia etc. Significa dizer que a tese nasce pronta para ser superada. As crticas, especialmente as de carter terico-metodolgico, so necessrias, mesmo imprescindveis, para que o conhecimento cientfico e, particularmente, a geografia brasileira nunca se contente com o j feito e possa realizar saltos qualitativos quanto anlise espacial, mormente a do territrio brasileiro.

    Essa uma vantagem da solido acadmica. uma solido onde, como diz Duras (1994, p. 35): Nunca se est s [...]. Sempre se est em algum lugar (de onde se ouvem) barulhos na cozinha, na televiso, ou no rdio, nos apartamentos vizinhos, e no prdio inteiro.. Ouvem-se, tambm, vozes sbias de professores, uma sabedoria construda ao longo de sistemticas jornadas pregressas e presentes de estudos sobre o mundo como existncia socioespacial; ouvem-se os gritos da resistncia que partem de todos os lugares do mundo, de todo o territrio e da Amaznia. Nesse vasto espao banal, lugar de lugares, constituem-se redes territoriais horizontais, baseadas em aconteceres solidrios orgnicos, que autorizam a crena na possibilidade de um outro mundo, de um outro modo de produo da existncia humana, baseado em uma nova racionalidade como lgica do uso do territrio, uma racionalidade tcnica e filosfica cujo contedo seja um conjunto de valores emancipatrios que a humanidade, alternativamente, h muito vem gestando.

    Entende-se este trabalho cientfico, produzido sob a acelerao contempornea do mundo (que o torna um sinuoso rio de incertezas ou questionveis certezas), apenas como uma pequenssima contribuio renovao do pensamento geogrfico e que, por isso mesmo, deve ser pensado como momento de um processo inesgotvel, porque, como diz o poeta, [...] o mesmo rio que serve para partir serve para voltar (LOUREIRO, 2008, p. 190), o que faz conceber uma tese sempre como contribuio supervel, mesmo porque, o curso do rio segue incansvel seu rumo ao mar de sonhos inquietos, cheio de incertezas que perguntam, a ouvir o apelo do lugar - o espao de maior transcendncia entre rio e remador, caminho e caminhante -, porque, como relata Heidegger (1969) o lugar fala ao homem que o questiona: Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma sada se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanhava nossos passos pela sinuosa vereda, atravs da amplido da terra agreste, mas apenas enquanto as pessoas do lugar forem capazes de ouvi-lo, acordando um sentido de amor liberdade.

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    (ii) Algumas perguntas fceis, mas no ociosas, para respostas necessrias, mas no evidentes

    Esta tese, em termos gerais, analisa a relao entre a globalizao atual e a soberania no contexto da formao socioespacial brasileira, ou seja, analisa o uso do territrio nas circunstncias do perodo histrico-geogrfico atual perodo tcnico-cientfico e informacional -, atravs da anlise de eventos, j realizados ou que estejam em realizao, significativos para a interpretao dos constrangimentos que, em maior ou em menor grau, impactam a soberania territorial no processo presente de totalizao dinmica de reconfigurao e refuncionalizao do territrio. Buscou-se apreender a relao entre globalizao e soberania territorial analisando-se, especialmente, o fenmeno da apropriao privada dos recursos hdricos do territrio usado, mormente os sucedidos no subespao amaznico; sem, contudo, desconsiderar a imanncia de usos no-hegemnicos que so formas de resistncia.

    Algumas perguntas permitiram apreender o que se apresentava inicialmente como a face mais aparente do real. Atravs de um tipo de reflexo baseada na operacionalizao de categorias, conceitos e noes definidas como basilares e da anlise dos fenmenos territoriais, vistos como parte de uma totalidade em movimento (totalidade em processo permanente de totalizao), melhor pde-se apreender do substrato dessa aparncia, objeto de estudo como forma-contedo.

    Por que importa realizar um esforo de reflexo terica sobre a globalizao neoliberal e os impactos de seus eventos na soberania (do estado) territorial? Por que relevante estudar o papel do Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional e Organizao Mundial do Comrcio entre outras agncias multilaterais das naes unidas no processo de formulao e implementao de normas para o uso do territrio? De que modo o territrio usado atravs da privatizao dos recursos hdricos, devidamente legitimada pela normatizao hegemnica do territrio, assume importncia estratgica para esses agentes no perodo da globalizao? Quais seriam, dentro do complexo, multifacetado, contraditrio e dinmico feixe de aconteceres hierrquicos, aqueles de grande significado no processo de reconfigurao e refuncionalizao territorial, com base na intencionalidade dos eventos que os portam ou que por eles so portados? Qual o significado da ofensiva hegemnica externa e interna, atravs da normalizao e tecnificao do territrio, includa a produo de um discurso metafrico legitimador de sua racionalidade, para a soberania territorial? Pode-se afirmar que a racionalidade da globalizao portadora de contrarracionalidades? As

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    contradies da dialtica globalizao-fragmentao autorizam a pensar na produo de uma racionalidade nova e contra-hegemnica? Como a seletividade dos lugares, caracterstica imanente ao modo social de produo mercantil, conduz fragmentao e pode conduzir a formas de resistncia desde esses lugares com base em uma prxis consciente? Como se insere a totalidade regio, entendida como subespao do territrio usado, na anlise da totalidade espao mundial, mediada pela formao socioespacial? Porque a periodizao deve ser considerada fundamento da anlise do uso do territrio e de que modo os eventos e as redes que relacionam o mundo e os lugares so parmetros essenciais para a compreenso do presente?

    Por fim, foi essencial procurar respostas s questes seguintes: poder esta pesquisa propiciar uma contribuio importante para a compreenso da formao socioespacial do Brasil e do espao mundial? Poder a pesquisa, no presente perodo, favorecer definio de caminhos, formas, de insero soberana do pas na dinmica espacial (internacional) de modo a melhor propor e realizar estratgias de combate s desigualdades hoje existentes no territrio? De que maneira um estudo sobre o uso do territrio no contexto da formao socioespacial brasileira poder contribuir para a produo social de um projeto de futuro que represente um corte histrico com relao globalizao atual e afirme, atravs de uma prxis social fundada na conscincia universal, o verdadeiro incio da histria humana da humanidade?

    (iii) Consideraes metodolgicas

    Apresenta-se aqui a concepo de mundo que orientou metodologicamente esta pesquisa cientfica e, por conseguinte, a postura filosfica diante do objeto de anlise da cincia geogrfica o espao. Orientando-se pelo mtodo dialtico, fez-se um esforo de fundamentao terica para precisar o uso de categorias e conceitos julgados fundamentais para a anlise que se procedeu do objeto de estudo deste trabalho: o uso do territrio realizado e realizando-se atravs da apropriao privada dos recursos hdricos no bojo de um processo de alienao do territrio, segundo um olhar mais atento ao subespao amaznico, no contexto da relao entre globalizao e soberania.

    Tratou-se, de antemo, de refutar o descritivismo geogrfico baseado no mtodo dedutivo e o interpretativismo da anlise do tipo indutivo-dedutiva. Significa dizer que, negando uma concepo de realidade esttica, buscou-se apreend-la como uma totalidade dinmica. Desse modo, procurou-se evitar o caminho metodolgico que, regra geral, baseia-se

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    em trs pressupostos: 1) construo mental de um desenho, pretensamente o mais perfeito, lgico e geomtrico possvel; 2) possibilidade de verificao de sua aplicabilidade experimental e, 3) possibilidade de proceder-se retificaes para que modelo e realidade tornem-se coincidentes. Buscou-se construir um caminho fugidio dessa forma de construo metodolgica na qual primeiramente se define alguns princpios, axiomas ou postulados que derivam de um esforo dedutivo do prprio raciocnio, ou um esforo indutivo-dedutivo de anlise que tambm no garante o perseguido equilbrio consistente entre os axiomas e a experincia, sendo esta considerada aproximativa e parcial.

    Compreende-se que no correto supor, em se tratando de anlise geogrfica, que cada detalhe esteja condicionado aos demais, como nas engrenagens de um mecanismo, a fim de que no fiquem sem funo. No h um funcionamento perfeito no qual deva ser enquadrada, a qualquer custo, a realidade lacerando-a, contorcendo-a e comprimindo-a para harmoniz-la a uma geometria idealmente projetada, o que acarretaria distoro das prprias linhas desenhadas para enquadrar o real. Partilha-se da concepo de que a geografia deva servir para compreender o movimento da sociedade no mundo presente - condio para transform-lo - e no para aprisionar essa realidade em descries ou interpretaes pretensamente eternas.

    A seguir apresenta-se em primeiro lugar um conjunto de consideraes preliminares e sintticas acerca do desenvolvimento da tese - Tessitura preliminar de respostas no contexto de um espao geogrfico complexo que mais pergunta do que responde. Partiu-se dos objetivos geral e constituintes inicialmente definidos no projeto de pesquisa, e das perguntas que esses autorizam fazer, procura de elos analticos que pudessem estabelecer uma viso de conjunto do problema. Baseando-se na operacionalizao das categorias, conceitos e noes tericos da geografia aqui adotados, fundamentaram-se as anlises de eventos significativos do uso do territrio, o que requereu ter em mos dados empricos apreendidos nas pesquisas bibliogrficas e de campo, alm de anlises tericas de outras disciplinas que complementassem a totalizao analtica em perspectiva dinmica, em um esforo que se pretendeu metadisciplinar.

    Em um segundo momento, apresenta-se a base filosfica geral que orientou o trabalho, ou, em outras palavras, a que este pesquisador procura constituir cotidianamente como referncia prpria em sua relao com o mundo e os lugares que lhe do existncia: Concepo de mundo e prxis transformadoras: um imperativo tico.

    Em um terceiro momento apresenta-se a base terica geral da periodizao que enredar a tese - Periodizao histrico-geogrfica: um fundamento de mtodo. Com base em

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    uma viso dos tempos longos do desenvolvimento da sociedade e sua dinmica espacial, estabeleceu-se dois nveis de cises no espao-tempo. Um primeiro nvel baseia-se em um recorte espao-temporal significativo da formao socioespacial brasileira e referencia-se em um alongamento para trs da anlise do presente, mediante as conexes existentes com o passado. Um segundo nvel de ciso estabelece um perodo mais curto - referncia principal da teoria menor que aqui se est produzindo -, ou seja, o tempo fugaz como perodo histrico-geogrfico propriamente dito da pesquisa. Vai-se perceber que se referenciou fundamentalmente, para o estabelecimento do perodo atual, em eventos normativos de grande significao no contexto republicano em termos de configurao do territrio nacional at o presente. Portanto, trabalhou-se com uma noo de evento que, em sendo sistema de aes, tambm a realizao dos fenmenos tcnicos existentes. tcnica da ao; o prprio territrio sistema de sistemas de objetos e aes - fazendo-se dinmica e permanentemente.

    O corpo da tese traz, ainda, dois outros elementos tambm estruturantes, porque so fundamentos do mtodo construdo. O primeiro a categoria de totalidade, essncia mesma do mtodo dialtico que balizou o esforo desta anlise espacial e que associada filosofia da prxis permite compreender a realidade e contribuir para sua transformao.

    O segundo elemento a categoria formao socioespacial, cuja noo permite a anlise do uso do territrio no tempo alargado no contexto do modo social de produo, permitindo qualificar a anlise atinente contemporaneidade. Considerou-se que muitos dos eventos que tm ganhado eficcia no perodo atual procedem de determinaes tomadas em pocas anteriores e, por isso, precisa-se apreend-los como elementos explicativos a partir de um recorte no tempo menos fugaz.

    (iv) Tessitura preliminar de respostas no contexto de um espao geogrfico complexo que mais pergunta do que responde

    A hiptese geral que balizou as anlises desta tese a de que o uso do territrio atravs de eventos privatizantes do territrio e, nesse sentido, dos recursos hdricos, no contexto da globalizao, obedece a intencionalidades restritivas da soberania territorial.

    As tenses na soberania relacionadas aos sistemas de aes hegemnicos e os fenmenos tcnicos (tcnicas da ao) que orientam a reconfigurao e refuncionalizao do territrio so elementos centrais da presente anlise do uso do territrio; anlise fundada no atual perodo histrico-geogrfico a globalizao , considerando-se o processo de apropriao privada dos recursos hdricos manifestao do processo mais geral de alienao

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    do territrio - no contexto da totalidade dinmica que o espao significa. Dito de outra maneira, o uso do territrio pela apropriao financeira dos recursos hdricos, as tcnicas da ao em processo e a apreenso dos rebatimentos da sucesso dos eventos que do ou buscam dar existncia (nos lugares, na regio) a essa forma de uso sobre a soberania territorial (na formao socioespacial) que foram analisados nas circunstncias da globalizao (desde o espao geogrfico mundial).

    O presente perodo, denominado por Milton Santos de perodo tcnico-cientfico e informacional - a Globalizao - tema obrigatrio para todas as disciplinas. Sua conceituao de grande complexidade, haja vista sua amplitude e o imenso leque de concepes filosficas que orientam a reflexo sobre o assunto.

    Soberania outro tema fundamental, tambm de difcil conceituao devido ao marcante carter poltico e ideolgico que historicamente tem permeado sua abordagem. No so poucos as aes e os agentes hegemnicos que, julgando-se portadores do nico pensamento passvel de crdito, advogam a tese de que a globalizao eliminou o sentido de permanncia do reconhecimento do direito dos povos do planeta autodeterminao e soberania territorial. esse pensamento, essa ideologia, que advoga a tese da desterritorializao dos Estados e, nessa perspectiva, a tese de que esses estados desterritorializados como expresso mesma da globalizao no mais teriam a funo de exerccio do poder soberano posto que o fim dos territrios teria tornado obsoleto o princpio da soberania territorial. Ento, esse ser sem alma, espcie de estado sem territrio, teria a existncia condicionada razo intrnseca da acumulao: produo social e apropriao privada da mais-valia universal. Ora, para alm da ideologia, o territrio usado uma concretude; , ao mesmo tempo o territrio normatizado e, como recurso mercantil, norma. Esse hbrido constitudo pelo territrio normatizado e o territrio como norma deve ser apreendido como uma totalidade dinmica e contraditria, como um espao banal, em processo de uso por todos (instituies, trabalhadores, empresrios) e como todo o espao. Na globalizao, cada vez mais, so as normas definidas pelas empresas que determinam os usos predominantes no territrio. O territrio usado hoje territrio hegemonizado pelos agentes que o dominam no como abrigo, mas como fonte de lucro.

    Do ponto de vista das aes hegemnicas no territrio, h de ressaltar-se o papel determinante exercido pelo que aqui se denominou de trindade financeira da globalizao constituda pelo Banco Mundial (BIRD), Fundo Monetrio Internacional (FMI) e Organizao Mundial do Comrcio (OMC) quanto ao processo de planejamento e execuo das estratgias normatizadoras dos territrios. Por isso o territrio usado, normatizado e norma, reproduz-se

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    reproduzindo a racionalidade hegemnica. Contudo, por ser um espao banal, ao expressar-se como racionalidade hegemnica, torna-se tambm expresso de contrarracionalidades, de crises e resistncias desde os lugares. A condio de agncias das Naes Unidas e a conseqente facilidade que essa organizao viabiliza de relacionamento com os governos dos Estados territoriais que lhe compem garante o exerccio da tirania financeira, seja pelo convencimento, seja pela coero, num processo frentico e eficaz de legitimao, mediante a aprovao de dispositivos normativos legais constitucionais ou infraconstitucionais, federais, estaduais ou municipais, e de normas no formais, inclusive as determinadas pelos sistemas de objetos do territrio, conforme sua convenincia

    Compreender a essncia dessa dinmica, dos processos imanentes estrutura, forma e funo e da cotidianidade do espao em termos globais e seu rebatimento no territrio atravs de eventos seletivos dos lugares, o poder de determinao dos aconteceres hierrquicos no processo de totalizao dinmica do espao geogrfico; mas tambm o poder de determinao dos aconteceres populares, horizontais, que fazem do lugar um espao do acontecer solidrio de potencialidade contrarracional com relao lgica estruturadora das redes hegemnicas no territrio, das verticalidades, exige um esforo considervel de elaborao terica. Nesse esforo considerou-se a centralidade de categorias de anlise espacial, tais como o Territrio Usado e Formao socioespacial brasileiros; estas, entre outras, facilitam a compreenso da relao do sistema de aes normativas com o processo de aumento das densidades tcnicas, da fluidez, logo, da rapidez e da luminosidade no territrio, de um lado, e, de outro, a imanncia da rarefao, da viscosidade, da lentido e da opacidade, somente apreensveis atravs da anlise da sucesso ininterrupta de eventos que quererem homogeneizar desequalizam, fragmentam, o territrio, devido seletividade que fazem dos lugares.

    Um exame do uso do territrio brasileiro hoje, alerta Maria Adlia de Souza (2003, p. 18) revelador das desigualdades que se expressam na partio do mundo e do territrio em uso entre os espaos que mandam e os que obedecem gerados pelas permanentes frices entre a produo da abundncia de um lado e, de outro, da escassez como processos dialeticamente imbricados. O Brasil hoje, sem lugar para dvidas, um dos territrios cujos usos mais expressam a perversidade da submisso aos mandos e desmandos, aos usos e abusos de agentes hegemnicos de diversos matizes.

    A estratgia de refuncionalizar o territrio para atender ao objetivo do uso privado mercantil dos recursos hdricos, o processo de normalizao proposta e posta em prtica pelas agncias multilaterais, destacadamente o Banco Mundial, com suporte na ao subalterna dos

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    estados territoriais, tem no exemplo brasileiro, um recorte revelador importante da dinmica socioespacial mundial. Da a importncia da anlise do uso do territrio brasileiro, da apropriao privada dos seus recursos hdricos no contexto atual, das normas que lhe pretendem legitimar; de como se d o uso do territrio no subespao amaznico, enfim, como esses elementos, entre outros, se articulam, so mediados e do face formao socioespacial nas circunstncias da globalizao.

    Esses procedimentos, sem dvida, foram de grande valia para revelar a dialtica entre o lugar (ou lugares da regio, melhor dizendo, do subespao amaznico) e o mundo no perodo presente, enriquecendo terico-metodologicamente a disciplina geogrfica e contribuindo com o pensar de um projeto popular e soberano para o Brasil. Afirmar as resistncias do presente como potencializadoras de um futuro igualitrio, o qual j se apresenta como possibilidade, foi um dos desafios deste estudo.

    Certamente as anlises contribuem para o enriquecimento terico-metodolgico da geografia que, como uma filosofia das tcnicas de carter transdisciplinar, um instrumento cientfico fundamental para ajudar a decifrar a realidade no contexto da acelerao contempornea. Acredita-se que um imperativo tico realizar uma prxis cientfica voltada crtica terica das desigualdades scioespaciais e ao anncio das possibilidades de um futuro justo e feliz que a cincia pode ajudar a vislumbrar.

    Este trabalho acadmico serve para evocar uma reflexo sobre formas alternativas de uso do territrio brasileiro e, por que no dizer do espao geogrfico como um todo, atentando ao alerta/ensinamento de Souza (1994), para quem as construes de uma sociedade e de um territrio so indissociveis. Uma cuidadosa relao entre espao e poder pode ser capaz de evitar, tendo como pressuposto a necessidade de um projeto de Brasil, com base em um planejamento de todo o territrio brasileiro, os riscos de aprofundar o processo doloroso de fragmentao diante da complexidade da vida das naes contemporneas.

    Souza (1994), lembrando Milton Santos, recupera uma idia que se incorporou aqui como referncia para o presente trabalho acadmico, segundo a qual um estado-nao formado por trs elementos essenciais: territrio, povo e soberania significa dizer, um estado territorial entendido como simbiose desses elementos. No contexto da formao socioespacial brasileira, vale observar, seu povo forjou ao longo de cinco sculos um forte sentido identitrio de brasilidade a despeito da rica diversidade tnica e cultural que o caracteriza; constituiu uma tradio de abertura ao mundo marcada por forte valorao do internacionalismo solidrio, como condio mesma de afirmao da soberania territorial; alm do que o territrio historicamente constitudo, pela prpria vastido que caracteriza sua

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    existncia poltica, impe-se como moeda de grande valor no contexto do espao global e permite afirmar a possibilidade de um projeto de futuro soberano e solidrio, desde as resistncias e as alternativas que os lugares produzem, permanentemente, atravs do uso do territrio como recurso social, como abrigo.

    (v) Concepo de mundo e prxis transformadoras: um imperativo tico

    O desafio de anlise exposto, em sntese, acima assentou-se em uma postura filosfica do sujeito pesquisador em relao ao mundo, em uma concepo sobre este que no neutra e, ao contrrio, sustenta-se em uma utopia. A anlise do uso do territrio ao longo da formao socioespacial no que dela pode-se apreender no perodo histrico contemporneo alongado definido e na dinmica fugaz do presente o realizado e o realizando-se -, atravs da apropriao privada dos recursos hdricos, segundo um olhar mais atento ao subespao amaznico no contexto da relao entre globalizao e soberania territorial, considerando-se a percepo de que os eventos hegemnicos alienam e constrangem o territrio, ainda que menos do que sua intencionalidade pretende, deve, necessariamente, redundar em uma viso para alm do que globalitarismo pretende afirmar como nica ordem possvel.

    Concebe-se que conhecer o mundo, orientando-se pelo imperativo tico da transformao, imprescindvel. A contribuio acadmica, em se tratando de trabalho individual, como uma cuia de gua comparada ao caudal do grande rio que a encheu, mas importante para compor a corrente que ser capaz de mudar, estruturalmente, este mundo to prenhe de ameaas de toda ordem, mas, sobretudo da guerra (SOUZA, 2003, p. 1). por concordar que a Geografia tem muito a dizer sobre a felicidade (ibidem) que se pretende dar uma contribuio geografia renovada, mesmo previamente consciente de que ser pequena. Milton Santos proclama que graas acelerao contempornea e ao movimento ruidoso, o tropel, dos acontecimentos, tornou-se herico o exerccio de repensar o mundo, mormente se o desafio for a construo de um mundo novo que urgente. Nas circunstncias do atual perodo histrico tornou-se proibitivo repousar e, ao mesmo tempo, impe-se um estado de alerta que exigem nimo, disposio e fora renovadora da conscincia (SANTOS, 2004 [1996]).

    H os que se inserem no processo acadmico com a assumida postura de produo de conhecimento para manter o mundo como ele est: socioespacialmente desigual e grvido de perversidades. H de se respeitar esse direito. Isso, contudo, explica em grande medida, a metaforizao que o discurso acadmico sofre de maneira a ocultar as reais concepes de

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    mundo que o balizam e os propsitos conservadores de seu contedo. O discurso dos agentes hegemnicos, mesmo na academia, tem sido prdigo na formalizao de compromissos com o desenvolvimento sustentvel, os direitos humanos, a paz universal, a segurana alimentar, superao da escassez da gua etc. No tem sido difcil aos pases, lugares e classes dominantes sustentar a crena de que essa realidade perversa, essa turbamulta seja a mais perfeita ordem e nica possvel humanidade como direito. O educador Meirevaldo Paiva faz duas importantes observaes relacionadas ao conformismo imanente e resultante dessa concepo e prtica presente no mundo acadmico:

    Para desempenhar, ento, a funo de intelectual, pressionado pela desvalorizao neoliberal dos valores humanos, o professor precisa contribuir para a formao de jovens informados, educados, esclarecidos, livres para o dilogo, sem o que o Pas no se libertar dos grilhes da escravido e da alienao, da mediocridade deliberada pela imposio de um sistema de ensino desqualificado e por isso mesmo excludente. Como no h educao sem liberdades polticas, sociais, econmicas e culturais, o professor tende a ser apenas um tcnico, um especialista, um lavador de crebros ao engrossar moralmente o rebanho de conformados serviais anatolianos dos poderosos (PAIVA, 2004, p. 27).

    Contudo, h diferenas de oportunidades conforme a formao socioespacial. bem verdade que a crise estrutural por que passa o modo de produo capitalista tem feito eclodir com mais fora manifestaes concretas de desigualdades socioespaciais nos pases cntricos, em um claro processo de periferizao educacional desses pases. Alis, vale dizer que no so novos os sinais de que as desigualdades socioespaciais habitam esses pases. A prpria lgica da acumulao capitalista base desse processo histrico de desequalizao. J em 1951 e, posteriormente, em 1971 Josu de Castro (1955; 2003) publicou anlises contundentes sobre a fome nos Estados Unidos. Porm, correto afirmar que:

    Para os estudantes dos pases ricos, o sistema reservou turismo cultural, honrarias, dinheiro, empregos, vida confortvel. Para os de pases pobres, a dura lio do autoritarismo ou da democracia neoliberal prises, torturas, mortes ou compensaes para mudar a cabea. Em ambos os casos, os governantes usaram (e usam) o conformismo como instrumento de resignao (PAIVA, 2004, p. 266).

    Permanece vivo, a despeito da fora que o pensamento nico ainda exerce, o pensamento compromissado em contribuir para que a felicidade subjetiva de que nos fala Souza (2003, p. 09), que habita as paisagens tristes do planeta no apodream com o

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    movimento da histria e, ao contrrio, potencializem a construo da utopia de um mundo feliz.

    Pretende, com humildade e clareza das prprias limitaes, somar-se corrente geogrfica que v no lugar o anteato da construo, pelos homens pobres e lentos do planeta, de contra-racionalidades que se possam constituir em uma racionalidade alternativa que se baseia na lgica do lucro. Os lugares - espaos do acontecer solidrio, das diversidades, das relaes horizontais -, por dentro do processo de produo da ordem desigual e combinada presente, potencializam a produo do futuro justo e feliz.

    O trabalho cientfico de uma geografia que tem o espao como categoria de anlise social d substncia crtica a essa disciplina; insere-a como instncia social inexoravelmente orientada pelo objetivo de contribuir para a maior compreenso das mutaes materiais e filosficas que esto em processo no perodo histrico-geogrfico atual e, por que no dizer, para apress-las de modo a ajudar na gestao do perodo popular da histria da humanidade que o presente j sinaliza como possibilidade? (Santos, 2000).

    A considerar-se que, como ensina Milton Santos (2004 [1996]), se outros especialistas at podem escolher no infinito conjunto de aes e objetos os que sero analisados em seus estudos setoriais, o gegrafo obrigado a trabalhar com todos os objetos e todas as aes, a dialtica instrumental fundamental para tornar possveis as totalizaes analticas necessrias apreenso crtica da totalidade-mundo e do espao geogrfico, concebido como sistema indissocivel do sistema de todos os objetos e do sistema de todas as aes.

    (vi) Periodizao histrico-geogrfica: um fundamento de mtodo

    Tudo tcnica: o esforo violento, mas tambm o esforo paciente e montono que os homens exercem sobre o mundo exterior; estas mutaes vivas aque chamamos um tanto precipitadamente revolues (da plvora, da navegao de longo curso, da imprensa, dos moinhos de gua e de vento, da primeira mquina-ferramenta), mas tambm o lento melhoramento dos processos e das ferramentas e esses gestos sem conta, se bem que sem importncia inovadora: o marinheiro esticando o cordame, o mineiro cavando uma galeria, o campons atrs da sua charrua, o ferreiro bigorna[...]. Todos estes gestos so fruto de um saber acumulado. Dizia Marcel Mauss: Designo por tcnica uma ao tradicional eficaz; uma ao que implique o trabalho do homem sobre o homem, uma perptua aprendizagem que comeou no princpio dos tempos. A tcnica tem afinal a prpria dimenso da histria e forosamente a sua lentido, as suas ambiguidades; explica-se por ela e ela explica-a por sua vez sem a correlao de, num sentido ou noutro, plena satisfao. (Fernand Braudel As Estruturas do Cotidiano, grifos nossos)

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    Inspirado na concepo de tcnica como ao pelo trabalho, como histria que a determina e explica e por ela determinada e explicada, o estudo presente, ao pretender pensar o Brasil no contexto da globalizao o uso do territrio atravs da apropriao privada dos recursos hdricos -, segue a compreenso de uma geografia expressiva de uma dinmica de longa durao em que o espao vem se impondo histria. Na contemporaneidade, esse processo tornou-se uma simbiose; no sendo possvel pensar o espao como algo apartado do tempo sem incorrer em anlises reducionistas, pseudo-concretas da realidade. esse o sentido paradigmtico da compreenso do mundo hoje: a anlise do espao como um fato social, logo, no como um espao justaposto ao tempo ou vice-versa.

    Espao par dialtico do tempo - alerta Maria Adlia -, uma relao na qual o cruzamento dinmico tempo-espao, por ser um permanente processo de acelerao, obriga a considerar que os movimentos conjunturais sempre modificam as estruturas espaciais; como, tambm, obriga a considerar as escalas espaciais, suas manifestaes formais, seus desnivelamentos, sua evoluo. Enfim, considerar o presente perodo como frao do longo processo histrico-geogrfico concretizado na unidade contraditria entre globalizao e fragmentao territorial, como relao de solidariedade em escala mundial e de causa e efeito entre uma e a outra, apreensveis desde uma perspectiva analtica dialtica e baseada em uma anlise tridimensional proposta por Milton Santos que inclui: 1) a unicidade da tcnica, que possibilita a empiricizao do planeta, haja vista o funcionamento sistmico de um conjunto tcnico homogneo baseado e comandado por relaes mundializadas; 2) a unicidade do tempo ou convergncia dos momentos, porque j possvel o conhecimento emprico da simultaneidade dos eventos; o que permite o planejamento das aes articuladas para momentos determinados e lugares selecionados mediante as intencionalidades dos agentes e, 3) a unicidade do motor, porque, com base nas novas formas de competio tudo competitividade , a mais-valia, na tentativa de superar-se ininterruptamente, tornou-se o motor unitrio mundial (SOUZA, 1994; SANTOS, [1996] 2004).

    Esta perspectiva definiu um caminho, um mtodo, que permitiu pensar o espao historicamente - porque o espao geogrfico social -, como processo de produo de um sub-sistema desigualmente articulado por aes baseadas na seletividade dos lugares e, por ser historicamente determinado, apreensvel mediante uma periodizao que ao mesmo tempo histrica e geogrfica e instrumento de mtodo fundamental para, como afirma Silveira (1999, p. 24) dar valor s coisas. Para essa autora a periodizao, para ser concretizada dever ser

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    feita [...] a partir de uma varivel ou um conjunto delas. Advoga ainda a idia de que a escolha deva ser delineda pelos sistemas tcnicos, acebidos como sistema dinmico das tcnicas. Esses sistemas tcnicos possibilitam, segundo a autora, que os sistemas de objetos, as formas de ao e de organizao e as normas, compreendidos como elementos constitutivos (e constituintes) do espao, sejam entendidos a um s tempo .

    A periodizao a prpria possibilidade de um concreto pensado, sntese da totalidade na geografia, que pode ser analisada segundo dois eixos: o eixo das sucesses, entendido como aquele onde as coisas e os aconteceres obedecem a uma sequncia, o tempo como abstrao. O segundo o eixo das coexistncias que, por sua vez, expressa as simultaneidades dos aconteceres; em uma rea os diversos agentes no utilizam o tempo da mesma maneira; diferentes aes e fenmenos realizam-se concomitantemente. o tempo concreto, vivido por todos, cotidianamente. Da poder-se falar de simultaneidade das temporalidades diversas, o verdadeiro domnio da geografia. Ento, um perodo, uma expresso da totalidade, embora seja, como recurso de mtodo, um recorte no tempo. atravs de um perodo que se pode analisar qualitativamente a relao entre o universal (o mundo, o planeta) e o particular, (o lugar, o local) porque, como totalidade em movimento, ela realiza-se atravs de totalizaes dinmicas segundo as flechas do tempo1. (SOUZA, 2005).

    1 Neste ponto fundamental recuperar a matriz conceitual de flecha do tempo, tendo em vista sua aplicao

    geogrfica, mormente na noo de periodizao aqui concebida. Albert Einstein (apud FLEMING, 2009; apud HICKS, 1995) em Os Fundamentos da Teoria Geral da Relatividade de 1916 desenvolveu a noo de que no universo espao e tempo so inseparveis. Logo, dever-se falar em espao-tempo ou continuum quadridimensional. O tempo relativo ou elstico, portanto, o espao tambm o . O continuum ou o espao-tempo expande-se ou contrai-se sem limites, mas em um cosmo finito. A forma do espao-tempo resultado da ao de cada campo do universo, que a distorce em complexas curvas quadridimensionais. Em 1908 Hermann Minkowski afirmara que o espao e o tempo em si mesmos s subsistiriam como uma realidade independente se unidos como espao-tempo. A idia, contudo, ser mais bem desenvolvida por Einstein ao aplicar a teria da relatividade descrio do Universo (Cosmologia): possvel agir sobre o espao-tempo, e, portanto, sobre o tempo; como tambm decompor o continuum em espao e tempo separados, mas isso em funo do observador, portanto, subjetivamente. Nessa perspectiva, o espao-tempo deixa de ter [...] papel passivo de palco dos acontecimentos para tornar-se, ele mesmo, um sistema fsico, e atinge-se, finalmente, a possibilidade de estudar o sistema fsico por excelncia: o Universo como um todo (FLEMING, ibidem). Fleming toma para si a mxima de Stephen William Hawking, segundo a qual A histria do Universo a histria do tempo (ibidem). Arthur Eddington, contemporneo estudioso de Einstein quem introduziu o conceito de flecha do tempo baseado na segunda lei da termodinmica segundo a qual em qualquer sistema isolado a entropia desordem aumenta com o tempo. Os acontecimentos delocam-se constante e irreversivelmente para o futuro, jamais voltando ao passado; o movimento constante do tempo distingue o passado do futuro e d direo ao tempo. [...] medida que a flecha avana, a forma ordenada se deteriora, convertendo-se em disforme desordem., porque tempo vai em apenas uma direo, mais rpido ou mais devagar de acordo com o observador, mas sempre para frente, [...] em sua fuga inelutvel para o futuro. (HICKS, idem). Fleming (ibidem) acha surpreendente que o conceito de flecha do tempo seja para o iderio da fsica terica um dos grandes problemas dos ltimos cem anos. No s para a fsica, mas tambm para o pensamento geogrfico, para a filosofia das tcnicas como concebida por Milton Santos.

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    Essa noo de que a flecha do tempo e se realiza como desordem traz um contedo explicativo das diferenciaes territoriais desde os lugares. Alguns lugares no so atingidos to diretamente pelas flechas do tempo outros o so, sendo que alguns com grande intensidade e outros nem tanto. Isso pode ser explicado pela seletividade imanente a todos os eventos, mas tambm resistncia dos lugares que, podem constranger, inviabilizando ou tornando incompleta a factibilidade dos eventos do modo como foram planejados pelos agentes que lhes comandam. Nesse sentido, os lugares so expressivos do maior ou menor grau de deteriorao, de fragmentao do territrio produzidas pelo processo de totalizao dinmica que as flechas do tempo realizam.

    Do ponto de vista das conjunturas longas os perodos histrico-geogrficos podem ser definidos pelo estgio da tcnica alcanado pela sociedade. Jos Ortega y Gasset (1998) d um colaborao primorosa para a compreenso desses. No seria correto defini-los com base nos inventos humanos mais importantes, mas descartar esse caminho que parece bvio porque, considerada a evoluo histrica integral, todos os inventos perdem importncia e alguns s vo ganhar importncia em lugar e data distintos de sua inveno. Sobre isso, Fernand Braudel (1997, p. 305) ensina que a

    [...] sociedade uma histria lenta, surda, complicada; uma memria que repete obstinadamente as solues conhecidas, adquiridas, que afasta a dificuldade e o perigo de sonhar com outra. Uma inveno que bata porta tem de esperar anos ou mesmo sculos para ser introduzida na vida real. H a inventio, muito mais tarde a aplicao (a usurpatio), quando a sociedade atinge o desejado grau de receptividade.

    Nessa perspectiva, dever-se considerar a funo em geral que a tcnica