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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL Joseph de Maistre: intérprete da Revolução Francesa e da Modernidade (versão corrigida) José Miguel Nanni Soares São Paulo 2014

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    Joseph de Maistre: intrprete da Revoluo

    Francesa e da Modernidade

    (verso corrigida)

    Jos Miguel Nanni Soares

    So Paulo

    2014

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    Joseph de Maistre: intrprete da Revoluo Francesa e da

    Modernidade

    (verso corrigida)

    Jos Miguel Nanni Soares

    () eo zotPale-/~~~

    So Paulo

    2014

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    Joseph de Maistre: intrprete da Revoluo Francesa e da

    Modernidade

    (verso corrigida)

    Jos Miguel Nanni Soares

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria Social do

    Departamento de Histria da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo

    de Doutor em Histria Social

    Orientador: Prof. Dr. Modesto Florenzano

    So Paulo

    2014

  • 3

    maestrina Genoria, pelo incansvel zelo

    pedaggico e pelo amor providencial dispensados

    ao autor destas linhas...

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Lilian, pelo incentivo, confiana, delicadeza e amor ao longo destes anos.

    Ao meu orientador, professor Modesto Florenzano, pela generosidade,

    encorajamento, pacincia e imprescindvel ajuda no apenas na redao desta tese, mas

    na formao humanstica de seu autor ao longo de quase uma dcada. Muito do que aqui

    se encontra, exceto os possveis erros, deve-se s suas observaes eruditas e sensatas.

    Aos professores Richard Allen Lebrun, Michael Kohlhauer, Carolina Armenteros

    e lcio Verosa Filho pelo encorajamento, disponibilizao de materiais para a pesquisa

    e sugestes em diferentes momentos desta tese.

    Ao Departamento de Histria da USP, professores e funcionrios, pelo auxlio e

    presteza ao longo do trabalho.

    FAPESP, cujo auxlio financeiro, por intermdio de uma bolsa de doutorado e

    dos recursos da reserva tcnica, foi fundamental para que buscssemos atingir o nvel de

    exigncia que se espera de uma tese.

  • 5

    Este trabalho foi realizado com o apoio

    financeiro da FAPESP (Fundao de Amparo

    Pesquisa do Estado de So Paulo)

  • 6

    RESUMO

    O objetivo de nossa pesquisa foi de explorar a interpretao maistreana da

    Revoluo Francesa, a qual, ao contrrio do que postula o senso-comum de boa parte da

    historiografia, no se limitou s Consideraes sobre a Frana (1797) e sua temtica

    providencialista, pois se manifestou em muitos outros escritos distribudos entre os 14

    volumes de suas Obras Completas e seus inmeros ''Registros de Leitura''. Maistre teve

    o mrito de integrar sua leitura da Revoluo nos quadros da modernizao do

    Ocidente, cujos pressupostos, expressos pela Reforma Protestante e pela Ilustrao,

    permitiram-lhe explicar no apenas a Revoluo em Frana, mas tambm profetizar o

    advento de uma era das revolues.

    Fundamentalmente, procuramos demonstrar como a reao de Joseph de Maistre

    (1753-1821) ao projeto Ilustrado - e, por extenso, revolucionrio - para a humanidade

    no apenas coincide, surpreendentemente, com o modo como se interpreta

    contemporaneamente a gnese do mundo moderno, como, apesar de seu carter e

    intenes profundamente conservadores, encontra-se amparada em premissas

    indelevelmente humanistas e racionalistas.

    Palavras-chave: Reforma, Ilustrao, Revoluo Francesa, Conservadorismo, Humanismo Devoto.

    E-mail para contato: [email protected]

  • 7

    ABSTRACT

    This thesis aims to study the Maistrean interpretation of the French Revolution,

    which, contrary to the common view postulated by great part of the historiography, was

    not confined to the famous providential treatment exposed in the Considrations sur la

    France (1797), but manifested instead in many other writings distributed along the 14

    volumes of his Collected Works, not to mention the thousands pages of his unpublished

    notebooks. We would like to show that Maistre had the merit of considering the French

    Revolution in the light of the long-term historical process of modernization of the West,

    whose guidelines, expressed by the Protestant Reformation and the Enlightenment,

    allowed him to explain not only the Revolution in France, but also to predict the advent

    of an 'age of revolutions '.

    Above all, we seek to demonstrate how Joseph de Maistre's (1753-1821) critique

    of the Enlightenment - and, by extension, revolutionary - project to humanity is,

    surprisingly, not only coincident with the way recent scholars interpret the genesis of

    the modern world, but, despite its deeply conservative character and intentions, is also

    supported by indelibly humanist and rationalist assumptions.

    Keywords: Reformation, Enlightenment, French Revolution, Conservatism, Devout Humanism

    Contact: [email protected]

  • 8

    NDICE

    INTRODUO ........................................................................................................ 10

    Parte I - MAISTRE E AS CAUSAS TEOLGICO-POLTICAS DA

    REVOLUO FRANCESA

    Captulo 1 - Do sans-culottismo da religio ao sans-culottismo poltico:

    as origens das ''Reflexes sobre o Protestantismo'' de Maistre ........................................... 27

    Captulo 2 - A Revoluo Francesa, chave para a compreenso do

    Protestantismo: As Reflexes sobre o Protestantismo de Maistre .................................57

    Captulo 3 - 'De l'glise Gallicane': da 'rvolution mnage' ao

    'refinamento do esprito revolucionrio'. Razes do anticlericalismo

    liberal-revolucionrio ......................................................................................................... 97

    Parte II - De BACON A LOCKE: UM HUMANISTA DEVOTO CRTICO

    DA MODERNIDADE

    Captulo 4 - O ''Examen de la philosophie de Bacon'' ou das razes

    humanistas do ethos contrarrevolucionrio maistreano ................................................... 116

    4.1. Por que Bacon? ......................................................................................................... 116

    4. 2. Humanismo neoplatnico e ''philosophia perennis'', de Ficino a Maistre ............... 128

    4. 3. Um tnel humanista neoplatnico no alm-Mancha: Maistre e a Escola de

    Cambridge ............................................................................................................................... 134

    4. 4. Examinando ou ''boxeando'' com Bacon .................................................................. 147

    Captulo 5 -''Cartas sobre a Educao Pblica'' e ''Quatro Captulos

    sobre a Rssia'': uma teoria humanista devota sobre o progresso e o

    desenvolvimento das manners russas ................................................................................ 162

    Captulo 6 -''Unlocking the Human Mind'': crtica epistemologia de

    Locke ou a defesa humanista devota da dignidade humana .............................................. 181

  • 9

    Parte III - UM SABOIANO ULTRAMONTANO

    Captulo 7 - Sob o signo da dualidade: Joseph de Maistre e a Casa da

    Saboia na Era da Revoluo Democrtica ..................................................................... 209

    Captulo 8 -''Du Pape'' ou o manifesto de um ultramontano ............................................ 233

    8.1. Cristianismo ou Europa: consideraes preliminares sobre a religio e a liberdade

    poltica entre o Termidor e a Restaurao ............................................................................... 233

    8. 2. Arquitetura de ''Du Pape'', ou Do Legislador temporal do

    Providencialismo maistreano ............................................................................................ 266

    Captulo 9 -'' sua imagem e semelhana'': humanismo e providencialismo maistreanos

    em face da Ilustrao e da Revoluo ...................................................................................... 300

    9. 1. Humano, demasiado divino: viso maistreana sobre a dignidade humana .............. 300

    9. 2. Humano, demasiado humano: a saciedade do mal e o Terror .................................. 335

    C o n c l u s o .......................................................................................................... 376

    B I B L I O G R A F I A..................................................................................................... 389

  • 10

    INTRODUO

    Apesar de nuanado pelo avano das pesquisas1, o juzo tradicional a respeito de

    Joseph de Maistre (1753-1821) costuma no diferir muito daquele esboado por

    Ballanche no incio do sculo XIX, que o descreve como um homem das doutrinas

    antigas, o profeta do passado, defensor brutal de um mundo que desaparecia e que se

    queria ressuscitar em vo2; ou daquele avanado por mile Faguet no fechamento do

    mesmo sculo, para quem o contrarrevolucionrio saboiano no passava de ''um

    ferrenho absolutista, um furioso teocrata, um intransigente legitimista, apstolo de uma

    trindade monstruosa constituda pelo papa, pelo rei e pelo carrasco, sempre e em todas

    as partes o campeo do dogmatismo mais feroz, estreito e inflexvel, uma figura

    sombria sada da Idade Mdia, parte doutor erudito, parte inquisidor e carrasco.3

    Com efeito, a reao de Maistre filosofia das Luzes e Revoluo trouxe tona

    uma filosofia da autoridade que s pode escandalizar nossas suscetibilidades

    modernas. Apesar disso e do fato de nossa cultura acadmica no reconhec-lo como

    um grande autor clssico, Maistre freqentemente citado nas snteses e antologias

    internacionais de histria das idias, filosofia poltica4 e literatura.

    5 Afinal, no

    1 Cf: Owen Bradley, A Modern Maistre: the Social and Political Thought of J. de Maistre

    (London: University of Nebraska Press, 1999); Jean-Yves Pranchre, Lautorit contre les Lumires: la philosophie de Joseph de Maistre (Genve: DROZ, 2004); Cara Camcastle, The More Moderate side of

    Joseph de Maistre: views on Political Liberty and Political Economy (Montreal: McGill-Queens University Press, 2005); Philippe Barthelet (org.). Joseph de Maistre (Lausanne: LAge dHomme, 2005); Carolina Armenteros, The French Idea of History: Joseph de Maistre and his heirs (London: Cornell

    University Press, 2011). 2 P.-S. Ballanche, Essai de palingnsie sociale, in: uvres (Paris-Genve, 1830), vol. III, p. 259.

    3 mile Faguet, Politiques et Moralistes du dix-neuvime sicle (Paris: Socit Francaise

    d'Imprimerie & de Librairie, 1899), 1a srie, p. 1.

    4 Por exemplo, Sheldon S. Wolin, Politics and Vision. Continuity and Innovation in Western

    Political Thought (Princeton, Princeton University Press, 2004), 1a edio de 1960, p.322-3; Alice Grard,

    A Revoluo Francesa. Mitos e interpretaes (1970). Traduo de Srgio Joaquim de Almeida (So

    Paulo: Ed. Perspectiva, 1999); Denis Huisman, (org.); Dictionnaire des philosophes (Paris: P.U.F., 1984),

    vol. II, pp. 1713-1715; F. Furet e Mona Ozouf (org.), Dictionnaire critique de la Rvolution franaise

    (Paris: Flammarion, 1988); Pierre Manent, Joseph de Maistre, in Dictionnaire des oeuvres politiques (org.). Francois Chatelet, Olivier Duhamel, et Evelyne Pisier (Paris: PUF, 1986); Michel Vovelle (org.)

    Frana Revolucionria (1789-1799). Trad. de Denise Bottman (So Paulo: Brasiliense, 1989); Bruno

    Bongiovanni e Luciano Guerci (org.), L'albero della Rivoluzione. Le interpretazioni della Rivoluzione

    francese (Torino: Einaudi, 1989); M. Prlot et G. Lescuyer, Histoire des ides politiques (Paris: Dalloz,

    1992), pp. 632-638. 5Ferdinand Brunetire enalteceu as inmeras qualidades da escritura do telogo laico Joseph de

    Maistre, cuja personalidade foi moldada pelas leituras de Plato, Bossuet, Vico, e pelo perturbador espetculo dos acontecimentos da Revoluo e do Imprio. Cf. F. Brunetire, Histoire de la littrature franaise classique 1515-1830 (Paris: C. Delagrave, 1914), Tomo III, p. 107. Outro clebre historiador da

    literatura francesa, Gustave Lanson, ao estudar a reao maistreana filosofia das Luzes, concluiu que o

    saboiano, com seu esprito abstrato e razoado, nada mais era seno um philosophe inimigo dos

  • 11

    encontramos ecos de sua denncia vontade planificadora e construtivista da sociedade

    moderna tanto na reflexo poltica de Carl Schmitt6 como na doutrina neoliberal

    contempornea?7 No outro extremo da filosofia poltica, importantes autores marxistas

    como Adorno, Horkheimer e Marcuse no chamaram a ateno de seus leitores para a

    extrema lucidez se bem que descartando suas concluses autoritrias da crtica

    maistreana ao projeto da Ilustrao?8 Por fim, no mbito da literatura, no se logrou

    demonstrar o quanto as obras de Maistre contriburam para o triunfo esttico da reao

    romntica francesa do sculo XIX reao democracia, ao individualismo burgus e

    sociedade industrial, repblica, igualdade social , de Baudelaire a Balzac, Barbey

    philosophes, o que permite explicar tanto a desenvoltura estilstica quanto a radicalidade ideolgica de seus escritos. In: G. Lanson, Histoire de la littrature franaise (Paris: Hachette, s/d), 21 edio, s/d, p.

    910. 6 Schmitt utilizou o pensamento dos contrarrevolucionrios, e de Maistre em especial, em seu

    combate contra o racionalismo das Luzes, contra a abstrao das construes especulativas desenraizadas

    na histria. Em sua obra Teologia poltica (1922), mobilizou o pensamento de Maistre para rejeitar o

    conceito de soberania popular, que a seu ver s recrudescia a luta de classes e expunha a sociedade alem

    a um constante estado de exceo e demonstrar que o poder devia ser exercido por uma esfera nica, em nome da necessidade decisionista, exclusivamente capaz de dar cabo nas crises engendradas pelas deliberaes parlamentares e pela luta de classes. Em Noo de Poltica (1927), grosso modo, retoma o

    argumento dos teocratas sobretudo de Maistre -, que consideravam o homem corrompido em sua essncia pelo pecado original, para desferir uma crtica aos ideais liberais os quais, amparados numa antropologia otimista, expressavam a negao radical do Estado - e Repblica de Weimar, por considerar impossvel o estabelecimento de uma sociedade sem conflito entre o amigo e o inimigo (tudo

    que representasse ameaa aos interesses nacionais, naquele contexto, o comunismo).

    No entanto, preciso lembrar que o moralismo providencialista, cerne do pensamento maistreano,

    encontra-se absolutamente ausente do pensamento do jurista alemo, para quem a poltica (e sua esfera

    decisionista) deveria ser desvencilhada do jugo da moral (Teologia poltica). Ademais, Schmitt

    diferenciava-se de Maistre pelo antissemitismo e pela oposio maonaria. Sobre a apropriao de

    Maistre por Schmitt e a diferena entre ambos, consulte-se J. Zaganiaris, Spectres Contre

    Rvolutionnaires: interprtations et usages de la pense de Joseph de Maistre XIXe- XX

    e sicles (Paris:

    LHarmattan, 2005), cap. VII. 7 A convergncia entre o pensamento contrarrevolucionrio e as teses neoliberais foi estudada por

    S. Rials, La droite ou lhorreur de la volont in Rvolution et Contre-rvolution au XIXe sicle. Paris, DUC/Albratros, 1987, p.53-56, G. Gegembre, La Contre-rvolution ou lhistoire dsesprante (Paris: Imago, 1989), p. 180 e Albert O. Hirschmann, A Retrica da intransigncia: perversidade, futilidade,

    ameaa (So Paulo: Companhia das Letras, 1992), p. 23. 8Ambos concluram que os ideais racionais de emancipao, ao se realizarem, produziram sua

    prpria negao, revertendo-se, na sociedade burguesa-industrial, numa mitologia cientfica reprodutora

    da reificao e alienao humanas, de modo que o terror e a civilizao so inseparveis. Meramente formal, a razo crtica da Ilustrao revela-se puramente instrumental, reduzindo-se a um critrio de clculo e utilidade reprodutor de tabus. Adorno e Horkheimer reconheceram que (para alm do tom autoritrio) nas diatribes epistemolgicas que o saboiano dirigira a Bacon e a Locke (Examen de la

    philosophie de Bacon, 1816 e Soires de Saint-Ptersbourg, 1821), j se prefigurava uma pertinente e

    inovadora crtica a essa utopia imanentista de domnio racional sobre o mundo que, nas palavras de

    Maistre, traziam no seu bojo a estupidificao pela cincia (Oeuvres compltes de Joseph de Maistre, Examen... Lyon, Vitte et Perussel, 1886 VI:41. De agora em diante, O.C.). Leia-se M. Horkheimer e T. Adorno, La dialectique de la Raison (1944). Trad. francesa de E. Kaufholz (Paris, Gallimard, 1983),

    especialmente p. 24-95. Vide tambm o penetrante ensaio de Michael Kohlhauer: ''A Dialectical Reading

    of Joseph de Maistre by Herbert Marcuse'', in: C. Armenteros e R. Lebrun (orgs.), Joseph de Maistre and

    his European Readers (Boston: Brill, 2011), p. 171-186.

  • 12

    dAurevilly e Renan?9, isto sem falar das marcas que deixaram na literatura russa,

    sobretudo nas monumentais obras de Tolsti e Dostoievski?10

    Isto posto, quando se trata de estabelecer o balano da historiografia da Revoluo

    francesa sobre Maistre, deparamo-nos com duas realidades contraditrias.

    Por um lado, identificamos a tentativa de reduzir a importncia de sua

    interpretao da Revoluo pelo fato de Maistre subsumir o fenmeno revolucionrio

    numa anlise providencialista, de maneira que as causas (sociais, polticas, econmicas)

    do fenmeno deixariam de ser efetivas para a compreenso do mesmo. nesta chave de

    leitura que Jacques Godechot11

    e Massimo Boffa12

    , especialistas em contrarrevoluo,

    estabeleceram suas conhecidas crticas interpretao maistreana. Contudo, alm do

    saliente anacronismo de algumas condenaes13

    , estes autores equivocam-se no apenas

    por ignorar as vrias camadas de leitura presentes no subsolo de sua interpretao

    providencialista, mas tambm por ignorar que a crtica maistreana Revoluo no se

    limitou s Consideraes sobre a Frana (1797). Por outro lado, uma observao atenta

    historiografia da Revoluo Francesa simplesmente desmente este quadro

    monocromtico esboado sobre o saboiano: a despeito dos antemas pronunciados, a

    interpretao maistreana do fenmeno revolucionrio a nica, dentre as escritas em

    lngua francesa durante e contra a Revoluo, que no caiu no esquecimento, sendo

    9A. Compagnon, Les antimodernes: de Joseph de Maistre Roland Barthes (Paris: Gallimard,

    2005), p.126. 10

    Vera Miltchyna. Joseph de Maistres Works in Russia: a look at their Reception(2001). In: R. Lebrun (org.). Joseph de Maistres Life, Thought and Influence (Montreal & Kingston: McGill-Queens University Press, 2001), p. 242-3.

    11 Referindo-se a Maistre e sua interpretao providencialista presente nas Consideraes,

    Godechot destacou o carter polemista e pouco interessado pelas causas e desenvolvimento da Revoluo

    de sua anlise, razo pela qual tem pouco ou nenhum valor historiogrfico. Cf. Jacques Godechot. As grandes correntes historiogrficas da Revoluo Francesa, de 1789 aos nossos dias, in: Revista de Histria, n

    o 80, vol. 31, out.-dez. 1969, p. 425.

    12 Massimo Boffa emitiu o seguinte juzo sobre Maistre - o qual seria mitigado no verbete

    Maistre que redigiu para o Dictionnaire critique de la Rvolution franaise (1988), de Mona Ozouf e F. Furet: Por que recomendar ateno do leitor a obra de Maistre? O interesse de sua obra , com efeito, longe de ser incontestvel... Quando trata da Revoluo Francesa, um tema que o perseguir por toda sua

    vida, revela-se um historiador medocre. Pouco importa-lhe saber como o Antigo Regime pde engendrar

    a catstrofe em que iria soobrar, e a preocupao primordial para um historiador que ser aquela dos doutrinrios, de Tocqueville, do pensamento liberal: ancorar a Revoluo na histria da Frana -lhe completamente estranha. A imagem ambgua de um devir em que fatores heterogneos se interpenetram

    no estimula seu esprito, atrado pela miragem de uma oposio sumariamente maniquesta entre a

    representao da ordem de direito divino e o satanismo revolucionrio. Cf. Massimo Boffa, Joseph de Maistre: la dfense de lautorit, in: Le Dbat, maro-maio 1986, no 39, p.81.

    13 Como os trabalhos de J. Tulard e Peter Davies, que cobram do contrarrevolucionrio saboiano

    uma cultura histrica tpica de um historiador social do sculo XX. Vide: J. Tulard, Introduo s Considrations sur la France (Paris, Garnier Frres, 1980),p. 24; Peter Davies, The Extreme Right in

    France, 1789 to the Present (London: Routledge, 2002), p. 32-33. Tulard incorre no erro ainda mais

    grave de atribuir a Maistre a nacionalidade francesa.

  • 13

    incessantemente citada pelos historiadores dos mais diversos matizes poltico-

    ideolgicos.

    Neste aspecto, John McManners14

    e Alice Grard15

    observaram que as

    Consideraes trabalho responsvel por sua reputao literria nos quadros da

    contrarrevoluo e do pensamento conservador16

    - tiveram o mrito de identificar uma

    fase aristocrtica da Revoluo, bem como o de atribuir boa parte do Terror desastrosa

    poltica beligerante dos emigrados franceses e prncipes europeus, naquilo que se

    convencionou chamar de teoria das circunstncias.17 No por acaso, alguns dos

    maiores expoentes da historiografia clssica da Revoluo, a saber, F. Mignet18

    , Jules

    Michelet19

    , Albert Sorel20

    e A. Mathiez21

    , lanaram mo das Consideraes para ilustrar

    a frrea identidade entre a defesa nacional e o Terror.

    14

    John McManners. The Historiography of the French Revolution, in: The New Cambridge Modern History (1965), vol.8: 621-2.

    15 Alice Grard, A Revoluo Francesa. Mitos e interpretaes. (1970) trad. Srgio Joaquim de

    Almeida (So Paulo: Ed. Perspectiva, 1999), p. 28. 16

    Num escrito publicado postumamente, Lefebvre, ao se referir s interpretaes hostis

    Revoluo (e o autor tinha em mente os trabalhos de Auguste Cochin e Pierre Gaxotte), observou que as

    mesmas eram profundamente tributrias das interpretaes originais de Maistre e Barruel. Cf. G.

    Lefebvre, Rflexions sur lhistoire (Paris: Franois Maspero, 1978), p.229. 17

    No segundo captulo das Consideraes, l-se: Jamais Robespierre, Collot ou Barre pensaram em estabelecer o governo revolucionrio e o regime do terror: foram insensivelmente levados a isso pelas

    circunstncias. 18

    Leia-se a seguinte citao das Consideraes de Maistre em sua Histria: Mas a posteridade, que no se preocupar muito com nossas dificuldades e danar sobre nossos tmulos, rir de nossa atual

    ignorncia e consolar-se- facilmente dos excessos a que ns assistimos e que tero conservado a

    integridade do mais belo dos reinos depois daquele do Cu (Consideraes..., cap. II). In: F. Mignet., Histoire de la Rvolution franaise depuis 1789 jusquen 1814 (Paris: F. Didot pre et fils, 1824), p. 271. Nesta obra, classificada por F. Furet (A Revoluo em debate, 1999) como a vulgata liberal da historiografia nos anos 1820-1830, divisavam-se duas revolues, a de 1789 e a do ano II, a primeira

    correspondendo historicamente necessria vitria do terceiro estado sobre a nobreza, a segunda, vitria das classes populares sobre a burguesia (episdio provocado pelas resistncias interna e externa s

    mudanas trazidas pela Revoluo). Assim procedendo (apelando necessidade histrica e teoria das circunstncias maistreana para o Terror), Mignet devolveu a Revoluo por inteiro ao campo liberal, sendo completamente expurgada de sua parte maldita, j que o jacobinismo um produto da Contra-

    Revoluo. 19

    Quanto a Michelet, o fato de aludir s Consideraes em sua Histoire de la Rvolution

    franaise (1847), apenas confirma a excentricidade da interpretao maistreana, que, apesar de

    representar uma refutao radical da Revoluo Francesa, ofereceu ao professor republicano argumentos

    contundentes que serviram para reforar suas crticas aos resqucios feudais e aristocracia do antigo

    regime: Eram uma classe de homens muito heterogneos, mas em geral fracos e fisicamente decadentes, levianos, sensuais e sensveis... o que reconhece o sr. de Maistre em suas Consideraes sobre a Frana (Histoire, Livro II, cap. 3). Mais adiante, certo que Michelet se remetia s Consideraes quando dizia: Os emigrados arriscavam vencer, assassinar a ptria, para sua desonra eterna. Ter-lhes-ia dito M. de Maistre: Oh, infelizes, felicitai-vos por terem sido derrotados pela Conveno!... Tereis, pois, querido uma Frana desmembrada e destruda? (Histoire, Livro XIII, cap. 1). Michelet no ignorou o fato de que os grandes alvos da verve crtica de Maistre nas Consideraes foram o clero e a aristocracia

    do Antigo Regime. Do mesmo modo, bem provvel que sua fonte de inspirao retrica para a

    descrio do jacobinismo como terrvel mquina tenha partido do mesmo panfleto de Maistre, especialmente do stimo captulo, onde usa-se e abusa-se desta metfora. Cf. J. Michelet. Histoire de la

    Rvolution Franaise (Paris: Gallimard,1939), t.II, p.8.

  • 14

    E mesmo algum como Edgar Quinet, o grande crtico da Revoluo no interior da

    tradio republicano-liberal, remeteu-se a Maistre e sua teoria das circunstncias22

    seja para refutar essa apropriao pela historiografia republicana, seja para ilustrar seu

    grande pensamento sobre a Revoluo, a saber, que a Revoluo fracassou porque no

    logrou separar a Frana do catolicismo e de seus valores absolutistas. Antes de

    representar uma forma de governo indito, o Terror simbolizou uma ressureio daquilo

    que constituiu os fundamentos do absolutismo: Richelieu e Lus XIV, a noite de So

    Bartolomeu e as dragonadas contra a Fronda: a violncia crua e nua do poder e, da parte

    da nao, o medo e a servido.23

    Mais do que formular uma teoria das circunstncias avant la lettre, as

    Consideraes, conforme destacou F. Furet em A Revoluo em debate (1999), ao

    negarem-se a separar uma boa Revoluo da m, avanaram uma leitura da

    Revoluo-bloco de to brilhante futuro.24 A exemplo de Burke, Maistre identificou

    no projeto revolucionrio do Iluminismo, isto , no projeto de (re)fundar a sociedade

    por meio da razo individualista (a qual teve origem na Reforma Protestante do sculo

    XVI), as causas da instabilidade poltica dos sucessivos governos revolucionrios (que

    20

    Cita vrias passagens das Consideraes de Maistre, por ele descrito como o mais eloqente apologista da contrarrevoluo, para ilustrar os riscos que a poltica contrarrevolucionria trouxe para a integridade nacional. Cf. A. Sorel, LEurope et la Rvolution franaise. III Partie: La Guerre aux Rois. (Paris: Librairie Plon, 1920), 20

    o edio, p.479; p.537; p.565. Todavia, a maior virtude de Maistre nas

    Consideraes consistiu, segundo ele, em haver compreendido melhor do que ningum a amplitude do

    fenmeno jacobino que, naquelas injunes de guerras intestinas e externas, foi o maior responsvel pelo

    triunfo da Revoluo e pela manuteno da integridade territorial francesa. Cf. Ibidem., p. 530. 21

    Albert Mathiez reproduziu a seguinte passagem das Consideraes em sua Histoire de la

    Rvolution: Que pediam os realistas quando pediam uma contra-revoluo feita bruscamente e pela fora? Pediam a conquista da Frana... In: Histria da Revoluo Francesa (1822-4). O Terror (vol.III). Trad. de Paulo Zincg (So Paulo: Atena Editora,s/d), p. 102.

    22 Cf. Alice Grard, A Revoluo Francesa. Mitos e interpretaes, p. 28.

    23 Pelo contgio da violncia, o telogo M. de Maistre torna-se, idealmente, o Robespierre do

    clero. Ele ope, em teoria, um terrorismo da Igreja ao terrorismo da Conveno. Seu Deus inexorvel,

    assistido pelo carrasco, Cristo de um Comit permanente de Salvao Pblica, o ideal de 1793, porm

    de um 1793 eternizado contra a Revoluo. Em nome da Igreja, ele admite o sistema da Montanha, o

    terror, o cadafalso, do qual faz um altar, a terra continuamente embebida em sangue, tudo, exceto a liberdade, a igualdade, a fraternidade prometidas. Nesta teologia, que coloca verdadeiramente a morte na

    ordem do dia, resta, ao fundo, o absolutismo da Conveno, sem a esperana da libertao antes do ltimo

    dia do globo, Robespierre sem Rousseau, o meio sem o fim. To grande o dio do catolicismo pela

    Revoluo que, para mat-la no bero, empresta-se dela seu inferno, e rejeita-se apenas seu cu. Cf. E. Quinet, Le Christianisme et la Rvolution franaise (1845), 13 lio. Lembremos que todos os

    pressupostos de sua interpretao crtica Revoluo, condensadas posteriormente em La Rvolution

    (1865), encontram-se em germe na sua obra de 1845, onde a referncia a Maistre abundante. Na obra de

    1865, refere-se a Maistre quando trata da Conveno. Para Quinet, Maistre foi quem melhor penetrou no propsito dos jacobinos, a saber, forar um povo a ser livre(Livro XII, cap.I). Sobre a identidade entre Antigo Regime/catolicismo e o Terror, tanto no plano poltico quanto moral, consultem-se os

    captulos X e XIV do Livro XVII de La Rvolution (Teoria do Terror). 24

    Franois Furet, A Revoluo em debate (1999). Trad. Regina C. B. Prates e Silva (Bauru-SP,

    Edusc, 2001), p.8.

  • 15

    ele, mesmo aps a Restaurao, julgava longe de um final feliz para sua causa) e do

    Terror, de modo que se torna impossvel separar uma era feliz daquilo que Constant e,

    posteriormente, a historiografia liberal da Restaurao desde Mme de Stel, classificou

    como traio dos princpios: A Revoluo francesa percorreu um perodo cujos

    momentos, sem dvida, diferem entre si; porm, seu carter geral jamais variou, e desde

    o bero dava sinais daquilo que viria a ser (Consideraes, Captulo 5).25

    Por incrvel que parea, o revisionista e liberal Franois Furet nada mais fez do

    que, mutatis mutandis, reproduzir essa tese maistreana em sua principal obra sobre a

    Revoluo de 1789, Pensando a Revoluo Francesa (1978).26

    Neste nterim,

    igualmente possvel creditar a Maistre o mrito de haver profetizado, e com uma

    extraordinria lucidez, no s a ameaa de degenerao totalitria do ideal democrtico-

    revolucionrio27

    , mas, sobretudo, a sede (Rssia)28

    e a formao (disseminao em solo

    russo de uma nova filosofia vinda da Alemanha e que, impregnada de espinosismo e

    kantismo, semearia revolues de uma radicalidade inaudita) deste devir. 29

    Triunfo do individualismo nos mbitos moral e/ou social, do liberalismo (com

    todas as assimetrias e misria que deixa nos seu rastro e que ele, Maistre, assduo leitor,

    escritor e aplicador da nascente cincia econmica em seu Estado, no ignorava)30

    no

    mbito econmico e do materialismo ou empirismo no plano epistemolgico, tais as

    grandes obras do esprito moderno consagradas pela Revoluo, que no tinham como

    25

    A despeito da diferena de objetos, valeria ressaltar aqui a semelhana de anlise (ao menos de

    ponto de partida) e estilo entre Maistre e Tocqueville, sobretudo quando o ltimo, no primeiro volume de

    sua A Democracia na Amrica (1835), oferece o carter e o esprito dos colonizadores (mormente o

    puritanismo) como a chave para a compreenso da democracia e da liberdade nos Estados Unidos: O homem acha-se por inteiro, por assim dizer, entre as cobertas do seu bero. No caso das naes, verifica-

    se algo de anlogo. Os povos guardam sempre as marcas de sua origem. As circunstncias que

    acompanham seu nascimento e serviram ao seu desenvolvimento influem sobre todo o resto de sua

    existncia (Democracia na Amrica; Livro I, cap. II). Devo esta observao ao prof. Modesto Florenzano.

    26 F. Furet, Pensando a Revoluo Francesa (1978). Trad. Martha Gambini e Luiz Marques (So

    Paulo: Paz e Terra, 1989), 2 edio, p. 26 e 78-79 respectivamente. 27

    George Steiner estabeleceu um interessante paralelo entre Maistre e Soljenitsin, de O

    Arquiplago Gulag (1947). In: G. Steiner. Aspects of Counter-revolution, in: Geoffrey Best (org.), The Permanent Revolution: the French Revolution and its legacy 1789-1989 (Chicago: Univ. of Chicago

    Press, 1989), p.148. 28

    Se os russos, que tm certa tendncia a levar tudo na brincadeira..., brincarem tambm com essa serpente [Ilustrao], nenhum povo ter sido mais cruelmente picado por ela. Cf. Joseph de Maistre, Oeuvres compltes de Joseph de Maistre (Lyon: Vitte et Perussel, 1893), vol. VIII, p. 354 (de agora em

    diante, conforme o modelo O.C., VIII: 354). Podemos ler estas linhas como uma previso literria

    (afinal, em pouco tempo a Rssia produziria uma das melhores literaturas do sculo XIX) e poltica (uma

    Revoluo mais radical do que a francesa). 29

    J. de Maistre, Lettre Ouvaroff sur le projet dune academie asiatique (1810) apud S. Ouvaroff, tudes de philologie et de critique (Paris: Didot, 1845), 2 ed., p. 56.

    30 Leia-se especialmente a Mmoire sur le commerce des grains entre Carouge et Genve, de 1790,

    reproduzida por Cara Camcastle em: The More Moderate side of Joseph de Maistre: views on Political

    Liberty and Political Economy (Montreal: McGill-Queens University Press, 2005).

  • 16

    limites seno o mundo31 isto sem falar do ideal democrtico, responsvel pela

    instabilidade poltica francesa e europeia.

    Do mesmo modo, no ser difcil demonstrar, na contramo do que sustentaram

    Godechot e Boffa, que, dentre os pecados da interpretao maistreana da Revoluo,

    certamente no se encontra o de ter feito tbula rasa da histria francesa e europia.

    Afinal, nas Rflexions sur le protestantisme (1798)32

    , Du Pape (1819) e De lglise

    Gallicane (1821), explica-se a Revoluo francesa luz de um longo processo iniciado

    pela Reforma religiosa do sculo XVI, e que se desdobrou na oposio jansenista-

    parlamentar monarquia absolutista durante o sculo XVIII. Recentemente, e de acordo

    com os melhores mtodos da erudio histrica, Dale K. Van Kley alcanou os mesmos

    resultados da polmica hiptese maistrena.33

    Atente-se para a seguinte passagem de De

    lglise Gallicane:

    Grandes revolues, grandes convulses morais, religiosas ou polticas, sempre deixam

    algo por detrs delas. O calvinismo nasceu na Frana; sua terra natal, vigorosa o suficiente para

    vomitar o veneno, ficar, no entanto, notavelmente afetada por isso. Observa-se, ento, o que

    acontece em todas as revolues: elas acabam, mas o esprito que lhes deu vida sobrevive... O

    esprito do sculo XVI foi nutrido e propagado na Frana principalmente pelos Parlamentos, e

    especialmente pelo de Paris... Protestante no sculo XVI, rebelde e jansenista no sculo XVII, e,

    finalmente, filosfico nos ltimos anos de sua vida, o Parlamento mostrou-se assiduamente em

    contradio com as verdadeiras mximas fundamentais do Estado [ou seja, proteo f

    catlica e unio com Roma]... O germe calvinista, nutrido neste grande corpo [Parlamentos],

    tornou-se muito mais perigoso quando sua essncia alterou o nome e designou-se jansenismo

    (Livro I, cap. 2).

    Com efeito, o galicanismo para Maistre nada mais era seno um disfarce para o

    jansenismo, o qual, apesar de nascido da Contrarreforma catlica, assumiu cada vez

    mais um aspecto criptocalvinista, quer no tocante doutrina quer em relao poltica.

    Noutras palavras, o jansenismo desempenhou na Frana o papel de fio-condutor que

    31

    J. de Maistre, O.C., XI:352. Em 1808, Maistre relata que a sua poca testemunha uma fuso do gnero humano (O.C., IX: 33), enquanto que, nas Soires, vai alm: ... tudo anuncia que marchamos na direo de uma grande unidade que devemos saudar distncia... Estamos dolorosa e mui justamente

    triturados; mas, se olhos miserveis como os meus forem dignos de entrever os segredos divinos, estamos

    triturados apenas para que sejamos misturados (O.C., IV:127). 32

    Publicado apenas em 1870.

    33

    Dale K. Van Kley, The Religious Origins of the French Revolution: From Calvin to the Civil

    Constitution, 1560-1791 (New Haven: Yale University Press, 1996).

  • 17

    liga os dois grandes fenmenos de transformao da vida social e poltica do Ocidente

    (at ento), a saber, a Reforma e a Revoluo Francesa. E justamente pelo fato de sua

    bildung representar um sincretismo de elementos to dspares como o filosofismo do

    sculo XVIII34

    e o jesuitismo, que a anlise maistreana revelou-se to consequente

    quanto s de Tocqueville ou Taine aqui, no percamos de vista que ambos tinham

    atrs de si duas geraes de historiadores da Revoluo - em seus inquritos do Antigo

    Regime na busca das origens da Revoluo ou da Frana Contempornea.35

    Dentre outros aspectos, o que uma corrente historiogrfica mais recente tem

    concludo, que o sculo XVIII foi to ou mais um sculo de controvrsia religiosa do

    que nica e exclusivamente de Luzes, cujo principal efeito a mdio-prazo foi o de

    demolir um por um os alicerces poltico-teolgicos da monarquia absoluta. Pois as

    condenaes real (1695) e papal (bula Unigenitus, 1713) ao jansenismo reacenderam a

    oposio entre algumas das maiores vtimas do absolutismo do sculo XVII (a causa da

    graa divina, da igreja anti-hierrquica, dos padres, parlamentares e advogados sem

    ofcio) e os beneficirios do mesmo (a causa do livre-arbtrio, da igreja hierrquica,

    da corte, dos bispos e dos jesutas), cujas controvrsias no apenas dominaram o cenrio

    poltico francs at meados dos anos 1770, como, de maneira residual mas nem por isso

    menos importante, ecoaram naquilo que boa parte da historiografia considera o incio da

    derrapagem da Revoluo, a Constituio Civil do Clero (1790). Pesquisas

    orientadas pelos pressupostos poltico-culturais da Revoluo, como os trabalhos de

    Sarah Maza36

    , David Bell37

    , Dale Van Kley38

    e Catherine Maire39

    , lograram inclusive

    demonstrar que o desenvolvimento do pblico como tribunal poltico e, por

    34

    Leia-se a magistral biografia crtica de Richard Lebrun sobre Maistre, Joseph de Maistre: an

    Intellectual Militant (Kingston and Montreal: McGill-Queens University Press, 1988), 2o captulo. 35

    A julgar pela crtica de G.P. Gooch a Taine para quem, nas Origens da Frana contempornea (1875), faltou observar que o empirismo ingls, com seu mtodo indutivo, exerceu maior influncia na

    Ilustrao francesa (e, por extenso, na Revoluo) que o mtodo dedutivo de Descartes -, fica evidente

    que Maistre envelheceu melhor, na medida em que extraiu os mltiplos desdobramentos (morais,

    psicolgicos, polticos) desta verdadeira revoluo epistemolgica dos tempos modernos, como seus

    ataques a Bacon e Locke permitem concluir.Cf. G.P. Gooch, Historia e historiadores en el siglo XIX

    (1913). Trad. espanhola de E. Champourain e R. Iglesia (Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1942), p.

    247. 36

    Sarah Maza, Le tribunal de la nation: Les mmoires judiciaires et lopinion publique la fin de lancien rgime, in: Annales (Jan. Fev. 1987), p. 73-90.

    37 David Bell, Lawyers and Citizens: The Making of a Political Elite in Old Regime France

    (Oxford: Oxford University Press, 1994). 38

    Dale K. Van Kley, The Religious Origins of the French Revolution..., p. 193-4. 39

    Catherine Maire, De la cause de Dieu la cause de la Nation: Le jansnisme au XVIIIe sicle.

    (Paris: Gallimard, 1998),p. 224-228.

  • 18

    conseguinte, os germes de uma cultura republicana - esteve estreitamente vinculado s

    controvrsias religiosas em torno da bula Unigenitus (1713).40

    Isto equivale a dizer e totalmente de acordo com a interpretao de Maistre

    que, em sua potencialidade mais radical, o desafio implcito do jansenismo monarquia

    de direito divino reside, a exemplo do calvinismo, na tendncia a dessacralizar tudo o

    que se interpe entre a conscincia individual e Deus, reservando a divindade apenas ao

    ltimo.41

    Conclui-se, a partir disso, que a inteligncia maistreana foi uma das primeiras a

    inserir um grande evento como a Revoluo na longa durao histrica, inaugurando

    talvez uma tradio conceitual na historiografia que, enriquecida pelo avano do mtodo

    e das pesquisas (e/ou expurgada de suas implicaes reacionrias), baliza o modo como

    interpretamos a gnese do mundo moderno (ao menos no Ocidente).

    Nas palavras de um especialista,Maistre descreve o movimento geral dos tempos

    modernos como a realizao progressiva de um ideal cuja frmula dada pelas Luzes:

    protestantismo, filosofismo e Revoluo Francesa so apenas momentos de um nico

    projeto, que se exprime na reivindicao protestante do direito ao exame, assim como

    no imperativo filosfico de pensar por si mesmo, ou ainda na vontade revolucionria

    de fundar o Estado sobre a soberania dos indivduos.42

    Portanto, o principal objetivo desta pesquisa foi o de reconstruir, mediante um

    estudo sistemtico da vasta produo de Joseph de Maistre (diluda em 14 volumes de

    suas Obras Completas, sem contar as incintveis pginas de seus ''Registros de

    Leitura''), os diversos nveis ou camadas de sua interpretao sobre a Revoluo

    Francesa, buscando reavaliar e mensurar no apenas seu papel na historiografia da

    Revoluo Francesa destacando as afinidades (o mais das vezes insuspeitas) e

    discrepncias com algumas problemticas do moderno debate historiogrfico (sobretudo

    o que assume como fio-condutor explicativo da Revoluo o problema teolgico-

    40

    Como reconhecera E. Quinet em: Le Christianisme et la Rvolution franaise, 12 lio: Caso se queira observar... como a velha sociedade francesa estava condenada h muito tempo antes da

    Revoluo..., basta considerar o primeiro monumento da Santa S do sculo XVIII [bula Unigenitus]...

    Que no se diga mais, portanto, que os filsofos abalaram a f. Esta iniciativa foi assumida por uma

    autoridade estabelecida muito anterior deles. O sculo XVIII abre-se com uma solenidade maior do que

    se diz: eis a primeira journe do sculo XVIII. 41

    Se, como argumentou Marcel Gauchet, existe uma lei da emancipao humana por via da afirmao divina, na medida em que quanto mais transcendente for o conceito de Deus, maior ser o efeito disso na liberdade do povo, ento o agostianismo calvinista e, por extenso, jansenista - trouxe em seu bojo uma mensagem implcita de emancipao, no importando o quo ortodoxos e pr-

    monrquicos fossem as declaraes de seus fundadores e adeptos ilustres. In: Marcel Gauchet, Le

    dsenchantement du monde: une histoire politique de la religion (Paris: Gallimard, 1985), p. 53. 42

    J.-Yves Pranchre, L'Autorit contre les Lumires, p. 21.

  • 19

    poltico trazido pela Reforma Protestante) - como a dimenso de seu espectro na histria

    das idias e da poltica contemporneas.

    Noutras palavras, trata-se de rastrear na obra de Maistre tudo o que ele escreveu

    sobre a Revoluo Francesa (sempre cotejando com a historiografia da Revoluo) e,

    por extenso, sobre a Modernidade, seu duplo inseparvel -, perfazendo os processos

    que o levaram da defesa da autoridade monrquica (1793-1798) crtica ao esprito dos

    tempos modernos (1803-1821). Admitindo-se como metodologicamente vlido o que

    sugeriu Lawrence Stone, a saber, que qualquer anlise de uma questo to complexa

    como o desafio revolucionrio a um regime estabelecido, mesmo quando preparado em

    grande parte no interior das elites dirigentes, deve remontar necessariamente a um

    passado bem distante e utilizar um enfoque multicausal; deve conceder tanta

    importncia aos defeitos institucionais e s paixes ideolgicas quanto aos movimentos

    sociais e s mudanas econmicas caso a anlise tenha alguma esperana de agarrar

    todos os fios que conduzem crise43; encontramos razes suficientes para considerar

    Maistre um grande intrprete dos pressupostos e da dinmica da Revoluo Francesa

    e da modernidade.

    Neste sentido, este trabalho representa, em termos de campo de conhecimento,

    uma interface entre historiografia e histria intelectual, e, em termos de referncia e

    inspirao metodolgica, para a leitura analtica dos textos maistreanos e de seus

    contemporneos, julgamos oportuno adotar os procedimentos da Escola de

    Cambridge, cujas balizas foram definidas da seguinte forma por Quentin Skinner:

    O que, exatamente, o procedimento aqui proposto nos permite identificar nos textos

    clssicos que no se possa encontrar na leitura? A resposta, em termos genricos, penso eu,

    que ele nos permite definir o que seus autores estavam fazendo quando os escreveram. Podemos

    comear assim a ver no apenas que argumentos eles apresentavam, mas tambm as questes

    que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou

    contestavam e repeliam, ou s vezes at ignoravam (de forma polmica), as idias e convenes

    ento predominantes no debate poltico.44

    43

    Lawrence Stone, As Causas da Revoluo Inglesa 1529 -1642 (1972). Trad. de Modesto

    Florenzano (Bauru-SP: Edusc, 2000), p.114. 44

    Quentin Skinner, As Fundaes do Pensamento Poltico Moderno (1978). Trad. de Renato

    Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta (So Paulo: Companhia das Letras, 1999), p. 13.

  • 20

    A exemplo do que postulou Peter Lasllet em seu clssico estudo sobre Locke,

    nosso primeiro objetivo consistiu num ''modesto exerccio de historiador'', isto , em

    estabelecer os textos de Maistre tal como ele pretendia que fossem lidos, situ-los ''em

    seu contexto histrico, no contexto do prprio'' Maistre, demonstrando ''o vnculo entre

    seu pensamento e sua obra'' com o Maistre''conhecido por sua influncia histrica.45

    Dito de outra forma, este procedimento permitiu-nos delinear o que Maistre

    pretendia comunicar ao emitir seus discursos, ao escrever no momento em que escrevia,

    e para as audincias especficas que tinham em mente.46

    Assim, o presente trabalho divide-se em trs partes. Na primeira, como o prprio

    ttulo indica - Maistre e as causas teolgico-polticas da Revoluo Francesa -,

    procuramos remontar s origens (mais especificamente, em seus dois primeiros

    captulos, respectivamente Do sans-culottismo da religio ao sans-culottismo poltico:

    as origens das ''Reflexes sobre o Protestantismo''; e A Revoluo Francesa, chave

    para a compreenso do Protestantismo) da interpretao teolgico-poltica da

    Revoluo por Maistre, mostrando como os contextos polticos e lingusticos da

    emigrao ou da Frana revolucionria (o testemunho pessoal das convulses

    revolucionrias nos cantes protestantes suos; as fundamentais leituras dos panfletos

    do filocatlico Burke ou dos huguenotes Mme de Stel e Benjamin Constant; a

    proeminente participao de clebres figuras protestantes e/ou jansenistas desde as fases

    iniciais da Revoluo Francesa) foram determinantes para a concepo desta chave de

    leitura, a qual, despojada de seu aspecto ''faccioso''47

    , estabelece hipteses muito

    plausveis e, no raro, prximas das que foram consagradas pelas diversas disciplinas

    das cincias sociais sobre a ntima relao entre o protestantismo e o processo de

    desencantamento do mundo que culminou na Revoluo de 1789. No terceiro e ltimo

    captulo dessa primeira parte (intitulado ''De l'glise Gallicane'': da ''rvolution

    mnage'' ao refinamento do esprito revolucionrio.Razes do anticlericalismo

    revolucionrio), lanamos mo do mesmo procedimento metodolgico para reconstituir

    o contexto lingustico da Restaurao francesa responsvel pela elaborao do De

    l'glise Gallicane, obra na qual Maistre retoma e desdobra as teses prefiguradas nas

    45

    Peter Lasllet, ''Introduo'' a: John Locke: Dois Tradados sobre o Governo. Trad. Jlio Fisher.

    (So Paulo: Martins Fontes, 1998), p. 2. 46

    Quentin Skinner. Lenguaje, poltica e historia (2002). Trad. espanhola de Cristina Fangmann

    (Buenos Aires: Univ. Nacional de Quilmes, 2007), p. 160. 47 Sainte-Beuve, ''Joseph de Maistre'', in: Portraits littraires (Paris, Garnier, 1862-1864), vol. II,

    p. 393.

  • 21

    Rflexions sur le Protestantisme sobre o vetor eminentemente teolgico-poltico do

    fenmeno revolucionrio francs.

    Pois a defesa das teses galicanas por polticos e intelectuais liberais da

    Restaurao - as quais foram admitidas por boa parte da nobreza e do clero - contra a

    possvel assinatura de uma nova Concordata entre o papa e o monarca francs trouxe

    novamente tona o papel desempenhado pela prpria monarquia absoluta no

    solapamento do fundamento moral ou religioso de seu poder, sobretudo atravs do

    conflituoso histrico da oposio jansenista-parlamentar bula Unigenitus (emitida pelo

    papa Clemente XI em setembro de 1713, aps solicitao de Lus XIV) que condenava

    um total de 101 proposies do livro Rflexions morales sur le Nouveau Testament

    (Reflexes morais sobre o Novo Testamento, 1693) do telogo oratoriano Pasquier

    Quesnel.

    No final do sculo XVIII, aps a grave crise da negao dos sacramentos (entre as

    dcadas de 1730-1750) resolvida em favor dos jansenistas (os quais, conforme

    observaram respectivamente Maistre e Tocqueville, promoveram ainda mais o

    absolutismo estatal dentro da lgica dos ''quatro artigos galicanos de 1682'' expostos por

    ningum menos que Bossuet), mais especificamente em ocasio do golpe de Estado

    contra os Parlamentos pelo chanceler Maupeou (1771-1774), as crticas dos jansenistas

    bula culminaram numa censura orientao religiosa do clero que, por ricochete,

    atingia tambm a monarquia absoluta dos Bourbons, a ponto de culminar numa defesa

    terica, em grande medida tributria da terminologia teolgica conciliarista tardo-

    medieval galicana, dos Estados Gerais. Defesa esta que no apenas seria retomada

    quase que nas mesmas linhas pela oposio aristocrtico-parlamentar s reformas

    monrquicas s vsperas da Revoluo (1787-1788) - contribuindo com isto

    decisivamente para o (inesperado) desfecho revolucionrio de um processo que

    comeara como uma universalmente celebrada oposio patritica da nao sob a

    liderana do ''jansenista'' Parlamento de Paris -, como estaria na raiz da Constituio

    Civil do Clero de 1790 e do pathos radicalmente anticlerical da Revoluo Francesa.

    A segunda parte (intitulada De Bacon a Locke: um humanista devoto crtico da

    modernidade) trata da extensa e complexa crtica epistemolgica maistreana Filosofia

    das Luzes. Nos trs captulos que a compem, esforamo-nos em demonstrar que, por

    trs do bvio contedo teolgico ou devoto de Maistre, encontra-se tambm uma

    argumentao de raiz plenamente humanista e racionalista, seja quanto forma, seja

    quanto ao contedo. No quarto (intitulado O ''Examen de la philosophie de Bacon'' ou

  • 22

    as razes humanistas do ethos contrarrevolucionrio maistreano) e no sexto

    (''Unlocking the Human Mind'': crtica epistemologia de Locke ou a defesa humanista

    devota da dignidade humana) captulos, empreendemos um esforo de reconstruo do

    contexto discursivo por trs da elaborao da crtica maistreana s epistemologias de

    Bacon e Locke, cujo contedo, seja pela abertura e constante recurso filosofia clssica

    (no s a filosofia ''espiritualista'' e devota de Plato, mas tambm a filosofia mais

    ''materialista'' e racional de Aristteles), seja pela centralidade atribuda ao ''homem'' no

    seu sistema de pensamento (defesa do livre-arbtrio, de sua dignidade na ordem da

    Criao, de seu intelecto ativo na investigao dos fins), obteve de nossa parte um

    surpreendente reconhecimento de cidadania na vasta e heterognea tradio do

    pensamento humanista.

    Baseado nos opsculos maistreanos sobre a educao russa (1810-1811), o quinto

    captulo (''Cartas sobre a Educao Pblica'' e ''Quatro captulos sobre a Rssia'': uma

    teoria humanista devota sobre o progresso e o desenvolvimento das ''manners'' russas)

    apresenta uma curiosa teoria humanista-crist sobre a histria da civilizao ou das

    manners europeias pelo contrarrevolucionrio saboiano, a qual ser plenamente

    desenvolvida e constituir o argumento de fundo de Du Pape.

    A terceira e ltima parte (intitulada Um saboiano ultramontano) inicia-se com um

    texto (referente ao stimo captulo) que, como o prprio ttulo indica (Sob o signo da

    dualidade: Maistre e a Casa da Saboia na 'Era da Revoluo Democrtica'), busca

    lanar luz sobre a complexa questo da identidade de Maistre - que no era nem francs

    nem italiano, mas saboiano -, a qual, a nosso ver, oferece um ponto de vista privilegiado

    para a compreenso de suas heterodoxas posies contrarrevolucionrias e diplomticas

    (ou seja, marcadas por uma inequvoca francofilia e uma irremissvel antipatia pela

    Casa d'ustria, com quem seu soberano acabara de estabelecer uma aliana

    matrimonial).

    Procuramos destacar como, na contramo dos emigrados e da maior parte dos

    contrarrevolucionrios europeus, Maistre no desejava a derrota francesa ante os

    exrcitos de coalizo: consciente da nova dimenso conquistada pela esfera da opinio

    pblica, a seu ver, a Revoluo s poderia ser derrotada internamente, a partir da

    Frana, e no pela interveno exgena das potncias europeias. Exceo feita a seu

    correspondente suo e tambm contrarrevolucionrio Jacques Mallet du Pan (com

    quem manteve assdua amizade durante o exlio em Lausanne, 1793-7), ningum

  • 23

    melhor do que ele percebeu o quanto a dinmica revolucionria jacobina se alimentava

    dos discursos e dos movimentos militares dos coligados.

    Ademais e levando-se em conta a situao particular da Casa da Saboia no

    tabuleiro de poder europeu, Maistre no poderia deixar de temer pelas consequncias

    advindas de um excessivo engrandecimento da Casa dustria em caso de vitria do

    exrcito de coalizo. A Frana tinha desempenhado durante sculos o papel de

    contrapeso hegemonia da Casa dos Habsburgos, posteriormente Casa da ustria, na

    Europa. Maistre advertia para o fato de que o restabelecimento do equilbrio europeu,

    longe de passar por uma Frana enfraquecida e desmembrada, deveria preserv-la, sob

    pena de a ustria retomar a posio que ostentava na poca de Carlos V.

    Ainda que no tenha expressado um sentimento nacionalista italiano - pelo

    contrrio, como neoguelfo, Maistre era partidrio de um sentimento

    regionalista/monrquico saboiano sob a tutela espiritual do papa -, o

    contrarrevolucionrio saboiano no deixou de ser um personagem involuntrio, embora

    no-negligencivel, do processo de unificao italiana, como mais tarde reconheceria

    ningum menos do que o protagonista daquele processo, o conde de Cavour.

    O oitavo captulo (''Du Pape'' ou manifesto de um ultramontano) aborda o

    trabalho mais influente de Maistre ao lado das Consideraes sobre a Frana, e o qual

    desdobra e reelabora de maneira original uma longa discusso (ao mesmo tempo

    histrica e poltica) sobre o papel desempenhado pelo cristianismo na histria da

    civilizao ou no processo de desenvolvimento das manners europeias.

    Procuramos demonstrar como em Du Pape Maistre articulou e desdobrou dois

    amplos debates culturais a partir de dois centros geogrficos ou polticos distintos. Pois

    uma leitura atenta da obra indicar que a mesma no apenas deitou razes na ampla

    discusso francesa sobre a compatibilidade do cristianismo com a liberdade poltica

    e/ou o progresso material e moral da humanidade - a qual, iniciada na repblica

    termidoriana (atravs do pstumo Esboo de um quadro histrico dos progressos do

    esprito humano de Condorcet, determinante junto aos intelectuais e polticos

    republicanos de orientao filosfica desta e anticlerical, como Charles Dupuis, La

    Rvellire-Lpeaux, Cabanis e Destutt de Tracy), prolongou-se do Consulado at a

    Restaurao (dos clssicos do incio do romantismo literrio e defensores da

    compatibilidade do cristianismo com o desenvolvimento das manners, tais como o

    Gnie du Christianisme de Chateaubriand e o De l'Allemagne de Mme de Stal, aos

    panfletos galicano-liberais e ultramontanos da Restaurao) -, como tambm refletiu um

  • 24

    intenso debate poltico-cultural no interior do Imprio russo (e do qual ele prprio,

    atravs de seus escritos pedaggicos, fora um dos principais protagonistas) durante e

    aps as guerras napolenicas, e o qual foi marcado pelo advento de uma sensibilidade

    nacionalista-ortodoxa marcadamente antiocidental e anticatlica entre os influentes

    oligarcas locais.

    A respeito desta que, em grande medida, a obra responsvel pela pssima

    reputao de Maistre, conclumos que a mesma, apesar de seu contedo

    irrevogavelmente conservador, culmina num projeto poltico utpico balizado por

    valores racionalistas e cosmopolitas (anti-imperialistas).

    Como no poderia deixar de ser, o nono e ltimo captulo da tese ('' sua imagem

    e semelhana'': humanismo e providencialismo maistreanos em face da Ilustrao e da

    Revoluo) dedicado ao providencialismo maistreano, um conceito totalizante que

    abarca no apenas a viso histrica do contrarrevolucionrio saboiano (e sua

    interpretao sobre o fenmeno revolucionrio francs), mas tambm as concepes

    antropolgica e - a partir desta - poltica do mesmo.

    Diante do desafio de interpretar a concepo humanista-devota maistreana (e, no

    interior da mesma, um elevado conceito sobre a origem e o destino do homem que

    concilia o livre-arbtrio com a onipotncia e a oniscincia divinas) luz de sua

    concepo providencialista da histria, a figura do neoplatnico Orgenes surgiu-nos

    como um valioso ''tnel'' na identificao de tpicos surpreendentemente comuns entre

    o humanismo devoto maistreano com o humanismo neoplatnico de autores florentinos

    como Marsilio Ficino e Pico della Mirandola.

    Fundamentalmente, este exerccio comparativo permitiu-nos compreender melhor

    as premissas epistemolgicas que serviram de base para que Maistre erigisse sua

    refutao Filosofia das Luzes e aos princpios revolucionrios, e a qual, antes de partir

    de numa concepo antropolgica radicalmente negativa da condio humana que, no

    limite, culminaria em antecipaes ultramodernas de teorias polticas reacionrias

    negadoras da liberdade (conforme sustentaram Cioran e Berlin), subsumia e reelaborava

    dialeticamente as culturas herdadas da Contrarreforma e da Ilustrao no interior de seu

    quadro referencial neoplatnico-origeniano.

    Dividido em duas partes, este captulo no apenas desdobra as imputaes

    anteriores acerca do humanismo maistreano (e aprofunda o exerccio de validao

    conceitual do mesmo), como apresenta uma interpretao sobre a Revoluo Francesa e

    o Terror luz do conceito providencialista da histria, e o qual, longe de redundar numa

  • 25

    negao (anti-humanista) da liberdade humana (e, por extenso, da prpria histria),

    culmina numa paradoxal (por se tratar de um autor conservador e/ou

    contrarrevolucionrio) afirmao da dignidade ontolgica do homem, e isto atravs de

    um ethos humanista surpreendentemente semelhante ao exibido pelos neoplatnicos

    florentinos.

  • 26

    PARTE I

    MAISTRE E AS CAUSAS TEOLGICO-POLTICAS DA

    REVOLUO FRANCESA

  • 27

    CAPTULO 1

    Do sans-culottismo da religio ao sans-culottismo poltico: as origens das

    ''Reflexes sobre o Protestantismo'' de Maistre

    Publicadas pela primeira vez em 1870 nas Oeuvres indites du compte Joseph de

    Maistre, as Rflexions sur le Protestantisme dans ses rapports avec la souverainet

    (Reflexes sobre o Protestantismo em suas relaes com a soberania) foram concludas

    na cidade de Turim, capital do reino do Piemonte-Sardenha, em 1798, mas suas origens

    remontam a um perodo um pouco anterior.

    Mais do que as Consideraes sobre a Frana (1797) que tratou literalmente de

    condenar os revolucionrios e seus princpios ao Inferno -, esta obra surpreende pela

    virulncia do requisitrio endereado aos herdeiros de Lutero e Calvino. As Reflexes

    so um visceral ataque ao protestantismo (e, em menor escala, ao jansenismo), descrito

    como um sans-culottismo da religio e uma heresia civil, que, por haver minado a

    unidade religiosa da Europa e colocado a discusso no lugar da

    autoridade(ojulgamento particular do indivduo no lugar da infalibilidade dos

    dirigentes), foi a fonte de todos os venenos modernos (a comear pela filosofia das

    Luzes), estendendo-se at a Revoluo Francesa e o proselitismo democrtico dos

    jacobinos. De acordo com Maistre, o grande inimigo da Europa, que preciso sufocar

    por todos os meios que no sejam criminosos, a lcera funesta que se fixa em todas as

    soberanias e que as corri sem descanso, o filho do orgulho, o pai da anarquia, o

    solvente universal, o protestantismo.1

    Como observou Pierre Glaudes2, a violncia do ataque ainda mais surpreendente

    se levarmos em considerao que em sua memria manica redigida em 1782, as

    Mmoires au duc de Brunswick, Maistre dedicou palavras conciliatrias a seus irmos

    maons protestantes, na esperana de que os mesmos, unidos aos catlicos, pudessem

    combater a impiedade filosfica da Ilustrao que j incomodava o futuro

    contrarrevolucionrio saboiano, para, num futuro no muito distante, promoverem a

    1 Joseph de Maistre, Rflexions sur le Protestantisme (1798). In: Joseph de Maistre, crits sur la

    Rvolution. Textos introduzidos e organizados por J.-Louis Darcel, (Paris: PUF, 1989), p. 219. 2 Pierre Glaudes (org.), Joseph de Maistre: Oeuvres (Paris: Robert Lafffont, 2007), p. 293.

  • 28

    reunificao de todas as denominaes crists no seio do catolicismo. Assim, nesta

    memria endereada ao duque de Brunswick3, o grande mestre de sua ordem manica,

    que vislumbramos a insero de Maistre na maonaria e na Ilustrao.

    Redigida com a finalidade de defender o cristianismo dos ataques que o mesmo

    recebia da filosofia da Ilustrao e promover a restaurao da unidade catlica do

    cristianismo, a memria manica maistreana explicitava suas intenes em um tom

    marcadamente ecumnico:

    chegado o tempo... de apagar a vergonha da Europa e da mente humana. Qual a

    vantagem de possuir uma religio divina desde que rasgamos o inconstil tecido e os adoradores

    de Cristo..., so levados a excessos que fariam a sia ruborizar? O maometismo conhece apenas

    duas seitas; o cristianismo tem trinta delas... Nossos supostos sbios, ridiculamente orgulhosos

    por algumas descobertas infantis, escrevem doutamente a respeito do ar fixo, volatizam o

    diamante, ensinam s plantas o quanto devem durar... mas cuidam em no perguntar uma nica

    vez em suas vidas o que eles so e qual o seu lugar no universo. O entusiasmo sendo um

    fanatismo mil vezes mais criminoso do que aquilo que eles nunca cessam de deplorar, golpeiam

    indiferentemente a verdade e o erro, sem conhecer outro modo de atacar a superstio a no ser

    pelo ceticismo.4

    Ao recomendar o estudo da moral e da poltica, o ento jovem promotor pblico

    do Senado da Saboia5 o fez num tom diametralmente oposto ao que se propagava nos

    3 Lder do movimento manico de Estrita Observncia Templria, o sobrinho do duque que seria

    derrotado na batalha de Valmy, em 1792, enviou s lojas um questionrio que deveria ser respondido no

    congresso que se reuniria em 1782 na cidade de Wilhelmsbad (Alemanha). Sabemos que a memria

    maistreana no chegou a seu destino, devido a uma provvel censura das autoridades da loja de rito

    escocs a que Maistre esteve vinculado entre 1778-1791 (a La Sincerit de Chambry), e os quais, sob a

    influncia do mercador de tecidos de Lyon, Jean-Baptiste Willermoz, consideravam as opinies do

    saboiano excessivamente contrrias Ilustrao. 4 Citado em R. Lebrun, Joseph de Maistre: An Intellectual Militant (Montreal: McGill-Queens

    University Press, 1988), p. 65. 5 Fruto do casamento do nobre togado de origem plebeia (descendente de uma prspera famlia de

    comerciantes de tecidos da cidade de Nice) Franois-Xavier Maistre (1706-1789) - magistrado de

    renome, foi transferido de Nice ao Senado da Saboia em 1740, onde obteria, em 1778, a consagrao da

    ascenso social de sua famlia ao receber o ttulo de conde (em carter hereditrio) por meio de uma carta

    de patente real - com a nobre local Christine Demotz (1727-1774), Maistre era o mais velho dentre os dez

    filhos que o casal teve (dentre estes, o escritor Xavier de Maistre, dez anos mais novo que Joseph). Aps

    obter, em 1772, o ttulo de doutor em direito pela Universidade de Turim com apenas 19 anos de idade,

    Maistre retorna Saboia, onde realiza estgio bienal obrigatrio no Bureau de lAvocat des Pauvres do Senado local (defensoria pblica). Em dezembro de 1774, o filho mais velho do senador Franois-Xavier

    debuta oficialmente na magistratura sarda, na funo de Substitut Surnumraire no Bureau de lAvocat Gnral (assistente no-remunerado da promotoria pblica). Aps ser indicado como substituto pleno

    (deputado com a funo de promotor pblico), em fevereiro de 1780, e reitor dos Substitutos, em 1785,

    recebe, em 1788, a nomeao de senador. Casado desde 1786 com a nobre Franoise de Morand (seis

    anos mais jovem) - o casal teria trs filhos, Adle (1787), Rodolphe (1789) e Constance (1793) Maistre

  • 29

    circuitos de sociabilidade democrtica.6 Conforme advertia Maistre a seus colegas

    maons, ''em poltica, jamais devemos nos deixar levar por sistemas vos, pois a

    metafsica nesta cincia, e em geral tudo o que no for claro e prtico, bom apenas

    para entreter escolas e cafs.7

    Pode-se dizer que o tom ecumnico do texto era uma necessidade e uma

    estratgia, jamais uma convico. O propsito da maonaria devia ser o de reunir as

    diversas seitas na religio catlica. As lojas que teriam por funo iniciar seus

    membros na cincia do homem, que versa sobre a origem e o destino da humanidade

    seriam um instrumento privilegiado dessa futura unio, uma vez que as mesmas, ao

    sofrer as influncias do sculo, acostumaram-se s controvrsias religiosas, permitindo a

    aproximao entre catlicos e protestantes sem destruio mtua.

    Portanto, muito antes da Revoluo (e seus profundos efeitos para ele e sua

    famlia) e da leitura do Manifesto contrarrevolucionrio de Edmund Burke8, a saber,

    as Reflexes sobre a Revoluo em Frana (1790)9, Maistre j demonstrava uma

    postura crtica, para no dizer abertamente Contra-Iluminista, em relao aos principais

    e seu pai administravam conjuntamente os bens da famlia, uma das mais aquinhoadas da provncia

    piemontesa, com 7.400 libras/ano de salrios, 5.000 libras/ano de juros e rendas dos bens da famlia, e um

    patrimnio superior a 100.000 libras. Para maiores detalhes biogrficos, leia-se nossa dissertao de

    mestrado, ''Consideraes sobre a Frana'' de Joseph de Maistre: Reviso (historiogrfica) e Traduo

    (So Paulo: FFLCH-USP, 2009), p. 15-21. 6 F. Furet. Pensando a Revoluo Francesa (1978). Trad. de Luiz Marques e Martha Gambini (Rio

    de Janeiro: Paz e Terra), p. 53-4. Vide tambm R. Koselleck. Crtica e crise: uma contribuio

    patognese do mundo burgus (Rio de Janeiro: Ed.UERJ/Contraponto; 1999), p. 71 e 75, onde se l: Os maons no tm nada a ver, diretamente, com a poltica, mas vivem conforme uma lei que, uma vez em

    vigor, torna suprflua a revoluo. Por um lado, separam-se do Estado, subtraem-se autoridade e

    constituem um poder indireto que uma ameaa soberania mas uma ameaa apenas moral. Por outro lado, sua virtude deixa de ser um crime, isto , de ameaar o Estado, quando ela mesma, em lugar do soberano, determina o que justo e injusto. A moral o soberano presuntivo... Diretamente apoltico, o

    maom , no entanto, indiretamente poltico. A moral permanece, de fato, no violenta e pacfica, mas

    enquanto tal concebida como antpoda da poltica questiona o Estado vigente.

    7 R. Lebrun, Joseph de Maistre: An Intellectual Militant, p. 63.

    8 Esta observao devemos Introduo edio de Conor Cruise OBrien para a Penguin Books

    (1968) das Reflections, a qual se intitula O Manifesto de uma contrarrevoluo.

    9A qual, conforme o prprio Maistre confessou numa correspondncia de 21 de janeiro de 1791, a

    seu amigo saboiano, o marqus Costa de Beauregard, reforou, mas no determinou sua reao

    contrarrevolucionria: Lestes Calonne, Mounier e o admirvel Burke? O que pensais do modo com que este austero deputado refere-se grande espelunca do Mange e a todos os legisladores bebs? Quanto a

    mim, estou encantado, e no saberia expressar o quanto ele reforou minhas idias antidemocrticas e

    antigalicanas. Minha averso por tudo o que est sendo feito na Frana transforma-se em horror.

    Compreendo muito bem como sistemas, ao fermentarem em muitas cabeas, convertem-se em paixes.

    Crede-me, esta abominvel assemblia no pode ser odiada o suficiente. Vede como trinta ou quarenta

    velhacos conseguem o que o prncipe negro e a Liga foram incapazes de fazer. Massacres, pilhagens,

    incndios, no representam nada so necessrios poucos anos para curar tudo isso -, mas o esprito pblico aniquilado, a opinio pblica viciada num nvel assustador, numa palavra, a Frana putrefata, eis

    o que estes senhores fizeram. E, o que realmente deplorvel, a doena contagiosa e nossa pobre

    Chambry j se encontra bem infectada... Todos os dias o poder recua, mesmo quando quer avanar, pois

    ele se emprega mal. Cf. R. Lebrun, Joseph de Maistre: An Intellectual Militant, p. 100-101.

  • 30

    pressupostos polticos e morais da filosofia das Luzes, assim como j dava sinais de que

    o problema teolgico-poltico iniciado pela Reforma religiosa do sculo XVI era algo

    que j ocupava, ainda que de maneira difusa, suas reflexes polticas. Razo pela qual

    no seria exagerado dizer que todo o pensamento poltico-moral do futuro

    contrarrevolucionrio j estivesse contido em germe nesta curta memria manica.

    Contudo, no seremos capazes de compreender os motivos desta evoluo

    relativamente brusca do pensamento maistreano se no apreendermos as determinaes

    impostas pelas circunstncias revolucionrias, as quais, uma vez repercutidas na Saboia

    (invadida pelas tropas francesas no final de setembro de 1792), levaram-no a um exlio

    em territrio suo, mais especificamente em Lausanne, entre abril de 1793 e fevereiro

    de 1797.

    Mais do que as vantagens da lngua (francfona) e da geografia (podia manter

    contato com a famlia que permanecera na Saboia10

    ), o que mais o atraiu para essa

    dependncia de Berna foi a oportunidade de iniciar a carreira de crivain poltico livre

    das perturbaes dos franceses e, sobretudo, das censuras absolutistas de seu governo.

    Outro fator que deve ter pesado nesta deciso foi a presena, em Berna, do antigo

    intendente da Saboia e recm-nomeado correspondente da monarquia piemontesa-

    sarda11

    , seu amigo Vignet des Etoles.

    No dia 20 de abril (instalara-se em Lausanne no dia 13), aps ser informado por

    Vignet des Etoles de que fora acusado de jacobinismo pelas autoridades piemontesas12

    ,

    Maistre inicia a redao de uma memria, a Mmoire sur la Franc-Maonnerie

    (finalizada no dia 30), que mais parecia uma defesa da maonaria do que dele prprio, e

    na qual argumentava que as lojas saboianas eram honestas sociedades dedicadas a

    atos de benevolncia, de modo que a igualdade manica no passava de puro

    simbolismo. Nela, Maistre no omitiu seu passado manico, embora tenha evitado

    10 Apenas em setembro de 1793, diante da iminncia das ofensivas austrossardas, que a esposa

    e os filhos se juntam ao marido.

    11

    Pelo Tratado de Utrecth (1713), que marcou o fim da Guerra de Sucesso espanhola, o duque

    da Sabia, Victor-Amadeus II, tornava-se rei da Siclia, situao esta que, diante das presses austracas,

    foi revertida pelo Tratado de Londres (1718), pelo qual o duque ficava com a Sardenha como

    compensao pela entrega da Siclia ustria. Portanto, a partir de 1720, o ducado da Sabia passa a se

    chamar reino do Piemonte-Sardenha. 12 Desde 1791, membros de algumas lojas de Chambry (como os da loja Sept Amis, subordinada

    ao Grande Oriente de Paris) veiculavam o programa do clube jacobino ou Sociedade dos Amigos da

    Constituio na provncia saboiana.

  • 31

    fornecer detalhes de seu envolvimento (o qual, conforme demonstrou Jean Rebotton13

    ,

    prosseguiu at o incio de 1793, mesmo aps a proibio formal de seu governo a partir

    de dezembro de 1791).

    Assim, se por um lado era praticamente impossvel negar-lhes (aos maons)

    participao em atividades revolucionrias, por outro, Maistre esfora-se em demonstrar

    que isto se deu de forma indireta, ou seja, com os maons fornecendo o modo de

    organizao aos clubes, uma vez que alguns de seus membros eram maons. Quanto s

    lojas da Saboia, o Grand Profs Josephus, como Maistre era designado, admitiu que

    existissem lojas burguesas que acolhiam membros envolvidos em atividades

    sediciosas, mas negou qualquer envolvimento de sua loja nas mesmas.14

    Por fim,

    seguindo a tradio de que a melhor defesa o ataque, o emigrado saboiano dispara a

    seguinte crtica a seu governo na missiva ao amigo Vignet des Etoles:

    Se o rei no fosse servido por tolos nesta matria como em todas as demais, teria sido

    fcil usar as lojas reformadas para inspecionar as outras e descobrir um sem-nmero de coisas;

    porm, com a prevalncia do fatal sistema do medo e da desconfiana geral, os bons sditos,

    paralisados pela suspeita, limitaram-se a resmungar, enquanto os perversos agiram a seu bel-

    prazer, sem que o rei de nada soubesse.15

    No se sabe ao certo o que Vignet des Etoles fez com esta memria, mas o fato

    que o passado manico de Maistre prejudicava sua imagem junto ao governo de

    Turim.

    Em meio a tudo isso, comeara a redao de seus primeiros panfletos

    contrarrevolucionrios, as quatro primeiras Cartas saboianas (as Lettres dun royaliste

    savoisien a ses compatriotes, escritas e publicadas entre abril-julho de 1793), que

    tinham o triplo objetivo de convencer as autoridades piemontesas a reconquistar a antiga

    provncia, galvanizar os habitantes locais a se juntarem s tropas austrossardas, cuja

    invaso estava programada para o vero de 1793 e, por fim (e de maneira implcita),

    convencer o governo de Turim a adotar medidas mais liberais como a maneira mais

    13

    J. Rebotton, Josephus a Floribus during the Revolution, in: R. Lebrun (org.), Maistre Studies (New York: University Press of America, 1988), p. 145.

    14 Conforme observou Richard Lebrun, preocupado em dissipar as suspeitas de participao em

    conspiraes manicas que pesavam sobre si, Maistre omitira o fato de que advogara abertamente pela causa das reformas na memria de 1782, onde propunha, dentre outras coisas, a instruo dos governos pela maonaria. In: R. Lebrun, Joseph de Maistre: An Intellectual Militant, p. 121.

    15 Memria sobre a Franco-Maonaria de 30 de abril de 1793. Citado em R. Lebrun, Joseph de

    Maistre: An Intellectual Militant, p. 121.

  • 32

    eficaz de se preservar do contgio Revolucionrio (anistiando os saboianos republicanos

    pr-franceses e substituindo a velha poltica, caracterizada por ele como a batnecratie

    ou turinismo, por uma atuao mais efetiva junto opinio pblica). No Prefcio

    segunda edio (agosto de 1793), em que o autor reagrupou as quatro primeiras cartas

    publicadas separadamente, Maistre explicitou suas intenes:

    Outrora, a autoridade podia dispensar a cincia, a obedincia, e a reflexo: hoje,

    produziu-se uma grande transformao nos espritos, e essa transformao obra de uma nao

    extraordinria, infelizmente muito influente (...). Nossa situao... bem melhor do que a vivida

    pelos franceses: a revoluo um fruto estranho trazido pela Frana e que ainda no est, a bem

    dizer, aclimatado entre ns (...). preciso trabalhar sobre a opinio; desmistificar as teorias

    metafsicas aos povos..., ensinar-lhes a perceber as vantagens daquilo que possuem; mostrar-

    lhes o perigo de buscar um melhor imaginrio sem calcular os infortnios com os quais pagar

    pelo mesmo.16

    Assim, na interpretao oferecida pelas Lettres, a Revoluo Francesa retratada

    como uma conseqncia dos abusos e fraquezas do Antigo Regime e/ou produto de uma

    ''contaminao'' da opinio pblica local levada a cabo pelos homens de letras.17

    Alm

    de fracassarem em seus objetivos (pouqussimos exemplares das cartas chegaram

    Saboia), as Lettres trouxeram-lhe mais desventuras em relao a seu governo, que no

    apenas ignorou a mensagem implcita sobre a necessidade das reformas, como proibiu

    sua venda no Piemonte por associ-las equivocamente propaganda jacobina.

    Resignado em sua condio de correspondente consular18

    e testemunha das

    agitaes polticas na Sua - bem como das atrocidades praticadas na Saboia e em Lyon

    pelas autoridades em misso do Comit de Salvao Pblica -, Maistre opta por dedicar

    seu raro tempo livre redao da quinta Lettre, uma defesa terica da instituio

    monrquica contra o proselitismo democrtico-republicano francs.

    No final de maro de 1794, enviou o rascunho daquela carta-panfleto ao padre

    refratrio Franois de Bovet (antigo bispo de Sisteron), que lhe recomenda as leituras do

    16

    Citado em J.-Louis Darcel, Apresentao de Joseph de Maistre: crits sur la Rvolution (Paris: PUF, 1989), p. 21.

    17 Os governos da Europa tinham envelhecido e sua decrepitude era bem conhecida apenas para

    aqueles que queriam tirar proveito da situao para a execuo de seus projetos mortais. No havia mais

    coeso, esprito pblico, energia; uma revoluo era inevitvel. Cf: Joseph de Maistre, O.C., VII:84. 18

    Nomeado em trs de agosto de 1793, o cargo equivalia funo de cnsul e garantia-lhe um

    pfio salrio de 100 libras ao ano, apesar do trabalho acachapante a que era submetido leitura e redao de correspondncias e memorandos para informar Turim sobre as condies da Sabia, prestao de ajuda

    humanitria aos emigrados, etc.

  • 33

    Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens e do Contrato Social de

    Rousseau, uma vez que as ideias do genebrino pouco apareciam em seu panfleto.

    Assim, entre julho 1794 e meados de 1795, Maistre trabalhou simultaneamente em dois

    tratados polticos de refutao ao cidado de Genebra, os quais nada mais so seno

    desdobramentos da Quinta Carta saboiana: o De la souverainet du peuple (Da

    soberania do povo) e o De l'tat de nature (Do Estado de natureza)19

    , ambos

    inacabados e igualmente publicados postumamente, em 1870.

    Antes de analisarmos o De la souverainet du peuple, tratado em que o autor das

    Rflexions sur le protestantisme j esboa um vnculo entre filosofia, protestantismo e

    Revoluo, precisamos revisitar o quadro poltico-intelectual em que Maistre estava

    inserido.

    Durante sua estadia na Sua protestante, Maistre esteve em contato com os

    migrs, especialmente com os padres refratrios, cuja reao conservadora

    Constituio Civil do Clero (aprovada em agosto de 1790 aps um dilacerante debate na

    Assemblia Nacional) j contava com uma tradio ideolgica de acusao aos

    protestantes, jansenistas e filsofos anterior prpria Revoluo.

    Ademais, para aqueles refugiados que perderam quase tudo, inclusive os direitos

    de cidadania, o poder espiritual do papa e a religio catlica figuravam como um ltimo

    recurso, um esforo (na melhor tradio proftica do Velho Testamento bblico) de

    preservao de identidade religiosa em tempos de xodo e opresso.

    Assim, a Revoluo apenas lanou mais combustvel numa latente ideologia

    contra-Ilustrada devota, que no tardou em adaptar a teoria conspiratria do parti

    dvot do final do sculo XVIII para o contexto revolucionrio. Como bem demonstrou

    o historiador holands Dale K. Van Kley, os protagonistas desta longa conspirao

    foram facilmente identificados durante as discusses relativas Constituio Civil do

    Clero: os calvinistas, nas figuras dos protestantes Barnave, Necker e Rabaut de Saint-

    Etienne; os filsofos, representados por Mirabeau; e, finalmente, os jansenistas sem

    o surpreendente auxlio dos quais, adverte Van Kley, a Assemblia Nacional jamais

    teria conseguido aprovar uma reforma to radical na organizao da igreja catlica

    francesa -, liderados por Camus, abb Grgoire e Frteau de Saint-Just.20

    Na mesma

    linha, Darrin McMahon sublinhou o fato de que no incio da dcada de 1780 engendrou-

    19

    Com o ttulo de Examen d'un crit de Jean-Jacques Rousseau, acrescentado pelo editor e no

    pelo prprio Maistre. 20

    Cf. Dale K. Van Kley, The Religious Origins of the French Revolution: From Calvin to the Civil

    Constitution, 1560-1791 (New Haven: Yale University Press, 1996), p. 366-367.

  • 34

    se na Frana uma linha de publicao crtica Ilustrao (verdadeiras jeremiadas)

    pronta a ser convertida em discursos contrarrevolucionrios quando fosse chegado o ano

    de 1789. Assim, em grande medida o discurso contrarrevolucionrio derivou do

    discurso contra-Iluminista do ltimo quarto do sculo XVIII.21

    Esta convivncia, permeada por um crescente interesse do emigrado saboiano pela

    leitura dos livros da Bblia, especialmente dos Salmos, do Apocalipse e dos profetas

    Isaas, Ezequiel e Jeremias (como demonstram seus registros de leitura do perodo),

    reforou ainda mais as suscetibilidades catlicas do nosso autor, investindo-o de um

    esprito de proselitismo que o acompanharia at os ltimos dias de sua existncia, como

    o atestam sua expulso da corte do czar Alexander I, em 1817 (devido ao sucesso, um

    tanto perturbador s autoridades ortodoxas russas, do proselitismo catlico do ento

    ministro plenipotencirio saboiano junto s damas da aristocracia local) e, acima de

    tudo, aquela que viria a constituir na obra mais cara a si prprio, as Les Soires de

    Saint-Ptersbourg (1821).

    Isto explica em grande parte a acentuao daqueles elementos embrionrios de sua

    ideologia contra-Iluminista, os quais assumiriam um carter contrarrevolucionrio cada

    vez mais avanado e agudo, razo pela qual no se pode negar que, se por um lado os

    temas da Revoluo como castigo providencial e/ou filha do Protestantismo j estavam

    presentes seja no discurso devoto pr-revolucionrio francs, seja nos crculos

    emigrados, por outro, em nenhum outro escrito contrarrevolucionrio do gnero esta

    acusao foi levada a termos to radicais.

    No menos importantes para a definio do ethos contrarrevolucionrio do

    saboiano foram os testemunhos oferecidos pelas agitaes polticas locais, mormente os

    abalos revolucionrios que, irradiando do centro genebrino, repercutiam em Lausanne.

    Desde o incio da Revoluo, e apesar das censuras impostas pelos respectivos governos

    locais, os suos receberam inmeras publicaes jacobinas, como os libelos do Clube

    Helvtico, formado por patriotas suos exilados em Paris. Na condio de

    correspondente e graas aos contatos com o suo Mallet du Pan e outras importantes

    autoridades diplomticas (mormente inglesas), Maistre tinha pleno conhecimento do

    21

    Darrin McMahon. Enemies of Enlightenment: The French Counter-Enlightenment and the

    Making of Modernity (New York: Oxford University Press, 2001), p. 57-58. Vide tambm Paul Beik, The

    French Revolution seen from the Right (New York: Howard Fertig, 1970).

  • 35

    risco daquele contgio, no menos pelo fato de que vivenciara um processo de

    irradiao revolucionria semelhante na Saboia.

    Genebra, que desde dezembro de 1792 passara ao controle dos partidrios da

    Revoluo (os quais estabeleceram um tribunal revolucionrio antes mesmo dos

    franceses, em fevereiro de 1793), adotou (em fevereiro de 1794) uma Constituio que

    previa uma democracia direta fundada sobre os princpios da soberania popular. Se

    Lausanne, situada no canto de Vaud, no fora imediatamente ganha para a causa

    democrtica, sua populao, a partir de 1795, mostrou-se cada vez mais disposta a se

    liberar da tutela de Berna para, a exemplo de Genebra, se aproximar da Frana

    revolucionria. At que, em novembro de 1797, bem no fim do exlio suo de Maistre,

    as tropas francesas so acolhidas com entusi