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Leitura obrigatória para a UNIDADE II A VOCAÇÃO RACIONALISTA DO OCIDENTE Por: Euclides Guimarães ( 2007) Antes de surgirem as ciências sociais já existia uma longa tradição de pensamento social. De fato a filosofia racionalista inventada na Grécia antiga oferece uma grande herança para todos os saberes desenvolvidos depois. Para que possamos melhor entender a modernidade, assim como a maneira como ela passou a privilegiar o modo científico de explicar as coisas é importante rastrear as tradições de onde aos poucos foi se configurando uma vocação para o modo de pensar que caracteriza a civilização Ocidental. Fique claro que os homens se comportam como comportam em função da forma como pensam e essa é a razão porque existem muitas culturas diferentes e até mesmo por que somos um bicho histórico ( eis a questão epistemológica discutida na unidade anterior). Ser histórico significa viver de forma diferente a cada geração. Porque sou e vivo de forma bem diferente de como viveu meu avô e meus ancestrais? Porque a sociedade humana é histórica. Meu avô acreditava em coisas diferentes daquelas em que eu acredito e agia de acordo com aquilo em que ele acreditava. E devo compreender que as pessoas contemporâneas de meu avô eram mais parecidas com ele, uma vez que essas crenças e valores que o seu comportamento espelhava não eram apenas dele, mas de seu tempo. Se você tivesse nascido em outra época ou em outro lugar certamente você seria outra pessoa. Reserve-se a cada um suas peculiaridades, pois que cada ser humano responde a seu modo aos estímulos que o mundo dá, e podemos dizer que todo homem é um produto de seu tempo. Isso significa que a maneira como cada um se comporta é reveladora de seu caráter, mas é também repleta das marcas do modo como cada tempo proporciona orientações a sua conduta. Mesmo sabendo que as mudanças são gradativas, para efeito de estudo, vale a pena determinar marcos que foram decisivos para compreender como se forma o modo de pensar da Civilização Ocidental, sendo que nós, brasileiros, dela fazemos parte desde quando as naus de Cabral por aqui aportaram.

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Leitura obrigatória para a UNIDADE II

A VOCAÇÃO RACIONALISTA DO OCIDENTEPor: Euclides Guimarães ( 2007)

Antes de surgirem as ciências sociais já existia uma longa tradição de pensamento social. De fato a filosofia racionalista inventada na Grécia antiga oferece uma grande herança para todos os saberes desenvolvidos depois. Para que possamos melhor entender a modernidade, assim como a maneira como ela passou a privilegiar o modo científico de explicar as coisas é importante rastrear as tradições de onde aos poucos foi se configurando uma vocação para o modo de pensar que caracteriza a civilização Ocidental. Fique claro que os homens se comportam como comportam em função da forma como pensam e essa é a razão porque existem muitas culturas diferentes e até mesmo por que somos um bicho histórico ( eis a questão epistemológica discutida na unidade anterior). Ser histórico significa viver de forma diferente a cada geração. Porque sou e vivo de forma bem diferente de como viveu meu avô e meus ancestrais? Porque a sociedade humana é histórica. Meu avô acreditava em coisas diferentes daquelas em que eu acredito e agia de acordo com aquilo em que ele acreditava. E devo compreender que as pessoas contemporâneas de meu avô eram mais parecidas com ele, uma vez que essas crenças e valores que o seu comportamento espelhava não eram apenas dele, mas de seu tempo. Se você tivesse nascido em outra época ou em outro lugar certamente você seria outra pessoa. Reserve-se a cada um suas peculiaridades, pois que cada ser humano responde a seu modo aos estímulos que o mundo dá, e podemos dizer que todo homem é um produto de seu tempo. Isso significa que a maneira como cada um se comporta é reveladora de seu caráter, mas é também repleta das marcas do modo como cada tempo proporciona orientações a sua conduta.

Mesmo sabendo que as mudanças são gradativas, para efeito de estudo, vale a pena determinar marcos que foram decisivos para compreender como se forma o modo de pensar da Civilização Ocidental, sendo que nós, brasileiros, dela fazemos parte desde quando as naus de Cabral por aqui aportaram.

Vamos então rastrear o pensamento ocidental primeiro constatando que nele se revela uma vocação. A essa vocação daremos o nome de RACIONALISMO.

I A CONTRIBUIÇÃO DOS GREGOS CLÁSSICOS

Nem sempre o homem pôde ser dar ao luxo de tentar explicar as coisas. Em tempos primais talvez a luta pela sobrevivência ocupasse todo o nosso tempo. Foi preciso então domesticar a natureza, inventando armas, ferramentas e objetos e também dominar o fogo para que nossas indagações sobre o universo a vida e tudo mais pudessem ser explicadas. Por muitos milênios as explicações foram exclusivamente mágicas ou míticas, de forma que os fenômenos da natureza, assim como o nascimento e a morte, eram explicados como resultado da ação de forças sobrenaturais. A própria idéia de Deus como criador onipresente demorou a surgir e depois demorou para ser amadurecida. Sem necessariamente romper com as explicações sobrenaturais, alguns pensadores gregos, por volta de 600 A.C.,

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começaram a buscar outra forma de explicar as coisas. Começaram então a usar a lógica.

Uma explicação lógica difere-se de uma explicação sobrenatural, na medida em que associa os acontecimentos com causas que não são as vontades divinas, mas a própria dinâmica da natureza, quando se quer explicar fenômenos naturais, ou da cultura, quando se quer explicar fenômenos humanos ou sociais.

Por que o Gregos? Podemos considerar que eles tinham algo de moderno 2000 anos antes da modernidade. Isso porque era um povo que se relacionava comercialmente com todos os outros povos que viviam a sua volta. A civilização grega surgiu em pequenas ilhas do Mediterrâneo em meados do segundo milênio AC. Nessa época as margens desse mar estavam repletas de grandes civilizações como a egípcia e a fenícia, povos desenvolvidos capazes de grandes feitos tecnológicos, como a indústria naval e a agricultura de cereais. Sem condições físicas para desenvolver empreendimentos de grande porte, os gregos se viravam muito bem desde que inventaram o comércio exterior, comprando os produtos das melhores habilidades de um povo e vendendo a outro. Foi assim que também desenvolveram o esporte como uma forma civilizada de substituir a guerra, induzindo os povos inimigos que em seus portos se encontravam, a realizar torneios em vez de batalhas.

Todas estas habilidades diplomáticas proporcionaram aos gregos uma visão mais ampla dos talentos humanos, de onde se origina seu humanismo. É, no entanto, um humanismo imperfeito, pois apenas valoriza o talento dos povos cujos saberes e técnicas inspiram sua admiração. Os povos que eles não identificavam como engenhosos não eram dignos de sua admiração, sedo assim considerados sub-homens, a quem poderiam subjugar ou escravizar. O humanismo só se estenderá a toda a humanidade alguns séculos depois, com os ensinamentos de Cristo.

A busca por explicações lógicas levou os gregos a uma incrível codificação do saber até hoje utilizada na ciência e no cotidiano: a geometria. Com suas fórmulas e teoremas os gregos antigos lançaram bases para todo o saber que os sucedeu, também fundando os estudos sobre a condição humana.

Outra contribuição lapidar dos gregos clássicos é o conceito de imanência. Com tal conceito pôde-se pela primeira vez pensar o universo como uma máquina regida por leis racionais, onde tudo o que acontece obedece a uma lógica pré-fixada. Eis, em essência, o sentido da imanência como proposto por Platão: as coisas concretas não ganham existência sem antes ter uma essência. O que torna cada geração de tigres tão previsível em sua compleição física e comportamento, deve-se ao fato de que, antes do primeiro tigre e valendo para todos até o último, já existia a “tigridade”.

II A CONTRIBUIÇÃO MEDIEVAL RENASCENTISTA

A decadência das grandes civilizações da antiguidade é marcada pela expansão do cristianismo na Europa. Assim que o evangelho começou a ser ensinado em Roma o cristianismo se expandiu com força assustadora, não demorando mais que alguns séculos para que toda a Europa se tornasse cristã. Embora todos os fundamentos éticos do cristianismo estejam no Evangelho, uma religião precisa ser um saber completo, em outras palavras, a religião é um saber que não deixa nenhuma pergunta sem resposta. Nesse sentido, há que se considerar que Cristo não se pronunciou sobre todos os assuntos, de sorte que coube aos clérigos medievais desenvolver as explicações que fariam do catolicismo uma doutrina completa.

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Uma contribuição fundamental de Cristo ao pensamento social foi o conceito de “humanidade”. Já apontamos que o humanismo grego é incompleto, pois falta a ele exatamente aquilo que só o cristianismo iria trazer. Em suma, se é certo que todos somos filhos de um único Criador, somos todos irmãos, portanto não há como alimentarmos discriminações entre nós, todo ser humano é digno da mesma piedade e da mesma compaixão.

O que a escolástica medieval acrescentou a isso envolve as influências de outras doutrinas, sendo o judaísmo e a filosofia grega suas principais referências. Interessa-nos, para a compreensão da vocação racionalista do Ocidente, observar a forma como se deu a influência grega. É nesse ponto que devemos retornar à idéia de imanência. Nos tempos de Santo Agostinho, quando a Idade Média apenas começava, as leituras de Platão associadas as das escrituras sagradas, possibilitaram que se chegasse a uma sábia conclusão: se existe uma lei racional regendo os acontecimentos do universo e se o universo é o verso de um Único Autor, então a imanência não é nada mais que a lei de Deus. Estavam abertos os caminhos para um pensamento que encontra sua maturidade mil anos depois, no período conhecido como Renascimento. Concebe-se então a Deus como um Geômetra universal, que usou a lógica para configurar o grande projeto em resultado do qual surgiu e se mantém toda a criação.

Resta agora entender a função do homem nesse processo. Ora, se Deus nos deu a faculdade potencial de desenvolver a razão, isso outorga uma missão para o homem: compartilhar com Ele a maravilha da criação. De posse dessa idéia, estudar passa a ser uma das mais importantes tarefas do homem. Certamente a profusão de conhecimentos que caracteriza a Renascença se deve a tal concepção. Também por isso a arte renascentista alcança as mais altas técnicas de representação. Poder repetir a beleza da criação passa a ser considerado o dom supremo de demonstração da capacidade humana de compartilhar a lógica divina.

Resumindo o raciocínio: a razão mora em dois lugares, no mundo como ato, como a própria realidade das coisas e dos acontecimentos e no homem como potência. Desenvolver essa potência torna-se a grande missão para a qual Deus criou o homem. Eis o motivo também que levou Galileu a sua famosa frase: “a matemática foi o alfabeto com o qual Deus descreveu o mundo”.

III A CONTRIBUIÇÃO ILUMINISTA

Quando se estuda muito nem sempre o que se aprende se traduz em certezas ou respostas prontas. Costuma as vezes acontecer o contrário, ou seja, acumular dúvidas em vez de certezas. O conhecimento não deve ser entendido como puro acúmulo de informações ou como algo que nos municia de explicações definitivas. É, ao contrário, algo que nos ajuda a elaborar boas perguntas e que nos municia a interagir, a debater e a buscar outros caminhos para compreender os acontecimentos que nos envolvem. Abrir a cabeça e não fecha-la em respostas prontas, eis para que serve o pensar.

Pois bem, foi isso o que se começou a perceber quando os sábios renascentistas lançaram-se de cabeça na tentativa de levar às últimas conseqüências a missão de estudar para compartilhar o sorriso divino. Foi assim que se descobriu que a terra não é o centro do universo, que a lógica também pode conduzir ao erro e que a experiência humana depende de contingências históricas e particulares. Estamos aqui a escrever um livro, mas ele se desdobrará em muitos, conforme a interpretação de cada leitor, conforme a serventia que terá para cada um. Foi com descobertas como essas que as certezas renascentistas deram lugar às dúvidas barrocas. Mas não se pode falar que os pensadores dos séculos XVI e XVII constataram tais coisas com

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serenidade, afinal ainda se sonhava com a possibilidade do encontro definitivo entre a mente humana e a divina. Aceitar nossas ignorâncias e limitações nunca foi fácil, menos ainda quando se associava diretamente a sabedoria com a salvação. Por isso o barroco foi um drama.

O esforço dos pensadores se voltou então a procurar garantias para a veracidade do saber e isso é o que se procura quando se reflete sobre métodos. O método, grosso modo, pode ser entendido como uma “vacina contra o erro” ou como tentativa de disciplinar o pensamento para que ele não incorra tão ingenuamente no erro. Datam da virada do séc XVI ao XVII dois dos mais importantes métodosque a filosofia social desenvolveu, trazendo-nos para bem mais perto do conhecimento científico: o “racionalismo” de Descartes e o “empirismo” de Bacon. Esse último, que agora passamos a descrever em linhas breves e gerais, lançou as bases para que nos lançássemos na aventura da modernidade.

Para Bacon “o homem pode tanto quanto sabe”, pois o que aprendemos sobre as coisas nos permite intervir sobre elas. Por exemplo, sem conhecer a lei da gravidade e a resistência da atmosfera, jamais poderíamos inventar máquinas voadoras ou sem conhecer os micróbios, jamais poderíamos combater as doenças por eles provocadas. Então a única coisa que me garante se uma explicação é verdadeira é poder transforma-la em aplicação. Isso quer dizer que a verdade de uma explicação só pode ser confirmada por seus resultados práticos. É com esse raciocínio que chegamos ao século XVIII, conhecido como o século das luzes.

A possibilidade de um conhecimento efetivo que não apenas identifique causas, mas que possa funcionar como causa de acontecimentos desejáveis e ainda, como forma de evitar acontecimentos indesejáveis, traz uma sensação de potência muito grande. É com essa sensação que se passa a crer na possibilidade de o homem domesticar completamente a natureza pela via da tecnologia, e também coordenar seu próprio destino por meio das instituições organizadas da sociedade civil.

O iluminismo aparece assim como um projeto de civilização, sintetizando e sistematizando todo o racionalismo que o antecede e, ao mesmo tempo, estabelecendo as bases sobre as quais se erguerá o tempo futuro, a modernidade. Assim a razão ganha uma nova significação. Além de nos revelar a lógica da criação nos provê de condições para continuar a obra da criação. A questão agora se estende para além do estudo, agora o fazer é tão importante quanto o saber. Se antes a responsabilidade do homem era fundamentalmente estudar, agora passa a ser trabalhar. É a engenhosidade humana, tanto quanto a inteligência, o que se vai valorizar.

Outra importante contribuição do iluminismo é o conceito de indivíduo como cidadão. A cidadania pressupõe um indivíduo racional, consciente e responsável pelos seus atos que, de um lado, por sua própria índole, cumpre seus deveres políticos e sociais, por outro, por seu próprio espírito empreendedor, faz de sua vida o resultado de suas escolhas. Esse assunto é tratado com mais pormenores em outros capítulos e unidades de nosso curso.

IV CIENTIFICISMO

Pelo que acabamos de ver, a modernidade é o resultado de um projeto. Mas é da natureza dos projetos sofrerem desvios no curso de sua implantação. Se isso vale para um projeto de pesquisa ou para um plano pessoal ou empresarial, vale mais ainda para um projeto de civilização. Sabemos que no século XIX, com a implantação

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da Revolução Industrial, do Estado de Direito e das sociedades de livre mercado, aparecem os “efeitos colaterais” dessa implantação. Para dar conta dos tantos problemas que surgem ou que se agravam com a modernidade a vocação racionalista do Ocidente atinge seu apogeu, quando surgem as ciências modernas com seus métodos e diagnósticos, buscando apresentar soluções ou, pelo menos, formas de minimizar esses problemas.

A grande diferença entre o saber científico que pauta os tantos campos do saber desenvolvidos a partir do século XIX, e o saber filosófico que o antecede é levar a questão da efetividade a suas últimas conseqüências, criando métodos específicos para cada campo do conhecimento e propondo terapias para os males então identificados. Se o iluminismo é propositivo o cientificismo passa a ser terapêutico, bem aos moldes do que demanda a modernidade industrial, tempo de máquinas, de jornadas de trabalho, de instituições disciplinares, de pessoas como formigas a transitar pelas ruas, de solidões românticas, de engrenagens, trânsito e velocidade (sobre esse último item, vamos nos dedicar ao cientificismo na próxima unidade, a unidade III, contemplando as duas principais correntes do cientificismo para as ciências sociais, O Socialismo/marxismo e o Positivismo).

FIM