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#224 EDIÇÃO OÁSIS ANIMAIS TÊM EMOÇÕES, SÃO INTELIGENTES E SABEM QUEM SÃO A CONSCIÊNCIA DOS ANIMAIS O PIRÓGRAFO MÁGICO Adriano Colangelo em mostra no Instituto Italiano de Cultura PAIS QUE TUDO QUEREM, NADA TERÃO Eles podem condenar os filhos a uma existência desesperada e infeliz SENHORAS DA PRISÃO PERPÉTUA Uma música de mulheres encarceradas

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#224

EDIÇÃO OÁSIS

ANIMAIS TÊM EMOÇÕES, SÃO INTELIGENTES E

SABEM QUEM SÃO

A CONSCIÊNCIA DOS ANIMAIS

O PIRÓGRAFO MÁGICOAdriano Colangelo em mostra no Instituto Italiano de Cultura

PAIS QUE TUDO QUEREM, NADA TERÃOEles podem condenar os filhos a uma existência desesperada e infeliz

SENHORAS DA PRISÃO PERPÉTUAUma música de mulheres encarceradas

OÁSIS . EDITORIAL

POR

EDITOR

PELLEGRINILUIS

A s grandes tradições espirituais do Oriente, hindu-ísmo, budismo, taoísmo, sempre afirmaram que o dom da consciência não pertence apenas à espécie

humana. Para essas escolas de sabedoria, a consciência é um atributo comum a todo ser vivo. O que muda é apenas o seu grau evolutivo.

Agora, é a nossa boa ciência cartesiana que, baseada em provas cada vez mais irrefutáveis, afirma que pelo menos os animais superiores são seres sensíveis, conscientes daquilo que acontece ao redor e conscientes de si próprios como indivíduos.

Nossa matéria de capa trata do assunto mostrando, para co-meçar, um vídeo no qual uma elefanta do zoo do Bronx, em

OS ANIMAIS SUPERIORES SÃO SERES SENSÍVEIS, CONSCIENTES DAQUILO QUE ACONTECE AO REDOR, E

CONSCIENTES DE SI PRÓPRIOS COMO INDIVÍDUOS

OÁSIS . EDITORIAL

POR

EDITOR

PELLEGRINILUIS

Nova York, demonstra reconhecer a si própria diante de um espelho. Macacos antropomórficos e golfinhos já tinham pas-sado antes pelo mesmo teste e foram aprovados.

O “teste do espelho” é apenas um dos passos importantes nos estudos que estão levando os cientistas a compreender muito mais sobre a mente dos animais, rechaçando uma ve-lha visão que os considerava como autômatos guiados apenas pelo instinto. Com efeito, os etólogos descobriram compor-tamentos de nenhum modo automáticos, e que muitas espé-cies possuem uma vida social e emotiva muito complexa.

A tal ponto que, em julho de 2012, proeminentes pesquisa-dores ligados a todas as áreas das neurociências se reuniram para dar uma nova redação à “Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos”. Tal providência foi considerada necessária levando-se em conta as provas a favor da realidade da consciência dos ani-mais, antes de tudo para mamíferos e pássaros.

Além de mostrar fotos belíssimas do fotógrafo Tim Flach, especializado em animais, nossa reportagem apresenta dois outros vídeos que documentam a inteligência e a sensibilida-de de vários bichos.

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DOS ANIMAISAnimais têm emoções, são inteligentes e sabem quem são

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que existe de extraor-dinário em um elefante que se olha no espelho? A cena por certo não é comum nas florestas e savanas. Apesar disso, Happy, uma elefanta asi-ática submetida ao “teste do espelho” no zoológico

do Bronx, em Nova York, mostrou que, ao ver seu próprio reflexo, ela sabia perfeita-mente de quem se tratava. Nesse teste, os animais são marcados com uma sinal em seu corpo que eles não po-dem ver a não ser olhando-se no espelho. O teste é banal para nós, Homo sapiens, mas não o é para os animais. Reconhecer que ao olhar o reflexo está vendo a sua própria imagem, e não a de um outro in-divíduo, tem um significado importante: implica que o animal tem consciência de si, que compreende o fato de ser um in-divíduo diverso dos demais. A elefanta Happy superou facilmente o teste: ao ver no espelho uma cruz branca desenhada na sua cabeça, ela imediatamente tocou a cruz com a tromba.

Vídeo: Happy se reconheceu no espelho

Até o experimento com Happy, levado a cabo em 2006 pelos cientistas Joshua Plotnik, Frans de Waal e Diana Reiss, apenas macacos antropomórficos e cetá-ceos como os golfinhos tinham passado no teste. Ele constituiu um importante passo avante nos estudos que estão levando os cientistas a compreender muito mais so-bre a mente dos animais, rechaçando uma velha visão que os considerava como

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Os elefantes se reconhecem no espelho, os chimpanzés têm muitas personalidades, cavalos conseguem fazer operações aritméticas simples. Os etólogos, estudiosos do comportamento animal, declaram: Poucos fazem ideia de quantas coisas os corvos e os golfinhos têm em mente

POR: EQUIPE OÁSISFOTOS: TIM FLACH, LIVRO “MORE THAN HUMAN”

de tudo para mamíferos e pássaros.

As emoções animais existem Os animais são dotados de emoções e inteligência: os cientistas viram macacos que não abandonam o cor-po dos filhos mortos, ou corvos, golfinhos e lontras que manipulam jogos e brinquedos durante horas. “Não mais nos perguntamos se um cão ou um chim-panzé experimentam alegria, dor, raiva ou ciúmes. As emoções animais existem, e elas evoluíram para ser um “colante social”, afirma em artigo Mark Beko-ff, docente de ecologia da Universidade do Colorado (EUA). “Alguns animais parecem inclusive serem do-tados do sentido do humorismo e o de sentir-se ma

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autômatos guiados apenas pelo instinto. Com efeito, os etólogos descobriram comportamentos de nenhum modo automáticos, e que muitas espécies possuem uma vida social e emotiva muito complexa. Hoje, a maior parte dos cientistas defende a ideia de que os animais são seres sensíveis, conscientes daquilo que acontece ao redor, e conscientes de si próprios como indivíduos.

A tal ponto que, em julho de 2012, proeminentes pes-quisadores ligados a todas as áreas das neurociências se reuniram para dar uma nova redação à “Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Hu-manos e Não Humanos” (*1). Tal providência foi con-siderada necessária levando-se em conta as provas a favor da realidade da consciência dos animais, antes

ravilhado”. Em relação à inteligência, as provas não faltam: existem corvos que colocam nozes sobre as estradas e esperam que os automóveis que passam as esmaguem para abri-las; chim-panzés que conseguem se comunicar com os humanos; elefantes que colaboram em tarefas úteis para o homem. Muitos animais sabem usar instrumentos e ferramentas, e conseguem resolver problemas novos, o que é um claro si-nal de inteligência.

O passo crucial é compreender se além de pos-suir emoções os animais possuem também consciência de si próprios. “A definição de consciência é complicada e existem diferentes visões a respeito. Em última análise, a única pessoa que certamente tem consciência de si somos nós mesmos”, considera Helen Proctor, responsável científica da Sociedade Mundial para a Proteção dos Animais. Ela completa: “Segundo muitos pesquisadores existem provas con-cretas a favor da consciência dos animais”. Exemplo dela é, como dissemos acima, o teste do es-pelho: entre os mamíferos foram aprovados chimpan-zés, bonobos, orangotangos, gorilas, elefantes, gol-finhos e orcas. Além dos humanos, dos 18 meses de idade em diante.

Vídeo: animais diante do espelho

Em 2008, um pássaro entrou para a lista: a pega-ra-buda. O caso foi inclusive citado na Declaração de

Cambridge. Os pássaros mostram características que, acreditava-se, exigissem um neocórtex como o dos mamíferos, ou seja a parte do cérebro que se desen-volveu mais recentemente no processo da evolução e que é considerada a sede das funções cognitivas supe-riores. Os pássaros não possuem o neocórtex, mas se-gundo os cientistas que assinaram a Declaração, eles apresentam de qualquer modo uma evolução paralela de consciência. Adultério em silêncio

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Outros comportamentos revelam que, em muitas es-pécies, os animais sabem muito bem quem são e quem está ao redor deles. Em algumas espécies de macacos a traição (de um macho subordinado com uma fêmea que pertence ao harém do macho alfa) acontece de escondido e sem barulho, porque os dois exemplares envolvidos sabem que se forem descobertos as con-sequências podem ser graves. O mesmo vale para os pássaros. O gaio-comum (Garrulus glandarius) ame-ricano enterra o alimento que encontra: se um outro

gaio o vê, muda de esconderijo. E aumentam as pro-vas de que em muitas espécies cada indivíduo possua uma personalidade diferente, como entre os chim-panzés.

Os cientistas reunidos em Cambridge levaram em conta também as bases biológicas. A Declaração afir-ma que “os humanos não são os únicos a possuir substratos neurológicos que geram a consciência”; eles existem também em animais não humanos, in-cluindo todos os mamíferos e os pássaros, e muitas outras criaturas, inclusive os polvos”. Estes últimos são capazes de aprender, usam “instrumentos” (como cascas de coco para fazer refúgios) e brincam. Um nú-mero cada vez maior de pesquisadores são a favor

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da consciência animal e sus-tentam que “os homens têm o mesmo tipo de funções que possuem outros animais. São provas importantes que indi-cam como, possuindo o mes-mo cérebro, embora menos complexo, os animais são tão conscientes quanto nós mes-mos”, como afirma Helen Proctor.

Diferença é de quantida-de, não de qualidade

Em resumo, temos o mesmo tipo de cérebro para elaborar sinais e controlar comporta-mentos, embora em diferen-tes estágios de evolução, da mesma forma que possuímos os mesmos olhos ou os mesmos receptores da dor. É isso que se chama “con-tinuidade evolutiva”, ligada àquilo que afirmava Char-les Darwin: “Entre homens e animais a diferença é de quantidade, não de qualidade”.

O debate no entanto permanece aberto e, apesar das evidências, alguns cientistas ainda hesitam em acei-tar que os animais possuam uma real consciência de si mesmos . “Pode-se dizer que entre nós e os animais é sempre possível um salto evolutivo”, diz Giorgio Vallortigara, diretor do Centro Mente/Cérebro, de Trento, Itália. “E que nós possuímos características,

como a experiência lúcida dos atos que cometemos e daquilo que sentimos, que nos outros animais não existem. Os animais podem perceber o mundo de ma-neira diversa da nossa e comportar-se de modo ade-quado mesmo sem ter uma experiência consciente”. O passo sucessivo da ciência é se perguntar por que os animais evoluíram a consciência. Pois, prossegue Vallortigara, “ainda é pouco claro o que ela poderia fornecer de tão útil no comportamento social”.

Alguns benefícios já foram considerados. Por exem-plo, muitos animais que demonstram ter consciência

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de si e dos outros pertencem a espécies que têm vida social muito complexa: os macacos antropomórficos, os corvídeos como as pegas e os corvos, os golfinhos e os elefantes. Os cientistas salientam como as espécies que superaram o teste do espelho mostram empatia e ajudam os membros do grupo. Ter consciência de si possibilitaria, portanto, formar comunidades mais unidas, dominando quem não tem condições de gerir as relações sociais e colaborando para obter alimento e poder.

(*1) http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511936-declaracao-de-cambridge-sobre-a-cons-ciencia-em-animais-humanos-e-nao-humanos

Veja o vídeo aqui

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O PIRÓGRAFO MÁGICOAdriano Colangelo em mostra no Instituto Italiano de Cultura

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uando, em meados da década de 1960, Adria-no Colangelo olhou pela primeira vez para aquela ponta de metal incandes-cente cujo nome técnico é pirógrafo, certamente não imaginou que aquele encontro selaria o casa-

mento para toda a vida entre um artista e uma ferramenta de arte.

Mais que uma ferramenta, aquela peque-na extremidade rubra, vibrando em altís-simas temperaturas, rapidamente se tor-naria um quinto membro do artista, como uma nova extremidade do seu corpo, atra-vés da qual todo o temperamento ígneo de Adriano pode se manifestar e dar o seu recado ao mundo.

Após ter iniciado sua carreira com pintu-ra a óleo sobre tela e madeira, Colangelo desenvolveu a pirografia inicialmente de forma monocromática sobre madeira, ve-ludo e papel. Na década de noventa acres-centou nanquim colorido sobre papel e cartão como fundo cromático. A observa-ção na linha do tempo dos seus trabalhos mostra uma curiosa evolução e também um fenômeno quase surreal: o pirógrafo, nas suas mãos, transforma-se também em lápis, bico de pena, pincel, espátula e, in-clusive, cinzel – basta passar suavemente os dedos sobre a superfície de algumas das suas pirografias para se perceber al-guma tridimensionalidade típica dos rele-vos.

A plasticidade do pirógrafo

Foi graças a essa incrível plasticidade do

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Um dos mais raros e interessantes artistas plásticos da atual cena brasileira, Adriano Colangelo inaugura importante exposição de suas pirogravuras no Instituto Italiano de Cultura, em São Paulo (*)

POR: LUIS PELLEGRINIFOTOS: LAMBERTO SCIPIONI

pirógrafo que ele conseguiu expressar, tanto em su-portes de madeira quanto papel e cartão, o extraordi-nário mundo que o habita. Dele faz parte toda a tradi-ção da arte europeia, sobretudo italiana renascentista e clássica, absorvida e metabolizada graças a muitos anos de estudos teóricos e práticos.

Uma segunda galáxia invadiu a mente e o coração de Adriano Colangelo quando ele chegou ao Brasil, pou-co mais que adolescente: a da natureza brasileira. Nossas terras negras e vermelhas, os verdes das flo-restas, os azuis do céu, as explosões das auroras e dos crepúsculos brasileiros, toda a pujança quente e úmi

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O pirogravador Adriano Colangelo

A mão e o pirógrafo

da de um universo natural feminino por excelência o seduziram e intoxicaram para sempre.

Por fim, um terceiro ciclo de experiências existenciais completou o arsenal de vivencias que seria sintetizado na obra de Colangelo: o mundo esotérico dos misté-rios e dos vôos profundos nos segredos da alma e do espírito. Se os estudos acadêmicos serviram para lhe dar a necessária base técnica e cultural, se o contato com o mundo natural brasileiro nele potencializou a força vital da libido e o arroubo criativo, a experiên-cia dos planos esotéricos determinou em boa parte o conteúdo essencial manifestado em suas pirografias. Impossível entender o significado da mensagem de Adriano Colangelo sem levar isso em conta. É o que quer dizer a profusão de ninfas, náiades, nereidas,

gigantes, faunos, duendes, cupidos, erínias e todas as demais presenças mitológicas que são quase constan-tes em seus trabalhos.

Adriano criou seu próprio estilo

Impossível também encaixar com precisão Adria-no Colangelo em alguma escola estilística das artes plásticas. Melhor será dizer que ele criou seu próprio estilo, fundindo elementos absorvidos de escolas an-teriores e pondo em ação o seu próprio poder criati-vo. Como resultado, Adriano não é tradicional, nem é moderno; não é exatamente figurativo, nem abstra-to; não é expressionista, nem impressionista... É... Adriano Colangelo.

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Esta seleção de obras suas exposta nesta belíssima mostra organizada pelo Instituto Italiano de Cultu-ra de São Paulo me proporcionou, não sei bem por que, o mesmo impacto e prazer que experimentei de recente ao viajar numa série de fotografias obtidas pelo telescópio espacial Hubble. O engenho genial da

NASA captou lances extraordinários do espaço sideral repleto de estrelas, planetas, cometas e demais seres luminosos que o habitam. Seres análogos habitam o espaço infinito que existe no interior de cada um de nós. A diferença é que Adriano Colangelo, com o au-xílio do seu pirógrafo mágico, consegue expressá-los para todos nós.

(*) A Magia Pirográfica de Adriano Colange-lo, com curadoria de Lamberto Scipioni, será inaugurada na quinta-feira, dia 18 de junho, a partir das 19 horas no Instituto Italiano de Cultura São Paulo, Avenida Higienópolis, 436, SP. www.iicsanpaolo.esteri.it Visitação: De 19 de junho a 17 de julho de 2015, de segun-da a quinta, das 10H00 às 13H00 e das 15H00 às 17H00

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PAIS QUE TUDO QUEREM, NADA TERÃOEles podem condenar os filhos a uma existência desesperada e infeliz

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alvez porque a alternativa seja demasiado horrível de ser encarada, nos conven-cemos de que aqueles que detêm o poder sabem o que estão fazendo. A crença numa inteligência supe-

rior que nos orienta e guia é muito difícil de ser contestada. Sabemos perfeitamente que as con-dições de vida se deterioram a cada dia. Hoje, a

maioria dos jovens tem pouca perspectiva de vir a possuir uma casa própria, ou até mesmo de alugar uma moradia decente. Empregos interessantes são espatifados e fragmentados através de um taylorismo (*) digital que torna cada fragmento uma atividade repetitiva, te-diosa e cansativa.

O mundo natural, cujas maravilhas melho-ram nossas vidas, e do qual depende a nossa sobrevivência, está sendo dilapidado a uma terrível velocidade. Aqueles a quem apela-mos, no governo e na elite econômica, não detém esse declínio; eles o aceleram. O siste-ma político-social que dá origem a tudo isso é sustentado por uma aspiração principal: a fé, quase sempre cega, de que se nos esforçarmos o bastante acabaremos nos integrando à elite, até mesmo quando os padrões de vida decli-nam e a imobilidade social a cada dia mais se petrifica. Mas a que estamos aspirando? A uma vida melhor do que a que temos, ou pior?

Os Dez Mandamentos do Poder

Há pouco, uma nota de um analista do grupo Barclays’ Global Power and Utilities, de Nova York, vazou. A mensagem era dirigida a estu-dantes que começavam um curso intensivo de verão, e ela oferece uma visão da cultura tóxi-ca para a qual eles estavam sendo induzidos.

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Venda a sua liberdade, suprima a luz do dia, viva para trabalhar, e você também poderá fazer parte de uma elite intoxicada e paranoide

POR: GEORGE MONBIOT (JORNALISTA, ESCRITOR E AMBIENTALISTA)FONTE: THE GUARDIAN, LONDRES

“Quero apresentar a vocês os Dez Mandamentos do Po-der... Durante nove semanas vocês irão viver e morrer por eles... Esperamos que você seja um dos últimos a ir embo-ra a cada noite, não importa o que... Recomendo que você traga um travesseiro para a sala de aula pois ele fará com que dormir debaixo da sua mesa de trabalho seja muito mais confortável... Este curso intensivo significa realmente assumir um compromisso com sua mesa de trabalho... um dos alunos pediu à organização para ser liberado durante um fim de semana para participar de uma reunião familiar – a resposta foi que ele poderia ir, desde que amarrasse o seu telefone celular no pulso e a sua mesa de trabalho às costas... Acabou o tempo de brincadeiras e agora é hora de apertar o cinto de segurança”.

Acabou o tempo de brincadeiras... Mas será que para os jovens que faziam o curso esse tempo algum dia começou? Se esses alunos têm o tipo de pais descrito em artigo publi-cado há poucas semanas no jornal Financial Times, certamente não. O artigo falava de um novo ofício que entra na moda: o “consultor de berçário” (nursery consultant). Pais entregam seus filhos a esses profissionais que prometem – cobrando R$ 1.400,00 a hora – treinar os pequenos e inseri-los no caminho certo para que, um dia, façam parte de uma elite univer-sitária.

Espanhol e chinês mandarim aos dois anos

Enquanto isso, no Reino Unido, no campo da Saúde Men-tal, a demanda de leitos para crianças aumentou 50 % nos últimos tempos. Mesmo assim, o país ainda não conseguiu atender os pedidos de socorro de muitos pais que, quando os filhos tinham seis meses de idade, já tinham decidido que eles iriam para a Universidade de Cambridge e, em seguida, entrariam para o Deutsche Bank. Nem para aque-les pais cuja filha de dois anos “tinha um tutor com quem passava duas tardes por semana para melhor desenvolver o aprendizado da matemática superior e a alfabetização, bem como, nas demais tardes, praticar exercícios de lei-tura, de correta pronúncia dos fonemas, mais aulas de dramatização, de piano, de francês para iniciantes, sem falar na natação e no balé”. Os pais estavam considerando adicionar também aulas de espanhol e chinês mandarim quando a garota surtou. “A menina estava tão esgotada e

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amedrontada que, quando chegou na clínica, não conse-guia abrir a boca”. O problema não é apenas britânico. Em Nova York, trei-nadores-animadores cobram 450 dólares (cerca de R$ 1.500,00) a hora para treinar crianças pequenas em habi-lidades sociais que “podem ajudá-las na admissão às mais prestigiosas escolas privadas”. Entre outras coisas, essas crianças aprendem a esconder traços que poderiam sugerir que elas estão dentro do espectro do autismo, o que redu-ziria as suas chances de seleção.

Da infância até a idade de procurar emprego, no jovem é incutido um condicionamento de negação da vida e do

amor. Sem se preocupar com a alegria e a feli-cidade, no cerne dessa mentalidade pontifica uma ambição que é ao mesmo tempo deses-perada e inútil. Tudo que essa ambição pode-rá proporcionar não compensará o seu custo: a perda da infância, da vida em família, das alegrias do verão, do trabalho detentor de sig-nificado, da sensação de se chegar a alguma coisa ou lugar, de realmente viver o momento existencial.

Separação dos alunos

Para a salvaguarda da atual cultura tóxica, a economia é redefinida, o contrato social é reescrito, a elite é liberada dos impostos e dos regulamentos, e de todas as outras restri-ções impostas pela democracia. Para onde a elite vai, somos induzidos a segui-la. Como, segundo se informou, o regime de avaliação

dos alunos nas escolas primárias no Reino Unido era de-masiado permissivo, no ano passado a Secretaria de Edu-cação anunciou um novo teste para alunos de quatro anos de idade. Uma escola primária em Cambridge logo adotou a novidade: separação dos alunos em diferentes classes desde os quatro anos de acordo com as tendências, habi-lidades e capacidades neles detectadas. Logo depois, um discurso da Rainha apertou ainda mais o parafuso anun-ciando cortes no orçamento para a educação. Essas novas medidas irão ajudar as crianças, ou irão prejudicá-las? Quem sabe responder a essa pergunta?

O governo costumava publicar dados estatísticos sobre

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a saúde mental das crianças a cada cin-co anos. Isso era regra até o ano de 2004, quando a prática foi encerrada. Sabe-se, no entanto, que na Inglaterra a oferta de vagas para tratamento de doenças mentais em crianças aumentou 50% entre 1999 e 2014, mas esse incremento do número de vagas ainda se mostra insuficiente para atender a demanda.

Crianças que sofrem crises de saúde men-tal estão sendo despejadas nas enfermarias para adultos e até mesmo em celas da polí-cia por falta de vagas em instituições tera-pêuticas adequadas. O número de crianças vítimas de autoagressão internadas em hospitais aumentou 68% em dez anos, en-quanto o número de pacientes jovens que apresentam transtornos alimentares pra-ticamente duplicou em três anos. Não dispomos de dados estatísticos realmente confiáveis, e portanto fica muito difícil chegar-se a uma conclusão clara a respeito das cau-sas desses problemas. Mas vale a pena notar que, no ano passado, de acordo com a organização beneficente Young-Minds, o número de crianças que receberam aconselha-mento para tratamento de síndromes de estresse triplicou.

Contra os interesses comuns da humanidade

Em nome do avanço e da autopromoção somos exortados a sacrificar o nosso lazer, nossos prazeres e o tempo que dedicamos aos nossos parceiros, filhos e amigos. Somos condicionados a passar por cima dos corpos dos nossos

rivais e a nos definirmos contra os interesses comuns da humanidade. E então? Nós descobrimos que a satisfação que obtemos é igual ou menor daquela que tínhamos ao iniciarmos esse processo.

In 1653, Izaak Walton descreveu em “The Compleat An-gler” o destino dos “pobres homens-ricos”, que “gastam todo o seu tempo primeiro para obter riqueza, e depois na ansiedade de conservá-la; homens condenados a serem ricos e, pela riqueza, a serem sempre ocupados e descon-tentes”. Hoje, confunde-se esse destino com salvação.

Leve trabalho para casa, passe em todos os seus exames,

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gaste os seus vinte anos longe da luz solar, e você também poderá viver como vive a elite. Mas as vagas para crianças com problemas mentais aumentaram em 50%, e ainda não são suficientes para atender a demanda.

(*) O taylorismo é uma concepção de produção, baseada em um método científico de organização do trabalho, de-senvolvida pelo engenheiro americano Frederick W. Taylor (1856-1915). Em 1911, Taylor publicou “Os princípios da administração”, obra na qual expôs seu método. A partir dessa concepção, o taylorismo, o trabalho industrial foi fragmentado, pois cada trabalhador passou a exercer uma

atividade específica especializada no sistema industrial. A organização foi hierarquizada e sistematizada, e o tempo de produção passou a ser cronometrado. O método também é cha-mado de “racionalização do trabalho”.

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ASENHORAS DA PRISÃO PERPÉTUA Uma música de mulheres encarceradas

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u não sou um anjo”, canta uma, “mas eu não sou o diabo”. Fil-mado em um evento TEDx in-dependente dentro da Prisão Estadual de Muncy, este vídeo

é um olhar raro e comovente dentro do mun-do de pessoas presas sem qualquer esperança de libertação.

E

Elas batizaram o seu grupo musical “The Lady Lifers”, Senhoras da Prisão Perpétua. As nove mulheres deste coro foram condenadas à prisão pelo resto de suas vidas. Elas compartilham uma música comovente sobre as suas experiências, revelando suas esperanças, pesares e medos

VÍDEO: TEDX NA MUNCY STATE PRISONTRADUÇÃO: MARICENE CRUSREVISÃO: YARA TOLEDO

Bill Gates fala no TED

Uma condenação à prisão perpétua na Pensilvânia significa exatamente isso; não existe possibilidade de liberdade con-dicional. Essas mulheres, que estão na prisão há décadas, cantam suas vidas no interior do cárcere.

“Sou uma mulher, sou uma avó, sou uma filha, tenho um filho”, canta Brenda Wa-tkins, vocalista principal do The Lady Lifers. “Eu não sou um anjo, eu não sou o diabo. Era tão jovem quando fui para a prisão”.

The Lady Lifers é um coro de mulheres que cumprem prisão perpétua na Mun-cy State Prison, na Pensilvânia. Embora elas sejam conhecidas e chamadas apenas pelos seus números de prisioneiras, elas também têm nomes: Brenda Watkins, Dannielle Hadley, Debra Lee Brown, The-resa Battles, Diane Metzger, Thelma Ni-chols, Joann Butler, Lena Brown, Trina Garnett, Naomi Blount. Juntas, elas can-tam suas esperanças e seus medos, inclu-sive a possibilidade muito real de morre-rem sozinhas na prisão.

A letra da canção, “This is Not My Home”, é de Howard Woodring. Música de Naomi Blount.

Tradução integral da letra de “This is not my home”

Dannielle Hadley: A vida na Pensilvânia significa simplesmente: uma vida sem a possibilidade de liberdade condicional. Para nós, senhoras da prisão perpétua, como nos chamamos, nossa úni-ca chance de libertação é através da comutação, a qual apenas foi concedida a duas mulheres desde 1989, há quase 30 anos. Nossa canção “Esse não é o nosso lar, fala sobre as nossas experiências enquanto cumprimos a prisão perpétua, sem possibilidade de liber-dade condicional.

Brenda Watkins: Eu sou mulher Sou avóSou filhaEu tenho um filho

Não sou um anjoNão sou o diaboEu vim para a cadeiaQuando era muito jovemEu passo o meu tempo aquiEntre as paredes desta prisãoPerdi amigas para a morteVi algumas voltarem para seus laresObservei os anos passandoPessoas vem e vãoEnquanto cumpro prisão perpétua sem liberdade condicio-nalEstou presa pelos erros que cometiEstou cumprindo minha sentença aquiEsse não é o meu larSonho com a liberdade espero por misericórdiaSerá que vereiA minha famíliaOu morrerei sozinha?Com o passar dos anosEu contenho as minhas lágrimasPorque se chorar me entregarei ao medoDevo ser forte Tenho que suportarPreciso sobreviver por mais um anoEstou presa pelos erros que cometiEstou cumprindo minha sentença aqui esse não é o meu larSonho com a liberdade espero por misericórdiaSerá que vereiA minha famíliaOu morrerei sozinha?Não digo que não seja culpadaNão estou dizendo que não deveria pagar

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A prisioneira Brenda Watkins à frente do grupo The Lady Lifers, na penitenciária de Muncy, Pensilvânia

Tradução integral da letra de “This is not my home”

Tudo o que peço é perdãoPreciso ter esperanças de ser livre algum diaExiste um lugar para mimNo mundo lá fora?Algum dia vão saber ou se importar que estou acorrentada?Existe redenção para o pecado dos meus dias de juventude?Porque eu mudeiDeus sabe que eu mudeiEstou presa pelos erros que cometiEstou cumprindo minha sentença aqui esse não é o meu larSonho com a liberdade espero por misericórdiaSerá que vereiA minha famíliaOu morrerei sozinha?Será que vereiA minha famíliaOu morrerei sozinha?

Vocês me conhecem como prisioneira 008106. Presa há 29 anos. Meu nome é Brenda Watkins. Eu nasci e fui criada em Hoffman, Carolina do Norte. Esse não é o meu lar.Thelma Nichols: prisioneira 0B2472. Estou presa há 27 anos. Meu nome é Thelma Nichols. Nasci e fui criada na Filadélfia, Pensilvâ-nia. Esse não é o meu lar.Dannielle Hadley: 008494. Estou presa há 27 anos. Meu nome é Dannielle Hadley. Nasci e fui criada na Filadélfia, Pensilvânia, e esse não é o meu lar.Theresa Battles: prisioneira 008309. Estou presa há 27 anos. Meu nome é Theresa Battles. Sou de Norton, Nova Jérsei, e esse não é o meu lar.Debra Brown: Sou conhecida como prisioneira 007080. Estou pre-sa há 30 anos. Meu nome é Debra Brown. Sou de Pittsburgh, Pen-silvânia. Esse não é o meu lar.

Joanne Butler: 005961. Estou presa há 37 anos. Meu nome é Joanne Butler, nasci e cresci na Filadélfia.Esse não é o meu lar.Diane Hamill Metzger: número 005634. Estou presa há 39 anos e meio. Meu nome é Diane Hamill Metzger. Sou da Fila-délfia, Pensilvânia, e esse não é o meu lar.Lena Brown: Eu sou 004867. Presa há 40 anos. Meu nome é Lena Brown, nasci e fui criada em Pittsburgh, Pensilvânia, e esse não é o meu lar.Trina Garnett: meu número é 005545. Meu nome é Trina Garnett, estou presa há 37 anos, desde os meus 14 anos. Nas-cida e criada em Chester, Pensilvânia, e esse não é o meu lar.

Será que vereiA minha famíliaOu morrerei sozinha?Ou morrerei sozinha?

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Interior da Penitenciária de Muncy