2855-6988-Ainda Sobre a Formacao Do Cidadao - e Possivel Ensinar a Etica

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    175Educao & Sociedade, ano XXII, no 76, Outubro/2001

    * Professora titular de Filosofia da Educao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ).E-mail: [email protected]

    AINDA SOBRE A FORMAO DO CIDADO: POSSVEL ENSINAR A TICA?

    LLIAN DO VALLE*

    RESUMO: A formao tica dos futuros cidados foi o primeiro e tam-bm o mais constante sentido atribudo ao educativa ao menosdesde que esta deixou de ser uma prtica privada, exercida de formaespontnea e dispersa no cotidiano social, dando origem a instituiessociais especficas e a fazeres especializados. Ao ser inaugurado, o longodebate sobre os fins e sobre os procedimentos da educao era essenci-almente movido por interrogaes em que tica e poltica encontravam-se fortemente entrelaadas. Tornada atividade social explcita e refletida,a educao se fez instrumento de construo de uma nova polis derealizao da obra poltica, pela formao tica dos futuros cidados.Mais ainda, a tarefa de formao tica para a cidadania deve ser associ-ada prpria inveno da noo de escola, quer a entendamos em suaacepo mais ampla como instituio consagrada a um tipo de educa-o que transborda o mbito estritamente domstico e que confiada aespecialistas , quer a concebamos na acepo muito especial quepassou a possuir na modernidade quando escola pblica imputa-da a responsabilidade quase que integral por uma formao antes con-fiada ao conjunto dos cidados.Palavras-chave: tica; Educao Pblica; Escola Pblica; Cidadania.

    Aps um longo perodo margem dos problemas educacionaisconsiderados relevantes na qual fora exilada, sem dvida, por fora dosprprios usos a que se prestara em passado recente , a tica ressurge,em nossos dias, como tema privilegiado dos debates e das iniciativasoficiais sobre educao.

    Talvez seja muito cedo para concluir com alguma iseno sobre asrazes mais profundas desse sbito privilegiamento, ainda que no possa

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    deixar de associ-lo ao momento mais amplo que a sociedade atravessa eque consiste em uma crise radical dos valores que, at ento, pareciamsuficientes para sustentar a vida em comum; mas o fato que parece sermais do que tempo de se questionar a superficialidade com que a temticavem sendo tratada, tanto pelos textos legais, quanto pelas anlises quesobre eles esto sendo produzidas.

    Pois, ao mesmo tempo em que essas postulaes tocam apenas asuperficialidade de questes que se colocam, atualmente, como desafi-os para a educao democrtica, elas ocultam a renitncia de uma ve-lha falcia que supostamente revelaria o carter aportico e, portanto,a impossibilidade de qualquer formao tica: que a educao dosvalores, para bem se realizar, deve forosamente se apoiar em uma rea-lidade social que, se existente, tornaria a ao educacional absoluta-mente dispensvel.

    Ainda que nada pretendendo conceder ao insidioso jogo das fal-cias educacionais, somos forados a admitir a incongruncia formalelgicaque consiste em querer socializar crianas para valores de fatoinexistentes na sociedade. Alm do mais, impossvel no perceber queos tempos atuais so marcados, exatamente, por uma condio inteira-mente nova a do esgotamento de toda a mitologia que, dando apoio evisibilidade ao ideal de controle ampliado da sociedade, fez-se a prpriabase das sociedades capitalistas, tanto quanto das formas que, nesse con-texto e em contrapartida, a aspirao autonomia assumiu, em suaslutas de resistncia. O que, portanto, aparece como esgotado , comodiria Cornelius Castoriadis, o sentido que concerne prpria auto-re-presentao da sociedade sentido que , concomitantemente, umaconstruo afetiva em relao a essa auto-representao, como vontadede ainda investir em valores; uma lgica efetiva de organizao da vidacomum, demonstrada pela eficcia hoje ausente dos investimentos social-mente valorizados; e um conjunto de smbolos e representaes capazesde condensar os investimentos de toda sorte que, em nome desses valo-res comuns, so individualmente realizados. No entanto, esse sentido racional, afetivo e simblico que deveria servir de base para a sociali-zao dos indivduos, para sua identificao com a construo comum epara a construo singular do sentido para sua prpria vida, que estesvaziado:

    () a significao da autonomia (que no se deve confundir com o pseudo-individualismo) aparece como que atravessando uma fase de eclipse ou deprolongado ocultamento, ao mesmo tempo em que o conflito social e pol-

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    tico praticamente se esfumaa. A nica significao verdadeiramente pre-sente e dominante a significao capitalista, a expanso indefinida dodomnio, que, ao mesmo tempo, se encontra este o ponto capital esvaziada de qualquer contedo que podia lhe fornecer validade no passa-do, e que permitia que os processos de identificao, de uma forma ou deoutra, pudessem se realizar.1

    Considerada desde esse ponto de vista, a questo da formaotica se apresenta, nos termos atuais, se no como uma aporia talcomo pretendia a tradio filosfica moderna , ao menos como umverdadeiro enigma. E creio ser exatamente esse o sentido com que muitosprofessores acolhem, atualmente, a injuno legal disposta nos par-metros curriculares. Descontada a triste passividade com que o ambi-ente escolar se resigna a amortecer os jogos de palavras oficiais, adotan-do rapidamente os jarges que legitimaro a manuteno das velhasprticas, perplexidade e desnimo parecem ser as reaes possveis paraaqueles que se vem, de fato, concreta e cotidianamente, confrontadosao paroxismo das exigncias educativas da escola pblica em nossa vi-olenta realidade.

    Ocorre que, no termo de todas as injunes legais atualmentefixadas, o grande enigma educacional cuja elucidao requer, justa-mente, a mxima ateno autonomia do professor acaba por se redu-zir a uma extensa lista de jarges e palavras da moda, de afirmaes nemsempre coerentes entre si, ainda que harmoniosamente dispostas de modoa lembrar que o professor deve se mostrar altura de determinaesque no ajudou a construir, mas que deveraplicar .

    Boas so, pois, as razes que nos levam a fixar a questo em umterreno bastante mais anterior que, do ponto de vista da histria dasinterrogaes educacionais, nos precede h muito no tempo; mas que,do ponto de vista da realidade a ser examinada, apresenta-se como con-dio prvia para uma investigao em profundidade. Assim, para co-mear do incio, ousemos enunciar a questo tal como a tradio dareflexo filosfica sobre a educao a formulou, com a radicalidade comque Plato a colocava mas ser apenas possvel ensinar a tica?

    Ora, pretendemos demonstrar que a formao tica dos futuros ci-dadosfoi o primeiro, e foi tambm o mais constante sentido atribudo

    ao educativa ao menos desde que esta deixou de ser uma prticaprivada, exercida de forma espontnea e dispersa no cotidiano social,dando origem a instituies sociais especficas e a fazeres especializados.Em outras palavras, ao ser inaugurado, o longo debate sobre os fins e

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    sobre os procedimentos da educao, que atravessa a histria das socie-dades, tecendo os sentidos que para essa atividade puderam ser produzi-dos, era essencialmente movido por interrogaes em que tica e polticaencontravam-se fortemente entrelaadas. Tornada atividade social expl-cita e refletida, a educao se faz instrumento de construo de umanova polis de realizao da obra poltica, pela formao tica dos futu-ros cidados.

    Mas pretendemos, ainda, e mais precisamente, associar essa ta-refa de formao tica para a cidadania, que combina o cuidado com acriao do filhote de homem e a construo do mundo comum, prpria inveno da noo de escola, quer a entendamos em sua acepomais ampla como instituio consagrada a um tipo de educao quetransborda o mbito estritamente domstico e que confiada a espe-cialistas, quer a concebamos na acepo muito especial que passou apossuir na modernidade quando lhe imputada a responsabilidadequase que integral por uma formao antes confiada ao conjunto doscidados.2

    Comecemos, pois, por analisar o que torna to evidente essa asso-ciao entre educao, tica e poltica, ainda que a forma de definir ostrs termos e, portanto, de conceber as relaes entre eles tenha variado,ao longo da histria das sociedades.

    Isso se deve, em primeiro lugar, prpria atividade educacional,que, como nos lembra Jaeger, () no uma prtica prpria ao indiv-

    duo isolado [mas] essencialmente, obra da comunidade.3

    No hsentido em se falar em educao fora de uma comunidade explicitamen-te instituda. Mas, por outro lado, tambm a exigncia tica s pode serpensada a partir da vida concreta de uma coletividade instituda: deriva-do deethos, que significa costume, uso, o termoethikedesigna o carter,a maneira habitual de um indivduo se comportar. Em uma palavra, atica se refere conformao, ou no, dos hbitos e comportamentosindividuais aos usos e costumes que cada sociedade institui para si.4

    E, de fato, cada sociedade se cria, criando os valores, as normas, oscostumes, as prticas e os ideais que a regem. Esses valores, normas,costumes, prticas e ideais constituem-se, como j se disse tantas vezes,no verdadeiro cimento das sociedades. Por isso, a fora dogmtica, o

    carter quase sagrado de que se revestem, ao serem transmitidos de gera-o em gerao. Definindo o prprio modo de ser de cada sociedade, desua manuteno parece depender a sobrevivncia de todo o edifcio soci-al. Por isso, tambm, dificilmente so desafiados. Foi, porm, o que se

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    produziu no mundo grego, que realizou ao que parece, pela primeiravez na histria a instituio consciente e explcita das leis e das normasda sociedade, instituindo, ainda, fruns e procedimentos permanentesde questionamento das decises tomadas pela assemblia dos cidados.Esta a origem da democracia ateniense, como interrogao aberta (namedida em que envolve a integralidade dos cidados, mas tambm nosentido de um questionamento radical da realidade instituda).5

    Anteriormente, os dogmas da tradio se impunham como verda-de mais natural (no sentido de dada uma vez por todas, e independen-te da deliberao humana) do que o prprio mundo natural. A crticadesses valores sups, portanto, uma formidvel ruptura com o modo deser tradicional, que acabou por implicar a descoberta do mundo da cri-ao humana e que teve por pano-de-fundo a grande controvrsia quevai ocupar durante muito tempo os filsofos gregos, a respeito das rela-es entre phusisenmos entre o que natural e a conveno estabelecidapelos homens:6 () que alguma coisa venha donmose no da phusissignifica, para os gregos antigos, que depende das convenes humanase no da natureza ().7

    Fica claro que, a partir da, a tica j no pode ser consideradacomo mera conformidade s leis estabelecidas, ou ordem natural dascoisas e dos seres, mas deve ser compreendida como a prpria ()cincia que tem por objeto () a distino entre o bem e o mal.8 Ainterrogao sobre o que a justia, sobre o que devemos fazer, sobre oque pensamos que justo fazer, passa a definir o terreno da reflexo tica isto , dadeliberao coletiva e tambm, a cada vez, individualsobre osvalores e normas, sobre as leis que se acredita devem reger tanto a vidacomum, quanto a existncia pessoal.

    esse, por exemplo, o legado de Scrates sua cidade, ele que,

    () dirigindo-se aos atenienses, () perguntava qual o sentido dos costumesestabelecidos (os valores ticos ou morais da coletividade, transmitidos de gera-o a gerao), mas tambm indagava quais as disposies de carter (caracters-ticas pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam al-gum a respeitar ou a transgredir os valores da cidade, e porque. Ao indagar oque so a virtude e o bem, Scrates realiza, na verdade, duas interrogaes. Porum lado, interroga a sociedade para saber se o que ela costuma considerarvirtuoso e bom corresponde efetivamente virtude e ao bem; e, por outro lado,interroga os indivduos para saber se, ao agir, possuem efetivamente conscinciado significado e da finalidade de suas aes, se seu carter ou sua ndole sovirtuosos e bons realmente. A indagao socrtica dirige-se, portanto, socieda-de e ao indivduo.9

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    nesse terreno, igualmente, que se engajam os sofistas que, naGrcia, do origem noo de teoria educativa, como conjunto refleti-do de princpios e de mtodos.10 Pois, se a principal obra dos sofistas ocombate aos valores e costumes aristocrticos que marcaram o perodoanterior, em favor do novo ideal democrtico,11 deve-se dizer que essaobra foi inteiramente encarnada em uma fecunda prtica educativa, querevolucionou a paideia grega.12

    A tica era, assim, a preocupao predominante dos primeirosprofissionais da educao13 tal como Protgoras, que, ao interrogar-se sobre que tipo de educao leva virtude?, faz de sua prtica umverdadeiro ensinamento moral. Mas a indagao tica e educacional tem,a, um objetivo bastante explcito: a construo da sociedade em basesdemocrticas. De forma que , finalmente, no espao poltico que a as-sociao entre educao e tica aparece em toda sua clareza: tratando-seaqui, pela primeira vez, de questionar os valores institudos, e tambmde interrogar o sentido e os procedimentos da educao, outra no era afinalidade, seno a construo da polisdemocrtica, pela formao deseus futuros cidados. Pois se, como gostam de dizer os atenienses, a polisvale o que valem seus cidados (frase que bem define o espritocvico que anima a democracia), da virtude de cada um depende a pr-pria cidade.

    A partir da, poltica e educao esto confundidas: escrevendoas leis, o conjunto dos cidados realiza uma obra educacional; mas,educando, o sofista perfaz a virtude dos cidados, exercitando-os nashabilidades de que a polismais prescinde.14 Os atenienses vo, inclusi-ve, mais longe: a bem da verdade, o grande educador , antes de tudo,a prpria polis, a comunidade dos cidados que a todos ensina a virtu-de, ao encarn-la cotidianamente, tornando-a umhbito. A virtude ,pois, prxiscomum que no pode ser ensinada com palavras, mas quese aprende atravs domodeloe da repetio. Nisso consistem osensinamentos de Protgoras, cujas teses, expostas por Plato,15 socomumente consideradas como exemplo da primeira teoria coerentede inculcao de valores prprios uma comunidade, por meio deuma prtica:16

    A idia de Protgoras que a aprendizagem dos valores fundamentais noresulta de um ensino didtico ou dogmtico, mas do concurso de influnciascomplementares. Os pais, a bab, os prximos da criana no lhe ensinam umateoria sobre a moral, mas o corrigem freqentemente e lhe do exemplos. Seusmestres, na escola, prolongam esta influncia propondo modelos de comporta-mento tirados dos poetas (da literatura), fornecendo-lhe, pela ginstica e pela

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    msica, o domnio de seu corpo e o sentido de equilbrio sem os quais ele jamaispoder se governar corretamente. As leis da cidade completam esta disciplinado corpo e do esprito, guiando, insensvel ou autoritariamente, segundo ocaso, a conduta do indivduo. A famlia, a escola e o Estado concorrem, atravsde uma srie ininterrupta de exerccios, para dar criana o sentido dadke(justia) e doaids, termo que no tem equivalente exato fora da lngua grega edesigna todas as formas de considerao que se pode ter para com o outro,tendo em vista o que lhe devido.17

    A tese de que a formao tica no resulta de ensinamentos elabo-rados e tericos, mas da prtica, , como podemos verificar de imediato,crucial para a educao, muito embora, contrariamente ao que ocorreuentre os gregos do perodo democrtico, nossa poca a tenha quase rele-gado ao esquecimento. Veremos, adiante, que ela retomada porAristteles.18

    Porm, se, como afirmava Protgoras, essa formao prtica rea-lizada por meio da imitao de modelos e tambm pelo exerccio conti-nuado dos valores deve ser tarefa de toda a sociedade, isso significa quecada cidado deve poder serdado como modelo, e que toda a prtica social um exerccio de cidadania. Em outras palavras, admite-se no somenteque uma intensa unidade funda a comunidade, mas tambm aigualda-de ticade todos os cidados:

    () os valores inculcados nas crianas so rigorosamente comuns ao conjuntodos cidados. Eles so comuns, segundo o modo de partilha igualitria que

    Hermes executa, sob os conselhos de Zeus. Cada cidado recebeu o sentido da justia e da probidade como herana, e esta igualdade moral de todos os indiv-duos faz, do relato de Protgoras, um mito fundador da democracia.19

    Ademais, se esse relato considerado o mito fundador da demo-cracia, por que afirma aigualdade polticados cidados: segundo ele, detodas as qualidades humanas, aquelas que so necessrias para a partici-pao na poltica (na tomada de decises, no governo da polis) so co-munsa todos cidados. por isso que o poder poltico no pode e nodeve ser dividido, ele no deve ser reservado aos que so considerados ou se fazem considerar os melhores (como acontece na aristocracia),nem a qualquer tipo de especialistas (princpio que, na atualidade, duma estranha feio a nossas democracias). Do poder poltico devem

    participar igualmente todos os cidados.Mas essas teses defendem, claro, o oposto daquilo que Platosustentava. Tal como os sofistas, o filsofo concedia educao um papelcentral em suas reflexes; tal como eles, dedicou sua vida prtica educativa.

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    Mas as coincidncias se esgotam a. Para comear, Plato recusa a tese daeducao prtica, pois, para ele, a via real para a virtude s pode ser oconhecimento. Alm disso, ele rejeita radicalmente o princpio democr-tico, pelo qual o poder deve ser exercido por todos os cidados, afirman-do, ao contrrio, que o governo ideal s poderia ser obra daqueles que sededicassem inteiramente busca da Verdade. A polisideal de Plato in-troduz, portanto, a noo dos especialistas do poder,20 na figura dosfilsofos, cuja existncia seria inteiramente consagrada comunidade.Esses seriam os verdadeiros modelos, e somente a eles caberia a fixaodos comportamentos e costumes, cujo exerccio levaria virtude. Emresumo, para o filsofo inconcebvel que a vida na democracia ateniensepudesse constituir-se em ensinamento prtico dos valores ticos.21 Asprticas democrticas, ao invs de ensinarem a virtude, estampariam avacuidade e o desatino de que a massa capaz. Assim, ele desafia:

    Eles tomam assento juntos, numa multido compacta, nas assemblias polti-cas, nos tribunais, nos teatros, nos campos e em qualquer outra reunio pblica,e censuram ou aprovam, com grande alarde, certas palavras ou aes igualmen-te inflamadas por suas vaias e aplausos, os rochedos e os lugares onde estofazem eco a seus gritos, duplicando o fragor da censura e do louvor. Em tal caso,o que acontece, como dizamos, com o corao de um jovem? Que educaoprivada resistiria e no seria levada por estes fluxos de censura e de louvor aogrado da corrente que a conduz? No seria ele levado a julgar como os outros oque belo e o que feio? No adotaria seus mesmos gostos e no se tornariasemelhante a eles?22

    A multido heterclita reunida em assemblia jamais seria ca-paz de chegar verdade, somente o filsofo se orientaria para ela. Mas,para Plato, impossvel que o povo seja filsofo: ele no tem a ()facilidade de aprender, a memria, a coragem, a grandeza de alma queso o apangio da alma do filsofo.23 Cabe, portanto, ao filsofo, e uni-camente a ele, servir de modelo e de guia para o povo.24

    De forma que, em Plato, tica e educao permanecem explicita-mente associadas, mas a poltica foi cuidadosamente afastada, para sreaparecer sob forma, alis, de atividade eminentemente educativa em sua utopia de uma polisjusta, onde a formao tica inteiramenterealizada pelos filsofos, que monopolizam, ademais, o poder poltico.

    Mas, em que pesem as crticas de Plato, sob a influncia dosensinamentos e da febril atividade dos sofistas, a paideiagrega adquire,definitivamente, seu carter, ao conceber na educao a tica e a polti-ca reunidas.25

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    Opondo-se a Plato, Aristteles retoma, como j afirmamos, atese de que a formao tica depende da prtica. Filsofo comprometidocom a vida da polise, talvez por isso mesmo, excelente observador dasociedade em que vive, Aristteles no acredita, como seu mestre, que oconhecimento seja suficiente para a formao tica. Tanto areflexo abs-trata e desencarnadasobre o que o bem, sobre o que a verdade, sobreo que , em uma palavra, a virtude v, quanto intil o conhecimentoexato de como proceder em uma situao,se no vem acompanhado daao. Aristteles sabe perfeitamente que, mesmo conhecendo o bem,muitas vezes o homem escolhe praticar o mal: por isso, no que se refere formao prtica,

    () a verdadeira finalidade no a busca dos princpios e o conhecimento dasregras em geral, mas sua real aplicao. No que se refere virtude, tampoucopode ser suficiente saber o que ela ; preciso, alm disto, esforar-se em possui-la e coloc-la em prtica ().26

    Tal como Protgoras, o filsofo admite que, desempenhando umafuno eminentemente poltica, a educao deve buscar o aperfeioa-mento dos cidados. J que, numa democracia, todos os cidados parti-cipam do governo, da prtica de cada um deles que depender toda asociedade. () a virtude moral (ethike27), nasce do hbito e dos costu-mes; e exatamente do termo costumes (ethos28) que, por uma ligeiramodificao, ela recebeu o nome de moral que carrega.29

    Portanto, para Aristteles, a virtude no natural: ainda que seapoiando na natureza humana, ela depende da experincia e, mais par-ticularmente, da aquisio de um hbito (exis): () assim as virtudesno esto em ns apenas pela ao da natureza, nem existem contra anatureza; mas a natureza nos torna suscetveis a ela, e o hbito que asdesenvolve e as realiza em ns. (id.)30

    Em Aristteles, a interrogao tica em torno da definio de virtu-de parte dessa oposio entrenmose phusisque permitiu aos gregos colo-car em questo o que estava institudo em sua sociedade como verdadeacabada e inabalvel. Em sua perspectiva, que aqui a da democracia, odesafio da tica j no mais o de chegar, por meio da reflexo, ao conhe-cimento da Verdade; mas o de, reconhecendo o carter convencional e

    arbitrrio (porque inteiramente criado pelo homem) donmos, defini-locomo devendo valer para todos os homens: como instituir valores e proce-dimentos que sirvam de base para a vida comum, como, em outras pala-vras, dotar essa criao arbitrria da sociedade de um carter universal?

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    Em seu livro dedicado tica, Aristteles reserva um lugar central questo da justia que, para ele, () tudo o que cria e salvaguarda,para uma comunidade instituda, a felicidade ().31 A justia plena, a justia total , portanto, a mais alta virtude, mas ela tem trs caracte-rsticas: primeiramente, como podemos perceber, ela temcarter polti-co, concerne a toda a comunidade, e a cada um de seus membros. Emsegundo lugar, ela no apenas, relembremos, uma elucubrao filos-fica. Ela deve ser prtica, isto , deve corresponder a umexerccio, deveser objeto de um uso efetivo por parte dessa comunidade. Porm, estavirtude tica no pode se realizar apenas pelo efeito de uma merainculcao, ela deve corresponder a uma verdadeiradisposio adquirida(exis). Mas que disposio adquirida, servindo de base justia, podecomportar a democracia, seno adisposio para a prpria deliberao?

    A lei justa, onmosdemocrtico , assim, aquela que, mais do queinjuno e interdio, isso , mais do que afirmao do que deve ser emais do que proibio daquilo que no deve ser, abertura para a delibe-rao comum, a partir de uma disposio pessoal, que Aristteles deno-mina prudncia ( phrnesis).

    A noo de virtude supera largamente o domnio estrito da moral e esta supe-rao correspondem, essencialmente, ao domnio de interveno prprio educa-o. De um lado, a virtude uma disposio estvel ou estabilizada para a aovirtuosa, mas esta disposio (exis), no sendo nem natural nem inata, d lugar aum processo de aquisio voluntria. Toda virtude , no homem, o resultado deuma escolha, ela prpria tornada possvel ao termo de um processo educativo.32

    Sendo capacidade de deliberao, a prudncia,virtude tica e pol-tica, no deriva de um conhecimento terico, mas prtico, inteiramentedirigido para a ao; mas, sendo deliberao, elaapia-se na razo. Deforma que, se no h uma educao para a prudncia, como uma esp-cie de educao para o comportamento tico, h todo um trabalho aser realizado sobre o desenvolvimento da razo.

    Se, em Aristteles, a educao est na base da construo polticada democracia, porque ela pode ser lugar de instituio da virtudetotal, que a justia,

    () e isso pela paidea, a educao, o exerccio tendo em vista os negcioscomuns, a criao plena do cidado, a transformao do pequeno animal emhomem na cidade. A justia total constituio/instituio da comunidade e,de acordo com o fim desta instituio, sua mais pesada tarefa a que concerne paidea, formao do indivduo tendo em vista sua vida na comunidade, asocializao do ser humano.33

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    A principal tarefa da educao , pois, a formao tica de seuscidados, que, numa democracia, supe a construo, por parte de cadaum, das condies a partir das quais ele poder participar plenamente davida comum, deliberando e refletindo sobre o que a felicidade de todos.

    Para Aristteles, essa educao deve ser prerrogativa do Estado,34pois () bom que as coisas que interessam toda a comunidadesejam objeto de um exerccio comum.35 Aristteles antecipa, assim,sem conseguir v-la realizada em sua poca, uma exigncia que, sculosmais tarde, levar criao da Escola pblica esta forma de educaocomum que, em nossas democracias sem participao poltica, torna-seum outro desafio.

    Sem dvida, a exigncia de uma escola pblica, gratuita, universale obrigatria s pode ser corretamente avaliada luz do princpio demo-crtico que, estabelecendo formalmente a igualdade entre os cidados,implica um interminvel questionamento sobre os meios de concretiz-la. Tal como na Grcia, na Frana revolucionria o ideal democrticointroduz a questo da justia e de sua concretizao. Diferentemente,porm, do que ocorrera na Antigidade, trata-se agora de buscar taiscondies concretas de participao e de igualdade, no apenas para umaparte da populao, mas para a totalidade dos membros da sociedade.

    A primeira dessas condies , evidentemente, a criao de umabase tica comum: no seio de uma sociedade dilacerada pelas diferenase pelas injustias, essa tarefa se transforma, porm, num verdadeiro dile-ma, num formidvel desafio do qual dependem os ideais democrticosque inspiram o sonho revolucionrio. Mas no se havia dado o passomais importante, ao tornar de uma s vez todos os indivduoscidadosde pleno direito, e iguais perante as leis? Essa convico est claramentepresente, por exemplo, nos argumentos desenvolvidos por GabrielBouquier, apresentando o que se tornar o primeiro decreto do novogoverno sobre a educao:

    Porque haveramos de ir buscar longe de ns o que j temos sob nossos olhos?Cidados, as mais belas escolas, as mais teis, onde a juventude pode receberuma educao verdadeiramente republicana, so, no duvideis, as sessespblicas dos departamentos, dos distritos, das municipalidades, dos tribu-nais e, sobretudo, das associaes populares () Tudo se lhes apresentarcomo meios de instruo deve-se ver claramente que a Revoluo organi-zou, por assim dizer, por si mesma, a educao pblica e distribuiu por todaparte fontes inesgotveis de instruo. No substituais, portanto, essa orga-nizao simples e sublime, como o povo que a criou, por uma organizaofictcia, calcada sobre o status acadmico, que no mais deve infectar uma

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    nao regenerada. Conservemos preciosamente o que fizeram o povo e aRevoluo; contentemo-nos de acrescentar o pouco que falta para completara instruo pblica. Este complemento deve ser simples como a obra criadapelo gnio da Revoluo ().36

    A referncia democracia grega e s teses de Protgoras evidentee ilustra a profunda influncia que o mundo antigo sempre exerceu so-bre o pensamento educacional dos chamados modernos. Como co-menta um ilustre estudioso da Grcia antiga, P. Vidal-Naquet, () seexiste um domnio onde a tentao de tomar os antigos por modelo e,singularmente, os gregos, era muito forte, este era incontestavelmente odomnio da educao.37

    Porm, como sabemos, no a corrente defendida por Bouquierque tem a ltima palavra, no que se refere educao comum que osfranceses, a partir da, vo instituir. As grandes diferenas que teima-vam em persistir no seio da sociedade pareciam reclamar outros ins-trumentos, mais poderosos, menos espontneos, em termos de in-terveno educativa. E foi assim, de certo modo, que a Escola pblicapde, em seus incios, ser concebida. A idia de que a educao podetudo, formulada por Helvtius,38 define, na verdade, a crena queacabou prevalecendo entre os revolucionrios: a virtude democrticapor excelncia, a capacidade de justa deliberao, no sendo promovi-da por fora da lei, podia, entretanto, e diferentemente do que defen-dera Plato,ser ensinada.

    A chave para a compreenso do que ento se passou , sem dvi-da, a extremada f na razo humana, que o movimento iluminista ajuda-ra a propagar. Se a educao passa a ser, de maneira ainda mais explcitado que o fora na Grcia antiga, o instrumento privilegiado do projetopoltico, por que, de Plato, o sculo das Luzes guardou a convico deque toda virtude provm do conhecimento. Mas, contrariamente ao fi-lsofo, construiu a slida crena de que, sendo todos os homens igual-mente dotados de razo, era essencialmente do desenvolvimento destafaculdade humana por excelncia que dependia a concretizao dos ide-ais de justia e da igualdade pelos quais lutavam. Atravs da difuso dasluzes da divulgao dos progressos das cincias e das artes caberia educao arrematar a obra revolucionria.

    E, com efeito, radicalizando sua f na razo humana, a Revoluoparece no vislumbrar outro adversrio, outro limite, alm da ignorn-cia. Em que pesem as crticas expressamente formuladas por Rousseau aesse respeito,39 o movimento iluminista tender a imputar a responsabi-lidade por todas as grandes questes sociais, como a desigualdade, a

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    injustia, a misria, a dominao, aos obstculos que a razo encontrapara se universalizar. Dessa forma, o racionalismo iluminado empreendea traduo dos desafios ticos e polticos da democracia em termos dadifuso das luzes.40

    Muito embora se tenha dedicado formulao de um projetoeducacional prprio, Plato, cuja existncia foi inteiramente consagrada formao, insistia que a virtude no podia ser ensinada; e era esse,essencialmente, o grande argumento que empregava contra as preten-ses sofsticas. Justia, coragem, prudncia, piedade, os diferentes mri-tos e, sobretudo, o maior deles, amor verdade so repartidos desigual-mente entre os indivduos e desconhecer tais limites empreender, noum trabalho educacional, mas uma ao de mistificao, tal como a dossofistas. A educao no pode tudo, porque encontra, nas disposies deuma ordem que lhe infinitamente superior, seus limites de atuao. Aao humana no pode tudo, tudo o que pode realizar-se plenamente,realizando essa ordem que a inscreve: argumentos que a escolstica, pos-teriormente, s far abraar.

    Assim, nas origens do projeto de Escola pblica moderno, en-contramos, a um s tempo, uma retomada da concepo platnica expressa pela associao de toda a misria moral da sociedade ausn-cia de conhecimento sobre a verdade e uma crtica frontal a essaconcepo manifestada pela recusa em aceitar qualquer limite para ainterveno educativa.

    Essa confiana extremada na educao, no entanto, s pode sealimentar de uma f ainda mais inabalvel no poder de interveno hu-mana. Mais do que a educao, , pois, a ao iluminada da razo quedesconhece limites. Essa razo humana que universal capaz de pro-mover a justia e igualdade: ao menos, nisso que se acredita firmemen-te e, se tais no so as evidncias, no porque Plato estivesse certo,mas, antes, porque, at aqui, tradies injustas e costumes obscurantis-tas impediram que a razo se desenvolvesse livre e igualitariamente entreos homens.

    Cabia, portanto, romper as cadeias que aprisionavam a razo hu-mana ignorncia, ao fanatismo, aos vcios, condenando a sociedade dominao inqua. Como vimos, a lei aparece, desde o incio, como o

    instrumento educativo por excelncia. Pois, muito mais do que a trans-formao, ainda que radical, de alguns pontos especficos da organizaosocial e por mais que esses, tocando o mago do poder constitudo,fossem vitais para o funcionamento de toda a sociedade os revolucio-

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    nrios franceses visavam explicitamente, atravs da intensa atividadelegislativa imediatamente iniciada, instituir um novonmos: um novocdigo de valores e normas, que definisse o indivduo e a sociedade,formando as conscincias e regendo os comportamentos.41

    , portanto, inicialmentea lei que revestida do carter educativoque busca a revoluo: dela se espera que revolucione o prprioethosdasociedade. Tornando visveis e pblicos os valores a serem proclamados edifundidos, da nova legislao deveria decorrer um novo conjunto asprticas sociais encarregadas de encarn-los, no cotidiano e nas grandesmanifestaes, onde passam a ser celebrados. A lio, tambm aqui, vemdo passado: formar a sociedade e moldar uma unidade social no haviasido o legado dos grandes educadores da Histria, de Homero a Pricles?

    Assim, o entusiasmo pela educao se explica pelo fato de que elaamplia o poder de interveno poltico-legislativa, atravs da formao decidados segundo os novos valores e ideais que as leis difundem. E, comoBouquier, no so poucos os que consideram desnecessria a criao denovas instncias especializadas para levar a cabo a educao comum.

    Criticando essa posio que marca os primeiros momentos darevoluo francesa, uma conhecida historiadora, Mona Ozouf,42 co-menta que ela corresponde a acreditar em milagres: como, ento, seriapossvel garantir a formao tica dos cidados dentro de um mesmoesprito comum e democrtico, sem qualquer preocupao com os meiospara faz-lo? No entanto, no difcil perceber, por trs do desprezopelos meios, que a autora condena a mesma posio que Protgorasoutrora sustentava contra Plato, sobre o potencial educativo de uma polisdemocrtica.

    No certamente mera coincidncia se a controvrsia reaparece, j que ela se refere, como vimos, a uma das questes mais cruciais dademocracia: a daigualdadeentre os cidados. Apoiando-se no modelodo passado, aqueles que reconheciam no simples exerccio de participa-o poltica a verdadeira ao educativa pretendiam seguramente afir-mar que a cidadania no uma questo de especialistas e, assim sendo,no deveria requerer qualquer formao especializada.

    Outros, porm, consideravam que as profundas desigualdadesconstrudas na sociedade francesa durante sculos de dominao s po-

    deriam ser enfrentadas por uma ao especfica, por um lento trabalhode destruio dos dogmas e das crenas obscurantistas profundamenteenraizadas na sociedade. Esse trabalho propriamente educativo tornava-se, assim, condio prvia para a verdadeira igualdade, para a plena par-

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    ticipao. Consistindo numa verdadeira ruptura com os antigos valores,hbitos e costumes, com os afetos e sentimentos do passado, ele s po-deria ser realizado pelo esprito propriamente cientfico.

    Seria tentador parar aqui e dar razo a uma das duas posies.Poderamos, assim, afirmar que a idia de que a escola deve se encarregarda formao tica dos cidados uma iluso: afinal, onde a democraciaest efetivamente encarnada na prtica social, no h qualquer necessi-dade de formao especfica para seu exerccio; e ali onde ela est ausen-te, onde mantm uma existncia apenas formal, de nada adiantam osensinamentos.

    Ou poderamos, tomando o caminho contrrio, rejeitar a crena

    de que a construo democrtica est longe de requerer a criao deprocedimentos e de meios eficazes de realizao, devendo ser obra daao espontnea dos indivduos; crena que denunciaramos como umaforma disfarada de dominao, conhecida como populismo. Defende-ramos, neste caso, a importncia de fornecer aos indivduos uma forma-o racional e crtica, cuidadosamente planificada, cientfica.

    Por um lado, portanto, a afirmao da igualdade como um fato, eno como um projeto, mascara as desigualdades concretas que subsistemno seio da sociedade; por outro lado, a nfase no fato das desigualdadesacaba por desconsiderar a realidade democrtica, cujo ato fundador aproclamao peremptria da igualdadede direitoentre os cidados.

    verdade que a tendncia a postergar, com base em inmeros

    argumentos que parecem bastante bons, a concretizao do imperativodemocrtico, pelo qual todos so igualmente chamados a participar dasdeliberaes e das decises comuns, tornou nossas democracias verda-deiras farsas. Mas fato, tambm, que a criao democrtica nada temde espontnea e que, para efetivar-se, ela deve necessariamente ser des-dobrada na criao dos procedimentos, dos meios, das vias e dos fins quepermitem sua concretizao.

    Ao invs, no entanto, de nos precipitarmos, assumindo uma des-sas duas posies igualmente insatisfatrias, faamos melhor uso do pas-sado, recorrendo a ele no para buscar solues acabadas, mas para me-lhor perceber que na tentativa de resposta a este impasse aparentemen-te insolvel que reside, exatamente,o permanente desafio da educao

    democrtica. Desafio que pode ser expresso como um enigma: na educa-o democrtica, a igualdade , ao mesmo tempo, o fim que se busca etambm o princpio do qual se parte, aquilo que se pretende ajudar aconstruir e aquilo no que se apoia essa construo.43

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    Tomar a igualdade somente como fim a ser atingido, ou encar-launicamente como base do que se vai construir so duas tendnciasdiametralmente opostas. Mas elas tm, em comum, o fato de tratarem aigualdade como alguma coisa acabada, como uma verdade solidamen-te instalada, seja no presente, seja no futuro. Enfim, como um dogma.

    Relembremo-nos da posio de Aristteles: a formao tica doscidados s pode se dar como prtica, como socializao aos valores jexistentes na sociedade, mas ela ,ao mesmo tempo, o resultado de umlongo processo de aquisio racional. A virtude, porm, que define maisplenamente o cidado democrtico, uma disposio adquirida para adeliberao.

    Deliberao sobre o qu? Em primeiro lugar, sobre a justia, so-bre, por exemplo, o que essa igualdade, o que ela implica concreta-mente. E tambm sobre quais so os valores que, sendo comuns, tornamos indivduosiguais. Ao tratar a igualdade como alguma coisa j defini-da, no entendendo que a vida democrtica consiste exatamente nessecontnuo questionamento, numa contnua construo, o que se faz eliminara participao de cada umnesse processo.

    Vendo-se como os verdadeiros educadores da sociedade, os revo-lucionrios acreditavam j saber no que consistia a verdade democrtica.A razo que tanto cultuavam deixara de ser a capacidade de decidir auto-nomamente, para tornar-se uma verdade acabada que pretendiam im-por aos demais. As bases ticas comuns j no se fazem objeto de discus-so, ali onde se pretende que j foram postas, uma vez por todas, pelarevoluo; ou que j podem ser inferidas, antecipadamente, pelo pensa-mento cientfico que, recusando os dogmas e crenas que dividem oshomens, cria as bases do conhecimento verdadeiro e universal.

    No mundo grego, a participao poltica dos cidados envolvia asdeliberaes sobre as leis e sobre os destinos da cidade. Na revoluofrancesa, como se sabe, cedo essa participao foi restringida pela insti-tuio de representantes que, em nome do povo, passaram a deliberar.Assim, deve-se compreender que, tambm em nome do povo, esses re-presentantes percebiam sua autoridade na realizao da funo educativaque acompanhava a criao das novas leis.

    Se a criao do projeto de uma Escola pblica, universal, laica e

    obrigatria resulta diretamente da inteno de responder a essa exignciade formao dos cidados para a democracia, ela marca, muito particular-mente, a derrota da concepo espontanesta dos primeiros momentos.Mas, significando a afirmao do carter eminentemente educativo da

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    esfera poltica, que se constri na nova nao francesa, ela concretiza, igual-mente, a vitria de uma concepo muito particular de poder.

    O debate acerca do direito indito que passa a se reclamar para oEstado de,em nome da nao, tomar a si a responsabilidade educativaque antes repousava, quase integralmente, na iniciativa privada44 divi-de aqueles que, atravs da revoluo, redesenham o antigo Estadomonrquico. Contra os que pretendem substitui-lo por um Estado re-publicano no menos forte e centralizador, pesam as ponderaes libe-rais, que se enrazam na experincia da tradio inglesa da diviso dospoderes entre algumas classes, na conhecida constituio gtica, quealguns proclamam ser o verdadeiro legado da histria europia e que seencontra j, h essas alturas, solenizada nas Declarations of Right dosEstados Unidos da Amrica.

    Dessa forma, pode-se entender a posio expressa por BenjaminConstant, que busca contrapor liberdade dos Antigos a liberdadedos Modernos, tal como delineada pelos princpios do liberalismo. Naacepo antiga, os direitos participao poltica plena estavam associa-dos existncia de um Estado forte45 que restringia a liberdade privada:a eles, contrapem-se agora direitos plenos de fruio na esfera privada,ainda que a participao poltica seja restringida a uma interveno sem-pre indireta, manifestada por meio de representantes.

    Num extremo, portanto, esto os que defendem a formao deum Estado forte, capaz de, redefinindo as fronteiras entre privado e p-blico, fazer o bem comum primar sobre os interesses privados. No outroextremo, um Estado formado pela composio e pela livre negociao deinteresses privados que, ao invs de se contraporem ao bem comum, pormeio de sua livre manifestao, a comporiam como um mosaico.

    Alguns se deixam entusiasmar pelo modelo anglo-saxnico, que ,eminentemente, a base da noo liberal de Estado. Outros tentam, aferro e a fogo, impor o conceito da unidade, da vontade geral, comogrande rbitro das decises a serem tomadas. Nessa divergncia, osposicionamentos acerca da educao podem se confundir, mas h comodiscerni-los: enquanto os primeiros pensam a educao pblica comoum dever do Estado e um direito das famlias, os segundos vem, ao con-trrio, a ao pblica como umdireito do Estado, que tem comocontrapartida um dever das famliasem acat-lo e torn-lo possvel.

    Todas essas so nuanas que ganham grande importncia quandose tem em conta que a Escola pblica no , em absoluto, uma espciede realidade natural que se impe aos espritos, mas acriao de um

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    novo modelo de ao publica, que passa a interferir e mesmo a monopoli-zar atividades que, desde o fim da Antigidade, passaram a ser entendi-das como resolutamente privadas.

    Cabe, portanto, entender como a perspectiva liberal consegueapoderar-se dessa ao, transformando-a em instrumento de seu avanodentro da sociedade francesa. O liberalismo clssico, no nos esquea-mos, proclama um papel extremamente reduzido para o Estado, confi-ando a dinmica estruturante e estruturada da sociedade ao livre jogodas iniciativas privadas. Ora, esse modelo, teoricamente afirmado poralguns precursores, logo cede terreno a uma longa evoluo histrica,que culmina nas modernas manifestaes daquele que foi, mais tarde,chamado o Estado providncia: nele, o princpio da participao pol-tica reduzido a algumas garantias sociais educao, sade, previdn-cia que acabam percebidas, no como direitos, mas como benesses deum Estado que intervm continuamente na vida da sociedade, por meiode aes assistenciais; na vida privada, por meio da imposio de normasmorais e de higiene; na esfera da livre associao, por meio da disposi-o de leis que regulam as relaes de trabalho etc.

    O submetimento das disposies e aes estatais s necessidadesda livre empresa, cumplicidade que a ao pblica desenvolve com amanuteno do liberalismo, pela tentativa de atenuar suas conseqnci-as funestas e atuar como complemento, sem o qual ele se tornaria invivel,parece demonstrar a vitria de uma proposta liberal, agora reformulada.

    a partir da crise institucional do Estado forte jacobino quecomea a se estruturar um sistema de ensino pblico, que tem um olhona necessidade de formao de uma unidade nacional e outro nas exi-gncias de preparao de elites e de mo-de-obra disciplinada e adestra-da que o capitalismo emergente reclama.

    O desencanto com as armas eminentemente polticas leva, assim, noo de que a educao deve se dar por meio de uma ao especfica.Aqui a educao se separa da ao poltica de convencimento, da mani-festao cvica, da construo das organizaes sociais, para ganhar osforos de ao pblica especializada, estruturada e instituda. A ao doEstado j no mais, eminentemente, educativa, mas assistencialista. Aprtica poltica j no se define por seu carter educativo, a educaoreduz-se a uma das polticas pblicas que passa a caber ao governo.

    educao, entendida como uma ao especializada e direta, cabeagora uma formao cvica redimensionada pelas exigncias liberais, en-tendida como criao de condies bsicas para que o equilbrio social

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    seja mantido em torno de certos valores de disciplina, de ordem e deconfiana no progresso. Mas, realizada no seio da Escola pblica, a edu-cao passa, predominantemente, a ser entendida como formao pro-fissional, isto , habilitao necessria dos cidados em trabalhadoreseficazes na nova ordem.

    Assim, a questo da formao tica dos cidados continua, maisdo que nunca, como uma interrogao aberta, da qual depende em grandeparte o destino de valores como justia e igualdade em nossas sociedadesmodernas. Ela estampa a face moderna do enigma da educao demo-crtica a impossibilidade que somos convidados a tentar superar:

    A impossibilidade () da pedagogia consiste em dever apoiar-se numa auto-nomia que ainda no existe, a fim de ajudar a criao da autonomia ().Entretanto, a impossibilidade parece consistir, tambm, particularmente nocaso da pedagogia, na tentativa de fazer homens e mulheres autnomos, noquadro de uma sociedade heternoma; e, alm disto, no seguinte enigmaaparentemente insolvel: ajudar os seres humanos a aceder autonomia, aomesmo tempo em que absorvem e interiorizam as instituies existentes, ouapesar disto. A soluo desse enigma a tarefa impossvel da poltica tantomais impossvel quanto deve, ainda aqui, apoiar-se numa autonomia queainda no existe, a fim de fazer surgir a autonomia. A soluo do nossoenigma , ao mesmo tempo, o objeto primeiro de uma poltica de autono-mia, a saber, democrtica: ajudar a coletividade a criar instituies cujainteriorizao pelos indivduos no limita, mas amplia sua capacidade de setornarem autnomos.46

    Recebido para publicao em agosto de 2001.

    Notas:1. Cornelius Catoriadis, A idia de revoluo, In:Encruzilhadas do labirinto III.O mundo

    fragmentado. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1982.2. Para o decano de toda uma gerao de sofistas gregos, Protgoras, que era um ardente partidrio

    da democracia ateniense, a prpria polisque forma os cidados. Ver nota infra.3. Referimo-nos a um clssico da Histria da Educao, que aqui citamos em sua traduo

    francesa:Paideia. La formation de lhomme grec(Paris: Gallimard, 1964, p. 12), de WernerJaeger. Em que pesem as restries que merecem ser feitas aos posicionamentos do autor, esta , juntamente com a Histoire de lducation dans lAntiqit , de Henri-Irne Marrou (Paris:Seuil, 1948), uma das mais slidas referncias para o estudo da educao na Antigidade.

    4. No outra a origem do termomoral, criado por Ccero exatamente para t raduzir o gregoetikos( De Fato, I).

    5. Cf., a este respeito, Cornelius Castoriadis, A instituio imaginria da sociedadee As encruzi-lhadas do labirinto(5 vols.) e, especialmente, A polis grega e a criao da democracia, In:Encruzilhadas do labirinto II. Domnios do homem.

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    6. Eis a definio que nos fornece Cornelius Castoriadis: phusis: o impulso endgeno, cresci-mento espontneo das coisas, segundo uma ordem que lhes prpria. Nmos: a palavra,geralmente traduzida por ordem, significa, originalmente, a partilha, a lei da partilha, portan-to, a instituio, o uso (osusos e costumes), a conveno e, em ltima anlise, a conveno purae simples.

    7. A distino entre os dois termos aparece pela primeira vez formulada por Demcrito, noperodo que marca o nascimento da democracia ateniense. Cf. Cornelius Castoriadis,Fait et faire (Paris: Seuil, 1996). Trad. bras.:Feito e a ser feito, Rio de Janeiro: DPA, 1999.

    8. Andr Lalande,Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: Quadrige/PUF, 1993,3e d., vol. 1.

    9. Marilena Chau,Convite Filosofia. So Paulo: tica, 1994, p. 340-341.10. Cf . Jean Lombard, Aristote Politique et ducation. Paris: L Harmattan, 1994, p. 7.11. Werner Jaeger,Paideia, p. 334.

    12 . O prprio termo j d conta da estreita relao entre educao e tica: paideia significava, naorigem, a educao das crianas, a puericultura; aos poucos, porm, foi tornando-se sinnimode cultura, entendida como conjunto de valores, de padres de comportamento e de institui-es.

    13 . Os sofistas comeam a desenvolver sua atividade na segunda metade do sculo V. Para H.-I.Marrou, mais do que filsofos, os sofistas devem ser vistos como pedagogos ( Histoire de lducation dans lAntiquit , op. cit., vol I, p. 86). A eles aplica-se a acepo lata do termo escola, j que no ensinavam em estabelecimentos especialmente previstos para este fim, mas iam decidade em cidade proferindo suas conferncias, acolhidos em casas de ricos mecenas, cujasgraas amealhavam.

    14 . Assim, afirma Protgoras a Scrates, no dilogo platnico que leva seu nome: Reflete agora:existe, sim ou no, uma certa coisa qual todos os cidados devem necessariamente partici-par, para que a existncia da polisseja possvel? () Se verdade que tal coisa existe, e se estacoisa nica , no a arte do carpinteiro, ou do fundidor, ou do oleiro, mas a justia, atemperana, a conformidade lei divina, e tudo que denomino, em uma palavra, a virtude

    prpria ao homem (Plato,Protgoras, 324d-325a). Envia-se a criana escola, mas,() quando esto liberados da escola, a polis, por sua vez, os fora a aprender as leis e a elasconformar suas vidas. Ela no lhes permite agir livremente, segundo sua fantasia; mas, assimcomo o mestre de escrita, para as crianas que ainda no sabem escrever, traa primeiro asletras com seu estilete e lhes entrega em seguida a pgina onde devero seguir docilmente oesboo das letras, assim a polis, traando antecipadamente o texto das leis, obra de bons eantigos legisladores, obriga aqueles que comandam aqueles que obedecem a ele se confor-mar. (id., ibid., 326c-e).

    15 . Plato escreveu vrias obras sob a forma de dilogos, que punham em cena Scrates e outrospersonagens da poca. educao, ele consagrou, em particular, esta obra a que fazemosreferncia, intitulada oProtgoras, que discute as idias do famoso sofista.

    16. Patrice Canivez,Educar o cidado?So Paulo: Papirus, 1992.17. Id., ibid. A traduo do termoaids, transcrita por Canivez, de Jacqueline de Romilly. Cf. Les

    grands sophistes dans lAthnes de Pricls, Ed. de Fallois, p. 253, nota 3.18 . Esta tese tambm assumida, muitos sculos depois, por I. Kant, num contexto bastante

    diferente.19. Patrice Canivez,duquer le citoyen?Paris: Hatier, 1996. Eis aquele que passou histria como

    o mito de Protgoras: Quando do nascimento das raas mortais (homens e animais), osdeuses ordenam a Epimeteu e a Prometeu que distribussem as qualidades: Epimeteu se

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    encarrega da tarefa, e Prometeu descobre, estarrecido, que ele gastou todas as qualidades com asdiferentes raas, mas nada atribuiu aos homens. Prometeu vai at a oficina de Hefaistos e deAtenas e, roubando-lhes o fogo, garante para os humanos a habilidade tcnica. Porm, de talforma os humanos brigavam entre si, que o fim da espcie parecia iminente. Ento Zeusencarrega Hermes de levar a justia e a probidade aos homens, repartindo-asigualmenteentretodos. Cf.Protgoras, 320c-322d.

    20 . Mas, em favor de Plato, ainda preciso acrescentar que, para o filsofo, estes especialistas nose confundiam, como atualmente, com os profissionais da poltica, economistas, homens departido. Ao invs de se identificarem com o poder econmico, na concepo platnica, osfilsofos no possuiriam bens privados, tanto quanto no contrairiam matrimnio, no seconsagrando a nenhuma dessas atividades que dominam a construo da existncia privada.

    21. o que se pode ler noProtgoras. A tese reafirmada, ainda, no Menon, onde Scrates seenfrenta a Anitos, reputado personagem da Atenas democrtica.

    22. Plato, Repblica, 492b-d.

    23. 494a.24. Cf . Lon Robin , Avant-propos Platon, Oeuvres Compltes, Paris: Gallimard, Pliade, vol.

    1.25. Jean Lombard, Aristote, op. cit., p. 7.26. Aristteles,tica a Nicmaco, X, 10.27. Deethos, ethikedesigna carter, maneira habitual de se comportar.28 . ethos: hbito, costume, uso.29 . tica a Nicmaco, II, 1.30. id., ibid.31 . tica a Nicmaco, I, 13. Ver, tambm, o livro V.32. Lombard, op. cit., p. 57.33 . C. Castoriadis, Valor, igualdade, justia, poltica: de Marx a Aristteles e de Aristteles at

    ns, In:Encruzilhadas do labirinto. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987, p. 293.34 . No nos esqueamos, entretanto, que o Estado aqui institudo pela participao de todos os

    cidados.35. Aristteles,Poltica, VIII, 1, 1337.36 . Assim, Bouquier apresentava seu projeto que, adotado, se tornar a primeira lei de educao da

    Repblica francesa, em 19 de dezembro de 1793. Essa lei ser modificada em 17 de novembrode 1794, pelo decreto de reforma de Lakanal, que, por sua vez, ser substitudo pela LeiDaunou, de 25 de outubro de 1795.

    37 . Pierre Vidal-Naquet, La place de la Grce dans limaginaire des hommes de la Rvolution,In: La dmocratie grecque vue dailleurs. Paris: Flammarion, 1990, op. cit., p. 219-230.

    38 . De lEsprit , de 1771.39 . Rousseau considerava que o progresso tico e, portanto, poltico que a educao poderia

    operar no dependia da instruo, da difuso das luzes, mas de uma verdadeira formao tica,

    que levasse os indivduos a abdicar de seus interesses privados em nome do bem comum. Emresposta a um concurso de trabalhos filosficos promovido pela Academia de Dijon, que tinhaexatamente por objeto a questo de saber se o desenvolvimento das cincias e das artes haviacontribudo para o progresso moral, Rousseau elabora, em 1750, o Discurso sobre as cinciase as artes, inteiramente dedicado a expressar seu ponto de vista sobre o tema.

  • 8/6/2019 2855-6988-Ainda Sobre a Formacao Do Cidadao - e Possivel Ensinar a Etica

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    196 Educao & Sociedade, ano XXII, no 76, Outubro/2001

    40 . Cf., a esse respeito, a anlise de E. Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, So Paulo: Edunicamp:Cassirer mostra como, a exemplo de Voltaire, os iluministas acreditam que h uma coincidn-cia absoluta entre o desenvolvimento da razo, que revela ao homem a liberdade como valoressencial e inalienvel, e a constituio da nova ordem poltica assentada nesse princpio tico.Voltaire pensava que era impossvel ao homem conhecer a liberdade (base maior de todos osprincpios, expostos exemplarmente na Constituio inglesa, que defende a propriedade e asegurana pessoal) e no passar a defend-los.

    41 . Proclama-se agora em toda parte que a primeira etapa de toda a libertao, que a verdadeiraconstituio intelectual da nova ordem poltica s pode consistir numa declarao dos direitosinalienveis, do direito segurana e integridade fsica da pessoa, livre fruio de seus bens, igualdade perante a lei e participao de todos os cidados no Poder Legislativo (Cassirer,op. cit., p. 336).

    42. M. Ozouf, Lhomme rgnr . Paris: Gallimard.43. Cf. Cornelius Castoriadis,Encruzilhadas do labirinto,3. O Mundo Fragmentado. Rio de

    janeiro: Paz & Terra, 1992.Esteenigma resulta do fato de que a democracia jamais umarealidade acabada, mas sempre um projeto. Ele aparece especialmente claro na questo daformao tica dos futuros cidados: como formar a autonomia sem tratar as crianas comoautnomas? Mas como, por outro lado, d-las por autnomas se, justamente por seremcrianas, ainda no podem gozar de autonomia? Voltaremos a isto.

    44 . Prerrogativa absoluta da famlia, a educao podia ser delegada Igreja, em nome da autoridadeque esta detinha na esfera privada.

    45 . Repare-se, porm, que o Estado forte de que se fala aqui entendido como composto portodos os cidados: a democracia antiga no concebia a diviso do poder poltico.

    46. Cornelius Castoriadis,Encruzilhadas do Labirinto, 3. O Mundo fragmentado. Rio de Janeiro:Paz & Terra, 1992, p. 158 e 161.

    M ORE ABOUT CITIZEN EDUCATION : C AN ONE TEACH ETHICS ?

    ABSTRACT:The ethical education of future citizens was the first and steadiest meaning ascribed to the educational action- at least since thisceased to be a private practice exercised in a spontaneous and dispersed fashion to make way for specific social institutions and specialized actions.Since its beginning, the extended debate about the ends and procedures of education was essentially motivated by questions in which ethics and politicswere strongly intertwined. Grown into an explicit and reflexive socialactivity, education became an instrument to construct a new polis-accomplishing the political undertaking through the ethical education of future citizens. Moreover, this task must be associated with the invention of the notion of school, understood in its broader sense-either as an institutiondevoted to a kind of education consigned to specialists and that goes beyond the strictly domestic sphere, or in the special sense it acquired in modernitywhen the public school system is assigned almost full responsibility for education, which used to be consigned to the citizens as a whole.

    Key words:Ethics; Public education; Public school; Citizenship.